ocupaÇÃo de escolas e dia de folga das mulheres ... · duas experiências históricas...
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
OCUPAÇÃO DE ESCOLAS E DIA DE FOLGA DAS MULHERES: ESTRATÉGIAS DE
EMANCIPAÇÃO
Karina Oliveira Martins1
Resumo: Nada, nem ninguém vive sem reproduzir a si mesmo. Tanto sociedades como indivíduos devem garantir
permanentemente sua reprodução para continuarem existindo. A vida cotidiana é essa esfera em que a reprodução
individual e social coincidem. No caso, a reprodução social é a reprodução da sociedade capitalista, marcada pela
luta de classes e pela hierarquia entre os gêneros. Historicamente a mulher é relegada às esferas cotidianas, mesmo
quando conquista espaço nas esferas produtivas. Assim, o feminismo irá se debruçar sobre as esferas cotidianas,
buscando transformá-las. Sendo a transformação da vida cotidiana uma necessidade para a emancipação das
mulheres. Duas experiências históricas aparentemente distintas questionaram e negaram o cotidiano de mulheres: a
ocupação das escolas em São Paulo por secundaristas em 2015 e o Dia de Folga das mulheres na Islândia em 1975.
Experiências classistas e feministas que questionaram a reprodução da vida enquanto interesse privado e
responsabilidade da mulher e apontaram para a criação de relações sociais completamente opostas às existentes:
experiências em que a emancipação da mulher e do gênero humano andam juntas.
Palavras chaves: vida cotidiana, estratégia, revolução, feminismo, marxismo
Este artigo analisa as características da vida cotidiana existentes no modo de produção
capitalista, sua relação com a desigualdade de gênero, e por fim, analisa as ocupações de escolas
em São Paulo e o dia de folga das mulheres na Islândia, a partir da tese da indissociabilidade
entre emancipação feminina e humana.
A vida cotidiana é o conjunto de atividades que caracterizam a reprodução dos seres
humanos particulares, como o descanso e o lazer. Ela é inevitável a qualquer pessoa, pois
ninguém consegue viver sem reproduzir a si mesmo. Da mesma forma, é impossível qualquer
sociedade existir sem reproduzir-se.. Essa reprodução social e individual faz parte de um
processo comum: ao nascerem, homens e mulheres defrontam-se com um mundo já construído
que devem continuar. Para reproduzir-se o indivíduo, que possui uma função social na sociedade,
inevitavelmente reproduz a sociedade em que está inserido e a sociedade existente só permanece
enquanto tal se reproduzida diariamente pelos indivíduos. Neste caso a auto-reprodução é
também um momento da reprodução social. Assim, a reprodução da vida cotidiana é sempre a
reprodução do humano concreto, isto é, de um ser humano situado em uma determinada
1 Mestranda do programa de Pós-Graduação em Psicologia na Universidade Federal de Goiás, Goiânia, Brasil
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sociedade, ocupando um lugar determinado na divisão social do trabalho. De modo sintético:
O modo de produção [capitalista]condiciona a vida cotidiana [...], mas ao mesmo tempo,
depende das relações estabelecidas nesse modo de vida, esta organização das rotinas
diárias sobre as quais se assenta a ordem econômica. A produção de bens também tem
sua própria cotidianidade, do mesmo modo como a tem o Estado; o cotidiano não se
contrapõe a estes aspectos, mas representa sua condição básica de possibilidade
(GARCIA, 2002, p.96, tradução nossa).
A reprodução da vida cotidiana é a reprodução de uma sociedade com um determinado
modo de produção, logo, ela se transforma radicalmente conforme o modo de produção existente.
Contudo, ela também condiciona o modo de produção ao reproduzi-lo diariamente ou ao produzir
tensionamentos por meio de novas relações, hábitos e costumes contrários ao modo de produção
dominante. O “modo de produção não deve ser considerado somente enquanto reprodução física
dos indivíduos. É, na realidade, um determinado modo de atividade destes indivíduos, um
determinado modo de manifestar a sua vida, um determinado modo de vida dos mesmos”
(MARX; ENGELS apud GARCIA, 2002, p.96).
