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O PÚBLICO, PRIVADO E ESTATAL: APONTAMENTOS PARA O DEBATE
Janaina Bilate1
Resumo Esta comunicação visa refletir acerca das noções de público, privado e estatal, possibilitando alguns aportes teóricos que as orientam e quais os rebatimentos disto no Brasil no que tange à compreensão, pela população, do que sejam estes conceitos em relação ao acesso a direitos sociais. Em um primeiro momento, apontamos as concepções teóricas sobre público, privado e estatal, posteriormente centrando a análise em nível de Brasil.
Palavras-chave: público; privado; estatal.
Abstract
This communication aims at reflecting on the notions of public, private and state, allowing some theoretical contributions that guide them and what the repercussions of this in Brazil regarding the understanding, by the population, of these concepts in relation to access to social rights. At first, we point out the theoretical conceptions about public, private and state, later centering the analysis at the level of Brazil.
Keywords: public; private; state.
1 Professora Adjunta VI da Escola de Serviço Social da UNIRIO, Coordenadora do Projeto de
Extensão “Cultura, Mídia e Direitos Humanos”, e da Pesquisa “Assessoria em Serviço Social: limites e possibilidades da assessoria a movimentos sociais e à sociedade civil organizada”.
I. INTRODUÇÃO
A proposta destas reflexões visa a dar alguns elementos para pensar as o crescente
processo de privatização de políticas sociais no Brasil, expressando a contramão das
garantias na Constituição Federal de 1988. Para tal, abordaremos alguns pontos sobre o
público, o privado e o estatal no Brasil e suas possíveis influências na construção da
proteção social no Brasil, à luz da Constituição de 1988, documento este que emerge na
contracorrente da implementação do neoliberalismo no Brasil.
Esta comunicação não visa enfrentar a temática da privatização, mas sim trazer
elementos históricos e teóricos que orientam as concepções de público, privado e estatal
para que possamos apontar elementos para o debate do que sejam estas concepções hoje
e os rebatimentos disto nos processos de construção de um “terceiro setor”, nem estado
nem mercado, e mais acentuadamente, a partir do Governo Michel Temer, do desmonte da
Constituição de 1988 com as odes às privatizações.
II. O PÚBLICO, O PRIVADO E O ESTATAL
A origem da categorização do que é público surge, segundo Habermas (1984), com
o nascimento da sociedade burguesa. O que é público e privado pode ser interpretado por
diversos eixos de análise, desde questões acerca de “opinião pública” até o não
entendimento de algo que está sendo emitido no campo da linguagem, que possui uma
apreensão restrita a determinadas camadas sociais, como por exemplo, a missa rezada em
Latim que não poderia ser compreendida pelas camadas mais populares na Idade Média
(Habermas, 1984).
Inicialmente, ao longo de toda a Idade Média, foram transmitidas as categorias de público e de privado nas definições do Direito Romano: a esfera pública como res publica. É verdade que elas só passam a ter novamente uma efetiva aplicação processual jurídica com o surgimento do Estado moderno e com aquela esfera da sociedade civil separada dele: servem para a evidência política, bem como para a institucionalização jurídica, em sentido específico, de uma esfera pública burguesa. (Habermas, idem, ibidem. p.17)
Ao analisar essa questão, Manuel Aires (1993) acha importante resgatar que o
surgimento do que é público para Habermas tem início no século XVIII, e seu estudo a este
respeito contém duas noções fundamentais: ideologia e crítica. A ideologia vem
caracterizada como uma forma de iludir de maneira eficiente toda a sociedade, mantendo a
reprodução das relações de poder da sociedade capitalista. Habermas propõe que “essa
esfera política tem suas origens, tanto na esfera pública literária quanto na própria esfera
pública representativa, e estrutura-se como esfera crítica quando o Estado intervém na
economia doméstica.” (Aires, 1993: 2). Segundo Aires (1993), Habermas apresenta um
modelo de esfera pública que se estrutura pela representação, emergida ao longo da Idade
Média européia, não como a legitimação de um domínio social, mas no desempenho da
função de permitir que o senhor feudal se designasse e se apresentasse como a autoridade
publica superior aos outros componentes da sociedade. Esta forma de representatividade
exerce uma forte influência na sociedade européia até o início do século XIX.
