mudanças linguísticas em curso em alunos do ensino sup erior · uma etapa fundamental do estudo...
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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 23 – Estudos sobre o Português dos séculos XX e XXI.
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Mudanças linguísticas em curso em alunos do Ensino Superior
Célia Vieira e Isabel Rio Novo1
cvieira@ismai.pt
inovo@ismai.pt
Introdução
As grandes mudanças de carácter linguístico e cultural em curso na sociedade
portuguesa, em consequência do impacto da comunicação audiovisual e da
generalização da comunicação mediada por computador, têm-se feito sentir, com
particular incidência, no Ensino Superior. Sendo que as línguas evoluem e que todas
incorporam margens de variação, daqui não se pode inferir, porém, que não existem
desvios ou erros linguísticos, o que equivaleria a postular que “as línguas são tão
flexíveis que tudo admitem nos diferentes planos em que se organizam (semântico,
lexical, sintáctico e fonológico)” (Peres e Móia, 2003: 13).
Torna-se, pois, necessário identificar e caracterizar os rumos (pres)sentidos da
evolução linguística, para não dizer definir e justificar orientações e limites a essa
mudança, sendo certo que a aplicação do estrito critério da eficácia comunicacional,
levado ao extremo, conduziria a uma permissividade cega, ignorando a dimensão da
língua “como instrumento de conhecimento e apreensão do mundo, irisado de uma
multiplicidade de valores afectivos, estéticos, sedimentados pela memória e pela
história, pelo uso transgeracional, pelos autores” (Moura, 2005). Até porque, em última
instância, a mudança linguística envolve sempre um distúrbio na forma ou no conteúdo
verbal, de modo que os grupos de falantes afectados pela mudança se confrontam com
1 A presente comunicação tem por base o projecto de investigação com o mesmo nome desenvolvido no âmbito do CELCC, cujos resultados foram parcialmente publicados em VIEIRA, Célia (org.), Estudos de Língua, Comunicação e Cultura I, Maia, Edições do Ismai, 2008. ISMAI, membros do Centro de Estudos de Língua, Comunicação e Cultura (CELCC) e do Centro de Estudos em Letras (CEL), uID 707-FCT.
Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 23 – Estudos sobre o Português dos séculos XX e XXI.
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uma perda de compreensão em último caso conducente à ininteligibilidade (Labov,
1994).
Considerou-se, deste modo, importante desenvolver um estudo que permitisse
conhecer com rigor as produções linguísticas evidenciadas pelos alunos do Ensino
Superior à chegada à instituição universitária, com vista a evidenciar as suas
competências e a identificar as chamadas áreas críticas da língua para que aquelas
produções apontam.
1. Panorama da investigação no âmbito da mudança linguística
Em Sociolinguistics. Method and Interpretation, Lesley Milroy e Matthew
Gordon (2003), depois de evocarem o trabalho pioneiro de U. Weinrich, W. Labov e M.
Herzog (1968), afirmam que: "a language system that did not display variability would
not only be imaginary but dysfunctional, since structured variability is the essential
property of language that fulfils important social functions and permits orderly
linguistic change." (2003: 4). Numa reflexão acerca da dinâmica da língua no âmbito de
um estudo sincrónico, Maria João Marçalo (1994) contesta a divisão radical entre
linguística sincrónica e linguística diacrónica, advogando como "irrecusável e
indispensável" a concepção de uma sincronia dinâmica, i. e., de um ponto de vista que
confira uma atenção aos aspectos dinâmicos do eixo sincrónico. Nesse sentido, a autora
esclarece a concepção de dinâmica da língua que também partilhamos:
Uma língua é um instrumento de comunicação. O seu funcionamento, em oposição ao que
durante alguns séculos se pensou, não é conflitual com a mudança, antes pelo contrário
implica-a. Como repetidamente Martinet tem afirmado, uma língua muda porque
funciona. O sistema existe em movimento, ou seja, não há contradição entre sistema e
mudança. A língua é algo vivo e como tal transforma-se sem cessar, não deixando jamais
de cumprir a sua função principal, a de ser um instrumento de comunicação. (1994: 90)
Se por mudança linguística se entende "Qualquer modificação sofrida pela
estrutura de uma língua (a nível fonético, fonológico, morfológico, sintáctico ou
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semântico) ao longo do tempo" (Xavier e Mateus, 1992: 254), mudança linguística em
curso surge definida no Dicionário de Termos Linguísticos como "Mudança que, no
momento em que é observada, está ainda a produzir-se, não estando fixado o seu
resultado final." (ibidem: 252) Os estudos das mudanças linguísticas em curso vieram,
assim, demonstrar que é possível conhecer melhor os mecanismos da mudança
linguística, "captando-a em processo e não, como nos estudos tradicionais de linguística
histórica, nos seus pontos de partida e de chegada." (ibidem: 252)
A este respeito, Inês Duarte e Maria João Freitas fornecem uma compreensão clara
do fenómeno da mudança linguística, quando afirmam:
Porque a língua se encontra em permanente processo de mudança, quando nas produções
dos falantes cultos duma comunidade linguística numa dada época se verifica uma
acumulação daquilo que é considerado erro na língua padrão, tal fenómeno constitui em
geral um sintoma de que está em curso um processo de mudança num determinado
subsistema da variedade padrão. (2000: 25, 26)
A investigação das mudanças linguísticas em curso tem avançado em Portugal,
sendo significativo que, mesmo numa obra de cariz didáctico como a de Inês Duarte e
Maria João Freitas, se abordam sumariamente dois casos de mudanças em curso: o caso
das orações relativas preposicionadas e o denominado fenómeno de subida do clítico.
