o novo horizonte da metafísica platônica: as formas no...
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
Joo Vitor Resina Nunes de Melo
O novo horizonte da Metafsica Platnica:
As Formas no Parmnides
So Paulo
2018
Joo Vitor Resina Nunes de Melo
O novo horizonte da Metafsica Platnica:
As Formas no Parmnides
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Filosofia do Departamento de
Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias
Humanas da Universidade de So Paulo, para
obteno do ttulo de Mestre em Filosofia sob a
orientao do Prof. Dr. Evan Robert Keeling.
So Paulo
2018
Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meioconvencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogao na PublicaoServio de Biblioteca e Documentao
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo
M528nMelo, Joo Vitor Resina Nunes de O novo horizonte da Metafsica Platnica: as Formasno Parmnides / Joo Vitor Resina Nunes de Melo ;orientador Evan Robert Keeling. - So Paulo, 2018. 130 f.
Dissertao (Mestrado)- Faculdade de Filosofia,Letras e Cincias Humanas da Universidade de SoPaulo. Departamento de Filosofia. rea deconcentrao: Filosofia.
1. Plato. 2. Parmnides. 3. Metafsica. 4.crticas. 5. Formas. I. Keeling, Evan Robert, orient.II. Ttulo.
Folha de Aprovao
RESINA, J.V. O novo horizonte da Metafsica Platnica: as Formas no Parmnides. 2018.
Dissertao (Mestrado) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Departamento
de Filosofia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2018.
_____________________________________
Prof. Dr. Fernando Dcio Porto Muniz
_____________________________________
Prof. Dr. Luca Jean Pitteloud
_____________________________________
Prof. Dr. Evan Robert Keeling
Agradecimentos
Aos amigos pelo apoio e auxlio nos vrios mbitos que cercaram a pesquisa e elaborao do
presente trabalho. Agradeo em especial aos queridos amigos Fernando Muniz, Pablo
Harduin, Luiz Eduardo Freitas e Antnio Kerstenetzky; e aos novos amigos Nathlia
Carneiro, Daniel Carneiro, Joo Vitor Alencar, Marcos Tadeu, Clarisse Lyra e Victor Lima
Fernandes.
minha me, Aurea Cristina Resina Nunes, pelo suporte e amor incondicional; minha
noiva Iramar Santos Souza Demarchi pelo companheirismo e pelo apoio, e aos meus sogros
Marcos Demarchi e Cristiane Demarchi pelo incentivo. Em tempo, agradeo tambm minha
cunhada, Irielen Demarchi, pela ajuda nos momentos de necessidade.
Ao meu orientador, Evan Robert Keeling, pela enorme prestatividade e pacincia com o
andamento do trabalho, e pela confiana nos desdobramentos desta pesquisa; aos professores
Luca Pitteloud, Fernando Muniz e Roberto Bolzani por aceitarem participar das bancas de
qualificao e de defesa.
Agradeo CAPES e Universidade de So Paulo (USP) por proporcionarem as condies
necessrias para o prosseguimento desta pesquisa.
RESUMO
RESINA, J.V. O novo horizonte da Metafsica Platnica: as Formas no Parmnides. 2018.
Dissertao (Mestrado) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Departamento
de Filosofia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2018.
A datao cronolgica do Parmnides aliada s crticas contidas na primeira parte do dilogo
parece compor um dilema exemplificado pelas leituras de Owen e Cherniss: se as crticas no
so relevantes para a doutrina das Formas, por que apresent-las da maneira aportica, como
nos so apresentadas no Parmnides? Se por outro lado, as crticas so relevantes e afetam a
doutrina Platnica, como devemos interpretar os dilogos posteriores ao Parmnides, sobretudo
o Timeu, que apresenta uma doutrina semelhante quela de dilogos como a Repblica?
O presente trabalho tem como objeto de estudo a doutrina das Formas de Plato no dilogo
Parmnides, e sua relao com a doutrina das Formas presente nos dilogos da maturidade.
Tendo em vista o dilema interpretativo representado pelo Parmnides, nosso trabalho pretende
investigar e analisar os argumentos da primeira parte do dilogo, e mostrar que a doutrina
atacada , de fato, muito semelhante quela apresentada pelos dilogos da fase madura do
pensamento Platnico, como Banquete, Fdon e Repblica.
Palavras-chave: Plato, Parmnides, Metafsica, crticas, Formas
ABSTRACT
The New Horizon of Platonic Metaphysics: The Forms in the Parmenides. 2018. Thesis
(Master Degree) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Departamento de
Filosofia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2018.
The chronological dating of the Parmenides, when combined with the critique present in the
first part of the dialogue, seems to present a dilemma which is exemplified by Owens and
Chernisss readings: if the criticisms are not relevant to the Platonic doctrine of Forms, why
present them in such an aporetic way as we are presented in the first part of the Parmenides? If
otherwise the criticisms are indeed relevant and pose real problems for the Platonic doctrine,
how are we to interpret the dialogues that follow the Parmenides, especially the Timaeus, which
seems to present a doctrine of Forms similar to that of dialogues such as the Republic?
This thesis has as its subject the Platonic doctrine of Forms as presented in the first part of the
Parmenides, and its relation to the doctrine of Forms present in dialogues contained in the
second group of Platonic dialogues, such as Phaedo and Republic. Given the interpretive
dilemma represented by the Parmenides, this research intends to investigate and analyze the
arguments of the first part of that dialogue, and show that the doctrine under attack is, indeed,
very similar to that advanced in the middle-period dialogues, such as Symposium, Phaedo and
Republic.
Key Words: Plato, Parmenides, Metaphysics, critique, Forms
Lista de Abreviaturas
(UM) Uma sobre Muitos: para qualquer propriedade F (para a qual existe uma propriedade
oposta, con-F) e qualquer pluralidade de coisas F, existe uma Forma F-dade, de modo que
cada membro dessa pluralidade F em virtude da participao na Forma F-dade;
(EE) Ela por Ela mesma: toda Forma ela por ela mesma (auto kath hauto).
(E) Existncia: para toda propriedade F, existe uma Forma de F.
(NMQU) No Mais Que Uma: para toda propriedade F, no existe mais do que uma Forma
de F.
(UF) Unicidade da Forma: para toda propriedade F, existe exatamente uma Forma de F.
(S) Separao: toda Forma separada dos objetos que dela participam.
(NI) No-identidade: a Forma em virtude da qual os objetos so F no idntica aos objetos
que dela participam.
(NAPt) No-Auto-participao: nenhuma Forma participa de si mesma.
(CPS) Contrariedade das Propriedades Sensveis: os pares de propriedades igual-desigual,
grande-pequeno, belo-feio, justo-injusto, quente-frio, um-muitos, etc., so contrrios ou
opostos.
(PCF) Princpio de Contrariedade das Formas: se X uma Forma de F-dade, e Y uma
Forma de G-dade; e a propriedade F oposta propriedade G, ento X e Y so Formas
contrrias.
(U) Unidade: toda a Forma uma.
(IOS) Impureza dos Objetos Sensveis: para toda a propriedade F que possui uma
propriedade oposta con-F, qualquer objeto sensvel que seja F tambm con-F.
(PF) Pureza da Forma: para toda a propriedade F que possui uma propriedade oposta con-F,
a Forma de F no con-F.
(PRF) Pureza Radical da Forma: as Formas no apresentam simultaneamente (nenhum par
de) caractersticas opostas.
(ICC) Impossibilidade de Causas Contrrias: para qualquer propriedade F que admite um
contrrio (con-F), aquilo que faz com que algo seja F no pode ser con-F.
(C) Causalidade: para toda propriedade F, todas as coisas que so F so F em virtude (por
causa) da participao na Forma de F.
(S=P) Ser Participar: para toda propriedade F, participar na Forma de F necessrio e
suficiente para ser F.
(AP) Auto-predicao: para toda propriedade F, a Forma de F F.
(TT) Teoria da Transmisso: aquilo que faz com que algo seja (ou se torne) F, deve ser ele
mesmo F.
(EOC) Estabilidade dos Objetos de Conhecimento: todos os objetos de conhecimento so
estveis.
(PCH) Possibilidade do Conhecimento Humano: humanos so capazes de ter
conhecimento.
(CF) Conhecimento das Formas: humanos podem conhecer pelo menos algumas Formas.
SUMRIO
Introduo ....................................................................................................................... 1
1 Anlise do contexto interpretativo no qual se insere a presente pesquisa .............. 7
1.1 A diviso e organizao da Obra Platnica: Cronologia e Estilometria..................... 7
1.2 O Desenvolvimentismo como alternativa ao Unitarismo: A importncia do
Parmnides para uma interpretao da Metafsica Platnica ......................................... 13
1.3 O problema do Parmnides: Owen, Cherniss, e os paradoxos interpretativos
explicitados pelo lugar do Parmnides na Obra Platnica ............................................. 15
1.4 Dos pressupostos assumidos nessa pesquisa ............................................................ 18
2 Introduo doutrina das Formas .......................................................................... 21
2.1 Platonismo sem Formas ............................................................................................ 21
2.2 A doutrina clssica das Formas.............................................................................. 25
2.3 Os princpios e axiomas da doutrina clssica das Formas ..................................... 30
3 O Parmnides Primeira parte do dilogo (126a-136e) ......................................... 41
3.1 O Cenrio do Parmnides (126a-127a) .................................................................... 42
3.2 O paradoxo de Zeno (127d-128e) ........................................................................... 45
3.3 A soluo de Scrates: a doutrina das Formas (128e-130a) ..................................... 46
3.4 Os seis argumentos de Parmnides ........................................................................... 52
3.4.1 Escopo da doutrina das Formas (130a-130e) ........................................................ 57
3.4.2 Dilema da participao (130e-131e)...................................................................... 64
3.4.3 Regresso pela Grandeza (131e-132b) .................................................................... 72
3.4.4 Hiptese noemtica das Formas: as Formas como pensamentos (132b-132c) ... 86
3.4.5 Hiptese paradigmtica das Formas: o regresso pela Semelhana (132c-133a) 91
3.4.6 A maior de todas as dificuldades: separao e incognoscibilidade das Formas (133a-
135c) ............................................................................................................................. 100
3.5 O diagnstico de Parmnides (135c-136e) ............................................................. 109
3.6 Uma proposta interpretativa ................................................................................... 110
Concluso .................................................................................................................... 114
Bibliografia .................................................................................................................. 117
1
Introduo
A doutrina das Formas indubitavelmente um dos elementos de maior importncia
no pensamento Platnico: a ela esto relacionadas as doutrinas ticas, epistemolgicas, polticas
e psicolgicas de Plato o que, portanto, nos mostra como um estudo dessa doutrina
relevante para a compreenso do pensamento Platnico como um todo.
