os fundamentos da ciencia moderna na idade media
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7/23/2019 Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media
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Colecção História e Filosofia
d
Ciência
Os
Fundamentos
da iência
Moderna
na
Idade
Média
oordenação da olecção e
Revisão
ientífica
na Simões e Henrique Leitão
7/23/2019 Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media
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321
os
FUNDAMENTOS
DA
C I ~ C I MODERNA
NA IDADE MÉDIA
Difusão e assimilação da filosofia natural de Aristóteles
A introdução das obras de Aristóteles
na
língua latina e a sua difusão e assi
milação subsequente transformaram a vida intelectual da Europa Ocidental.
Mas a influência de Aristóteles não dependeu unicamente das suas próprias
obras. Para calcularmos o enorme impacto de Aristóteles, teremos de conside
rar os comentários às suas obras que foram elaborados por gregos na Baixa
Antiguidade e por árabes durante os séculos IX a XlI. Embora as obras genuínas
de Aristóteles moldassem a percepção medieval do mundo muitas obras que
lhe eram erradamente atribuidas também moldaram a forma como
na
Idade
Média eram avaliadas as suas ideias. A estas temos ainda de acrescentar tradu-
ções latinas do árabe de tratados não aristotélicos contendo ideias derivadas da
filosofia natural de Aristóteles, particularm ente em medicina e astrologia. Este
complexo
conjunto
de ideias e interpretações aristotélicas foi
herdado
pelos
filósofos naturais da Idade Média Latina. Baseando-se nestas fontes, os estudi o
sos medievais dedicaram-se a acrescentar
os
seus próprios comentários às obras
de Aristóteles, bem como a compor tratados especializados em
que
as ideias de
Aristóteles detinha m lugar proeminente. A totalidade deste
corpus
literário - a
herança e as adições a esta - é aquilo a que hoje chamamos Aristotelismo .
Este termo, que nunca foi utilizado na Idade Média, caracterizade forma adrni
rável o mais importante componente da vida intelectual do período que com-
preende os séculos XlI e
XV
(a Idade Média propriamente dita) e mesmo para
além deste, até ao fim
do
século XVII.
Contribuições dos comentadores gregos
Através de
comentários
aos trabalhos
de
Aristóteles, o
mundo
grego
da
Baixa Antiguidade contribuiu significativamente para a filosofia natural. Traba-
lhando entre os anos 200 e 600 d. c. os comentadores gregos deixaram nume-
rosos tratados que totalizam
aproximadamente
quinze
mil
páginas de texto
grego, na edição
conhecida por
Comentários a Aristóteles em
Grego
Antigo
Commentaria
in
Aristotelem Graeca). Dos autores que comentaram Aristóteles,
uns
eram
aristotélicos e outros neoplatónicos, sendo estes últimos
muito
críti
cos
em
relação à obra de Aristóteles. Deste grupo, aqueles que maior influência
tiveram sobre a ciência e a filosofia islâmicas e latinas foram Alexandre de
Afrodisias (fl. 198-209), Temistio (fl. finais
da
década
40 do
ano 300-384/385),
Simpl1cio (ca. 5OO-f. 533) e João Filopão (ca. 490-década de 70 do século VI),
~ . . . . . . . . ~ . ~
' t ; . ,
NOVO rNICIO AERA DA TRADUÇÃO
NOS S ~ U L O S
XII EXIII 133
um neoplatónico que era também cristão. A influência exercida por Alexan
dre e Temístio sobre a filosofia natural na Idade Média Latina veio em grande
parte através dos comentários aristotélicos de Averróis, o famoso comentador
muçulmano que citava frequente mente passagens das suas obras. O comen-
tário
de
Simplício a
Sobre
os
Céus De caelo),
que
Guilherme
de
Moerbeke tra
duziu para latim no século XlII, transmitiu importantes ideias sobre cosmo
logia e física.
Embora
a
maior
parte das obras de João Filopão permanecesse
desconhecida
no
Ocidente Latino até ao século XVI, algumas das suas ideias
eram conhecidas através
da
tradução parcial
de
Guilherme de Moerbeke
do
seu comentário a Sobre a Alma, através dos ataques
que
Simplício lhe dirigiu
no
seu comentário a
Sobre os Céus de
Aristóteles e ainda através de citações
ocasionais das suas ideias
nos
comentários aristotélicos
de
Avercóis. Filopão é
importante na história
da
ciência
na
medida em que criticou as ideias de Aris
tóteles sobre fisica e cosmologia. A teoria do impetus,
ou
a
doutrina da
força
impressa. que
desempenhou
um
importante
papel na fisica árabe e
na
física
medieval latina,
derivou
a em
última
análise do
comentário
de Filopão à
Física de
Aristóteles. Filopão insistiu
também contra
Aristóteles,
em
que o
movimento finito era possível no vácuo e
que
dois pesos desiguais, deixados
cair
de
uma dada altura, embateriam
no
solo quase ao mesmo tempo. No seu
comentário ao Génesis De
opificio
mundi), rebateu o conceito da eternidade
do
mundo
de
Aristóteles e insistiu também em que as matérias celeste e
terrestre são idênticas,
ao
invés de radicalmente diferentes, como afirmara
Aristóteles. Nos últimos anos, o trabalho
dos
comentadores gregos tem vindo
a ser muito mais apreciado e, em última análise, as suas contribuições para a
história da ciência medieval e
da
ciência
moderna podem
revelar-se mais
importantes do que
em
tempos se julgou.
Contribuiçõesdos comentadores islâmicos
Quando as obras
de
Aristóteles foram traduzidas do grego (ou mesmo do
siríaco) para o árabe durante os séculos IX e X pouco demorou para que os
eruditos islâmicos estudassem essas obras e escrevessem comentários sobre
elas. Os
comentários
e discussões islâmicos sobre as ideias e as obras
que
influenciaram o
Ocidente
foram escritos antes de 1200.
Dado que
vários
comentários
gregos
sobre Aristóteles inspirados no neoplatonismo
tinham
sido traduzidos
para
o árabe, muitas vezes eram introduzidas ideias
neoplatónicas nos comentários
islâmicos a Aristóteles.
Entre os eruditos
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34 os
FUNDAMENTOS
DA CI1':NCIA
MODERNA
NA
IDADE MEDIA
muçulmanos que escreviam sobre Aristóteles em árabe e que tinham obras tra
duzidas para latim,
os
mais importantes foram al-Kindi
(ca.
801-ca. 866),
al-
-Farabi (ca. 870-950), Avicena (lbn Sina) (980-1037), al-Ghazali (1058-1111) e
Averróis lbn Rushd) (1126-1198). Deste grupo, Avicena, al-Ghazali e
Averróis foram os que tiveram o maior impacto sobre a ftlosofia natural
aristotélica no Ocidente. O erudito hebraico mais influente no Islão e que
contribuiu pa ra o saber europeu foi Moisés Maimónides (1135-1204), que
escreveu em árabe.
Na sua obra Kitab
al
Shifa (O Livro da Cura
[da
Ignorância]),
uma
enci-
clopédia ftlosófica traduzida no século XII por Domingo Gundisalvo e
Avendaut (Abraham ibn Daud), Avicena comentou muitos aspectos da filo
sofia natural de Aristóteles. A segunda parte dessa obra era dedicada à física
que, na tradução latina incompleta do século XlI, foi chamada Sufficientia e
era constituída por oito partes. Nas secções de que os filósofos naturais
medievais dispunham, Avicena expunha as suas ideias sobre os céus, a gera
ção e a corrupção, os elementos, os meteoros, os animais, os minerais e a
alma. A sua grande obra de medicina, Cânone de Medicina, terá sido talvez
mais importante nas escolas médicas das universidades medievais do que
foram as obras de Galeno.
Embora al-Ghazali tivesse um impacto significativo no Ocidente, isso não
se deveu às suas próprias opiniões e interpretações. Al-Ghazali escrevera uma
súnlula das opiniões filosóficas de al-Farabi e de Avicena seguida
por uma
cri
tica severa
às
opiniões de ambos. Mas
só
a primeira foi traduzida para
latim
Deste modo, as opiniões de al-Farabi e de Avicena foram atribuídas a al-Ghazali.
A sua crítica filosófica não traduzida,
A
Incoerência dos Filósofos, tornou-se
conhecida no Ocidente através da crítica que lhe
fez
Averróis em A
Incoerên-
cia
da
Incoerência, que foi traduzida para latim.
Entre todos
os
autores islâmicos, Averróis
foi
aquele que mais influenciou
o panorama aristotélico no Ocidente Latino.
Um
eminente erudito observou
que
Se
existe
um
processo de naturalização em literatura correspondente ao
da cidadania, os escritos de Averróis pertenciam tanto à língua em que foram
escritos, como à língua em que foram traduzidos e através da qual exerceram
a sua influência sobre o curso da filosofia mundial .5
É
uma das grandes iro
nias da história que as obras escritas em árabe de Averróis fossem pratica
mente ignoradas pelo mundo de expressão árabe nos paises islâmicos, ao
passo que muitas dessas mesmas obras viriam a exercer uma grande influên
cia na Cristandade através das traduções latinas.
O
NOVO
INICIO: AERA DA
TRADUÇÃO
NOS
slicuws
Xli E Xlll 35
Até ao momento, foram identificados trinta e oito comentários de Aver
róis, em árabe, sobr e obras de Aristóteles. Este número extraordinário resulta
do facto de Averróis ter escrito pelo menos dois, e frequentes vezes três, dife
rentes tipos de comentários sobre qualquer tratado de Aristóteles. A propó
sito da
Física,
por
exemplo, escreveu um epítome,
ou
breve súmula;
um
comentário médio,
ou
paráfrase do texto; e um comentário longo, que era a
discussão pormenorizada, sequencial, das sucessivas secções de todo o texto.
Aplicou este mesmo tratamento tripartido a Sobre os Céus e à Metafísica.
Noutros casos, por exemplo, Sobre a Geração e a Corrupção e Meteorologia,
escreveu só comentários médios e longos. Dos trinta e oito comentários em
árabe, quinze foram traduzidos para latim durante a primeira parte do
século XIII (por Miguel Escoto e outros) e dezanove foram ainda traduzidos
do hebraico para latim durante o século
XVI
(os comentários de Averróis
foram
ainda
mais influentes na tradição aristotélica hebraica do que
na
latina). Nos seus comentáríos, Averróis procurou purgar o pensamento aris
totélico das interpretações neoplatónicas que, no seu entender, tinham distor
cido o verdadeiro significado de Aristóteles. Estava convencido de que Aristó
teles conseguira compreender tanta verdade acerca do mundo quanto era
possível a um ser huma no fazê-lo, utilizando a prova demonstrativa.
Obras pseudo-aristotélicas
Iniciando-se cerca de duas gerações após a morte de Aristóteles, a atribui
ção ao filósofo de obras apócrifas começou com dois títulos gregos: Sobre
as
Cores
De coloribus) e
Medtnica
Mechanica). Com o passar do tempo, surgi
ram outros apócrifos em grego. Porém, isto foi apenas o começo. O processo
de
falsas
atribuições
foi
repetido em todas
as
línguas para as quais as obras de
Aristóteles eram traduzidas, o que incluía siríaco, árabe, latim, hebraico,
arménio e algumas línguas vernáculas europeias. Muitas das obras apócrifas
debruçavam-se sobre pseudociência, principalmente alquimia, astrologia,
quiromancia e fisionomia. A astronomia estava também representada. Muitas
destas obras apócrifas foram traduzidas do árabe para o latim. No mundo
latino, a maioria circulava independentemente das obras genuínas de Aristó
teles. Parecem ter atraído um grupo social diferente do das universidades,
onde, com poucas excepções, tinham pouco impacto e eram raramente cita
das em obras sobre filosofia natural. Entre as excepções contam-se: Livro
das
Causas
Liber de
causis,
traduzido por Gerardo de Cremona), que se
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36
os FUNDAMENTOS
DA cIllNClA
MODERNA
NA IDADE MllDIA
baseava nos
Elementos
de
Teologia
de ProcIo e teve particular influência entre
teólogos, dando origem a comentários de Alberto Magno e São Tomás de
Aquino;
Das
causas das Propriedades
dos
Elementos
De
causis proprietatibus ele-
mentorum) que surge em numerosos códices dos livros de filosofia natural de
Aristóteles e exerceu maior influência nos séculos XIII e
XIV;
e finalmente,
embora menos importante para a filosofia natural do que os dois primeiros tra
tados, o
Segredo dos
Segredos
Secretum
secretorum), o qual apresenta muitas
máximas que encerram ostensivamente a sabedoria que se dizia ter sido trans
mitida por Aristóteles aos antigos governantes. De todos os apócrifos atribu ídos
a Aristóteles, o
Segredo dos
Segredos foi o mais popular, como o comprovam
pelo menos seiscentos manuscritos existentes, dos quais cerca de vinte terão
circulado com uma
ou mais das obras genuinas de Aristóteles.
Recepção das tradu ções
Os textos de Aristóteles eram difíceis e as traduções
nem
sempre claras,
dando ocasionalmente azo a acusações de obscuridade. Assim, os comentários
de Avicena e Averróis foram entusiasticamente acolhidos como guias para a
interpretação dos exigentes textos de Aristóteles.
A influência de Aristóteles no
pensamento
ocidental
começou
muito
antes das traduções
em
larga escala,
em
grande parte devido a duas
tradu-
ções em latim do tratado em árabe sobre astrologia de Abu Ma xar, uma
datada de 33 e a outra de 1140. A Introdução à Astronomia de Abu Ma xar
era um trabalho astrológico que incluía numerosas ideias e conceitos dos
livros sobre filosofia natural de Aristóteles. Foram muitos os estudiosos
do
século XII que tiveram o seu primeiro contacto com as doutrinas de Aristóte
les através do tratado de Abu Ma xar. Mas este gotejar de ideias aristotélicas
isoladas foi rapidamente submergido pelas traduções das suas obras. Apesar
das novas traduções d s obras de Aristóteles do século XII, poucos m anuscri
tos desse período sobreviveram, o que indica que os tratados de Aristóteles
tiveram pouca influência directa nesse século. Contud o, a situação alterou-se
de modo
dramático em meados
do
século XIII, altura
em
que surgiram
em
grande
número manuscritos das
obras
de Aristóteles. Nessa altura
já
a
influência deste se tornara significativa e viria ainda a aumentar com o passar
do tempo. Uma indicação importante do seu impacto reside na produção
de comentários latinos aos seus trabalhos, assunto que será tratado num
capítulo posterior.
I
I
f
O NOVO INICIO: AERA DA TRADUÇÃO NOS
sllCULOS
lOl E lOll 137
Quase todos os antigos tratados gregos, traduzidos do grego
ou
do árabe,
ou de ambas
as
línguas, para o latim eram anteriormente desconhecidos da
Europa Ocidental Cristã. Como foi recebido este vasto corpus de ciência pagã
e de filosofia natural? Como reagiram os Cristãos a um corpus literário a que
eram totalmente alheios e que apresentava potenciais problemas para a
fé?
Embora esses tratados fossem novos para a Europa Ocidental, a experiência
da literatura pagã não o era. Os Cristãos
já há
muito se tinham adaptado a ela.