A segunda noção, a de crítica, aparece em Habermas associada à razão e, conforme
Aires (1993:3), não opera com a diferenciação entre moral e política. “Na esfera pública
burguesa, essa crítica é sempre dirigida contra o Estado, e a partir do seu exercício
consolida-se a idéia de uma opinião pública.” Vale ressaltar que Habermas, ao trabalhar
com a idéia de crítica, integra objetividade e subjetividade, não apresentando apenas visões
parciais da relação entre espaço público e espaço privado, desencadeando em uma
categorização mais abrangente destes termos (Aires, 1993). Habermas afirma ainda que
Durante a Idade Média européia, a contraposição entre publicus e privatus, embora corrente, não tinha vínculo da obrigatoriedade. Exatamente a precária tentativa de uma aplicação nas relações jurídicas da dominação feudal fundiária e de vassalagem fornece, sem querer, indícios de que não existiu uma antítese entre esfera pública e esfera privada segundo o modelo clássico antigo (ou moderno). (Habermas, 1984:17)
Deste modo, a principal característica que Habermas destaca sobre a esfera pública
em sua origem é a de que sua atividade não se determina às funções do Estado, portanto,
situando-se entre a esfera privada e o poder estatal, sem que haja sinonímia entre este
último e seu significado (Aires, 1993:45).
De acordo com Habermas, à medida que os bens culturais e as informações tornam-
se mercadorias, podendo ser consumidas por pessoas privadas em uma relação de troca no
mercado, são assumidos como público, pois podem, via de regra, ser acessíveis a todos
economicamente habilitados a comprá-los, contudo, o poder de compra não é universal, não
é público. Ou seja, Habermas ao desenvolver sua análise, assume que o que é público e o
que é privado depende do ângulo de interpretação e do momento histórico no qual as
mediações são processadas.
A perspectiva a que Habermas recorre para a compreensão do público e da esfera
pública traz à tona, no limiar do século XVIII, uma significação que, de certa forma, guia os
debates atuais sobre a correlação entre esfera pública e política.
Uma esfera pública funcionando politicamente aparece primeiro na Inglaterra na virada para o século XVIII. Forças que querem então passar a ter influência sobre as decisões do poder estatal apelam para o público pensante a fim de legitimar reivindicações ante esse novo fórum. No contexto dessa práxis, a assembléia dos estados se constitui num moderno parlamento, processo que se estende ao longo de todo o século. (Habermas, 1984:75)
Esta consideração de Habermas possibilita um outro viés de importante relevância
para a delimitação do termo enquanto categoria de análise. O funcionamento de uma esfera
pública politicamente atua como um elemento fundamental na definição do que é Estado,
sociedade civil e sociedade política nesta fase do capitalismo concorrencial a que ele se
remete. Acontecimentos como a criação do Banco da Inglaterra representam um novo e
importante estágio do sistema capitalista, contendo em seu cerne a proposta de
fortalecimento deste modo de produção, mantido até este marco através de trocas
comerciais (Habermas, 1984).
