o rock rural de sá, rodrix & guarabyra: romantismo ... · primeiramente, agradeço à minha...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO JOO DEL-REI
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA - PGHIS
O Rock Rural de S, Rodrix & Guarabyra:
romantismo contracultural no Brasil dos anos 1970.
Victor Henrique de Resende
So Joo Del-Rei
2013
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO JOO DEL-REI
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA - PGHIS
O Rock Rural de S, Rodrix & Guarabyra:
romantismo contracultural no Brasil dos anos 1970.
Dissertao apresentada Ps-Graduao
em Histria, com vistas obteno de Ttu-
lo de Mestre em Histria.
Linha de pesquisa: Cultura e Identidade.
Orientadora: Professora Dra. Silvia M. Jar-
dim Brgger.
Banca Examinadora: Professor Dr. Adalber-
to de Paula Paranhos Professor Dr. Danilo J.
Zioni Ferretti.
Victor Henrique de Resende
So Joo Del-Rei
2013
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Resende, Victor Henrique de
R433r O rock rural de S, Rodrix & Guarabyra: romantismo contracultural no Brasil dos anos
1970[manuscrito] / Victor Henrique de Resende . 2013.
143 f. ; il.
Orientadora: Silvia Maria Jardim Brgger
Dissertao (mestrado) Universidade Federal de So Joo del-Rei. Departamento de Cincias
Sociais, Polticas e Jurdicas.
Referncias: f. 134-143.
1. Rock - Teses. 2. Contracultura Teses. 3. Campo-cidade Teses. 4. Romantismo na
msica Teses. 5. Identidade nacional Teses. I. Brgger, Silvia Maria Jardim(orientadora)
II. Universidade Federal de So Joo del- Rei. Departamento de Cincias Sociais, Polticas e Jurdicas.
III. Ttulo
CDU: 78(81)(091)
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O Rock Rural de S, Rodrix & Guarabyra:
romantismo contracultural no Brasil dos anos 1970.
Victor Henrique de Resende
Dissertao submetida ao Programa de Ps-Graduao em Histria, do Departamento
de Cincias Sociais, Polticas e Jurdicas, da Universidade Federal de So Joo Del-Rei,
como parte dos requisitos necessrios obteno do grau de Mestre em Histria.
Aprovado em __ de ________________ de ____.
Comisso Examinadora
____________________________________________
Profa. Dra. Silvia Maria Jardim Brgger (orientadora)
____________________________________________
Prof. Dr. Adalberto de Paula Paranhos
____________________________________________
Prof. Dr. Danilo J. Zioni Ferretti.
So Joo Del-Rei
2013
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Agradecimentos
Primeiramente, agradeo minha esposa, cujo trabalho dedico de corpo e alma.
Sem essa luz que me guia, no conseguiria concluir essa etapa. Muitas vezes, quando
me faltavam sensibilidades e pacincia para interpretar as canes, minha cara compa-
nheira surgia para me resgatar das armadilhas de interpretao do documento sonoro.
professora Slvia, por aceitar a tarefa de me orientar e pela autonomia que me
proporcionou no pensar as ideias e no redigir esta obra.
Aos professores Cssia Palha, Danilo Ferreti e Adalberto Paranhos, pelas suges-
tes, crticas e puxes de orelha, contribuindo para o resultado final deste trabalho. A-
gradecimento especial ao professor Danilo, que me acompanhou desde a graduao com
minhas angstias ao definir meu objeto de estudo, e pelo encorajamento na minha for-
mao e desejo de prosseguir na rdua tarefa de ser historiador.
Agradecimento, mais que especial, a Mrio Figueiredo Filho (Marinho), pelas
vrias horas de conversa e escuta sobre rock e pelos materiais que me forneceu. Sua
acolhida, ao que chamei de Pequeno Templo do Rock dos anos 1970, que propor-
cionou a qualidade documental desta dissertao.
A Luiz Carlos S, pela generosidade e disponibilidade de manter contato, ao
longo da pesquisa. Sem suas interlocues e sinalizaes positivas sobre o trabalho do
trio, esse estudo no poderia se realizar. Espero algum dia, encontr-lo pelas estradas da
msica.
Aos vrios colegas de mestrado, em destaque Maurcio e Josiane, pelas vrias
conversas pela UFSJ, em que pude clarear, cada vez mais, meus horizontes historiogr-
ficos.
Ficam aqui os agradecimentos aos demais professores, colegas e funcionrios do
Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal de So Joo Del-Rei
(PGHIS-UFSJ) e a CAPES, pela bolsa de estudos.
E, por fim, aos que acabei de esquecer, e que so muitos, o meu eterno obrigado.
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Resumo
A presente dissertao trata do Rock Rural desenvolvido pelos msicos S, Rodrix &
Guarabyra, na dcada de 1970, no Brasil. No regime ditatorial brasileiro do perodo, os
msicos cantaram, em suas composies, as experincias e o trnsito entre cidade e
campo, dentro do contexto de acelerada urbanizao e modernizao do pas. Com a
anlise da obra musical, fonte primria indispensvel ao tema, prope-se a insero de
novos artistas no debate esttico-ideolgico do perodo da ditadura, contribuindo para o
entendimento dos contrastes sociais e dos projetos de representao da cultura brasilei-
ra. discutido, especificamente, o gnero rock dos compositores em questo, uma m-
sica hbrida, que mistura guitarras, violes, ou seja, elementos modernos e tradicionais
na cultura artstica do pas, com dilogos com a contracultura que chega e apropriada
no Brasil. Demonstra-se que sua msica constituiu-se numa forma de crtica a certos
valores e comportamentos da modernidade capitalista brasileira, trazendo, tambm, uma
ideia de brasilidade, de identidade nacional.
Palavras-chave: rock; contracultura; romantismo; campo-cidade; identidade nacional.
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Abstract
The present dissertation deals with the country rock music developed by the musicians
S, Rodrix & Guarabyra, in the 1970s, in Brazil. During the Brazilian dictatorship re-
gime the musicians sang, through their compositions, experiences and the traffic be-
tween the city and the countryside, in a context of fast modernization and urbanization
of the country. Through the musical work analyses, primary source essential for the
theme, the introduction of new artists into the aesthetic-ideological debate during the
dictatorship regime is proposed, contributing for the comprehension of the social con-
trasts and cultural Brazilian projects. The rock gender from the composers in question is
specifically discussed, as hybrid music which mixes electric and acoustic guitars, that is,
modern and traditional elements from the artistic culture in the country talking to the
coming counter-culture adapted to Brazil. It is thought its music establishes as a kind of
criticism to certain values e behaviors of Brazilian capitalist modernity, bringing, as
well, an idea of brasilidade, of national identity.
Keywords: rock; counter-culture; romance; countryside-city; national identity.
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Sumrio
Introduo ....................................................................................................................... 9
Captulo 1: O sonho no acabou romantismo, contracultura e rock no Brasil dos
anos 1970 ....................................................................................................................... 15
1.1. Dos Romantismos no Brasil e no mundo. ........................................................ 29
1.2. Apesar da ditadura: a contracultura no Brasil. ......................................... 31
1.3. Rock, bananas e outras formas de cantar o Brasil: o caso do rock rural. ... 37
Captulo 2: Entre campo e cidade ............................................................................... 46
2.1. Rock Rural: trnsito entre campo e cidade. ................................................... 57
2.2. Uma crtica romntica e urbana da realidade brasileira. .............................. 61
2.3. E continua a cano da estrada. ....................................................................... 82
2.4. Eclogos musicais e indstria cultural. ........................................................... 87
2.5. Entre a metralhadora, a queixada de burro e o LSD. .................................... 93
Captulo 3: Uma ideia de Brasil e de msica brasileira ............................................ 98
3.1 Do violo, da viola e da guitarra eltrica. ....................................................... 109
3.2. Mediadores da cultura e da msica brasileira? ............................................ 119
Inconcluses e outras estradas .................................................................................. 131
Fontes ........................................................................................................................... 134
Discografia: ............................................................................................................. 134
Artigos e Revistas: .................................................................................................. 134
Vendas de discos: .................................................................................................... 135
Entrevistas em meio eletrnico: ............................................................................ 135
Bibliografia: ................................................................................................................ 135
Obras fsicas: ........................................................................................................... 135
Artigos digitais: ....................................................................................................... 142
Sites de consulta contnua: ..................................................................................... 143
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Introduo
A presente dissertao trata do rock rural do trio S, Rodrix & Guarabyra, nos
anos 1970, no Brasil. Visa, sobretudo, preencher algumas lacunas na pesquisa sobre
histria e msica brasileira, contribuindo, desse modo, para adensar as discusses sobre
identidade nacional e brasilidade. Com este trabalho, mostra-se que os anos iniciais da
dcada de 1970, no Brasil, foram permeados de novidades musicais. Nesse contexto, o
rock que chega e apropriado por vrios artistas nacionais, desde os anos 1950, sofre,
no pas, um processo de abrasileiramento. Dito de forma mais clara, constitui-se um
rock brasileiro, cuja contribuio do trio aqui em discusso e de outras bandas e debates
por parte de crticos, intelectuais e produtores musicais, como ser visto, so fundamen-
tais para que o gnero rock se firme por essas terras.
Como ideia fundamental da investigao afirma-se que o rock executado pelos
artistas em questo traz, como trao marcante, certas aproximaes com a contracultura
e com as ideias romnticas do perodo, quais sejam: busca de uma vida ligada ao cam-
po, em contato com a natureza, ideia de comunidade e valorizao do sujeito frente
atomizao social posta pela modernidade. Dessa forma, constri-se a ideia de um ro-
mantismo contracultural nos anos 1970, que passa pela produo dos artistas aqui traba-
lhados.
Como fontes principais, so tomadas as produes musicais do trio encontradas
em seus dois discos. Como desdobramento, analisa-se o primeiro LP da dupla S &
Guarabyra que, aps a sada do parceiro Rodrix, continuam a cantar a estrada, o campo
e a cidade. Por delimitao de pesquisa, as demais obras da dupla foram deixadas para
futuros aprofundamentos, mas, ao longo do texto, as referncias de algumas composi-
es e discos aparecem em nota de rodap. A pesquisa, ento, compreende os anos de
1972 a 1974, perodo em que so produzidos os dois discos de S, Rodrix & Guarabyra
e o primeiro da dupla S & Guarabyra.
A essa altura, deve-se ressaltar que o elemento estrada que possibilita articular
as ideias contraculturais, postas pelos artistas em suas canes. Tratam-se, contudo, de
percepes e crticas urbanas: os artistas, convivendo nos grandes centros de So Paulo
e Rio de Janeiro, a partir de suas experincias e viagens em contato com o meio rural e
com a natureza, lanam um olhar sobre o campo, mas um olhar de quem vive na cidade.