Esses são, aliás, dois fenómenos incluídos nas seis áreas críticas da língua
portuguesa apontadas por João Andrade Peres e Telmo Móia (2003), áreas que
manifestam sintomas de uma crise, quer porque nelas se verificam movimentos de
ruptura — em geral prenunciadores de mutações da norma — quer porque muito
facilmente nelas se insinua o puro desvio, a sugerir a existência de dificuldades por
parte dos falantes: estruturas argumentais, construções passivas, construções de
elevação, orações relativas, construções de coordenação e concordâncias.
Uma etapa fundamental do estudo de mudanças linguísticas em curso em
Português Europeu é assinalada pela publicação de A Língua Portuguesa em Mudança,
que condensa os resultados de uma investigação, no âmbito do Projecto REDIP,
realizada no ILTEC, com a colaboração do CLUL e do CENTED da UA, com vista à
caracterização da linguagem dos meios de comunicação social. Foram analisadas, na
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área da sintaxe, as construções relativas; o estatuto da palavra portanto; na área da
fonética, a supressão do <r> final de palavra em alguns usos do Português Europeu; na
área do léxico, os estrangeirismos e os neologismos contidos no corpus.
O nível do léxico, é, aliás, o plano da língua sobre que incide a maior quantidade
dos projectos de investigação no âmbito da mudança linguística, como dá conta também
a obra de Margarita Correia e Lúcia San Payo de Lemos, Inovação Lexical em
Português. Nela as autoras lembram que, sendo certo que uma das características
universais da linguagem humana é a mudança e que todas as línguas evoluem
necessariamente ao longo do tempo, significando a ausência de evolução a sua morte,
"se é verdade que a mudança afecta todas as componentes do conhecimento linguístico
(fonológica, morfológica, sintáctica, semântica e pragmática), é também verdade que
essa mudança é fundamentalmente visível ao nível do léxico." (Correia e Lemos, 2005:
10)
No que diz respeito às metodologias que têm vindo a ser aplicadas na análise da
mudança linguística, em Sociolinguistics. Method and Interpretation, Lesley Milroy e
Matthew Gordon apresentaram "methods and theories underlying the quantitative
paradigm of sociolinguistic research pioneered by William Labov, with the goal of
providing a resource for investigators who are setting up a research project", numa
tradição de investigação "variationist", um dos campos da investigação em
sociolinguística. (2003: 1), chamando a atenção para a necessidade de a investigação ser
baseada na observação de dados bem como para uma perspectiva de análise que faça
referência a factores sociais e extralinguísticos.
No entanto, os estudos nacionais e internacionais têm também colocado em relevo
a importância do uso de corpora como fonte de dados empiricamente observáveis, cuja
análise quantitativa e qualitativa pode permitir a identificação de fenómenos de
mudança linguística. A importância fundamental dos corpora nos estudos sobre
variação, evidenciada, entre outros, por Wilson e McEnery (1996), foi sobremodo
potencializada pelo desenvolvimento da Linguística Computacional (Nascimento,
1996).
Na constituição de corpora linguísticos em Português, foi pioneira a iniciativa de
Lindley Cintra, com a criação do corpus do Português Fundamental (Nascimento e
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Gonçalves, 1994), núcleo do actual Corpus de Referência do Português Contemporâneo
do CLUL (Nascimento, 1996), que continha em 1999 86,3 milhões de palavras de
português falado e escrito. Outros corpora do Português Europeu, como o REDIP,
evidenciaram o relevo da aplicação das ferramentas informáticas na extracção
automática de informações relativas a frequência, repartição e concordância dos factos
linguísticos, nomeadamente dados lexicográficos, morfológicos e morfossintácticos.