Segundo a interpretao tradicional da doutrina, as Formas (eidos, idea) seriam
objetos de conhecimento no-sensveis, cuja existncia garante e fundamenta a existncia e
propriedades dos objetos da sensibilidade. Os objetos da sensibilidade possuem uma relao
denominada em vrios dilogos como participao (metekhein, metalambanein), e
unicamente por meio dessa relao de participao que os objetos so e se tornam aquilo que
so: por participar da Forma de Beleza que os objetos so belos, e por participar da Forma de
Dois que os objetos so numericamente dois. Um ponto fundamental da doutrina , portanto, a
distino clara entre as Formas de um lado, e os objetos sensveis do outro; enquanto os objetos
sensveis apresentam propriedades opostas, estando sempre em mudana, as Formas, sendo
sempre as mesmas, no apresentam caractersticas opostas a si mesmas, e permanecem
inalteradas, independentemente do fluxo contnuo de gerao e corrupo dos objetos que delas
participam. De fato, um dos argumentos utilizados nos dilogos para a postulao da existncia
de Formas, elas por elas mesmas (auto kath hauto), aquele que diz que quando percebemos
caractersticas opostas nos objetos, nossa alma (psyche) levada a questionar o que cada uma
das caractersticas que se opem entre si, isto , ao ver objetos que se mostram ao mesmo tempo
grandes e pequenos, somos levados a questionar o que a Grandeza e o que a Pequenez,
chegando a concluso de que, sendo coisas opostas, elas no podem ser identificadas queles
objetos que apresentam ambas as propriedades necessrio distinguir o Grande ele mesmo,
e o Pequeno ele mesmo, j que eles no podem ser uma e a mesma coisa. A maneira como essa
doutrina exposta a partir das discusses presentes em alguns dos dilogos, como Fdon,
Banquete e Repblica, por exemplo.
A doutrina das Formas ocupa um lugar to central na Obra Platnica, que alguns
comentadores a utilizam como um dos critrios para dividir e classificar os dilogos de Plato
em trs grupos distintos: em primeiro lugar, as obras em que a doutrina das Formas estaria
ausente, como na Apologia, no Crton, no Hppias Maior e no Eutfron; em segundo, as obras,
como Repblica, Banquete e Fdon, que apresentariam a doutrina das Formas e outras a ela
relacionadas; e em terceiro lugar, as obras que poderiam ser lidas como crticas a elementos da
2
doutrina tal como ela apresentada no segundo grupo dilogos como Sofista, Poltico,
Teeteto, Filebo e Timeu.
Ao final do sculo XIX, uma tendncia de estudos relativos a elementos estilsticos
apresentou resultados que davam suporte a uma possvel ordem cronolgica entre os trs
grupos: ao primeiro grupo correspondendo a fase da juventude, ao segundo, a fase da
maturidade, e ao terceiro, a fase da velhice. O esboo cronolgico dos dilogos suportado pela
estilometria, aliado s caractersticas presentes nos dilogos de cada grupo parecia, ento,
sugerir uma espcie de desenvolvimento do pensamento Platnico de um socratismo
presente nos primeiros dilogos, para o Platonismo apresentado na fase da maturidade, para,
enfim, uma espcie de Platonismo revisto, onde Plato estaria lidando de uma forma mais
crtica com as doutrinas que ele mesmo teria anteriormente proposto, por ter encontrado uma
srie de dificuldades nas mesmas.
Essa diviso aponta para uma discusso em relao aos dilogos e s doutrinas
Platnicas: estaria Plato apresentando a mesma doutrina em todos os dilogos, ou poderamos
dizer que existem mudanas relevantes nas doutrinas, especialmente no que diz respeito aos
trs grupos de dilogos? A questo divide os comentadores em duas linhas de interpretao: de
um lado, a tendncia Unitarista, que compreende que todos os dilogos apresentam as mesmas
doutrinas; de outro, a tendncia Desenvolvimentista que, dentro de uma margem ampla de
interpretaes, concebe uma espcie de desenvolvimento do pensamento Platnico como um
todo, e em especial, da doutrina das Formas.
O dilogo Parmnides considerado um dos ltimos dilogos da segunda fase do
pensamento platnico. Para os comentadores e intrpretes das obras de Plato alinhados a uma
leitura desenvolvimentista, ele poderia ser localizado em um perodo de transio, marcado pela
presena simultnea de elementos caractersticos da segunda fase e elementos que anunciariam
as mudanas presentes na terceira fase. Nesse sentido, o Parmnides ocupa um lugar de
destaque por oferecer esses elementos em forma de crticas doutrina das Formas. Esse aspecto
do dilogo tambm o torna especial por ser o nico em que a doutrina das Formas discutida
diretamente, isto , como foco principal da discusso do dilogo; quando as Formas aparecem
em outros dilogos, como Fdon, Repblica, e at mesmo no Sofista, a doutrina exposta para
auxiliar a responder as questes relevantes para estes dilogos, sejam elas quais forem. Ou seja,
exatamente no nico dilogo em que a doutrina das Formas o foco da discusso, ela
apresentada sendo posta diante de crticas a aspectos de grande relevncia.
3
Gilbert Ryle (1939) aposta numa leitura que prope um abandono da doutrina das
Formas depois do Parmnides, por compreender que os argumentos da primeira parte do
dilogo oferecem crticas que expem problemas irreparveis da doutrina Platnica. Essa
leitura oferece, claramente, problemas em relao a dilogos como o Timeu, que, embora seja
classificado como um dos ltimos dilogos de Plato, apresenta uma doutrina das Formas que
parece, primeira vista, muito semelhante quela dos dilogos da maturidade. A leitura de Ryle
reabre a discusso em relao cronologia dos dilogos, para a qual a estilometria parecia ter
oferecido um consenso razovel. Gwyllim Owen (1953), observando os problemas
apresentados pela conjuno da leitura de Ryle com a interpretao e datao tradicional do
Timeu, prope uma reorganizao dos dilogos, situando o Timeu antes, e no depois, do
Parmnides reorganizao essa atacada vigorosamente por Harold Cherniss (1957) que
defende a datao do Timeu como um dilogo da fase final ainda que o dilogo apresente a
doutrina das Formas em termos semelhantes aos daquela dos dilogos da maturidade; leitura
essa que compreende os argumentos da primeira parte do Parmnides como falsos problemas,
que, portanto, no afetam a doutrina das Formas. O embate entre ambas as posies parece
sugerir, claramente, a importncia de uma interpretao dos argumentos do Parmnides para a
compreenso da doutrina das Formas.
A posio do Parmnides, aliada s crticas contidas na primeira parte do dilogo
parecem compor um dilema exemplificado pelas leituras de Owen e Cherniss: se as crticas
no so relevantes para a doutrina, por que apresent-las da maneira aportica, como nos so
apresentadas no Parmnides? Se por outro lado, as crticas so relevantes e afetam a doutrina
Platnica, como devemos interpretar os dilogos posteriores ao Parmnides, sobretudo o
Timeu, que apresenta uma doutrina semelhante quela de dilogos como a Repblica?
O presente trabalho tem como objeto de estudo a doutrina das Formas de Plato no
dilogo Parmnides, e sua relao com a doutrina das Formas presente nos dilogos da
maturidade. Tendo em vista o dilema interpretativo representado pelo Parmnides, nosso
trabalho pretende investigar e analisar os argumentos da primeira parte do dilogo, e mostrar
que a doutrina atacada , de fato, muito semelhante quela apresentada pelos dilogos da fase
madura do pensamento Platnico, como Banquete, Fdon e Repblica. Para melhor
compreendermos essa relao, faz-se necessrio, em primeiro lugar, um breve estudo acerca da
doutrina das Formas em sua formulao tradicional a fim de, em nossa interpretao do
Parmnides, apontarmos a relao existente entre a doutrina exposta no dilogo e aquela
apresentada na fase anterior. Como mostraremos, os argumentos de Parmnides partem da
4
doutrina exposta nos dilogos da maturidade, e oferecem argumentos vlidos em relao a ela
embora isso no signifique que a doutrina deva ser abandonada: o prprio personagem que
oferece as crticas doutrina, ao final da discusso, afirma a necessidade da doutrina das Formas
para o pensamento e para a filosofia. A lio do Parmnides, portanto, parece ser que no
devemos ignorar os problemas da doutrina; mas buscar, nos dilogos que se seguem uma
verso, ou verses, da doutrina das Formas que pretenda se ver livre das aporias apontadas pelo
Parmnides em relao a participao dos objetos nas Formas.
O argumento que apresenta o dilema da participao mostra uma falha na doutrina
de Scrates para responder ao paradoxo de Zeno: a noo de participao. Depois de expor os
problemas relacionados a dois modelos de participao a saber, a participao na Forma
inteira, e a participao em parte da Forma, Scrates e Parmnides chegam concluso de que
nenhum dos dois modelos pode fazer parte da soluo de Scrates sem entrar em conflito com
a diviso entre Formas e objetos sensveis, ponto crucial da reposta ao paradoxo de Zeno. O
argumento que gera o regresso pela Forma de Grandeza mostra que, sem um modelo de
participao que d conta da relao entre os objetos e as Formas, a formulao incompleta da
doutrina leva a absurdos que, mais uma vez, inviabilizam a soluo ao paradoxo de Zeno.
Scrates prope, ento, duas hipteses para tentar escapar das aporias anteriores: a hiptese
noemtica e a hiptese paradigmtica, ambas postas a exame por Parmnides, que conclui
que nenhuma das duas oferece respostas satisfatrias ao problema da participao. Resta ainda
negar a participao de uma maneira indireta: se as Formas no podem ser conhecidas, ns nem
mesmo poderamos apont-las como explicao para a coincidncia ou compresena1 de
opostos nos objetos sensveis, e assim, no faria sentido propor a existncia das Formas, e muito
menos uma relao entre elas e os objetos sensveis a doutrina, nesse caso, falha em responder
ao desafio de Zeno.
O fato de Plato expor essas dificuldades nos mostra que ele estava ciente de que a
ausncia de soluo para o problema da participao enfraquece a doutrina das Formas. Resta-
nos buscar, nos dilogos seguintes, solues para este problema que parece ser exatamente
aquilo que o Sofista e o Timeu apresentam como um elemento revisto da doutrina a
participao entre as Formas elas mesmas no Sofista, e um novo modelo de participao entre
objetos sensveis e as Formas no Timeu.
