o céu e o inferno segundo emanuel swedenborg
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O Céu e o Inferno segundo Emanuel Swedenborg08/06/1978
Por Yuri Vieira
Transcrição de uma das palestras proferidas por Jorge Luis Borges, na Universidade
de Belgrano, em 8 de Junho de 1978.
(Com notas de Yuri Vieira)
____
Voltaire dizia que o homem mais extraordinário registrado pela História foi
Carlos XII. Eu diria que, talvez, o homem mais extraordinário – a admitirmos
tais superlativos – foi o mais misterioso dos súditos de Carlos XII: Emanuel
Swedenborg.
Vou dizer algumas palavras sobre ele e, depois, falar de sua doutrina – que é o
mais importante para nós.
Emanuel Swedenborg nasceu em Estocolmo, no ano de 1688, e morreu em
Londres, em 1772. Uma longa vida, mais longa ainda se considerarmos as
curtas vidas de então. Quase pôde completar cem anos. Sua vida se divide em
três períodos. Esses períodos são de intensa atividade. Cada um deles dura – já
se fizeram os cálculos – vinte e oito anos. No princípio temos um homem
dedicado ao estudo. O pai de Swedenborg era um bispo luterano, e
Swedenborg foi educado no luteranismo, cuja base, como se sabe, é a
salvação pela graça – da qual descrê Swedenborg. Em seu conjunto de
princípios, na nova religião que ele pregou, fala-se da salvação pelo trabalho,
pelas obras, embora tais obras não sejam, certamente, missas nem cerimônias,
mas, sim, obras verdadeiras, obras nas quais entra todo o homem, quer dizer,
seu espírito e, o que é ainda mais curioso, também sua inteligência.
Pois bem, Swedenborg começa como sacerdote e logo se interessa pelas
ciências. Interessam-no, sobretudo, de modo prático. Na verdade, descobriu-se
que ele se antecipou a muitas invenções. Por exemplo, a hipótese nebular de
Kant e Laplace. Como Leonardo da Vinci, Swedenborg planejou um veículo
que poderia voar. Ele sabia que era inútil, mas via nele um possível ponto de
partida para aquilo que nós atualmente chamamos de avião. Também
desenhou veículos que se movimentariam debaixo d’água, como havia
previsto Francis Bacon. Da mesma forma, logo se interessou – fato
igualmente singular – pela mineralogia. Foi assessor para assuntos minerais
em Estocolmo. Interessou-se também pela anatomia. E, como Descartes,
interessou-o o exato local onde o espírito se comunica com o corpo [1].
Dizia Emerson: “Lamento dizer que ele nos legou cinqüenta volumes”.
Cinqüenta volumes, dos quais vinte e cinco, pelo menos, são dedicados à
Ciência, à Matemática, à Astronomia. Recusou a cátedra de Astronomia da
Universidade de Upsala porque desprezava tudo que fosse teórico. Era um
homem prático. Foi engenheiro militar de Carlos XII, que o respeitava. Os
dois se relacionaram muito: o herói e o futuro visionário. Swedenborg
idealizou uma máquina para transportar navios por terra em uma das guerras
quase míticas de Carlos XII tão formosamente descritas por Voltaire.
Transportaram os barcos de guerra ao longo de vinte milhas.
Mais tarde, mudou-se para Londres, onde estudou as artes da carpintaria, o
trabalho do entalhador, do tipógrafo, do fabricante de instrumentos. Também
esboçou mapas para o globo terrestre. Ou seja, foi um homem eminentemente
prático. E eu me recordo de uma frase de Emerson, em que ele diz que
“nenhum homem viveu de maneira mais realista do que Swedenborg”. É
necessário que saibamos isso, que juntemos toda essa sua obra científica e
prática. Foi um político, além do mais; foi senador do reino. Aos 55 anos já
havia publicado uns vinte e cinco volumes sobre mineralogia, anatomia e
geometria.
Aconteceu, então, o fato primordial de sua vida. O fato primordial de sua vida
foi uma revelação. Recebeu essa revelação em Londres, precedida por sonhos,
registrados em seu diário. Não foram publicados, mas sabe-se terem sido
sonhos eróticos.
E, depois, veio a visitação, que alguns consideraram um acesso de loucura.
Mas isto é negado pela lucidez de sua obra, pelo fato de que em nenhum
momento nós nos sentimos diante de um louco.
Escreve sempre com grande clareza, quando expõe sua doutrina. Em Londres,
um desconhecido que o havia seguido pela rua entrou em sua casa e lhe disse
que era Jesus, que a Igreja estava decaindo – como a judaica, quando surgiu
Jesus Cristo – e que ele tinha o dever de renovar a Igreja, criando uma terceira
igreja, a de Jerusalém.
Tudo isso parece absurdo, incrível, mas temos a obra de Swedenborg. E essa
obra é enorme, escrita em um estilo muito tranqüilo. Ele não argumenta em
momento algum. Podemos recordar aquela frase de Emerson, de que “os
argumentos não convencem ninguém”. Swedenborg expõe tudo com
autoridade, com tranqüila autoridade.
Pois bem, Jesus lhe disse que o encarregava da missão de renovar a Igreja e
que lhe seria permitido visitar o outro mundo, o mundo dos espíritos, com
seus inumeráveis céus e infernos. Que tinha o dever de estudar a Sagrada
Escritura. Antes de escrever, portanto, ele se dedicou, durante dois anos, ao
estudo da língua hebraica, pois desejava ler os textos originais. Voltou a
estudar os textos e neles pensou ter encontrado o fundamento de sua doutrina,
um pouco à maneira dos cabalistas, que encontram razões para o que buscam
no texto sagrado.
Analisemos, antes de mais nada, sua visão do outro mundo, sua visão da
imortalidade pessoal[2], na qual acreditou, e veremos que toda ela se baseia
no livre-arbítrio. Na Divina Comédia de Dante – bela obra literária – o livre-
arbítrio cessa no momento da morte. Os mortos são condenados por um
tribunal e merecem o céu ou o inferno. Ao contrário, na obra de Swedenborg
nada disso ocorre. Diz-nos ele que quando um homem morre ele não se dá
conta de haver morrido, já que tudo que o circunda é igual. Encontra-se em
sua casa, os amigos o visitam, ele percorre as ruas de sua cidade – não pensa,
enfim, que morreu. Mas, logo começa a notar algo. Começa a notar algo que a
princípio o alegra e que, depois, o assusta: tudo, no outro mundo, se mostra
mais vívido do que neste[3].
Sempre pensamos no outro mundo de modo nebuloso, mas Swedenborg nos
diz que ocorre exatamente o contrário, que as sensações são muito mais vivas
no outro mundo. Há, por exemplo, mais cores. E se imaginamos que os anjos,
no céu de Swedenborg, de qualquer modo como se encontrem, estão sempre
voltados para o Senhor, podemos igualmente imaginar uma espécie de quarta
dimensão. Em todo caso, Swedenborg afirma que o outro mundo é muito mais
intenso que este. Nele há mais cores, há mais formas. Tudo é mais concreto,
tudo é mais tangível do que neste mundo. “Tanto é assim” – diz ele – “que
este mundo, comparado com o que vi em minhas inumeráveis andanças pelos
céus e pelos infernos, é como uma sombra. É como se vivêssemos
na sombra”[4].