A noção de esfera pública burguesa política e vinculada ao Estado, relegando a este
a responsabilidade de atuar enquanto poder público, está intrinsecamente vinculada ao
Liberalismo e seu desenvolvimento na Europa nos setecentos. A ação estatal sobre a
sociedade estaria limitada à tarefa de zelar pelo cumprimento das leis sem interferir nos
movimentos do mercado econômico, somente garantindo aos indivíduos privados da
sociedade sua liberdade e propriedade, conforme assinalou Silene Freire:
Vemos assim que, no Liberalismo, os indivíduos devem abdicar da liberdade de “fazer a justiça pelas próprias mãos” e entregá-la a um poder público – o Estado – que, estando acima dos homens e de sua comunidade, zele pelo cumprimento dessa mesma lei. Sendo que como o objetivo único é defender, de cada indivíduo, sua liberdade e propriedade, o Estado jamais pode intervir em assuntos privados, desde que estes não firam a liberdade e propriedade dos indivíduos. (...). Nestes termos, embora se afirme o princípio da legitimidade da intervenção estatal, o Estado nada deve empreender que vá para além do que é necessário para remediar os males gerados pelos abusos da liberdade. (Freire, 1999:63)
A esfera pública que assume funções políticas no decorrer no século XVIII encerra
particularidades inerentes à evolução da sociedade burguesa naquele momento específico
do capitalismo, no qual as relações de troca de mercadorias e o trabalho social se
emancipavam das diretivas estatais. A esfera em questão, neste caso, passa a
desempenhar uma função central, limitando-se a ser o princípio organizatório dos Estados
de Direito burgueses gerenciados por formas de governo parlamentaristas (Habermas,
1984). Em face disto, a esfera pública política da época funciona como um mediador entre a
sociedade burguesa e o poder do Estado.
Diante do exposto, o Estado de Direito burguês, a que Habermas se baseia para
construir seu conceito de esfera pública, Estado este que defende o público acessível a
todos os cidadãos como princípio central de sua organização estatal, não passa de mera
ideologia. O referido Estado é o responsável por coordenar a aplicação de uma Legislação
que atenda ao público, com leis garantidas pela publicização e formuladas levando-se em
conta a vontade coletiva. Todavia esta vontade coletiva é restrita, pois o público formador da
opinião pública não abarcava toda a população.
Um outro eixo de reflexão acerca da emergência da esfera pública, e que possui
pontos convergentes com as mediações de Habermas, é o de Norberto Bobbio (1992).
Segundo Bobbio, a questão sobre a definição destas categorias surge a partir do Direito
Romano2, que em seu código havia a separação entre direito público “quod ad statum rei
romanae spectat” e direito privado “quod ad singulorum utilitatem.” É sob esta perspectiva
que os termos público e privado ingressaram na história do pensamento político e social do
Ocidente.
(...)umas daquelas ‘grandes dicotomias’ das quais uma ou mais disciplinas, neste caso não apenas as disciplinas jurídicas, mas também as sociais e em geral históricas, servem-se para delimitar, representar, ordenar o próprio campo de investigação, como por exemplo, para ficar no âmbito das ciências sociais, paz/guerra, democracia/autocracia, sociedade/comunidade, estado de natureza/estado civil. (Bobbio, 1992: 13)
Bobbio define o binômio público/privado enquanto uma grande dicotomia, onde um
dos termos pode ser definido e o outro pode receber, ao invés de uma definição, a
denotação de oposto ao inicialmente caracterizado. O autor se remete ainda ao fato de que
os dois termos de uma dicotomia são interligados, ambos condicionando-se, ou melhor, “(...)
no interior do espaço que os dois termos delimitam, a partir do momento em que este
espaço é totalmente ocupado (tertium non datur), eles por sua vez se delimitam
reciprocamente, no sentido de que a esfera do público chega até onde começa a esfera do
privado e vice-versa.” (Bobbio, 1992:14).
Bobbio revela ainda que à dicotomia principal público e privado, ainda estão ligadas
outras correspondentes como: sociedade de iguais e sociedade de desiguais; Lei e contrato;
e justiça comutativa e justiça distributiva. Por público, Bobbio assinala que além de definir-
se como tudo aquilo que é manifesto, aberto ao público, feito em público, e por privado
efetivamente seu contrário, não se deve restringir estas noções.
O público e o privado são dimensões que se interpenetram no decorrer do processo
histórico, ou seja, o que é público não deixa de assumir feições privadas e vice-versa,
principalmente – conforme Habermas expõe na obra em questão – a partir do segundo
quartel do século XIX. Esta indissociabilidade é mais fortemente percebida a partir dos anos
70 do século XX, em países onde o capitalismo não se desenvolve de forma dependente, e
nos anos 90 do mesmo século, em países como o Brasil e Argentina3.