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As fontes inserem-se na produo historiogrfica ancorada no estudo da msica.
Conforme afirma Verena Alberti: os documentos sonoros e audiovisuais firmaram sua
importncia no conjunto do legado da humanidade, e dificilmente iro perder esse
estatuto (ALBERTI, 2004: 62). Assim, tais documentos so importantes para se enten-
der as relaes sociais, econmicas, polticas, culturais, enfim, a histria de determinado
povo, em seu contexto.
Como metodologia, aplicam-se os pressupostos tericos e prticos do historiador
Marcos Napolitano, que sugere o trabalho com as obras musicais articulando letra e
msica estrutura interna musical e esttica. Sendo assim, ao longo do trabalho, procu-
rou-se: a) organizar a ficha tcnica das fontes: gnero, suporte, origem, data, autoria,
contedo referente, acervo, a fim de criar um banco de dados para as obras estudadas; b)
articular cdigos verbais e parmetros musicais das composies selecionadas; c) anali-
sar as fontes musicais como testemunhos da histria sociocultural; d) decodificar os
elementos constituintes das msicas: letra, harmonia, melodia, ritmo e dinmica, para
uma anlise minuciosa do enfoque histrico proposto; e) executar a audio sistemtica
e repetida das canes; f) analisar cada item das msicas: letra, estrutura musical me-
lodia, harmonia e ritmo bem como sonoridades vocais e instrumentais timbres, di-
nmicas e improvisaes e quando necessrio e pertinente, as performances visuais e
os efeitos extramusicais; g) e, por fim, reorganizar todos os elementos das msicas, ela-
borando uma sntese para verificar as hipteses da pesquisa.
No faltaram, contudo, vrias fontes complementares e/ou auxiliares. Dentro das
possibilidades, foram pesquisados diversos materiais jornalsticos sobre os artistas aqui
tratados, bem como entrevistas e/ou notcias relacionadas trajetria artstica dos msi-
cos no recorte proposto neste estudo, por meio de leitura e seleo exaustiva dos materi-
ais disponveis nos arquivos pessoais do colecionador Mrio Figueiredo Filho, da cida-
de de Lavras, MG, que gentilmente cedeu o seu espao e material: revistas Super Inte-
ressante, Bizz, Revista Rock a msica do sculo XX, Jornal de msica e som, Alto Fa-
lante; tambm, por meio de busca em sites na Internet, principalmente
www.cliquemusic e www.museudapessoa; e peridicos como a revista Veja, presente na
Biblioteca da Universidade Federal de So Joo Del Rei - UFSJ, e disponvel no site:
http://veja.abril.com.br/acervodigital/. Contou-se, tambm, com o artigo de Luiz Carlos
S para a Revista USP, em 2010. Nesse peridico, o autor traa um percurso da carreira
http://www.museudapessoa/http://veja.abril.com.br/acervodigital/
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do trio e dupla, alm de fazer um balano sobre o que representou e representa o rock
rural na msica e na sociedade brasileira. A atualidade do artigo possibilitou a anlise e
a comparao com a memria do msico sobre a cano que produziu e a sociedade em
que se encontrava inserido nos anos 1970.
Desse modo, utilizou-se da abordagem da histria oral. Segundo Verena Alberti,
com a metodologia da histria oral, pode-se: estudar acontecimentos histricos, institu-
ies, grupos sociais, categorias profissionais, movimentos, conjunturas etc., luz de
depoimentos de pessoas que deles participaram ou os testemunharam (ALBERTI,
2004: 18). A princpio, com o objetivo de ser realizada de forma presencial, a entrevista,
que aparece ao longo do texto, foi feita por meio eletrnico a pedido do prprio msico
Luiz Carlos S, que gentilmente a concedeu1. Tratando-se, no caso, de uma forma de
lidar com o depoimento escrito prestado pelo artista, aproximou-se ao mximo da abor-
dagem da histria oral. O roteiro foi enviado para o cantor e na medida de suas possibi-
lidades foi retornado para a composio da pesquisa. Privilegiou-se a forma de entrevis-
ta temtica, mas sem perder algumas caractersticas biogrficas que ajudaram a compor
a trajetria dos artistas aqui envolvidos. Tambm foram utilizadas as entrevistas conti-
das no Museu Clube da Esquina. Idealizado por Mrcio Borges, o museu virtual abriga
diversos depoimentos de artistas e demais profissionais da msica sobre o Clube da
Esquina, dentre eles, os relatos de Luiz Carlos S, Gutemberg Guarabyra e Z Rodrix.
Suas entrevistas contribuem de forma instigante para o aprofundamento das questes
postas nesse estudo.
Visou-se, principalmente, ir contra alguns discursos do incio dos anos 1970, que
enfatizavam o fim de sonho e o vazio cultural no Brasil e no mundo. Se nos anos 1960,
havia uma efervescncia poltica, cultural, social, constituindo-se como a dcada da
revoluo, do sonho de transformao social e individual (PEREIRA, 1992: 31), j nos
anos 1970, debatia-se e afirmava-se o fim de um perodo de mudanas e de utopias: em
outubro, John Lennon, em sua cano God, afirmava que o sonho havia acabado e cha-
mava os jovens realidade (MUGGIATI, 1981: 108). Na anlise de autores como Ro-
berto Muggiati, o rock como expresso declinava, mas como produto cultural crescia na
indstria de discos. Conforme o autor, a gerao que cresceu com o rock no s conti-
1 Cabe ressaltar, que parte da entrevista foi realizada durante o perodo da elaborao da monografia O
p da estrada: a cidade e o campo no Brasil pela obra de S, Rodrix & Guarabyra (1970-1980). Cf.
RESENDE, 2010.
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nuou comprando discos, mas aumentou o seu consumo... (MUGGIATI, 1981: 108). Os
anos 1960, contudo, j fariam parte da histria, segundo Muggiati:
Os anos 1968 e 1969 cheios de som e fria no parecem mais do que
imagens de um passado distante. As marchas sobre Washington, as mani-
festaes de Berkeley, os distrbios de Chicago, os festivais de Woods-
tock e Altamont todos esses episdios j se tornaram Histria. Para o
Sistema, so apenas quadros da revoluo-que-no-houve. Para a contra-
cultura, ou o que dela restou, representam etapas inevitveis de um pro-
cesso de mudana bem mais lento, porm, do que previram os tericos
do underground (MUGGIATI, 1981: 106).
Contudo, mostra-se, nessa dissertao, que a cultura brasileira no sofria de um
vazio cultural como preconizado na poca. Mesmo com o exlio de vrios artistas, a
represso e a censura, muitos, no pas, partiram para experincias diversas na msica. E
na esteira do tropicalismo, grupos como o trio produziram uma cano que no deixou
de criticar o contexto da poca.
Com referncia aos aportes tericos, trabalharam-se os conceitos de apropriao
e representao, tomados de emprstimo do historiador Roger Chartier. Pensando no
caso da msica como fonte histrica, articulando os conceitos de identidade e, sobretu-
do, cultura, tem-se uma alternativa para o entendimento de uma sociedade, ou melhor,
de certos grupos e suas representaes sobre determinada realidade social. Tal conceito,
para Chartier, produz estratgias, prticas e constituem-se nos espaos de sociabilidade,
possibilitando a organizao e a apreenso do mundo social, as diversas categorias de
percepo do real, variveis segundo as disposies dos grupos ou indivduos.
No caso da msica brasileira, na dcada de 1970, em plena ditadura civil-militar,
um perodo de forte represso poltica, social e cultural, ao se tomar, por exemplo, o
gnero musical rock e suas vertentes no Brasil, como representativo de uma realidade,
pode-se perceber os conflitos de uma sociedade marcada pelas contradies entre mo-
dernidade e cerceamento das liberdades, tradio e ruptura.
Utilizando-se de conceitos como os de representao e apropriao de Roger
Chartier, podem-se perceber os diferentes grupos no perodo ditatorial, com suas reali-
dades contraditoriamente construdas e as diversas maneiras de se posicionar no contex-
to brasileiro.
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O conceito de romantismo contracultural parte das anlises de Michael Lwy e
Robert Sayre (1995), que propem estudar os diversos romantismos espalhados pelo
mundo a partir do sculo XIX. Os autores trabalham com o que denominam de roman-
tismo revolucionrio. Tal conceito apropriado por Marcelo Ridenti (2000) para o en-
tendimento da cultura brasileira e das propostas de transformao da sociedade no con-
texto ditatorial. Esses autores demonstram a crtica sociedade capitalista moderna,
industrial, pautada no consumo e as experincias e alternativas de vida nesse contexto.
Para a crtica urbana e as representaes do campo, utilizou-se a obra de Ray-
mond Williams. Em seu livro O campo e a cidade na histria e na literatura (1989), o
autor traa um percurso sobre as representaes do meio urbano e rural na sociedade
inglesa. Williams leva em considerao as transformaes ocorridas no contexto da Re-
voluo Industrial e mostra as ideias buclicas e os refgios reais, mas, tambm, cons-
trudos, de diversos poetas e autores ao longo da histria inglesa. Transferindo-se, com
as devidas especificidades, para o caso brasileiro, a obra de Williams contribui para se
entender uma sociedade que passa por um processo acelerado de urbanizao. Pela obra
de S, Rodrix & Guarabyra, h a possibilidade de se compreender as representaes e
as tenses entre meio urbano e rural, que os msicos trazem, inseridas num contexto de
modernizao conservadora assistida pelo governo militar.
Desse modo, a dissertao encontra-se estruturada em trs captulos. O primeiro,
trata do vazio cultural preconizado por alguns intelectuais e artistas da poca. Mostra-se
que parte das crticas contra a falta de criatividade do pas origina-se de setores ligados
ao engajamento nacional-popular que, nos anos 1970, experimentava seu esgotamento.
Parte-se da ideia de que a cultura no estava to vazia assim, e que as crticas, sobretudo
contracultura, vinham carregadas de sentido ideolgico. Nesse captulo, aproveita-se
para explicitar os conceitos de contracultura e rock. Mapeando e analisando algumas
fontes musicais e impressas, j se podem mostrar certas crticas ao regime autoritrio no
Brasil, bem como apontar algumas discusses sobre o romantismo revolucionrio no
pas e sua vertente contracultural, destacando-se, tambm, a pertinncia dos embates e
discusses sobre poltica e cultura brasileira no perodo.