Tinham sido expostos ao pensamento pagão quase a partir
do
momento em
que a religião cristã fora difundida para além da Terra Santa. O pensamento
pagão era familiar não só para a parte oriental do Império Romano, de
expressão grega, como também para os autores latinos
no
Ocidente, tais
como Santo Agostinho, Santo Ambrósio e os encicIopedistas. Graças à expe
riência prévia do Cristianismo face à literatura pagã, as traduções latinas
da
ciência greco-árabe dos séculos XII e XIII podem ser encaradas como um
segundo, e muito mais extenso, fluxo de pensamento pagão para os cristãos
da
Europa OcidentaL
Se bem
que a ciência e a filosofia natural da segunda
vaga
do
pensamento pagão tenha provocado
algum
atrito entre
fé
e razão, os
filósofos naturais cristãos, muitos dos quais teólogos, ficaram encantados
por
acolhê-la. Com a lógica e a filosofia natural de Aristóteles como seu núcleo, o
novo conheci mento veio prover às necessidades do currículo das universida
des então emergentes, que formaram um dos mais duradouros legados insti
tucionais da Idade Média e que devo agora descrever.
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A UNIVERSIDADE MEDIEVAL
39
3 A universidade medieval
Uma descrição da estrutura e do funcionamento das universidades medie
vais é essencial tendo em con ta a importância dessas instituições no desen
volvimento da ciência ocidental.
As
universidades emergiram em resultado da
transformação da sociedade e da vida intelectual que ocorrera na Europa Oci
dental por altura do século XII.
A uropa feudal dos séculos VII e VIII sofreu drásticas alterações no
século
XI.
Durante o final do século
XI
e no decurso de todo o século XII
as
condições politicas melhorar am substancialmente devido em larga medida
aos senhores feudais de expressão francesa que trouxeram governos mais ou
menos estáveis
à
Normandia
à
Inglaterra
à
Itália
à
Sicília
à
Espanha e a Por
tugal. O vigor de uma Europa revitalizada era também evidenciado pela recon
quista da Península Ibérica que estava em pleno curso nos finais do século
XI.
Assim que se garantia
uma
segurança cada vez maior a economia da
Europa renasceu e o nível de vida subia para todos os segmentos da socie
dade. Este novo estado de coisas
foi
proporcionado por melhorias significati
vas na agricultura muito part icularmente pelo advento do arado pesado a
que
se
atrelava agora o cavalo em vez do boi. Esta substituição tomo u-se pos
sível graças
à
introdução da ferradura com cravos e do arreio de coalheira
que juntos fizeram do cavalo um auxiliar muito mais eficaz para a agricul
tura do que o boi. Não menos significativa foi a substituição do sistema de
rotação das culturas de dois campos para o de três o que permitiu també m
um grande incremento na produção de alimentos. A abundância de alimentos
contribuiu para originar um aumento populacional considerável que por seu
turno possibilitou a expansão de vilas e cidades. Na realidade o crescimento
demográfico obrigou
à
construção de centenas de novas vilas. Os Europeus
começaram a colonizar terras anteriormente despovoadas ou subpovoadas
ou a expandir-se para leste contra os
Eslavos
como o fizeram os Germanos
no seu movimento para lá do rio Elba.
Nos
Países Baixos o povo começou
inclusive a conquistar terreno ao mar. Os Europeus estavam em movimento e
protagoniza ram migrações significativas. Muitas das novas vilas foram povoa
das por homens livres muitos deles antigos servos que tinham fugido para as
vilas em busca de melhores condições de vida.
Nos finais do século XII o nível de comércio e de manufactura na Europa
era provavelmente maior do que no auge do Império Romano. Entre os sécu
los IX
e XIII a Europa transformou-se. Passou a existir uma economia monetária.
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4 os FUNDAMENTOS
DA
CIENCIA MODERNA NA IDADE MI DIA
Modificações na governação estavam também a ser levadas a cabo. A luta
entre vilas e cidades, po r um lado, e os governantes seculares e edesiásticos, por
outro, estava em curso.
s
populações urbanas procuravam tanto qu anto possí
vel governar-se autonomamente e esforçavam-se por se libertarem das contri
buições impostas pelos herdeiros nobres. Desenvolveu-se o conceito de
uma
comuna com direitos concomitantes de cidadania. De forma oportunista, as
cidades europeias fizeram causa comum com papas, reis, imperadores
ou
prínci
pes
independentes, para aumentar em o seu pode r e protegerem os seus direitos.
Assim, as cidades tornaram-se uma força poderosa na vida económica,
politica, religiosa e cultural do continente europeu. Dado que as universida
des europeias eram criações urbanas, poder-se-ia inferir
que
seriam
de
algum
modo o produto das forças descritas, mas isso seria incorrecto. As cidades
eram apenas uma condição necessária, mas não suficiente, para o emergir de
universidades. A urbanizaç ão pode ter oferecido uma matriz essencial para o
início e o florescimento das universidades, mas dificilmente se consideraria
uma garantia para o processo ocorrer de facto. Desde as sociedades primitivas
do Antigo Egipto e
da
Mesopotâmia que diversas civilizações urbanas surgi
ram e desapareceram, mas
nenhuma
produzira algo
de
comparável às univer
sidades da Europa. Na verdade,
as
universidades dificilmente se podem consi
derar essenciais para que uma civilização atinja
um
elevado grau
de
realização
cultural. Para manter registos, preservar tradições literárias e aumentar o
conhecimento e a sabedoria acumulados, uma civilização precisa apenas de
assegurar que alguns
dos
seus membros saibam ler e escrever, que um
número suficiente se ocupe das tarefas requeridas e que o registo escrito seja
preservado e transmitido de geração em geração. s sociedades que satisfize
ram estes requisitos atingiram grande craveira intelectual, como o demons
tram bem as civilizações medievais do Islão e da China.
Embora o Ocidente Latino herdasse a sua ciência e filosofia natural dos
Gregos e dos Árabes, a universidade foi
uma
invenção que se gerou em condi
ções peculiares ao Ocidente no século XII. A vida comercial florescente nos
centros urbanos tomara aconselhável, até mesmo necessário,
que
aqueles que
praticavam o mesmo negócio ou mister
se
organizassem em guildas ou cor
porações. Os advogados medievais designavam frequenteme nte a essas orga
nizações por
universitas
isto é totalidade ou todo , pretendend o assim sig
nificar que a guilda em que stão representava todos os praticantes legais desse
negócio ou mister.
Os mestres e os estudantes constituíam uma parte vital
da
sociedade do
século XII. Estabeleceram escolas importante s em várias catedrais da Europa
A
UNIVERSIDADE
MEDll VAL 4
Ocidental, especialmente em Paris, Chartres e Orleães. Estudantes e mestres
deslocavam-se habitualmente de uma escola para outra, os estudantes em
busca do mestre certo, os mestres procurando atrair um número suficiente de
estudantes que lhes proporcionassem uma remuneração apropriada. Os mes
tres e os estudantes eram, na su a maioria, estrangeiros nas cidades
onde
ensi
navam e estudavam e, consequentemente, não tinham direitos nem privilé
gios. Agindo individualmente,
de
pouca importância
se
revestiam perante as
autoridades municipais, estatais e eclesiásticas com as quais tinham de nego
ciar as condições de ensino.
Em Paris e nout ros locais, mestres e estudantes viram as vantagens de uma
associação e usar am a
universitas
de um negócio ou mister como modelo para
a sua própria organização. o final do século XII, havia já organizações
de facto de mestres, estudantes,
ou
mistas, conhecidas por 'universidades
(por exemplo:
universitas magistrorum
ou universidade de mestres ;
universitas
scholarium ou
'universidade de estudantes ; e
universitas magistrorum et
scholarium
ou
universidade de mestres e estudantes ). Consequentemente, o
termo
uníversitas
veio,
por
si só, a ser suficiente para identificar
uma
institui
ção educacional. Embora muitas guildas e corporações tivessem utilizado o
tenno universitas antes das instituições educacionais de ensino superior, estas
últimas acabaram
por
o reter permanentemente, talvez
por terem durado
mais do que as outras.
Tendo
em conta o seu significado subsequente, o
termo
universidade
universitas) requer uma nova explicaçãO. De inicio o termo aplicava-se a um
único grupo que constituía
uma
associação autónoma legalmente reconhe
cida. Assim, uma faculdade de artes era uma universidade , tal como o era
uma
faculdade de medicina
ou
uma faculdade de teologia. Os mestres e os
estudantes da faculdade de artes fonnav am a sua p rópria corporaçã o legal, ou
universidade, tal como o faziam os mestres e os estudantes d faculdade de
medicina, e assim por diante. Muitas associações de estudantes eram também
reconhecidas como universidades, particularme nte na Itália.
O tenno inicialmente utilizado, e que era de uso corrente em meados do
século XIII, para abranger todas estas universidades individuais diferentes, ou
associações
de
universidades, era
studium generale
(Estudos Gerais). Cada
mestre ou estudante era membro da sua universidade ou corporação indivi
dual, mas
também
era membro do
studium generale.
Nos casos em que
uma
única faculdade ou corporação, ou mesmo duas, mantinha uma escola, a
designação
studium generale
não lhe era normalmente conferida. O termo
atribuía-se em geral a escolas que tinham prestígio suficiente, tais como as uni
versidades de Paris, Oxford e Bolonha, ou eram suficientemente grandes para
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42 os FUNDAMENTOS DA CItNCIA MODERNA NA IDADE MÉDIA
incluírem pelo menos três das quatro faculdades tradicionais (artes, teologia,
direito e medicina), ou ambas
as
coisas. Uma das principais vantagens de uma
escola designada como
studi um generale
residia
num
importante direito auto
maticamente conferido aos que nela se graduavam: a licença (ou direito) de
ensinar em qualquer parte , conhecido em latim por
ius ubique docendi.
Na
prática, contudo, era mais o prestígio de
um studium
que validava o direito de
os
graduados ensinarem em qualquer parte.
É
óbvio que o termo
studium generale
é o equivalente
do
nossO actual
termo universidade . É possível que no final da Idade Média, universidade
tenha substituído a designação
studium generale
tornando-se o termo que
hoje conhecemos e que usaremos daqui em diante.
Como entidades corporativas,
as
várias guildas medievais eram associa
ções que detinham o monopólio de certos privilégios.
As
universidades não
constituíram excepção e recebiam um tratamento especial por parte das auto
ridades eclesiásticas e seculares,
as
quais pretendiam encorajar o seu desenvol
vimento. A cada faculdade era concedida a jurisdição sobre os seus próprios
assuntos internos e,
por
conseguinte, o direito de ajuizar merecimento de
mestres e estudantes que nela entrassem como membros da corporação. A
universidade, formada pelas suas faculdades e estudantes, tinha o direito legal
de negociar, relativamente a uma vasta gama de problemas, com as autorida
des externas que controlavam
as
várias jurisdições governamentais e religiosas
em que se encontrava localizada. Havia igualmente privilégios relevantes a
nível pessoaL
Aos
membros das
universitas
eram concedidos certos direitos
cruciais, sendo o mais importante o de estatuto clerical. Embora a maioria de
mestres e estudantes não fosse ordenada nem tivesse intenções de o ser, o
estatuto clerical atribuia-Ihes
os
direitos do clero. Assaltar um estudante ou
um mestre que
fosse em
viagem equivalia a assaltar
um
padre e era um acto
sujeito a penas severas. O estatuto clerical permitia também aos estudantes
que fossem presos por autoridades civis exigir julgamento nos tribunais ecle
siásticos, regra geral mais clementes
do
que os civis. Permitia igualmente que
estudantes e mestres recebessem benefícios edesiásticos e aproveitassem
os
frutos desses benefícios enquanto prosseguissem nas suas actividades univer
sitárias regulares. Para além destes privilégios individuais, um importante
direito associativo permitia que
as
universidades suspendessem as lições e
abandonassem inclusive
as
respectivas cidades se sentissem que os seus direi
tos tinham sido violados. Isto constituía uma arma económica significativa
contra
as
cidades onde as universidades se localizavam. Tais privilégios faziam
da universidade uma instituição poderosa e permitiam-lhe exercer considerá
vel
influência na sociedade medievaL
A
UNIVERSIDADE MEDIEVAL 43
Por
volta de
1200,
as universidades floresciam
em
Bolonha, Paris e
Oxford, tendo provavelmente surgido nesta ordem. Embora sejam escassos os
documentos susceptíveis de lançar luz sobre as suas origens e desenvolvi
mento inicial até ao século XIII, altura em que se encontrav am já bem estabe
lecidas, o dealbar das universidades estava intimamente associado ao novo
conhecimento que fora traduzido para latim
no
decurso do século
XII
Na
verdade, a universidade
foi
o meio institucional através do qual a Europa Oci
dental organizou, absorveu e expandiu o grande volume de conhecimento
novo, o instrumento através do qual moldou e disseminou uma herança inte
lectual comum que
se
perpet uou pelas gerações seguintes. As primeiras uni
versidades internacionais na sua esfera de acção - Paris, Oxford e Bolonha
-
foram de longe
as
mais famosas da Idade Média. (Paris e Oxford ficaram
céle-
bres como centros
de
filosofia e ciência; Bolonha era igualmente notável pelas
suas escolas de direito e medicina.) Por volta de
1500,
tinham sido criadas
aproximadamente mais setenta universidades.
As
da Europa Setentrional
guiavam-se pelo padrão da de Paris, ao passo que
as
do Sul escolheram
Bolo-
nha como modelo.
De
1200
a
1500,
três séculos de história cultural e intelec
tual moldaram a universidade, dando-lhe uma forma que persistiu até aos
dias de hoje.
Embora
não caiba aqui apresentar uma descrição pormenorizada da
estrutura e do funcionamento da universidade medieval, algumas indicações
sobre a sua organização poderão revelar-se úteis. A universidade medieval era
acima de tudo uma associação de mestres e estudantes dividida no máximo
em quatro faculdades (essencialmente, artes, direito, medic ina e teologia) em
cada uma das quais se matriculavam estudantes com a intenção de atingirem
o bacharelato
ou
o grau de mestre. O grau de mestre em artes era geralmente
um
requisito prévio para o acesso
às
faculdades superiores de direito, medi
cina e teologia. Assim sendo, um mestre da faculdade de artes podia ser tam
bém
um
estudante matriculado para obter o grau de bacharel ou de mestre
em teologia, medicina ou direito.
As
universidades de Paris e de Bolonha ofe
receram dois modelos díspares para a organização das universidades fundadas
durante a Idade Média. Dos dois modelos, só o da Universidade de Paris será
aqui discutido (apesar da sua importância, a Universidade de Bolonha é
muito menos relevante no que
se
refere à fdos06a natural).
A Universidade de Paris era uma universidade de mestres , assim consi
derada porque
os
mestres em artes agiam como corpo governativo de toda a
universidade. Os mestres em artes de Paris controlavam o currículo,
os exa-
mes, a admissão de novos mestres e a atribuição do bacharelato ou do grau de
7/23/2019 Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media
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441 os
FUNDAMENTOS
DA CIWCIAMODERNA
NA
IDADE MllDIA
mestre em artes. Os estudantes e os mestres das faculdades de artes - e só das
faculdades de artes - estavam organizados
em
quatro nações baseadas
na
geografia e designadas
como
Francesa, Picarda,
Normanda
e Inglesa (ou
Anglo-Germânica, que incluía estudantes
da
Europa Central e Setentrional).
Os mestres
em
artes
que subsequentemente vinham
a
ser
professores nas
faculdades superiores de medicina, direito e teologia mantinham a qualidade
de memb ros das respectivas nações.
As
nações, cada uma das quais chefiada
por um proctor, dirigiam na realidade as universidades, já que elegiam o seu
principal funcionário, o reitor.
Pelos padrões modernos, as inscrições nas universidades medievais
eram
poucas. O número de estudantes em grandes instituições como Paris, Oxford,
Bolonha e Toulouse rondaria provavelmente os mil,
mil
e quinhentos. Entra
vaIll cerca de quinhentos estudantes anualmente na Universidade de Paris.