2 De acordo com Bobbio (1992:13), estas definições encontram-se situadas no Corpus iuris. Institutiones, I, I, 4; Digesto, I, I, I, 2. 3 Sobre este momento de mudança do modo de acumulação capitalista denominado de Neoliberalismo, dedicaremos um capítulo para estas reflexões. Adiantamos que para melhor compreensão deste sugerimos consultar: HARVEY, David. Condição Pós-moderna. Uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 9ªed. Trad. Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Edições Loyola, 1992; LAURELL, Asa Cristina (org.). Estado e Políticas no neoliberalismo. São Paulo: Cortez, 1995; LESBAUPIN, Ivo. O desmonte da nação. Balanço do governo FHC. 3ªed. Petrópolis: Vozes; SOARES, Laura Tavares Ribeiro. Ajuste neoliberal e desajuste social na América
Embora Habermas não tenha construído suas reflexões sobre a significação destas
esferas sob a denominação de dicotomia em sua obra de análise acerca do movimento de
construção do público e, consequentemente, de significação do privatus em relação ao
publicus, revela que estes conceitos são dicotômicos até o último quartel do século XIX,
quando o autor aponta para a interpenetração progressiva entre tais esferas: “o público
politizado encontra o seu lugar sobretudo nos encontros privados dos burgueses. Nos
últimos decênios do século XVIII, as revistas em expansão (mesmo as revistas políticas) são
diretamente pontos de cristalização da vida social entre as pessoas privadas.” (Habermas,
1984: 91;92), ou seja, a balização destas categorias não somente implica na oposição entre
as mesmas, tendo cada qual sua abrangência limítrofe até ao início da outra, mas também
em uma interpenetração das mesmas, tornando o debate sobre a delimitação destes
conceitos deveras polêmico.
Habermas e Richard Sennet4 apontam que somente existiu uma divisão concreta
entre os domínios público e privado no século XVIII, momento crucial de constituição de
uma esfera pública burguesa, mas que sofre posteriores transformações, principalmente em
fins do século XIX.
Cabe mencionar que a abordagem de Sennet é notoriamente divergente da de
Habermas na construção desta esfera, mesmo tendo ambos tomado como ponto de partida
o século XVIII. Sennet (1998) aponta que Habermas traz à tona a discussão de uma esfera
pública enfatizando os aspectos econômicos em suas abordagens, o que para Sennet
(1998) incorre em um reducionismo de análise quanto à complexidade do tema.
A mudança a que nos referimos no que tange a delimitação da esfera pública,
derivando na interpenetração progressiva entre as esferas pública e privada, origina-se,
segundo Habermas, no último quartel do século XIX. Habermas coloca que, a partir desta
época, passa a emergir uma esfera social repolitizada, que ultrapassa a distinção entre
estas noções.
Cabe mencionar que não defendemos a reforma do Estado na perspectiva neoliberal
de privatização da máquina burocrática, mas sim estamos colocando as características
privatistas do mesmo no intuito de defender uma via de democratização que, justamente,
Latina. Rio de Janeiro: UFRJ. 1ª reimpressão revisada. 368p; OLIVEIRA, Francisco de. & PAOLI, Maria Célia (orgs.) Os sentidos da democracia. Políticas do dissenso e hegemonia global. Coleção Zero à Esquerda. Petrópolis: Vozes, 1999. 4 Richard Sennet enfoca a construção de uma esfera pública baseado na teoria da representação teatral de Diderot. Em seu livro O declínio do homem público. As tiranias da intimidade. Tradução: Lygia Araújo Watanabe. 5ª reimpressão. São Paulo: Cia das Letras, 1998, Sennet se utiliza da teoria de Diderot, em que os atores obedecem as marcações no palco sem a possibilidade de improvisação, para construir suas reflexões mantendo uma complementariedade entre palco e rua. Além da obra de Sennet em questão, para melhor compreensão destas abordagens ver AIRES, Manuel Eduardo. Op.cit.
desprivatize o Estado e permita a ampliação da esfera pública, “mas não no sentido de que
cabe à sociedade realizar o que é dever do Estado: no sentido rigoroso de balizar-lhe os
movimentos, de democratizá-lo, de ampliar as arenas de conflito e resolução, e não reprimi-
los.” (Oliveira, 2001: 95).