Aqui eu me lembro de uma frase de Santo Agostinho. Na obra Civitas Dei,
Santo Agostinho diz que, sem dúvida, o gozo sensual era mais forte no
Paraíso do que aqui, porque não se pode imaginar que a culpa tenha
contribuído para melhorar alguma coisa. E Swedenborg diz o mesmo. Ele fala
dos gozos carnais nos céus e nos infernos do outro mundo e diz que são muito
mais intensos que os daqui[5].
Que acontece quando um homem morre? No princípio, não se dá conta de
haver morrido. Prossegue em suas ocupações habituais, recebe a visita dos
amigos, conversa com eles[6]. Logo, porém, pouco a pouco, as pessoas
percebem, assustadas, que tudo é mais intenso, que há mais cores. O homem
pensa: “Eu vivi todo o tempo na sombra; agora eu vivo na luz”. E isso pode
alegrá-lo por um momento.
E dele logo se aproximam desconhecidos, que com ele conversam. Esses
desconhecidos são anjos e demônios. Swedenborg diz que os anjos não foram
criados por Deus, que os demônios não foram criados por Deus. Os anjos são
homens que ascenderam à condição angelical; os demônios são homens que
desceram à condição demoníaca. De modo que toda a população dos céus e
dos infernos é composta por homens, e esses homens agora são anjos e agora
são demônios[7].
Pois bem. Do morto se aproximam os anjos. Deus não condena ninguém ao
inferno. Deus quer que todos os homens se salvem. Ao mesmo tempo, no
entanto, Deus concedeu ao homem o livre-arbítrio, o terrível privilégio de
condenar-se ao inferno ou de merecer o céu. Quer dizer, quanto à doutrina do
livre-arbítrio – que, segundo a doutrina ortodoxa, cessa após a morte –
Swedenborg o conserva até depois da morte. Há, então, uma região
intermediária, a região dos espíritos. Nela estão os homens, as almas daqueles
que morreram, e eles conversam com anjos e com demônios[8].
Por conseguinte, chega um instante que pode durar uma semana, pode durar
um mês, pode durar muitos anos – não sabemos quanto tempo pode durar.
Nesse momento, o homem resolve ser um demônio, ou vir a ser um demônio
ou um anjo. Em um dos casos merece o inferno. Essa região é composta por
vales e, igualmente, fendas. Essas fendas podem localizar-se na parte inferior,
comunicando-se com os infernos; ou na parte superior, comunicando-se com
os céus. E o homem procura, conversa e fica na companhia daqueles de quem
gosta. Se tem um temperamento demoníaco, prefere a companhia dos
demônios; se tem um temperamento angelical, a dos anjos.
Se vocês quiserem uma descrição de tudo isso, por certo muito mais eloqüente
do que a minha, a encontrarão no terceiro ato de Man and Superman, de
Bernard Shaw. É curioso que Shaw jamais mencione Swedenborg. Eu creio
que ele chegou a fazê-lo através de Blake, ou de sua própria doutrina. Porque
no sistema de John Tanner está descrita a doutrina de Swedenborg, embora
sem ser mencionada. Não creio que tenha sido um ato de desonestidade de
Shaw, mas, sim, que tenha acreditado nisso de forma sincera. Presumo que
Shaw tenha chegado às mesmas conclusões através de William Blake, que
analisa a doutrina da salvação pregada por Swedenborg.
Bem, o homem, então, conversa com anjos, o homem conversa com
demônios, e se sente atraído mais por uns do que por outros. Isto, segundo seu
temperamento. Aqueles que se condenam ao inferno – já que Deus não
condena ninguém – se sentem atraídos pelos demônios. Agora, que são os
infernos? Os infernos, segundo Swedenborg, apresentam aspectos variados. O
aspecto que teriam para nós, ou para os anjos. São zonas pantanosas, em que
as cidades parecem destruídas por incêndios[9]. Mas, aí, os perversos se
sentem felizes. Sentem-se felizes a seu modo, ou seja, estão cheios de ódio. E
não há um monarca nesse reino; continuamente estão conspirando uns contra
os outros. É um mundo de política de baixo nível, de conspiração. Isto é
o inferno[10].
A seguir, temos o céu, que é o oposto – o que corresponde simetricamente ao
inferno. Segundo Swedenborg – e esta é a parte mais difícil de sua doutrina –
haveria um equilíbrio entre as forças infernais e as forças angelicais,
necessário para que o mundo subsista. Nesse equilíbrio sempre é Deus aquele
que comanda. Deus permite que os espíritos infernais permaneçam no inferno,
já que só no inferno eles se sentem felizes [11].
E Swedenborg menciona o caso de um espírito demoníaco que ascende ao
céu, aspira o ar do céu, ouve as conversas do céu, e tudo lhe parece horrível. O
ar lhe parece fétido, a luz lhe parece negra. Então, ele volta ao inferno porque
só no inferno se sente feliz. O céu é o mundo dos anjos. E Swedenborg
acrescenta que todo inferno tem a forma de um demônio, e o céu a forma
generalizada de um anjo. O céu é composto por sociedades de anjos, e aí se
encontra Deus. E Deus é representado pelo sol.
De modo que o sol corresponde a Deus, e os piores infernos são os infernos
ocidentais e os do norte. Ao contrário, a leste e ao sul, os infernos são mais
mansos [12]. Ninguém está condenado a eles. Cada um busca a sociedade que
deseja, busca os companheiros que deseja, e o faz segundo os estímulos que
dominaram sua vida.
Os que chegam ao céu têm uma noção equivocada. Pensam que no céu ficarão
permanentemente a rezar. E lhes é permitido rezar, mas, ao fim de poucos dias
ou semanas, eles se cansam: dão-se conta de que isso não é o céu. Começam,
naturalmente, a adular Deus, a elogiá-lo. Mas Deus não gosta de ser adulado.
Do mesmo modo, essas pessoas se cansam de adular Deus. Pensam, a seguir,
que podem ser felizes conversando com seus entes queridos, mas, ao fim de
certo tempo, constatam que os entes queridos e os heróis ilustres podem ser
tão entediantes na outra vida como nesta. Cansam-se disto e, então, entram na
verdadeira obra do céu. E, neste ponto, eu me recordo de um verso de
Tennyson, que diz que a alma não deseja assentos dourados; simplesmente,
deseja que lhe concedam o dom de permanecer e não de cessar [13].