Recorrendo a instrumentos de base estatística, os objectivos dos trabalhos realizados
sobre corpora incidem com recorrência na sistematização de inventários de
combinatórias lexicais e gramaticais mais frequentemente usadas pelos falantes
(Nascimento e Pereira, 1996), sendo decisivos na fundamentação de estudos sobre
variação, como é o caso de corpora como o CPE VAR (Faria, 1996) ou o VARSUL
(Coan, 1999). É certo, em todo o caso, que a recolha e tratamento dos dados registados
não pode perder de vista a dinâmica interdisciplinar dos estudos linguísticos, apontando
para o horizonte mais amplo de um enquadramento teórico que possa ser infirmado ou
deduzido da análise dos fenómenos. Como sublinha Nicoletta Calzolari, a propósito da
definição de métodos e ferramentas para lexicografia com base em corpora linguísticos,
os
dados provenientes de corpora não podem, obviamente, ser utilizados de modo simplista.
Para se poderem tornar úteis, os dados devem ser analisados à luz de uma hipótese
teórica, na base da qual se modelará e estruturará o que seria, de outro modo, um conjunto
não estruturado de dados. A melhor combinação da abordagem empírica com a
abordagem teórica é aquela em que a própria hipótese teórica surge de e é guiada por
sucessivas análises dos dados, e onde, por sua vez, os dados são ciclicamente
aperfeiçoados e ajustados à evidência textual (Calzolari, 1996: 94).
No acervo de corpora de Português actualmente disponíveis parecem prevalecer
os corpora de Português falado relativamente aos corpora de Português escrito, e, neste
âmbito, parece verificar-se o privilégio do texto jornalístico como língua de referência,
como é o caso do corpus REDIP ou do material linguístico escolhido para análise por
João Andrade Peres e Telmo Móia (2003). Mesmo se alguns dos resultados obtidos na
análise dos corpora de Português falado poderão, sem grande dificuldade, vir a ser
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atestados também em corpora de Português escrito (Marques, 1996), o menor grau de
espontaneidade próprio do discurso escrito poderá ser significativo na identificação de
fenómenos não justificáveis pelos aspectos que caracterizam o Português falado
(Brauer-Figueiredo, 1996). Nesse sentido, Lesley Milroy e Matthew Gordon apontam
para a relevância do uso de materiais escritos: "While an overwhelming majority of
variationist studies examine spoken language exclusively, some recent projects have
demonstrated the usefulness of written surveys in sociolinguistic research." (Milroy e
Gordon, 2003: 51).
Ao mesmo tempo, toda a problemática que envolve a Didáctica da Escrita e o seu
interesse pluridisciplinar (Pereira, 2000) tem colocado em relevo o carácter
determinante assumido pela Linguística Textual na análise de enunciados escritos.
Nesse sentido, assistiu-se a uma proliferação de estudos sobre os processos de escrita e
sobre as estratégias de reformulação textual (Fávero et al., 1996; Carvalho, 2000).
São ainda escassos os estudos sobre mudança linguística em curso que tenham por
base os enunciados escritos de alunos do Ensino Superior. Em contrapartida, existe um
conjunto de estudos sobre alunos do Ensino Secundário que evidenciam algumas
mudanças em curso, muito provavelmente também registáveis em alunos do Ensino
Superior. É o caso da variação na posição dos clíticos em relação ao verbo (Silva,
2000). Ao nível de investigação assente em corpora constituídos com base em textos
produzidos em contexto escolar, devemos igualmente referir a obra de Olívia
Figueiredo, A Anáfora Nominal em Textos de Alunos. A Língua no Discurso. Tendo
como pano de fundo a experiência de docência e de formação de professores de
Português da autora e envolvendo um universo de 1025 textos originais de alunos do 3º
Ciclo do Ensino Básico, trata-se de um estudo quantitativo e qualitativo que se traduz na
comparação de procedimentos anafóricos utilizados em quatro tipos de textos
arquetípicos (narração, récit conversacional, discurso teórico e discurso em situação).