III. O PÚBLICO, O PRIVADO E O ESTATAL NA FORMAÇÃO SOCIAL, POLÍTICA E
ECONÔMICA BRASILEIRA.
Em particular no Brasil, a definição das instituições chamadas de públicas possui
uma associação direta ao que é proveniente do Estado e dos entes da Federação. A
restrição do público à esfera estatal tem origens na formação do Estado brasileiro,
sobretudo a partir de 1930, quando o processo de modernização se torna mais visível, e
suas peculiaridades no campo da Administração Pública nos permite conjecturar acerca
destes conceitos.
Para melhor compreendermos a peculiaridade da caracterização da
esfera pública no Brasil, não podemos deixar de considerar o desenvolvimento das relações
entre Estado e sociedade, iniciadas com a quebra do estatuto colonial superado como
estado jurídico-político em 1822 (Fernandes, 1987). Não obstante, as transformações
necessárias para tornar favorável a emersão de um substrato material, social e moral
diversos das relações entre os senhores de engenho e a população da colônia, incluindo os
escravos, não sucederam.
De modo que percebamos esta não consolidação, é necessário que nos
remetamos ao Estado brasileiro pós-colônia, que começou a manifestar-se no momento de
predominância do capital mercantil, época em que a Europa ocidental visava à
comercialização de mercadorias em escala mundial, e surge dialeticamente calcado em
bases conservadoras e modernas (Coutinho, 1990). A importação das idéias liberais
representava, prioritariamente, os interesses das elites coloniais em libertarem-se da tutela
colonial. A Independência do Brasil em relação a Portugal possui limites histórico-sociais
que se refletiram na construção efetiva de um Estado nacional, representativo não da Nação
brasileira em sua totalidade, mas de interesses privados de camadas restritas da
população5.
De outro lado, ele demonstra o caráter dúplice do liberalismo. Representava a via pela qual se restabeleceriam, encoberta mas necessariamente, os nexos de dependência em relação ao exterior; desvendava o caminho da autonomia e da supremacia não de um Povo, mas de uma pequena parte dele, que lograra privilegiar seu prestígio social e apossar-se do controle do destino da coletividade.
5 Uma das reflexões sobre o assunto que vale a pena destacar pertence a Roberto Schwarz em seu livro Ao Vencedor as batatas. Forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades, especialmente o primeiro item intitulado “As idéias fora do lugar”.
Todavia, ao lado desses aspectos sombrios, o retrato mostra a dignidade histórico-sociológica da Independência, como revolução política e sociais, e as funções construtivas do liberalismo. (Fernandes, 1987: 42;43)
O Estado que emergia acabou sendo a única entidade com possibilidade de
ser manipulável pelas elites conforme seus interesses particulares, ou para mantermos a
utilização das categorias que guiam nosso debate, interesses privados. Sendo assim, a
estrutura do Estado no Brasil que se origina em 1822, com a proclamação da Independência
em relação a Portugal, dá início à vigência de um conjunto de medidas administrativas de
cunho patrimonialistas, que foram a estrutura dominante do Estado “Nacional”6 Brasileiro até
fins da década de 20 do século passado.
Neste período não existiam classes sociais no Brasil, mas sim estamentos
sociais, entendidos como camadas estruturadas em uma hierarquia que determinava duas
proposições básicas. A primeira era a qualificação de quem mandava mais na região,
caracterizado como mandonismo local (Batista, 1999). A segunda premissa que definia a
hierarquia social era uma espécie de código de normas, onde figurava a noção de homem
respeitável como sendo aquele que possuía escravos, terras, votos, entre outros signos de
representação de poder (Idem,ibidem).
