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“NÃO ME OBRIGUEM A UM PARTO NORMAL”: CONCEPÇÕES DE
CORPO E DIREITO DE ESCOLHA DE MULHERES GESTANTES QUE
OPTAM PELA CESÁREA ELETIVA1.
Jaqueline Cardoso Portela-UFBA2
(jaquelineportela@outlook.com.br)
Palavras-Chave: Parto; Cesariana; Ciberespaço.
O processo de gestação e parto, para as Ciências Sociais, não se reduz a
fenômenos naturais e meramente fisiológicos. Apresentando-se como processos que
abrangem dimensões históricas, culturais e sociais tem significados construídos com
base na experiência social, modificando-se conforme variáveis de classe, sexo, gênero
ou sexualidade (PAIM, 1998). Dessa forma, as concepções de gestação e parto são
construídas com base em modelos sócio históricos legitimados e valorizados no âmbito
de uma determinada sociedade, sendo mutáveis ao longo do tempo conforme as
transformações das instituições sociais.
O modelo hegemônico de assistência ao parto no Brasil é o tecnocrático, nele a
medicalização do parto é sinônimo de modernidade, segurança e ausência de dor. Os
reflexos do predomínio do modelo tecnocrático no Brasil são representados pelas altas
taxas de cesarianas, sobretudo as cesarianas eletivas, tornando o país o campeão de
cesáreas no mundo. Porém, estudos3 apontam que a cultura da cesárea está associada a
maior necessidade de UTI neonatal e maiores complicações tanto para mãe quanto o
bebê. Por consequência, esta realidade intervencionista da assistência ao parto no Brasil
passou a sofrer questionamentos por parte de ativistas e do próprio governo, refletindo
no surgimento do movimento de humanização do parto, na proposta de um novo
modelo de assistência ao parto.
O fortalecimento de modelo de humanização do parto supõe um acirramento do
embate entre os modelos de assistência ao parto tecnocrático e humanizado,
1 Trabalho apresentado na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de
agosto de 2016, João Pessoa/PB. 2 Licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia, mestranda do Programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia (PPGCS-UFBA) e orientanda da Prof.ª
Dr.ª Elena Calvo-Gonzalez. 3 Pesquisa Nascer no Brasil: inquérito nacional sobre o parto e nascimento é o primeiro estudo nacional
de base epidemiológica que descreve a atenção ao parto e nascimento. Publicada na plataforma Scielo,
Cadernos de Saúde Pública vol.30 supl.1 Rio de Janeiro 2014. Acesso em 06/12/2015
http://www6.ensp.fiocruz.br/nascerbrasil/wpcontent/uploads/2014/11/sumario_executivo_nascer_no_bras
il.pdf
2
evidenciando o conflito entre esses dois modelos de assistência. Dentro desse bojo, o
ciberespaço, qual seja, blogs; sites e redes sociais é entendido como espaço de
sociabilidade e construção simbólica e tem papel fundamental onde anseios,
reivindicações, demandas, argumentações e construções sociais acerca dos modelos de
assistência ao parto são expostos e compartilhados.
Este paper, através de uma etnografia de páginas da rede social facebook pró-
cesarianas, tenciona analisar as noções sobre corporeidade e o direito de escolha em
relação à via de parto de grupos de mulheres que defendem a cesárea. Argumento que
existe uma hierarquização de transformações corporais que são classificadas enquanto
“adequadas” e “inadequadas” a partir do momento em que elas se adaptam, ou não, a
um ideal de corpo feminino idealizado pela sociedade. Enquanto as marcas deixadas
pela cirurgia cesariana são ressignificadas remetendo a memória afetiva, as marcas
deixadas pelo parto normal são negativadas e devem ser evitadas. Concluo, através da
noção de corpos plásticos (Sanabria, 2013), que a cirurgia cesariana é representada
dentro do universo pesquisado enquanto meio legítimo de evitar transformações
corporais “inadequadas”, como evitar danos ao períneo, não comprometendo o futuro
bem-estar sexual.