Refere a autora:
Embora se ponha a questão da autenticidade dos escritos escolares, uma vez que não
respeitam as leis da produção – os escritos da aula pertencem à instituição escolar e
relevam deste lugar social particular e são fatalmente determinados por ele –, o que é
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certo é que é na escola que as situações de aprendizagem do material escrito se verificam
e é aí e por aí que as aprendizagens conscientes se fazem. (2003, 182)2
Os raros estudos realizados com vista à análise do uso ou do conhecimento da
língua em alunos universitários têm incidido quer na avaliação do modo como a
didáctica da gramática fora uma área deficitária na formação prévia dos discentes, quer
na evidenciação das potencialidades da didáctica da gramática no desenvolvimento de
um espírito crítico, quando estimulada no domínio universitário. É assim que Gabriela
Funk, a partir de um inquérito realizado junto dos alunos dos Cursos de Línguas e
Literaturas Modernas da Universidade dos Açores, com o objectivo de identificar a
função sintáctica desempenhada por vários tipos de sintagmas nominais, confirmou
vários usos equívocos que, segundo a autora, decorreriam em grande parte da base dos
conhecimentos adquiridos pelos alunos na escola, apontando, entre outros factores,
como principal causa para os obstáculos manifestados, a diminuição do espaço da
gramática na aula de Português, em benefício da didáctica de obras literárias (Funk,
2000). Na bibliografia existente, distingue-se também a investigação conduzida por
Maria Joana Vieira dos Santos (1999), "A confissão oral como forma de argumentação
escrita – algumas estruturas recorrentes em textos de alunos do Ensino Superior", que
aponta, na análise de produções de estudantes do Ensino Superior, uma dificuldade na
adequação dos enunciados às circunstâncias comunicativas.
2. Constituição do corpus
A investigação desenvolvida consistiu na recolha e na análise de materiais
linguísticos que revelassem as tendências evolutivas manifestas nos usos linguísticos
dos falantes envolvidos no estudo, bem como as dificuldades recorrentes no âmbito do
seu desempenho linguístico em contexto escolar, permitindo a descrição da variedade
lexical e da utilização de determinadas estruturas linguísticas. 2 Um outro exemplo de investigação, esta situada no âmbito da psicolínguística cognitiva, baseada num corpus de produção escrita em contexto escolar é a do estudo de Edite da Conceição Fernandes Prada acerca das produções adversativas em 242 textos de jovens falantes do Português Europeu, apresentado no XVI Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística. Vide Prada, 2001.
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Enquanto linguistas, é nosso principal intuito descrever e explicar os fenómenos
linguísticos no âmbito do seu processo evolutivo, acreditando que, em muitos casos,
“uma opinião fundamentada no estudo do sistema linguístico pode ajudar uma
comunidade a tender para a fixação (sempre provisória, é claro) de uma ou outra
norma.” (Peres e Móia, 2003). Com esta análise, pretendia-se, pois, colher uma amostra
que ilustrasse o estado actual da Língua Portuguesa e, inerentemente, evidenciasse
mudanças linguísticas em curso no nosso idioma.
Para tanto, recolhemos um corpus de 63 textos produzidos por alunos do 1º ano
do Instituto Superior da Maia, numa faixa etária situada entre os 18 e os 23 anos,
através de um dispositivo experimental que visava uma situação de produção na
modalidade da língua escrita. O grupo alvo em análise era constituído por alunos
provenientes de várias regiões do distrito do Porto e oriundos de diferentes áreas de
formação do Ensino Completar. O objectivo da selecção de um grupo de análise de
características tão diversas (incluindo desde alunos de formação profissional a alunos
com formação na área das Humanidades) era precisamente o de colocar em evidência a
transversalidade das alterações, recorrentes mesmo em alunos detentores de diferentes
competências à entrada do Ensino Superior.
Com efeito, a produção escrita, envolvendo, por um lado, a manifestação
concreta do um conjunto de processos linguísticos básicos e, por outro, o domínio da
textualidade, através de operações de coesão e progressão textual, explicita o grau de
consciência que um aluno tem sobre o funcionamento da linguagem, ao impor a
resolução dos problemas que se lhe colocam:
como evocar pela primeira vez um tema, como mantê-lo, lembrá-lo depois
de se terem evocado outros? Como passar de um tema outro ou como
lembrar os vários temas evocados em paralelo?
A resolução destas diversas questões (introdução dos referentes, inter-
relação entre as diversas cadeias anafóricas) depende […] de um certo
número de operações como as relativas à ancoragem textual, a
macroestrutura semântica, à planificação, à textualização. (Figueiredo,
2003: pp. 385-386).
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Para a constituição de um corpus de registos discursivos no âmbito da produção
escrita destes alunos do Ensino Superior, privilegiámos sobretudo a homogeneidade dos
textos recolhidos tanto do ponto de vista da produção como do referencial escolhido.