Modo de produção capitalista é então a produção social da vida, isto é, as relações nas
quais os seres humanos produzem socialmente sua própria vida. Neste processo, a garantia de
existência física dos seres humanos é condição para as demais manifestações da vida social,
sendo, portanto indispensável a análise da produção material da vida por meio das relações de
trabalho, mas ela não é, de modo algum, categoria suficiente, pois as atividades humanas
extrapolam em muito a esfera produtiva. Em suma, na dialética entre produção e reprodução da
vida social que se dá a configuração do modo de produção capitalista. Nesta dialética, a vida
cotidiana - espaço de excelência da reprodução social – tem um papel indispensável. Na a vida
cotidiana o humano-genérico – o ser humano na sua universalidade2 – e o humano-particular – o
ser humano na sua própria especificidade e singularidade – coexistem e se relacionam. Trata-se
de uma ontologia em que o que há de mais complexo, social e humano coexiste e encontra-se
com a mera existência e reprodução física (LUKÁCS, 1987).
2 Entende-se universalidade como uma categoria abstrata que identifica os elementos comuns em fenômenos
distintos a fim de abarcar a totalidade dos processos. Para tanto ela só pode ser pensada na sua relação intrínseca
com a singularidade – logo, ela não nega a diferença - o que se dá por mediação da particularidade histórica. Ela
é histórica, portanto, não imutável e produto da ação humana (LUKÁCS, 1978)
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No capitalismo a individualidade se desenvolve em uma sociedade de classes que encobre
seu próprio funcionamento por meio de uma igualdade fictícia (a igualdade formal perante a lei).
Com a intensificação cada vez maior da divisão social do trabalho, “ cada ser humano se vê
limitado e confinado a certo âmbito especializado no qual centra sua vida diária. A consciência
surgida destas condições é fragmentária, e inviabiliza o resto da vida social e humana”
(GARCIA, 2002, p.98). Logo,a existência das classes sociais coloca limites para a existência do
humano-particular enquanto representante do desenvolvimento genérico, impõe limites à
possibilidade de apropriação por cada indivíduo singular de objetivações humano-genéricas.
Contudo, apesar de pertencer a uma classe, a relação do indivíduo particular com sua classe não
se dá de forma direta. Há uma mediação entre a classe e o ser particular, que são os grupos. É
comum que os grupos apresentem um sistema de exigências ideais da sociedade, (HELLER,
1987), o que pode potencializar as chances de recusa e/ou revolta com tais sistemas de
exigências.
Esta possibilidade expressa a historicidade do cotidiano, pois ele é também um espaço
marcado por transformações e conflitos. Além das revoluções alterarem significantemente a vida
cotidiana, há nele continuidades e transformações que se efetivam para além do particular,
reverberando no humano-genérico, tanto que frequentemente as mudanças macrossociais se
expressam na vida cotidiana antes de se efetivarem em processos revolucionários. Por isso, Heller
(1970) chama o cotidiano de“ o fermento secreto da história” (p.20). Ela ainda afirma que “toda
grande façanha histórica concreta torna-se particular e histórica graças a seu posterior efeito na
cotidianidade”(p.20). A transformação da vida comum é o termômetro de uma grande façanha
histórica.
Gênero, cotidiano e capitalismo
Há, contudo, um condicionante fundamental da vida cotidiana que escapou a Heller, o
gênero. Segundo Carosio (2010):
A experiência mais direta, mais universal e mais profunda da vida cotidiana é a
experiência da diferença sexual: masculinidade e feminilidade como conjunto de
comportamentos que os indivíduos devem adotar […] (p.73, tradução nossa)
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Este conjunto de comportamentos que se desenvolve a partir da diferença sexual é
chamado de gênero, que de maneira bem simplista, pode ser entendido como a construção social
do masculino e do feminino (SAFFIOTI, 2004). Diferentemente da relação com a classe social -
oculta e mediada - a diferença sexual aparece de forma direta e explícita, pois se relaciona
individualmente e diretamente com homens e mulheres. Tal diferença entre os sexos é universal e
é significada culturalmente, desde mesmo antes da criança nascer – por meio de expectativas,
nomes, roupas, etc. – por isso mesmo é uma experiência tão profunda e marcante.