Modelos de Assistência ao parto no Brasil:
Conforme estudos de cunho antropológicos, o parto até séculos atrás era vivido
na esfera do privado e do feminino (Melo, 2013; Carneiro, 2011; Maia,2008. Diniz,
2001). Contudo, ao longo dos séculos, o parto passou progressivamente do âmbito
familiar e acolhedor, norteado pela assistência das parteiras4, para o modelo de
assistência obstétrica e hospitalar restrito ao domínio dos conhecimentos médicos e
tecnológicos. A medicalização do parto transformou o processo de gestação e o parto
em objetos do conhecimento e da prática da medicina, realizado por médico com o
apoio de um intenso aparato tecnológico e fármaco-químico. Na percepção do corpo
feminino enquanto máquina o principal objeto do médico passa a ser o útero e seu
produto em detrimento da visão da mulher enquanto ser dotado de uma unidade (Maia,
2008)
4 Nome dado às mulheres que desempenhava papel central no trabalho de parto e o pós-parto das
gestantes.
3
Todo esse processo impulsionou a modificação da experiência do parto
enquanto evento da esfera familiar e íntima para se tornar um evento dominado por
intervenções médicas, institucionalizado nos hospitais. Como resultado, o parto
medicalizado se tornou sinônimo de modernidade, segurança e ausência de dor. Tal
modelo de assistência ao parto tem sido denominado de modelo “tecnocrático”. Esse
modelo tecnocrático de assistência ao parto é hegemônico no Brasil e resulta em dois
tipos de partos: o parto normal vaginal traumático, dado o excesso de intervenções
médicas5, ou uma cesárea
6. (Maia, 2008; Carneiro, 2011).
Os reflexos do predomínio do modelo tecnocrático no Brasil são representados
pelas altas taxas de cesarianas, tornando o país o campeão de cesáreas no mundo. O
aumento no crescimento das taxas de cesáreas começou nos anos 1970, a proporção do
total de partos feitos no sistema público de saúde passou de 15% em 1970 para 31% em
1980 e não parou mais de crescer (Maia, 2008). Como consequência desses dados, há
algumas décadas o número excessivo de cesarianas no Brasil tornou-se um dado
alarmante, principalmente por contrariar a recomendação da Organização Mundial da
Saúde que estabelece um limite de 15% de cesarianas no total de partos. No Brasil essa
taxa chega a 52% do total, podendo chegar a 88% nos hospitais particulares7.
Dentro do modelo tecnocrático de assistência ao parto, a cesariana ou extração
fetal representa a expressão máxima da intervenção médica no processo de parturição.
Anteriormente considerada um procedimento de exceção, sendo indicada apenas em
situação de risco para mãe e/ou feto, na atualidade é um procedimento cirúrgico na
maioria das vezes programado8, sem real indicação médica de nenhum risco definido,
cuja escolha é frequentemente atribuída à gestante (MANDARINO, 2009). Segundo
Maia (2008), a cesárea seria o “padrão ouro” desta forma de assistência, por ser um
procedimento que dá ênfase à técnica, padronizado, de forma que todos os partos se
tornem muito parecidos, em oposição à imprevisibilidade inerente ao parto normal.
5 São procedimentos como o uso de enema prévio (lavagem intestinal), tricotomia (raspagem dos pelos
pubianos), ocitocina (hormônio sintético para acelerar as contrações), ruptura da bolsa, episiotomia (corte
na musculatura perineal), analgesia. (Carneiro, 2011). 6 Cirurgia em que o médico obstetra realiza um corte no abdome e no útero da mulher para retirar o bebê
através desse espaço. 7 FIOCRUZ, 2014. Pesquisa Nascer no Brasil. Acesso em 06/12/2015
<http://www6.ensp.fiocruz.br/nascerbrasil/wpcontent/uploads/2014/11/sumario_executivo_nascer_no_br
asil.pdf> 8 São as chamada cesariana eletivas. Este tipo de cesárea acontece quando a cirurgia é agendada antes da
gestante entrar em trabalho de parto.