Acreditámos, com efeito, que um forte controlo sobre a situação de produção textual
poderia evidenciar a estabilização de determinadas alterações, o que seria mais
dificilmente susceptível de apurar em face de estruturas textuais heterogéneas. Esta
opção resultou também da tomada de consciência, entre outros aspectos, do “papel da
variação do funcionamento das unidades linguísticas em função do tipo de texto
produzido” (Figueiredo, 2003: 365). Assim, solicitámos aos alunos que recontassem de
forma resumida um excerto que continha os últimos parágrafos de Memorial do
Convento, de José Saramago, para que pudéssemos constituir um corpus de textos
narrativos que incidissem sobre um mesmo contexto. A escolha do autor prendeu-se
com a consideração da especificidade do seu discurso, cuja ambiguidade, quer ao nível
da articulação das orações, quer da pontuação, quer mesmo do encadeamento dos
protótipos textuais, impunha ao grupo em apreço uma perspectiva mais activa no
processo de gramaticalização do discurso e de narração da história.
No seio da tipologia textual consagrada, o texto narrativo, pelo seu carácter
autónomo e disjunto (Figueiredo, 2003: 274), aqui reforçado pela necessidade de
recontar uma história já enunciada, sobrelevava o apagamento do enunciador, em
benefício da atenção concedida à ordenação do discurso e, mais uma vez, de uma
homogeneidade que dificilmente seria atingida pelo recurso, por exemplo a um texto
argumentativo. Recordemos, a este respeito, que a narração é um discurso marcado pelo
uso da 3ª pessoa; pelo emprego do sistema temporal do imperfeito, do pretérito perfeito,
do mais-que-perfeito e do futuro do passado; organizado processualmente através do
recurso a organizadores textuais temporais; e concatenado por uma sequencialidade
fundamentalmente tripartida: situação inicial, complicação e resolução. Deste modo, os
nosso objectivos iniciais passavam por
(i) um propósito alargado, que consistia em registar e quantificar todo o tipo de
alteração linguística estatisticamente mais significativa, mas também, por
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(ii) um propósito específico, que residia em observar o modo como os alunos
organizavam a textualidade, tendo como ponto de partida um tipo de texto que impunha
uma coesão e uma progressão textuais óbvias.
3. Primeiros resultados
Depois de confrontarmos directamente os materiais escritos constituintes do
corpus, ordenámo-los de forma anónima e aleatória e procedemos à sua transcrição para
um suporte digital. Em seguida, efectuámos a leitura e a análise integral das narrativas,
realizando descrições léxico-semânticas, gramaticais e discursivas do corpus em
questão, procurando assinalar as operações linguísticas que, na sequência de um estudo
qualitativo, viriam a ser objecto de um tratamento quantitativo. Note-se, de passagem,
que os limites da utilização das ferramentas informáticas de processamento das línguas
naturais e o carácter dos dados gerados pelos novos métodos, requerendo, é certo, mais
inovações nos métodos analíticos e no tratamento matemático dos dados, não permitem,
ainda, actualmente, prescindir da anotação manual.3
Considerando que este estudo se encontra numa primeira fase de implementação,
os resultados a seguir referidos revestem-se de um carácter não exaustivo. Assim, da
análise prévia do corpus, salientaremos apenas alguns aspectos que considerámos mais
relevantes.
(i) Oscilação no uso da acentuação gráfica
Constituindo a ortografia o plano da língua que, por um lado, enquanto norma da
representação escrita da mesma, mais reflecte os esforços de normalização, e, por outro
lado, se apresenta como o mais susceptível de reajustamentos e o que mais facilmente
incorpora a mudança, prevíamos à partida que nele fossem evidenciados desvios
significativos e constantes. Na realidade, um dos aspectos representados no corpus diz
respeito à supressão ou à oscilação no uso da acentuação gráfica, sintomáticas de uma
3 Vide Correia e Lemos, 2005: 20.
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prevalência do critério fonético e de uma tendência para a simplificação da grafia, a que
não será alheia, como vem sendo apontado em alguns estudos (Padrão, 2001), a
generalização das trocas de enunciados no âmbito da comunicação electrónica
(comunicação mediada por computador ou via telemóvel), a qual, implicando a rapidez
da escrita e recorrendo a teclados normalmente pobres em diacríticos, favoreceria todas
as formas de simplificação gráfica.
Assim, encontramos no corpus numerosos registos quer de supressão de
acentuação gráfica, quer de oscilação no uso da acentuação, manifesta, por exemplo, na
hesitação entre o uso do acento agudo e do acento grave.