Quer dizer, o céu de Swedenborg é um céu de amor e, sobretudo, um céu de
trabalho, um céu altruísta. Cada um dos anjos trabalha para os demais; todos
trabalham uns para os outros. Não é um céu passivo. Não é uma recompensa,
tampouco. Se alguém possui um temperamento angelical, obtém este céu e
nele se sente bem. Mas há outra diferença muito importante no céu de
Swedenborg: seu céu é eminentemente intelectual.
Swedenborg narra o caso, patético, de um homem que durante sua vida se
propôs a ganhar o céu. Para tanto, renunciou a todos os gozos sensuais.
Retirou-se para um lugar ermo. Lá se abstraiu de tudo. Rezou, pediu o céu.
Com isso, no entanto, ele se empobrecia. E, quando morre, que acontece?
Quando morre, chega ao céu, e no céu não sabem o que fazer com ele. Ele
trata de escutar as conversas dos anjos, mas não as entende. Trata de aprender
as artes. Trata de ouvir tudo. Tenta entender tudo e não consegue, por se haver
empobrecido. É, simplesmente, um homem justo e mentalmente pobre.
Concedem-lhe, então, como um dom, a possibilidade de projetar uma
imagem: o deserto. No deserto, ele rezava como rezava na Terra, mas sem
desligar-se do céu, porque sabe que se tornou indigno do céu através de sua
penitência, por haver empobrecido sua vida, por haver recusado os gozos e
prazeres da vida, o que também é um mal.
Esta é uma inovação de Swedenborg. Porque a idéia foi sempre a de que a
salvação é de caráter ético. Entende-se que se um homem é justo ele se salva.
“Dos pobres de espírito é o reino dos céus…”, etc. Era o que dizia Jesus. Mas
Swedenborg vai mais além. Diz que isto não basta, que um homem tem que
salvar-se também intelectualmente. Ele imagina o céu, sobretudo, como uma
série de conversas teológicas entre os anjos. E, se um homem não pode
acompanhar essas conversas, ele é indigno do céu. Portanto, deve viver
sozinho [14].
William Blake, a seguir, acrescenta um terceiro tipo de salvação. Diz que
podemos, ou que temos que nos salvar também por meio da arte. Blake
explica que também Cristo foi um artista, já que não pregava por meio de
palavras, mas de parábolas. E as parábolas são, naturalmente, expressões
estéticas. Quer dizer, a salvação seria obtida por meio da inteligência, da ética
e do exercício da arte [15].
E neste ponto recordamos algumas das frases em que Blake, de algum modo,
suavizou as longas sentenças de Swedenborg. Quando diz, por exemplo: “O
idiota não entrará no céu, por mais santo que seja”. Ou, ainda: “É preciso
livrar-se da santidade; é preciso ter inteligência”.
Assim, temos esses três mundos. Temos o mundo do espírito, e, logo, ao fim
de certo tempo, um homem mereceu o céu, um homem mereceu o inferno. O
inferno é, na verdade, regido por Deus, que necessita desse equilíbrio. Satanás
é, simplesmente, o nome de uma região. O demônio é, simplesmente, um
personagem cambiante, já que todo o mundo do inferno é um mundo de
conspirações, de pessoas que se odeiam, que se juntam para se atacarem umas
às outras.
Portanto, Swedenborg conversa com diferentes pessoas no paraíso, com
diferentes pessoas nos infernos. Tudo isso lhe é permitido para que crie a nova
Igreja. E que faz Swedenborg? Não faz pregações: publica livros,
anonimamente, escritos em sóbrio e árido latim. E difunde tais livros. Deste
modo decorrem os últimos trinta anos da vida de Swedenborg. Vive em
Londres. Leva uma vida muito simples. Alimenta-se de leite, pão, legumes.
Às vezes, chega um amigo da Suécia e, então, ele se permite uns dias de
descanso.
Quando foi à Inglaterra, quis conhecer Newton, porque lhe interessava muito
a nova astronomia, a lei da gravitação. Jamais, porém, chegou a conhecê-lo.
Interessou-se muito pela poesia inglesa. Fala, em suas obras, de Shakespeare,
de Milton e de outros. Elogia-os por sua imaginação. Ou seja, ele possuía
senso estético. Sabe-se que quando percorria os diversos países por onde
andou – viajou pela Suécia, Inglaterra, Alemanha, Áustria, Itália – visitava as
fábricas, os bairros pobres. Apreciava muito a música. Era um perfeito
cavalheiro da época. Chegou a ser um homem rico. Seus empregados viviam
no subsolo de sua casa, em Londres (a casa foi demolida há pouco tempo) e o
viam conversando com os anjos ou discutindo com os demônios [16]. Ao
conversar, jamais desejou impor suas idéias. Não permitia, portanto, que
rissem de suas visões; tampouco, porém, desejou impô-las; preferia mudar de
assunto.
Há uma diferença essencial entre Swedenborg e os outros místicos. No caso
de San Juan de la Cruz, temos descrições muito intensas do êxtase. Há o
êxtase referido em termos de experiências eróticas ou através de metáforas
sobre o vinho. Por exemplo, um homem que se encontra com Deus, e Deus é
igual a si mesmo. Há um conjunto de metáforas. Ao contrário, na obra de
Swedenborg não há nada disso. É a obra de um viajante que percorreu terras
desconhecidas e que as descreve tranqüila e minuciosamente.
Por isso, sua leitura não é exatamente divertida. É espantosa e gradualmente
divertida. Li os quatro volumes de Swedenborg que foram traduzidos para o
inglês e publicados pela Everyman’s Library. Disseram-me que há uma
tradução espanhola, uma seleção de textos, publicada pela Editora Nacional.
Vi alguns registros taquigráficos a respeito dele, de toda aquela esplêndida
conferência realizada por Emerson. Emerson fez uma série de conferências
sobre figuras representativas. Ou seja: “Napoleão, ou o homem do mundo”;
“Montaigne, ou o cético”; “Shakespeare, ou o poeta”; “Goethe, ou o homem
de letras”; “Swedenborg, ou o místico”. Foi a primeira introdução que li à
obra de Swedenborg. Essa conferência de Emerson, que é memorável, não
está, afinal, totalmente de acordo com Swedenborg. Havia algo que o
repugnava: talvez o fato de Swedenborg ter sido tão minucioso, tão
dogmático. Porque Swedenborg insiste várias vezes nos mesmos fatos. Repete
a mesma idéia. Não busca analogias. É um viajante que percorreu um país
muito estranho; que percorreu inumeráveis céus e infernos, e os descreve.
Vamos, agora, analisar outro tema de Swedenborg: a doutrina das correlações.
Tenho para mim que ele idealizou essas correlações para encontrar suas
doutrinas na Bíblia. Ele diz que cada palavra na Bíblia tem pelo menos dois
significados. Dante acreditava que havia quatro significados em cada trecho.