4
Dentro deste índice elevado de cesarianas, as cesarianas eletivas são as mais
criticadas. Estudos apontam que a cesárea eletiva está associada a maior necessidade de
UTI neonatal e maiores complicações tanto para mãe quanto o bebê9. Os altos índices
de cesarianas eletivas no Brasil estão ligados ao medo da mulher da dor do parto
normal; crença de que o parto vaginal afrouxa os músculos da vagina e interfere na
satisfação sexual; crença de que o parto vaginal é mais arriscado para o bebê do que
uma cesárea; uso da cesárea para a realização de laqueadura tubária; e a associação
entre parto vaginal e “imprevisibilidade” e parto cesáreo e segurança (MAIA, 2010;
MENDONÇA, 2013; CARNEIRO; 2011).
A realidade da assistência intervencionista ao parto no Brasil passou a sofrer
questionamentos e reflexões por parte de ativistas e do próprio governo. Com intuito de
modificação do predomínio do modelo tecnocrático surgiu no Brasil, partir dos anos
2000, diversos movimentos organizados em prol da “humanização” do parto
(CARNEIRO, 2008; 2011; 2015).
O conceito de humanização do parto é amplo e polissêmico10
, e envolve os
conhecimentos, as práticas e as atitudes que objetivam promover parto e nascimentos
saudáveis, que garantam a privacidade, a autonomia e o protagonismo da mulher. Tendo
como objetivo predomínio de procedimentos comprovadamente benéficos e que evitem
intervenções desnecessárias, sendo capazes de prevenir a morbi-mortalidade materna e
fetal (MAIA, 2008). Os primeiros núcleos em prol da humanização do parto surgem na
década de 80 no Brasil, formados por profissionais de saúde inspirados por práticas
tradicionais de parteiras e índios (DINIZ, 2001). Contudo, é na década de 90, com a
fundação da Rede de Humanização do Parto e do Nascimento (Rehuma), composta por
profissionais de saúde, em sua maioria enfermeiras e médicos obstetras, assim como
integrantes do movimento de mulheres e feminista, que o movimento pela humanização
do parto ganha força.
Segundo Carneiro (2011) o grupo de mulheres que busca parir de forma mais
“natural” possível é heterogêneo. Essas mulheres querem ser “a mulher que dá à luz e
não só mais uma mulher no hospital”, buscando escapar do modelo padrão de atenção
9 FIOCRUZ, 2014. Pesquisa Nascer no Brasil. Acesso em 06/12/2015
<http://www6.ensp.fiocruz.br/nascerbrasil/wpcontent/uploads/2014/11/sumario_executivo_nascer_no_br
asil.pdf>
10
Diniz, 2001.
5
dada ao nascimento, do timing dos hospitais, dos manuais obstétricos e, se possível, da
cesariana eletiva.
O fortalecimento da popularização do movimento de humanização do parto no
Brasil, ao longo das últimas décadas, como alternativa de assistência ao parto acarretou
no embate contemporâneo entre os modelos de assistência ao parto tecnocrático e
humanizado, evidenciando o conflito entre esses dois modelos de assistência.
(MENDONÇA, 2013). Nesta nova configuração, o ciberespaço, qual seja, blogs; sites e
redes sociais é entendido como espaço de sociabilidade e construção simbólica, mais do
que mero meio de comunicação. Segundo nos relata Carneiro (2011) em sua tese, o
mundo cyber tem papel fundamental no processo de informação, popularização e
ativismo do modelo de humanização do parto no Brasil. Entre suas informantes,
frequentadoras de cursos de preparação para o parto humanizado, a maioria tinha
ouvido falar de parto humanizado pela internet, por meio de sites, blogs e redes sociais.
Partindo desse pressuposto, esses espaços se configuram como uma esfera pública
digital, onde anseios, reivindicações, demandas, argumentações e construções sociais
acerca dos modelos de assistência ao parto são expostos e compartilhados.