Todavia, o estamento só existia para aqueles que tinham condições de manifestar
poder sobre os outros indivíduos que compunham o Estado brasileiro emergente. A
sociedade foi sendo construída sobre as bases do patrimonialismo, renovando-se o estado
jurídico-político vigente à época colonial, sem que houvesse a renovação dos mecanismos
de controle social (Batista, 1999). A Nação que estava sendo estruturada em cima do
patrimonialismo lograva atender aos interesses do senhor-cidadão, caracterizado como a
metamorfose do senhor da era colonial (Fernandes, 1987).
Com a Independência, as elites coloniais temiam a perda do poder de manutenção
da ordem conforme seus ditames, visando que a sociedade civil emergente ameaçasse o
poder das oligarquias. Por outro lado, estas mesmas elites erguiam-se contra as implicações
sociais, políticas e principalmente econômicas às quais estavam submetidas ao estatuto
colonial, o que diminuía a capacidade de dominação das camadas dirigentes em todos os
âmbitos da ordem social.
O poder judiciário que tinha maior prestígio era o da justiça privada dos grandes
proprietários. Não se podia falar em direitos civis universais, pois o que seria a principal
garantia desses direitos, a justiça, era, conforme Carvalho, instrumento de poder pessoal,
pois o poder governamental encontrava seus limites nas porteiras das grandes fazendas,
6 “Nacional” está entre aspas de acordo com Florestan Fernandes (1987) em A Revolução Burguesa no Brasil para caracterizar a peculiaridade do Estado enquanto Nação no país, visto que o mesmo nunca foi, de acordo com o autor, nacional acessível a todos, conforme o desenvolvimento de nossas reflexões neste trabalho.
caracterizando o público com feições de privado. Os rebatimentos destas práticas de
tomada do público enquanto privado igualmente atingiam a educação.
Chegou-se ao final do período colonial, em 1822, com a grande maioria da
população desprovida dos direitos civis, sociais e políticos: “os direitos civis beneficiavam a
poucos, os direitos políticos a pouquíssimos, dos direitos sociais ainda não se falava, pois a
assistência social estava a cargo da Igreja e de particulares.” (Idem,ibidem. 24). O fato de os
direitos civis, políticos e sociais não contemplarem um grande número de sujeitos sociais é
refletido na não implementação de uma educação básica acessível a todos, e
conseqüentemente na institucionalização precária e elitista de um ensino médio7 e superior.
Encontramos no Brasil uma combinação de elementos tipicamente burgueses,
delimitando as fronteiras entre a esfera pública e a privada, com elementos tipicamente
patrimonialistas, mantendo o privilégio de restrita camada social.
Termos ou expressões como “Povo”, “Nação”, “Opinião Pública”, “o Povo exige”, “o Povo aguarda”, “o Povo espera”, “interesses da Nação”, “a segurança da Nação”, “o futuro da Nação”, “a Opinião Pública pensa”, “Opinião Pública precisa ser esclarecida”, “a Opinião Pública já se manifestou contra” (ou “a favor”) etc. indicavam pura e simplesmente que os diversos estratos das camadas senhoriais deviam ser levados em conta nos processos políticos, desta ou daquela maneira. (Fernandes, 1987:43)
Esta combinação possui suas origens na organização social da Colônia e mantêm-se
após o rompimento dos laços políticos com a Casa de Bragança. O próprio advento do
liberalismo no Estado que tentava emergir enquanto Nação, explica a tendência à
manutenção do status quo ante, conforme afirma Florestan Fernandes (1987). Obviamente
que o liberalismo no Brasil foi impulsionado pelas elites coloniais, mas com o intuito de
desvincularem-se juridicamente de Portugal, objetivando o alargamento do poder destas
elites sobre a sociedade brasileira emergente (Fernandes, 1987).
