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Universidade de São Paulo
Centro Universitário Mariantônia
Curso de Especialização em Linguagens da Arte
CRECHE, CRIANÇAS E CRIAÇÕES:
UMA REFLEXÃO SOBRE A ARTE PARA CRIANÇAS MENORES DE 3 ANOS
RODRIGO HUMBERTO FLAUZINO
São Paulo – SP
2011
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Universidade de São Paulo
Centro Universitário Mariantônia
Curso de Especialização em Linguagens da Arte
CRECHE, CRIANÇAS E CRIAÇÕES:
UMA REFLEXÃO SOBRE A ARTE PARA CRIANÇAS MENORES DE 3 ANOS
RODRIGO HUMBERTO FLAUZINO
São Paulo – SP
2011
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RODRIGO HUMBERTO FLAUZINO
CRECHE, CRIANÇAS E CRIAÇÕES:
UMA REFLEXÃO SOBRE A ARTE PARA CRIANÇAS MENORES DE 3 ANOS
Monografia apresentada ao Centro Universitário Mariantônia da Universidade de São Paulo para obtenção de título de especialista em Linguagens da Arte Linha de Pesquisa: Reflexões sobre a Prática Docente Orientadora: Stela Maris Sanmartin
São Paulo – SP
2011
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AGRADECIMENTOS
• Às famílias, crianças, professores e demais funcionários da Creche / Pré-Escola Central
da USP, especialmente, àquelas que frequentaram os Grupos 3 e 4 (Berçário Maior,
Módulo 1) no ano de 2010.
• Às professoras Luciene Flávia Rezende, Renata Cristina da Silva, Miriane Amaral
Pereira, Alexsandra Vieira pelos relatórios concedidos e Vanessa Almeida, Júlia Soares
Bayerlein e Laura Gonçalves pelas contribuições no projeto “Transformando caixas em
brinquedos e brincadeiras”, desenvolvido junto às crianças e analisado nesta Monografia.
• À Divisão de Creches da Coordenadoria de Assistência Social da Universidade de São
Paulo (COSEAS – USP) que administra a Creche / Pré-escola Central, lugar onde
trabalho como coordenador pedagógico e onde, felizmente, as crianças brincam não só
com brinquedos, mas também com a arte.
• À professora orientadora Stela Maris Sanmartin pelas orientações e incentivo durante a
realização desta Monografia.
• Ao Centro Universitário Mariantônia pelos momentos e aprendizados que lá vivi nos
últimos dois anos.
• Aos familiares e amigos que estão sempre presentes em minha vida.
• A todos aqueles que contribuíram direta ou indiretamente para a conclusão deste
Trabalho.
• A Deus.
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RESUMO
O presente Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) constitui-se de um relato crítico realizado a
partir da análise de experiências educativas em artes desenvolvidas com um grupo de crianças
menores de 3 anos, na Creche / Pré-Escola Central da Universidade de São Paulo – COSEAS /
USP, no ano de 2010.
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SUMÁRIO
Introdução......................................................................................................................................6
Capítulo 1:
Os contornos da formação continuada: por uma infância mais colorida.................................8
1.1 O papel da coordenação pedagógica........................................................................8
1.2 Diálogos com as professoras sobre a importância da arte
na Educação Infantil.............................................................................................10
Capítulo 2:
Práticas de arte na educação infantil: fragmentos de uma realidade vivida........................12
2.1 O sujeito que precisamos conhecer antes de intervir
com propostas de arte............................................................................................12
2.2 Um panorama sobre a criança
menor de 3 anos.....................................................................................................13
Capítulo 3:
Brincadeiras com caixas: um mundo que se abre para exploração artística.........................19
3.1 Quando as caixas de papelão não servem para encaixotar.....................................19
Considerações finais....................................................................................................................24
Referências Bibliográficas..........................................................................................................26
Anexos...........................................................................................................................................27
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INTRODUÇÃO
O ingresso no curso de Especialização em Linguagens da Arte enriqueceu minha
formação inicial como pedagogo a partir do momento que me permitiu adentrar no universo de
conhecimentos e manifestações que atravessam as gerações humanas. Meus horizontes se
ampliaram assim que aprendi mais sobre dança, teatro, música e artes visuais nesses dois anos de
contato com mestres e alunos – sendo muitos deles também coordenadores, professores, atores e
artistas. Com o tempo e diante de profícuas interações, fui tornando-me uma pessoa mais
sensível e um profissional mobilizado a querer dividir os conhecimentos aprendidos com outras
pessoas.
Esta Monografia, portanto, serve como forma de materializar aquilo que aprendi com o
que quero compartilhar. Constitui-se de um relato crítico acerca de propostas de artes
desenvolvidas com crianças entre 1 e 2 anos de idade, que frequentam a Creche / Pré-escola
Central da Universidade de São Paulo – USP e objetiva investigar: Que possíveis diálogos
podem ocorrer entre formador e professores para que estes profissionais debatam mais sobre
arte, conseguindo inseri-la e consolidá-la no cotidiano das crianças? Quem é a criança menor de
3 anos, sujeito de nossas ações? Que exemplos de situações educativas ligadas às artes plásticas
ocorrem no interior da Creche? Enfim, é possível pensar, de fato, um trabalho de artes para
crianças tão pequenas que respeite os interesses, os níveis de desenvolvimento em diferentes
aspectos e condições da faixa etária?
Na busca de reflexões para estas perguntas, este Trabalho de Conclusão de Curso (TCC)
está organizado da seguinte maneira:
No Capítulo 1, o debate e as intervenções da coordenação pedagógica junto à formação
continuada do professor são discutidos como fundamentais na promoção de práticas de qualidade
no que diz respeito ao ensino de artes para crianças menores de 3 anos. Entende-se a arte como
linguagem que possui suas particularidades ao mesmo tempo em que também se interliga com
outras linguagens.
No Capítulo 2, procuramos saber quem é a criança menor de 3 anos, que aspectos são
distintos para esta faixa etária marcada por importantes transformações e conquistas motoras,
cognitivas, emocionais... O capítulo analisa, ainda, os fragmentos de situações nas quais as
experimentações artísticas se fazem presentes e são registradas com detalhes em relatórios
produzidos1 por professoras implicadas em garantir: ambientes coletivos instigantes, diversidade
1 Os nomes das crianças são fictícios.
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de materiais, propostas contextualizadas e, sobretudo, respeito ao pensamento particularmente
curioso e lúdico da criança.