O captulo 2 concentra o eixo principal da dissertao, que tratar as representa-
es de cidade e campo, do grupo estudado, e suas relaes com a modernizao capita-
lista autoritria. Trabalha-se, principalmente, com o conceito de romantismo contracul-
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tural, por meio da anlise das canes. Destacam-se, tambm, aspectos biogrficos dos
msicos/compositores e discusses sobre suas relaes com a indstria cultural. Enfati-
zam-se, sobretudo, as representaes e prticas culturais do trio e dupla, entre os emba-
tes da esquerda engajada e os processos de modernizao do regime militar, mostrando
que, entre um e outro, os msicos viviam inseridos na modernidade do pas e utiliza-
ram-se dos recursos modernos para criticar a sociedade brasileira dos anos 1970. Visa-
se, tambm, mostrar as aproximaes e apropriaes da contracultura, e ao mesmo
tempo, os dilogos com essa modernidade. Desse modo, enfatizam-se as estratgias e
vivncias dos msicos/compositores que transitam nos universos ditos contrastantes do
perodo, destacando-se no a tomada de posio de uma ou de outra vertente de contes-
taes cultura engajada ou contracultura mas, exemplificando os diversos caminhos
percorridos pelos artistas na sociedade multifacetada do perodo. Por meio do conceito
de rock rural, podem-se demonstrar os pontos acima discutidos e ressaltar as crticas e
as propostas de vida, cantados pelos artistas, no contexto de regime autoritrio do pas.
E, no captulo 3, como desdobramento do captulo anterior, trata-se de demons-
trar como os msicos em questo e alguns crticos musicais trabalharam, por meio do
rock, o conceito de identidade nacional. O conceito de mediadores para esses msicos
tambm desenvolvido nesse captulo, demonstrando suas ideias e contribuies artsti-
cas para o entendimento de uma construo de nao brasileira.
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Captulo 1: O sonho no acabou
romantismo, contracultura e rock no Brasil dos anos 1970
The dream is over/ What can I say?/ The
dream is over/ Yesterday/ I was the dream-
weaver/ But now I'm reborn.
God, John Lennon, 1970.
No comeo dos anos 1970 havia o boato de que o sonho havia acabado. O mo-
vimento contracultural, no contexto norte-americano e europeu, experimentava seu es-
facelamento. As utopias de liberdade alternativa, paz no campo, sexo livre, negao e
contestao da guerra do Vietn, ideias e prticas de comunidade e unidade, estavam
sujeitas a uma avaliao ou auto-avaliao por parte de seus atores principais: a juven-
tude das classes mdias. O rock expandia-se como produto cultural de consumo. John
Lennon, ex-integrante da banda The Beatles, na msica God, acima, cantava em bom
som e melancolia: o sonho acabou/ que que eu posso fazer?/ o sonho acabou/ ontem
eu era um fabricante de sonhos/ mas agora nasci novamente. E numa entrevista, re-
vista Rolling Stone, proclamava: o sonho acabou. E no estou falando s dos Beatles.
Falo dessa transa de gerao. Acabou e temos que encarar a chamada realidade (apud
MUGGIATI, 1981: 108).
No caso brasileiro, tomando-se como referncia duas publicaes sobre a hist-
ria do gnero rock no Brasil, pode-se constatar a construo de uma memria pautada
na ideia de vazio cultural e de fim de sonho que permeava o incio dos anos 1970, no
pas e no mundo. De acordo com a revista Rock a msica do sculo XX (1981: 165):
Incio dos anos 70. Corria o boato de que o sonho havia acabado. Uns
concordam, outros no. No apartamento de Gutemberg, por exemplo, o
pessoal se juntava e saiam as maiores discusses.
- Olha voc, Guarabyra dizia Luiz Carlos S Ganhou o Festival Inter-
nacional da Cano com Margarida. Fez Casaco Marrom, que estourou
com a Evinha. E est a como eu. Tendo que se virar em mil bicos pra no
morrer de fome. Que sonho esse? Os caras das gravadoras ouvem o som
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da gente e dizem que no d pra gravar porque underground, no vende
etc. e tal.
- T legal. Mas acho que o sonho continua nas cabeas. O Z Rodrix aqui
est se dando bem com o Som Imaginrio. O conjunto acompanhou a Gal,
gravou com o Milton, lanaram um LP.
- Mais ou menos, viu? A barra no t fcil Hoje mesmo o Wagner Tiso
tava falando no ensaio do Som que...
Z Rodrix foi interrompido por um detetive que entrou de sopeto e ps
todo mundo na rua: uma vizinha tinha dado queixa contra aqueles cabelu-
dos que passavam o dia inteiro tocando. Os trs foram morar num quarto
da casa dos pais do S. . O sonho tinha acabado. Mas, em vez de carem
na fossa, resolveram optar pela batalha. Formaram o trio S, Rodrix &
Guarabyra e logo depois lanavam o LP Passado, Presente & Futuro, em
1972, com composies suas. Era um disco de rock. Mas um rock diferen-
te. Brasileiro e rural, com coisas country, sertanejas. As letras falavam do
pessoal que, como eles, optou pelo natural. Estradas, mochilas (...) curtir o
mato, aprender a conversar. O LP foi um sucesso, e no ano seguinte lana-
ram Terra, um pouco mais rockeiro, tambm sintonizado com a gerao
ps-sonho...
A revista cita, tambm, outras informaes sobre os msicos S, Rodrix e Gua-
rabyra, objetos da pesquisa apresentada nessa dissertao, como por exemplo: da sada
de Z Rodrix do trio, em 1973; a mudana de Luiz Carlos S e Gutemberg Guarabyra
para So Paulo, que vo trabalhar com a produo de jingles2; da formao da dupla S
& Guarabyra, dos discos vendidos de porta em porta; alm das bandeiras ainda levan-
tadas no trabalho da dupla, no sentido de que o sonho no havia acabado.
Em outra edio, da Revista Bizz, tratando do gnero rock no pas, destacam-se
as dificuldades de quem fazia rock no Brasil nos idos dos anos 70 (s/d: 12). Na revista
aparece, tambm, certa denncia do fim do sonho:
Aqui, como no resto do mundo, o sonho tambm havia acabado. O endu-
recimento do regime e o fim da Tropiclia, com a sada de seus lderes do
pas, serviam para aumentar ainda mais a sensao de vazio cultural. Os
aplausos calorosos e as estrondosas vaias que agitavam os festivais j e-
2 Destaque para o famoso jingle S tem amor quem tem amor pra dar, para a propaganda da Pepsi, discu-
tido no captulo 2.
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ram coisa do passado. No seu lugar, ficara um vasto e profundo silncio,
quebrado apenas por uma minoria que insistia em transitar no caminho
aberto pelo pioneirismo dos Mutantes (Revista BIZZ, s/d: 12).
No incio dos anos 1970, j se sinalizava para o problema do vazio cultural esta-
belecido no Brasil. Em artigo de Zuenir Ventura, para a revista Viso, em julho de
19713, o autor destaca:
Alguns sintomas graves esto indicando que, ao contrrio da economia, a
nossa cultura vai mal e pode piorar se no for socorrida a tempo. Quais
so os fatores que estariam criando no Brasil o chamado vazio cultural?
Respondendo a um questionrio distribudo por Viso4 no princpio do
ano e organizado com o objetivo de fazer o balano cultural de 1970, mui-
tos intelectuais manifestaram sua decepo e pessimismo em relao ao
passado recente e preocupao em relao ao futuro. A concluso revelava
que a cultura brasileira estava em crise. Contrastando com a vitalidade do
processo de desenvolvimento econmico, o processo de criao artstica
estaria completamente estagnado. Um perigoso vazio cultural vinha to-
mando conta do pas, impedindo que, ao crescimento material, cujos ndi-
ces estarrecem o mundo, correspondesse idntico desenvolvimento cultu-
ral. Enquanto o nosso produto interno bruto atinge recordes de aumento, o
nosso produto interno cultural estaria caindo assustadoramente
(VENTURA, 2000: 40).
As expresses vazio cultural, crise, bem como estagnao, mostram a problem-
tica da cultura brasileira em pleno perodo de crescimento econmico do pas. Segundo
Zuenir Ventura, alguns intelectuais assinalavam para a queda do produto interno cultu-
ral em contraste com a prosperidade econmica do Brasil. Preocupados com o futuro
da arte brasileira, e, portanto, da manifestao e firmao do carter nacional do pas,
setores da intelligentsia demonstravam a falta de criatividade e engajamento da cultura,
que antes, nos anos 1960, havia despertado o sentimento de construo nacional e de
3 O artigo encontra-se na obra 70/80 cultura em trnsito: da represso abertura (2000). Organizado por
Elio Gaspari, Helosa Buarque de Hollanda e Zuenir Ventura, o livro traz artigos e crticas da poca da
censura e represso, intensificadas a partir do Ato Institucional de nmero 5, at o processo de abertura
do regime poltico do Brasil. 4 O autor esclarece que o artigo contou com a contribuio de pesquisas e levantamentos de intelectuais
como: Wladimir Herzog, Trik de Souza, Ana Amlia Lemos, Maria Costa Pinto, Duda Guenes, entre
outros.
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luta por um Brasil melhor. Como causas principais desse vazio (fossa cultural nos
dizeres do autor) Zuenir Ventura, no mesmo artigo, aponta: o Ato Institucional n 5 e a
censura (VENTURA, 2000: 40). Para o autor, os anos iniciais de 1970 no apresenta-
vam nem propostas novas nem aquela efervescncia criativa que caracterizou o incio
dos anos 1960, antecipando alguns dos momentos da cultura brasileira, mais ricos em
inovao e pesquisa (VENTURA, 2000: 40). Na msica, por exemplo, ressalta que
nenhuma inovao havia se dado como a Bossa Nova, anteriormente (VENTURA,
2000: 40).
O autor denunciava o aspecto sombrio dessa cultura, em que a quantidade estaria
suplantando a qualidade, alm da ausncia de temticas polmicas e controversas, a
evaso de nossos melhores crebros, o xodo de artistas, o expurgo nas universidades
(...) a mediocrizao da televiso, a emergncia de falsos valores estticos, a hegemonia
de uma cultura de massa buscando apenas o consumo fcil (VENTURA, 2000: 41).