1 O termo compresena usado aqui de maneira abrangente, significando no mais do que a caracterizao
ambgua de um objeto, isto , que o objeto possa ser caracterizado pela propriedade F e seu oposto, con-F.
5
No primeiro captulo, pretendo situar a pesquisa dentro de seu contexto
interpretativo contemporneo: de que maneira as leituras Unitarista e Desenvolvimentista
compreendem o Parmnides em sua relao, tanto com os dilogos anteriores, como com os
dilogos posteriores. Para isso, busco na primeira seo (1.1) apresentar um pouco da histria
da datao dos dilogos a partir do sculo XIX, com os avanos dos estudos estilomtricos, e a
diviso das Obras de Plato nos grupos Juventude, Maturidade e Velhice, que se apoia nesses
estudos. Essa diviso, porm, est relacionada a uma ciso entre duas linhas de interpretao
distintas: uma segundo a qual Plato apresenta a mesma as mesmas doutrinas em todos os
dilogos, outra segundo a qual essas doutrinas passam por modificaes, especialmente de um
grupo de dilogos ao outro. Na segunda seo (1.2), ofereo um breve resumo das discusses
em torno do Parmnides e sua conexo com a doutrina das Formas, sobretudo os argumentos
presentes na primeira parte do dilogo; discusses essas que culminam no debate a ser
tambm sumarizado na terceira seo (1.3) entre Owen e Cherniss sobre a relao do
Parmnides com os dilogos da terceira fase, especialmente o Timeu, com o intuito de mostrar
a relevncia do Parmnides para o estudo da doutrina Platnica das Formas. Finalmente, tendo
exposto o contexto das discusses que envolvem o dilogo, na quarta seo (1.4), retomo aquilo
que foi tratado nas sees anteriores, explicitando os pressupostos que sero assumidos em
nossa investigao.
No segundo captulo, objetivo apresentar a doutrina das Formas tal como ela
tradicionalmente compreendida, de modo a estabelecer os princpios mais importantes da
doutrina Platnica. Este passo importante, j que em nossa leitura da primeira parte do
Parmnides, faremos referncia a essa mesma doutrina, de modo a explicitar a relao entre a
doutrina dos dilogos da maturidade com aquela presente no dilogo que nosso objeto de
estudo. Para isso, partiremos das reconstrues da doutrina Platnica apresentadas por Ross
(1951) e Guthrie (1975), abordando na primeira seo (2.1) a transio entre a primeira e
segunda fases do pensamento Platnico, enquanto na segunda seo (2.2), trataremos
especificamente da doutrina das Formas em sua formulao clssica, sempre observando as
evidncias textuais dos dilogos. Na terceira seo (2.3), seguirei a reconstruo de Rickless
(2006) para estabelecer alguns dos princpios mais importantes para a doutrina das Formas
com a ressalva apenas de omitir evidncias que fujam aos pressupostos assumidos em relao
aos dilogos da maturidade.
6
Tendo apresentado a doutrina das Formas, no captulo trs inicio o estudo da
primeira parte do Parmnides. Na primeira seo (3.1), ofereo uma breve introduo ao
dilogo que conta com consideraes acerca do cenrio dramtico. A segunda seo (3.2) inicia
a interpretao do Parmnides, tomando por base o texto original em grego, e as tradues de
Iglsias & Rodrigues (2013), Gill & Ryan (1997), assim como as interpretaes globais do
dilogo em questo presentes em Cornford (1964), Allen (1997) e Rickless (2006). Veremos
em maiores detalhes nessa seo o paradoxo apresentado por Zeno, e, na seo seguinte (3.3)
como a doutrina das Formas apresentada por Scrates como resposta est relacionada ao
problema exposto. Na quarta seo (3.4), entraremos na discusso entre Scrates e Parmnides.
Trataremos de cada um dos argumentos separadamente: em 3.4.1 veremos o argumento acerca
do escopo da doutrina das Formas, onde Parmnides parece sugerir a existncia de Formas para
coisas que o jovem Scrates no est preparado para aceitar; em 3.4.2 veremos como a noo
de participao, exposta brevemente por Scrates como resposta a Zeno caminha para um
dilema: qual modelo de participao pode explicar a relao entre objetos sensveis e Formas?
Relacionado ao problema da participao, em 3.4.3 veremos a famosa passagem onde
Parmnides deriva da doutrina das Formas um regresso infinito a partir da Forma de Grandeza.
Em 3.4.4 e 3.4.5 analisaremos as passagens onde Scrates prope duas hipteses para tentar
escapar dos problemas em relao a participao, a saber, respectivamente, a hiptese
noemtica de que as Formas so pensamentos na alma; e a hiptese paradigmtica das
Formas, segundo a qual os objetos so cpias ou semelhanas das Formas, que so tomadas
como paradigmas. O exame de Parmnides culmina no argumento que apresentado como a
maior de todas as dificuldades, segundo o qual as Formas so incognoscveis para o ser
humano, argumento esse a ser tratado em 3.4.6. A quinta seo do captulo trs (3.5) trata da
passagem que encerra a primeira parte do dilogo. Nessa passagem, o prprio Parmnides,
proponente das crticas doutrina das Formas, oferece o que seria uma refutao da
interpretao proposta pelo revisionismo radical: em vez de sugerir o abandono da doutrina,
Parmnides reafirma a necessidade das Formas para o pensamento e para a filosofia, exortando
Scrates a exercitar-se na argumentao, para que possa, assim, superar as aporias encontradas
no curso da discusso. Tendo tratado da primeira parte do dilogo, oferecemos na sexta seo
(3.6) uma proposta interpretativa que seja compatvel com uma leitura desenvolvimentista, sem
porm, nos comprometer com o abandono da doutrina Platnica, sugerindo que o objetivo da
primeira parte do Parmnides mostrar uma nova preocupao por parte de Plato em relao
a participao que parecia estar ausente nos dilogos da maturidade e nesse sentido, abrindo
7
caminho para uma melhor compreenso das doutrinas presentes nos dilogos posteriores como
Sofista, e Timeu.
1 Anlise do contexto interpretativo no qual se insere a presente
pesquisa
O presente captulo pretende situar a pesquisa dentro de seu contexto interpretativo
contemporneo explicitando de que maneira as leituras Unitarista e Desenvolvimentista
compreendem o Parmnides em sua relao, tanto com os dilogos cronologicamente
anteriores, como com os dilogos posteriores. Para isso, busco na primeira seo (1.1)
apresentar um pouco da histria da datao dos dilogos a partir do sculo XIX, com os avanos
dos estudos estilomtricos, e a diviso das Obras de Plato nos grupos Juventude, Maturidade
e Velhice, que se apoia nesses estudos. Essa diviso, porm, est diretamente relacionada
ciso entre as duas linhas de interpretao mencionadas: a Unitarista, segundo a qual Plato
apresenta a mesma as mesmas doutrinas em todos os dilogos, e a Desenvolvimentista, segundo
a qual essas doutrinas passam por modificaes, especialmente de um grupo de dilogos ao
outro.
Na segunda seo (1.2), faremos um breve resumo das discusses em torno do
Parmnides e sua conexo com a doutrina das Formas, discusses essas que culminam no
debate a ser tambm tratado brevemente na terceira seo (1.3) entre Owen e Cherniss sobre
a relao do Parmnides com os dilogos da terceira fase, especialmente o Timeu, com o intuito
de mostrar a relevncia do Parmnides para o estudo da doutrina Platnica das Formas.
Finalmente, tendo exposto o contexto das discusses que envolvem o dilogo, na
quarta seo (1.4), retomaremos aquilo que foi tratado nas sees anteriores, explicitando os
pressupostos que sero assumidos em nossa investigao.
1.1 A diviso e organizao da Obra Platnica: Cronologia e Estilometria
A doutrina das Formas ocupa um lugar especial dentro das Obras de Plato. Com o
objetivo de explicar o funcionamento do mundo, e garantir a possibilidade de um conhecimento
verdadeiro da realidade, as Formas seriam responsveis pelos atributos dos objetos sensveis,
ao mesmo tempo em que seriam os objetos do conhecimento verdadeiro. Mas afinal o que so
as Formas? A viso metafsica criada por Plato nos dilogos tem como elemento central as
8
Formas (idea, eidos) objetos no-sensveis de conhecimento. Os objetos sensveis, com os
quais estamos em constante interao e j estamos familiarizados, adquiririam das Formas suas
caractersticas e nomes (PRIOR, 1985, p.1). A doutrina apresenta a relao entre as Formas e
os objetos sensveis como tomar parte de, tomar parte em, compartilhar, e mais comumente
participar (metalambanein, metekhein), e a partir dessa relao de participao que mantm
com as Formas que os objetos adquirem suas caractersticas; ou seja, por participar da (ou na)
Forma de Grandeza que os objetos se tornam grandes, e por participar da (ou na) Beleza que os
mesmos so belos. Outro aspecto compe a viso clssica da teoria das Formas, a saber, a
doutrina do Ser e do Vir a Ser. Este segundo ponto adicionaria caractersticas, ou atributos,
s Formas, isto de acordo com a doutrina do Ser e do Vir a Ser, as Formas so eternas,
inteligveis e absolutamente insuscetveis mudana, enquanto seus participantes fenomnicos
so gerados e destrudos, sensveis e em constante mudana (Ibidem). O resultado , portanto,
uma dualidade: de um lado, temos os objetos sensveis, que esto em constante mudana; do
outro, as Formas inteligveis, imutveis e eternas, das quais participam esses objetos, e a partir
das quais estes so gerados e destrudos.
A importncia da doutrina das Formas na Obra Platnica to grande, que alguns
comentadores a utilizam como um dos critrios para dividir e classificar os vrios dilogos de
Plato em trs grupos distintos: em primeiro lugar, as obras em que a doutrina das Formas
estaria ausente e que apresentariam um Scrates questionador, em busca de um conhecimento
que ele mesmo professa no possuir, como na Apologia, no Crton, no Hppias Maior e no
Eutfron; em segundo, as obras, como Repblica, Banquete e Fdon, que apresentariam a
doutrina das Formas e outras a ela relacionadas propostas pelo prprio Scrates; e em terceiro
lugar, as obras que poderiam ser lidas como crticas a elementos da doutrina tal como ela
apresentada no segundo grupo dilogos como Sofista, Poltico, Teeteto, e Parmnides.
muito comum, portanto, encontrarmos a diviso da Obra Platnica nesses trs grupos, de modo
a indicar uma possvel ordem de composio: dilogos da juventude, da maturidade e velhice,
e mesmo com algumas distines mais especficas, categorizando alguns dilogos como
transicionais seja entre os dois primeiros grupos, seja entre os dois ltimos.