Por sua vez, o terceiro Capítulo analisa um projeto cujo principal destaque ficou por
conta das interações e brincadeiras que as crianças fizeram com objetos não estruturados, tais
como, caixas de papelão. Das explorações iniciais, passando pelas pinturas, até chegar às
complexas composições feitas com as caixas, crianças e professoras viveram o lado mais
significativo da arte: o processo criativo construído coletivamente. A experiência dialoga com as
ideias de Viktor Lowenfeld e W. Brittain (1970) que abordam o desenvolvimento da capacidade
criadora para a faixa etária dos dois anos como sendo um processo vivo a ser incentivado por
aqueles que educam as crianças.
A realização desta Monografia encerra um ciclo ao mesmo tempo em que inaugura um
novo processo de descobertas para mim mesmo e para todos aqueles que procuram na educação
em arte e suas diferentes abordagens um caminho para fazer dos sujeitos mais criativos,
criadores e reflexivos. Ou seja, seres humanos em sua plenitude.
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CAPÍTULO 1:
OS CONTORNOS DA FORMAÇÃO CONTINUADA:
POR UMA INFÂNCIA MAIS COLORIDA
1.1. O Papel da Coordenação Pedagógica
Na atual condição de coordenador pedagógico de uma Creche / Pré-escola pública situada
no Campus da USP, destinada à educação e ao cuidado de crianças filhos e filhas de
funcionários, alunos e docentes desta instituição, tenho me deparado e refletido sobre questões
importantes relativas às complexas funções inerentes à profissão.
No trabalho intitulado “O Coordenador/formador como um dos agentes de transformação
da/na escola”, ORSOLON (2001) sinaliza algumas ações e atitudes do coordenador pedagógico
que, para ela, são capazes de desencadear mudanças nas práticas dos professores, a partir de
determinados limites e possibilidades, e dentro de uma conjuntura de formação continuada.
A abrangência da atuação do coordenador pedagógico é grande, mas também consiste na
promoção de um trabalho de orientação em sintonia com a organização/gestão escolar; na
realização de um trabalho coletivo, integrando com os diversos atores educacionais; na mediação
da competência docente, dentre outros pontos.
Por convergir com as ideias apresentadas por ORSOLON (2001) e acreditar que um
trabalho de qualidade no âmbito educacional, especialmente na educação infantil, deve ser
pautado numa relação de debates, estudos e reflexões coletivas, parto da premissa que devo
contribuir na mediação do saber e do saber-fazer de minhas parceiras educadoras. E isso somente
é possível a partir das experiências, interesses e modos de trabalhar que elas desenvolvem com
as crianças no dia-a-dia da creche.
As aspirações por este desafio foram fomentadas por algumas ideias e trabalhos
realizados pelas professoras, sob minha orientação, no ano de 2010. Cito, a título de ilustração, a
transformação da obra “Barco com bandeirinhas e pássaros” (Alfredo Volpi, 1955) em um tapete
sensorial para bebês de 1 ano, onde o principal fato a ser destacado, para além das
experimentações táteis das crianças, foi o interessante movimento das profissionais em querer
inserir uma obra de arte no cotidiano do Berçário (Ver Anexo, Figura 1a, 1b e 1c).
Um segundo trabalho, que será analisado ao longo deste TCC, diz respeito a um projeto
que contou com as interações, explorações, pinturas e construções com caixas de papelão de
diferentes tamanhos, realizado com crianças de 2 anos. O trabalho recebeu o nome de
“Transformando Caixas em Brinquedos e Brincadeiras”.
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Mesmo sabendo dos limites da Monografia de um curso de Especialização em
Linguagens da Arte, mas reconhecendo suas possibilidades e querendo que ela se articule com
algo que faça sentido pessoal e profissional, pretendo analisar a arte para crianças menores de 3
anos de idade dentro do contexto das práticas vividas no setor que denominamos Berçário Maior,
na Creche / Pré-Escola Central da USP. Acredito que, assim, as reflexões se tornam mais
maduras e ressignificadas para voltar à cena de onde surgiram, servindo como foco formativo e
avanços tanto para professores quanto para a própria coordenação pedagógica.
Ao tomarmos consciência de que é preciso refletir sobre nossa prática num intercâmbio
com a teoria, colocamos em movimento nosso saber, transformando-o em ação sobre o mundo.
Assim, abandonamos verdades absolutas, partirmos em busca de experiências positivas e
parcerias que nos ajudam a entender como abordar as artes visuais, e tantos outros
conhecimentos, com crianças desde a primeira infância. Com isso, o coordenador pedagógico
poderá realmente encontrar, na instituição, sua essência de trabalho junto à equipe de
professores, pois, como bem expressa ORLOSON (2001:25):
O trabalho de parceria, que se constrói articuladamente entre professores e coordenação, possibilita tomada de decisões capazes de garantir o alcance das metas e a efetividade de processo para alcançá-las. O professor se compromete com seu trabalho, com o aluno, com seu contexto e consigo mesmo. Por sua vez, o coordenador tem condições de respeitar e atender aos diferentes ritmos de cada professor. Compartilhar essas experiências no pensar e no agir possibilita rever seu papel, historicamente dado, de supervisionar, de deter informações, para “co-visionar”. Nas relações com o professor, institucionalmente hierarquizadas, criam-se possibilidades efetivas de aprender junto, de complementar o olhar, de ampliar as perspectivas de atuação em sala, de maneira menos fragmentada.
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1.2. Diálogos com as professoras sobre a importância da arte na Educação Infantil
Durante os momentos formativos de 2010 – encontros quinzenais ou mensais entre
coordenação e professorado – nos implicamos em delinear uma proposta formativa construída
coletivamente com o grupo de educadoras, cujas crianças de 2 anos estavam sob a
responsabilidade naquele ano.
No início, antes mesmo de se definir um projeto sobre caixas, foi discutido com as
profissionais a importância da introdução de “brinquedos não estruturados” nas brincadeiras
infantis coletivas. Chamamos de brinquedos não estruturados aqueles em que são as crianças que
atribuem “valor” e características a partir do próprio uso, da invenção durante o brincar. Como
exemplos desses objetos, podemos citar: os tecidos, os pedaços de madeiras, os pneus, as pedras,
as caixas de papelão...
A apresentação das caixas surgiu de uma demanda das próprias educadoras que
buscavam alternativas para incrementar as brincadeiras de pátio, para além do uso de brinquedos
convencionais nas interações entre as crianças. Assim como na prática diária o professor se
depara com desafios, o coordenador pedagógico também precisa fazer seu planejamento baseado
no conhecimento que tem sobre as necessidades de seu público, para descobrir o que já sabem e
o que precisam aprender.
