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MUDANÇA DE PARADIGMA E DESAFIOS EM SALA DE AULA: SUPERANDO A FRAGMENTAÇÃO E A SIMPLIFICAÇÃO DO PENSAMENTO NAS CIÊNCIAS DA SAÚDE.
Felipe Saraiva Nunes de Pinho Faculdades Inta
Resumo O trabalho busca compartilhar os desafios enfrentados na disciplina Psicologia Aplicada à Saúde, ministrada pelo autor, em um curso de Graduação em Enfermagem. Entre os principais desafios está o de conscientizar o aluno da importância do pensamento complexo (MORIN, 2007) no cuidado à saúde, superando a visão reducionista-mecanicista do modelo biomédico, que não consegue mais dar conta da problemática que envolve o processo saúde/doença na contemporaneidade (CAPRA, 2006). É necessário superar o dualismo cartesiano e somar à dimensão biológica do sujeito humano as dimensões psicológicas, sociais, espirituais e ecológicas. As estratégias da ação dramática (Psicodrama) têm se revelado recursos didáticos eficazes, pois ajudam o aluno a compreender a complexidade que envolve os fenômenos humanos, ao se envolver, no processo de aprendizagem, não só cognitivamente mas também afetivamente (WILLIAMS, 1994). Palavras-chave: modelo biomédico; modelo biopsicossocial; pensamento complexo; Psicodrama.
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MUDANÇA DE PARADIGMA E DESAFIOS EM SALA DE AULA: SUPERANDO A FRAGMENTAÇÃO E A SIMPLIFICAÇÃO DO PENSAMENTO NAS CIÊNCIAS DA SAÚDE.
Felipe Saraiva Nunes de Pinho Faculdades Inta
1. Do paradigma Biomédico ao paradigma Biopsicossocial-espiritual-ecológico.
Vivemos, na contemporaneidade, uma crise de paradigmas nas ciências. Os
modelos científicos mecanicista-lógico-matemáticos adotados como critério de verdade
pelas chamadas ciências modernas foram e estão sendo ainda duramente criticados por
não conseguirem mais responder aos questionamentos e às demandas contemporâneas
(CAPRA, 2006).
Nas ciências da saúde, a crise é ainda mais evidente. As (re)evoluções
tecnológicas nas técnicas de diagnósticos, de tratamento e na farmacologia, que
reduziram o índice de infecção/morte por doenças infectocontagiosas - maiores
responsáveis pelas mortes até o início do século XX -, não conseguem mais dar conta
das particularidades das doenças que matam no século XXI. As causas de morte hoje,
nos países desenvolvidos, estão relacionadas ao "estilo de vida", ao comportamento,
hábitos, cultura e crenças das pessoas, o que acaba envolvendo não apenas a dimensão
biológica, mas principalmente as dimensões psicológica e social (STRAUB, 2007).
O modelo biomédico, herdeiro da concepção dualista cartesiana1, considera
apenas a dimensão somática do sujeito humano e, obedecendo à lógica newtoniana da
causalidade linear, busca sempre uma única causa física ou um único patógeno para
explicar as doenças. Ao se ater apenas à res extensa, ficou por isso denominado
mecanicista-reducionista, concebendo o organismo vivo e pensante apenas como uma
máquina.
Desconsiderando as possíveis influências da psiquê e da cultura no processo
saúde-doença, o modelo de relacionamento, profissional-enfermo, adotado pelos
profissionais da saúde, concentrou-se apenas nos aspectos estritamente técnicos da
1 Descartes, em sua concepção dualista, defendia a tese de que o ser humano é formado por duas
naturezas independentes: a res cogitans (alma/mente) e a res extensa (matéria/corpo).
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relação, promovendo uma objetivação/coisificação do ser humano enfermo, de forma a
anular toda a atenção à saúde psíquica, ou seja, ao sofrimento subjetivo (LAÍN
ENTRALGO, 1983).
No entanto, as atuais pesquisas da Psiconeuroimunologia, as descobertas sobre
os efeitos do estresse no sistema imunológico e os estudos sobre a implicação do
comportamento e da cultura das pessoas na causa das principais doenças
contemporâneas, como, por exemplo, as doenças cardiovasculares, têm levado inúmeros
pesquisadores a se questionarem sobre a eficácia e utilidade da visão biomédica
(CAPRA, 2006). Quando se pensa no processo saúde-doença na contemporaneidade, é
importante não só ter um novo entendimento da própria dimensão biológica do ser
humano - uma vez que fenômenos psicológicos afetam, comprovadamente, o
funcionamento fisiológico - como também saber somar a essa compreensão biológica
os conhecimentos desenvolvidos por outras áreas do conhecimento humano, como a
Psicologia e a Antropologia, superando, assim, a fragmentação cega do saber (MORIN,
2007).