Tudo deve ser lido e interpretado. Por exemplo, se se fala de luz, a luz é, para
ele, uma metáfora, símbolo evidente da verdade. O cavalo representa a
inteligência, pelo fato de o cavalo nos levar de um lugar a outro. Swedenborg,
portanto, nos apresenta todo um sistema de correlações. Nisto ele se parece
muito com os cabalistas.
Depois ele chegou à idéia de que tudo no mundo está baseado em correlações:
a criação é uma escrita secreta, uma criptografia que devemos interpretar;
todas as coisas são realmente palavras, exceto as que não podemos entender e
que aceitamos literalmente.
Eu me lembro daquela terrível frase de Carlyle, que leu Swedenborg, não sem
certo proveito: “A história universal é algo que temos que ler e escrever
permanentemente”. E é verdade. Estamos continuamente presenciando a
história universal na condição de seus atores. E somos também letras e
símbolos: “Um texto divino no qual somos registrados”. Tenho, em casa, um
dicionário de correlações. Nele uma pessoa pode procurar qualquer palavra da
Bíblia e descobrir qual o dignificado espiritual que lhe foi dado por
Swedenborg.
Ele, então, acreditou sobretudo na salvação pelo trabalho. Na salvação pelo
trabalho não apenas do espírito, mas também da mente. Na salvação pela
inteligência. O céu, para ele, é, antes de tudo, um céu de grandes
considerações teológicas. Os anjos, principalmente, conversam. Mas o céu
está igualmente pleno de amor. Admite-se o casamento no céu. Admite-se
tudo que existe de sensual neste mundo. Ele não deseja negar nem empobrecer
nada.
Atualmente há uma igreja swedenborgiana. Creio que em algum lugar dos
Estados Unidos há uma catedral de cristal. E há alguns milhares de discípulos
nos Estados Unidos, na Inglaterra – sobretudo em Manchester – na Suécia e
na Alemanha. Sei que o pai de William e Henry James era swedenborgiano.
Encontrei swedenborgianos nos Estados Unidos, onde há uma sociedade
publicando seus livros, traduzindo-os para o inglês.
É curioso que a obra de Swedenborg, embora tenha sido traduzida em vários
idiomas – inclusive o hindu e o japonês – não haja exercido maior influência.
Não se conseguiu chegar a essa renovação que ele desejava. Ele pensava em
fundar uma nova Igreja, que seria, para o Cristianismo, o que a igreja
protestante representou para a igreja de Roma.
Ele desacreditava, em parte, das duas. Não exerceu, porém, a grande
influência que deveria ter exercido. Creio que tudo isso faz parte do destino
escandinavo, no qual parece que todas as coisas sucederam como em um
sonho, em uma bola de cristal. Por exemplo, os vikings descobrem a América
vários séculos antes de Colombo, e nada acontece. A arte do conto é inventada
na Islândia, com a saga, mas essa invenção não se difunde. Há figuras que
deveriam ter importância mundial – a de Carlos XII, por exemplo – mas, no
caso, estamos pensando em outros conquistadores cujos feitos militares talvez
tenham sido menos importantes que os de Carlos XII. O pensamento de
Swedenborg deveria ter sido capaz de renovar a Igreja em todas as partes do
mundo, mas ele faz parte desse destino escandinavo, que é como um sonho.
Sei que na Biblioteca Nacional há um exemplar de Do céu, do inferno e suas
maravilhas. Mas, em algumas livrarias teosóficas não há obras de
Swedenborg. Entretanto, trata-se de um místico muito mais complexo do que
os outros; estes só nos disseram haver experimentado o êxtase, e trataram de
transmitir o êxtase de um modo até literário. Swedenborg é o primeiro
explorador do outro mundo, o explorador que devemos levar a sério.
No caso de Dante, que também nos oferece uma descrição do Inferno, do
Purgatório e do Paraíso, entendemos tratar-se de ficção literária. Não se pode
acreditar, realmente, que todo o seu relato se baseie em uma vivência pessoal.
Além do mais, lá está o verso, que o restringe: ele não pôde experimentar o
verso.
No caso de Swedenborg, é enorme sua obra. Há livros como A religião cristã
na Providência Divina e, sobretudo, esse que eu recomendo a todos vocês e
que fala do céu e do inferno. Esse livro foi traduzido para o latim, para o
inglês, para o alemão, para o francês e, creio, também para o espanhol. Nele a
doutrina é descrita com grande lucidez. É absurdo pensar que um louco a
escreveu. Um louco não teria podido escrever com tal clareza[17]. Ademais, a
vida de Swedenborg mudou, no sentido de que ele deixou de lado todos os
seus livros científicos. Ele acreditou que os estudos científicos haviam sido
uma preparação divina para que ele pudesse enfrentar as outras obras.
Dedicou-se a visitar os céus e os infernos, a conversar com os anjos e com
Jesus, para, depois, nos contar tudo isso através de uma prosa serena, de uma
prosa antes de mais nada lúcida, sem metáforas nem exageros. Há muitas
anedotas memoráveis, como a que lhes contei acerca do homem que quer
merecer o céu, mas que só tem direito ao deserto, por haver empobrecido sua
vida. Swedenborg nos convida a nos salvarmos mediante uma vida mais rica.
A nos salvarmos por meio da justiça, por meio da virtude e também da
inteligência.
Temos, depois, Blake, que acrescenta que o homem também deve ser um
artista para salvar-se. Quer dizer, tem-se aí uma quádrupla salvação: temos
que nos salvar pela bondade, pela justiça, pela inteligência abstrata e,
finalmente, pelo exercício da arte.
_____
Transcrição de uma das palestras proferidas por Jorge Luis Borges, na Universidade de
Belgrano, em 8 de Junho de 1978.
(Jorge Luis Borges: Cinco visões pessoais. EdUnB, Brasília-DF, 1987.)
Notas de Yuri V. Santos:
[1] Descartes acreditava que o espírito se unia ao corpo por intermédio da
glândula pineal. Para mais detalhes veja o livro no qual Descartes discorre
sobre tal teoria: Les passions de l’ame. [voltar]
[2] Resulta incrível, dada a atenção que Borges aplica à obra de Swedenborg,
verificar que ele mesmo não acreditava numa “imortalidade pessoal”: “Para
concluir”, afirma Borges em uma de suas palestras, “quero dizer que acredito
na imortalidade. Não na imortalidade pessoal, mas, sim, na cósmica.