(ii) Problemas no uso de palavras homófonas
A homofonia, enquanto manifestação da relação semântica e lexical estabelecida
ente duas unidades lexicais que possuem a mesma forma fonética mas significados
diferentes, evidencia, face à ocorrência de confusões entre lexemas homófonos,
sobremaneira, um menor domínio da dimensão escrita da língua e a prevalência do
critério fonético na grafia dos lexemas, já acima apontada. É de considerar que para essa
confusão contribuirá eventualmente também uma menor consciência de que não existe
uma relação biunívoca na correspondência entre fonemas e grafemas, e,
consequentemente, de que um mesmo som da fala pode ser representado por diferentes
grafemas. Ora, este tipo de equívoco é facilmente superado pelo falante escolarizado,
mediante a contextualização das unidades lexicais, sobretudo quando se trata de
unidades pertencentes à mesma categorização morfológica. Não é, porém o que ocorre
nos seguintes exemplos, onde se observa uma sistemática substituição da forma do
verbo haver, na terceira pessoa do singular, no presente do indicativo pelas formas “á” e
“à”, uma e outras enquanto representações gráficas do fonema /a/:
(7) Blimunda procurava o seu marido já á nove anos, procurava-o por todo o país, á
tanto tempo que já tinha perdido a noção do tempo e do espaço.
(14) Não comia à quase vinte e quatro horas.
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(17) Blimunda procurava já à nove anos Baltazar.
(20) Até que o encontrou na sétima vez que passava por Lisboa, quase sem comer, à um
dia.
(30) A história narrada fala-nos de Blimunda, mulher de Baltasar, que andava à
procura do seu marido que tinha desaparecido à nove anos, deu voltas e voltas a
Portugal para o encontrar sempre a pé, até as solas dos seus pés se tornou espessa
como cortiça.
(33) Ela não comia à quase vinte e quatro horas, trazia comida consigo mas não
conseguia comer.
(34) Conta a história de uma mulher que percorre à nove anos Portugal com o intuito
de encontrar seu marido.
(35) No meio das fogueiras e do fumo negro reconheceu o homem que à tanto
procurava e com tanta persistência no meio dos restantes supliciados.
(51) A história narrada neste texto narrativo conta-nos a viagem de uma mulher,
Blimunda, na busca do seu homem. Começa com a caminhada, fala-nos que a viagem à
muito se iniciara e que se extendera a todo o Portugal.
(52) Blimunda é uma solitária viajante que percorre desde á muitos anos o nosso país.
(54) Com essa pessoa pergunta se encontrou o seu homem entretanto é-lhe dito que não
e então Blimunda volta á sua procura, até que finalmente encontra o seu homem,
Baltazar Sete-Sóis, que já repetia o seu caminho á vinte e oito anos e não comia á vinte
e quatro horas. Blimunda e Baltasar encontram-se e ficam juntos.
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(59) Não comia à mais de um dia e apesar de ter algum alimento sempre que o ia levar
a boca lembrava-se que o pior ainda podia estar para chegar e desistia da ideia.
Este desvio, que, além de demonstrar uma oscilação manifesta no uso do acento
gráfico, patenteia a troca de duas categorias morfológicas distintas, uma de natureza
preposicional e outra de natureza verbal, pode levar-nos a interrogar sobre as
competências adquiridas por estes falantes na categorização e segmentação morfológica
das duas unidades lexicais em questão. Mesmo se este tipo de erro implica alguma
analogia com outros empregos da mesma preposição em associação com marcadores
temporais (“Chegou a Lisboa à noite”), parece-nos que os problemas de ortografia
relacionados com formas homófonas e, mais amplamente, com o uso de formas gráficas
não apropriadas para a representação de um mesmo fonema, poderão vir a ser mais
expressivas numa próxima fase de análise do corpus, uma vez que é esse o processo
presente em formas como
(51) fala-nos que a viagem à muito se iniciara e que se extendera a todo o Portugal.
ou
(25) Com esta procura, descubriu como Portugal é pequeno.
A mesma reflexão poderá trazer resultados de carácter mais abrangente se
considerarmos uma análise da precária distinção entre o código oral e o código escrito,
de que resulta, entre outros aspectos, problemas gerais relativos à acentuação e à
pontuação.