Uma classificao que pretenda, porm, atribuir uma ordem cronolgica qualquer,
seja aos dilogos considerados individualmente, seja considerando-os em grupos, precisaria
tomar por base elementos factuais capazes de sustentar essa ou aquela ordem especfica.
Encontrar esses elementos, entretanto, se mostrou uma tarefa no apenas difcil, mas infrutfera:
com poucos fatos histricos e relatos confiveis aos quais possamos conectar os dilogos, isto
9
, fatos estabelecidos por fontes externas aos dilogos capazes de confirmar esse ou aquele ano
ou perodo; uma classificao desse tipo acaba por desenvolver-se simultaneamente tradio
interpretativa que atribui a Plato um desenvolvimento literrio, isto , como autor, e, aliado a
isso, um desenvolvimento de seu pensamento filosfico.
De acordo com essa tradio interpretativa, Plato teria comeado a escrever seus
dilogos possivelmente em algum momento aps 399 a.e.c., ano da morte de Scrates
ilustrando a maneira que, por suposto, Scrates costumeiramente discutia com jovens e
intelectuais de Atenas sobre tpicos como moralidade, virtude, o melhor tipo de vida para o
homem, etc. Esses primeiros dilogos em sua maioria, dilogos curtos classificados como
pertencentes primeira fase ou juventude, tambm so comumente agrupados tematicamente
e descritos como dilogos socrticos.
Gradativamente, Plato teria se tornado filosoficamente independente da influncia
do Scrates histrico, introduzindo nos dilogos, por meio de seu personagem Scrates, novas
ideias e interesses prprios que teriam surgido a partir dos ensinamentos socrticos. Dentre
essas novas ideias, destaca-se a doutrina das Formas ou teoria das Ideias, que afirma a
existncia de entidades eternas, extrassensoriais (no-fsicas e inapreensveis pelas sensaes
ou sentidos corpreos), imutveis e apresentadas como modelos ou paradigmas que
fundamentam o mundo fsico sensvel, seus objetos e suas relaes; e cujo conhecimento seria
obtido a partir do pensamento filosfico. Os dilogos imputados a esse perodo classificados
como pertencentes segunda fase do pensamento platnico, ou maturidade so mais longos
e filosoficamente mais desafiadores do que aqueles classificados como dilogos da juventude.
Nesse grupo estariam includos o Banquete, o Fdon, a Repblica, o Teeteto,2 e o Parmnides
com suas crticas doutrina das Formas.
A terceira fase do pensamento platnico, ou velhice, compreenderia uma nova
srie de investigaes filosficas, das quais as Formas estariam completamente ausentes, ou
ao menos investigaes nas quais o trabalho terico principal seria realizado sem apelo
simples e direto a elas (COOPER, 1997, p. xiii). A essa fase so includos o Timeu, o Sofista,
o Poltico, o Filebo e as Leis.
2 Os estudos de Ritter, Dittenberger, Arnim e Baron todos apontam para a incluso do Teeteto no grupo
imediatamente anterior aos dilogos da fase final. Cf. BRANDWOOD, 1990, p. 20, 108-119, 250-251
10
Segundo essa hiptese interpretativa, portanto, nos dilogos da maturidade, onde
Scrates continua sendo o personagem mais proeminente, ele no se limita a questionar e
comentar as teses dos seus interlocutores, como nos dilogos da juventude; mas comea a
desenvolver teses filosficas prprias. Nos dilogos da velhice, no entanto, com exceo do
Filebo , Scrates deixa de ser um participante ativo das discusses; e as conversas passam a
exibir um aspecto dogmtico de exposio de doutrinas por parte do personagem principal do
dilogo.
Mas, na realidade, apesar dessa diviso esquemtica proposta, temos pouqussimas
informaes confiveis nas quais basear nossas hipteses acerca da ordem cronolgica dos
dilogos. A mais importante talvez seja o fato de o dilogo Leis ter sido deixado incompleto,
no tendo sido publicado devido a morte de Plato; outra deriva da hiptese de que o Teeteto
possivelmente seja um memorial honrando o famoso matemtico associado da Academia, que
morreu em 369 a.e.c., situando o dilogo pouco depois de 369 (CORNFORD, 1935, p.15). J
que evidncias internas ligam o Teeteto ao Sofista e Poltico como seus sucessores, isso sugeria
que esses trs dilogos teriam sido escritos nessa ordem, possivelmente, portanto, nas ltimas
duas dcadas da vida de Plato.
Ento, devido escassez de fatos histricos capazes de confirmar a ordem
cronolgica dos dilogos, outros meios de anlise e datao foram propostos, de modo a
verificar a hiptese interpretativa levantada pela tradio desenvolvimentista. J que era
possvel notar diferenas de estilo entre vrios dos dilogos, muitos estudiosos da lngua grega
e da Obra Platnica iniciaram anlises textuais com base em diferentes aspectos do estilo
empregado nos dilogos, a fim de identificar nas obras diferenas que pudessem servir como
auxlio para a datao cronolgica dos dilogos.
Como notado j em alguns estudos estilomtricos do sculo XIX, o texto das Leis
marcado pela frequncia de algumas caractersticas estilsticas que esto presentes em apenas
cinco outros dilogos platnicos: Timeu, Crtias, Sofista, Poltico, e Filebo (BRANDWOOD,
1990, p. 249) exatamente aqueles atribudos fase final pela tradio desenvolvimentista.
Assumindo que essa diferena estilstica em relao aos outros dilogos marca uma diviso
cronolgica dos dilogos, muitos estudos estilomtricos chegaram a um consenso em favor da
classificao desses dilogos como compreendendo a fase da velhice, ltima fase do
pensamento de Plato.
11
Mas a estilometria no apresenta indcios fortes o suficiente para atribuir nenhuma
ordem especfica entre os cinco, nem mesmo pode estabelecer nenhuma ordem particular dos
outros dilogos3. Alguns estudos4 afirmam que a estilometria estabelece ainda um segundo
grupo de quatro dilogos como os ltimos dos dilogos que antecederiam a fase final:
Repblica, Parmnides, Teeteto e Fedro; mas assim como acontece com o grupo final, no seria
possvel estabelecer entre eles nenhuma ordem particular5. A classificao de dilogos da
juventude e maturidade assenta, portanto, na tese interpretativa em relao ao desenvolvimento
literrio e filosfico da Obra de Plato. Seria seguro, ento, reconhecer apenas o grupo final
composto dos seis dilogos anteriormente mencionados.
Um grande nmero de dilogos, porm, pode ser identificado tematicamente sob o
grupo chamado de dilogos socrticos. Nessas obras Scrates o personagem que guia a
discusso, levando os interlocutores a aporias causadas por contradies nas teses apresentadas
por eles para as questes propostas. Esto includos nesse grupo a maior parte dos dilogos
atribudos a Plato, como Eutfron, Apologia, Crton, Crmides, Laques, Lsis, Protgoras,
Eutidemo, Grgias, e Hppias Maior. Mas assim como no existe razo para pensar que esses
dilogos so ou derivam de discusses reais das quais o Scrates histrico tenha participado,
tambm no h razo para supor que, ao escrev-los, Plato pretendesse simplesmente
reconstituir discusses e distines filosficas expostas pelo Scrates histrico6.
Nesses dilogos, Scrates busca as opinies de seus interlocutores acerca de
questes ticas e polticas importantes para a sociedade grega, sujeitando essas opinies a um
exame crtico. Ainda que, em alguns deles, como no Grgias, ele tambm apresente ideias
prprias sobre tica e poltica, em contraste com dilogos como Fdon e Repblica, ele no
leva a diante a elaborao de hipteses prprias, com teses filosoficamente ambiciosas e outras
consideraes em favor delas. Em especial, Scrates no diz nesses dilogos socrticos nada
sobre a doutrina das Formas.
3 BRANDWOOD, 1990, p. 250: While the testimony of the data for hiatus avoidance was ambiguous, three
independent investigations of clausula rhythm and one of sentence rhythm agreed in concluding that the order of
composition was Tim., Crit., Soph., Pol., Phil., Laws.
4 Ritter, Von Arnim, Baron. Cf. BRANDWOOD, 1990, p. 55; p. 96; p. 115; p. 251.
5 Os critrios utilizados por Ritter sugerem a seguinte ordem: Repblica, Teeteto, Fedro. Embora o Parmnides
tambm deva ser includo nesse grupo, sua posio exata no pode ser facilmente determinada pelos critrios que
o agrupam aos outros trs; se levarmos em conta, porm, a provvel referncia do Teeteto ao Parmnides (183e-
184a), sua posio mais provvel parece ser entre a Repblica e o Teeteto. Cf. BRANDWOOD, 1990, p. 77.
6 Sobre o problema socrtico, cf. BOLZANI, R., Imagens de Scrates. In Kleos, n. 18, 2014, p. 11-31
12
Mas Plato no era o nico, nem mesmo foi o primeiro dos companheiros de
Scrates a escrever dilogos socrticos; e embora a maior parte desses outros dilogos
socrticos no tenha chegado at os dias de hoje, temos informaes suficientes para crer que
nenhuma conveno do gnero literrio7 impedia o autor de escrever livremente sobre diversos
assuntos, inclusive filosficos, que o interessassem (BOLZANI, 2014, p. 19). Temos, portanto,
boas razes para supor que pelo menos algumas das coisas que Plato pe na boca de Scrates
em seus dilogos socrticos expressem novas ideias desenvolvidas em suas prprias reflexes
filosficas, e no apenas elaboraes consonantes com o pensamento filosfico do Scrates
histrico (Ibidem, p. 26). Talvez isso seja mais claramente notado, no Crmides, Lsis, e
Grgias; mas permanece uma possibilidade em todos os outros dilogos chamados socrticos.
Embora seja razovel supor que os primeiros dilogos de Plato sejam, de fato,
dilogos socrticos, no existe razo para supor que um dilogo tenha sido escrito antes de
todos os outros dilogos dos outros grupos apenas por ser um dilogo socrtico embora parea
claro que, se estivermos certos em aceitar um grupo de dilogos pertencentes fase final, os
dilogos socrticos devem ser considerados cronologicamente anteriores a esse grupo final.
Alm dos dilogos socrticos e daqueles atribudos fase final, existem ainda oito
dilogos atribudos com certeza a Plato: Fdon, Crtilo, Teeteto, Parmnides, Banquete,
Fedro, Mnon, e Repblica. Embora no seja fcil identificar um tema nico capaz de unificar
esse grupo como um todo, essas obras correspondem em sua maioria ao grupo classificado
como maturidade, ou dilogos da segunda fase.