Permaneceremos imortais. Após nossa morte física, fica nossa memória e,
depois de nossa memória, permanecem nossos atos, nossas realizações, nossas
atitudes, toda essa maravilhosa parte da história universal, mesmo que não o
saibamos — e é melhor que não o saibamos”. Esse tipo de imortalidade —
bastante insatisfatória, na minha opinião — é o que Ernest Becker, no livro A
Negação da Morte, chama de causa sui, uma “ilusão criadora” elaborada pelo
sujeito incapaz de crer no dom da imortalidade pessoal revelado por várias
religiões. E, se é necessário criar ou descobrir um “sentido da vida” para si
mesmo — como defendeu por sua vez Viktor Frankl –, torna-se inútil viver
num mundo onde indivíduos e grupos sejam incapazes de compartilhar um
sentido universal, uma “ilusão criadora” que a todos englobe. Seria, neste
caso, o mesmo que incentivar uma esquizofrenia coletiva, uma completa
desarticulação social. Acredito que o problema vem do fato de que Intellectus
naturaliter desiderat esse semper — “a mente espontaneamente deseja ser
eterna, ser para sempre” –, como bem escreveu Santo Tomás de Aquino,
citado pelo próprio Borges, o que faz com que busquemos nos identificar com
o que quer que seja — uma obra de arte, uma descoberta científica, um filho,
uma empresa, um sobrenome — com a esperança de permanecermos, de não
nos extinguirmos completamente. Essa identificação primária seria uma
operação inócua se não ocultássemos, no mais baixo porão da nossa
consciência, o medo da morte, o medo da falta de sentido, do qual nem o
próprio Freud conseguiu desvencilhar-se. Para o famoso psicanalista toda
pessoa normal seria um “neurótico controlado”, uma espécie de, digamos,
“doente assumido e conformado”, sem qualquer esperança de redenção e
transcendência. Jung cita alguns casos em que seu mestre, confrontado com
situações que lhe lembravam a finitude da vida (ou a não aceitação póstuma
de sua obra, o que dá no mesmo), e sem resistir ao impacto de tal experiência,
desmaiou diante de seus olhos. A imortalidade de Freud consistia tão somente
em sua descoberta do “princípio do prazer”, da “cena primária”, do
“complexo de Édipo” e assim por diante. O resto, para ele, era conversa pra
boi dormir, viagem de supersticiosos e ocultistas. Mas Ernest Becker nos
mostra, fundamentado principalmente em Kierkegaard e Otto Rank, como a
completa sanidade só é possível para o indivíduo que percebe não apenas a
realidade de suas limitações — biológicas, físicas, racionais — mas também
que a vida humana, sem um “heroísmo cósmico”, ou seja, sem um
fundamento transcendente (ainda que improvável) que a justifique e
impulsione é totalmente estéril, isto é, suicida. Sim, Borges assume suas
limitações estoicamente — como Freud o fez — e também deposita suas
esperanças de imortalidade numa “História Universal” transcendente ao
indivíduo. Mas… quando estou aqui e o livro que escrevi está numa
biblioteca, ou na mente de algum leitor, não tenho consciência disso, nada
sinto, não há qualquer feedback instantâneo. Viver seja na mente alheia, seja
num amontoado qualquer de papéis é viver como um vírus biológico ou
informático, é pura simulação de vida. Mesmo que eu me engane por anos e
anos com essa ilusão auto-mistificatória, o medo da finitude, o medo da morte
permanecerá oculto em alguma camada da minha mente, causando-me
conflitos, neuroses, dores. Se assumir tal estoicismo existencial é, por um
lado, pura demonstração de honestidade intelectual e científica, por outro, não
é senão demonstrar a mais pura incapacidade de, como disse Jesus, crer como
uma criança, de ter esperança inocentemente. O fenômeno da transferência —
ou seja, das relações de dependência afetiva como as que ocorrem entre pais e
filhos ou entre terapeuta e paciente — é humanamente universal. Todo
indivíduo necessita transferir sua fome de afeto, de estabilidade emocional e
psíquica para algo além e acima dele, seja este algo uma ideologia, um
governante, um partido, uma família, uma instituição, um cônjuge, uma
ciência, enfim, qualquer coisa que prometa sobreviver a ele próprio. E é assim
que muita gente quebra a cara: deposita sua mais profunda esperança, sua
mais sincera devoção, a algo tão temporal — logo, mortal — quanto ela
mesma. Pare e assuma: há um chão invisível sobre o qual se assenta sua vida,
por mais que você tente negar tal fato. E se é impossível fugir dessa
necessidade, por que não canalizarmos nossas energias para a mais alta e
universalizante das “ilusões criadoras”, para Deus? Sim, disse ilusão, mas não
creio nisto. Para mim, a possibilidade de que ocorra um feedback divino – ou
seja, a Revelação, a Graça, a Iluminação, o Samadhi – é diretamente
proporcional à abertura de nossa consciência, a qual se reflete claramente
numa maturidade sadia e numa tranqüila esperança. Se por um lado é sensato
— ao não misturarmos nossos desejos com nossa razão — mantermos nossa
integridade de caráter e nossa honestidade intelectual, por outro acho
totalmente obtuso acreditar que tal atitude vá contra o que chamo de
“transferência original“, ou seja, depositar a essência do sentido que criamos
para nossas vidas terrestres num sentido maior e total: o eterno caminhar de
nossas personalidades individuais em direção à Perfeição e Amor Divinos.
[voltar]
[3] Ninguém ignora a quantidade de filmes que usam e abusam dessa idéia.
(Eu mesmo estou com um roteiro a caminho.) Temos Ghost, Sexto-sentido, Os
outros e assim por diante. Mas, sem dúvida, o melhor de todos é Uma simples
formalidade, dirigido por Giuseppe Tornatore, tendo como atores principais
Gérard Depardieu e Roman Polanski, o próprio. Vá locar este filme AGORA!!
[voltar]
[4] É exatamente neste detalhe que reside a diferença fundamental entre
“sonho lúcido” – quando você apenas sabe que está sonhando – e “projeção
ou desdobramento astral”. Neste último, nossas percepções são muito mais
intensas do que no estado de vigília. Há ainda a clara sensação de que, mesmo
em ambientes não iluminados, os objetos possuem luz própria. Afirma
Swedenborg: “A diferença desses sentidos externos é como a diferença entre a
claridade comparada com a escuridão de uma nuvem no mundo, e como a luz
do meio dia com a sombra da tarde” (O céu e o inferno, parágrafo 462).
[voltar]
[5] Numa projeção espontânea que tive no começo deste ano (2002), eu me vi
num local que se parecia um teatro de estilo neoclássico, todo decorado com
cortinas e tapetes roxos. Isto mais a luz negra, que parecia iluminar aquela
penumbra, davam, em conjunto, um tom sinistro ao ambiente. Andando pelas
galerias, cheguei a uma espécie de camarote e, de lá de cima, pude ver que
não havia poltronas e um palco, mas sim diversos sofás, namoradeiras e camas
redondas – como no lounge de um desses clubs de hoje – cheios de grupos
e/ou casais trocando carícias ou, simplesmente, transando. Muitos estavam
vestidos no estilo sadô-masô, muitas mulheres nuas andavam por ali. A cena
me deixou excitado e tratei de, digamos, me dar bem. Tentei conversar com
algumas garotas solitárias, mas todas me responderam num tipo de língua
nórdica qualquer que não pude identificar. Acho que, por não estar a caráter e
por falar feito um cucaratcha, pensaram que eu fosse um babão e me
ignoraram. Quando eu já estava pensando em aderir ao esquema – ninguém se
preocupava com palavras, apenas agiam – alguém botou a mão no meu
ombro. Olhei pro cara e, quando já pensava estar sendo assediado por um
homossexual, ouvi suas palavras dentro da minha cabeça: “É melhor você sair
daqui…”, e senti um tipo de choque indolor que me fez voltar ao corpo
instantaneamente. [voltar]
[6] Taí um detalhe aparentemente contraditório: se o cara está morto, ¿por que
ainda recebe a visita dos amigos? ¿Seriam amigos que já morreram? Acredito
que não, caso contrário seria um meio de o figura perceber seu novo estado.