(iii) Aspectos referentes ao uso de construções relativas
O corpus em análise confirma uma tendência já registada em outros estudos como
reveladora de uma mudança linguística em curso manifesta nas produções da
generalidade dos falantes, inclusivamente bastante escolarizados. Referimo-nos à
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formação de relativas cujo sintagma preposicional em posição inicial foi suprimido, no
que se designa de estratégia cortadora na construção da relativa (Mateus et al., 2003:
667). Se é certo que este abandono da preposição na posição de base admite diferentes
graus de admissibilidade (Peres e Móia, 2003: 288, 289), sobretudo se considerarmos a
sua generalização no discurso publicitário e na comunicação social, por exemplo no que
concerne à regência do verbo gostar, enunciados há em que a agramaticalidade é
evidente, como resulta claro dos seguintes exemplo:
(38) Lisboa foi um dos locais que Blemunda passou cerca de sete vezes, ela ja
reconhecia as ruas, os cheiros da cidade,
(41) A história narrada neste texto inicia-se com o tempo que Blimunda
procurava por Baltasar.
Em ambos os exemplos, verifica-se que a supressão da preposição retira ao
constituinte relativo o seu carácter adverbial e, por inerência, qualquer função sintáctica
no interior da oração.
Outro fenómeno observado alerta-nos para a necessidade de considerar aspectos
contextuais na descrição semântica dos conectores (Trigo, 1994: 267,8), evidenciando o
modo como a mudança invade categorias morfológicas menos permeáveis. Assim,
mesmo se a descrição das estruturas argumentativas aponta para uma relativa
homogeneidade na sua categorização semântica, “não seria de modo algum de descurar
a descrição de tipos de uso distintos na sua variação “linguístico-discursiva”” (Trigo,
1994: 268). Com efeito, nos enunciados analisados, encontrámos uma ocorrência do
constituinte relativo onde com um cambiante de sentido que não se encontra legitimado
pela norma linguística. Referimo-nos ao uso que a seguir se encontra exemplificado, no
qual esse constituinte relativo não assume um valor propriamente locativo:
(15) Esta parte da obra de José Saramago “Memorial do Convento” centra-se na
parte em que Blimunda procurava Baltasar que já havia desaparecido há bastante
tempo, retratando bem o seu desespero e cansaço, onde tudo lhe parecia tão estranho e
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tão familiar, o texto refere-se pois à fase final da sua longa procura, até que por fim,
ela, chegada a Lisboa encontra Baltasar numa fogueira da inquisição, que mesmo sem
“sem vontade” não subia às estrelas permanecendo com Blimunda.
Recorde-se que o pronome relativo onde está com efeito associado a um valor de
locativo, mesmo se este não implica necessariamente a dimensão de espaço físico (Peres
e Móia, 2003: 302). Sobrelevando o modo como a língua diverge dos usos
espontaneamente criados pelos falantes, no caso citado, o constituinte relativo,
originalmente adjunto adverbial de carácter locativo, equivaleria a um uso dos
pronomes que ou o qual precedidos de um constituinte preposicionado, que confeririam
a essa expressão um sentido globalmente consecutivo ou causal. A gramaticalidade
poderia, assim, ser restabelecida através de uma estrutura como:
retratando bem o seu desespero e cansaço, [no âmbito dos quais /do que, na
sequência dos quais / do que, por causa dos quais / do que, de maneira que] tudo lhe
parecia tão estranho e tão familiar,
Um processo em certa medida análogo, mas num contexto sintáctico diverso,
ocorreu na evolução de donde, pela extensão semântica sofrida pela passagem do
sentido de “de que lugar” para o sentido “do que se conclui que”.
Note-se, porém, que aquela estratégia de relativização confere ao constituinte
relativo, além da propriedade de estabelecer um nexo anafórico, a capacidade de iniciar
uma oração com características próximas das que configuram as orações subordinadas
adverbiais consecutivas, concretamente o facto de não ser uma oração deslocável, não
podendo ser anteposta, dada a estreita relação que onde estabelece com o seu
antecedente.
(iv) Aspectos referentes ao uso da anáfora nominal
Extravasando a construção de predicações e levantando uma questão relativa à
semântica frásica e à linguística textual, o aspecto da coesão é, entre outros, pertinente
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na análise de processos de empobrecimento lexical e no estudo de problemas referentes
à construção de textos.
A definição de narração enquanto tipo de texto em que uma instância narradora
relata acções sofridas ou desencadeadas por personagens colocadas sob determinadas
referências espácio-temporais, implica desde logo que, ao longo do texto, aqueles
actantes sejam objecto de várias retomas anafóricas. Se, no texto narrativo, as acções e
os actantes são, nos diferentes momentos da organização textual, diversas vezes
retomados, é de prever a incidência da anáfora, sob a forma de anáfora fiel, sobretudo
através da definitivização dos elementos referidos e da repetição, enquanto substitutos
que conferem redundância ao discurso, mas também sob a forma de nominalização:
(23) Este texto narrativo, narra a história da constante procura de Baltasar Sete-
Sóis, feita por Blimunda. Esta mulher procurou Baltasar durante nove anos,
caminhando por todo o Portugal e por vezes por Espanha.