Nos dilogos desse grupo, Scrates continua sendo o principal personagem
embora no Parmnides no seja Scrates, mas Parmnides quem guia a discusso. Como vimos
acima, esses dilogos se diferenciam dos dilogos socrticos porque neles Scrates apresenta e
argumenta em favor de teses filosficas prprias. Somado a isso, em todos os dilogos desse
grupo, exceto no Teeteto e no Mnon, a doutrina das Formas tem um papel fundamental: de
fato, so esses os dilogos que estabelecem e definem a doutrina clssica das Formas, tal como
foi entendida e apresentada pelos filsofos das geraes seguintes. Essas consideraes, no
entanto, no so suficientes para separ-los claramente daqueles dilogos da fase final, j que
Scrates volta a ser o personagem central novamente no Filebo, e ele aparece na conversa
7 Logoi sokratikoi
13
introdutria do Timeu, e mais brevemente no Sofista e no Poltico, e esses dilogos so to
filosoficamente ambiciosos quanto os do grupo em questo.
Por outro lado, apesar de Scrates apresentar a doutrina clssica das Formas no
seu segundo discurso sobre eros no Fedro (244a-257b), esse dilogo parece prenunciar uma
concepo revista da Forma como uma espcie de todo dividido (COOPER, 1997, p. xvii)
no mais uma unidade simples conhecida atravs do mtodo de coleo e diviso, mtodo
esse que novamente introduzido e utilizado nos dilogos Sofista, Poltico e Filebo. E que a
Forma talvez no seja uma unidade simples parece ser uma das lies que Parmnides deseja
ensinar a Scrates no Parmnides (RICKLESS, 2006, p. 6). Alm disso, o Teeteto parece ser
indicado por Plato como posterior ao Parmnides (183e-184a) e predecessor do Sofista e
Poltico (Teet. 210d; Sof. 216a). Nesse sentido, Fedro, Parmnides, e Teeteto parecem ter uma
clara conexo com os dilogos da velhice.
O que se poderia dizer, portanto, que esse grupo de dilogos tradicionalmente
atribudo segunda fase do pensamento Platnico desenvolve as doutrinas filosficas que so
normalmente associadas a Plato, sobretudo, a doutrina das Formas; mas incluindo tambm
dilogos que parecem apontar para inovaes apresentadas no grupo final. Assim, ainda que
possamos, apesar de suas diferenas e especificidades, classificar e agrupar esses dilogos em
um mesmo perodo, o mais seguro seria dizer que esse segundo grupo de dilogos platnicos,
ao lado daqueles classificados como socrticos, deveria ser alocado cronologicamente antes dos
dilogos da velhice; pois, embora possamos razoavelmente supor que, em geral, os dilogos do
segundo grupo tenham sido escritos depois do grupo socrtico, no existem evidncias claras o
suficiente para excluir completamente uma simultaneidade na composio dos dilogos
pertencentes aos dois grupos.
1.2 O Desenvolvimentismo como alternativa ao Unitarismo: A importncia do
Parmnides para uma interpretao da Metafsica Platnica
Diante do quadro geral proposto pela leitura desenvolvimentista da Obra
Platnica, e das evidncias apresentadas pelos estudos estilomtricos, ganha ainda mais fora a
dissidncia entre os comentadores em relao maneira que devemos compreender o
pensamento platnico. Como vimos brevemente acima, o esboo cronolgico dos dilogos
suportado pela estilometria, aliado s caractersticas presentes nos dilogos de cada grupo
14
parecia mesmo sugerir uma espcie de desenvolvimento do pensamento Platnico de um
socratismo presente nos primeiros dilogos, para o Platonismo apresentado na fase da
maturidade, para, enfim, uma espcie de Platonismo revisto, onde Plato estaria lidando de
uma forma mais crtica com as doutrinas que ele mesmo teria anteriormente proposto, por ter
encontrado uma srie de dificuldades nas mesmas. Assim, as duas linhas de interpretao
poderiam ser defendidas de maneira mais clara: de um lado aqueles que defendem uma unidade
do pensamento platnico que perpassa os dilogos como um todo; de outro, aqueles que
defendem dentro de uma margem que vai desde pequenas mudanas ao abandono total das
Formas um desenvolvimento do pensamento platnico, tese segundo a qual haveria nos
dilogos da terceira fase revises das doutrinas propostas na fase anterior.
Comentadores como Gilbert Ryle e Gwilym Owen tomam o Parmnides como um
marco no pensamento platnico, exatamente por suas crticas e sua posio dentro da Obra
Platnica. O foco do dilogo na doutrina das Formas torna-o ainda mais especial, se levarmos
em conta que em nenhum outro dilogo a questo central a ser discutida a doutrina das
Formas, mas sempre outra; as Formas, sempre que presentes, ajudam a responder as questes
centrais propostas nos dilogos, mas nunca exceo do Parmnides so elas mesmas
discutidas extensivamente. O Parmnides parece ento sugerir uma srie de questes acerca do
pensamento platnico: haveria, de fato, uma reviso por parte de Plato da doutrina das Formas?
Se levarmos em considerao a datao tradicional de dilogos como o Timeu dilogo onde
a cosmogonia apresentada parece reforar diversos aspectos da doutrina das Formas tal como
ela apresentada nos dilogos da fase anterior como Repblica e Fdon , qual o papel do
Parmnides no conjunto dos dilogos, e qual a relevncia das suas crticas para a doutrina das
Formas?
O foco da leitura desenvolvimentista proposta por Owen que chamaremos daqui
em diante de revisionismo, como um subgrupo dentro da hiptese desenvolvimentista
parece estar na transio dos dilogos da maturidade para os da velhice, j que seria nessas duas
fases que Plato estaria lidando, de fato, com os problemas filosficos prenunciados pelo
socratismo dos primeiros dilogos. A classificao do Parmnides como um dilogo que estaria
exatamente nesse perodo de transio ao final da fase da maturidade, e precedendo, portanto,
dilogos como Sofista, Poltico, Timeu e Filebo nos faz questionar a leitura unitarista ao
situar as crticas presentes no dilogo aps a exposio das doutrinas platnicas de dilogos
como Repblica e Fdon.
15
A partir do final da dcada de 1950, aps as publicaes dos artigos de Ryle8, que
proporia a hiptese do abandono da doutrina das Formas nos dilogos ps-Parmnides; e de
Owen9, que prope no apenas uma reviso radical na doutrina das Formas, mas tambm uma
reorganizao das obras, situando o Timeu antes do Parmnides; a partir de ento, houve um
aumento nos estudos acerca dessas duas obras, que intensificou-se cada vez mais no decorrer
das discusses travadas entre Owen e Cherniss acerca do lugar do Timeu na Obra Platnica.
1.3 O problema do Parmnides: Owen, Cherniss, e os paradoxos interpretativos
explicitados pelo lugar do Parmnides na Obra Platnica
Em 1939 [Gilbert Ryle] publicou um artigo sobre o Parmnides que iniciou uma
revoluo na interpretao filosfica das ltimas obras de Plato essa afirmao de Owen no
seu obiturio de Ryle certamente referia-se ao impacto causado pela abordagem de Ryle, na
qual ele propunha a mais radical das hipteses do desenvolvimentismo: dadas as crticas do
Parmnides, Plato haveria desistido das Formas. As observaes de Ryle seriam melhor
exploradas no seu livro de 1966, Platos Progress, onde ele desafiaria ainda mais os consensos
em relao histria das obras de Plato, extrapolando os limites do Parmnides. Mas a histria
da batalha entre a tradio unitarista e o revisionismo definitivamente sofreu um abalo com
a publicao de 1939.
A questo do desenvolvimento do pensamento platnico pode ser traada pelo
menos at o incio do sculo XIX. Tal anlise, como vimos, s poderia ser bem-sucedida se
pudssemos verificar a cronologia dos dilogos, isto , a ordem em que foram compostos.
Entretanto, por falta de um consenso em relao a este aspecto crucial da problemtica, havia
uma margem muito grande para todo tipo de interpretao acerca das obras e das ideias de
Plato. Foi apenas no final do sculo XIX que um mtodo rigoroso de anlise forneceu a base
para o estabelecimento de um consenso acerca da ordem cronolgica dos dilogos. Depois dos
avanos permitidos pelos estudos estilomtricos de Campbell, Lutolawski, Ritter e Von Arnim,
assim como outros estudiosos e crticos de Plato, havia no incio do sculo XX um maior
consenso em relao cronologia das obras platnicas. Era possvel agora observadas as
8 RYLE, G., Platos Parmnides. In Mind, Vol. 48, n. 190 (1939), p. 129-151
9 OWEN, G.E.L., The Place of the Timaeus in Platos Dialogues. In The Classical Quarterly, Vol. 3, Issue 1-2
(1953), p. 79-95
16
devidas ressalvas distinguir e dar mais suporte s duas frentes de interpretaes do
pensamento platnico: de um lado, os unitaristas, que afirmavam uma unidade de pensamento
e ideais ao longo de todos os dilogos; de outro, os desenvolvimentistas a nova tendncia,
munida da estilometria, de que Plato teria desenvolvido suas ideias e teorias ao longo dos anos,
hiptese que poderia ser verificada acompanhando a ordem cronolgica de escritura dos
dilogos. Criou-se, a partir de ento, um consenso maior dentro da hiptese
desenvolvimentista com relao s mudanas no pensamento platnico, a saber: que as teorias
e doutrinas expostas nos dilogos, em especial a metafsica platnica, foi gradualmente se
desenvolvendo ao longo das obras, assumindo ao final uma forma mais refinada.
No artigo de 1939 sobre o Parmnides, Ryle desafiou este consenso alegando que
a crtica s Formas presente no dilogo era fatal e apontava problemas irreparveis em qualquer
das interpretaes da teoria das Formas; e que Plato, nos dilogos que se seguiram ao
Parmnides, haveria abandonado a doutrina. neste ponto que a cronologia dos dilogos, tal
como aceita tradicionalmente, parece se tornar um problema. O problema, como enuncia, anos
depois, Sarah Waterlow (1982, p. 340), que a datao tradicional, aliada s crticas
apresentadas no Parmnides, teria como consequncia o seguinte dilema: ou o [Argumento do
Terceiro Homem] muito insubstancial para ser representado como o no Parmnides, ou,
ento, srio demais para ser ignorado como no Timeu. Isto , se Plato desistiu das Formas
aps o Parmnides, por que no Timeu, um dilogo da velhice, datado, portanto, como posterior
ao Parmnides, as Formas estariam presentes? Tal questo no pode ser evitada se uma reviso
to radical nas doutrinas platnicas est em jogo.