Como o p e r i o ~ médio de estudo por aluno era de cerca de dois anos,o
número total de estudantes a aprenderem em Paris em qualquer
momento
era superior a mil, talvez perto de mil e duzentos. Ao longo do decorrer da
Idade Média, contudo, o número de estudantes a matricular-se parece ter
aumentado. A longo prazo, os números são impressionantes. Em relação ao
resto da Europa, os estudiosos calculam
que
aproximadamente setecentos e
cinquenta mil estudantes se
tenham
matriculado nas universidades entre 1350
e 1500. O
número sempre
crescente de estudantes indica
também
que o
número
de universidades
aumentou no mesmo período, durante
o
qual
foram fundadas mais de quarenta. Nos finais da Idade Média, existia aproxi
madamente
uma
universidade
em
cada estado da Europa, quer fundada por
um papa quer
por um
governante secular. Em retrospectiva, é óbvio que
nenhuma instituição surgida na Europa durante a Idade Média demonstrou
ser mais permanente
do
que a universidade.
Estudantes e mestres
A maioria dos estudantes das universidades medievais partia após dois anos
ou menos, sem adquirir o grau de bacharel. A percentagem de estudantes a
quem era atribuído esse grau era, pois, relativamente baixa. Quan to
mais
longo
fosse o tempo necessário para se completar
com
êxito
um
grau, tanto
menor
seria a percentagem dos estudantes que o recebiam. Enquanto o grau
de
bacha
rel requeria
três
ou
quatro anos, o grau de mestre
em
artes exigia mais um ou
dois anos, num total de cinco ou seis anos de escolaridade. Ocasionalmente,
A UNIVERSIDADE
MEDlEV i 45
esse
tempo
podia alongar-se para além disso, até sete ou mesmo oito anos. O
grau de mestre em artes era um requisito prévio para entrar em qualquer das
faculdades superiores de direito, medi cina e teologia, cada uma das quais exi
gia um número adicional de anos de estudo. Assim, o número de estudantes
que
completava com êxito graus nas faculdades superiores representava
uma
pequena percentagem da comunidade estudantil total, talvez menor do que a
daqueles que alcançam doutoramentos nas modernas universidades. A fre
quência universitária de um estudante, ainda que
por um
curto período de
tempo e mesmo sem a aquisição
de
qualquer grau, era favoravelmente enca
rada pela sociedade e considerada útil para a carreira do estudante.
Durante a Idade Média, não existia
uma
hierarquia de instituições educa
cionais comparável às divisões nítidas entre as actuais escolas primári as, liceus e
universidades. Por conseguinte, não era necessária, para admissão, frequência
de uma escola de nível inferior . Na realidade, nem a capacidade de ler e escre
ver latim seria
um
requisito essencial. Dada a quase inexistência de condições
ou
requisitos prévios, a entrad a
numa
universidade medieval era relativamente
simples. Existiam, no entanto, duas exigências indispensáveis para a admissão.
A primeira era a matrícula oficial que era responsabilidade do reitor da
universidade. Para conseguir a matricula, o estudante que pretendia entrar, e
tinha geralmente catorze ou quinze anos de idade, devia pagar uma propina e
prestar um juramento. Esse juramento variava de universidade para universi
dade mas implicava geralmente,
por
parte
do
estudante, um compromisso de
lealdade para
com
o reitor e a promessa de promover o bem-estar e a integri
dade da universidade. O estudante jurava também que se não vingaria de
quaisquer injustiças que lhe pudessem ser feitas.
m
troca, o reitor admitia o
estudante na comunidade universitária e, daí em diante, esperava-se que o
protegesse sempre que necessário. Apesar
do
seu significado,
a
cerimónia de
prestação do juramento era sobretudo
um
exercicio formal.
Porém, o mesmo já não sucedia
em
relação à segunda exigência, a qual
obrigava que cada aluno se associasse a um mestre. Os estudant es associados
ao mesmo mestre formavam
um
grupo natural. Os seus destinos académicos
estavam sujeitos jurisdição do mestre e deste se esperava, consequente
mente,
que
introduzisse o estudante na comunidade e
na
vida universitárias.
O mestre deveria preparar os seus estudantes para exames, certificando-se de
que estes estavam à altura das várias exigências que lhes eram postas nas dife
rentes provas. Cabia também ao mestre elaborar um plano de estudos para os
seus alunos, de acordo
com
o qual frequentariam às suas lições por um periodo
de três ou quatro anos ou assistiriam a aulas sugeridas pelo mestre e leccionadas
7/23/2019 Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media
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6\ os
FUNDAMENTOS
DA
CIENC1A MODERNA
NA
IDADE MEDIA
por outros. A escolha de um mestre por parte de um aluno seria provavel
mente feita com base em crité rios pessoais, os quais poderi am implicar consi
derações corno geografia, ligações familiares e amizades. provável que o
agrupamento mestre-estudantes permitisse relacionamentos mais personali
zados dentro da estrutura institucional, mais formal e até mesmo proibitiva,
da universidade no seu conjunto.
Ensino na faculdade de artes
o ensino era a actividade mais importan te nas universidades medievais,
mas os próprios professores - os mestres - não eram muito considerados.
Embora existissem mestres famosos, a sua fama raramente dependia do seu
modo de ensinar. Os professores eram encarados corno pouco mais do que
peças substituíveis. Pelo menos dois factores estiveram na base deste estado de
coisas. O curriculo nas diferentes universidades medievais era muito seme
lhante e, na maioria dos casos, repetia-se anualmente. Dado que não existiam
especialistas em ternas nem áreas nas faculdades de artes das universidades
medievais, não havia cursos opcionais a fazer parte do curriculo. Todos os
mestres em artes eram considerados capazes de ensinar qualquer dos cursos
regulares em filosofia natural (talvez também cursos nos ternas do quadrívio).
Assim neste sentido, os mestres eram substituíveis.
O segundo factor, que vem reforçar o primeiro, dizia respeito aos méto
dos e às técnicas de ensino. A instrução na universidade centrava-se
n
lição
lectio) e no debate
disputatio).
As lições eram de dois típos básicos, ordiná
rias e extraordinárias. As lições ordinárias formavam a base do programa de
ensino e eram sempre dadas de manhã por mestres regentes designados, isto
é
mestres no ensino activo. Corno prova da sua importância, nenhuma outra
lição ou actividade era permitida durante as lições ordinárias. Pelo contrário,
as lições extraordinárias tinham geralmente lugar à tarde ou em algum dia em
que não estivesse marcada qualquer lição ordinária. lições extraordinárias
eram mais flexiveis e informais e podiam ser ministradas tanto por estudantes
corno por mestres.
Um terceiro tipo de
liçãO
menos importante, também leccionado à tarde,
era geralmente dedicado a um sumário ou a urna revisão de problemas resul
tantes de u m texto clássico.
A intenção das lições ordinárias consistia n apresentação dos textos
requeridos para a constituiçãO do curriculo oficial. Os estudiosos que se
A
UNIVERSIDADE MEDIEVAL
47
debruçam sobre o assunto pouco têm dito acerca do que realmente sucedia
numa sala de aula universitária típica da Idade Média, provavehnente porque
professores e estudantes deixaram poucas descrições das suas experiências.
Contudo, é provável que
as
lições nas
salas
de aula fossem urna experiência
passiva para os estudantes, que se lim itariam a ouvir e talvez a tornar algumas
notas. Os estudantes que possuíam cópias do texto em discussão - e poucos
as tinham - podiam acompanhar a lição com a leitura.
As
lições eram, sobretudo, o domínio dos mestres que tinham urna liber
dade considerável para introduzir as suas próprias opiniões. Em lições que
durariam pelo menos urna hora e chegariam talvez a ter duas, um mestre em
artes podia dedicar grande parte do tempo ao estudo de um texto obrigatório,
digamos a Física ou Sobre os Céus de Aristóteles. Durante o século XIII, desen
volveram-se algumas técnicas para apresentação de textos. Inicialmente, o
mestre lia o texto oficial e comentava termos e expressões que requeressem
explicação. Pouco depois, contudo, os mestres começaram a resumir o texto e
também a acrescentar opiniões esclarecedoras e comentários críticos.
As
tra
duções de Avicena podem ter servido de modelo para esta abordagem. Os
comentários aristotélicos de Alberto Magno constituem um notável exemplo
da técnica de Avicena.
Outro método para a apresentação de urna lição ordinária consistia em
separar o texto e o comentário. Nesta abordagem, o professor, ou comenta
dor, não se limitava meramente a explicar cada secção do texto, podendo
também incluir
as
opiniões de outros comentadores e autores, bem corno
as
suas. Os numerosos comentários de Averróis às obras de Aristóteles eram
deste tipo e poderão ter servido de modelo
aos
comentários escolásticos do
século XIII. São Tomás de Aquino, Walter Burley e Nicole Oresme foram
apenas alguns dos escolásticos que seguiram o método de Averróis.
Nos finais do século XIII, emergiu um novo método de análise textual que
estava destinado a suplantar todos os outros. Na medida em que os mestres
medievais tinham um elevado grau de liberdade quanto ao tratamento dos
textos obrigatórios, alguns deles começaram a dar especial atenção a ternas e a
problemas especiais inerentes ao texto, regra geral considerando-os perto do
fim da lição. Porém, gradualmente, os mestres reduziram o tempo dedicado
ao comentário sequencial directo substituindo-o pela discussão de problemas
especiais. A seu tempo, a consideração
desses
problemas especiais, ou ques
tões questiones), veio a substituir totalmente o comentário. Entretanto, o sig-
nificado das questiones transcendeu a sala de aula, porque as lições de muitos
professores eram registadas por escrito e publicadas . Devemos enten der
7/23/2019 Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media
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48 os FUNDAMENTOS DA CI1 NClA
MODERNA
NA
IDADE
M1 D1A
publicaçãO como um processo segundo o qual os escribas da livraria da uni
versidade faziam cópias-padrão das lições dos mestres. Dessas cópias, outras
cópias se podiam fuzer depois para serem alugadas
ou
vendidas a estudantes e
a professores. Deste modo se disseminavam os exemplares de
uma
obra.
Daqui emergiu a mais importante das categorias de literatura escolástica,
as
questiones. Este género tornou-se quase sinónimo de método escolástico,
dado que, como veremos, utilizou a forma básica de um debate escolástico.
Os debates escolásticos, em que os estudantes eram participantes activos,
constituíam um aspecto vital da educação universitária. Enq uanto nas salas de
aula medievais os estudantes eram provavelmente ouvintes passivos, nos
debates tinham oportunidade de aplicar os conhecimentos aprendidos
A
emelhança das lições, os debates dividiam-se em ordinários e extraordiná
rios. O debate ordinário disputario ordinaria) tinha o mesmo estatuto que a
lição ordinária. Os mestres conduziam estes debates numa base regular,
geralmente uma vez por semana, e exigiam que os estudantes assistissem. Os
outros mestres também podiam assistir; todavia, cabia ao mestre que presidia
colocar uma questão, normalmente sobre
um
assunto que pretendia exami
nar mais cuidadosamente e para o qual não teria tido tempo nas lições ordi
nárias. Os outros mestres e estudantes participavam, uns defendendo, outros
contestando a questão levantada. Era,
no
entanto, o mestre presidente quem
resolvia a questão, isto é, quem sintetizava os vários argumentos numa res
posta definitiva ao problema posto.
Neste exercicio, os estudantes aprendiam a debater questões contenciosas,
alcançando assim uma experiência valiosa para a sua preparação como mestres.
Durante os primeiros dois anos, os estudantes eram, habitualmente, observado
res silenciosos. Contudo, nos terceiro e quarto anos, esperava-se que eles res
pondessem a perguntas e propusessem respostas. Com base nesta experiência, e
desde que cumprissem todos os requisitos prévios necessários, aos estudantes
que respondiam satisfutoriamente era dada permissão para resolver um debate,
ou seja, os estudantes podiam dar a resposta final a uma questão, baseando-se
em todos os argumentos prévios, a favor ou contra. Completada com êxito a
resolução
determinario),
o estudante passava a bacharel em artes.
Os bacharéis em artes que continuavam os estudos para obterem o grau
de mestre em artes, tinham de passar pelo menos
por
mais dois anos de
estudo. Além de assistirem a lições de filosofia natural, passavam geralmente
algum tempo dando aulas
à
tarde sobre textos que lhes eram atribuídos pelos
seus respectivos mestres, quer textos sobre lógica, quer, o que era mais
comum, sobre os livros de filosofia na tural de Aristóteles. Também fazia parte
AUNiVERSIDADE MEDlEV
AL 49
dos deveres do bacharel assistir a debates conduzidos tanto por mestres como
por estudantes. Quando esta parte do currículo de
um
estudante
se
comple
tava a contento do mestre, este recomendava que fosse permitido ao seu estu
dante iniciar-se , isto
é,
que lhe fosse permitido encetar
um
processo em
duas fases que terminava com a atribuição do grau de mestre em artes. Na
primeira
fase,
o bacharel participava
num
debate em que, pela última vez, res
pondia ao seu mestre. Durante a segunda, o bacharel recebia a insígnia do
mestrado e proferia uma breve lição inaugural, e depois presidia ao debate de
duas questões, resolvendo ambas.
Como parte dos requisitos para o direito
à
iniciação, o futuro mestre tinha
de jurar que ensinaria na faculdade de artes durante pelo menos dois anos,
dando lições ordinárias e presidindo a debates semanais. Para além dos
'debates ordinários , um mestre podia, de tempos a tempos, tomar a seu
cargo um debate quodlibetário
disputatio de quodlibet).
Com início na
faculdade de teologia no século XIII e estendendo-se à faculdade de artes no
século XIV, os mestres realizavam debates públicos uma ou duas vezes por
ano, geralmente
por
altura do Advento e da Quaresma. Sendo debates públi
cos, qualquer um podia assistir: estudantes, mestres e aqueles que não tinham
qualquer ligação à universidade mas desejavam observar um espectáculo fora
do comum, intelectual e gratuito,
ou
ainda que, não importa por que razão,
preferiam estar dentro de portas durante o tempo do debate.
Num debate quodlibetário, um mestre presidia. O debate decorria geral
mente em dois dias.
As
questões - e haveria muitas eram propostas por
membros da assistência. Qualquer questão era permitida, por mais contro
versa que fosse. Algumas dessas questões eram teológica e politicamente
explosivas, colocadas na esperança de conseguirem embaraçar o mestre que
presidia. Mas muitas questões -
se
não a maioria - eram s o r ~ problemas de
filosofia natural. Durante o primeiro dia do debate, podiam ser propostas até
trinta ou quarenta questões diferentes. Membros da assistência podiam ser
escolhidos para participar. Podiam colocar questões ou responder-lhes. Eram
propostas soluções hipotéticas a muitas questões. Na medida em que as ques
tões eram numerosas, abrangendo uma grande variedade de assuntos e fre
quentemente sem relação entre si, o mestre não era obrigado a considerá-las
na ordem em que tinham sido propostas. Pelo contrário, esperava-se que ele
as organizasse numa ordem exequível antes de, no dia seguinte, entr ar na
arena pública, altura em que demonstraria o seu virtuosismo ao resolver defi
nitivamente cada questão
pela
ordem pela qual
as
organizara. O debate quodli
betário proporcionava uma fuga emocional à comunidade universitária, urna
libertação momen tânea do rígido formato dos debates e das lições ordinários.