Esta relação entre os sexos aparece no capitalismo como hierarquia, dominação e
autoridade. Esta experiência da “hierarquia social é uma experiência que se revive em cada
contato imediato que cada um de nós tem com o sexo oposto. Por isto é impossível pensar em
uma sociedade igualitária, não hierárquica e democrática se as primeiras relações entre os sexos
não são” (CAROSIO,2010, p.75). Ao mesmo tempo que a ruptura com essa hierarquia é condição
para a construção de uma nova sociedade, a emancipação da mulher necessita de uma
transformação social radical para conseguir realizar-se. Assim, superar a opressão da mulher não
implica somente conquistar as esferas públicas, criar direitos políticos e civis ou adquirir
independência econômica, ainda que tais conquistas sejam necessárias. Implica na transformação
total e radical de toda a sociedade.
Historicamente a mulher é criada para a reprodução do particular. Suas expectativas e
seus interesses são estimulados para a reprodução da particularidade, tanto a de si como a de
outros, principalmente por meio do casamento e da maternidade. As esferas não cotidianas (arte,
política, ciência) além de serem desestimuladas historicamente foram proibidas para as mulheres,
apesar de sempre haver mulheres que lutaram contra tais proibições e produziram grandes obras.
Isto reduziu as mulheres ao e para uma esfera bastante específica dele: o lar. Tanto é que o
feminismo da segunda onda centrou sua luta no cotidiano. Sexualidade, maternidade, relações
familiares e lesbianidade, tornaram-se bandeiras centrais do movimento. O grande lema dessa
onda é “o pessoal é político” (MUNIZ, 1991). Desde então o cotidiano tem sido um campo
prioritário de atuação do feminismo.
Embora a vida cotidiana e as relações de gênero estejam presente em toda a história
humana, a forma de sua manifestação é expressão de uma particularidade histórica concreta. O
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capitalismo tem como base a exploração do trabalho, em que a classe detentora do meio de
produções, apropria-se da força de trabalho daqueles, que não têm posses que não a sua própria
força de trabalho, a classe trabalhadora. Neste sistema a produção gira em torno da produção e
valorização do capital, não no benefício das pessoas. Desse modo, a vida cotidiana no capitalismo
aparece como central na vida individual, ocupando quase todo o tempo e energia das pessoas.
Vive-se para garantir a própria existência, sobrando pouco tempo para o ócio e lazer, ao menos
para a classe trabalhadora. Nessa realidade, a vivência cotidiana se diferencia de acordo com a
posição que se ocupa na divisão social do trabalho e esta não se aparta da divisão sexual do
trabalho.
A divisão sexual do trabalho exige trabalhos distintos dentro de uma mesma classe a partir
do sexo. O trabalho doméstico e o cuidado dos filhos é tido como função da mulher, assim como
profissões que demandam cuidado. À mulher é dada a função central na reprodução social –
ainda quela ela tenha conquistado e seja essencial também na esfera produtiva - enquanto o
homem tem como função primordial sua atuação na esfera produtiva. Nestes moldes, essa
divisão não é só uma divisão de tarefas distintas, mas uma divisão de prestígio e valoração social,
sendo a esfera reprodutiva altamente desvalorizada. Neste contexto a relação entre os gêneros
aparece como relação desigual e de dominação.
É impossível então pensar as relações de gênero e a emancipação da mulher de forma
abstrata e isolada da sociedade na qual se insere. As relações de dominação entre os gêneros estão
intimamente relacionadas com a luta de classes. Tal como o modo de reproduzir a vida, que tanto
aflige e oprime as mulheres, é um modo de reprodução de um modo de produção específico. O
feminismo, ao centrar a sua atuação nas pautas cotidianas da mulher, fomenta sua transformação,
conquistando melhorias para a vida das mulheres e são mudanças que podem ser o gérmen de
uma transformação social radical. Contudo, a emancipação da mulher, só será possível a partir da
luta adotada com uma perspectiva de totalidade, que busca romper com o modo de produção
social do capitalismo, apesar de não vir automaticamente desta ruptura. Ou seja, é necessário um
feminismo classista. .