Como a discussão sobre os brinquedos não estruturados foi bem aceita, o desafio agora
era o de aproximar as crianças pequenas – e também educadoras – do universo artístico,
fornecendo instrumentos para que todos pudessem entender, experimentar e refletir sobre
diferentes maneiras de expressão e impressões diante do mundo, a partir do contexto que estava
sendo instaurado. Afinal, como afirma IAVELBERG (2010:2), na construção da identidade
artística das crianças, os professores possuem um desempenho significativo e sua cooperação é
ainda maior quando “sabem respeitar os modos de aprendizagem e dedicar o tempo necessário a
fornecer orientações e conteúdos adequados para a formação em arte, que inclui tanto saberes
universais como aqueles que se relacionam ao cotidiano do aluno”.
Nesse processo em que as ideias se cruzavam e em que todos eram autores para buscar
soluções de como incrementar com mais arte as propostas realizadas com as crianças,
conhecemos publicações em revistas, livros (BABY-ART – Os primeiros passos com a arte, de
Anna Marie Holm. MAM, 2007) e também práticas de outras instituições, por meio de visitas de
profissionais ou vídeos (Vídeos Casa Redonda – Carapicuíba; Escola Vera Cruz – SP; Vídeo das
exposições 2008/2009 – Creche / Pré-Escola da USP São Carlos).
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Acreditamos que a possibilidade de diálogo se alicerçou em três pontos importantes: a
existência de espaços formativos propícios para o debate, à autonomia dada às professoras em
suas práticas e a uma coordenação pedagógica sensibilizada e atenta às artes. A combinação
desses fatores contribuiu em muito no sentido de imprimir modos de inserção da linguagem
artística nos planejamentos de nosso cotidiano institucional. A troca coletiva de ideias ajudou na
concretização de práticas significativas às crianças, ao mesmo tempo em que elevaram o (a)
docente à condição permanente de pesquisador (a). Ao final do processo, o resultado apontou
para uma equipe comprometida que passou a abordar a arte com mais propriedade,
contextualizando-a em seu fazeres e em suas reflexões.
Dedicar tempo e estudo a uma proposta formativa em artes para crianças de até 2 anos
colaborou, sobretudo, para desmitificarmos pontos importantes que, vez ou outra, permeavam o
cotidiano, tais como: Será que os bebês só choram? Só precisam ser trocados e alimentados?
Aprendemos que os bebês são muito mais do que isso, uma vez que possuem formas de
comunicação e expressão importantes para relação com o mundo físico e social. Nessa
empreitada de discussões, o primeiro aspecto que buscamos foi reafirmar entre nós mesmos que
os bebês não poderiam apenas receber cuidados em relação à higiene, alimentação e sono, mas
deveriam sim vivenciar propostas ligadas ao desenvolvimento da expressão e criação, conforme
suas possibilidades de atuação sobre a realidade. Em nossos encontros, portanto, buscamos
muitas vezes conhecer a trajetória histórica da educação infantil, seus dilemas e avanços, para
concebermos nossas crianças com sujeitos ativos e históricos, que se expressam por meio de
diferentes linguagens e maneiras (gestos, olhares, palavras), dialogando com o mundo, agindo e
aprendendo sobre ele em inter-relação com os outros.
O crescimento coletivo foi outro ponto que ocorreu aos poucos, na medida em que
trocávamos a realidade vivida entre nós, buscando juntos um entendimento e refinamento do
olhar para abordar a arte como fundamental à formação humana – já que ela é produzida
historicamente, por todas as culturas. Conforme expressam as artistas e arte-educadoras Ana
Tatit e Maria Silvia Machado, na obra “300 propostas de artes visuais” (2009:22), “a arte sempre
influenciou diretamente a formação dos povos. Em qualquer época, sociedade ou civilização,
sempre foi uma fonte de conhecimento, de transcendência espiritual”.
Todas essas questões foram vistas a partir de práticas reais que já ocorriam
concomitantemente ao processo de formação dos professores sobre suas atividades in lócus. Com
passar do tempo, o diálogo com as professoras nas reuniões formativas revelou um dia a dia cada
vez mais permeado com propostas artísticas, nas quais o processo de criação das crianças era
legitimado porque respeitava as perspectivas cognitivas, afetivas, sensíveis e sociais do grupo.
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CAPÍTULO 2:
PRÁTICAS DE ARTE NA EDUCAÇÃO INFANTIL:
FRAGMENTOS DE UMA REALIDADE VIVIDA
2.1. O sujeito que precisamos conhecer antes de intervir com propostas de arte
Um caminho sensato e criterioso a percorrer antes de propor algo para alguém é saber
sobre quem é este sujeito foco de interesse. Em diferentes áreas de atuação, conhecer mais de
perto quem é o público alvo para o qual se destina(m) uma ou mais ações implica em fazer com
que o pesquisador lance mão de variadas estratégias nessa empreitada – estudos, entrevistas,
pesquisas, diários de campo, levantamento de bibliografia sobre o assunto etc.
O artista, por exemplo, deverá conhecer muito sobre: a história da arte, o material mais
adequado para determinado resultado esperado, a melhor técnica para exprimir sua poética, a
linguagem que despertará mais emoção, impacto e curiosidade no público, entre outros pontos.
O pesquisador, por sua vez, precisará fazer um levantamento desta ou daquela literatura a
fim de discorrer sobre um tema, formulando hipóteses, desvelando problemas, aprofundando
questões e propondo novas indagações. Assim também ocorre com a profissão do professor, que,
antes de conceber suas atividades, precisará conhecer sua sala, seu grupo de crianças/jovens para
saber dos interesses, pensamentos e entender como é a dinâmica do desenvolvimento humano
em suas várias etapas.
Ter em mãos um “retrato” de realidades, situações e entendimentos sobre como as
pessoas processam o conhecimento permite que os profissionais tenham mais condições para
desenvolver trabalhos significativos, interessantes e excelentes do ponto de vista da qualidade na
experiência vivida. Garante-se, assim, que as ações educativas rumem ao encontro de relações de
ensino-aprendizagem mais efetivas para os envolvidos nos processos.
Conhecer quem serão os sujeitos focos de nossa ação independe da fase de ensino na qual
o educador leciona. Porém, no caso da educação infantil – primeira etapa da educação básica e
parte de nosso objeto de estudo – o conhecimento sobre o desenvolvimento da criança pequena é
primordial.
Para tanto, nos valemos de bibliografias da área educacional e dos relatos de atividades
produzidos por professoras de creche, já que tais fazeres e saberes nos ajudam a trilhar caminhos
de entendimento sobre quem é a criança menor de 3 anos e o que significa planejar, desenvolver
e avaliar propostas de artes para este público.