Assim, seguindo o impacto inicial causado pelo artigo de Ryle, Owen prope uma
nova organizao para os dilogos. No artigo de 1953, Owen pretende abalar a crena no estudo
estilomtrico empregado para a datao do Timeu. O artigo discute os argumentos utilizados
para classificar o Timeu como um dilogo da fase final e afirma que este seria no um dos
ltimos dilogos compostos por Plato, mas um dos ltimos dilogos da fase da maturidade,
isto , escrito depois do Fdon e da Repblica, mas antes do Parmnides; e que, portanto, o
Timeu tambm estaria sujeito s crticas apresentadas pelo Parmnides.
Owen no pretendia, porm, mostrar uma refutao total das Formas como Ryle,
mas apenas mostrar que, embora as crticas do Parmnides afetem a doutrina das Formas, elas
no buscariam destru-la, e sim refutar a doutrina do Ser e do Vir a Ser juntamente com a
interpretao das Formas como paradigmas (paradeigmata).
17
Para isso, Owen vai atacar o aparato estilomtrico usado na datao do Timeu, alm
de ressaltar aspectos como a psicologia e a filosofia poltica do dilogo. Segundo Owen, a
filosofia poltica presente no Timeu muito diferente daquela apresentada pelo Poltico e pelas
Leis ambos os dilogos tradicionalmente classificados como pertencentes fase da velhice
, mas em contrapartida, muito semelhante quela que figura na Repblica. Alm disso, como
resultado das crticas presentes no apenas no Parmnides, mas tambm no Crtilo e no Teeteto,
Plato no poderia manter um dilogo com uma viso das Formas to semelhante quela
apresentada pelos dilogos anteriores ao Parmnides. Owen tambm precisou responder uma
afirmao de Cornford10 acerca de uma possvel relao entre o Timeu e o Sofista; mas para
Owen, ao contrrio do que Cornford prope, no existe nenhuma passagem no Timeu que
pressuponha os argumentos presentes no Sofista, no havendo, assim, motivo para dat-lo como
um dilogo da fase final.11
Assim, a nova datao do Timeu proposta por Owen baseava-se, entre outros
critrios, em dois eixos principais: 1) nos argumentos do Terceiro Homem presentes no
Parmnides em especial a segunda verso (132c-133a), que gera o regresso pela Forma de
Semelhana; e 2) na crtica aos estudos estilomtricos utilizados para a confirmao da datao
tradicional, por se basearem em um lxico incompleto e utilizarem critrios estilsticos baseados
em caractersticas textuais passveis de uso consciente em seguida propondo um novo estudo
estilomtrico como base: os estudos apresentados por L. Billig mostravam uma diferena
rtmica entre a prosa do Timeu e dos outros dilogos da fase da velhice12 (isto , aqueles que
so datados como posteriores ao Parmnides e mais prximos cronologicamente das Leis). Ora,
como o Timeu apresenta a relao entre as Formas e os objetos da sensibilidade como uma
relao de semelhana tal como aquela que existe entre paradigmas (paradeigmata) e suas
cpias (homoioma), para Owen, junto evidncia de diferena rtmica em relao aos outros
dilogos considerados como pertencentes a ltima fase do pensamento platnico, s poderia
10 CORNFORD, F.M., Platos Cosmology. Routledge & Kegan Paul, 1952, p. 62
11 OWEN, 1953, p. 88: Concerning the psychogony of Tm. 35 a Cornford has maintained, with less reservations
than Grube or Cherniss, that 'the Sophist (as the ancient critics saw) provides the sole clue to the sense of our
passage'. Such arguments for dating can cut both ways: e.g. Cornford has to appeal to the Timaeus to support his
account (or expansion) of the perception-theory in the Theaetetus and of the description of mirror-images in the
Theaetetus and Sophist. But in any case the claim cannot be allowed. Cornford can hardly have supposed that
Plato's readers had to await the Sophist in order to be informed that any existed, maintained its identity, and
differed from others (cf. Phdo. 78 d 5-7, Symp. 211 b 1-2, Rep. 597 c) or that existence, identity, and difference
could be distinguished from each other (this is of course assumed throughout the Parmenides and occasionally
stated, e.g. at 143 b in the case of existence, difference, unity). Yet this is all that he borrows from the Sophist.
12 OWEN, 1953, p. 82; cf. tambm BRANDWOOD, 1990, p. 167ff.
18
haver uma soluo para resolver o que ele chama de paradoxos causados pela interpretao
tradicional das obras e do pensamento platnicos: datar o Timeu como anterior aos problemas
expostos pelo Parmnides.
Em 1957, Harold Cherniss13 respondeu aos ataques de Owen, e embora ele tenha
concordado com alguns dos pontos observados por Owen acerca da estilometria, no houve
acordo quanto classificao do Timeu como dilogo da maturidade. Cherniss afirmou que
existem evidncias claras o suficiente para datar o Timeu como um dos ltimos dilogos
compostos por Plato, ainda que esta datao no tenha relevncia para a teoria das Formas (j
que, adepto da hiptese unitarista, para Cherniss no seria possvel verificar as mudanas na
teoria das Formas propostas por Ryle e Owen).
Cherniss respondeu s crticas de Owen trazendo tona o fato de que, se utilizados
os mesmos critrios estilomtricos propostos por Owen, o ritmo da prosa do Parmnides ainda
assim indicaria sua antecedncia em relao ao Timeu.14 Alm disso, Cherniss afirmou que
outros dilogos da fase final se utilizam das mesmas distines e expresses presentes no
Timeu, de modo que dat-lo como anterior ao Parmnides no eliminaria os paradoxos
interpretativos apontados por Owen.
Desde ento, a hiptese Ryle-Owen iniciou um debate dentro dos estudos
platnicos que ainda parece distante de encontrar um consenso. E embora a resposta de Cherniss
tenha sido suficiente para desarmar a datao do Timeu proposta por Owen, muitos dos
comentadores que entraram no debate posteriormente aceitam que o Parmnides, de fato,
parece levantar srios problemas para doutrina das Formas, sobretudo em relao maneira
como ela figura nos dilogos da maturidade, isto , aqueles considerados cronologicamente
anteriores ao Parmnides.
1.4 Dos pressupostos assumidos nessa pesquisa
Embora Plato seja reconhecido como o autor de todos os dilogos mencionados
anteriormente desde aqueles enquadrados no grupo socrtico, at aqueles classificados
como pertencentes fase final , o grupo tradicionalmente atribudo ltima fase do
13 CHERNISS, H.F., The Relation of the Timaeus to Platos Later Dialogues. In The American Journal of
Philology, Vol. 78, n. 3 (1957), p. 225-266
14 CHERNISS, 1957, p. 228-229
19
pensamento platnico composto de obras muito diferentes de todas as outras, seja quanto
sua forma, seja quanto ao seu contedo: dilogos como Fdon e Repblica, por exemplo, so
considerados at os dias atuais grandes obras da literatura mundial; por outro lado, em dilogos
como Teeteto, Filebo, Sofista, e mesmo Parmnides, as discusses so mais difceis de se
compreender, com raciocnios intrincados e, por vezes, obscuros junte-se a isso o contedo
filosfico desses dilogos: crticas doutrina das Formas no Parmnides, anlises conceituais
e lingusticas no Sofista, e uma longa discusso epistemolgica que termina em aporia no
Teeteto. Ou seja, o grande apelo literrio de Plato parecer ceder diante do contedo filosfico
e dos encaminhamentos propostos por esses dilogos.
Como resultado, uma leitura das ltimas obras de Plato encontra um desafio
inteiramente diferente daquele apresentado pelos dilogos das fases anteriores. Em primeiro
lugar, existem diferenas evidentes na forma textual; em segundo lugar, Scrates substitudo
como personagem principal dos dilogos primeiro por Parmnides, depois pelo Estrangeiro
de Elia, e finalmente por Timeu. E mesmo quando Scrates volta a ser o guia da discusso no
Filebo, o personagem parece bastante diferente daquele apresentado em dilogos como o
Fdon. O que essas diferenas representam para uma interpretao dessas obras ainda motivo
de debate, mas parece inevitvel relacion-las outras mudanas no mbito das discusses
filosficas contidas nesses dilogos.
No que concerne ordem cronolgica dos dilogos, a presente pesquisa pretende
alinhar-se a uma leitura desenvolvimentista, e, assim, compreende que as Obras Platnicas
podem, de fato, ser agrupadas em perodos nos quais h diferenas maiores ou menores em
relao a forma e contedo filosfico dos dilogos; e que pelo menos algumas dessas diferenas
indicam um desenvolvimento do pensamento filosfico de Plato, sobretudo no que diz respeito
a ontologia apresentada nos dilogos da maturidade e da velhice.
Nossa pesquisa aceita, portanto, at onde h certo grau de consenso entre os estudos
estilomtricos, a diviso cronolgica apontada entre o grupo Sofista, Poltico, Filebo e Leis; e
o grupo composto por Repblica, Fedro e Teeteto, compreendendo que o perodo de
composio desses anterior ao daqueles. Diante das evidncias apresentadas anteriormente,
nossa pesquisa se v autorizada a concluir sobre os demais dilogos no mais que o seguinte:
que Banquete e Fdon parecem marcar o incio claro do perodo atribudo a maturidade do
pensamento platnico, isto , o perodo no qual exposta a doutrina das Formas formulada nos
termos tradicionalmente associados a doutrina Platnica; e que, na ausncia de evidncias
20
conclusivas a respeito da posio exata dos dilogos ditos socrticos, pelo menos alguns deles,
de fato, poderiam ter sua composio simultaneamente aos dilogos da fase da maturidade.
Quanto posio do Parmnides, parece-nos acertado supor que,
independentemente da posio relativa do Fedro e do Teeteto em relao Repblica (seja o
Teeteto entre os dois outros, ou depois de ambos); devido referncia do Teeteto ao encontro
entre Scrates e Parmnides tomado pela maior parte dos intrpretes como uma fico
platnica parece-nos inevitvel localizar o Parmnides antes do Teeteto15. O que assumimos,
portanto, que o Parmnides deve ser posicionado, pelo menos, depois da Repblica e antes
do Teeteto.
Nesse sentido, os dilogos onde comumente se assume que Plato exponha o que
se poderia chamar de doutrina clssica das Formas Banquete, Fdon, e Repblica devem
ser localizados num perodo que antecede a composio do Parmnides; enquanto a trilogia
temtica Teeteto-Sofista-Poltico, deve, necessariamente, ser cronologicamente posterior ao
dilogo em questo ainda que o Teeteto esteja cronologicamente separado dos outros dois
dilogos aos quais ele est ligado dramaticamente.