Lutas radicais: ocupação secundarista e Dia de Folga das mulheres
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No dia 9 de novembro de 2015, foi ocupada, em São Paulo, a primeira escola pelo
movimento secundarista que se opôs à reorganização escolar, projeto do governado do Estado
que fecharia 93 escolas públicas. Após meses de ocupação – com mais de 200 escolas ocupadas,
diversos protestos e amplo apoio popular – o governador Geraldo Alckimin (PSDB) cancelou
publicamente a reorganização (CAMPOS, MEDEIROS & RIBEIRO, 2016)
No dia 24 de Outubro de 1975, as mulheres da Islândia negaram-se a executar suas
atividades comuns. Por um dia, recusaram-se a trabalhar fora de casa, cozinhar, cuidar das
crianças etc. Estima-se que 90% das mulheres do país aderiram à paralisação. Ao invés de
realizarem suas atividades cotidianas, em torno de vinte e cinco mil mulheres foram para as ruas
em protesto, número considerável para uma pequena ilha de duzentos e vinte mil habitantes
(BREWER, 2015). Elas protestaram contra os baixos salários e a desvalorização do trabalho das
mulheres dentro e fora de casa (THE GUARDIAN, 2005). Esse dia ficou conhecido como o dia
de folga das mulheres.
Mas afinal, o que episódios, locais e agentes políticos tão distintos possuem em comum?
Suspensão, questionamento e negação da vida cotidiana
Tanto a ocupação das escolas como a paralisação das atividades das mulheres
suspenderam a vida cotidiana e caracterizaram-se como questionamento e negação práticos dessa
mesma vida, ainda que o objetivo não tenha sido deliberadamente este.
A escola caracteriza-se como um espaço fundamental de reprodução social. A escola
pública é um espaço de formação, inclusive ideológica e subjetiva, da força de trabalho. Ela é
organizada de modo que as relações sociais necessárias para o capitalismo – que pacificam
trabalhadores por meio da submissão, disciplina, hierarquia e desigualdade – apareçam como
naturalizadas e necessárias, garantindo sua reprodução. Do conteúdo à forma tudo é para garantir
a reprodução das relações sociais da sociedade capitalista (TRAGTEMBERG, 1985).
Ao parar o funcionamento da escola, ainda que seja para garantir o seu funcionamento,
criaram relações igualitárias, horizontais e de autonomia (CAMPOS, MEDEIROS & RIBEIRO,
2016) . Negaram na prática a instituição de ensino e sua estrutura classista, criaram relações
opostas as necessárias para sua manutenção. Travaram-se duas lutas, uma contra o projeto do
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governo e outra dentro de cada ocupação. A luta em cada ocupação não é só uma luta com os
colegas para conseguir construir relações igualitárias, mas uma luta de cada indivíduo consigo
mesmo para contribuir para a criação destas novas relações. Além das aulas, foram paralisados,
também, o trabalho de cozinheiras(os) e trabalhadoras(es) da limpeza. Trabalhos
majoritariamente ocupados por mulheres. A paralisação dessas atividades obrigou as(os)
próprias(os) ocupantes a realizarem tais tarefas e se organizaram de tal modo que romperam – ou
ao menos tensionaram - com a divisão sexual do trabalho.Tais experiências estão intimamente
relacionadas. A horizontalidade e a democracia construídas nas ocupações são condições para a
criação de novas relações sociais, o que inclui as relações entre os gêneros. A perspectiva de
construção coletiva e horizontal do espaço escolar colocou desafios como a distribuição
igualitária das tarefas e a rotatividade no seu desempenho. Além disso, deu subsídios para
mulheres se negarem a executarem determinadas tarefas e reclamarem da desigualdade presente
no local. Como se percebe no relato a seguir:
[…] eu adorei [...] ver as mulheres realmente falar: “Meu! Eu não vou ficar na comissão
da limpeza! Por que que eu que tenho que ficar na comissão da cozinha? Inclusive teve
um caso bem extremo lá… numa ocupação aqui do centro [ da cidade de São Paulo ]...
que chegaram… as meninas ocuparam… as meninas que ocuparam… e, de repente,
chega um cara, que era o presidente do grêmio da escola. De repente, ele falou: “Olha, se
vocês quiserem ficar na ocupação, vocês vão ter que ficar na comissão da limpeza, da
cozinha!” Meu, tipo, as mina se rebelaram , sabe? Elas falaram: “ Como assim? Meu,
não é assim”.. Teve muita mina que ficou em comissão de segurança (CAMPOS,
MEDEIROS & RIBEIRO, 2016, p.137).
A autoridade outrora existente, mesmo entre os próprios colegas, já não era mais tolerada.