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2.2. Um panorama sobre a criança menor de 3 anos
Na experiência de educação infantil da Creche / Pré-Escola Central da USP, onde as
crianças passam cerca de 8 horas por dia em um ambiente coletivo de educação e cuidado, as
ações precisam ser necessariamente múltiplas, contextualizadas dentro de uma proposta
pedagógica que valoriza as produções culturais humanas construídas socialmente, e que, ao
mesmo tempo, levam em conta o desenvolvimento de cada criança em seus grupos.
No que diz respeito às propostas de arte para crianças menores de 3 anos, o trabalho
precisa ser minucioso, apropriado àquilo que nos apresenta o desenvolvimento humano deste
período, com o olhar atento do professor e em sintonia com a articulação daquela linguagem com
as demais. Afinal, como nos diz a poesia do italiano Loris Malaguzzi (Apud EDWARDS, 1999):
A criança é feita de cem. A criança tem cem mãos, cem pensamentos, cem modos de pensar, de jogar e de falar. Cem, sempre cem modos de escutar as maravilhas de amar. Cem alegrias para cantar e compreender. Cem mundos para descobrir. Cem mundos para inventar. Cem mundos para sonhar. A criança tem cem linguagens (e depois, cem, cem, cem)...
Considerando inicialmente a criança entre 1 e 2 anos, do ponto de vista motor, notamos
que há grandes experimentações de sua capacidade de equilibrar-se, movimentar-se, lançar-se no
espaço para explorar cada nova possibilidade que seu corpo lhe confere, como: subir, tocar nos
objetos e pessoas, andar com mais agilidade, já que há pouco conseguiu manter-se ereta e/ou
adquiriu a marcha. Diferentemente do primeiro ano de vida, a nova condição de andar sobre dois
pés, correr, pular com mais propriedade, por si só já torna visível um grande avanço no que diz
respeito à maneira como a criança passa a perceber tudo à sua volta. Muda-se, sobretudo, a sua
perspectiva, o seu olhar e ponto de vista sobre si mesma e o mundo. Para complementar essa
ideia, a autora OLIVEIRA (2002:148) expressa:
A motricidade também se desenvolve por meio da manipulação de objetos de diferentes formas, cores, volumes, texturas. Ao alterar sua colocação postural conforme lida com esses objetos, variando as superfícies de contato com eles, a criança trabalha diversos segmentos corporais em contrações musculares de diferentes intensidades. Nesse esforço, ela se desenvolve.
Do ponto de vista do desenvolvimento da capacidade criadora, expressões estas que dão
título à clássica obra de LOWENFELD e BRITTAIN (1970:115), os primeiros anos de vida são
provavelmente os mais decisivos no desenvolvimento das crianças por constituírem “os
primórdios da auto-expressão”. Para os autores, durante esse período inicial, a criança pequena
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começa a estabelecer padrões de aprendizagem, atitudes e um sentido de si mesma como ser, o
que traz reflexos para vida inteira.
LOWENFELD e BRITTAIN (1970:115) afirmam que a arte pode contribuir
imensamente para o processo de desenvolvimento, pois é na interação que a criança inicia a
aprendizagem. O foco da aprendizagem é a criança dinâmica, a qual se torna cada vez mais
consciente de si própria e do meio. De acordo com estes estudiosos:
Embora pensemos, geralmente, que a arte começa com o primeiro rabisco que a criança faz, num pedaço de papel, na realidade principia muito mais cedo, quando os sentidos estabelecem o primeiro contato com o ambiente, e a criança reage a essas experiências sensoriais. Tocar, cheirar, ver, manipular, saborear, escutar, enfim, qualquer método de perceber o meio e reagir contra ele é, de fato, a base essencial para a produção de formas artísticas.
Ainda para os autores, é por volta de 1 ano e 6 meses que a criança exprime seu primeiro
registro, em forma do que se chama garatuja. Esta, por sua vez, representa um passo importante
no desenvolvimento infantil, pois é o início da expressão que conduzirá não somente ao desenho
e pintura, mas, à palavra escrita. As garatujas classificam-se em três categorias: (1) as garatujas
desordenadas, (2) as garatujas controladas e (3) as garatujas com atribuição de nomes.
Vale dizer que não nos deteremos na explicação detalhada de cada uma dessas
classificações pelos próprios limites deste TCC, no entanto, como dizem os autores, na garatuja
desordenada, os primeiros traçados “são fortuitos e a criança parece não se aperceber de que
poderia fazer deles o que quisesse. Variam em comprimento e direção (...) à medida que a
criança movimenta o braço para trás e para frente” (Idem, 1970:117).
Na garatuja controlada, a criança descobrirá que existe uma ligação entre seus
movimentos e os traços que faz no papel, o que ocorre cerca de seis meses após ela começar a
garatujar. Segundo LOWENFELD e BRITTAIN (Idem: 120), “ainda que uma olhadela não
encontre grande diferença nos desenhos, a
aquisição do controle sobre os movimentos é
uma experiência vital para a criatividade
infantil”.
Nessa fase, as linhas podem ser
repetidas e, geralmente, traçadas com vigor.
Podem ser riscadas horizontalmente,
verticalmente ou em círculos, como revela o
desenho ao lado, “cheio de energia” de Miro (2
anos).
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A terceira etapa – a atribuição de nomes à garatuja – é quando a criança começa a nomear
as formas que ela desenha no papel, mesmo que estas não sejam reconhecíveis. É uma fase de
grande importância, pois indica uma transformação no pensamento. Se inicialmente a criança
estava satisfeita com os movimentos, agora, passa a ligar esses movimentos com o mundo ao seu
redor. Embora LOWENFELD e BRITTAIN (1970) nos digam que essa fase se dá, usualmente,
por volta dos três anos e meio, notamos em nossa experiência de creche que, algumas vezes, a
atribuição de nomes às garatujas aparece também um pouco antes, por volta dos 2 anos e meio a
3 anos.
O fato é que a criança desde bem pequena gosta de experimentar diversas maneiras de se
expressar e isso precisa ser incentivado no ambiente educativo das creches e pré-escolas. É
preciso garantir-lhe o direito de: lambuzar as mãos, correr com os pés descalços, pisar na areia,
na terra, na água, observar as cores produzidas pelas tintas durante sua pintura, procurar por
folhas, pedras, ouvir um barulho diferente, experimentar vez ou outra o alimento com as mãos,
investigar os traçados no papel ou riscar-se, como revela o fragmento de relatório da professora:
Quando está com canetinha, Laureana gosta de desenhar no papel, mas também nos braços, nas pernas, de experimentar seu corpo como se fosse uma tela para depois procurar por um interlocutor e contar: ‘eu desenhei no braço’. A mesma ação se repete com as tintas, tornando a experiência ainda mais divertida! Laureana inicia com os pincéis e depois já a vemos com suas mãos todas cheias de guache, esfregando uma na outra e passando no corpo todo. Ela gosta de sentir a textura da tinta nas mãos, vê-la escorrendo entre os dedos para, em seguida, contar: ‘Ó, eu passei na mão’.