Cibercultura e Modelos de Assistência ao parto:
Entendida como espaço de sociabilidade, mais do que mero meio de comunicação, a
internet configura-se em espaço onde se desenvolvem práticas culturalmente
determinadas. Segundo Carvalho (2015), o crescimento exponencial do uso da internet e
da Comunicação Mediada por Computador (CMC) na vida cotidiana implica em novas
formas de representação social. A esse locus Gibson citado por Carvalho ( 2015)
cunhou o nome de “ciberespaço”, qual seja, espaço simbólico que abriga um leque
muito vasto de atividades de caráter societário, e que é palco de práticas e
representações dos diferentes grupos que o habitam. Os fenômenos e práticas sociais,
políticas e culturais que se articulam dentro do ciberespaço denomina-se cibercultura.
Partindo dessa noção de ciberespaço enquanto construção de ciberculturas dos
diferentes grupos que o habitam, podemos exemplificar a emergência de grupos de
discussões de mulheres na internet em prol do parto humanizado e grupos de mulheres
em prol da cesariana como um fenômeno desse processo. Esse embate público
estabelecido no âmbito do ciberespaço configura-se como parte do embate social e
científico mais amplo sobre os modelos de assistência à gestação e parto no Brasil,
6
assim como do direito à escolha do tipo de parto por parte da mulher, espelhando um
espaço fundamental para as análises de como as mulheres defensoras de ambos os
modelos de assistência ao parto se relacionam, respondem e se posicionam com relação
a discursos, informações e argumentos que permeiam esse embate. Diversos estudos
mostram a importância da internet enquanto espaço de legitimação, reprodução e
construção de discursos referentes aos modelos de assistência ao parto (CARVALHO,
2015; MENDONÇA, 2013; CARNEIRO, 2011; DINIZ, 2001).
Através de uma pesquisa etnográfica virtual das páginas da rede social facebook
“Não me obriguem ao um parto normal-2” e “Mães, Cesárea & Cia” busco analisar
neste paper as noções de corporeidade e direito de escolha de parto de um grupo de
mulheres que se posicionam enquanto defensoras do parto cesariana. Os resultados
preliminares apresentados neste paper faz parte de minha pesquisa de mestrado
intitulada “Não me obriguem a um parto normal”: concepções de corpo, autonomia e
direito de escolha de mulheres gestantes que optam pela cesárea eletiva.
Grupos pró-cesárea: páginas em defesa das cesarianas eletivas.
Este paper irá analisar duas páginas da rede social facebook que tem como objetivo
a defesa da cirurgia cesariana. São elas: “Não me obriguem a um parto normal” e
“Mães, cesáreas & Cia”. O header, bem como o avatar das páginas, remetem a cirurgia
cesariana e a gravidez.
Figura I- Header e avatar da página “Não me obriguem a um parto normal”
7
Figura II- Header e avatar da página “Mães, Cesárea & Cia”
Na descrição curta da página “Não me obriguem a um parto normal”, lê-se: “Página
de mães, médicos, psicólogas criada para casais esclarecendo a realidade do
atendimento ao parto, riscos, o momento mágico que é ter um filho!” e na descrição
curta da página “Mães, Cesárea & Cia”, lê-se: “Página que envolve todo o universo
materno, desde a gravidez, partos e criação, sem preconceitos ou julgamentos por via de
parto e maternagem. Mães Reais”.
Estas duas páginas tem em comum a defesa da cirurgia cesariana, principalmente a
cesariana eletiva, enquanto via de parto, desde que seja a vontade da mulher e sua
escolha. As postagens envolvem informações e procedimentos da cirurgia cesariana,
discussões acerca dos modelos de assistência ao parto tanto tecnocrático quanto
humanizado; relatos de partos; dia a dia da maternidade; compartilhamento de dúvidas
sobre criação e saúde dos filhos, questões que envolvem as mulheres no pré-parto, parto
e pós-parto. As publicações das páginas envolvem um leque amplo de assuntos,
questionamentos e discussões, sendo necessária uma análise ampla para abarcar todo
universo. Para este paper irei analisar duas questões que são recorrentes dentre as
publicações, quais sejam, as noções sobre transformações corporais e o direito de
escolha em relação a via de parto.