No que diz respeito ao lugar do Timeu, embora estejamos convencidos de que
existem mais evidncias em favor de sua alocao entre os dilogos da ltima fase seja no
maior nmero de estudos favorveis no que concerne a aspectos formais do estilo de escrita
platnica, seja em matria de contedo filosfico do que evidncias para dat-lo como dilogo
da maturidade; nossa pesquisa no pretende oferecer argumentos em favor do posicionamento
cronolgico do Timeu, por entender que este dilogo e tpico merecem um tratamento especial
e prprio e que tal tratamento no pode ser realizado de forma justa no presente trabalho.
Assim, seja qual for sua posio exata dentro do ltimo grupo, parece-nos acertado supor que
ele esteja localizado num perodo, seno posterior trilogia Teeteto-Sofista-Poltico, pelo
menos posterior ao Parmnides e o Teeteto.
15 Ibidem: ROSS, 1951, p. 7: It is impossible to believe that, if Parmenides and Socrates ever met, they could
have had such a conversation as they have in the dialogue; we have no reason to suppose Parmenides capable of
the kind of dialectical discussion which forms the later part of the dialogue, and it is contrary to all probability to
suppose that Socrates at the age of twenty already held a theory of Ideas as it is depicted in the first part. But if
the course of the dialogue is imaginary, we have no reason to regard the setting as historical. Burnet and Taylor, it
is true, attack the traditional dates of Parmenides and Zeno as resting on arbitrary assumptions; but that is because
they are committed to belief in the accuracy of Platos biography of Socrates, and if we are right in rejecting that
view we are justified in treating the meeting as fictitious. [...] If we are right in treating the conversation in the
Parmenides as fictitious, these allusions [no Teeteto e no Sofista] refer not to an actual meeting, but to the fictitious
meeting depicted in that dialogue.
21
2 Introduo doutrina das Formas
Neste captulo apresentaremos a doutrina das Formas da maneira que ela
compreendida tradicionalmente, de modo a estabelecer os princpios mais importantes da
doutrina Platnica. Este passo importante, j que em nossa leitura da primeira parte do
Parmnides, faremos referncia a essa mesma doutrina, de modo a explicitar a relao entre a
doutrina dos dilogos da maturidade com aquela presente no dilogo que nosso objeto de
estudo.
Para isso, partiremos das reconstrues da doutrina Platnica apresentadas por Ross
(1951) e Guthrie (1975), abordando na primeira seo (2.1) a transio entre a primeira e
segunda fases do pensamento Platnico, isto , da Juventude para a Maturidade, enquanto na
segunda seo (2.2), trataremos especificamente da doutrina das Formas em sua formulao
clssica, sempre observando as evidncias textuais dos dilogos, sobretudo do Banquete, do
Fdon, e da Repblica. Na terceira seo (2.3), seguiremos a reconstruo de Rickless (2006)
para estabelecer alguns dos princpios mais importantes para a doutrina das Formas com a
ressalva apenas de omitir evidncias que fujam aos pressupostos assumidos em relao aos
dilogos da maturidade.
2.1 Platonismo sem Formas
O personagem Scrates apresentado nos dilogos socrticos da fase da juventude
se engaja, na maior parte dos casos, em discusses que buscam definir, por meio de questes
da forma o que x?, coisas como Justia, Temperana, Coragem, Piedade, etc. virtudes
relacionadas a uma excelncia de carter, por sua vez ligada a uma noo de vida que s pode
alcanar seu potencial mximo mediante a realizao dessas virtudes. O problema para Scrates
evidenciado nos dilogos pela busca de definies do que so essas virtudes ticas que
no possvel avaliar quais indivduos e atos so justos, temperantes, piedosos, etc., se no se
possui antes um conhecimento do que essas virtudes, de fato, so. Scrates, consequentemente,
distingue atos e pessoas justas daquilo que a Justia, atos e pessoas corajosas daquilo que a
Coragem, etc. Mas, nesses dilogos, Scrates no pergunta acerca do estatuto ontolgico dessas
coisas que por vezes ele chama de formas (eidos, idea) isto , aquelas coisas em virtude
das quais podemos reconhecer aes e indivduos justos, corajosos, temperantes, etc.
22
Embora em alguns desses dilogos Scrates parea indicar que possui certas
opinies a respeito dessas coisas que ele busca saber atravs do exame das teses dos seus
interlocutores, ele prprio parece no atribuir a essas opinies peso de conhecimento, mas
apenas de uma opinio entre outras, e que, portanto, necessitariam tambm passar por exames
frequentes.
Scrates parece, nesses dilogos, no dar ateno a questes acerca da possibilidade
de apreenso dessas formas pelos sentidos; se so indivisveis ou possuem partes; ou se so
eternas e imutveis, perfeitas em contraste com os atos e pessoas que esto relacionados a elas
essas questes parecem no entrar em cena em grande parte desses dilogos.
Segundo Ross (1951, p.11), esses elementos indicam que h na fase da juventude,
ainda que no explcita, uma espcie de proto-teoria das Formas. As questes em busca da
definio de virtudes presentes no Crmides, no Laques, no Eutfron e no Hpias Maior
sugeririam o incio daquilo que viria a se desenvolver nos dilogos seguintes, como a Repblica
e o Fdon. Mas de que maneira as Formas so mostradas nos dilogos da Juventude?
No Laques 191e, Scrates parece assumir que existe algo que o mesmo e que est
presente em todas as coisas corajosas, ou seja, que para toda a aplicao do adjetivo corajoso
e para toda meno ao nome Coragem, existe um ente ou caracterstica que a mesma; que
existe um objeto real e nico que garante o atributo das coisas corajosas. (ROSS, 1951, p.12)
Apesar da polmica sobre a presena ou no da teoria das Formas nos dilogos da
juventude, um ponto une os comentadores: o Eutfron parece ser o dilogo em que as Formas
aparecem, pela primeira vez, de maneira mais prxima do seu sentido platnico caracterstico.
As palavras Idea e Eidos16 apareceriam nesse sentido em pelo menos duas passagens, a
saber, 5d e 6d-e, embora Guthrie advirta (1975, p.117) que no podemos assumir que o dilogo
as exponha com o mesmo sentido presente nos dilogos posteriores.
A linguagem usada no Eutfron para caracterizar as Formas e suas relaes com
suas instncias parece indicar que as Formas acerca das quais Scrates fala seriam
16 ROSS, D. Platos Theory of Ideas, 1951, p. 15-16: What we find is that Plato not seldom uses both words in
their original meaning visible form, that he uses both words in various non-technical senses in which they had
been used by earlier writers, and that he uses both words in the two technical senses of Idea and class. While
in the dialogues from the Phaedo onwards, with the exception of the Parmenides, the meaning class is the
commonest meaning of [eidos], it is only rarely that [idea] is used in this sense. [idea] is the more vivid of the two
words, and tends to be preferred in the highly coloured and imaginative passages. It may be added that Plato often
uses [ousia] and [physis] as ways of referring to an Idea, and that he so uses [genos] in the Sophistes, and [henas]
and [monas] in the Philebus.
23
caractersticas imanentes dos objetos. Em 5d, Scrates pergunta Ou no o haver em todos os
actos uma mesma piedade - ela prpria, em si e por si, de todo contrria impiedade e igual
a si prpria e tendo um aspecto nico que far que uma coisa seja mpia pela impiedade?17
, e em outras passagens ele diz que as formas esto presentes em suas instncias e entrando
nelas, enquanto as instncias so ditas como participando em, possuindo e recebendo a
Forma18. As Formas seriam, sim, ao que parece, ontologicamente superiores s suas instncias,
mas no por estarem separadas dos objetos, e sim por serem logicamente anteriores a eles, isto
, os objetos dependem ontologicamente das Formas, mas o contrrio no se verifica (motivo
pelo qual as Formas devem ser tomadas elas por elas mesmas). Em 6e, Scrates chama a
Forma de paradigma, dizendo que ao conhecer tal paradigma ou modelo, a saber, a Forma de
Piedade, podemos tambm dizer quais atos so piedosos e quais no so, apenas ao analisar se
eles so ou no deste tipo. O termo paradigma (paradeigma) o mesmo que figura nos
dilogos da maturidade, quando a linguagem da imanncia d lugar que sugere a
transcendncia das Formas. Segundo essa formulao, as Formas so pensadas como modelos
perfeitos dos quais as instncias sensveis so cpias imperfeitas. Se aceitarmos a advertncia
de Guthrie (1975, p.117) no haveria nada que indicasse essa interpretao no Eutfron.
Tambm no Hpias Maior alega-se encontrar traos das Formas tais como viriam
figurar nos dilogos da maturidade. Em 286d8, Scrates pede a Hpias que o ensine o que o
prprio Belo (ou o Belo ele mesmo), cuja expresso em grego auto to kalon sugere a busca
pela definio da beleza, a caracterstica prpria daquilo que belo e qual a palavra belo faz
meno19. No Crmides, em situao semelhante, Scrates diz ter fracassado em sua busca pela
coisa que nomeada de temperana, o que, novamente, sugere a busca por algo que se mantm
o mesmo e que permite que possamos conhecer e reconhecer exemplos de virtudes.
Embora problemtica, a presena, no Hpias Maior, do termo eidos, assim como
no Eutfron, poderia indicar uma proximidade em relao s Formas transcendentes dos
17 PLATO. utifron, Apologia de Scrates, Crton. Traduo: Jos Trindade dos Santos. 4 ed. Imprensa
Nacional, Casa da Moeda, 1993. Grifo nosso.
18 WEDBERG, A. The Theory of Ideas. In VLASTOS, 1978: We might perhaps say that the Platonic Ideas are
something in between what we call attributes and what we call classes but, on the whole, closer to the former than
to the latter. The Idea of Y-ness is almost the same as what we should call the attribute Y-ness, and to participate
in that Idea is almost the same as having that attibute.
19 ROSS, D. 1951, p. 16: The question conceals a certain ambiguity, of which Plato was perhaps not aware. It
might mean what is that very characteristic which the word beautiful stands for?, or it might mean what is the
characteristic or set of characteristics, other than beauty, which a thing must have in order to be beautiful? But
the phrase the beautiful itself points to the first interpretation [...]