7/23/2019 Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media
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5 os
FUNDAMENTOS
DA C I ~ C A MODERNA
NA
IDADE
MÉDIA
Currículo da Faculdade de Artes
Até aqui, vimos como os estudantes obtinham os seus graus nas universi
dades medievais e os métodos de ensino desenvolvidos pelos mestres.
É
agora
altura de descrever o que os mestres ensinavam e o que se esperava que os
estudantes aprendessem.
Antes da introdução da ciência greco-árabe e da filosofia natural, a educa
ção das artes medieval baseava-se, como vimos no primeiro capítulo, nas
sete artes liberais. Com a introdução das
obras
de Aristóteles e da ciência
greco-árabe
no
final do século XII e
no
século XIII, cessou o primado das tra
dicionais sete artes e estas tornaram- se veículos de acesso ou auxiliares da filo
sofia ou, mais precisamente,
da
filosofia naturaL O novo conhecimento trans
formou as artes liberais. Três dos quatro temas do antigo quadrívio - aritmé
tica, geometria e astronomia - viram-se francamente enriquecidos pela ciên
cia greco-árabe. O trÍvio das sete artes liberais também se expandiu em parti
cular na área da lógica,
ou
dialéctica. A lógica foi a primeira das sete artes
liberais a ser bastante afectada pelo novo conhecimento, particularmente pela
nova lógica de Aristóteles que consistia
em
tratados de Aristóteles desco
nhecidos
no
Ocidente antes do século XII
Analíticos
Anteriores e
Analíticos
Posteriores
Tópicos
e
Refutações
Sofisticas).
Das sete artes liberais, a lógica
desempenhava o papel mais significativo
no
novo currículo, em grande parte
porque era entendida como um instrumento de análise aplicável a todos os
campos, papel que o próprio Aristóteles lhe atribuíra, ao chamar às suas obras
sobre lógica
Organon
ou instrumento. Contudo para além
da
lógica, que
fazia
parte do
trívio
tradicional
os
temas
do
quadrívio passaram para
segundo plano, sendo substituídos
no
proscénio pela filosofia de Aristóteles, a
qual veio a ser subdividida em três partes conhecidas colectivamente
por
as
três filosofias : natural, moral e metafísica. O currículo das universidades
medievais era essencialmente constituído pela lógica, os temas do quadrívio e
as três fIlosofias, das quais a filosofia natural era sem sombra de dúvida a mais
importante.
Lógica
A lógica era uma disciplina técnica que desenvolveu uma terminologia
própria destinada a enfrentar inúmeros problemas de linguagem e inferência.
Ocupava-se das propriedades dos termos e de como o contexto em que
um
AUNIVERSIDADEMEDJEVAL
151
termo surgia e afectava o seu significado, bem como das relações entre pro
posições. Ao longo da história medieval da lógica, foi abordado um grande
número de problemas que exigiram a criação
de
novos termos e novas técni
cas. Os próprios termos que vieram a ficar associados a essa história são teste
munho da
riqueza da lógica medieval e dos numerosos conceítos e técnicas
criados pelos seus praticantes. Contudo, por volta do século XVI o conheci
mento da lógica medieval, com a sua complicada terminologia, quase desapa
recera.
À
medida que o humanismo se tomou mais significativo no século XV
e
especialmente, no século XVI,
os
autores humanistas atacaram o que consi
deravam ser a esterilidade e barbárie
da
lógica medieval. Termos e expressões
tradicionais, muitos deles baseados nos
Tópicos
de Aristóteles, eram presa fácil
para as suas criticas mordazes. Tornou-se dificil defender uma disciplina com
uma
panóplia
de
termos
como
suposição , significação , univocação ,
equivocação , copulação , apelação , restrição , categorema , sincate
gorema , consequência , obrigação , exponibilia , sofismat a e insolu
bília .
No
século XVI a educação humanista dava ênfase ao estilo e ao con
teúdo
da
linguagem, por oposição aos seus aspectos formais. Além disso, a
lógica medieval parece ter estado ligada, tanto quanto possível, a
uma
forma
de expressão puramen te verbal. Era-lhe necessário desenvolver
um
método
de representação das várias relações lógicas possíveis de forma análoga ao
desenvolvimento
da
álgebra simbólica, que
tinha
vindo a progredi r desde o
século
XV.
Embora a lógica medieval fosse geralmente usada em exercícios e prob le
mas hipotéticos,
os
autores escolásticos aplicavam por vezes o seu conheci
mento de lógica formal a problemas de filosofia natural, presumindo que os
leitores entenderiam o seu papel na discussão.
Quadrívio
O quadrívio funcionava como fonte de ciência teórica e exacta para os
estudantes universitários medievais. Con tudo, diferia radicalmente do qua
drívio nos currículos das escolas monásticas e das catedrais
da
Alta Idade
Média. A ênfase posta nas ciências exactas nas universidades da Baixa Idade
Média não tinha igual amplitude nem alcance. Em Oxford,
as
ciências exactas
tornaram-se parte integrante do currículo a partir do século XIII, mas foi-lhes
conferida
muito
menos
importância
em Paris e
noutros
locais. Em Paris,
a
matemática
e as
outras
ciências do quadrívio raramente faziam parte
do que era proposto no curso regular. A matemática, por exemplo, não era
7/23/2019 Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media
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s2 OS FUNDAMENTOS DA C I ~ N C I MODERNA NA IDADE MÉDIA
habitualmente ensinada em Paris no século XIII e só o foi embora de forma
esporádica no século XIV. Os mestres interessados nas ciências exactas
podiam dar cursos privados a alunos que mostrassem interesse em tal.
Embora existissem na Idade Média numerosas obras de aritmética, geo
metria, astronomia e música, muitas traduzidas do árabe
ou
do grego, só
um
número limitado fazia parte dos textos obrigatórios nos cursos universitários.
No entanto, a maioria dos tratados sobre ciências exactas estava disponível.
Na verdade, muitos tinham sido escritos na Idade Média por eruditos com
educação universitária, durante a qual pela primeira
vez se
tinham familiari
zado com as ciências. Das quatro ciências do quadrívio, a aritmética e a
música eram as que mais se assemelhavam às suas correspondentes da Alta
Idade Média, ao passo que a geometria e a astronomia eram praticamente
novas ciências. Boécio, um autor da Alta Idade Média, favoreceu os tratados
fundamentais de aritmética e música, nomeadamente os seus
Arithmetica
e
Musica. Mas em ambos os casos, os tratados escritos no século XIII e
no século XIV foram muito além de Boécio. Embora a
Musica
de Boécio, jun
tamente com o tratado de Santo Agostinho, Sobre
a Música
De
musica),
fos
sem
os
textos-padrão para o ensino da música nos cursos de artes, novos e
importantes tratados foram escritos no século XIV por Johannes de Muris,
Philippe de Vitry e Guillaume de Machaut. Estes e outros autores desempe
nharam
um
papel importante ao criarem uma notação musical. Em aritmé
tica, o tratado teórico de Boécio foi suplantado pelos Livros VII a IX dos
Elementos de Euclides, que versavam sobre a teoria dos números, e pela
Arithmetica
de Jordano de Nemore fi.
ca.
1220), em dez livros, que incluía
mais de quatrocentas proposições e se tornou a fonte-padrão da aritmética
teórica na Idade Média.
A geometria era a base do currículo nas ciências exactas e os Elementos de
Euclides, obra quase desconhecida durante a Alta Idade Média, o seu texto
fundamental. Dos treze livros genuínos e dois apócrifos da versão medieval
latina dos Elementos, só os primeiros
seis
livros eram geralmente exigidos. Tal
como a aritmética, a geometria tinha
um
aspecto prático,
ou
aplicado. Na
Idade Média, a sua aplicação mais importante era na astronomia. Entre as
obras de astronomia, a mais conhecida e de maior relevo era o Almagesto de
Ptolomeu, que proporcionava as bases para o conhecimento técnico do tema.
Embora surgisse nas listas curriculares, o
Almagesto
era demasiado téc
nico para ser usado como texto. Eram necessários tratados muito mais sim
ples. Duas obras do século XIII tentaram suprir essa necessidade. A mais
famosa e popular foi o
Tratado da Esfera Tractatus de
sphaera) de João de
A
UNIVERSIDADE MEDlEV AL IS
Sacrobosco John
of
Holywood), cujos quatro capítulos ofereciam um breve
estudo das diferentes partes d o universo esférico finito. Embor a o quarto livro
fosse supostamente dedicado ao movimento planetário, o tratamento do tema
era tão sumário que um professor desconhecido de astronomia compôs uma
obra para remediar essa deficiência. A Teórica
dos Planetas
Theorica planeta-
rum familiarizou gerações de estudantes com
as
definições e os elementos
básicos da astronomia planetária e proporcionou-lhes
um
sistema estrutural
do cosmo. Num nível mais prático, os estudantes também aprendiam algo
acerca do cálculo dos vários dias festivos no calendário eclesiástico. Com este
fim, utilizavam-se tratados computacionais que eram usados sob o título
genérico de computus, os mais populares dos quais foram provavelmente os
de João de Sacrobosco e Robert Grosseteste. A geometria desempenhava tam
bém um papel no uso de um instrumento astronóntico chamado quadrante
por exemplo, o Tratado sobre o Quadrante de Roberto Anglico) e encontrou
igualmente aplicação em tratados sobre pesos ou na ciência da estática,
associados ao nome de Jordano de Nemore, e em tratados sobre perspectiva,
ou
óptica,
em obras
associadas aos
nomes
de
Ptolomeu,
Alhazen
lbn
al-Haytham), John Pecham e outros.
O significado dado
às
ciências exactas no currículo universitário não é
evi-
dente nas listas curriculares, a maior par te das quais não sobreviveu, e que, de
qualquer modo, eram pouco pormenorizadas. Podemos avaliar melhor a sua
importância a partir da atitude dos eruditos que eram igualmente professores
universitários. A geometria
já
não era avaliada apenas pelo seu uso prático em
medições, ou mesmo como um auxiliar vital para a compreensão filosófica.
Roger Bacon e Alexandre de Hales enalt eceram as suas virtudes como instru
mento para a compreensão da verdade teológica. Encararam a geometria
como essencial para um correcto entendimento do sentido literal de numero
sas
passagens das Escrituras como, por exemplo,
as
que respeitam
à
Arca de
Noé e ao Templo de Salomão.
Só
interpretando o sentido literal com o auxílio
da geometria
se
podia atingir o sentido espiritual mais elevado. A geometria
era ainda considerada obrigatória para uma compreensão adequada da filoso
fia
natural, como Robert Grosseteste defendeu no seu tratado
Sobre
Linhas,
Angulos
e
Figuras.
Um universo que era co nstituído por linhas, ângulos e figu
ras não podia ser devidamente interpretado sem a geometria. Nem, aliás, o
comportamento da luz que, tal como a maioria dos efeitos fisicos, se multipli
cava e disseminava geometricamente na natureza.
Também à aritmética era atribuído grande valor. Aliás, era muitas vezes
considerada a mais importante entre
as
ciências matemáticas. No seu tratado
7/23/2019 Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media
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I
54\
os FUNDAMENTOS DA
CII lNCIA
MODERNA NA
IDADE
MIDIA
do século XN Comensurabilidade ou Incomensurabilidade
dos
Movimentos
Celestes,
Nicole Oresme dá a conhecer o modo como a aritmética era enca
rada e como
se
devia entender a sua relação com a geometria. No quadro de
um debate imaginário entre geometria e aritmética, a Aritmética apresenta-se
como a primogénita de todas as ciências matemáticas e a fonte de todas as
razões racionais, por conseguinte fonte igualmente da comensurabilidade dos
movimentos celestes e da harmonia das esferas. A previsãO do futuro assenta
também em tabelas astronómicas exactas, cuja precisão depende dos números
da Aritmética. Ao contra-argumentar, a Geometria reivindica maior domínio
do que o da Aritmética, na medida em que abrange razões não
só
racionais
como irracionais. Quanto à bela harmoni a alegadamente trazida ao
mundo
pela racionalidade da Aritmética, a Geometria contra-ataca ao fazer notar que
a rica diversidade do
mundo
apenas poderia gerar-se através de u ma combi
nação de razões racionais e irracionais, que só ela origina.
Tanto a geometria como a aritmética detinham um grande valor por serem
essenciais
à
compreensão dos modos de funcionar da natureza e
à
descrição da
variedade de movimentos e acções verificada no mundo . A ênfase dada, na Idade
Média, à geometria e à aritmética devia fazer hesitar aqueles que têm defendido
que os filósofos naturais e os teólogos medievais eram hostis
à
matemática.
A ciência da astronomia, que incluía a astrologia, era igualmente louvada
com regularidade como instrumento essencial para compreender o universo. A
astronomia podia prever, mas não determinar, acontecimentos futuros. Roger
Bacon considerava-a essencial
à
Igreja e
ao
Estado, bem como aos lavradores,
alquimistas e médicos. Robert Grosseteste encarava-a como inestimável para
muitas outras ciências, incluindo a alquimia e a botânica. música era igual
mente concedido
um
estatuto elevado. Era considerada útil na medicina porque
os médicos podiam empregá-la como parte de
um
regime geral de saúde. Bacon
considerava também a música importante para estimular as paixões na guerra e
acalmá-las na paz. Dado que
as
expressões e os instrumentos musicais eram fre-
quentemen te mencionados nas Escrituras, pensava-se que o teólogo sensato faría
bem em aprender tudo o que pudesse sobre música.
Três filosofias
Embora as sete artes liberais tivessem sido ampliadas e, inclusive, tran s
formadas na Baixa Idade Média, nem
por
isso deixaram de representar a
configuração tradicional
da
educação. O conhecimento realmente novo nas
A UNIVERSIDADE
MEDIEVAL
I
universidades do século XIII surgiu com a introdução das obras filosóficas de
Aristóteles, que viriam a constituir a principal exigência para o grau de mestre
em artes. Com base nas obras de Aristóteles, distinguiam-se três domínios
filosóficos principais: filosofia moral ou ética), metafísica e filosofia natural.
O texto mais relevante para a primeira destas áreas temáticas era a
Etíca
a
Nicómaco enquanto a
Metafisica
era o texto mais importante para a segunda.
Das três filosofias, a filosofia natural de Aristóteles era a mais importante e
constituía o cerne de
uma
educação universitária. Os livros naturais
libri
naturales) de Aristóteles eram utilizados como textos para o estudo da filoso
fia
natural, incluindo
Física
Physica) e
Sobre a Alma
De
anima),
provavel
mente os dois livros mais importantes d a filosofia natural, juntamente com
Sobre os Céus
De
caelo), Sobre a Geração e aCorrupção
De generatione
et cor-
ruptione), Meteorologia Meteora)
e
Pequenas Obras
sobre
Coisas Naturais
Parva
naturalia).
Embora não sendo geralmente tema de lições e só raras
vezes, se porventura alguma, textos obrigatórios, as obras biológicas de Aris
tóteles pertencem também à literatura da filosofia natural medieval. Na Idade
Média, a filosofia
natural
era utilizada como alicerce da filosofia moral e
estava quase sempre interligada
à
metafísica. Até mesmo a teologia recorria
profusamente a ela, o mesmo sucedendo com a medicina e, em determinadas
ocasiões, a música. Em função da sua importância vital, este livro centrar-se-á
na filosofia natural e em mostrar como os problemas que tratava e os méto
dos usados para os resolver se viriam a revelar inestimáveis para o desenvolvi
mento dos prím órdios da ciência moderna.