Este caleidoscópio de experimentações (Ver Anexo, Figura 2) ligadas aos movimentos,
sensações e sentidos agrega outro ponto importante na faixa dos menores de 3 anos: o
desenvolvimento da linguagem. De maneira geral, a oralidade mostra-se numa crescente,
relevando-se como grande aliada na qualidade das interações, especialmente, pelas novas
atribuições de significados que vão sendo dadas às dinâmicas estabelecidas entre: criança-
criança, criança-adulto, criança-objetos. Para elucidar, passemos a análise de outro relato sobre a
criança e suas experimentações com a arte, descrito por sua educadora:
Laureana, bastante curiosa, se aproxima muito de suas professoras quando a proposta é ‘lambuzar’ as mãos ou iniciar uma pintura com guache. Quer ver e tocar, irrequieta em esperar que mostremos como vai ser a atividade e assim que pode, quer colocar sua mão naquela mistura diferente e, claro, experimentar. Então falamos que não se deve por na boca, mas ela sempre dá um jeitinho de saber que gosto novo vai conhecer. Quando iniciamos uma atividade de arte, usamos a camiseta de pintura. Assim que Laureana é chamada pra colocá-la, já começa suas interrogativas a respeito do que vamos fazer e depois diz: ‘colocar a camiseta de pintura?’. E então começa a chamar seus amigos que ainda não se vestiram para se apressarem: ‘Vem Didi, a camisa, a camisa, tinta!’.
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Podemos notar neste trecho que existem vários elementos a serem organizados antes do
início da atividade de arte propriamente dita. É possível ver as negociações que as professoras
fazem com as crianças pequenas, conversando com elas sobre qual será a proposta, bem como
dando dicas de como o material precisa ser utilizado.
Notem aqui que a intenção não é de antemão direcionar a ação da criança, mas sim fazer
os combinados iniciais para a atividade em grupo. Muitos conhecimentos estão em jogo, pois,
conforme explica OLIVEIRA (2002:136): “a construção de significações, a gênese do
pensamento e a constituição de si mesmo como sujeito se fazem graças às interações constituídas
com outros parceiros em práticas sociais concretas de um ambiente que reúne circunstâncias,
artefatos, práticas sociais e significações”, elementos estes que podemos visualizar na cena
descrita acima. E, como também expressam LOWENFELD e BRITTAIN (1970:137), “o mais
importante, em todos os períodos, é a compreensão e o incentivo do adulto”.
Na fala de Laureana outro item parece chamar bastante à atenção das crianças: a camiseta
de pintura. Esta se configura como um marcador que, quando surge, indica a iminência de uma
proposta de arte. Mais que um pedaço de tecido para evitar que as crianças se “lambuzem”, a
camiseta serve como elemento que agrega o grupo e o motiva a participar da atividade pensada
para o dia. No caso de menina, a camisa ainda serviu como um complemento para sua fala ao
convidar o amigo Didi para integrar-se à situação que, como se vê, traz muita curiosidade e
desejo para as crianças.
Contudo, quando falamos sobre crianças convivendo em grupo, devemos ter em mente a
heterogeneidade presente nesse círculo social. E que bom que há a diversidade! Ela nos amplia e
nos impele a entender os outros e a compreender a nós mesmos. Assim, se por um lado, a
pequena Laureana aguardava impaciente pelas propostas de artes, por outro, Ariel, de dois anos,
rejeitava, a princípio, esse tipo de situação, como mostram as observações das profissionais:
Ariel, uma garotinha de pouco mais de um ano e meio, voltou à creche meio avessa às artes, se a compararmos com o ano anterior quando era um bebê ainda menor. No início, ela apreciava muito as sensações gelatinosas e as variadas temperaturas que as misturas e tintas lhe proporcionavam: lambuzava-se e tinha interesse em experimentar tais elementos nos suportes que lhe eram oferecidos. Mas, no principio do semestre do novo ano, Ariel teve certa resistência a estas situações.
Em encontros formativos, as professoras relatavam que, enquanto estavam preparando
uma brincadeira com tintas e consistências, elas convidavam as crianças para colocarem as já
mencionadas camisetas de pinturas. Ariel, nessas ocasiões, demonstrava não querer colocar a
camiseta, começava a sinalizar negativamente e fazia um semblante de choro, então, suas
educadoras não insistiam, respeitando a decisão da menina.
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Com sensibilidade, as professoras deram inicio à atividade com as demais crianças do
grupo, deixando que Ariel se aproximasse naturalmente. Depois de pouco tempo caminhando
pelo espaço ao redor, a menina se aproximou,
juntou-se aos colegas, procurou por um pote
com tintas, acomodou-se num lugar e deixou
suas marcas no papel, e às vezes no rosto
também.
Em outra situação, desta vez com uma
mistura de beterraba, as professoras colocaram
um pouco na mão de Ariel para que ela a
espalhasse sobre o papel. No início, ficou bem
incomodada, visto que aquela era uma de suas primeiras experiências diante dos pedacinhos
finos de aspecto avermelhado. Logo, sua mão foi lavada para que pudesse escolher outra
brincadeira e, caso quisesse, poderia voltar à pintura, o que naquele momento não ocorreu...
Mas, com o passar dos dias, de certa constância nas atividades e de apostas em novas
propostas, Ariel começou a se readaptar a essas brincadeiras e participar delas deixou de ser uma
dificuldade.
Semanas depois, notou-se que Ariel
dava preferência à manipulação de massinhas
caseiras (farinha e água) e barro. Certa vez,
estava fazendo bolotas de argila e começou a
descrever: “a perna”, “a boca”. Então, quando
suas professoras se aproximaram, Ariel colou
uma lantejoula em sua produção e, apontando
com seu dedo, disse: “aqui a boca”.
Isso nos remete àquilo que
LOWENFELD e BRITTAIN (1970) dizem em sua obra, quando afirmam que o barro ou a
plastilina são excelentes materiais para a idade que estamos discutindo aqui, o que elucida
também o caso de Ariel. Conforme dizem os autores, há uma relação entre o material
tridimensional e as etapas da garatuja:
A manipulação do material tridimensional proporciona à criança o ensejo de usar os dedos e os músculos de modo diferente. Bater e amassar o barro, sem nenhum propósito visível, é a fase paralela às garatujas desordenadas. A formação de roscas e bolas, sem tentar a representação de objeto específico, corresponde às garatujas controladas. De repente, a criança pega num pedaço de barro, e talvez com acompanhamento ruidoso, chama-o de avião, ou dirá: “Isso é um automóvel”.