Em seu artigo, Zuenir Ventura buscava compreender o que seria da cultura brasileira ao
longo dos anos 1970 e buscava explicaes da estagnao cultural do pas no s no
espao intelectual e artstico, mas, tambm, nos condicionamentos extraculturais gera-
dos pelas alteraes na estrutura social, poltica, econmica e psicolgica por que tem
passado o pas nos ltimos anos (VENTURA, 2000: 41). Em primeiro lugar, o golpe
de 1964, em que o povo, que pensava conhecer e em nome do qual falaria, se revelava
um estranho (VENTURA, 2000: 40)5. Para Ventura, a cultura ainda vivia momentos de
produo crtica (o autor destaca o Cinema Novo, o show Opinio, movimentos ainda
dentro de certa legalidade). Em decorrncia do AI-5, ocorreria, para o autor, uma
transformao radical da cultura brasileira: censura no campo cultural, cassaes, expul-
ses, prises, vrios mecanismos de punio etc. Como consequncia: a fuga de cre-
bros para o estrangeiro (VENTURA, 2000: 45). Mas, tambm, enfatiza certas dvidas
quanto ao vazio cultural: o diretor de teatro Augusto Boal pe em dvida o vazio cultu-
ral: Pode ser que exista, mas as gavetas dos censores no esto vazias. Esvaziem-se as
gavetas dos censores e se encher de imediato vazio cultural que alguns sentem
(VENTURA, 2000: 45-46). Para Brulio Pedroso6, segundo Ventura: este vazio na
5 No captulo 3, destaca-se a misso de alguns setores da intelligentsia brasileira e de vrios artistas no
sentido de levar a conscientizao ao povo, no intuito de produzir uma arte genuinamente brasileira e
engajada para as solues dos problemas nacionais, para a construo de uma verdadeira nacionalidade
no pas. 6 Autor de teatro e de novelas para TV, como: Beto Rockfeller e O cafona (VENTURA, 2000: 46).
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verdade mais uma sensao premonitria, caso prevaleam os critrios cerceadores da
liberdade de expresso (VENTURA, 2000: 46). Nessa constatao da realidade ou
carter premonitrio, dentro do devir revolucionrio brasileiro, do Brasil do futuro, ins-
talava-se um devir sombrio e vazio, atingindo todos os setores da vida social e cultural,
nos meios intelectuais, de comunicao, da imprensa etc. Questionando o nus dessa
fossa cultural creditada apenas ao AI-5, Zuenir Ventura destaca:
Envolvidos no desespero de uma luta perdida em que esto em jogo a sua
dignidade e a sua sobrevivncia, os intelectuais brasileiros nem sempre ti-
veram lucidez para perceber que, independentemente do AI-5, a cultura
vive uma fase de transio em que, como superestrutura, tenta adaptar-se
s alteraes infra-estruturais surgidas no pas (VENTURA, 2000: 47).
Trata-se do avano e consolidao da indstria cultural no pas, concomitante ao
aumento do nvel de consumo da populao, dentro de um processo de modernizao
autoritria e conservadora, com a racionalizao nos diversos setores da vida social bra-
sileira. Nesse modelo capitalista, Ventura destaca a cultura brasileira se desenvolvendo
ainda de forma hbrida: no se libertou completamente dos resqucios artesanais das
pocas anteriores e vai incorporando caractersticas de uma cultura tpica dos pases
industrializados (VENTURA, 2000: 48), seguindo aqui, as leis de mercado e mudanas
no comportamento cultural dos consumidores:
Coincidindo com a elevao de vida das camadas mdias da populao
urbana, nota-se a emergncia de uma cultura industrializada cada vez
mais condicionada pelas leis da produo (altos custos, fabricao em s-
rie, consumo em massa), mas que est encontrando barreiras naturais e ati-
tudes contraditrias de resistncia. Alm dos obstculos opostos pela
complexa realidade brasileira onde ao lado das ilhas de consumo coe-
xistem o analfabetismo em massa, o baixo ndice de escolarizao e o bai-
xo poder aquisitivo , h a resistncia daqueles que, apegados a padres
estticos e formas de produo cultural tpicos de uma poca passada,
combatem o novo processo em nome da qualidade, que seria incompatvel
com esse tipo de cultura, e em nome da liberdade de criao, que estaria
subordinada demanda do mercado. Tendo que atender mais ao requerido
pelo consumo do que aos seus prprios impulsos e preferncia, esses inte-
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lectuais se considerariam produtores e no criadores fabricantes de pro-
dutos em srie e no criadores de objetos nicos (VENTURA, 2000: 48).
Ocorria, nas anlises de Ventura, o embate entre criao e massificao, em que
na msica popular, a interrupo do veio inventivo comeado pela Bossa Nova de Joo
Gilberto e depois retomado por Caetano e por Gil teria como causa a massificao e no
uma crise de criao (VENTURA, 2000: 49). Somava-se, ento, ao AI-5 e censura, a
questo da cultura massificada, calcada no avano da indstria cultural do perodo, co-
mo causa do vazio cultural. Havia, desse modo, a problemtica da importao de mo-
dismos internacionais (VENTURA, 2000: 49), caso em que o autor aponta o teatro, a
industrializao, alm dos prprios contrastes do Estado que tentava oficializar e am-
parar a cultura por meio dos institutos (INL, INC, Embrafilme, Comisses de Teatro
etc.) sem, contudo, impedir o estreitamento cada vez mais rigoroso da censura
(VENTURA, 2000: 49). O autor destaca, tambm, que 50 % das msicas consumidas
nesse perodo eram estrangeiras, no quadro da cultura que se estruturava como indstria.
Nesse contexto, aponta a defesa de vrios representantes, de diversos segmentos
culturais, para uma legislao mais liberal de censura e maiores estmulos e isenes na
difuso das obras nacionais. Sobre as influncias externas, tema controverso e polmico
na histria cultural brasileira, conforme ser abordado neste estudo, Zuenir Ventura
indaga: numa sociedade de censura rigorosa, seria culturalmente conveniente o fecha-
mento do mercado cultural s influncias externas? Por onde se faria o intercmbio de
ideias que revitalizava o processo criador de um pas? (VENTURA, 2000: 50). E de-
monstra certas alternativas: no plano da expresso artstica, o impasse gerou vrios
caminhos quase sempre bipolares: o industrialismo e o marginalismo; a vanguarda e o
consumo; a expresso lgica e a expresso mais intuitiva, emocional (VENTURA,
2000: 50). Outro problema, o de se tratar a cultura brasileira sempre em pares, e em
opostos, aparece no discurso do autor.
Em outro artigo, na mesma revista, intitulado A Falta de Ar (1973), Ventura j
aponta algumas sadas para o impasse da cultura. Seriam trs possveis solues para
preencher o vazio cultural: uma cultura de massa digestiva, comercial, de simples en-
tretenimento; uma contracultura buscando nos subterrneos do consumo, mas fre-
quentemente sendo absorvida por este, formas novas de expresso e sobrevivncia; e,
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por ltimo, uma cultura explicitamente crtica, tentando olhar para a realidade poltica
e social imediata (VENTURA, 2000: 60).
No primeiro caso, o autor cita partes da produo no cinema, teatro, msica e
literatura, como forma de cultura digestiva, com objetivos essencialmente comerciais
(VENTURA, 2000: 62). No setor da msica, cita a produo de mais de 30 % pautada
nas canes de telenovela, ocupando tiragens entre 50 a 150 mil (VENTURA, 2000:
61); no teatro, grupos como o Oficina, de So Paulo, e o Ipanema, no Rio de Janeiro,
tendo que abandonar a slida posio cultural que sempre mantiveram em repertrio e
estilo de representao (VENTURA, 2000: 62). No caso do teatro Ipanema, o autor
destaca o estilo que parece marcar o grupo, nos trs ltimos anos o da viagem hippi-
e... (VENTURA, 2000: 63).
Na segunda proposta de soluo para o impasse cultural, o autor ressalta a con-
tracultura, que traria um enfoque mais individualista, sem, contudo, estar vinculado a
uma realidade social imediata (VENTURA, 2000: 63). Segundo Zuenir Ventura:
Com os canais tradicionais de distribuio e comercializao vedados, jo-
vens poetas, romancistas, compositores, cineastas utilizam desde os meios
mais artesanais de produo e comunicao jornais de circulao restri-
ta, edies limitadas de livros e textos at a mais moderna tecnologia,
como a cmera Super-8 ou guitarra eltrica, para produzir uma arte que s
vezes mais caricatura do que o que pretende ser. Contracultura, under-
ground, udigrudi ou desbunde, essa tendncia tem mais dificuldade em
revelar alguns inegveis talentos dos seus quadros do que em expor muitas
das ostensivas contrafaes aderentes (VENTURA, 2000: 63).
A contracultura, nas anlises de Ventura, assumia uma postura crtica, abstrata e
individualista, atraindo jovens (falsos adeptos para o autor, devido aparncia do mo-
vimento) e gerando antipatias dos mais velhos. Taxa seus artistas de malditos, cujo tra-
balho deixaria para a cultura brasileira mais a atitude do que a obra em si. Para o autor:
Na sua prpria formulao, a contracultura no abandona o esprito crti-
co, mas aparece como um produto geral que engloba tudo, desde que esta-
belecido: a cultura, a histria, a poltica, a desumanizao, a poluio, as
normas morais etc., e prope novas atitudes diante da vida que podem at
ser mesmo velhas formas recuperadas: uma certa volta rousseauneana
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natureza, um misticismo oriental. J que a sociedade o reino da desuma-
nizao, melhor cada um ficar na sua (VENTURA, 2000: 64).
O autor alm de apontar certas caractersticas importantes da contracultura, co-
mo o retorno ao meio natural tema que ser tratado nessa pesquisa , e de ser um mo-
vimento que tentou preencher o vazio cultural, no deixa de denunciar o seu carter
resignado em relao ao contexto da poca, como se a atitude de inconformismo fosse
tragada pelo que no poderia ser modificado na atualidade brasileira, alm de parecer
deixar em segundo plano os problemas da Histria e as contradies da vida social
(VENTURA, 2000: 64).
Por ltimo, o autor cita algumas correntes mais crticas na cultura do perodo,
que trariam uma discusso concreta dos problemas de aqui e agora (VENTURA,
2000: 65). Na msica popular, por exemplo, destaca o populismo de antes substitudo
por uma seriedade de pesquisa expressiva e por um aprofundamento temtico
(VENTURA, 2000: 65), encontrado em letras de artistas como Chico Buarque, Paulinho
da Viola, Gilberto Gil, Caetano Veloso, obras para o autor, de alto valor (VENTURA,
2000: 65), no deixando, conforme aponta Zuenir Ventura, de encontrarem, como obs-
tculos, a censura ou a autocensura (VENTURA, 2000:65)7.