Na ânsia por encontrar respostas simples e racionais acerca das doenças, e
motivada também pela própria disputa pelo poder nas ciências da saúde, a fragmentação
do conhecimento acerca do homem tem privilegiado determinadas disciplinas em
detrimento de outras e impedido a constatação de certos fenômenos evidentes: quando o
profissional da saúde aumenta o nível de estresse do enfermo por tratá-lo de maneira
estritamente técnica, esse profissional age sobre o sistema fisiológico do enfermo, do
qual deveria cuidar, exatamente como um patógeno agiria, ou seja, abalando o seu
sistema imunológico.
A tese central, defendida pela Psicologia da Saúde, é que precisamos superar a
ênfase dada aos aspectos estritamente técnicos e racionais da atenção em saúde; tratar
não só os sintomas e a enfermidade, mas o ser humano como um todo. E quando se
pensa no ser humano, é necessário compreender a complexidade e a multicausalidade
que envolve toda doença e, sobretudo, entender a importância de se levar em
consideração os aspectos emocionais, irracionais e afetivos comprometidos no cuidado
em saúde. As pesquisas sobre o efeito placebo constataram que a fé do enfermo (seja em
Deus, no profissional de saúde, ou na própria medicação) pode ser tão eficaz quanto o
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princípio ativo do medicamento. Por isso, faz-se necessário adotar uma perspectiva mais
holística em saúde, uma perspectiva biopsicossocial-espiritual-ecológica.
2. O Psicodrama como recurso didático: a emoção como estratégia de aprendizagem da complexidade humana nas ciência da saúde.
Se no plano teórico a constatação da necessidade de substituirmos o modelo da
simplicidade, representado pelo paradigma biomédico, pela perspectiva biopsicossocial,
é evidente e indiscutível, no plano prático, tanto do processo ensino/aprendizagem,
como da própria prática dos profissionais da saúde, essa constatação enfrenta uma série
de dificuldades.
Os estudantes de graduação em Enfermagem muitas vezes estão fascinados pelo
colorido dos livros de anatomia e fisiologia, seduzidos pelas promessas tecnológicas e
atônitos com os efeitos da farmacologia. Soma-se a isso a desagregação do próprio
currículo acadêmico, que contribui decisivamente para uma visão fragmentada do
sujeito humano (MORIN, 2007).
A aparente facilidade do controle racional e objetivo da doença levam muitos
estudantes da área da saúde a se distanciarem do discurso muitas vezes emblemático,
filosófico e subjetivo das ciências humanas, entre elas a Psicologia. É como se a
racionalização - mecanismo de defesa contra o sofrimento descrito por Freud -, já fosse
um requisito indispensável e obrigatório do currículo das faculdades de ciências da
saúde para a formação acadêmica do profissional. Os estudantes muitas vezes não
conseguem compreender que lidarão tanto com o sofrimento físico como com o
sofrimento psicológico dos enfermos que irão tratar, bem como o de seus familiares. O
efeito complicador é que lidar com o sofrimento do outro diariamente irá também fazer
sofrer esses futuros profissionais, e por não estarem preparados nem sensibilizados
acabarão adoecendo, vítimas do burnout2.
O que percebemos em nossa prática docente é que ensinar e sensibilizar o
alunado das ciências da saúde para a complexidade humana utilizando o método
tradicional de ensino/aprendizagem, com a apresentação de conceitos teóricos e
discussões racionais acerca do sujeito humano, acaba fazendo com que o aluno pense a
2 A Síndrome de Burnout é definida como "um estado de esgotamento físico e mental cuja causa está
intimamente ligada à vida profissional" e afeta muitos profissionais da saúde.
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problemática da condição humana apenas como mais um objeto de estudo, ou seja, um
conjunto de conhecimentos que deverá "decorar".