Não deixa, no entanto de surpreender nos enunciados que constituem o corpus
examinado o recurso à repetição enquanto forma de anáfora mais recorrente, sobretudo
se considerarmos o carácter sucinto da micronarrativa produzida. É assim que
encontrámos, não raras vezes, o nome da protagonista e do objecto da sua busca
reiterados múltiplas vezes, inclusive na mesma frase e no mesmo parágrafo:
(4) A historia narrada fala de uma personagem de seu nome Blimunda que
procurou um homem muitos anos em Portugal. Blimunda passava em vários sítios e
perguntava às pessoas se conheciam o homem que ela procurava, até que em S.
Domingos, havia a queima, onde as pessoas eram colocadas. Blimunda dirigiu-se ao
homem que ela procurava e disse-lhe para ir com ela. E assim acabou por ficar com
Blimunda e não morreu.
(7) Blimunda procurava o seu marido já á nove anos, procurava-o por todo o
país, á tanto tempo que já tinha perdido a noção do tempo e do espaço. Descalça
percorreu o pais inteiro e descobriu como este era pequeno, de vez enquando reparava
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que já tinha passado por ali, e encontrava caras conhecidas, que lhe perguntavam se já
tinha encontrado o seu marido. Um dia depara-se com uma multidão onde onze homens
estão a ser queimados no auto de fé, Blimunda repara que um deles não tem a mão
esquerda, tinha encontrado o seu marido.
(27) Neste texto narrativo é-nos narrada a história de Blimunda Sete-Luas que
corre mundos e fundo para reencontrar o seu amado Baltasar Sete-Sóis. Até o
encontrar, Blimunda passa várias dificuldades desde subir e descer ruas descalça, a
passar fome, a passar por sítios que já havia passado na esperança de o encontrar. Já
por fim Blimunda passa por um auto-de-fé e é aí que o reencontra, quando esta prestes
a ser queimado.
(41) A história narrada neste texto narrativo, conta-nos nove anos de vida de
uma personagem chamada Blimunda. Blimunda passava os seus dias em longas
caminhadas de espera e procura do seu homem, Baltazar Sete-Sois.
Blimunda percorre Portugal inteiro e arredores, chegando a pisar Espanha e
passando até varias vezes por locais percorridos.
De salientar, contudo, que o modo de substituição anafórica com mais expressão
no corpus é o da retoma implícita através de um sujeito subentendido tanto na forma
verbal como nos adjuntos nominais que concordam em género e número com o sujeito:
(2) Blimunda procurou o seu homem durante nove anos. Percorreu Portugal de
norte a sul, de este a oeste, perdida no espaço. Reconhecendo sitios e pessoas por onde
passara.
Há setima vez que encontrou Lisboa, já desfalecida de fome e de cansaço,
repetia o seu trajecto habitual, deparou-se com uma multidão em S. Domingos e
decidiu ir ver. Onze pessoas eram executadas nas fogueiras, umas delas o seu homem.
Pediu a sua alma, pois a ela lhe pertencia.
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Esperaríamos à partida que os textos produzidos por alunos de um nível de
ensino superior apresentassem um maior grau de coesão textual. Acreditávamos, por
exemplo, que o emprego do sistema anafórico fosse mais diversificado e que o recurso à
anáfora pronominal e às nominalizações fossem mais usuais. Não deixa, pois, este
resultado de contribuir para evidenciar a tendência para o empobrecimento lexical dos
falantes, mesmo os detentores de níveis mais elevados de escolarização.
Perspectivas
Um dos objectivos da primeira fase deste estudo consistia em testar o próprio
processo de produção e de recolha dos materiais constituintes do corpus, para assegurar
que a metodologia e os resultados permitiam comprovar determinados fenómenos
evolutivos da língua. É nossa intenção, numa próxima fase, quantificar estatisticamente
as mudanças relevadas e alargar o corpus em análise, através de um levantamento mais
abrangente que inclua outras instituições de Ensino Superior. Prevemos igualmente, na
sequência deste projecto de investigação, testar de novo as competências linguísticas
dos falantes à saída do 1º ciclo do Ensino Superior, a fim de verificarmos até que ponto
a aquisição de conhecimentos no âmbito de uma cultura eminentemente escrita como é,
ainda, a universitária permitiu estabilizar ou, pelo contrário, anular alguns dos desvios
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