Faculdades superiores de teologia e de medicina
As faculdades superiores de teologia e de medicina serviam-se extensiva
mente da filosofia natural;
por
isso, parece-me oportuno fornecer alguma
informação acerca destas faculdades. Embora as escolas de teologia não exi
gissem, regra geral, o grau de mestre em artes para admissão aos seus progra
mas, a maioria dos que a eles acediam possuíam-no ou tinham uma educação
substancial em artes, particularmente lógica e filosofia natural. Como vere
mos
no
Capítulo 5, muitos teólogos encaravam a lógica e a filosofia natural
como ferramentas essenciais à elucidação dos problemas teológicos, muito
embora
as
autoridades eclesiásticas se queixassem frequentemente - até ao
século XVI - de que os teólogos estavam, tanto para seu bem como para o da
própria teologia, demasiado interessados nestes temas seculares.
,.-
7/23/2019 Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media
http://slidepdf.com/reader/full/os-fundamentos-da-ciencia-moderna-na-idade-media 14/31
56 os FUNDAMENTOS DA CIllNCIA MODERNA NA IDADE Ml DlA
Tendo
bases
sólidas
em
filosofia natural, os estudantes estavam prontos a
iniciar o longo trajecto que os conduziria a um mestrado (ou doutoramento)
em teologia, percurso que, e m diferentes períodos, se estendeu po r dez a dezas
seis anos. Aqueles que alcançavam o grau em questão rondavam muitas vezes
os trinta e cinco anos, uma idade bast ante avançada numa época em que a espe
rança média de vida não seria superior a cinquenta anos. Os estudantes de teo
logia estudavam intensamente dois textos: a Bíblia e
as
Sentenças de Pedro
Lombarda. Neste curso prolongado, cada estudante assistia a lições sobre os
dois textos básicos durante os primeiros cinco a sete anos, findos os quais
ascendia a "bacharel bíblico" baccalarius biblicus) e passava a dar lições sobre
certos livros da Bíblia durante dois anos. Os que ultrapassavam esta fase esta
vam aptos a leccionar durante aproximadamente dois anos sobre as Sentenças,
passando a ser conhecidos por "bacharéis sentenciais" baccalarii
Sententiarií).
Ao
concluir este ciclo de lições, o candidato chegava a "bacharel formado"
baccalarius formatus) ao fim de mais quatro anos, ao longo dos quais se dedi
cava a muitas das actividades dos mestres em teologia. como, por exemplo, pro
ferir sermões e dirigir debates quodlibetários.
Após
todos estes anos de estudo e
treino, o bacharel completava finalmente tudo o que lhe era exigido para obter
a licença para ensinar e receber o grau de mestre em teologia.
Entre as disciplinas universitárias, a medicina estava mais intimamente
ligada às artes do que à teologia. Na preparação para o estudo e a prática da
medicina, a astrologia e a filosofia natural desempenhavam papéis significati
vos. A maioria dos estudantes que frequentava escolas médicas tinha o grau
de mestre em artes ou uma formação razoável em artes. Era uma prática bas
tante comum reduzir a extensão do estudo àqueles que eram considerados
proficientes nas artes. O tempo de estudo para o grau médico variava entre
seis e oito anos. Tal como nas outras faculdades, os estudantes obtinham os
seus graus em medicina assistindo a lições obrigatórias sobre textos determi
nados, tomando parte
em
debates e submetendo-se a exames orais.
Dado que a quase totalidade dos que obtin ham o grau em medicina se dedi
cavam à prática privada, o currículo médico era orientado para a prática,
embora os textos fossem bastante teóricos. Os estudantes adquiriram experiên
cia prática durante o Verão, dando assistência a médicos, quer na universidade
quer na prática privada. A partir do século XN também se esperava que assis
tissem a dissecações que, em principio, seriam realizadas regularmente.
Havia uma grande quantidade de literatura médica
na
Idade Média e,
como base das lições, só podiam utilizar-se textos seleccionados. As obras
traduzidas do árabe desempenhavam um papel fundamental e incluíam
t
AUNIVERSIDADE
MEDIEVAL 57
numeroso s tratados de Galeno (ca. 129-ca. 200), o grande médico grego, bem
como de certos médicos muçulmanos, muito particularmente de Avicena
(Ibn Sina) Cdnone
de
Medicina), de Rhazes (al-Razi,
f.
925) Liber continens)
e de Averróis Obn Rushd)
Colliget).
Papel social e intelectual da universidade
A finalidade das faculdades de teologia, medicina e direito é bastante evi-
dente. Tratavam-se de escolas profissionais. O propósito de uma faculdade de
teologia era formar teólogos; o de uma faculdade de medicina, formar médicos;
e o de um a faculdade de direito, formar advogados.
Os
textos que se estudavam
em cada uma dessas faculdades destinavam-se a
esses fins.
Mas qual era o objec
tivo da faculdade de artes? Que pretendiam os bacharéis e os mestres alcançar
com o currículo que acabei de descrever? Que valor poderia ter uma educação
baseada na lógica, numas poucas ciências exactas e na filosofia natural?
A finalidade mais evidente do currículo de artes era formar novos mestres
que fossem ensinar nas faculdades de artes da Europa. E evidentemente,
alguns, se não muitos, mestres em artes ganhavam a vida como professores.
Aliás os novos mestres eram obrigados a ensinar durante pelo menos dois
anos após a obtenção
do
grau.
Mas
que dizer dos mestres que não escolhiam
fazer carreira no ensino? Que perspectivas se abriam àqueles estudantes que
tinham apenas um bacharelato
em
artes ou apenas um ano ou dois de forma
ção em artes? Haveria oportunidades de emprego para indivíduos que tinham
poucos anos de educação em artes e estavam familiarizados com a lógica, o
quadrívio e as três filosofias? Para esses indivíduos, as melhores oportunida
des de emprego estariam provavelmente numa corte real
0lJ
ducal, ou na
Igreja,
ou
talvez mesmo
num
governo comunal ou municipaL Mesmo uma
breve frequência numa universidade implicava a capacidade de escrever latim
e pelo menos um conhecimento rudimentar de cálculos aritméticos, o que
eram talentos úteis para potenciais burocratas.
Mas,
em muitos casos, os anti
gos
estudantes devem ter sido capazes de fazer uso da sua educação para ofe
recerem aos seus empregadores muito mais do que o mínimo que lhes era
exigido. Ao fim e ao cabo, tinham sido expostos a múltiplas ideias sobre a
vida e o mundo físico que eram consideradas importantes na sua época.
E no entanto, o currículo de artes que descrevi parece, à primeira vista,
remoto e irrelevante para o funcionamento da sociedade medieval. Porque
seria esse currículo tão teórico e desprovido de cursos práticos que pudessem
revestir-se de maior utilidade para as necessidades da sociedade? Por que motivo
7/23/2019 Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media
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58
os
FUNDAMENTOS DA CI NCIA MODERNA NA
IDADE MIIDIA
não incluíam as universidades medievais nos seus currículos temas práticos
importantes das artes mecânicas artes mechanicae), como arquitectura, ciência
militar, metalurgia e agricultura? Embora a comunidade universitária reconhe
cesse o valor intrínseco
do
currículo de artes e o seu valor
como
curso preliminar
de acesso
às
faculdades su periores
de
medicina, teologia e direito, torna-se mais
dificil determin ar
como
encarava a sociedade,
no
seu todo, um currículo de artes
baseado
na
lógica,
em
pedaços
de um punhado
de ciências exactas e numa dose
extrema de filosofia e filosofia natural aristotélicas.
Na realidade, o currículo de artes
na
universidade medieval não fora desen
volvido para responder
às
necessidades práticas
da
sociedade. Evoluiu
do
legado
intelectual greco-árabe que chegara através das traduções dos séculos XII e XIII.
Esse legado consistia num corpo de obras teóricas que deveriam ser estudadas
seu valor intrínseco e
não por
razões práticas ou monetárias. A antiga tradi
ção, exemplificada por Aristóteles e reforçada po r Boécio e outros, punha grande
ênfase
no amor
ao conhecimento pelo conhecimento. Desdenhava daqueles que
aprendiam para ganh ar a vida ou para fazer coisas de
ordem
prática. Professores
e estudantes da sociedade medieval concordavam plenamente com este pon to de
vista e
foi
de acordo com ele que moldaram a universidade medieval.
Mas determinar
se uma
coisa é prática ou
não
depende de
quem
a avalia.
O tipo de ensino teórico realçado na Antiguidade e
na
Idade Média (ver Capí
tulo 7) pode ter sido
encarado
como
eminentemente
pragmático e judicioso.
Era possível deduzir dele
conhecimento
acerca
do
modo
como
o
mundo -
cionava e adquirir assim
uma
consciência profunda das causas e dos efeitos
perpétuos que davam forma à existência
humana.
Muitos teriam julgado esse
conhecimento
mais valioso
do
que
qualquer outro
e,
portanto, eminente
mente prático. Apesar da sua ati tude fundamental, os erudit os medievais con
sideravam importante conhecer a estrutura e o funcionamento do Universo,
pois era o principal objectivo
de
uma educação
em
artes.
Com a aceitação das universidades pela Igreja e pelo Estado, a sociedade
no
seu
todo
acabou por aceitar o ideal de conhecimento de artes da universi
dade,
um
ideal que
era
considerado de grande valor pessoal
para
cada indiví
duo, mas de pouco valor directo para as actividades seculares da sociedade.
Este estado
de
coisas manteve-se durante séculos. Não houve qualquer expan
são significativa
do currículo de artes durante
a
Idade
Média.
Só
com o
Renascimento vieram a dar-se modificações e, mesmo então, a expansão
inclinou-se
para
a inclusão
de
temas humanistas, como a história e a poesia,
que estiveram ausentes
durante
a Idade Média,
em
vez
de
o fazer
na
direcção
dos temas práticos. Na realidade, o ideal de conhecimento antigo e medieval
adquirir saber pelo saber -
permaneceu
quase intacto.
A UNIVERSIDADE MEDIEVAL
59
Se o programa de artes nas universidades medievais não ofereceu benefí
cios práticos à sociedade, nem
por
isso deixou de lançar as bases
do
desenvol
vimento da ciência e
do
espírito científico. Isto ficou a dever-se
à
estrutura e
às
tradiçóes peculiares
da
universidade, certamente
um
legado incomparável
da
Idade Média
para
a civilização ocidental. As suas extraordinárias realiza
ções chegaram inclusivamente a infiltrar-se no
mundo
árabe. Ibn Khaldun
0332-1406 , um grande hist oriador islâmico, declarou:
Chega-nos igualmente a notícia
de
que as ciências filosóficas são gran
demente cultivadas
na
terra de Roma e ao longo da costa adjacente
setentrional
ao
país dos Cristãos Europeus. Diz-se que são ali de novo
estudadas e ensinadas
em numerosas
aulas.
As
suas exposições siste
máticas são globais, as pessoas que as conhecem numerosas e os que as
estudam muitíssimos.
1
Embora
a universidade medieval fosse radicalmente diferente de qualquer
instituição conhecida dos Antigos Gregos, Romanos e Arabes, é bem familiar
para os estudantes e os professores de qualquer universidade modema que
é
afinal, a
sua
descendente directa.
Cultura manuscrita
da
Idade Média
Antes do advento da imprensa em meados do século
XV
a existência dos
tratados de ciência e filosofia
natural
medievais dependia de cópias
manus
critas. Consequentemente, os tratados estavam sujeitos a todas
as
fantasias e
incertezas de qualquer sistema que tenha de confiar num escriba ou num
copista para produzir uma ou mais cópias de um exemplar, ou para escrever
uma
lição
enquanto
era proferida.
Os
textos latinos medievais estavam ainda
sujeitos a
outras
vicissitudes
próprias
desse sistema os erros por comlssao
ou omissão porque os copistas medievais
tinham
desenvolvido um elabo
rado
sistema de abreviaturas destinadas a acelerar o processo de copiar e
tam
bém
a
poupar
papel. Essas abreviaturas conferiam frequentemente mais
um
elemento de incerteza à interpretação de um texto, tanto para alguém que
pretendia lê-lo,
como
para alguém
que
desejava copiá-lo .
As
dificuldades
na
decifração dos manuscritos medievais afectaram a
moderna
compreensão
da
ciência medieval sobretudo
de duas
maneiras.
A
primeira
diz respeito à
integridade
da
obra de um autor enquanto
ia
sendo copiada, recopiada e lida
por
estudantes e eruditos
ao longo
dos
7/23/2019 Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media
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6 os FUNDAMENTOS
DA CleNClA
MODERNA NA
IDADE MllDlA
séculos. Dado que
as
cópias podiam variar drasticamente em resultado de erros
dos copistas introduzidos em qualquer altura
do
processo de disseminação a
compreensão dos objectivos de um autor em algumas ou talvez em muitas
passagens era quase inevitavelmente distorcida. O facto de só se dispor de
obras escritas e copiadas
à
mão significava que versões
do
mesmo tratado em
Paris Oxford e Viena podiam divergir substancialmente. Nos textos astronó
micos e matemáticos por exemplo diagramas e figuras essenciais podem ter
sido incluídos em algumas versões mas omitidos ou
só
parcialmente repro
duzidos noutras. Mesmo qu ndo um diagrama era incluído os erros do
copista podiam reduzir ou
destruir a sua utilidade. Em textos puramente ver
bais podiam ser omitidas ou acrescentadas palavras pelo copista. Muitas das
cópias de obras medievais que sobreviveram até hoje não eram feitas por
copistas profissionais mas por estudantes que tinha m copiado os textos para
seu uso pessoal.
Essas
cópias eram frequentemente passadas a outros estudan
tes que introduziam mais erros e alterações. A estes problemas acrescentava
-se
ainda o d a legibilidade. A caligrafia dos copistas era muitas vezes dificil de
decifrar e em muitos casos simplesmente ininteligível.
Os livreiros da universidade t inham como responsabilidade a produçãO de
textos de confiança para o pessoal universitário. Sucedia muitas
vezes
recebe
rem directamente do aut or a versão original de
um
tratado. Desse original
faziam uma ou mais cópias. Os livreiros estavam autorizados a emprestar os
textos no todo
ou
em parte a estudantes que por uma taxa
os
podiam copiar
p r
uso próprio. Como é óbvio
as
cópias dos estudantes variavam em quali
dade. Muitas eram subsequentemente passadas a outros estudantes que p or sua
vez as
copiavam. Eram introduzidos erros em praticamente todas
as fases
do
processo de multiplicação e disseminação dos textos. Talvez a única excepção
esteja nas cópias da Bíblia que eram cuidadosamente inspeccionadas.
A segunda maneira pela qual a interpretação dos manuscritos medievais
pode afectar a nossa compreensão
d
ciência medieval tem a ver co m os
m -
tes impostos aos modernos estudiosos que lêem ou preparam para publicação
tratados escritos na Idade Média. A maioria começaria provavelmente com
uma lista dos manuscritos existentes do tratado em questão. A qualidade des
tes manuscrito s que sobreviveram aos estragos do tempo deter mina o seu
nível de inteligibilidade. Em muitos casos hiatos significativos na compreen
são desse tratado permenecerão provavelmente mesmo depois de
os
estudio
sos modernos terem completado o seu trabalho editorial.
evidente que
as
diferenças entre a versão original de um tratado medie
val e todas as suas cópias posteriores eram n melho r hipótese consideráveis
e na pior imensas. Do nosso pont o de vista é fácil perceber como foi dificil a
A
UNIVERSIDADE MEDIEVAL
161
prática da ciência na Idade Média. A preservação de versões razoavelmente
fiéis dos textos básicos greco-árabes que tinham sido traduzidos para latim
era em si mesma uma tarefa enorme. A isso temos de acrescentar a panóplia
de textos científicos comentários e questões medievais que foram copiados e
recopiados. E infelizmente nem to dos os textos foram copiados e recopiados.