Na busca de novas estratégias de ensino, utilizamos a ação dramática,
fundamentada na teoria psicodramática de Moreno (1993), como um "método de
choque", pois ao fazer o aluno se envolver emocionalmente no processo de
aprendizagem mobilizando outras estratégias de compreensão que não as racionais,
chama facilmente a sua atenção para uma questão fundamental: o enfermo é também
um ser humano, tão complicado, singular e carente de atenção e afeto, quanto eu. A
ação dramática ao utilizar o lúdico, o corpo e a emoção, diminui as defesas do ego e nos
possibilita experienciar e compreender a realidade de uma maneira mais global.
O objetivo do uso da ação dramática é ajudar o aluno a compreender não só a
importância de pensar a complexa condição do ser humano como uma unidade
biopsicossocial, mas principalmente compreender a importância do relacionamento com
o outro, do vínculo profissional-enfermo-família, fundamentado em uma atitude mais
humanizada. Nesse sentido, fica evidente a contribuição do filósofo francês Emmanuel
Lévinas (2008), quando defende a abertura incondicional do eu para o encontro com o
outro. O conhecimento do outro nos leva a tratá-lo como uma coisa, um objeto; no
relacionamento profissional de saúde-enfermo, necessitamos (re)humanizar o enfermo e
a própria relação terapêutica.
A dramatização de diversas situações de atendimento em saúde tem nos ajudado
a fazer o aluno compreender a necessidade de substituir o relacionamento técnico pelo
relacionamento de comunhão com o outro. Utilizamos, em sala de aula, em média seis
exemplos fictícios de situações de atendimento em saúde, que retratam desde um
atendimento humanizado, tanto individual quanto familiar, até um atendimento
desumanizado. Dividimos os alunos em grupos, distribuímos as situações dramáticas e
pedimos que cada grupo monte a cena dramática. Em muitas ocasiões, também
utilizamos a técnica do jornal vivo, quando, por exemplo, alguma manchete da mídia
retrata uma situação de bom ou mau atendimento em saúde. Mais do que simplesmente
falados, os conceitos trabalhados durante a aula são vivenciados. A vivência, carregada
emocionalmente, resgata a espontaneidade do aluno, possibilitando uma reflexão crítica
sobre si mesmo (WILLIAMS, 1994) e de seu papel enquanto profissional da saúde.
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A resposta obtida, até hoje, foi sempre muito positiva. O que a dramatização nos
traz é principalmente a possibilidade de compartilhar a nossa própria experiência como
enfermo, cliente ou usuário dos serviços de saúde. Quando eu compartilho a minha
experiência com o outro, consigo através da empatia, compreender o outro, colocar-me
em seu lugar, entender o seu sofrimento, e isso é exatamente o contrário de coisifícá-lo.
Conclusão
Pensar a complexidade nas ciências da saúde nos obriga a pensar também novas
estratégias de ensino/aprendizagem. Sabemos que o atual modelo de ensino, calcado na
racionalidade, excluiu do currículo acadêmico as dimensões afetivas e emocionais. O
problema é que a atuação prática do profissional de saúde está repleta desses
sentimentos. O contato diário com o sofrimento do outro irá, muitas vezes, afetar a
própria saúde do profissional, seja ele médico, enfermeiro, psicólogo etc.
É necessário, dessa forma, uma educação nas ciências da saúde que promova
uma visão biopsicossocial do sujeito humano, superando o modelo atual da
fragmentação e da simplificação, mostrando que os aspectos psicossociais também
afetam os processos biológicos.
Para isso, nada melhor do que fazer o aluno vivenciar, através da ação
dramática, o lugar do outro, pois sentindo a necessidade de ser cuidado, compreenderá
melhor o seu papel de cuidador.
Referências
CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação. A ciência, a sociedade e a cultura emergente.
São Paulo: Cultrix, 2006.
LAÍN ENTRALGO, Pedro. La Relación médico-enfermo: historia y teoría. Madrid:
Alianza, 1983.
LÉVINAS, Emmanuel. Ética e infinito. Madrid: La balsa de la Medusa, 2008.
MORENO, J. L. Psicodrama. São Paulo: Ed. Cultrix, 1993.
MORIN, Edgar. Introducción al pensamiento complejo. Barcelona: Gedisa, 2007.
STRAUB, Richard. Psicologia da Saúde. Porto Alegre: Artmed, 2007.
WILLIAMS, Antony. Psicodrama estratégico: a técnica apaixonada. São Paulo:
Ágora, 1994.
tecnologia
MUDANÇA DE PARADIGMA E DESAFIOS EM SALA DE AULA: SUPERANDO A FRAGMENTAÇÃO E A SIMPLIFICAÇÃO DO PENSAMENTO NAS CIÊNCIAS DA SAÚDE.