Pois bem, os artigos e reportagens citados acima auxiliam nas discusses princi-
pais que compem essa dissertao. No caso dos dois artigos sobre a histria do rock,
verificam-se algumas informaes sobre o trio S, Rodrix & Guarabyra, grupo principal
desse estudo, que, por meio de suas msicas, cantou o Brasil do perodo com seus con-
trastes e relaes entre campo e cidade, trazendo diversas misturas sonoras e rtmicas
em suas composies. Percebem-se, nas reportagens, certas aproximaes com a con-
tracultura que tambm chega ao Brasil, sobretudo, com a apropriao de certos compor-
7 No prprio artigo, Ventura cita o caso de Chico Buarque. O cantor e compositor esclarece os prejuzos
de se ter uma obra seja pea de teatro ou msica etc. censurada, o que poderia causar, tambm, a auto-
censura: Mas claro que isso interfere na criao, mesmo que no se faa msica aos borbotes e que
apenas dez letras em quinze sejam censuradas. A freqncia com que isso ocorre acaba levando auto-
censura. Eu, particularmente, no sei se exero a autocensura. Pode ser at que no, conscientemente.
muito desagradvel, principalmente porque voc obrigado obrigado no, convidado ou intimado a
travar relaes com a censura num plano pessoal, quer dizer: como cada msica que voc manda vai ser
censurada, vai criar problemas, vai irrit-los, voc convidado a conversar, bater um papo, chegar en-
fim a um acordo. Isso a coisa mais perigosa que pode acontecer. um dilogo absurdo e prejudicial ao
criador (apud VENTURA, 2000: 68).
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tamentos, a opo pela natureza, o constante trnsito entre meio urbano e rural, e que
ser demonstrado nas canes desse estudo.
Nas duas reportagens sobre o rock, bem como nos dois artigos de Zuenir Ventu-
ra, pode-se detectar algumas crticas sobre a cultura do perodo. Aparece, nos quatro
textos, a ideia de vazio cultural, em que vrios artistas e intelectuais sentiam um fosso
na produo cultural e de informao dos anos 1970, a falta de criatividade, com poucas
alternativas para o impasse na vida artstica do pas. Alm do mais, principalmente nos
artigos de Zuenir Ventura, percebe-se o quadro social, poltico, econmico e cultural
dos anos 1970, o que serve para nortear as discusses e apontamentos do contexto brasi-
leiro em questo.
O Brasil, na dcada de 70, passa por um processo de mudanas nos aspectos
sociais, econmicos, polticos e culturais. Em funo do golpe militar instaurado em
1964, o pas apresenta inmeros contrastes: na poltica, um regime de exceo, com
ausncia de pluripartidarismo e forte represso; no campo econmico, o chamado mila-
gre brasileiro com crescimento industrial acelerado, grandes projetos no setor pblico,
controle da moeda, ampliao do mercado de trabalho com gerao de empregos, au-
mento de consumo e investimentos de capitais externos8. No plano social e artstico,
destaque para a intensa represso, controle das informaes censura aos meios de co-
municao, jornais e manifestaes artsticas e cerceamento das liberdades sociais,
polticas e de expresso, combinados com forte propaganda em favor do regime. o
perodo ufanista do pra frente Brasil, ningum segura esse pas e do Brasil, ame-o
ou deixe-o. O Brasil alcana o tricampeonato na Copa do Mundo de futebol de 1970,
no Mxico, conquista apropriada pelo regime militar para enaltecer o ufanismo dissemi-
nado no perodo (COUTO, 1998: 109-130). Ocorre, tambm, o retrocesso das esquerdas
com prises, mortes, torturas e exlios. Segundo Ronaldo Costa Couto, o mandato do
presidente Emlio Garrastazu Mdici, 1969-1974, considerado o mais repressivo. a
chamada linha dura da poltica militar no Brasil, cujo objetivo a manuteno do
regime autoritrio, conjugando crescimento econmico e controle social, onde os diver-
sos setores sociais souberam apoiar e se beneficiaram com a poltica excludente do go-
verno Mdici. A populao menos favorecida, o povo em geral, segundo o autor, ficaria
aqum da poltica modernizadora e conservadora do perodo (COUTO, 1998: 109-116).
8 Segundo Ronaldo Costa Couto, a indstria do perodo recebe 77% do total dos investimentos (COUTO,
1998: 111).
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Verifica-se, tambm, a consolidao, no pas, de um mercado de consumo de bens cul-
turais e forte processo de urbanizao. Conforme destaca Marcelo Ridenti, a sociedade
brasileira desse perodo passa de: predominantemente rural em 1950 para eminente-
mente urbana na dcada de 1970, com todos os problemas sociais e culturais de uma
transformao to acelerada (RIDENTI, 2005: 63).
Desse modo, a julgar pelos levantamentos de Zuenir Ventura, a cultura brasileira
estaria deriva, com poucas propostas criativas e de crtica da realidade social do pero-
do. Mas estaria mesmo o Brasil vivendo um perodo de vazio cultural?
Dentro da temtica abordada nesta pesquisa, a cultura musical, ou melhor, a
MPB (Msica Popular Brasileira) dos anos 70 consagra-se como uma espcie de institu-
io sociocultural (NAPOLITANO, 2005: 125-129). Marcos Napolitano, em sua anlise
da cultura brasileira, considerando especialmente a msica, enfatiza a longa dcada de
1970. Compreendendo os anos entre 1968 e 1982, o autor aponta o cenrio musical rico
do perodo, que se inicia com a instaurao do Ato Institucional nmero 5 (AI-5) e ter-
mina com o processo que marcar a abertura do regime ditatorial no Brasil. Conforme
destaca Ronaldo Costa Couto, no governo do general Costa e Silva, instaura-se:
...em 13 de dezembro [1968], o AI-5, o mais abrangente e arbitrrio ins-
trumento do regime e seu smbolo maior (...) Com o AI-5, o presidente da
Repblica pode tudo: estipular unilateralmente medidas repressivas espe-
cficas; decretar o recesso do Congresso, assemblias estaduais e cmaras
municipais; intervir nos estados e municpios. Pode censurar a imprensa,
suspender direitos e garantias dos magistrados, cancelar habeas-corpus,
cassar mandatos e direitos polticos, limitar garantias individuais, dispen-
sar e aposentar servidores pblicos (COUTO, 1998: 96).
Dentro da poltica excludente e repressora, o regime militar procura legitimar
seu governo como democrtico, com o discurso de defesa dos interesses da famlia, da
propriedade privada, seguindo a vontade do povo em geral, do qual se dizia porta-voz.
Maria Jos de Rezende destaca que a partir de 1968:
Prevalecia o arbtrio e institucionalizava-se a represso e a tortura, mas
mesmo assim o grupo de poder (militares, representantes do grande capital
e tecnoburocratas) continuavam (sic) tentando ganhar adeso para o regi-
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me em vigor atravs da insistncia de que as medidas postas em prtica
reiteravam e, portanto, no negavam o sentido que eles imputavam de-
mocracia. Delineava-se o fechamento do regime e/ou a centralizao do
poder que tomou sua forma mais acabada no Governo Mdici...
(REZENDE, 2001: 89).
No quadro artstico, sobretudo musical, do ps-1968, Marcos Napolitano destaca
as diversas vertentes da msica nacional e estabelece um ritmo histrico para o perodo:
de 1968 a 1972, experimentao e pesquisa; de 1972 a 1974, encontros e inseres cls-
sicas na cena musical como, por exemplo, os de artistas com tendncias musicais con-
flitantes: Chico Buarque e Caetano Veloso, Elis Regina e Tom Jobim (NAPOLITANO,
2005: 125); e o ps-1975, com a ofensiva comercial mainstream corrente principal na
msica destacando os LPs Falso Brilhante, de Elis Regina, Meus caros amigos, de
Chico Buarque, entre outros, considerados como marcos da cultura musical e do merca-
do fonogrfico brasileiro (NAPOLITANO, 2005: 126). O autor ressalta, ainda, a trilha
sonora contra a ditadura entre fins de 1970 e meados dos anos 809.
Em meio multiplicidade de sons e produes musicais na virada dos anos 60, e
ao longo dos anos 1970, podem-se destacar: Roberto Carlos; o filo romntico da msi-
ca brega; o samba e sua variante do sambo-jia; as manifestaes pop e rock a partir
de 1972 (com Secos & Molhados, Raul Seixas, por exemplo); nomes consagrados da
MPB como: Elis Regina, Chico Buarque, Tom Jobim, Gal Costa, Maria Bethnia, entre
vrios outros; a bossa nova; a msica sertaneja; o canto afro-brasileiro de Clara Nunes;
alm do som de Milton Nascimento e o Clube da Esquina, entre outros estilos e gne-
ros10
. Num quadro musical bem diversificado, apontado por Marcos Napolitano, perce-
be-se que a cultura no estava to vazia quanto se fazia perceber nos artigos acima des-
tacados, apesar do endurecimento do regime pelo AI-5 e a pretensa legitimao demo-
crtica imposta pelo governo, cerceando as liberdades sociais e individuais da popula-
o brasileira.
Seguindo, ainda, algumas importantes consideraes de Napolitano, pode-se
perceber a questo do vazio cultural afirmado pelos intelectuais do incio dos anos 1970.
9 Com destaque para artistas como Raul Seixas, Rita Lee, Paulinho da Viola, entre outros (NAPOLI-
TANO, 2005: 126). 10
Referncia importante desse panorama se encontra em Marcos Napolitano, na obra Seguindo a cano:
engajamento poltico e indstria cultural na MPB (1959-1969) (NAPOLITANO, 2001: 339-340).
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Matizando as dicotomias entre indstria cultural e criao no pas, bem como cultura e
represso, Napolitano destaca que, nos anos 1970, havia oposio ao regime militar,
mas, tambm, canais de negociao entre Estado e sociedade, formas de resistncia e,
ao mesmo tempo, aproveitamento dos bens culturais pelo regime autoritrio. O autor
prope desfazer qualquer tipo de interpretao do impasse da cultura brasileira calcado
ora na resistncia ao regime, ora na cooptao pela indstria cultural do perodo. Para
Marcos Napolitano:
...a compreenso crtica das lutas culturais do perodo no deve ficar re-
fm da dicotomia entre resistncia e cooptao, pois revela um proces-
so mais complexo e contraditrio, no qual uma parte significativa da cul-
tura de oposio foi assimilada pelo mercado e apoiada pela poltica cultu-
ral do regime (NAPOLITANO, 2010: 147).