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Psicologicamente, trata-se da mesma transformação no processo mental (...). Também, neste caso, a criança transferiu-se do pensamento cinestésico para o pensamento imaginativo. (Idem: 139, Grifo meu).
Com um ambiente educativo sensível e atento àquilo que as crianças nos dizem (com ou
sem palavras), a relação com a arte parece tornar-se mais favorável para as experimentações e
criações de crianças e professoras. Além da escuta e do respeito ao ritmo individual dos meninos
e meninas, o espaço é também um importante elemento estruturante que contribui para o sucesso
de cada proposta. As atividades descritas foram planejadas para o pátio externo da instituição,
lugar amplo, bastante apreciado pelos grupos e que extrapola os limites das salas internas. Como
bem destaca IAVELBERG (2010:3):
Cada imagem, cada gesto, cada som que emerge nas formas artísticas criadas em sala de aula [e em outros tantos ambientes] têm grande importância, uma vez que se referem ao universo simbólico do aluno. Portanto, exigem a atuação precisa do professor, o planejamento do tempo, a organização do espaço e a atenção aos processos de comunicação tanto entre professor e aluno como entre os colegas de classe. Uma aprendizagem assim percorrida deixará marcas positivas na memória do aprendiz (...).
Desse modo, foi importante considerar as conversas de Laureana pensando sobre as
propostas e convidando seus amigos para participar delas. Também foi curioso acompanhar as
gradativas aproximações de Ariel, respeitando seu tempo e propondo alternativas em relação às
suas explorações de arte. Concomitantemente a tudo isso, novos interesses surgiam no grupo de
crianças, a partir de suas brincadeiras e jeitos de explorar os materiais, propostas e espaços da
instituição. As experiências se somavam e os aprendizados se multiplicavam.
A variedade de situações com gizes, canetas, tintas, massas de diferentes consistências,
cheiros e cores, além da distribuição de superfícies para exploração em diversos planos (no chão,
nas mesas, nas paredes) promoveram uma gama enorme de registro das marcas infantis. Em
nossa instituição, portanto, o trabalho com arte muitas vezes “extrapolou as margens dos papéis”,
no sentido de expandir as possibilidades de ação do sujeito ao considerar sua capacidade de
expressar-se de maneira plural.
A linguagem artística atrelou-se a muitas manifestações humanas, incluindo, a
brincadeira com objetos inusitados. Ponto este que será discutido no capítulo a seguir, a partir de
considerações sobre as brincadeiras das crianças com as caixas de papelão.
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CAPÍTULO 3:
BRINCADEIRAS COM CAIXAS:
UM MUNDO QUE SE ABRE PARA EXPLORAÇÃO ARTÍSTICA
3.1. Quando as caixas de papelão não servem para encaixotar...
Segundo PLACCO e SILVA (2009), a formação de professores é uma construção social,
cuja discussão é antiga e atual ao mesmo tempo, uma vez que se constitui em diferentes
dimensões, num movimento constante de indagar e produzir respostas, sendo estas sempre
relativas e provisórias. Uma dimensão a ser destacada, sem que haja menosprezo de outras, diz
respeito àquela chamada de “crítico-reflexiva” pelas autoras, que dizem: “perceber-se e perceber
as ações que realiza, avaliá-las e modificá-las em função da percepção e avaliação são questões
fundamentais e sensíveis na formação do professor, que exigem do formador e do formando
disponibilidade e compromisso” (Idem:27).
Nesse sentido, mostrou-se fundamental a coordenação acompanhar e refletir em conjunto
sobre os relatos organizados pelas educadoras, pois estes traduziam a escuta das profissionais
para os interesses das crianças e davam elementos para discutirmos sobre que propostas
poderiam ser desenvolvidas. Num dos trechos dos depoimentos, as professoras diziam que:
(...) as crianças tinham um grande interesse por entrar e sair de espaços apertados, passar pelos cubos e túnel de pano, engatinhar e brincar embaixo de mesas. A partir dessa motivação, foi proposto o oferecimento de materiais não usuais ou não estruturados, os quais pudessem criar possíveis e atraentes brincadeiras e que trouxessem outros contextos, dissociados do significado do objeto em si. As caixas de papelão, então, eram suportes adequados para a pesquisa com as crianças.
Assim, diante deste desafio inerente à própria condição de professor, ou seja, criar
situações significativas para a construção do processo de ensino-aprendizagem, as profissionais
pensaram em como mostrar às crianças que as caixas poderiam virar diversos brinquedos e
brincadeiras. Tal indagação desmembrou-se em um projeto grandioso, capaz de envolver outros
grupos também.
A atividade disparadora do projeto começou quando as educadoras contaram a história do
“Homem que Amava Caixas”, do australiano Stephen M. King (editora Brinque Book, 2009) em
que um pai demonstra o seu amor pelo filho criando brinquedos e brincadeiras com caixas de
papelão. Na percepção e dizeres das professoras, “como as crianças já apreciavam o livro, a
apresentação das caixas como lugar e coisa para brincar foi aceita por todos e logo eles já
estavam empilhando, entrando, saindo, arrastando”.
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A próxima etapa do trabalho consistiu em
disponibilizar caixas, de diferentes tamanhos, no
gramado da instituição para que fosse possível observar
o movimento individual e coletivo das crianças. Elas
exploraram e transformaram as caixas em experiências
ricas de brincadeiras. Ao se aproximarem dos grandes
objetos, entravam e saiam circulando entre os diversos
tamanhos e disposições que encontravam. Ora as
explorações ocorriam em pequenos grupinhos de crianças, ora individualmente. Dessa forma,
todos os dias, um ambiente era organizado especialmente para a brincadeira com as caixas.
Tal disponibilidade em organizar previamente os espaços para assim observar como as
crianças interagem nele desvela uma importante concepção que procuramos aprofundar em
nossos estudos sobre desenvolvimento infantil durante muitos de nossos encontros formativos.
Para nós, profissionais da educação da Creche / Pré-escola Central da USP, assim como expressa
OLIVEIRA (2002:193), o ambiente:
(...) pode ser considerado com um campo de vivência e explorações, zona de múltiplos recursos e possibilidades para a criança reconhecer objetos, experiências, significados de palavras e expressões, além de ampliar o mundo de sensações e percepções. Funciona esse ambiente como recurso de desenvolvimento, e, para isso, ele deve ser planejado pelo educador, parceiro privilegiado de que a criança dispõe.