Houve muitos tratados que simplesmente desapareceram. Durante a Idade
Média o conhecimento tinha tantas possibilidades de desaparecer como de
ser preservado. Devia ser requerido um esforço enorme só para manter o t -
tu
quo ou para reconstituir um texto que fora corrompido. Embora não nos
seja possível avaliar
os
efeitos negativos para a ciência e para a filosofia natura l
medievais devidos à sua dependência de textos escritos à mão po demos con
jecturar que terão sido enormes.
A introdução da imprensa em meados do século
XV
alterou significativa
mente este quadro. Com o advento dos livros impressos o conhecimento em
geral e a informação técnica em particular puderam ser disseminados com
uma rapidez e uma exactidão dificilmente imagináveis no tempo dos manus
critos. A ciência foi particularmente beneficiada pela imprensa. Cópias idênti
cas de uma obra científica podiam ser espalhadas pela Europa num tempo
relativamente breve. E no entanto discute-se ainda qual terá sido precisa
mente o papel da imprensa na geração d Revolução Científica. Somos força
dos a perguntar se n ausência d imprensa o velho sistema de copistas
poderia ter sido melhorado a ponto de multiplicar as cópias dos tratados
científicos e dar assim resposta
às
necessidades intelectuais da Europa. E
as
bibliotecas reais ducais municipais e universitárias em constante expansão
teriam proporcionado aos estudiosos europeus um acesso suficiente para per
miti r a expansão contínua da ciência e da instrução? Felizmente não nos cabe
responder a essas perguntas neste estudo. As contribuições fundamentais para
o dealbar da ciência modema sobre que nos debruçamos aqui já tinham ocor
rido muito antes de a imprensa de Gutenberg ter transformado a cultura
manuscrita da Europa num cultura impressa.
Embora a reprodução e a disseminação de manuscritos levantasse sérios
problemas n Idade Média não devemos conclui r que fossem insuperáveis.
Apesar dos obstáculos a qualidade dos textos escritos à mão sobre ciência e
filosofia natural
à
disposição dos estudiosos medievais era frequentemente
mais do que adequada para a sua compreensão e para a introdução de contri
buições significativas. O legado que chegou até nós pode ser compreendido e
muitas vezes admirado. No cerne desse legado estava a filosofia natural de
Aristóteles profundamen te enraizada n universidade medieval e que irei
agora descrever de forma sucinta.
7/23/2019 Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media
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o
LEGAI;JO DE ARISTÓTELES PARA
A
DADE MEDIA 63
4
O legado de Aristóteles para a Idade Média
Os livros naturais de Aristóteles constit uíam a base da filosofia natural nas
universidades e
é
neles que devemos procurar como é que os estudiosos
medievais compreendiam a estrutura e o funcionamento do Universo. Recor
rendo a hipóteses, principios demonstrados e princípios evidentes em si mes
mos, Aristóteles impôs um sentido sólido de ordem e coerência a um mundo
até
aí
considerado desco ncertante. Os discípulos medievais de Aristóteles, que
constituíram a classe dos filósofos naturais na Baixa Idade Média, iriam even
tualmente alargar os principios de Aristóteles a actividades e problemas para
além do que o pró prio filósofo considerara.
Aristóteles estava convencido de que o mundo que procurava compreen
der era eterno, sem principio
nem
fim. Encarava a eternidade do
mundo
como algo bem menos problemático do que qualquer assunção de um início
cósmico que implicaria igualmente
um
futuro fim para o mundo. Era melhor
postular a eternidade do que ser forçado a entrar numa explicação que iria
requerer uma infinita regressão de principios causais. A ideia de que a matéria
pudesse ter um início parecia impossível aos Antigos Gregos porque, se che
gássemos a uma alegada matéria primitiva, isso conduziria inevitavelmente
à
questão de saber o que a teria causado, e assim por diante. Entretanto, sem um
início, o mundo não podia ter sido criado, pelo que
as
ideias de Aristóteles
sobre a eternidade do mu ndo o colocavam em oposição aos teólogos das gran
des religiões monoteístas, Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. De todas
as
questões sobre as quais a filosofia natu ral e a teologia se debruçaram durante o
século XIII
n
Europa Ocidental, os teólogos encararam a eternidade do
mundo como a mais difícil e a mais ameaçadora para a
fé
(ver capítulo
Por out ro lado,
se
o
mundo
de Aristóteles era eterno e po rtanto suspeito,
a insistência na sua unicidade colocavam-no em plena concordância com
as
escrituras sagradas das três grandes religiões. Encarava o mun do em que
vive-
mos como único, uma grande esfera finita, para além da qual nada podia
existir. Toda a matéria existente estava contida neste mundo, e nada ficava
de
fora. Sem corpo, não podiam existir fora do mundo nem lugar, nem vazio,
nem tempo porque
as
definições de lugar , vazio e tempo dependiam
da existência de corpo. Para Aristóteles, o lugar próprio de um corpo era sem
pre a superfície interna de um outro corpo que o rodeava imediatamente e
estava em contacto directo com ele Assim, um lugar é definido como algo em
que um corpo deve estar presente. Sem a existência de um corpo para lá do
7/23/2019 Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media
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64 os
FUNDAMENTOS
DA
CIl'.NCIA MODERNA
NA IDADE MÉDIA
mundo em que vivemos, nenhum lugar pode existir (para mais infomlaçóes
sobre a noção de lugar, ver mais adiante neste capítulo). De modo seme
lhante, um vazio é algo em que a existência de um corpo é possível, embora
de forma não actuaL Por conseguinte, se nenhum corpo pode existir, nenhum
vácuo é igualmente possíveL Por
fim,
o tempo é a medida do movimento.
Sem corpo não é possível movimento nem, por conseguinte, tempo. Aristóte
les
concluiu que toda a existência se situa no interior do nosso cosmo, e nada
no seu exterior. O nada nesta acepção não deve ser concebido como um
vácuo, sendo mais bem caracterizado como a total ausência de
ser.
A decisão mais importante que Aristóteles tomou acerca do mundo físico
eterno foi talvez a de o dividir em duas partes radicalmente diferentes, a ter
restre, que se estendia desde o centro da Terra até à esfera lunar, e a celeste,
que abarcava tudo desde a Lua até às estrelas fixas. Na região terrestre, a
observação e a experiência tornavam evidente que a mudança era incessante,
ao
passo que na região celeste a mudança era quase inexistente. As observa
ções astronómicas herdadas do passado convenceram Aristóteles de que
nunca tinham sido detectadas quaisquer mudanças nos céus Sobre os Céus
1.3.270b.13-17), pelo que inferiu que as mudanças não ocorriam - nem
podiam ocorrer nele. Para compreender melhor o mundo de Aristóteles,
será vantajoso descrever primeiro a região terrestre da mudança, o que, por
sua vez, tornará mais compreensíveis
as
propriedades e os atributos imutáveis
da região celeste.
Região terrestre: domínio de incessante mudança
Grande par te da filosofia natural de Aristóteles consiste num tentativa
de identificar e explicar os princípios da mudança n região terrestre, prin
cípios que moldaram as interpretações medievais dos processos que fazem
do mundo o que
ele
é.
Embora vivamos num mundo que não teve começo,
mesmo assim Aristóteles explica como devemos imaginar o desenvolvi
mento da matéria e como ela se diferencia nos quatro elementos básicos
- terra, água, r e fogo - que formam
as
partes constituintes de todos
os
corpos materiais da região terrestre. A base subjacente a todos os corpos
materiais
é
a matéria-prima que, embora real, não tem existência indepen
dente. Aristóteles deduz simplesmente a sua realidade porque era essencial
pressupor a existência de algum tipo de substrato em que qualidades e for
mas podiam tornar-lhe-se inerentes e produzir matéria sensível. A matéria
-prima não t em propriedades próprias, estando sempre associada a qualida
des que se lhe tornam inerentes e a definem.
o
LEGADO
DE
ARlSTÓTELES
PARA
A
IDADE Ml .DIA
65
Que propriedades ou qualidades ergueriam a matéria-prima a um nível
mais elevado de existência, digamos ao nível de um elemento? Depois de elimi
nar uma série de possibilidades, Aristóteles argumenta que dois pares de quali
dades contrárias, ou opostas, podiam atingir esse efeito: quente e frio, seco e
húmido. Dado que nada poderia ser simultaneamente quente e frio, nem
seco
e
húmido, nenhum par
de
qualidades opostas
se
poderia tomar inerente simulta
neamente
à
matéria-prima. Contudo, as combinações de pares não opostos são
possíveis e podem produzir elementos.
Se as
qualidades
frio
e
seco
se tomassem
inerentes à matéria-prima, produzi riam o elemento terra; frio e humidade pro
duziriam
água;
calor e humidade , ar; e calor e secura, fogo.
Assim
foram obti
dos os quatro elementos. Os corpos da região terrestre não eram, co ntudo, ele
mentos puros, mas misturas, ou compostos, de dois ou mais elementos, geral
mente designados na Idade Média como corpos mistos .
Na filosofia natural, ou fisica, de Aristóteles, cada corpo é um composto
de matéria e forma, onde a matéria-prima existe como substrato a que a
forma se torna inerente. A forma de uma coisa, ou de um corpo, é a soma das
suas características essenciais, as propriedades que fazem dessa coisa o que ela
é.
Natureza,
no
domínio terrestre, mais não é do que um termo colectivo para
a totalidade dos corpos existentes, cada um constituído por matéria e forma.
Cada um desses corpos pertence à sua próp ria espécie e possui as proprieda
des e características - ou seja, a forma - da sua espécie. Se estiver livre de
impedimentos, agirá em conformidade com essas propriedades. Aristóteles
atribuiu, pois, aos corpos do mundo o poder de actuarem de acordo com as
suas capacidades naturais. Deste modo, concebeu uma causalidade secundá
ria, quando os corpos eram capazes de actuar sobre outros corpos, isto é,
quando eram capazes de causar efeitos noutros corpos. Aristóteles acreditava
que cada efeito era produzido por quatro causas agindo em simultâneo;
nomeadamente, uma causa material, ou aquilo de que alguma coisa é feita;
uma causa formal, ou a estrutura básica a ser imposta a alguma coisa; uma
causa eficiente,
ou
o agente de uma acção; e uma causa final, ou a finalidade
para a qual se empreende a acção.
As
causas que produzem uma pedra não ó
a fazem pesada, mas, se nada se lhes opuser, também lhe conferem a capaci
dade de cair naturalmente em direcção ao centro da Terra com um movi
mento rectillneo. De modo semelhante, os agentes que produzem o fogo con
ferem-lhe leveza
e,
consequentemente, a capacidade de se elevar naturalmente
para cima, sempre que nada os contrariar.
Aristóteles ocupou-se também dos tipos de mudanças que as quatro cau
sas
podiam originar, distinguindo quatro tipos: 1) mudança substancial,
qu ndo um forma supl nt outr na matéria subjacente a esta, como
7/23/2019 Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media
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66 os RJNDAMENTOS DA CIID<CJA MODERNA NA IDADE MeoIA
quando o
fogo
reduz uma acha a cinzas; (2) mudança qualitativa, quando a
cor de uma folha é alterada de verde para castanho na mesma matéria subja
cente; (3) mudança de quantidade, quando um corpo cresce ou diminui man
tendo sob todos os
outros
aspectos a sua identidade; e, finalmente,
mudança de lugar, quando um corpo sofre mudança ao deslocar-se de um
para outro.
Destes quatro tipos de mudança, só o primeiro e o quarto requerem expli
cação. A mudança substancial é a forma mais básica de mudança, implicando
geração e corrupção. Para Aristóteles, cada mu'dança substancial implicava
que algo tinha passado a existir porque qualquer outra coisa tinha deixado de
existir. Este passar-a-existir e deixar-de-existir das coisas era a base de toda a
mudança na região terrestre. Acontecia com todas as substâncias compostas
de matéria e forma, o que, na região terrestre, incluía todas
as
coisas.
As
for
mas, ou qualidades, eram potencialmente substituíveis por outras suas con
trárias. Quando isto sucedia, uma substância era transformada noutra. or
exemplo, o fogo, que possui
as
qualidades primeiras de calor e secura, trans
forma-se em terra, que possui as qualidades primeiras de secura e frio,
quando o calor no fogo é substituído pelo frio, sua qualidade,
ou
forma, con
trária. Enquanto uma forma
exisk
realmente
na
matéria diz-se da sua contrá
ria que está em privação embora tendo o potencial de substituir a forma
actual. Eventualmente, cada forma ou qualidade potencial virá a tornar-se
naquilo em que é susceptível
de se
tomar. De outro modo uma forma perma
neceria irrealizada e a natureza tê-Ia-ia produzido em vão. Enquanto uma
forma de um par de formas contrárias se realiza em matéria, a sua contráría
está ausente e em privação, porque duas formas contrárias não podem existir
em simultâneo no mesmo corpo. Virtualmente tudo muda, isto é, geração e
corrupção implicam a posse de uma forma, e a exclusão da outra, de um par
de formas ou qualidades contrárias.
A última das quatro mudanças, mudança de lugar, representa aqUilO a que
geralmente chamamos movimento, a deslocação de
um
corpo de
um
lugar
para outro. A doutrina do lugar de Aristóteles pode ser encarada de duas
maneiras. No seu significado mais lato, diz respeito
à
estrutura do mundo
sublunar; e no seu sentido mais estrito, diz respeito ao lugar específico de um
único corpo. O sentido lato de lugar é, na realidade, a doutrina do lugar natu
ral, na qual Aristóteles concebeu a parte do mundo abaixo da Lua como uma
região estruturada, dividida em quatro regiões concêntricas, sendo cada uma
o lugar natural de
um
dos elementos, e a região em direcção
à
qual
esse
ele
mento se deslocaria naturalmente se estivesse livre de qualquer impedimento.
Assim, o anel concêntrico exterior, localizado logo abaixo da superfície côncava
o
LEGADO DE
ARISTÓTELES PARA A
IDADE
MI DIA
67
da esfera é o lugar natur al do fogo; o anel concêntri co seguinte é o
lugar do ar, para o qual o ar se ergue quando se encontra nas regiões abaixo, e
para o qual cairia se, p or alguma razão, estivesse localizado na região do fogo;
abaixo do ar, fica o anel da água; e abaixo desse a esfera da nossa Terra, cujo
centro coincide com o centro geométrico do Universo.
A esfericidade da Terra era uma verdade básica no sistema do mundo de
Aristóteles. Como prova observável da esfericidade da Terra, Aristóteles apon
tou
as
linhas curvas na superfície da Lua durante um eclipse lunar, inferindo
com toda a razão que eram projectadas pela sombra de uma Terra esférica
interposta entre o Sol e a Lua. Fez igualmente notar que,
ao
mudarmos de posi
ção na superfície terrestre, surgiam
à
vista diferentes constelações, indicando
que a Terra possuía uma superfície esférica. A esfericidade da Terra parecia ser
ainda confirmada pelo modo como se observava que os corpos caíam para a
superfície terrestre, em linhas não paralelas que se encontravam no seu centro.
Se todos os corpos terrestres caíam desta maneira, agrupar-se-iam no centro
do
mundo e formariam naturalmente uma esfera.
Os
argumentos
de
Aristóteles
em favor de uma Terra esférica foram aceites de imediato.