Havia, dessa forma, aes culturais, resistncia, mas, tambm, colaborao entre
os vrios segmentos sociais, dentro do mercado de bens simblicos em expanso e con-
solidao nos anos 70, com aproximaes entre liberais e setores da esquerda no arma-
da, ampliao dos circuitos de trnsito, de uma cultura engajada de esquerda. Esses
mesmos liberais, na maioria, conforme aponta Napolitano, donos dos meios de comuni-
cao e de corporaes culturais, comeam a se distanciar do regime ditatorial devido
ao aumento da represso e do endurecimento postos pelo AI-5. Ao mesmo tempo, o
governo militar assumia uma poltica cultural repressiva, mas, tambm, pr-ativa e de
integrao nacional. Havia a valorizao da cultura pelos vrios segmentos sociais, com
motivos diferentes: para a oposio, a esfera cultural era vista como espao de rearticu-
lao de foras sociais de oposio e reafirmao de valores democrticos e para o
governo militar, a cultura era, a um s tempo, parte do campo de batalha da guerra psi-
colgica da subverso e parte da estratgia de reverso das expectativas da classe
mdia (NAPOLITANO, 2010: 149). Contudo, convergiam para a ideia de nacionalis-
mo, em que o Estado, portanto, tentava neutralizar os efeitos eventualmente politizado-
res desse trip artstico [teatro, cinema e msica popular, trip da cultura engajada de
esquerda] menos pelo controle do contedo em si e mais pelo controle dos circuitos
socioculturais pelos quais as obras deveriam circular pela sociedade (NAPOLITANO,
2010: 155). Renato Ortiz, por sua vez, enfatiza que no regime autoritrio, aps o golpe
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de 1964, encontra-se o aspecto poltico represso, censura, prises, exlios e econ-
mico crescimento do parque industrial de produo de cultura e o mercado interno de
bens culturais (ORTIZ, 2001: 114) em estrita ligao. Para Ortiz:
...a censura no se define exclusivamente pelo veto a todo e qualquer pro-
duto cultural; ela age como represso seletiva que impossibilita a emer-
gncia de um determinado pensamento ou obra artstica. So censuradas
as peas teatrais, os filmes, os livros, mas no o teatro, o cinema ou a in-
dstria editorial (...) O movimento cultural ps-64 se caracteriza por duas
vertentes que no so excludentes: por um lado se define pela represso
ideolgica e poltica; por outro, um momento da histria brasileira onde
mais so produzidos e difundidos os bens culturais. Isto se deve ao fato de
ser o prprio Estado autoritrio o promotor do desenvolvimento capitalista
na sua forma mais avanada (ORTIZ, 2001: 114-115).
Na relao entre modernizao autoritria, indstria cultural e expresso dos
meios culturais e de imprensa, Marcelo Ridenti tambm enfatiza as vrias articulaes
entre os segmentos intelectuais, polticos e sociais dentro do avano e consolidao da
indstria dos meios de entretenimento, artstico e de comunicao. Segundo Ridenti:
A partir dos anos 70, concomitante censura e represso poltica, ficou
evidente o esforo modernizador que a ditadura j vinha realizando desde
a dcada de 1960, nas reas de comunicao e cultura, incentivando o de-
senvolvimento capitalista privado ou at atuando diretamente (...) som-
bra de apoios do Estado, floresceu tambm a iniciativa privada: criou-se
uma indstria cultural, no s televisiva, mas tambm fonogrfica, edito-
rial (de livros, revistas, jornais, fascculos e outros produtos comercializ-
veis em bancas de jornal), de agncias de publicidade etc. Tornou-se co-
mum, por exemplo, o emprego de artistas (cineastas, poetas, msicos, ato-
res, artistas grficos e plsticos) e intelectuais (socilogos, psiclogos e
outros cientistas sociais) nas agncias de publicidade, que cresceram em
ritmo alucinante a partir dos anos 70, quando o governo tambm passou a
ser um dos principais anunciantes na florescente indstria dos meios de
comunicao de massa (RIDENTI, 2000: 332).
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Como se pode observar, cooptao e resistncia no eram processos exclu-
dentes nesse contexto e conviviam nos mesmos agentes e instituies sociais
(NAPOLITANO, 2010: 150). Marcos Napolitano cita, dessa forma, quatro atores soci-
ais principais nos anos 1970: a) comunistas e simpatizantes da cultura nacional-popular;
b) uma cultura jovem, incorporada na tradio pop, na contracultura, e em certas van-
guardas, como no movimento hippie; c) a nova esquerda, com propostas alternativas
ao engajamento do PCB, e que formariam alguns quadros do PT, constituda por uma
intelectualidade mais radical; alm de militantes obreiristas, sindicais e a esquerda cat-
lica; e por ltimo, d) liberais mais ou menos progressistas desvinculando-se cada vez
mais do regime militar.
Justamente, por parte dos intelectuais e artistas comunistas, conforme destaca
Napolitano, que surgiam as reaes s correntes alternativas. Para estes, a contracultu-
ra jovem era taxada de escapista, hermtica e subjetivista; e o conceito de cultura
da nova esquerda, era para estes mesmos intelectuais, esquerdista, sectria e basis-
ta. Da, expresses como vazio cultural ou desbunde, crticas de setores comunistas
e liberais progressistas contracultura no Brasil. Conforme afirma Marcos Napolitano,
essas expresses vinham carregadas de sentido ideolgico, voltadas para a crtica s
posies de recusa subjetiva e comportamental do sistema (NAPOLITANO, 2010:
164).
Sendo assim, na presente pesquisa, por delimitao de espao e para melhor ex-
plicitao da problemtica que se deseja abordar e tratar, trabalham-se com dois enfo-
ques na cultura brasileira: os movimentos de esquerda, seja intelectualizada, armada, ou
representados na msica engajada, de protesto; de outro, o movimento contracultural,
com destaque para as experimentaes e apropriaes feitas pelo Tropicalismo, discuti-
dos mais adiante. Se a princpio parecem opostas, essas duas formas de manifestao na
cultura brasileira convergem para o mesmo debate ideolgico do perodo: a crtica a
certos aspectos da modernidade capitalista e conservadora no Brasil, durante a ditadura
militar. Conforme ressalta Antnio Risrio:
...na passagem da dcada de 1960 para a de 1970, os segmentos mais in-
quietos da juventude urbana brasileira se distriburam em duas vertentes
radicais: a esquerda e o movimento contracultural. A aproxim-los havia
o sentimento de que os caminhos tradicionais da transformao social
-
29
estavam bloqueados, de que as velhas estratgias j no tinham o que ofe-
recer (RISRIO, 2005: 25).
Tanto no cenrio musical, como no contexto poltico e social - dentro da perio-
dizao enfatizada por Marcos Napolitano - tem-se a proposta de mudar o homem por
meio da luta, nos embates diretos da esquerda armada ou, metaforicamente, na msica
de protesto e, por outro caminho, nas propostas alternativas contraculturais, situadas
entre o engajamento e a aceitao da ditadura no Brasil. A presente pesquisa debrua-se
sobre este segundo modo de vivncias, experincias e posicionamentos frente moder-
nizao autoritria no pas, nos anos iniciais da dcada de 1970. Busca-se, contudo, ir
alm do par engajamento-contracultura, como ser percebido ao longo desta disserta-
o.
1.1. Dos Romantismos no Brasil e no mundo.
Durante o regime autoritrio estabelecido no Brasil, a partir do golpe de 1964,
havia o sentimento romntico, apropriado pela esquerda militante, intelectuais, artistas e
grupos estudantis universitrios, de tentativa de mudana no cenrio de represso e cer-
ceamento das liberdades, imposto pelo governo e alguns setores civis da poca. Para
vrios intelectuais e artistas, o projeto era de mudar o homem para mudar a sociedade.
Em canes de compositores como Geraldo Vandr, Edu Lobo, Carlos Lira, entre ou-
tros; nas manifestaes cnico-musicais do show Opinio, com Nara Leo, Z Kti e
Joo do Vale; em romances como Quarup, de Antnio Callado; no Cinema Novo com
destaque para Glauber Rocha; ou na ala militante da esquerda mais armada etc.
(RIDENTI, 2003: 135-136), a ideia era de retornar s razes do Brasil. Tratava-se de
um olhar atento ao verdadeiro povo brasileiro, representado na figura do migrante, do
favelado ou do homem do campo. Como destaca Marcelo Ridenti:
Naquele contexto, [anos 1960 e incio dos 70] certos partidos e movimen-
tos de esquerda, seus intelectuais e artistas valorizavam a ao para mu-
dar a histria, para construir o homem novo, nos termos de Marx e Che
Guevara. Mas o modelo para esse homem novo estava no passado, na i-
-
30
dealizao de um autntico homem do povo, com razes rurais, do interi-
or, do corao do Brasil, supostamente no contaminado pela moderni-
dade urbana capitalista, o que permitiria uma alternativa de modernizao
que no implicasse a desumanizao, o consumismo, o imprio do feti-
chismo da mercadoria e do dinheiro (RIDENTI, 2003: 135-136).
O autor destaca que essas manifestaes estavam inseridas na ideia de um ro-
mantismo revolucionrio, tambm atuante na realidade brasileira. Ridenti aponta o con-
texto e algumas transformaes que contriburam para a realizao desse romantismo
nos anos de 1960 e 1970, no pas: urbanizao crescente, consolidao de modos de
vida e de cultura das metrpoles, aumento quantitativo das classes mdias, maior acesso
ao ensino superior, aumento dos jovens na composio etria da populao, incapacida-
de do poder para representar sociedades que se renovavam, avano das tecnologias pos-
sibilitando mudanas no comportamento como exemplo, a plula anticoncepcional
alm do sentimento de rebeldia e revoluo, buscando-se colocar a imaginao no po-
der (RIDENTI, 2001: 14). Essas mudanas por si s no explicam os romantismos,
mas ajudam no entendimento dos dilemas e das novas reivindicaes no Brasil e no
contexto internacional, com enfoque, principalmente, na ideia de revoluo para se es-
tabelecer uma nova ordem, uma nova forma de vida econmica, poltica e social.
Tomando como referncia o conceito de romantismo revolucionrio, formulado
por Michael Lwy e Robert Sayre (1995), Ridenti trata do romantismo revolucionrio
no Brasil, destacando o engajamento poltico das esquerdas. Nesse romantismo, consta-
ta-se a ideia de um Brasil autntico, de uma volta ao passado para encontrar o verdadei-
ro brasileiro. Para Lwy e Sayre, o romantismo representa uma crtica da modernidade,
isto , da civilizao capitalista moderna, em nome de valores e ideais do passado (pr-
capitalista, pr-modernos), e entendem a modernidade como a: civilizao moderna
engendrada pela revoluo industrial e a generalizao da economia de mercado
(LWY & SAYRE, 1995: 34-35). Os autores trabalham com a ideia de romantismos
para abarcar as contradies e diversidades do termo romntico. Estabelecem uma tipo-
logia romntica que vai desde a crtica mais conservadora ao enfoque mais revolucion-
rio. Segundo Lwy e Sayre, h convergncias dos vrios romantismos e de sua estrutura
de sentimento contra o desencantamento, quantificao e mecanizao do mundo,
abstrao racionalista e dissoluo dos vnculos sociais para a crtica modernidade
-
31
capitalista e ao autoritarismo da ditadura militar, alm da ideia de nostalgia presente em
suas vrias expresses11
.