Mas então…? Bom, os espíritas dizem que, quando uma pessoa morre, ela
mais cedo ou mais tarde acaba recebendo a visita de parentes e amigos ainda
“encarnados”, os quais, aliás, estão em processo de “desdobramento astral”
semiconsciente. Ou seja, eles se encontram num estado tão desperto, tão
absolutamente normal, que não param pra analisar o que ocorre, não tentando,
assim, fazer uma recapitulação de seus passos para descobrir como chegou até
ali. Na verdade, a maior parte das pessoas tem esse tipo de experiência
noturna, mas não está preparada para fazer um, digamos, download da
memória do paracérebro (cérebro do corpo sutil) para o cérebro e, por sua
vez, um upload da memória do cérebro para o paracérebro. Logo, quando
acordadas, não fazem idéia do que se passou à noite. Quando fora do corpo,
não têm completo acesso ao que ocorreu durante o dia e, por isso, mal e mal
se lembram de que aquele seu amigo ou parente ali adiante já passou desta pra
melhor. A farsa da não-morte é, portanto, mantida.[voltar]
[7] Claro que tal maneira de rotular aos homens de bom e de mau caráter não
anula, por exemplo, a possível existência dos anjos (gr. Aggelos, mensageiro;
lat. Angelu). A crença nos anjos – ou seja, num ser superior à natureza
humana – está presente não só no Antigo e Novo Testamento, mas também
nas teorias religiosas da Índia, China, Egito e Pérsia. O próprio Maomé teria
feito viagem semelhante à de Swedenborg, séculos antes, guiado por ninguém
menos que o próprio anjo Gabriel. Há uma classificação, que remonta aos
primeiros séculos da era cristã, dividindo os anjos em três hierarquias,
distribuídas cada qual em três coros: 1.º serafins, querubins e tronos;
2.º dominações, virtudes e poderes; 3.º principados, arcanjos e anjos. Os
anjos das trevas seriam os anjos caídos, precipitados no abismo após sua
revolta contra a misericórdia divina. Já o Livro de Urântia (www.urantia.org)
– que se apresenta como uma Revelação de época (1925-1935) mas que pode
ser fruto de uma sociedade secreta – traz toda uma descrição dos mais
diversos seres espirituais, em sua maioria invisíveis aos mortais e
aos moronciais, sendo estes últimos os próprios humanos em seu estado pós-
morte, intermediário entre a matéria e o espírito puro. Nós, no esquema da
Criação Divina, seríamos seres evolucionários do tempo-espaço ou, mais
simplesmente, seres ascendentes, peregrinos do tempo, e os anjos, por sua
vez, seriam, quando num dos universos espaço-temporais, seres
descendentes – e uns e outros serviriam à Criação segundo sua natureza. Com
relação aos supostos demônios, o Livro de Urântia apenas se refere a uma
certa Rebelião de Lúcifer, o qual teria apresentado, numa célebre assembléia –
impossível, eu diria, de se imaginar – uma Declaração de Liberdade,
reivindicando, assim, poder total sobre o Sistema de Mundos que governava,
sem a necessidade de prestar contas às normas de seu superior, Miguel de
Nebadon (Jesus Cristo). Para evitar que a rebelião propagasse para outros
sistemas, Gabriel fez, em termos logísticos, o que Lúcifer reivindicava:
desconectou seu Sistema de Mundos do resto do Universo Local (Nebadon),
deixando-o sem ter como manter as comunicações e o transporte entre os
vários mundos habitados. (Na minha cabeça, eu o imagino dizendo: “Quer
ficar livre de nós? Então tá…”, e puxou a tomada.) Pois bem, os seres que
aderiram a essa infame rebelião seriam os tais anjos caídos. (Aliás, foi
baseado no Livro de Urântia que Benítez escreveu a Rebelião de Lúcifer,
tendo sido inclusive acusado de plágio na Espanha. Ora, se ele acreditar no
livro enquanto revelação e, portanto, enquanto texto sagrado, onde está o
plágio? Quando Thomas Man escreveu José e seus irmãos, estaria plagiando
o Antigo Testamento?) Swedenborg, portanto, desconhecendo toda essa
hipotética história, que só poderia ser conhecida por Revelação mas não como
evidência direta, teria ficado satisfeito com apenas visitar os humanos em seu
novo estado intermediário, não importando aí o quão evoluídos estivessem:
para ele ou eram anjos ou eram demônios.[voltar]
[8] O incrível Livro de Urântia acrescenta mais um interessante detalhe a essa
questão do livre-arbítrio, o qual, não sendo eu lá muito erudito, não sei
quantas vezes foi já defendido com essas quase platônicas palavras: só ganha
a vida eterna quem escolhe o bem, ou seja, só mantém viva sua personalidade
aquele que decidiu, por livre e espontânea vontade, aproximar suas decisões
morais da perfeição divina. Diz oLivro de Urântia, no capítulo 111:
“A evolução material te proveu com uma máquina vital, teu corpo; o Pai
mesmo te dotou da realidade espiritual mais pura conhecida no universo,
teu Ajustador de Pensamento ou Monitor Misterioso. Mas em tuas mãos,
sujeita a teu livre-arbítrio, te deu a mente, e é pela mente que viverás ou
morrerás. É dentro da mente e com a mente que tomas essas decisões morais
que te permitem alcançar semelhança com o Monitor, que é semelhança com
Deus. A mente mortal é um sistema temporal de intelecto emprestado aos
seres humanos para uso durante uma vida material, e segundo usem esta
mente, estarão ou aceitando ou rejeitando o potencial da existência eterna. A
mente é praticamente tudo o que tens de realidade universal, e está sujeita à
tua vontade, e a alma -o eu moroncial -ilustrará fielmente a colheita das
decisões temporais que faz o eu mortal. “
Aqui poderíamos indagar: se só adquire a vida eterna quem busca o bem, ¿por
que algumas pessoas sobrevivem à morte material, segundo Swedenborg,
permanecendo no inferno? Pelo raciocínio acima, acho que a conclusão mais
plausível seria: se há um “potencial de vida eterna”, há também níveis de
atualização desse potencial. Isto é, quanto mais alto o nível de “decisões
morais benéficas” atualizadas, mais próximos estaremos de Deus após a morte
material. Você teve uma única atitude benéfica em vida? Então continuará
vivo após a morte física no mais baixo dos infernos. Mas não se preocupe:
creio que sempre haverá tempo de se preocupar com seus semelhantes e entrar
no esquema de “amar ao próximo como a ti mesmo”, para tanto, seu livre-
arbítrio permanecerá intacto. Segundo o próprio Swedenborg (O céu e o
inferno, parágrafo 480): “O homem, depois da morte, permanece na
eternidade tal qual ele é quanto à sua vontade ou ao seu amor reinante”. E isto,
segundo ele, quer dizer: ao morrer, o homem natural – aquele que segue ou
não uma certa moral por motivos puramente superficiais
ou externos (temporais) – irá ter com seus semelhantes, ou seja, com aqueles
que levaram uma vida sem significado espiritual, sem a perspectiva da
eternidade; enquanto que o homem interior, por mais que sua conduta tenha
sido semelhante ao comportamento moral do homem natural, irá presenciar a
atualização de suas motivações mais íntimas, irá ter com o resultado de uma
vida fundada em alicerces espirituais, eternos. Porque, após a morte, o homem
torna-se completamente o seu próprio interior, seja este oco, seja este pleno.