Aos poucos a brincadeira mostrou-se realmente produtiva, proporcionando novas
parcerias e descobertas, mas, segundo as professoras dos pequenos grupos de crianças, ainda
assim faltavam algumas coisas, como aparece no trecho a seguir:
Faltava cor, porque apesar de já se diferenciarem das caixas de papelão comuns, por estarem inseridas em outro contexto, esses novos brinquedos estavam longe de serem tão coloridos quanto os espaços da Creche e também faltava algo grande, grandes construções, como as que O Homem que Amava Caixas fazia para seu filho.
Há uma consideração a ser feita com base no trecho acima. De acordo com
LOWENFELD e BRITTAIN (1970:126), a “cor desempenha um papel decisivamente
secundário na fase das garatujas”, já que a “satisfação da criança deriva da experiência de
movimentos cinestésicos”, entre os menores de 3 anos. Contudo, acreditamos que é importante
oferecer à criança a possibilidade de usar esses materiais plásticos, deixando-a explorar as
consistências, texturas e novas misturas. Tais manipulações e descobertas, como dizem os
22
mesmos autores, são encaradas pela criança “como uma atividade divertida”. (LOWENFELD e
BRITTAIN, 1970:127).
A partir desse entendimento e percepção,
crianças e adultos se propuseram à pintura das
caixas para então montarem um castelo com
várias entradas, saídas, portas e janelas. Diante da
possibilidade de usar as tintas, as crianças viveram
momentos importantes para seu desenvolvimento
artístico que podem ser confirmados diante da
continuidade de considerações feitas pelas
professoras:
No dia em que pintamos as caixas, Laureana, entre pincéis e trinchas, começou a pintá-las. Sempre conversando com o amigo que estava ao lado, ia dizendo como estava sua pintura. Depois de algum tempo, já sem pincéis e com as mãos todas cheias de guache, passava-as diretamente nas caixas. (...). Já para outra garotinha, a Andréia, a aproximação nas atividades de pinturas ocorreu inicialmente tímida, mas tão logo passou a dividir trinchas e tintas com alguns amigos e a pintar algumas partes da caixa. No entanto, a descoberta maior foi querer ‘degustar’ a tinta, senti-la escorrer pelas mãos e pintar o seu corpo para deixá-lo colorido, numa brincadeira que a divertia muito. (...). Gustavo, por sua vez, explorou outro modo de pintar usando a posição vertical.
Podemos perceber que as impressões registradas pelas profissionais da educação infantil
sobre as crianças acabam, então, sendo validadas pelos autores LOWENFELD e BRITTAIN
(1970:138-139) quando estes consideram que a “têmpera ou tinta, conservando uma consistência
razoável, pode ser usada com vantagem pelas crianças”. Para os estudiosos, a “oportunidade de
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usar tinta pode satisfazer algumas das necessidades emocionais da criança (...)” e “o resultado é a
alegria óbvia na exploração de uma gama de cores (...)” que “proporciona uma experiência
verdadeiramente artística”. Nas fotografias anteriores, a dedicação e a concentração de Laureana,
Andréia e Gustavo diante das tintas mais uma vez confirmam as considerações dos autores e
também das professoras da creche.
A interação entre as crianças da faixa etária abaixo de 3 anos foi o ponto alto de um
trabalho que serviu como palco para emergência da atividade artística pautada na expressividade
gestual, plástica e no brincar. A brincadeira não tinha objetos com finalidades determinadas, não
eram caixas que serviam para encaixotar, eram simplesmente caixas de papelão que deixavam
sempre abertas e sem amarras as possibilidades de criações infantis. Para LOWENFELD e
BRITTAIN (1970:48):
As crianças não precisam ser habilidosas para serem criadoras, mas, em qualquer forma de criação, existem graus de liberdade emocional: liberdade para explorar e experimentar, e liberdade para envolver-se, emocionalmente, na criação. Isso é verdade tanto no uso dos temas como no uso dos materiais artísticos.
Durante cerca de quatro ou cinco meses, diversas construções foram surgindo, algumas
organizadas pelas educadoras, outras pensadas e construídas por grupos de crianças, que se
mostraram competentes nessa ação, empilhando e posicionando as caixas de acordo com o seu
interesse perante a brincadeira. No processo surgiram tendas, casinhas e percursos, e a cada dia,
relatavam as professoras, todos descobriam “mais uma coisa em que as caixas poderiam se
transformar”.
Para finalizar o projeto, as crianças e professoras organizaram um grande labirinto na sala
de sono da creche. Dentro dele estavam brincadeiras que contornavam o universo das
descobertas pelas crianças: portas com espelhos e reproduções de obras de arte escondidas atrás
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de janelas, móbiles de colheres, espaços estreitos e largos, um canto com as bolinhas de plástico
e tecido, outro com instrumentos musicais e uma parte do chão forrado com plástico-bolha.
Desde o planejamento do projeto, foi pensado como seria
mostrar para as crianças que um objeto comum, de uso diário,
poderia ir além da sua função usual. Segundo dito pelas
educadoras, por várias vezes elas se perguntaram o que teriam
que fazer para que o objetivo fosse alcançado. No decorrer do
trabalho, perceberam com muita clareza que as crianças não se
preocupavam em transformar as caixas, pois as transformações do
espaço e dos objetos aconteciam para eles com muita naturalidade
e em parcerias que não eram visualizadas até então. Notou-se,
então, que quando uma proposta é verdadeiramente viva, ela modifica os sujeitos e é modificada
por eles, como uma ciranda que nunca cessa, mas que está em constante movimento. Como frisa
um dos últimos trechos do relatório construído pelas professoras: “Descobrimos que o prazer de
transformar é a brincadeira e foram as crianças que nos mostraram isso”.
Esta reflexão final vai ao encontro daquilo que LOWENFELD e BRITTAIN (1970:144)
argumentam sobre a importância do professor de educação infantil, uma vez que este
profissional:
(...) está numa posição excelente para propiciar a oportunidade de a criança progredir, por meio das suas experiências artísticas, para ajudá-la a desenvolver a confiança e a sensibilidade imprescindíveis à auto-expressão e para proporcionar-lhe toda a gama de materiais e a atmosfera favorável às atividades criativas. É sumamente importante facilitar a estimulação e a motivação necessárias ao desenvolvimento de uma crescente conscientização do meio, assim como o incentivo e a aprovação dos atos criadores.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Significativo e formativo. Estes são os termos que podem qualificar o processo de
revisitar as práticas de artes desenvolvidas na Creche / Pré-Escola Central da USP, buscando
analisá-las a partir das bibliografias, das experiências como aluno do Curso de Especialização
em Linguagens da Arte, e, especialmente, como profissional parceiro dos professores na tarefa
de pensar sobre as propostas com as crianças.