No caso brasileiro, Marcelo Ridenti esclarece que havia uma proposta nacional-
popular por parte de artistas e da intelectualidade ligados a certos partidos polticos e
juventude universitria engajada, no sentido de trazer a nacionalidade brasileira por
meio do povo.
Contudo, pode-se destacar outro enfoque calcado na ideia romntica de crtica
da sociedade capitalista, que pregava a fuga para o campo, o retorno natureza, alm de
enfatizar a estrada, o trnsito constante ente campo e cidade. Tais ideias se inserem no
conceito de romantismo contracultural, desenvolvido nessa dissertao, ou seja, repre-
sentaes e aes romnticas que se aproximam, dialogam com a contracultura e vice-
versa. Para certos setores da sociedade dos anos 1970, especialmente alguns intelectuais
e a juventude do perodo, a ideia era de que cada um pudesse ficar na sua, simplesmente
dando as costas, ou no estando nem a para o sistema, expresso tambm na msica, e,
especificamente, com o gnero rock. A contracultura e o rock, que tambm chegam ao
Brasil, so apropriados por parte da juventude do perodo, e pelos msicos aqui em dis-
cusso.
1.2. Apesar da ditadura: a contracultura no Brasil.
Carlos Messeder Pereira destaca que, nos anos 1960, entre os jovens e a intelec-
tualidade, em diversos pases do globo, surge um tipo de mobilizao e contestao so-
cial diferente do engajamento poltico das esquerdas, denominado de Contracultura
pelos meios de comunicao. Segundo Lus Carlos Maciel, colaborador do jornal un-
derground brasileiro O Pasquim, nos anos 197012
, e um dos responsveis pela atualiza-
o e divulgao das ideias da contracultura em terras brasileiras:
11
O autor Ciro Canton, em sua dissertao de mestrado Nuvem no Cu e Raiz: romantismo revolucion-
rio e mineiridade em Milton Nascimento e o Clube da Esquina 1970-1983, procura articular muito bem as
vrias crticas desse romantismo pautadas nas msicas selecionadas em seu trabalho. Aqui, de certa for-
ma, aparecem essas mesmas crticas nas canes como se ver ao longo da pesquisa. Cf. CANTON, 2010. 12
Como destaca Antnio Risrio, alm do Pasquim, outros jornais constituram uma espcie de rede
informacional alternativa do perodo da represso ditatorial no Brasil, como Flor do Mal, Presena,
Bondinho e Verbo Encantado (RISRIO, 2005: 26).
-
32
O termo contracultura foi inventado pela imprensa norte-americana, nos
anos 60, para designar um conjunto de manifestaes culturais novas que
floresceram, no s nos Estados Unidos, como em vrios outros pases,
especialmente na Europa e, embora com menos intensidade e repercus-
so, na Amrica Latina (apud PEREIRA, 1992: 13).
Carlos Messeder Pereira esclarece que a contracultura foi um fenmeno datado,
com incio em meados dos anos 1950, e percorreu toda a dcada de 60, para se diluir
nos anos 1970. Teve como sujeito histrico, principalmente, a juventude das camadas
altas e mdias dos centros urbanos, que rejeitavam a cultura dominante por terem justa-
mente acesso a esta, e irem contra o ideal burgus de prosperidade e consumismo. No
sendo, contudo, exclusivamente uma inveno da juventude, mas esta se constituindo
como intrprete principal das ideias contraculturais, o autor aponta vrios focos de con-
testao: no interior das famlias, nas escolas, campi universitrios, na msica, movi-
mentaes e protestos de rua ou movimentos sociais, em obras de autores como Herbert
Marcuse13
ou nos poemas da gerao beat. Segundo Messeder, o embrio da contracul-
tura pode ser encontrado na gerao de poetas norte-americanos Beatnick, como Allen
Ginsberg, idealizador do tipo de manifestao hippie e do termo flower power poder
da flor e seu poema Howl, uivo ou berro (PEREIRA, 1992: 9). Conforme destaca,
Lincoln Martins:
...em meio a esse ambiente instvel e paradoxal [Guerra Fria, ameaa de
catstrofe nuclear e ao mesmo tempo prosperidade na economia norte-
americana], um grupo de jovens universitrios iniciaram um movimento
literrio que ecoaria no mundo, causando uma verdadeira revoluo nos
valores tradicionais da poca e abrindo as portas para a contracultura: o
Movimento Beatnick (MARTINS, s/d: 38-43).
Essa gerao criticou, ao longo dos anos 1950 e 1960, o modo de vida america-
no, calcado no capitalismo consumista, e trouxe propostas alternativas e valores de vida
diversos do padro burgus de prosperidade econmica e de consumo. Destaque para
13
Carlos Messeder aponta Eros e Civilizao, de 1955, e A Ideologia da Sociedade Industrial O Ho-
mem Unidimensional, 1964, como obras representativas de Herbert Marcuse, ambas analisando e discu-
tindo a natureza das sociedades industriais avanadas e suas possibilidades de transformao revolucion-
ria (PEREIRA, 1992: 38).
-
33
autores como Jack Kerouac, com seu livro On the Road Na Estrada contra os pa-
dres literrios no meio acadmico; e William Burroughs, crtico do mundo como um
grande centro comercial e burocrtico (MARTINS, s/d: 41).
Desse modo, a contracultura foi um movimento vivido em diversas partes do
mundo e teve suas apropriaes no Brasil. Antnio Risrio, por exemplo, destaca o mo-
vimento no pas, mostrando que o fenmeno existiu no por causa da ditadura, mas ape-
sar e para alm dela (RISRIO, 2005: 26).
O fenmeno contracultural, ou melhor, seus sujeitos histricos, se opuseram ao
modo burgus de vida, questionando a racionalidade da modernizao capitalista repre-
sentada pelo Estado. Dirigindo-se contra a racionalizao da vida social (COELHO,
2005: 39), a juventude brasileira, sobretudo das classes mdias, procurou alternativas e
espaos de convvio dentro da modernizao capitalista conservadora. Deram nfase
subjetividade, ao retorno natureza, vida em comunidade, abrindo at mesmo a possi-
bilidade de dilogos extraterrenos! Encontrava-se em evidncia o respeito s diferenas
culturais, liberdade sexual, numa crtica ao consumismo e ao intelectualismo vigente,
alm da ideia de abandono das cidades e o retorno ao campo, trocar o asfalto quente
pela estrada de cho, rumo ao mato, ao meio natural. No caso especificamente brasilei-
ro, Antnio Risrio sublinha que:
...a contracultura preservou e nutriu o esprito contestador, obstruindo o
rolo compressor da ditadura militar em sua marcha para uniformizar e as-
fixiar a juventude brasileira. Alm disso, promoveu um encontro cara a
cara nas grandes cidades do pas, entre jovens economicamente privilegi-
ados e jovens marginalizados, numa troca de vivncias e de linguagens...
(RISRIO, 2005: 28).
O regime militar brasileiro nos anos 1970, repressivo e ao mesmo tempo moder-
nizador, segundo Maria Rita Kehl, acabou por unir essa juventude, universitrios e ou-
tros mais, em comunidades, no apenas hippies e nem somente vivendo ou fugindo para
o campo, mas tambm em apartamentos, de forma a organizarem alternativas diferentes
de vida no cotidiano, inclusive formas diversas de trabalho. Uma espcie de revoluo
molecular, comportamental, no mbito da vida privada. Para Maria Rita Kehl, tratou-se
de uma:
-
34
...gerao que deixou a casa dos pais, no para estudar em outra cidade, ou
para entrar para a luta armada na clandestinidade, mas simplesmente para
viver de outro modo, recusando qualquer atitude consumista, aderindo a
uma certa esttica da pobreza, e evitando [pelo menos era o que se preten-
dia, segundo a autora] trabalhar em qualquer coisa que contribusse para
fortalecer o capitalismo (KEHL, 2005: 34).
Para Cludio Novaes Pinto Coelho, a contracultura se constituiu como uma pr-
tica social, questionando a modernizao autoritria brasileira, sua racionalidade en-
quanto estrutura de organizao social e dos comportamentos individuais. Nas palavras
do autor, a contracultura procurava romper com as caractersticas do processo de mo-
dernizao autoritria vivido pela sociedade brasileira no perodo 1969-1974 (os anos
de chumbo) (COELHO, 1990: 111). Segundo o autor, a contracultura emerge no con-
texto de enfraquecimento e derrota de prticas sociais contra o governo. Os setores uni-
versitrios e o movimento da Tropiclia so, para Coelho, alguns dos importantes seg-
mentos sociais e artsticos que levantaram algumas bandeiras contraculturais. Ao
mesmo tempo em que questionavam, traziam uma viso alternativa ao processo de
modernizao da sociedade brasileira (COELHO, 1990: 23). Pode-se dizer, contudo,
que no se tratou especificamente de rompimento, mas de questionamento e outras ati-
tudes frente poltica e sociedade do perodo. O Tropicalismo, por exemplo, questiona-
va os valores socialmente postos pela ditadura, trazendo uma nova espcie de revoluo
esttica e nos comportamentos individuais. Para a esquerda universitria e o movimento
tropicalista, segundo Coelho, havia a tentativa de se combinar a modernizao [racio-
nalizao] com a modernidade [dimenso crtica] e com a luta de autonomia do espao
pblico (COELHO, 1990: 123). O autor destaca que a modernizao tambm seria
defendida por outros setores sociais, alm daqueles ligados ao regime ditatorial, como,
por exemplo, nas lutas estudantis pela reforma universitria, numa forma de moderniza-
o do ensino pblico brasileiro, mas contra o latifndio e o imperialismo, e na ideia de
libertao nacional (COELHO, 1990: 116). Contudo, conforme ressalta Coelho:
O AI-5 [o chamado golpe dentro do golpe] consolidou o carter autoritrio
do regime poltico instalado pelo golpe de 1964, estabelecendo tambm os
contornos definitivos do processo de militarizao da sociedade brasileira.
Isto quer dizer que fracassaram as tentativas de criao de alternativas ao
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35
modo como vinha se impondo a modernizao da sociedade brasileira
(COELHO, 1990: 145).