Cicatriz do amor: hierarquizações das transformações corporais.
A gestação e o parto são considerados eventos socioculturais e fenômenos
fisiológicos, produzidos no corpo feminino que em sua maioria acarreta transformações
8
corporais. Como nos relata Paim (1998), as marcas inscritas no corpo feminino após as
experiências da gravidez, do parto e aleitamento parecem deixar o registro da função
social considerada ideal neste universo simbólico.
As mulheres costumam evidenciar as marcas que ficaram em seus corpos como
evidencia da experiência e da coragem do processo de parturição. A exaltação das
marcas corporais do processo de parto é recorrente entre as postagens das páginas
analisadas, como a denominação da cicatriz da cirurgia cesariana como a “cicatriz do
amor”.
Figura III- página “Mães, Cesárias & Cia”, 06/01/2016.
Esta postagem veio acompanhada de um texto, de autoria da administradora da
página, que evidenciava as transformações corporais como resultados de um processo
de entrega da mulher ao processo de parturição:
[...] pessoas insensíveis dirão com um tom
sarcástico que a cesárea é uma cirurgia, logo, o que
essa mãe teve foi a extração do feto.
Qual é o prazer de negar a uma mãe a
nomenclatura do nascimento do filho (a)?
[...]Eu gestei meu filho por longos noves meses
difíceis...
Senti enjôos, muita azia e mal estar.
Vi minha barriga ganhando estrias de presente da
gestação, meus cabelos caindo, minha pele oleosa
e o meu peso aumentando.
[...] Me lembro que senti um medo absurdo de
morrer quando entrei de cadeira de rodas no centro
cirúrgico, meu coração doía tanto, eu tremia, batia
queixo...
Vi toda aquela aparelhagem, tantos médicos
[...]Só saí do meu mundo cheio de medo quando o
médico disse: "pode vir pai, é agora..."
Olhos arregalados, coração doendo, garganta
arranhando com aquela vontade de chorar
9
Me esqueci da cesárea, da anestesia, do bisturi, das
sete camadas cortadas, dos acessos do soro e das
instruções passadas a mim, de que não podia
levantar a cabeça...(rsrs)
(..)Fiquemos com a nossa cirurgia...
A nossa cirurgia do AMOR... da VIDA... da
GRATIDÃO, da DOAÇÃO... Fiquemos com o
nosso renascimento. (grifo meu)
Os comentários de seguidoras da página demonstram concordância com exaltação da
cicatriz da cesariana enquanto transformação corporal, resultado da entrega da mulher
ao processo de parturição:
“Minha cicatriz é a forma mais linda de
mostrar que eu gestei o amor”
“Também não tenho vergonha da minha
cicatriz não... msm ela sendo Qse
imperceptível, tenho orgulho isso sim, foi
por ela que saiu o meu bem mais
precioso.”
“A minha tmb foi ponto de plástica. Até o
terceiro dia estava lindinha. Rsrsrs mas a
partir daew, foi sofrido. Abriu, vazou,
inchou e por fim cicatrizou. Tive
queloides(acho que é esse o nome). Mas
não me incomodo nem um pouco. Foi
graças a ela que meu príncipe veio ao
mundo.”
Outra postagem também demonstra a ressignificação da cicatriz da cesariana
como algo de positivo no processo de parturição. Na postagem podemos ver uma
imagem de uma mulher com o bebê entre as pernas e a cicatriz da cirurgia cesariana em
evidência, seguido do seguinte texto:
EU CARREGO UMA CICATRIZ
A cicatriz que eu carrego no meu corpo pode não
ser linda de aparência, mas é linda e rica em
significados.[...]