Felipe Saraiva Nunes de Pinho Psicólogo, Mestre em Linguistica (UFC)
Faculdades Inta
1. Do paradigma Biomédico ao paradigma Biopsicossocial-espiritual-ecológico. O modelo biomédico, herdeiro da concepção dualista cartesiana, considera apenas a dimensão somática do sujeito humano e, obedecendo à lógica newtoniana da causalidade linear, busca sempre uma única causa física ou um único patógeno para explicar as doenças. Ao se ater apenas à res extensa, ficou por isso denominado mecanicista-reducionista, concebendo o organismo vivo e pensante apenas como uma máquina. A tese central, defendida pela Psicologia da Saúde, é que precisamos superar a ênfase dada aos aspectos estritamente técnicos e racionais da atenção em saúde; tratar não só os sintomas e a enfermidade, mas o ser humano. E quando se pensa no ser humano, é necessário compreender a complexidade e a multicausalidade que envolve toda doença e, sobretudo, entender a importância de se levar em consideração os aspectos emocionais, irracionais e afetivos comprometidos no cuidado em saúde. As pesquisas sobre o efeito placebo constataram que a fé do enfermo (seja em Deus, no profissional de saúde, ou na própria medicação) pode ser tão eficaz quanto o princípio ativo do medicamento. Por isso, faz-se necessário adotar uma perspectiva mais holística em saúde, uma perspectiva biopsicossocial-espiritual-ecológica.
2. O Psicodrama como recurso didático: a emoção como estratégia de aprendizagem da complexidade humana nas ciência da saúde. Os estudantes de graduação em Enfermagem muitas vezes estão fascinados pelo colorido dos livros de anatomia e fisiologia, seduzidos pelas promessas tecnológicas e atônitos com os efeitos da farmacologia. Soma-se a isso a fragmentação do próprio currículo acadêmico, que contribui decisivamente para uma visão fragmentada do próprio homem (MORIN, 2007). A dramatização de diversas situações de atendimento em saúde tem nos ajudado a fazer o aluno compreender a necessidade de substituir o relacionamento técnico pelo relacionamento de comunhão com o outro. Utilizamos, em sala de aula, em média, seis exemplos fictícios de situações de atendimento em saúde, que retratam desde um atendimento humanizado, tanto individual quanto familiar, até um atendimento desumanizado. Dividimos os alunos em grupos, distribuímos as situações dramáticas e pedimos que cada grupo monte a cena dramática. Em muitas ocasiões também utilizamos a técnica do jornal vivo, quando, por exemplo, alguma manchete da mídia retrata uma situação de bom ou mau atendimento em saúde. Mais do que simplesmente falados, os conceitos trabalhos durante a aula são vivenciados. A vivência, carregada emocionalmente, resgata a espontaneidade do aluno, possibilitando uma reflexão crítica sobre si mesmo (WILLIAMS, 1994) e de seu papel enquanto profissional da saúde. Quando eu compartilho a minha experiência com o outro, consigo através da empatia, compreender o outro, colocar-me em seu lugar, entender o seu sofrimento, e isso é exatamente o contrário de coisifícá-lo.
Conclusão Pensar a complexidade nas ciências da saúde nos obriga a pensar também novas estratégias de ensino/aprendizagem. Para isso, nada melhor do que fazer o aluno vivenciar, através da ação dramática, o lugar do outro, pois sentindo a necessidade de ser cuidado, compreenderá melhor o seu papel de cuidador.
Referências CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação. A ciência, a sociedade e a cultura emergente. São Paulo: Cultrix, 2006. LAÍN ENTRALGO, Pedro. La Relación médico-enfermo: historia y teoría. Madrid: Alianza, 1983. LÉVINAS, Emmanuel. Ética e infinito. Madrid: La balsa de la Medusa, 2008. MORENO, J. L. Psicodrama. São Paulo: Ed. Cultrix, 1993. MORIN, Edgar. Introducción al pensamiento complejo. Barcelona: Gedisa, 2007. STRAUB, Richard. Psicologia da Saúde. Porto Alegre: Artmed, 2007. WILLIAMS, Antony. Psicodrama estratégico: a técnica apaixonada. São Paulo: Ágora, 1994.
SABER II – Os princípios do
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