Nesse caso, o movimento tropicalista teria sido atingido por meio da represso e
pelas prises e o exlio de suas figuras principais: Caetano Veloso e Gilberto Gil. Se-
gundo Coelho: o golpe dentro do golpe de dezembro de 1968, ao militarizar totalmente
o espao pblico, inviabilizou qualquer possibilidade do movimento artstico tropicalis-
ta transformar-se num movimento social (COELHO, 1990: 145-146). O autor afirma,
ainda, que a contracultura foi o avesso da modernizao conservadora posta pela dita-
dura. Ambos tentaram estabelecer, de acordo com Coelho, a sobreposio do indivduo
ao social:
...a contracultura no foi seno o outro lado, o lado avesso da moderni-
zao autoritria. Ambas trabalhavam com uma noo de indivduo onde
estava excludo o seu carter de sujeito social. Para a modernizao auto-
ritria, o indivduo no seno um elemento passivo, subordinado aos di-
tames dos planejadores governamentais; enquanto que para os contracul-
turais, o indivduo define-se apenas pela sua subjetividade, pelo seu mun-
do interior, que se ope ao mundo social (COELHO, 1990: 168).
Deve-se matizar, contudo, a completa militarizao da sociedade brasileira des-
tacada pelo autor acima. Pois, como bem argumenta Marcos Napolitano, apontado ante-
riormente, existiam canais de convvio e de negociao entre os diversos setores sociais
ligados ou no ao governo militar, lutas e outros caminhos diferentes trilhados dentro da
modernizao conservadora. Pretende-se, desse modo, avanar nas concluses postas
por Cludio Novaes Pinto Coelho. Compartilha-se, aqui, com as ideias dos autores Dan
Joy e Ken Goffman, que afirmam ser a contracultura um movimento que prega a indi-
vidualidade, mas uma individualidade compartilhada (GOFFMAN & JOY, 2007: 51).
Segue-se, dos autores, a ideia de que a contracultura no se manifesta apenas pelo mo-
vimento hippie, pelos jovens de cabelos compridos, roupas coloridas, pregando o amor
livre e as drogas como forma de se expandir a cabea. A contracultura, segundo Goff-
man e Joy, se define principalmente pela preponderncia da individualidade acima de
convenes sociais ou restries governamentais, pelo desafio a qualquer tipo de autori-
tarismo (de forma sutil na maioria das vezes), e pela defesa de que a nica constante na
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36
sociedade a mudana (seja individual e/ou social). Dessa forma, vrios grupos, indiv-
duos, artistas, e aqui em destaque, o trio S, Rodrix & Guarabyra, se aproximam de
alguns valores contraculturais, numa crtica romntica sociedade capitalista, e utili-
zam-se, inclusive, da prpria modernidade simbolizada e exemplificada, nesse estudo,
pela utilizao da guitarra eltrica por parte dos msicos para criticar e se inserir no
contexto em que vivem. Como destaca Luiz Carlos S, integrante do trio em estudo, ao
ser indagado sobre como percebia o regime autoritrio em que viveu nos anos 1970:
como a de todos os artistas que sonhavam ambiciosamente em mudar o mundo: pssi-
ma, frustrante e muito perigosa14
. Ainda, em artigo para a Revista USP, o cantor enfa-
tiza:
...duramente impedida de manifestar-se em liberdade, a juventude brasilei-
ra egressa dos tempos de passeatas e luta armada era forada a derivar en-
to para um tipo de contestao inspirada pelo movimento hippie, que nos
EUA tinha uma fora contestatria muito mais evidente, contrria Guer-
ra do Vietn. Mas enquanto os sistemas repressivos europeus e america-
nos tinham que se ater a leis constitucionais e democracia vigente, no
que pesem os assassinatos de Chicago e Paris, ns aqui soframos a ausn-
cia do estado de direito. Por isso, enquanto o flower power vicejava nos
Estados Unidos e na Europa como uma fora ideolgica de fato, impondo
suas exigncias por vias polticas e atravs de importantes movimentos de
massa que acabaram, por exemplo, demolindo o apoio popular ao inter-
vencionismo americano na sia e ao tradicionalismo do ensino acadmico
francs, ns brasileiros tnhamos que nos conformar com o que a ditadura
julgasse menos danoso a seus objetivos (S, 2010: 127-128).
Por meio da apropriao do gnero musical rock no pas, S, Rodrix e Guarabyra
cantam a cultura e a sociedade brasileira do perodo. E, diferente do que afirma Luiz
Carlos S, no se tratou apenas de conformismo assumido pelos artistas, nos anos 1970,
em relao ao que a ditadura julgasse menos danoso, mas de se situar e de encontrar
espaos entre os embates contra o regime de exceo e a total ou parcial aceitao do
mesmo.
14
Entrevista concedida ao autor, por meio eletrnico, entre os meses de maio e junho de 2010.
-
37
1.3. Rock, bananas e outras formas de cantar o Brasil: o caso do rock rural.
Segundo Carlos Messeder Pereira, a expresso mais artstica da contracultura se
deu com o Rock. O gnero musical, conforme destaca o autor (PEREIRA, 1992: 42-43),
traduziu os anseios e a liberdade alternativa dos contraculturalistas e expressou a vonta-
de de se retirar para o campo, na ideia de vida em comunidade, nas viagens lisrgicas e
dilogos msticos e psicodlicos, numa crtica ao racionalismo cientificista (PEREIRA,
1992: 82). Para Carlos Messeder, visava-se:
...buscar sadas alternativas para expressar seu descontentamento e fazer
valer suas crenas e sua voz. E, certamente, estas sadas foram encontra-
das. Uma delas, por exemplo, a msica. No quadro da contracultura, o
rock um tipo de manifestao que est longe de ter um significado ape-
nas musical (...) constituindo-se num dos principais veculos da nossa cul-
tura que explodia em pleno corao das sociedades industriais avanadas
(PEREIRA, 1992: 82).
Fuso entre o blues e o jazz, o gnero musical rock desenvolve-se nos anos 1950
nos EUA. Paulo Chacon destaca o estilo batizado de rock and roll, em que:
Alan Freed, um disc-jquei de Cleveland, Ohio, percebeu que a msica
negra era um filo mercadolgico consumvel pelo branco desde que se
trocasse o nome de rhythm and blues, demasiadamente negro, para algo
mais branco: surgia assim o rock-and-roll (unio de duas grias que corre-
tamente traduzidas fariam vov corar) (CHACON, s/d: 91).
O rock surge na tenso e no encontro entre diferentes grupos sociais e formas de
expresso musical. Chacon aponta que o gnero recolhe elementos de trs campos mu-
sicais: a pop music, o rhythm and blues e o country and western music norte america-
nos. A pop music seria a herana branca, conservadora dos anos 1940, smbolo de status
quo de vanglorizao da vitria americana da Segunda Guerra Mundial e do modo de
vida americano, o american way of life. Como exemplo, a msica de Frank Sinatra,
Paul Mauriat, Ray Conif. Do rhythm and blues, a herana corprea do canto negro para
o rock, a vertente negra do blues, mais acelerado e eletrificado com o uso de guitarras e
-
38
baixo (CHACON, s/d: 90). E do country and western music, o ramo folk, a verso bran-
ca do sofrimento dos pequenos camponeses (CHACON, s/d: 91).
Para Roberto Muggiati, o rock seria o resultado da fuso de vrias correntes
musicais que vinham evoluindo na Amrica desde a virada do sculo (MUGGIATTI,
s/d: 14). Da msica negra, o blues, desenvolvido a partir dos gritos (field hollers) e can-
es de trabalho (work songs), com instrumentos do tipo: violo, banjo, gaita-de-boca,
geralmente de fabricao caseira. Em sua passagem, segundo Muggiati, da fase rural
para a urbana, conheceu uma verso instrumental aliando-se ao jazz e desencadeou um
dos primeiros grandes fenmenos musicais de massa, abrindo a era das grandes canto-
ras, as chamadas imperatrizes do blues (MUGGIATI, s/d: 14). Nos anos 20 j predo-
minam os primeiros discos, abrindo o caminho para o sucesso do jazz. Roberto Muggia-
ti afirma que nos anos 1930, sobretudo com o aperfeioamento da guitarra eltrica, sur-
ge o novo estilo de blues, o rhythm and blues, executado nos bares e guetos negros, lu-
gares ruidosos. Ritmo que ser lanado, segundo o autor, pela RCA. Tambm, por esse
perodo, o country and western, outra corrente de influncia para o rock and roll, fuso
da msica dos brancos pobres de reas rurais e da msica de vaqueiros e desbravadores
do oeste.
Como se pode perceber nas anlises de Paulo Chacon e Roberto Muggiati, o
rock nasce da fuso de outras fuses musicais. Para Muggiati:
...os primeiros roqueiros projetavam o grito primal no cenrio nervoso dos
grandes centros urbanos e propunham um novo universo musical, aberto
para a vida, com cheiro e cor. Suas canes, sublinhadas pelo ritmo fren-
tico das guitarras eltricas, traziam para o pblico a prpria realidade fsi-
ca da poca: ruas cheias de carros, gente se acotovelando nas caladas, se
amando e odiando... (MUGGIATI, s/d: 16).
Resultado do grito do negro nos campos e das combinaes entre blues (campo)
e jazz (meio urbano), e outros gneros, o rock desde seu aparecimento sofre tambm
variaes, indo da msica danante de Elvis Presley s guitarras de Chuck Berry, pas-
sando por bandas como The Beatles e Rolling Stones, at os sons mais psicodlicos e
progressivos (Pink Floyd, Yes, Gnesis), o som punk, o folk engajado de Bob Dylan e
Joan Baez, e assim por diante... fuso de fuses.
-
39
Conforme os autores acima, o rock tambm chega s terras brasileiras. Sobre o
gnero no Brasil, Muggiati apenas destaca sua influncia na msica nacional, para artis-
tas como os da Jovem Guarda; Tropiclia; os mineiros Milton Nascimento, L Borges,
Beto Guedes; Os Mutantes; Fagner; Z Ramalho, entre outros. Para Chacon, seria com a
Tropiclia que o rock definitivamente entraria na composio da msica brasileira. Re-
sumidamente, no final dos anos 1950, o rock chega ao pas, mas, no se torna um mo-
vimento artstico, o que para alguns autores (Schmidt, 2004; Morelli, 2008) s ser pos-
svel trs dcadas depois, com o rock brasileiro dos anos 1980, o chamado BRock. Em
1956, aparece a primeira verso em portugus da cano Rock Around the Clock, na voz
de Nora Ney, cantora de sambas de fossa (Schmidt, 2004: 15). Em 1957, Cauby Peixo-
to, cone do Radio, grava Rock and Roll em Copacabana. Nos anos 1960, entra em cena
a Jovem Guarda. Ana Brbara Pederiva ressalta que as canes do i-i-i brasileiro
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