Outra feição assumida pelo liberalismo político no Brasil – que naquele momento
tentava se efetivar enquanto Estado nacional – adotada conforme os ideais das elites
brasileiras foi o princípio de que o Estado regia e vigiava o cumprimento das leis, sem
intervir no movimento econômico do país nem nas propriedades privadas dos cidadãos
7 Como nossa análise é centrada no ensino superior, recomendamos os seguintes títulos para a ampliação dos conhecimentos sobre as políticas educacionais nos ensino fundamental (abarcando os primeiro e segundo segmentos) e médio: BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 20/12/1996, publicada no D.O.U. em 23/12/1996; BUFFA, Esther. Ideologias em conflito: escola publica e escola privada. São Paulo: Cortez e Moraes, 1979; CUNHA, Luiz Antônio. Educação, Estado e Democracia no Brasil. 4ªed. São Paulo: Cortez; Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense; Brasília/DF: FLACSO do Brasil, 2001; DAVIS, Nicholas. O estatal, o público e o privado em educação: tensões e ambigüidades. Tese de doutorado apresentada ao Departamento de Sociologia da Universidade de são Paulo, 1999. Mímeo; LEAL, Maria Cristina. Condicionantes do planejamento na alocação de recursos no 1º e 2º graus. UFRJ: Rio de Janeiro, 1991 (Tese de Doutorado em Educação); SHIROMA, Eneida Oto et alii. Política Educacional. 2ª ed. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2002.
(Freire, 1999). O Estado acabou sendo apropriado como meio através do qual e fim pelo
qual as elites coordenavam os processos sociais, políticos e econômicos, não
universalizando o acesso às funções estatais. A conjunção do liberalismo político – de
caráter modernizador – com a escravidão – de caráter conservador – resultaram em inércia
social e tradicionalismo no trato das questões estatais.
Ao contrário do ocorrido na Inglaterra do século XVI, quando se constitui o que se
chama de “nação” (Habermas, 1984), através principalmente da nacionalização da
economia das cidades, no Brasil esta transformação social somente ocorrerá no século XIX.
Ao abordarmos as significações de público e privado no Brasil, não podemos deixar
de levar em conta um aspecto relevante na categorização do que vem a ser privado. Desde
antes da Independência o papel da família na sociedade brasileira ultrapassava as barreiras
do privado familiar, o qual supostamente teria como esfera de atuação a residência de
determinado grupo de pessoas. A família patriarcal brasileira ganha importante papel,
segundo Nestor Duarte (1966), mediante a colonização por Capitanias Hereditárias 8 ,
permitindo que este grupo privado de pessoas tivesse grande influência no Governo, o qual
a priori é constituído com vistas a funcionar publicamente. Duarte (1966) defende a hipótese
de que as famílias tradicionais que ocuparam primeiramente o território brasileiro e também
as igrejas têm importante papel na caracterização privatista do Estado brasileiro:
A família (...) como conjunto de interesse, sentimento e espírito privado não é base e fundamento do Estado. (...) A família é antes um grupo hostil ao grupo político, refratário, enfim, ao espírito que domina a organização estatal. (...) a religião católica modificou o sentido romano do fenômeno político, para exercê-lo, como na Idade Média, sob a forma do interesse, da relação e do direito privado. Fundiu-o às instituições da família e da propriedade para impedir sua diferenciação e ascendência. (Duarte, 1966: 12-16)
Isto posto, podemos vislumbrar a interpenetração entre as esfera pública e privada,
suscitando uma série de confusões analíticas no que se relaciona a delimitação destas
noções. A família atuando no Governo àquela época já demonstrava um caráter privado na
representação do interesse do público, que deveria representar a vontade da grande maioria
da população, não se restringindo somente aos que tinham privilégios no campo da
administração pública.
Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, obra escrita nos anos 30,
igualmente defende essa hipótese de que a família patriarcal, sendo o centro da vida social,
contribuiu para a construção de uma esfera pública com características de esfera privada:
O quadro familiar torna-se, assim, tão poderoso e exigente, que sua sombra persegue os indivíduos mesmo fora do recinto doméstico. A entidade privada precede sempre, neles, a entidade pública. A nostalgia dessa organização compacta, única e intransferível, onde prevalecem necessariamente as preferências
8 Para uma discussão mais detalhada do pensamento de Nestor Duarte a esse respeito ver DUARTE, Nestor. A ordem privada e a organização política nacional. São Paulo: Editora Nacional, 1966.
fundadas em laços afetivos, não podia deixar de marcar nossa sociedade, nossa vida pública. (...) O resultado era predominarem, em toda a vida social, sentimentos próprios à comunidade doméstica, naturalmente particularista e antipolítica, uma invasão do público pelo privado, do Estado pela família. (Buarque de Holanda, 1969:50)
A Igreja foi outra instituição de grande relevância na formação restrita de uma esfera
pública. Principalmente no que tange a educação, o papel que este aparelho privado de
hegemonia9 exerceu nos Período Colonial (1500-1822); Imperial (1822-1889) e na Primeira
República (1889-1930) foi de reproduzir as relações de dominação e a ideologia dominante
vigentes nestes períodos. Mais especificamente no Período Colonial, as escolas jesuíticas,
especialmente os colégios e seminários que funcionavam no Brasil-Colônia, mantinham as
funções de reprodução do status quo.
Entretanto, não é com a emergência da República e a promulgação da Carta Magna
de 1824 que se inicia a formação de um Estado de Direito que legitime um público universal.
Nesta fase, a prática patrimonialista de administração estatal ganha bases legais, mas
também, no decorrer do período republicano, apresenta contradições (Batista, 1999). A
mutação do poder oligárquico burguês ao poder industrial burguês sucedeu no interior do
Estado, mantendo a lógica elitista de origem colonial. Isto resulta no fato de o Estado
brasileiro ser concomitantemente capitalista, pois atua a favor da acumulação de capital, e
patrimonialista, sem romper com a apropriação privada do bem público.
IV. Considerações Finais
Especificamente neste país, a formação de grupos dominantes que atuavam na
política e economia de forma coronelista, patrimonialista e clientelista, mantendo as bases
do poder latifundiário, de um lado, e, de outro, submetendo-se ao imperialismo internacional,
o que fez com que a burguesia nacional houvesse realizado a passagem para a dominação
econômica de classe sem nenhuma forma de ruptura revolucionária, propiciou uma espécie
de “revolução passiva” ou “pelo alto”.
Nesse sentido, vale mencionar que em 82 anos de história da mudança na
dominação de classe (1930-2012), 35 são dominados por ditaduras (1930-45 / 1964-84)
com várias tentativas de golpes frustradas, o que se constitui em uma média de uma
tentativa de golpe para cada três anos. Conforme Oliveira (1999:61), “todo o esforço de
9 Gramsci caracteriza a sociedade civil como a base que sustenta e difunde determinada ideologia, através da hegemonia, ao contrário da sociedade política, que o faz através dos aparelhos repressivos do Estado, pela coerção. Diante disto, os aparelhos privados de hegemonia, que são os organismos políticos aos quais se adere voluntariamente – escola, igreja, partidos políticos, organizações sindicais, organização material da cultura (jornais, revistas, meios de comunicação de massa, etc.) entre outros – e aos quais a coerção e a repressão não são meios de convencer os filiados a participarem, são os principais meios de difusão ideológica.
democratização, de criação de uma esfera pública, de fazer política, enfim, no Brasil,
decorreu, quase por inteiro, da ação das classes dominadas.”
Ao observarmos este mecanismo estrangulador do acesso aos direitos sociais,
políticos e econômicos, a concepção do que definimos como direito restringe-se à
concepção de privilégio. Ou seja, quando falamos em exclusividade na obtenção dos
serviços integrantes de um Estado de Direito, imediatamente compreendemos esta relação
desigual de acessibilidade entre os cidadãos como privilégio, benefícios concedidos de
forma desigual e direcionados para a perpetuação das desigualdades sociais.
Cumpre, portanto, assinalarmos, que é neste caminho que são implementadas as
políticas sociais no Brasil, em um processo antidemocrático de construção da cidadania.
Conseqüentemente, inseridas neste universo, decorre a direção privatista da formação das
políticas ‘públicas’ relativas a educação no país, sobre o que delinearemos no item seguinte.
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