[voltar]
[9] Juro que antes de escrever um dos capítulos do meu livro Eu odeio
terráqueos! (ainda inacabado), não me lembrava de forma alguma desse
detalhe, citado por Borges, de as cidades infernais parecerem incendiadas. Eu
me baseei, para usar tal descrição, num sonho lúcido que tive, o qual
transcorreu exatamente como no relato, incluindo o homem com asas
mecânicas, o abismo (fenda!) dentro de uma loja, a reunião social, etc. Claro
que semelhante cidade infernal não é desconhecida dos espíritas e de certos
jogos de RPG (Ravenloft, Trevas, etc.). Tal lugar se chama Metrópolis, e é
como uma cidade de São Paulo pós-apocalíptica cobrindo todo um mundo.
(Por favor, não pense que só tive experiências astrais infernais…)[voltar]
[10] Neste ponto percebemos como o inferno é mais uma situação –
condicionada por estados mentais – do que um lugar. Assim, podemos ficar
seguros de que, em muitos lugares deste planeta físico, é possível encontrar o
próprio inferno. Mas tanto neste quanto no anterior – no inferno pós-morte –
há um porém: não é verdade que os seres que nele se encontram estão felizes.
Eles podem ficar temporariamente satisfeitos – com prazeres, com o poder –
mas jamais experimentarão uma paz de espírito duradoura. Grande parte
permanece ali enquanto vítima raivosa à espera do momento da vingança.
Muitos são inimigos apenas de si mesmos, seja por culpa, remorso ou
ressentimento. Em suma, Swedenborg tem toda a razão: cada qual condena a
si mesmo. “O todo da vontade e do amor do homem permanece nele depois da
morte; aquele que quer e ama um mal no mundo, quer e ama o mesmo mal na
outra vida; ele não tolera então que se separe dele. Daí vem que o homem que
está no mal está ligado ao inferno e também está realmente quanto ao seu
espírito no inferno; e depois da morte não deseja outra coisa senão estar onde
está seu mal. Por isso, é o homem que, depois da morte, se precipita no
inferno por si mesmo e não o Senhor que o precipita” (O céu e o inferno,
parágrafo 547).[voltar]
[11] Eu, particularmente, não creio que as coisas sejam assim. Não me parece
que a Criação necessite de um inferno para poder contrabalançar a existência
dos “céus”. A troco de quê seria assim? Prefiro a doutrina do Livro de
Urântia, quando afirma que apenas nas regiões supra-universais onde ocorrem
rebeliões – como a de Lúcifer – existem mundos em conflito por tempo
indeterminado. Nos demais, as raças e povos evolucionários parariam
paulatinamente com semelhante confusão e belicismo, conforme fossem
recebendo as distintas Revelações de época: 1.º a chegada do “Príncipe
Planetário” e de seu séqüito de educadores; 2.º a chegada dos representantes
da “raça violeta”, ou seja, do casal adâmico; 3.º a efusão de um Filho
Magisterial (um missionário Melquisedek); 4.º a efusão de um Filho Auto-
outorgado e, finalmente, 5.º a chegada de um Filho Instrutor. Após estas fases,
o planeta entraria numa etapa chamada Era de Luz e Vida, máxima expressão
evolutiva dos mundos espaço-temporais. Ainda segundo o Livro, nossa
evolução planetária teria sido interrompida ainda na primeira fase, uma vez
que não só o Príncipe Planetário mas também metade de seu séqüito aderiram
à rebelião luciferina, ocasionando assim nossa quarentena planetária. Aliás, as
diversas lendas e mitos politeístas dos povos antigos teriam origem no
Príncipe e em seu séqüito de cem imortais, todos, com exceção do Príncipe,
antigos mortais evolucionários de outros planetas, os quais se alistaram
voluntariamente em semelhante aventura. Agora – concluindo – se Deus é
perfeito, ¿por que tais rebeliões ocorreriam? Ora, em primeiro lugar haveria
um Universo Central ou Modelo, no qual a rebelião seria impossível, uma vez
que ali reina a perfeição espiritual completa. Tal universo, diz-se,
existiria desde sempre. Já nos universos evolutivos a imperfeição parcial dos
mundos e seres poderia levar, graças ao livre-arbítrio, a decisões e atitudes
equívocas por parte de seus governantes. E, no entanto, nada disso poderia
surpreender ou enfurecer a Deus. Muito pelo contrário: o Livro tem um
capítulo dedicado às vantagens que as rebeliões podem trazer a um mundo
evolucionário. Os peregrinos do tempo terrestres, ou humanos evolucionários
da Terra, ao atingirem determinados mundos espirituais, são reconhecidos
como possuidores de fé e vontade inabaláveis, uma vez que, ao contrário de
outros povos, não viram mas creram. O que me lembra G. K. Chesterton:
“Amar significa amar o que é difícil de ser amado, do contrário não será
virtude alguma; Perdoar significa perdoar o imperdoável, do contrário não
será virtude alguma; Fé significa crer no incrível, do contrário não será virtude
alguma. E esperar significa esperar quando as coisas são sem esperança, do
contrário não será virtude alguma”.[voltar]
[12] Claro, na época de Swedenborg – séculos XVII e XVIII – os infernos ao
sul deveriam realmente ser mais tranqüilos, se considerarmos que, nestas
regiões da própria Terra, havia principalmente povos aborígines dispersos por
um grande território. (Atenção, não quero com isto dizer que esses povos eram
mais pacíficos, longe de mim afirmar tal coisa. Mas creio que a maioria dos
conflitos que enfrentavam decorria de disputas territoriais e por questões de
sobrevivência material, coisas totalmente vãs num mundo pós-morte física.