Essa cicatriz é um orgulho porque?
Porque ela me proporciona lembranças sem
igual, únicas, que carregarei comigo até o último
dia da minha vida[...]
Ela é só um detalhe perto da imensidão que é a
maternidade, mas me sinto realizada porque
através dela eu pude me tornar mãe (...)
E é ao olhar essa cicatriz que eu posso dizer
todos os dias - Eu te amo filha!
E agradeço a Deus por guiar as mãos dos
médicos do mundo todo que fazem parto
cesariana, salvando vidas, e/ou simplesmente
10
respeitando a vontade de cada mãe, na sua
escolha de dar a luz.
[...]
Eu me orgulho da minha cicatriz!![...]
As demais pessoas que te criticam por você tê-la
em seu corpo... bem, ignore, elas não sabem o
real significado, essas pessoas são superficiais.
Ame seu corpo e ame suas cicatrizes, cada uma
tem um significado que importa somente a você.
Eu carrego e amo minha cicatriz!!
Figura IV- página “Mães, Cesáreas & Cia”, do dia
01/01/2016
Ao analisar estas postagens concordo com o argumento de Paim (1998) ao
verificar em sua pesquisa que as mulheres que sofreram transformações corporais por
conta do processo de parturição as associam a experiência que maternidade deixou em
seus corpos. As marcas parecem ficar como um registro do status de mulher adulta,
alcançado através da maternidade. A cicatriz ao ser associada ao “amor”, “maternidade”
é positivada enquanto consequência “necessária” e “tolerável” da transformação do
corpo feminino. Devendo ser exaltada enquanto sinônimo de “coragem” e “entrega” da
mulher ao evento de parturição.
Contudo, faz-se necessário uma análise critica em torno das marcas permanentes
inscritas no corpo feminino em decorrência do parto. Enquanto a cicatriz da cesariana é
relacionada a uma memória afetiva, existem transformações corporais que são
associadas a uma visão negativa dentro do universo de pesquisa.
As transformações corporais que podem ser provocadas pelo parto vaginal,
como a cicatriz da episiotomia ou do períneo, são vistos como consequências negativas
e que devem ser evitadas. Nesse sentido, a escolha pela cirurgia cesariana é justificada
por conta da prevenção por parte dessas mulheres de possíveis transformações corporais
indesejáveis.
Uma publicação da página “Não me obriguem a um parto normal-2” retrata a
relação entre parto normal e as consequências “negativas” que esse tipo de parto pode
ocasionar no corpo da mulher.
11
Figura V- página “Não me obriguem a um parto normal 2”, 24/02/2016
Nesta publicação é compartilhado um comentário de outra página, não identificada, em
que a mulher relata as transformações corporais que ocorreram em seu corpo em
decorrência do parto normal. Seguem alguns comentários de seguidoras:
“Ain, ‘parto normal é melhor para a mulher’.
Não, obg! Melhor pra mim é meu filho saudável
em meios braços e meu brinquedinho
funcionando. Kkkkkk”
“kkkkkkkk depois dizem ‘fiquei mais
apertadinha’ uhum... Seeeeeei”
“Depois de 3 PC meu brinquedo tá intacto.
Graças. Rsrsrsrsrsrs”
“Prefiro cesárea mil vezes”
“kkkkkkkk. Quebrou o brinquedo. O meu está
intaquito.”
Os comentários em relação a esta postagem evidenciam a relação entre escolha
do tipo de parto e corporeidade. Diversos estudos retratam a relação entre sexualidade e
tipos de parto no que diz respeito a preferência da mulher (DINIZ, 2006;
MANDARINO, 2009; CARNEIRO, 2011). Diniz (2006) mostra como consequência da
assistência ao modelo tecnocrático e das práticas dolorosas presentes nas maternidades
do brasil, independente da via de parto, normal ou cesárea, as mulheres são submetidas
a marcas permanentes nos corpos: o corte por cima (cesárea) ou corte por baixo
(episiotomia). A cicatriz da cesariana não aparece como uma dificuldade para a escolha
da cirurgia cesariana, pelo contrário, é vista como superior ao parto normal. Enquanto a
preocupação em preservar a genitália feminina, algumas mulheres são levadas a
12
acreditar que o parto normal é como um estupro, uma forma horrenda de vitimização
sexual.