24
dilogos da maturidade. As passagens do Hpias Maior 287c-d e Eutfron 6d apresentam uma
linguagem bastante semelhante quela presente no Fdon 100d, isto , que a condio para as
instanciaes da beleza a existncia da Forma da Beleza, e que precisamente por causa da
Beleza que os objetos so belos. As passagens 289d e 293e-294a do H. Maior, porm, parecem
indicar que essas Formas ainda no seriam objetos transcendentes de conhecimento, mas
caractersticas imanentes nas coisas. Os termos parousia e paragenomenon, que
respectivamente indicam presena e vir a estar presente, so usados ao dizer que as Formas
garantem aos objetos suas caractersticas quando esto ou se fazem presentes neles, ou seja,
quando esto dentro dos objetos ou a eles so adicionadas (prosgignesthai). Quanto ao estatuto
ontolgico das Formas, possvel afirmar que neste primeiro momento a relao da Ideia
para o particular pensada simplesmente como aquela do universal para o particular; como
ainda no h meno da falha do particular em ser um exemplo verdadeiro da Ideia. A Ideia
de beleza aquela coisa idntica a qual d o prazer da viso, o prazer da audio, que est
presente em ambas simultaneamente e em cada uma separadamente. [300a9-b1] (ROSS,
1951 p. 17)20. Vale a pena, portanto, novamente escutar a advertncia de Guthrie.
H ainda referncias s Formas no Mnon e no Crtilo sob os nomes ousa e
mesmo eidos, mas, com exceo da passagem 289a-c onde Scrates diz que o carpinteiro,
ao fazer uma lanadeira, tem em mente uma forma segundo a qual todas as lanadeiras so
feitas, por ser precisamente aquilo que a lanadeira no h, segundo Ross, nenhuma
possvel indicao existncia transcendente das Formas, e o nico propsito da Forma parece
ser o de se contrapor a teoria heracltica do fluxo universal, assegurando, assim, a possibilidade
do conhecimento. No entanto, Guthrie argumenta quanto excluso da possvel transcendncia
das Formas no Mnon, alegando um paralelo entre os argumentos do Fdon e do Mnon21.
20 Traduo: Turma Geral III, sob orientao do Prof. Marcus Reis. 2008, p. 19.
21 GUTHRIE, W.K.C. A History of Greek philosophy (Vol. IV), 1975: As in the Phaedo we are reminded of
absolute equality by the sight of approximately equal things, so the slave recalls an abstract, lasting truth of
geometry through seeing visible lines, roughly drawn and soon to be obliterated. Moreover the experiment would
fail of its purpose unless virtue, like mathematics, was known to us in our pre-natal state, and Plato takes the
trouble to say that it was (81c8); and if a moral quality existing outside the sensible world, and seen by bodiless
souls, is not a Form or Platonic Idea, it is difficult to see what is.
25
2.2 A doutrina clssica das Formas
Os primeiros sinais inequvocos de transcendncia das Formas parecem surgir no
Banquete (ROSS, 1951, p. 21). Em 211a-c, Diotima explica o que realmente a Forma da
Beleza: aquilo que por si mesmo, consigo mesmo, eterno e uniforme (auto kathhauto
methhauto monoeides aei on) e que no relativamente belo. Acima de tudo, algo que no
est nos corpos, nem nos animais, nem no cu, nem na terra, e no est na mente (no uma
ideia ou um pensamento); isto , a Forma existiria independente do mundo e do ser humano.
Assim, podemos notar que a maneira que a Forma descrita no Banquete indica o mesmo objeto
de conhecimento descrito no Hpias Maior, e que viria a ser mais explorado na Repblica. Aqui,
a Forma se v separada dos objetos sensveis, cuja beleza apenas traria uma experincia de um
tipo menor de beleza; e em oposio ao patamar final da escada ertica, onde a alma, separada
dos sentidos e das coisas corpreas, contemplaria a prpria Beleza. No Fdon somos levados
concluso de que, dadas as dificuldades encontradas nos objetos apreendidos pelos sentidos
corpreos, apenas a imortalidade da alma poderia garantir o conhecimento verdadeiro. No
bastassem as dificuldades apresentadas pelo mundo externo, o prprio contato da alma com o
corpo j causaria sofrimento e mudana, e apenas libertando-se dessa priso sensvel o filsofo
estaria finalmente apto a ter um contato direto com as Formas.
A dialtica, processo pelo qual podemos entrar em contato com as Formas,
descrita na Repblica e encontra tambm um paralelo no Banquete. A alma (psyche) toma
conhecimento da Forma na qual participam os objetos sensveis, e depois, descartando os
sentidos, passa a compreenso das outras Formas, finalmente chegando a Forma ltima do Bem.
Segundo Guthrie (1975, p.392), podemos compreender melhor a Forma da Beleza,
e a nossa relao com ela no Fedro. O caminho para o conhecimento verdadeiro, aqui, tal como
no Banquete, se inicia atravs do Eros filosfico: primeiramente com o desejo pela beleza
num corpo particular, e depois avanando para formas mais abstratas de beleza; ou seja, assim
como no Banquete, os sentidos seriam o primeiro instrumento (embora relacionados a objetos
ontologicamente inferiores, e, portanto, eles mesmos inferiores, como nos apresentado no
Fdon) para iniciar a jornada intelectual at as Formas. Assim, que outra maneira melhor para
se iniciar do que pela apreciao da beleza, j que os objetos participantes da beleza oferecem
um vislumbre da Forma aos olhos do corpo e aos da alma? Desta forma, o caminho para o
conhecimento iniciar-se-ia atravs da viso da beleza num corpo humano, e ascenderia
gradativamente enquanto os amantes, juntos, conseguiriam sublimar seu desejo e alcanar uma
26
busca dialtica atravs da discusso filosfica. A Forma da Beleza o que garantiria a ligao
epistemolgica dos objetos sensveis com as Formas, e consequentemente, a possibilidade do
conhecimento verdadeiro. O Banquete e o Fedro apresentam um lado do impulso que leva ao
conhecimento diferente do apresentado nos outros dilogos: no apenas curiosidade
intelectual, mas desejo sexual, paixo uma loucura, mas de tipo divina (GUTHRIE, 1975,
p.427).
O ponto que uniria o Mnon, o Fdon e o Fedro a doutrina da reminiscncia
(anamnesis). Mas o que reminiscncia? De acordo com uma verso esquemtica da doutrina,
o conhecimento que ns adquirimos atravs das nossas sensaes no so meios para a
constituio do conhecimento verdadeiro. O conhecimento verdadeiro, isto , o conhecimento
das Formas, adquirido pela alma antes da unio com o corpo. No Fedro 249b-c, exposto que
apenas as almas que j viram as Formas podem nascer como seres humanos, porque apenas o
ser humano capaz de formar conceitos gerais, ou universais e atravs destes, lembrar-se da
realidade que presenciaram ao lado dos deuses. Estes conceitos seriam o instrumento que o
filsofo utiliza para avanar at o conhecimento verdadeiro; eles no so as Formas, mas so
chamados por seus nomes, e o fato de adquiri-los no seria nada alm de exercitar uma
faculdade humana. Ou seja, aquilo que pensamos aprender em vida, na verdade seria apenas
uma rememorao de conhecimentos aprendidos antes da vida, isto , antes da unio da alma
com o corpo. No Fdon, a doutrina da reminiscncia utilizada como argumento para provar a
imortalidade da alma, e explicada em 73c-d: um indivduo lembrado do conhecimento
verdadeiro (Formas) ao entrar em contato com objetos que, por serem semelhantes Forma,
trazem a memria do conhecimento antes adquirido pela alma, que diferente daquele que
trouxe a lembrana; assim, este indivduo passa a saber novamente, em vida, aquilo que ele j
havia aprendido antes da vida. No Mnon, Scrates apresenta esta hiptese para responder ao
paradoxo de Mnon: se algum no sabe (tem conhecimento de) aquilo que procura, como ele
saberia se encontrou ou no aquilo que procurava? Scrates, ento, diz que o conhecimento
teria, na verdade, sido adquirido em vidas passadas (o que nos permitiria perguntar, qual
condio nessas vidas passadas teria permitido esse conhecimento, e que, portanto, as faria
escapar do paradoxo).
Na Repblica, entretanto, as Formas no aparecem como parte da discusso
principal, mas a concepo de que as Formas existem trazida indiretamente discusso; assim,
preciso estar atento ao papel que as Formas desempenham ao longo de todo o dilogo
(ANNAS, 1981, p.217). Existem, entretanto, algumas passagens que falam explicitamente das
27
Formas na Repblica: por exemplo, no livro X (596a), Scrates pede a Glauco que postule uma
forma, relacionada a cada uma das muitas coisas s quais aplicamos o mesmo nome (onoma);
seguida imediatamente do argumento das trs camas (X.597c-d), onde Scrates argumenta que
o deus teria feito apenas uma Forma de Cama, j que, se houvesse duas Formas, ambas teriam
uma mesma Forma, e essa terceira Forma de Cama que seria aquilo que ser Cama; assim,
necessrio que a Forma seja uma e a mesma que uma multiplicidade possui.
Alm dessas passagens no livro X, a Repblica tambm apresenta outras trs
passagens importantes acerca das Formas, especialmente sobre a Forma de Bem: a passagem
que expe a analogia entre Sol e a Forma do Bem (VI.504e-509c), a passagem sobre a Linha
Dividida (VI.509c-511e), e a alegoria da Caverna (VII.514a-518b). Ao final das metforas e
analogias, percebemos como as trs esto conectadas, e esto a falar de aspectos diferentes de
uma mesma doutrina. Antes dessas passagens, temos indicaes daquilo que vir a seguir nas
trs clebres imagens platnicas. Em V.476a, Plato diferencia dois tipos de objetos: 1) aquilo
que realmente ; e 2) aquilo que est entre ser e no ser. Aos dois objetos correspondem dois
tipos de estados mentais, respectivamente: o conhecimento, a opinio. A ignorncia, por sua
vez, relacionada quilo que no , caracterizada, portanto, pela ausncia total de um objeto.
Ao primeiro tipo de objetos, esto relacionados os filsofos, isto , aqueles que reconhecem as
Formas e os objetos sensveis, e, reconhecendo-os, capaz de diferenci-los; os amantes de
sons e imagens relacionam-se aos objetos da opinio, ou seja, os objetos que esto entre o que
real, e o que irreal (aquilo que no ). Assim, temos a indicao de quem estar apto a seguir
pelo caminho do conhecimento, e vislumbrar as Formas.
Na passagem VI.504e-509c, encontraremos a analogia do Sol com a Forma de Bem.
Nesta passagem, Scrates vai diferenciar a viso dos outros sentidos, na medida em que, para
que a viso funcione, necessrio um intermedirio
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