No entanto, é óbvio que aqueles que interiorizassem tais conflitos “cairiam”
para planos mais infernais, principalmente os embriagados pela vontade de
poder.) Aos que não conseguirem entender o que tem a ver o sul da Terra,
enquanto planeta físico, com o sul do inferno, atentem para o seguinte: é
possível que o verdadeiro planeta Terra seja constituído por uma série de
camadas dimensionais, ou esferas concêntricas, feito as camadas de uma
cebola ou os orbitais de um átomo. Assim, da mesma forma que um elétron,
ao obter energia absorvendo fótons de luz, dá um salto quântico, passando
para uma camada mais externa, uma pessoa, dependendo de seu “potencial de
existência eterna” atualizado por suas decisões morais benéficas, saltaria
quanticamente para seu respectivo “orbital pós-morte”. Caso não tenha
acumulado luz suficiente – isto é apenas uma analogia, não uma teoria – iria
para um orbital mais interior, mais próximo do centro da Terra, mais, enfim,
infernal. Tal tese concordaria ao menos com o Princípio da Correspondência
do hermetismo: “O que está acima é como o que está abaixo”. Contudo, devo
dizer que Swedenborg trata o assunto de forma totalmente distinta. Para ele,
não há uma correspondência geográfica entre as regiões da Terra e as regiões
do céu: “Nos céus”, escreve ele, “todos habitam distintamente segundo as
plagas (pontos cardeais). No oriente e no ocidente habitam os que estão no
bem do amor; no oriente os que têm uma percepção clara desse bem, no
ocidente os que têm dele uma percepção obscura. No sul e no norte habitam
os que estão na sabedoria desse bem; no sul os que estão na luz clara da
sabedoria, no norte os que estão em uma luz obscura da sabedoria” (O céu e o
inferno, parágrafo 148).[voltar]
[13] O Livro de Urântia afirma que a vida pós-morte é divida em partes iguais
de diversão e trabalho (serviço). E trabalho aqui pode, também, ser entendido
como estudo e criação artística. Trabalhar pelo quê? Pelo estabelecimento
de Luz e Vida em todo o Grande Universo. Já Swedenborg, além de discorrer
sobre os prazeres pós-morte, afirma que “as funções nos céus não podem ser
enumeradas nem descritas em particular, (…) porque elas são inúmeras. (…)
Há nos céus, como nas terras, um grande número de administrações, porque
há negócios eclesiásticos, civis e domésticos” (O céu e o inferno, parágrafos
387 e 388).[voltar]
[14] Isto também não é beeem assim. Não devemos, na minha opinião,
imaginar que nas esferas superiores só haja lugar para discussões entre
acadêmicos e eruditos, cientistas geniais e filósofos, inventores e engenheiros
do ITA. Se fizermos isso acabaremos preferindo as gostosas e os marombas
do inferno, não é não? Para mim, esses seres são inteligentes na medida em
que suas mentes correspondam mais harmonicamente aos ditames do espírito.
Conheço dezenas de pessoas, de origem humilde ou não, muito mais sábias –
segundo esse modo de analisarmos a questão – do que qualquer nerd de
laboratório. Inteligência, para mim, é amar e estar atento para que se possa
responder, da melhor maneira possível, ao desafio que a vida é. O próprio
Swedenborg, diferentemente do que diz Borges, afirma nos parágrafos 351 e
352 de “O céu e o Inferno“: “No mundo, crê-se que os que sabem muito, tanto
no que diz respeito às doutrinas da igreja, como à Palavra ou às ciências, vêem
as verdades mais profundamente e com mais penetração do que os outros, e
que assim eles têm mais inteligência e sabedoria; e tais indivíduos têm de si
próprios semelhante opinião. Mas vai-se dizer agora, no que segue, o que é a
verdadeira inteligência e a verdadeira sabedoria, o que é a inteligência
bastarda e a sabedoria bastarda, e o que é a falsa inteligência e a falsa
sabedoria. A verdadeira inteligência e a verdadeira sabedoria consistem em
ver e perceber o que é a verdade e o bem, e, por conseguinte, o que é o falso e
o mal, e em fazer entre eles uma justa distinção, e isto segundo uma intuição e
uma percepção interiores. (…) A inteligência bastarda e a sabedoria bastarda
consistem em não ver e em não perceber pelo interior o que é a verdade e o
bem, nem por conseguinte o que é o falso e o mal, mas somente em crer que o
que é dito por outros é a verdade e o bem, ou o falso e o mal, e depois
confirmá-lo. Como esses vêem a verdade não segundo a verdade, mas
segundo outrem, eles podem aprender e crer o falso como também a verdade,
e até confirmá-lo ao ponto que ele apareça como verdade; porque tudo o que é
confirmado se reveste de uma aparência de verdade, e nada há que não possa
ser confirmado”.[voltar]
[15] Segundo o Livro de Urântia, Jesus pertenceria a uma classe de seres
chamada Filhos Criadores, os quais existiriam em número aproximado de
700.000, sendo 100.000 para cada Supra-universo espaço-temporal e um para
cada Universo Local. Cada Filho Criador, então, teria a tarefa de criar seu
próprio universo, inspirando-se, para tanto, no Universo
Central ou Modelo (Havona). Neste sentido, não seria errôneo dizer que Jesus
– ou Michael de Nebadon (Miguel) – atuaria como um verdadeiro artista, uma
vez que sua Criação manifestaria seus próprios traços e personalidade. Tal
processo criador ocorreria com o auxílio do Espírito Materno do Universo,
sua Consorte e Ministra Divina, que teria origem no Espírito Infinito (Santo),
a Terceira Fonte e Centro.[voltar]
[16] Quem nunca conheceu pessoas que, aparentemente, falam sozinhas? Não
me refiro ao mero descontrole da língua, mas àquelas pessoas que vêem seres
invisíveis, ou que os ouve, e conversa com eles. São mais comuns do que se
imagina. E a grande diferença entre as que enlouquecem e as que convivem
bem com isso está na adequação ou não de tal experiência à sua visão de
mundo.[voltar]
[17] Minha concepção pessoal de loucura tem tudo a ver com os dois pilares
da Cibernética: comunicação e controle. Para mim, uma pessoa atinge
um estado de loucura, não simplesmente quando passa a ter um
comportamento evidentemente absurdo ou violento, ou quando tem
percepções sensíveis anormais (tais como ouvir vozes), mas quando perde
o controle de si mesmo, de suas reações ao mundo e, enfim, de sua
consciência – o que é o mesmo que dizer: perde o contato – ou comunicação –
com a Realidade da Criação. (Nesse sentido, 50% da população mundial é
completamente destrambelhada.) E, como já disse em nota anterior, em geral
– descontando certas causas genéticas ou acidentes fisiológicos – o único fator
responsável por fazer alguém “perder o controle de si” está no hiato entre suas
experiências e (a adequação destas com) sua visão de mundo. O não
entendimento de um processo pelo qual se passa pode levar a uma grande
variedade de reações patológicas. [voltar]
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