Acredito que o exercício de escrever a Monografia nos “tira do lugar”, a partir do
momento em que nos faz debruçar mais sobre determinado assunto com um foco pontual e
rigoroso para responder às nossas inquietações. O desafio de superar o desejo de não falar tudo
ao mesmo tempo, mas dizer sobre um objeto de estudo com propriedade foi um aprendizado
fundamental. Houve avanços diante da possibilidade de dialogar com a professora orientadora,
com outros autores e de investigar a própria prática pedagógica, como alguém que está na
condição de coordenar um trabalho coletivo de educadores de infância, cuja intenção é melhorar
cada vez mais as atuações junto às crianças e famílias.
Muitas vezes, o dia a dia das instituições imprime um ritmo em que o coordenador fica
mais envolvido em “aparar arestas” do que a buscar sua essência em formar sujeitos, e isso,
pouco a pouco, compromete sua identidade profissional. Porém, a partir deste trabalho escrito,
foi possível quebrar um ciclo, voltar à tona, pensar coletivamente, dialogar e, sobretudo,
socializar e dar visibilidade aos “saberes e fazeres”, nos quais as crianças são convidadas a
desenvolver suas criações como protagonistas de uma história pintada com muitas cores e
pessoas.
Para além dos atravessamentos que insistem em acontecer numa instituição de educação
infantil (complexidade nas relações interpessoais; necessidade de formação perseverante; tempos
quase sempre insuficientes para os planejamentos; certa demora em obter determinados materiais
etc.), conseguimos ver de novo como as crianças aprendem e nos surpreendem. Vimos, ainda,
como os professores ensinam e como transformam sua prática por meio do debate, da reflexão e
da reavaliação de suas atuações, o que contribui sobremaneira para o crescimento profissional
dentro de um processo conjunto, recíproco e vivo. Percebemos, ao longo deste trabalho, a
criança pequena como um sujeito criativo, que tem o direito a conviver com a brincadeira e com
a arte em suas diferentes expressões (os movimentos, os pensamentos, os grafismos, as
explorações sensoriais e plásticas).
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Também descobrimos que podem – e devem – existir ambientes organizados capazes de
provocar o ensino e a aprendizagem de forma prazerosa, lúdica, diversa e permeada por
elementos de nossa e de outras culturas. Vale ressaltar que em tais ambientes há muito mais do
que crianças, professores e materiais artísticos desse ou daquele tipo. Na verdade, em cada
proposta desenvolvida, há conversas, combinados, relações delicadas de afeto e respeito ao
universo infantil em seus mais variados ângulos.
Ter acesso às formas como se organizam os planejamentos e conhecer as propostas de
arte nas quais se utilizam: a argila, as pinturas com tintas de vegetais ou guache e, ainda, as
brincadeiras com caixas, metaforicamente, abrem preciosos “pacotes” reveladores de concepções
educativas, nas quais a infância é entendida como um período a ser vivido por inteiro.
Considerar as propostas de artes promovidas no âmbito da Creche / Pré-Escola Central da
USP nos permite dizer que, de fato, a criança é vista como cidadã portadora de direitos (às
brincadeiras, às experimentações...) e muitos dos profissionais que lá trabalham estão
comprometidos em indagar suas práticas para aprimorá-la, dentro de um contexto de formação
continuada que envolve muitas modalidades e personagens (reuniões semanais, mensais, debates,
planejamentos com parceiros, visitas às exposições, encontros com especialistas, reavaliação).
São muitos anos experimentando modelos e discutindo formatos para organizar situações
propícias às aprendizagens “de gente grande” para contribuir com a formação de “gente
pequena”. Em todas as oportunidades os educadores e demais funcionários orientam suas ações
por princípios democráticos e de respeito às diferenças. Esse intercâmbio constante de ideias nos
ajuda a compreender a criança a partir das contribuições das diferentes áreas, incluindo a Arte.
Esta, por sua vez, precisa continuar a ter destaque na vida das pessoas e saber que ela está
presente cotidianamente nos ambientes da educação infantil traz grande orgulho para o
profissional e para crianças que ajudam a construir e a viver essa história.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
EDWARDS, Carolyn. As cem linguagens da criança: a abordagem de Reggio Emilia na educação da primeira infância. Porto Alegre: Editora Artes Médicas, 1999.
IAVELVERB, Rosa. O Desenho Cultivado: práticas e formação de educadores. 2. ed. rev. Porto
Alegre, RS: Zouk, 2008. LOWENFELD, Viktor; BRITTAIN, W. Lambert. O Desenvolvimento da Capacidade Criadora.
São Paulo: Editora Mestre Jou, 1970. OLIVEIRA, Zilma Ramos de. Educação Infantil: Fundamentos e Métodos. São Paulo: Cortez,
2002. ORSOLON, Luiza A. Marino. O coordenador/formador como um dos agentes de transformação
da/na escola. In: ALMEIDA, Laurinda Ramalho de PLACCO, Vera Maria Nigro de Souza (Orgs.). O coordenador pedagógico e o espaço da mudança. São Paulo: Edições Loyola, 2001.
PLACCO, Vera Maria Nigro de Souza; SILVA, Sylvia Helena Souza da. A formação do
professor: reflexões, desafios, perspectivas. In: BRUNO, Eliane Bambini Gorgueira; ALMEIDA, Laurinda Ramalho de; CHRISTOV, Luiza Helena da Silva (Orgs.). O coordenador pedagógico e a formação docente. São Paulo: Edições Loyola, 2009..
SOUZA, Vera Lúcia Trevisan. O coordenador pedagógico e a constituição do grupo de
professores. In: ALMEIDA, Laurinda Ramalho de; PLACCO, Vera Maria Nigro de Souza (Orgs.). O coordenador pedagógico e o espaço da mudança. São Paulo: Edições Loyola, 2001.
TATIT, Ana; MACHADO, Maria Silvia M. 300 propostas de artes visuais. São Paulo: Edições
Loyola, 2009.
WEBGRAFIA
IAVELBERG, Rosa. Entrevista: O ensino de arte. Disponível em: <http://www.projetopresente.com.br/revista/rev6_ensino_arte.pdf>. Acesso em: 01/12/2010.
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ANEXOS
Figura 1a: Barco com Bandeirinhas e Pássaros (1955)
Alfredo Volpi, Lucca, Itália, 1896
São Paulo, SP, Brasil, 1988 Barco com Bandeirinhas e Pássaros, 1955
Têmpera s/ tela Coleção MAC – USP
Disponível em: http://www.mac.usp.br/mac/templates/exposicoes/volpi/img11.asp. Acesso em 04/04/2010.
Figura 1b – Professoras confeccionando o Tapete Sensorial
Figura 1c – Bebês e suas interações no tapete
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Figura 2: “Caleidoscópio” de Experiências
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