O espaço deveria ser construído coletivamente e nessa construção a divisão sexual do trabalho
nos moldes atuais já não era aceita. Todos que comessem e estivessem no local deveria garantir a
comida e a limpeza, independente do gênero. Se todos trabalham, porque isso seria atribuição das
mulheres? Já enfrentaram a polícia, a direção das escolas e a própria família, por que as mulheres
se submeteriam aos próprios colegas? A negação da submissão imposta diariamente na escola e
na família – e nas demais instituições sociais – era, principalmente para as mulheres, negada
sistematicamente. A reprodução social tornou-se papel de todos os inseridos no processo,
deixando de ser função exclusiva ou prioritária das mulheres. Da mesma forma, deixou de ser
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uma questão individual e privada. Tornou-se conscientemente atividade coletiva e social.
Criaram-se relações que combatiam a hierarquia entre os gênero e também a ordem e disciplina
capitalistas.
Paradoxalmente, nas ocupações, as atividades cotidianas tornaram-se atividades não
cotidianas. Isto é, as atividades diárias necessárias para a própria reprodução deixaram de ser
ações meramente espontâneas, individuais e irrefletidas e passaram a ser permanentemente
refletidas: “as simples questões do que será feito para o almoço ou onde serão guardadas as bolas
de basquete, por exemplo, podem se tornar uma discussão política” (CAMPOS, MEDEIROS &
RIBEIRO, 2016, p.128). Não eram ações irrelevantes ou de interesse privado, mas ações
fundamentais para a permanência da ocupação. Rompeu-se na prática com a divisão entre o
público e privado. Foi uma vivência da expressão “o pessoal é político”. Nesses termos, a
execução exclusiva de tarefas de limpeza e alimentação pelas mulheres era uma questão política
fundamental, assim como violência sexual era também um interesse coletivo, não só por uma
questão de princípios, mas porque amenizar e evitar conflitos era questão de sobrevivência para a
ocupação.
Essa reflexão das tarefas diárias, tal como a politização das questões privadas e
individuais, incrementadas pela participação das mulheres em uma esfera essencialmente não-
cotidiana, fortaleceu as mulheres de uma maneira grandiosa. Tanto é que a hashtag
#lutecomoumamenina ganhou destaque e as fotos e entrevistas exibiam diversas mulheres
atuantes e destacadas no movimento de ocupações. As mulheres não só estavam em grande
número, talvez até em maioria, como também estavam na frente da ocupação, inclusive na
resistência (CAMPOS, MEDEIROS & RIBEIRO, 2016). Houve negação prática dos estereótipos
de fragilidade e objetificação da mulher.. Ali estavam as mulheres atuando como seres políticos,
fortes e que não eram objetos sexuais. Num dos relatos colhidos por Campos, Medeiros e Ribeiro
(2016, p. 138), afirmou-se:
Aprendemos a conviver com as diferenças e a respeitar o próximo, na prática, no dia a
dia. Mas, pra mim, acima de tudo, aprendemos que JUNTOS SOMOS MAIS FORTES!
É realmente maravilhoso você entrar na sua escola e perceber que não há mais, ali
dentro, a separação de gênero e nem de faixa etária. Olhamos ao redor e vemos meninos
na cozinha, limpando e lavando banheiros, e meninas organizando protestos, de peito
aberto, dando sua cara a tapa e se juntando na linha de frente para enfrentar a tropa de
choque da polícia militar.
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Por meio da vivência diária e coletiva, as divisões de panelinhas outrora existentes foram
perdendo o sentido e deixando de existir. A divisão tão natural entre coisas de meninas e meninos
foram, na prática, sendo recusadas. Com isso, ainda que com contradições, conflitos e limites,
foi-se superando a desigualdade de gênero. Processo fomentado ainda pelos diversos debates de
grupos feministas que ocorreram nas ocupações. A vivência coletiva com mulheres que viravam a
noite na segurança, que enfrentavam a polícia, que falavam em assembleia, junto com o
conhecimento possibilitado pelo contato com debates e mulheres feministas, fortaleceram
diversas mulheres e, ao mesmo tempo, conquistaram o respeito e a admiração de colegas que
passaram a repensar o próprio machismo. Na vivência comum, a redução da mulher a
estereótipos de fragilidade perdia o sentido. Limpar e cozinhar eram tarefas fundamentais de
interesse comum, tal como a segurança.