Mas, e quanto ao lugar de qualquer corpo particular? A doutrina do lugar
de Aristóteles baseia-se na convicção fundamental de que o mundo é uma
plenitude ma terial na qual a existência de espaço vazio é impossíveL Daqui se
depreende que o lugar de qualquer coisa na região s ub-luna r consiste na
matéria que a rodeia. Ou, como Aristóteles o descreveu, o lugar de uma coisa
é o limite do corpo continente em que este está em contacto com o corpo
contido .1 O limite, ou superfície interior do continente, devia igualmente ser
destituída
de
movimento, uma qualificação que levantou sérios problemas na
história da doutrina do lugar de Aristóteles. Acontecia frequentemente que
quando a condição do contacto era conseguida, a
da
imobilidade não era, e
vice-versa. No entanto, quando um corpo se adequava a estas condições rigo
rosas, presumia-se que estivesse no seu lugar próprio , isto
é, num
lugar que
apenas
ele
ocupava. Os lugares que incluíam mais do que
um
corpo distinto
eram caracterizados como lugares comuns . Na medida em que Aristóteles
pressupôs que cada corpo estava em algum lugar, foi inevitavelmente levado a
perguntar se a superfície exterior da esfera exterior que continha o mundo
estaria ela própria num lugar, uma questão que equivalia a perguntar se o
próprio mun do está em algum lugar. Na convicção de que não existiam corpos
para lá do mundo, Aristóteles argumentou que, se nenhum corpo material, e
consequentemente n enhuma superfície
de
um corpo, podia rodear o nosso
mundo, nenhum corpo poderia funcionar como seu lugar. Paradoxalmente,
embora cada corpo no mundo esteja
num
lugar, a última esfera, ou o próprio
7/23/2019 Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media
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681 os
FUND MENTOS
D
C I ~ N C l MODERN
N ID DE MÉDI
mundo, não está directamente em nenhum lugar. Aparentemente constran
gido por esta consequência da sua doutrina do lugar, e temendo que o consi
derassem inconsistente, Aristóteles
encontrou uma
espécie de lugar para a
última esfera, argumentando que a
última
esfera está indirectamente num
lugar, devido
às
suas partes, porque
numa
orbe cada parte contém outra .2
Muitos dos comentadores de Aristóteles rejeitaram esta
sua
tentativa enigmá
tica de atribuir um lugar à última esfera. E os que o não fizeram foram fre
quentemente levados a encontrar bizarras explicações para defender o mestre,
como q uando Averróis argumentou que a última esfera está num lugar por aci
dente per acddens porque o seu centro, a Terra, está num lugar por essência
per se).
São Tomás
de
Aquino considerou ridículo dizer que a última esfera
está num lugar acidentalmente, [simplesmente] porque o centro está
num
lugar .3
Como
poderia
um
continente estar
num
lugar em virtude
da
coisa
que contém?
Movimento na física
de
Aristóteles
O movimento dos corpos
foi
um problema que Aristóteles abordou
com
frequência, embora em nenhuma parte da sua obra conhecida se encontre um
tratamento sistemático e abrangente desse problema. A explicação que se
segue
é
baseada
em
argumentações dispersas
por
várias das suas obras, sobre
tudo na Física e em
Sobre os
Céus.
Num mundo
sublunar
que
não incluía espaços vazios e era
uma
plenitude
material, o movimento,
ou
movimento local como era algumas vezes desig
nado, tinha de ser de um lugar nessa plenitude para outro. Aristóteles distin
guiu dois tipos
de
movimento: natural e violento
(ou
antinatural), divisão
que
terá provavelmente tido
origem
na observação comum. A divisão do
movimento local
em
natural e violento, e o conjunto de conceitos, argumen
tos e hipóteses tisicas associados a estes dois m ovimentos contrá rios constitu í
ram o cerne
da
física sub lunar de Aristóteles.
ovimento natural de corpos sublunares. O
conceito
de movimento
natural de Aristóteles dependia de propriedades óbvias
que
ele observava
nos
quatro elementos - terra, água,
ar
e fogo - que formavam a base material
de
todos os corpos terrestres. Via-se que alguns corpos, como as pedras quando
caíam de
uma
certa altura, se moviam
em
linha recta
em
direcção ao centro
da Terra. Outros corpos, tais como o fogo e o fumo, pareciam erguer-se sem
pre
em
direcção
à
esfera lunar, afastando-se do centro
da
Terra. Dado
que
f
'I
tt
~ l i
O LEG DO DE RlSTOTELES P R A ID DE MIDIA 169
se observara, com base na experiência, que a classe de
corpos
que caiam
naturalmente para o centro da Terra era mais pesada do que
as
classes de cor
pos
que
se erguiam, Aristóteles concluiu que, se não for contrariado, um
corpo terrestre pesado se movia naturalmente para baixo, numa linha recta,
em direcção ao centro da Terra. Assim, o centro da Terra - ou, mais precisa
mente, o centro geométrico do Universo - era o lugar natural de todos os cor
pos pesados. Em contrapartida, os corpos leves moviam-se naturalmente para
cima, em linha recta, em direcção à esfera lunar. Aristóteles descreveu estes
movimentos natur ais ascendent e e descendente como acelerados.
Apliquemos agora estas generalizações especificamente aos quatro ele
mentos. Sempre que um corpo elementar, composto
de
terra, estava acima
do seu próprio lugar natural - quer fosse na água, no ar quer na região
do
fogo acima
do ar
-
era
considerado absolutamente pesado porque, se não
fosse contrariado, cairia em direcção ao centro da Terra. O fogo era conside
rado absolutamente leve; sem ser contrariado, erguer-se-ia sempre para cima
e
em
direcção ao seu lugar natural acima
do ar
e abaixo
da
esfera lunar. Para
sublinh ar a absoluta leveza do fogo, Aristóteles declarou ser um facto palpá
vel
que
quanto maior a quantidade {de fogo], mais leve é a massa e mais
rápido o seu movimento ascendente .' Ao presumir que quanto
maior
a
quantidade
de
fogo, mais leve se
toma
e mais depressa se ergue, Aristóteles
parece ter dissociado a absoluta leveza do conceito de peso, conceito que se
toma ininteligível neste contexto. Quanto à água e ao ar, Aristóteles enca
rou-os
como elementos intermédios,
dotados
apenas de peso e leveza relati
vos.
Quando
estivesse abaixo do seu lugar natural, algures dentro da terra, a
água subiria naturalmente; mas quando se encontrasse acima do seu lugar
natural, no ar ou no fogo, cairia. Entretanto, o ar cairia quando estivesse no
lugar natural do fogo,
mas
subiria quando se encontrasse no' lugar natura l
da
terra ou
da
água.
Até aqui descrevemos o
comportamento
natural, idealizado, de cada
um
dos quatro elementos. Mas os elementos não existiam naturalmente
no
seu
estado primitivo.
No
mundo real, os corpos eram
na
verdade compostos,
constituídos de proporções variadas de todos
os
quatro elementos. Os corpos
que caíam naturalmente para o centro
da
Terra, faziam-no porque o seu ele
mento predominante
era
pesado (quanto mais pesado o corpo, maior a
sua
velocidade descendente); aqueles
que
se erguiam naturalmente para
cima
faziam-no porque
eram
dominados por um elemento leve (quanto maior a
quantidade de ar
ou
fogo
num
corpo aéreo
ou
ígneo, maior seria a sua veloci
dade ascendente).
7/23/2019 Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media
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k
\
I
1 I os FUNDAMENTOS DA
CI1 .NCIA
MODERNA
NA
IDADE M1.DIA
Três pares de opostos desempenhavam um papel significativo na interpre-
tação aristotélica da estrutura do mundo terrestre, ou sublunar. Podem ser
esquematizados como segue:
1. Superfície côncava da esfera lunar Centro geométrico
do
Universo
(ou
centro
da Terra)
2. Ascendente
Descendente
3.
Leveza absoluta (fogo)
Peso absoluto (terra)
Estes pares de opostos eram utilizados como condições de fronteira vir
tuais para a explicação de Aristóteles do movimento dos corpos. A coluna da
esquerda diz-nos que
um corpo
absolutamente leve (fogo) se ergueria
natu-
ralmente num movimento ascendente rectilíneo em direcção à esfera lunar,
enquanto a da direita nos informa que um corpo absolutamente pesado cairia
naturalmente para baixo, em linha recta, em direcção ao centro da Terra.
Embora Aristóteles soubesse que a ter ra era mais dens a
do
que o
ar
e a água,
teria negado que a densidade pudesse explicar a queda
de uma pedra
através
do ar
ou
da
água.
Uma
pedra apenas cai
porque
é absolutamente pesada. O
fogo não se ergue em direcção ao seu lugar
natural
perto da superfkie da
esfera
lunar por
ser menos denso
do que
a terra, a água ou o ar, mas antes por
ser absolutamente leve. Na realidade, o fogo nem sequer possui peso no seu
próprio lugar natural, de modo que, se o ar abaixo dele fosse retirado, o fogo
não cairia
nem
se moveria para baixo. Retrospectivamente, podemos
ver
que
a introdução das noções de peso e leveza absolutos feita por Aristóteles dificil
mente conduziria ao progresso da física, embora o próprio Aristóteles a con
siderasse um aperfeiçoamento significativo relativamente a Platão e aos ato
mistas, que
tinham
atribuído peso a todas
as
coisas e
para
os quais o peso era
um
conceito relativo. Das duas possibilidades que
se
lhe apresentavam, Aris
tóteles escolheu aquela que historicam ente viria a revelar-se menos útil. Con-
tudo, fê-lo
por ter tornado
o seu sistema dependente
em
elevado grau
de uma
diversidade de contrários absolutos, preferindo evitar as comparações relati
vistas de Platão e dos atomistas.
Para oferecer uma explicação causal para o movimento natural (e,
como
veremos, para o movimento violento, ou antinatural), Aristóteles invocou o
princípio geral de que para cada efeito há
uma
causa e pressupôs que cada
coisa animada e inanimada capaz de se mover é movida por qualquer outra
coisa que se encontra, ela própria, em movimento ou
em
repouso.
5
(Ou, para
citar a versão sucinta medieval deste princípio,
toda
a coisa que é
movida é
movida por
uma
outra .) A coisa que fazia mover e a coisa que era movida
o
LEGADO DE ARISTÓTELES PARA A
IDADE
MEDIA 111
eram sempre consideradas entidades distintas. Embora pudesse parecer que
os movimentos naturais não requeriam explicações causais
na
medida em que
são naturais , Aristóteles atribuiu um agente específico (cham ado generans
ou gerador, na Idade Média) como causa primeira do movimento natural. O
agente causador, ou gerador, era a coisa que tinha inicialmente produzido o
corpo agora em movimento.
Por
exemplo,
um
fogo produz outro fogo (como
quando se incendeia uma acha) e confere ao novo fogo todas as propriedades
que pertencem
ao fogo,
sendo
uma delas a capacidade
espontânea
de se
erguer naturalmente quando não constrangido. De modo semelhante, qual
quer agente natural que
produz
uma pedra confere-lhe todas as suas proprie
dades essenciais, inclu indo a tendênc ia natural para cair para a Terra quando
é retirada do seu lugar natural.
Embora tendo identificado o generans ou gerador de uma coisa, como
uma espécie de remota causa motriz no movimento natural, Aristóteles inter
pretou a queda de um corpo como se o seu peso fosse a causa imediata do seu
movimento natural descendente; e encarou a subida de um corpo como se a
sua leveza fosse a causa imedi ata do seu movimento natural ascendente. Par
tindo do príncipio que todas as outras coisas são iguais, Aristóteles pôde con-
cluir que a velocidade é directamente proporcional ao peso
do corpo
em
movimento natural e inversamente proporcional à resistência que encontra,
medida pela densidade
do
meio através do qual o corpo se move, e que o
tempo do seu movimento é directamente proporcional à resistência, ou den
sidade,
do
meio e inversamente proporcional ao seu peso. Por exemplo, a
velocidade de um corpo podia ser duplicada, quer duplicando o seu peso
(mas mantendo o meio constante), quer reduzindo para metade a densidade
do meio (e mantendo constante o peso do corpo). De modo idêntico, o inter
valo de
tempo
associado movimento podia ser duplicado, quer duplicando a
densidade do meio (mas mantendo o peso constante), quer reduzindo para
metade o peso
do
corpo (e mantendo constante a densidade do meio).
Embora reconhecendo que os corpos pesados, não constrangidos, aceleravam
quando se aproximavam do seu lugar natural, Aristóteles discutiu os movi
mentos naturais
como
se
as
suas velocidades fossem uniformes.
Movimento violento ou antinatural de corpos sublunares. Os movimentos
que são violentos, ou antinaturais, ocorrem quando os corpos são impelidos
para
fora ou
para
longe dos seus lugares naturais. Assim, uma pedra que
é
lançada rectilinearmente para cima, para o ar,
ou é
arremessada
numa
trajec
tória horizontal, está
em movimento
violento; o
movimento de um
fogo
que
é de algum modo forçado
para
baixo a partir
do
seu lugar
natural
e
em
7/23/2019 Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media
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72 I os FUNDAMENTOSDA CillNCIA MODERNA NA IDADE MÉDIA
direcção
à
Terra é antinatural, ou violento. De igual modo, o movimento do
ar quando
é
forçado a sair do seu lugar natural, para baixo em direcção
à
terra
ou para cima em direcção ao lugar natural do fogo, é caracterizado por um
movimento violento. Aristóteles formulou regras específicas em que descre
veu as consequências que adviriam da aplicação de uma força motriz a um
objecto que lhe resistisse. Embora essas regras sejam expressas em termos de
força, corpo resistente, distância atravessada e tempo, em vez de serem
expressas directamente em termos de velocidade, esta última permite um
resumo mais apropriado. A velocidade de um corpo em movimento violento
é inversamente proporcional ao seu próprio poder de resistência, que é dei
xado indefinido, e directamente proporcional ao poder motriz, ou força apli
cada. Em símbolos, oe F/R em que V é a velocidade, F a força motriz eR a
resistência total oferecida à força aplicada, uma quantidade que, presumivel
mente, inclui o objecto ou corpo resistente mais a resistência do meio externo
em que o movimento ocorre. Para duplicar uma velocidade V a resistência R
poderia ser reduzida a metade e
F
mantida constante; ou
F
duplicada e
R
mantida constante. Para reduzir
a
metade,
F
poderia ser reduzida a metade
e R mantida constante; ou R duplicada eFmantida constante.
O movim ento violento exigiu uma explicação causal radicalmente dife
rente da atribuída ao movimento natural. O motor inicial,
ou
agente causal,
era identificado de imediato porque tinha de estar em contacto físico directo
com o corpo que fazia mover. Alguém que atira uma pedra para cima ou
empurra um carro por uma estrada é o motor, ou energia motriz, desses
movimentos violentos. Mas a fonte de energia que permitia a um corpo con
tinuar o seu movimento depois de perdido o contacto com o seu moto r ini
cial estava muito longe de ser óbvia. Por exemplo, como podia uma pedra
continuar o seu movimento depois de perder o contacto com a mão que a
lançara? Aristóteles defendeu que o meio externo no exemplo da pedra, o ar
-- era a fonte do movimento contínuo. Acreditava que o motor original não só
punha a pedra em movimento como ainda, e simultaneamente, activava o ar.