Fica evidente que existe uma hierarquização de marcas corporais, caracterizadas
enquanto “adequadas” e “inadequadas”. A partir do momento em que elas se adaptam,
ou não, a uma ideal de corpo feminino idealizado pela sociedade. Nesse sentido, se
ressignifica cicatrizes que são associadas a uma experiência positiva de entrega da
mulher, enquanto outras “marcas” refletem uma desconstrução, por parte de mulheres
do universo pesquisado, do corpo feminino ideal que, portanto, deve ser evitadas.
Emilia Sanabria (20013), em sua pesquisa analisa como, no Brasil, as ontologias
médicas e populares brasileiras enxergam o corpo como consideravelmente plástico e
suscetível a mudanças e aperfeiçoamentos. A noção de corpo plástico pode ser
explicado pelo fato do corpo ser compreendido como maleável e plástico. Isso mostra
que, em vez de romper as fronteiras do corpo, as intervenções médicas tecnocráticas, tão
arraigadas nas práticas da medicina brasileira, são essenciais para a produção do corpo e
suas delimitações.
Edmonds e Sanabria (2016) demonstram como a plástica e as terapias hormonais
são usadas para fins não médicos, como: modular afetos ou desempenhar a força física,
no âmbito profissional abrir portas para novos mundos sociais, copiar modelos de capa
da Playboy, aumentar o desejo ou proteger um casamento. Esses usos revelam tensões
entre as normas sociais e médicas “genderizadas” da feminilidade moderna (idem, pg.
195). Ademais, os autores mostram como mulheres usam técnicas como melhoramento
da qualidade de vida para reagir às expectativas sociais e somáticas que delimitam a
passagem pelo curso da vida que envolvem a gravidez e o parto.
Para os autores, a gravidez e o parto são vistos socialmente como passíveis de
trazer riscos e causar danos iatrogênicos ao corpo da mulher, que podem ser
“corrigidos” por meio de intervenção cirúrgica. Nesse sentido, a cirurgia às vezes é
representada como um meio legítimo de evitar danos ao períneo e não comprometer o
futuro bem-estar sexual. Segundo Edmonds (2013), apesar de a cesariana evitar danos
pélvicos, ela resulta em danos estéticos no abdômen – cicatrizes e flacidez – que podem
ser reparados por plástica. Tornar a cesariana uma prática rotineira contribui, portanto,
para uma nova “necessidade” médica de cirurgias estéticas corretivas. Esse efeito
13
cascata de necessidades cirúrgicas pode ser evidenciado em uma publicação de uma das
páginas analisadas.
Figura VI, página “Mães, Cesárea & Cia”, 12/03/2016.
Destaco alguns comentários:
“E se puder emenda uma abnoplastia aí
que já tá cortado. Hahaha. Essa página é
a melhor.”
“Marquei o dia, abri e colei. Tá novo, de
novo. Só faltou a abdominoplastia como
bem lembrou a (...), mas se tiver outra
vez, tô dentro tb. Rsrsr”.
Estes comentários apontam para valorização da cirurgia plástica enquanto
superioridade das intervenções médicas e reforçam o desejo de realização de outros
tipos de cirurgia para reparação do corpo. Conforme essa analise, concordo com o
argumento de Edmonds (2013) de que a cirurgia estética está sendo integrada à
obstetrícia e à ginecologia e usada para corrigir danos iatrogênicos resultantes das
práticas dominantes na saúde da mulher. Um efeito disso é que a “estética” entra em
cena como uma dimensão fundamental dos cuidados rotineiros com a saúde da mulher
no Brasil.
14
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