De maneira semelhante, as mulheres na Islândia paralisaram suas atividades diárias e
deixaram-nas para os homens, principalmente aqueles que ocupavam as posições de maridos e
patrões. A radicalidade maior desse ato está na paralisação simultânea das esferas produtivas e
reprodutivas, explicitando não só sua indissociabilidade, como também que a reprodução
individual é de interesse social e marcada pela desigualdade vigente entre os gêneros.
A relevância das mulheres – mulheres trabalhadoras – ficou evidente pelo outro nome
dado para a paralisação: “sexta-feira longa”. Longa para os homens, evidentemente. Diversas
indústrias fecharam, serviços de telefonia não funcionavam, escolas e lojas também fecharam,
atrizes não trabalharam, voos foram cancelados, etc.. Diversos homens tiveram que levar as
crianças para o trabalho. Segundo Vigdis Finnbogadottir, mãe solteira e divorciada que foi eleita
cinco anos depois a a primeira mulher presidente do país e que foi também a primeira mulher do
mundo a ser eleita democraticamente como chefe do Estado, (BREWER, 2015, para.
9)."Ouvíamos crianças brincando enquanto os apresentadores liam as notícias no rádio. Foi uma
coisa boa de se ouvir e saber que os homens tinham que tomar conta de tudo". Uma imagem de
caos não é exagero. Tiveram que reorganizar todas as atividades diárias.
Este caos explicitou algo que deveria ser óbvio, mas que é encoberto pela aparente
naturalidade do cotidiano. A reprodução individual é de interesse social. Apesar dos cuidados dos
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filhos e afazeres domésticos serem tratados como questões privadas, episódios como esse
demonstram que não são. O bom funcionamento das tarefas domésticas é condição necessária
para o funcionamento social normal, inclusive nas esferas produtivas. A negação das mulheres a
esta atribuição criou uma imagem de pânico, como os homens iriam trabalhar e cuidar das
crianças e limpar a casa ao mesmo tempo? Alguém teria que garantir o bom funcionamento da
reprodução individual. Quem seria? Os homens? O Estado? As empresas? Se as mulheres
negassem permanentemente estas funções, o que aconteceria? Essa possibilidade pode parecer
meio distópica para os homens e sua “sexta-feira longa”, mas é fundamental para as mulheres e
extremamente relevante na medida em que expõe o trabalho invisibilizado e desvalorizado da
mulher.
Nesse momento, a produção e reprodução social da vida visivelmente se encontram.
Como trabalhar e produzir bem comendo mal? Como ser produtivo preocupado com a criança ao
lado? Não é possível. Alguém tem que garantir a reprodução para que a produção ocorra. Ao
paralisarem a execução dessa tarefa, as mulheres fizeram um questionamento prático da divisão
sexual do trabalho. Negando a responsabilização pelo trabalho doméstico e cuidado dos filhos,
socializaram um problema que, em tese, seria apenas delas. Foi a unidade prática entre a
condição de trabalhadoras que vendem a força-de-trabalho e a condição de mulheres
(trabalhadoras), que, diferentemente dos seus companheiros, ganham menos e quando chegam
em casa têm que lavar roupas, cuidar dos filhos, passar roupa, fazer comida, ou seja, que
vivenciam as jornadas dupla ou tripla de trabalho.
Naquele momento possibilitou-se uma suspensão do cotidiano. Ao negar-se a fazer tais
atividades, suspendem-se tais atividades e criam-se condições de desnaturalização e reflexão
sobre uma realidade aparentemente natural. Ao mesmo tempo criam-se outros laços, rompendo
com a famosa rivalização entre mulheres. Por exemplo, no dia anterior à folga, as mulheres
estavam juntas em todos lugares, bebendo, tomando café, fumando e as conversas estavam
agitadas (THE GUARDIAN, 2005). Foi um momento de novas relações, de fortalecimento de
laços e fortalecimento conjunto das mulheres.
Com tudo isso, negava-se todo o papel de submissão esperado das mulheres e a redução
de sua existência à responsabilização pelas esferas privadas e cotidianas.. Criaram- outras
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possibilidades de condução consciente da própria vida. O jornal Morgunbladid, majoritariamente
produzido por mulheres que voltaram à meia-noite para fazê-lo, teve sua publicação garantida no
outro dia, contendo somente publicações sobre a Dia de Folga Das Mulheres ; Naquele dia as
mulheres falaram sobre si mesmas. (THE GUARDIAN, 2005).
Não se tem bem documentado como esse dia influenciou na vida cotidiana das mulheres,
mas sabe-se que, cinco anos depois, foi eleita a primeira mulher presidente do país e do mundo, o
que apesar de não implicar nenhuma relação direta com a melhoria da vida das mulheres,
significa, no mínimo, que havia maior abertura para a presença de mulheres em esferas não-
cotidianas. Sabe-se também que desde 2009, o país lidera o Índice Global de Desigualdade de
Gênero do Fórum Econômico Mundial e a data da paralisação é sempre lembrada pelas mulheres,
acontecendo inclusive novas paralisações para reivindicar direitos ainda não conquistados pelas
mulheres (BREWER, 2015). Ou seja, a data foi e continua sendo um marco para as mulheres
trabalhadoras da Islândia.
Considerações finais
Lutas tão distintas podem ter mais em comum do que parece, o que se relaciona com a
potencialidade de uma luta, o que vai muito além de suas pautas. A questão principal é o conjunto
de relações sociais que criadas durante a luta. O questionamento prático da vida cotidiana – que
no capitalismo ocupa lugar central na existência da classe trabalhadora, principalmente para
trabalhadoras que são, desde a infância, educadas para focarem suas vidas na reprodução da vida
cotidiana (reprodução de si, dos filhos e do marido) é uma luta radical. A paralisação do
cotidiano, quando articulada com práticas que questionem e neguem a vida cotidiana atual,
interrompe a reprodução social típica da sociedade capitalista. Assim, quando se questiona o
lugar da mulher na reprodução social, há um questionamento para negar e superar, tanto as
relações de dominação entre os gêneros, quando o capitalismo, por isso é uma luta radical.
Indo de ocupações à greves, mistas ou só de mulheres, a luta feminista pela emancipação
da mulher se desenvolve e se radicaliza. Tal luta é indissociável da luta pela emancipação
humana, tal como a reprodução social é indissociável da produção social. Lutas que, apesar de
não levarem a processos revolucionários, questionam e criam relações germinais para uma outra
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sociedade, tal como criam práticas que não permitem que o cotidiano permaneça o mesmo. Como
lutas radicais que são elas voltam e transformam o cotidiano.
Não é exagero dizer que após a participação nesta luta as mulheres - e os homens - não
serão as mesmas. Uma maior valorização da mulher é fruto destas lutas, assim como seu
fortalecimento objetivo e subjetivo. A vida e sua hierarquia de gênero já não aparecem mais como
tão naturais e estáveis. A transformação não aparece apenas como possível, mas como necessária.
Assim, lutas tão distintas são semelhantes porque suspendem o cotidiano para negá-lo e então
retornar, mas já não ao mesmo cotidiano. A luta avança com estas experiências históricas para,
quiçá, um dia a vida cotidiana ser completamente outra, sem qualquer hierarquia entre os
gêneros, nem qualquer relação de dominação e opressão.
Referências
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2004
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em < https://www.theguardian.com/world/2005/oct/18/gender.uk>. Acesso em 05 jan. 2017
TRAGTEMBERG. M. Relações de poder na escola. Lua Nova, São Paulo, vol.1, no.4,mar, 1985.
p.68-72
School Occupation and Women's Day Off: Strategies for Emancipation
Summary: Nothing, nor does anyone live without reproducing itself. Societies and individuals
must permanently reproduce itself in order to continue to exist. Everyday life is this sphere in
which individual and social reproduction coverge. Nowadays, social reproduction is the
reproduction of capitalist society, marked by class struggle and hierarchy between gender
relations. Historically, women are relegated to everyday spheres, even when they conquer spaces
in the productive spheres. Feminism will tackle the everyday life aiment to transform it.
Transformation of everyday life is a necessity for women’s emancipation. Two seemingly
disparate historical experiences questioned and denied every day life: the occupation of schools
in São Paulo by High School students in 2015, and Women's Day Off in Iceland in 1975. These
experiences, founded on class and gender basis, questioned the reproduction of life as a private
matter and of exlusive responsibility of women, and pointed to the creation of social relations
completely opposite to those existing nowaydays: social relations in which the emancipation of
women and the emancipation of human beings walk side by side.
Keywords: Everyday life, strategy, revolution, feminism, marxism
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