Aparentemente, a primeira porção,
ou
unidade, de ar activada empurra a
pedra e ao mesmo tempo activa a segunda unidade de ar adjacente que
faz
mover a pedra um pouco mais para a frente. A segunda unidade, por seu
turno, activa simultaneamente a seguinte, ou terceira, unidade de ar, e assim
por diante. A medida que o processo decorre, a força motriz das sucessivas
unidades de a r
vai
progressivamente diminuindo até que
se
atinge uma uni
dade de ar que é apenas capaz de activar a unidade de ar imediatamente a
seguir, mas incapaz de lhe comunica r a força para mover o corpo para mais
o LEGADO DE
ARiSTÓTELES PARA A iDADE MeDIA 73
longe.
Nesse
ponto, a pedra começa a cair com o seu movimento natural des
cendente. Através deste mecanismo, Aristóteles utilizou ao mesmo tempo o
meio como força motriz e resistência. Não
só
acreditava que o meio, como
força motriz, tinha de estar em contacto constante com o corpo que fazia
mover, como estava também convencido de que o mesmo meio tinha de flm
cionar como um travão do movimento
desse
corpo a
fim
de prevenir o impos
sível: a ocorrência de uma velocidade infinita ou de um movimento instantâ
neo. Aristóteles considerou óbvio que a resistência
ao
movimento aumentava
à
medida que aumentava a densidade do meio, e decrescia à medida que o meio
se rarefazia. Dado que uma rarefacção ilimitada do meio resultaria num
aumento da velocidade proporcional e ilimitado, Aristóteles concluiu que
se
o
meio desaparecesse por completo, deixando um vácuo, o movimento seria ins
tantâneo ou para além de qualquer proporção, segundo
as suas palavras).
O absurdo de
uma
velocidade infinita foi apenas um entre vários argu
mentos que levaram Aristóteles a rejeitar a existência de um vácuo. Os princí
pios fundamentais que ele considerava activos no mundo seriam inúteis em
espaços vazios. O movimento seria impossível por uma série de razões. A
natureza homogénea de um espaço vazio contínuo significava que cada parte
tinha de ser idêntica a qualquer outra parte. Dado que não poderiam existir
lugares naturais diferenciáveis num espaço homogéneo,
os
corpos não teriam
qualquer motivo válido para
se
moverem numa direcção em
vez
e noutra.
Os movimentos naturais seriam impossíveis, tal como o seriam os movimen
tos violentos, porque o meio externo que Aristóteles considerava essencial
para o movimento violento estaria ausente. Se o vazio fosse infinito e o movi
mento pudesse de algum modo ocorrer, esse movimento ou seria eterno -
pois o que poderia fazer parar um corpo em movimento num vácuo de que
estavam ausentes outro s corpos e lugares naturais que o fizessem parar? - ou,
na ausência de resistências externas, seria instantâneo_ Entre os restantes
argumentos de Aristóteles contra o vazio, um é digno de nota. Corpos de
pesos diferentes cairiam necessariamente a velocidades iguais no vácuo, o que
Aristóteles considerava
um
absurdo, pois deviam cair a velocidades directa
mente proporcionais aos respectivos pesos.
Mas
esta última relação só podia
ocorrer num plenum onde um corpo mais pesado abrisse caminho através do
meio material mais facilmente do que o faz um corpo menos pesado. Na
ausência de um meio, Aristóteles não descortinava uma razão plausível para
que um corpo se movesse a uma velocidade maior do que a de outro. Con
cluiu pois que o mundo era necessariamente um plenum cheio de matéria em
todos os seus pontos.
7/23/2019 Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media
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74 OS FUNDAMENTOS DA CItlNClA MODERNA NA IDADE MÉDIA
RegiãO celeste: incorruptível e imutável
A parte do mundo que Aristóteles visualizava para além da superfície con
vexa da esfera do
fogo
era radicalmente diversa da parte terrestre acabada de
descrever. Aristóteles considerava a região celeste tão incomparavelmente
superior à terrestre que lhe atribuiu propriedades que sublinhavam
essas
pro
fundas diferenças. Se a incessante mudança era básica para a região terrestre,
então a ausência de mudança teria de caracterizar a região celeste. Esta con
vicção foi reforçada em Aristóteles pela sua crença de que os registos huma
nos não revelavam modificações nos céus. Dado que
os
quatro elementos da
região sublunar estavam envolvidos em incessante mudança, eram obvia
mente inadequados para os céus imutáveis. Em Sobre os éus (livro
1
caps. 2
e 3), Aristóteles estabeleceu o contraste entre o movimento rectilíneo natural
dos quatro elementos sublunares (terra, água, ar e fogo) e o movimento cir
cular, regular, observável e aparentemente natural dos planetas e das estrelas
fixas
da região celeste.
O
contraste entre a linha recta e o círculo, a primeira
finita e incompleta, o segundo fechado e completo em si próprio, convenceu
Aristóteles
de
que a figura circular era necessária e naturalmente superior à
figura rectilínea. Dado que
os
quatro corpos elementares se moviam num
movimento natural rectilíneo (ascendente e descendente), Aristóteles con
cluiu que o movimento circular dos corpos celestes observado tinha necessa
riamente de estar associado a uma espécie diferente de corpo elementar sim
ples: um quinto elemento, ou éter.
Como que para sublinhar a importância especial do éter, Aristóteles cha
mava-lhe frequentemente primei ro corpo . As suas propriedades primitivas
eram quase o oposto das dos elementos terrestres. Enquanto os elementos ter
restres se moviam naturalmente em movimentos rectilíneos, o éter movia-se
naturalmente num movimento circular, um movimento superior porque a
circunferência era uma figura completa em si mesma, ao passo que a linha recta
não o era. Enquanto
os
quatro elementos e
os
corpos compostos por
eles se
encontravam em estado de fluxo constante, o éter celeste não sofria mudanças
de substância, de quantidade ou de qualidade. A mudança substancial era
impossível porque Aristóteles pressupunha que os pares de qualidades opos
tas, ou contrárias, tais como calor e frio, humidade e secura, rarefeito e denso,
que eram forças básicas para a mudança na região terrestre, estavam ausentes
dos céus e, por conseguinte, não desempenhavam
aí
qualquer papel. A rejei
ção de qualidades contrárias nos céus levou Aristóteles a negar também a
existência das qualidades contrárias de leveza e peso, de onde concluiu que o
éter celeste não podia ser leve nem pesado.
As
qualidades leveza e peso na
O LEGADO DEARISTOTELES PARA A IDADEMIDIA 75
região terrestre estavam associadas a movimentos rectilíneos ascendentes e
descendentes: os corpos pesados aproximavam-se da erra
quando
se
moviam naturalmente para baixo; e os corpos leves afastavam-se da Terra
quando se moviam naturalmente para cima. Na ausência de peso e leveza na
região celeste, Aristóteles inferiu que os movimentos rectilíneos não podiam
ali
ocorrer. Assim, não só era evidente pela observação que os movimentos
celestes eram circulares, como também,
de
acordo com
as
propriedades
do
próprio éter, era óbvio para Aristóteles que os movimentos rectilíneos eram
impossíveis na região celeste.
Dado que se pode observar que planetas e estrelas se movem no céu, Aristó
teles
supôs que a mudança de posição era o único tipo de mudança possível nos
céus. Os
corpos celestes mudam continuamente de posição, deslocando-se pelo
céu num movimento sem esforço, uniforme e circular. Este movimento circular
uniforme é um movimento natural, tal como os movimentos rectilíneos ascen
dentes e descendentes são naturais para os corpos terrestres. Mas enquanto os
movimentos ascendente e descendente eram movimentos terrestres contrários,
o movimento circular não tinha contrário. Aristóteles concluiu que o movi
mento circular, para o qual não havia movimento contrário, era natural para os
corpos compostos de éter celeste, para o qual não havia qualidades contrárias.
Na ausência
de
todos os contrários, a mudança, tal como era observada na
região terrestre, não podia ocorr er nos céus etéreos.
Os
corpos celestes tinham
de se deslocar eternamente através dos céus num movimento natural, uniforme
e circular. Embora mudassem de posição, a ausência de contrários impedia
variações nas suas distâncias. Aristóteles pressupôs, assim, que os corpos celes
tes nem se aproximavam nem
se
afastavam da Terra.
Aristóteles associava a mudança
à
matéria, mas negava que houvesse
mudança nos céus. Deveria concluir-se daí que os céus careciam de matéria e
que o éter celeste, independentemente do que pudesse ser, não devia ser consi
derado como matéria? Quanto a esta importante questão,
os
comentários de
Aristóteles são inconclusivos e
os
filósofos naturais da Idade Média tiveram
liberdade para reflectir sobre o seu significado. Ambas as interpretações a de
que a matér ia existia nos céus e a de que não existia tiveram os seus apoiantes.
Quer fosse quer não fosse concebido como matéria, o éter celeste levantava
outros problemas. Sendo uma substância perfeita que
se
estendia desde a
tua
até às
estrelas fixas Aristóteles parece ter considerado o éter como homogéneo,
com todas as suas partes idênticas entre
si.
Um olhar para os céus deveria ter
sido suficiente para eliminar uma tal noção. No mínimo, a região celeste consis
tia em corpos visíveis rodeados por porções de céu vazias uma configuração
7/23/2019 Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media
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761 os FUNDAMENTOS DA Cl€NCIA MODERNA NA IDADE
MÉDIA
que dificilmente poderia sugerir homogeneidade. Se os corpos celestes e o céu
vazio eram ambos compostos d o mesmo éter, porque diferiam? Porqu e eram
os planetas e as estrelas visíveis e o resto do céu, para todos os efeitos, invisí
veis? Porque variavam as suas propriedades? Talvez estas questões nunca
tivessem ocorrido a Aristóteles, por isso ele não lhes deu resposta nenhuma.
Quando este tipo de questões surgiram aos seus comentadores gregos, árabes
e latinos, estes tiveram de idealizar
as
suas próprias respostas, um destino
comum
a todos aqueles que dedicaram uma grande parte das suas vidas a des
vendar o significado dos textos de Aristóteles.
Aristóteles foi, no entanto, muito claro no que diz respeito à natureza dos
espaços celestes vazios. Estavam cheios de esferas etéreas, invisíveis, transpa
rentes, encaixadas umas nas outras e cada uma delas girava num movimento
regular e uniforme. Os corpos celestes - planetas e estrelas fixas - estavam de
algum
modo
embutidos nessas esferas que os levavam consigo. Aristóteles
baseou o seu sistema nos anteriores sistemas matemáticos de esferas concên
tricas idealizados por Eudóxio de Cnido e Calipo de Cízico
no
século IV a. C
No esquema deste último, sobre o qual Aristóteles fundou directamente a sua
cosmologia de esferas concêntricas, ao planeta Saturno,
por
exemplo, era atri
buído um total de quatro esferas que justificariam a sua posição celeste. Des
tas,
uma
dava conta
do
movimento diário de Saturno;
outra do
seu movi
mento pró prio ao longo do zodíaco, ou eclíptica; e as duas restantes represen
tavam os seus movimentos retrógrados, observados ao longo do zodíaco.
Aristóteles transformou
as
esferas matemáticas de Calipo num sistema de
orbes celestes físicos, reais, centrados na Terra e que eram coextensos com a
regiãO celeste. A fim de impedir a transmissão dos movimentos zodiacal e
retrógrado de Saturno para Júpiter, o planeta logo abaixo de Saturno , Aristó
teles atribuiu a Saturno três esferas neutralizadas que giravam em sentidos
contrários e que anulavam os movimentos das outras. A finalidade destas três
esferas era contrariar o mov imento de três das quatro esferas de Saturno, com
excepção da esfera que representava o movimento diário (como o movimento
diário era comum a todos os planetas, a cada um era atribuída uma esfera
especial destinada a dar continuidad e, admitindo-se assim que o movimento
diário fosse transmitido através de cada
conjunto
de esferas planetárias).
Como o explica D. R Dicks:
Assim, para
as
quatro esferas de Saturno, A B C e
D
postula-se uma
esfera neutralizante
D'
colocada dentro de D (a esfera mais pró xima da
Terra e que transporta o planeta no seu equador) e que roda em tomo
dos mesmos pólos e à mesma velocidade que D mas
na
direcção
O LEGADO DE ARISTÓTELES PARAA DADE
MÉDIA
77
oposta, de modo que os movimentos de D e
D' se
anulam um ao outro,
e cada pont o em D parecerá mover-se apenas devido
ao
movimento
de
C.
Dentro de D' é colocada uma segunda esfera neutralizante, C', desempe
nhando a mesma função relativamente a C que D' desempenha para D; e
dentro de C ' existe
uma
terceira esfera de movimento inverso ao de B',
que, de modo semelhante, neutraliza o movimento de
B.
O resultado
final
é
que o único movimento restante é o
da
esfera exterior do con
junto, representan do a rotação diária, de modo que as esferas de Júpi
ter (o planeta logo abaixo) podem agora descrever
as
suas próprias
revoluções com o se as de Saturno não existissem. Do mesmo modo, as
esferas neutralizantes de Júpiter abrem caminho
às
de Marte e assim
por diante (sendo o número de esferas neutralizantes, em cada caso,
menor em uma unidade
do
que o número original de esferas de cada
conjunt o) até chegarmos à Lua que, sendo o último dos corpos plane
tários (isto é o mais próximo da Terra) não precisa, de acordo com
Aristóteles, de esferas neutralizantes.'
Em vez das quatro esferas que Calipo considerou necessárias para explicar
o movimento de Saturno, verificamos que Aristóteles lhe atribuiu sete. De
modo semelhante, pensou ser necessário acrescentar esferas neutralizantes, de
movimento contrário,
às
de todos os planetas, à excepção da Lua, localizada
directamente acima da região sublunar. Aristóteles afasta-se pois
do
sistema
de Calipo de trinta e três esferas matemáticas, ou hipotéticas, para os cin
quenta e cinco orbes físicos.
Uma
questão importantíssima colocava-se de imediato: que levava os
orbes a moverem-se com
um
movimento un iforme circular, transportando os
planetas e as estrelas? Aristóteles deixou a este respeito uma herança dupla e
incompatível. No seu tratado cosmológico, Sobre os Céus recorreu a um prin
cípio interno do movimento ao descrever o éter celeste como um u
corpo
sim
ples naturalmente constituído de tal modo que mover-se
num
círculo é vir
tude da
sua
própria
natureza
(2.1.284
a. 14-15). Mas na ísica e na
Metafisica Aristóteles pressupôs que os motores espirituais externos, ou inte
ligências, eram os agentes causais dos movimentos rotativos dos orbes celes
tes. Neste esquema, Aristóteles presumiu que cada orbe tIsico tinha o seu pró
prio motor imaterial, o qual, se bem que completamente imóvel, estava eter
namente apto a fazer com que o orbe anunciado se movesse sem esforço ao
redor da Terra, num movimento circular uniforme. Estes motores uinamo
víveis
ou
uinamovidos eram únicos no
mundo
porque eram susceptíveis
de causar
movimento
sem que eles próprios estivessem em movimento.
7/23/2019 Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media
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78 os FUNDAMENTOS DA CIENCIA MODERNA NA IDADE MEDIA
A regressão potencialmente infinita de causas e efeitos para t odos os movimen
tos interrompia-se nos motores inamovidos, que eram pois as fontes últimas e
imóveis de todos os movimentos. Embora Aristóteles se referisse a ci nquenta e
cinco motores inamovidos, o seu conceito de Deus concentrava-se no motor
inamovido associado à esfera das estrelas fixas, a fronteira do mundo. Para
Aristóteles, o mais remoto dos motores inamovidos era o primei ro motor ,
que desfrutava do estatuto especial de primeiro entre iguais. No entant o, o seu
papel como motor celeste em nada diferia do dos outros motores inamovidos,
ou inteligências, como algumas vezes eram designados.
Mas
como podia
um
motor inamovido imaterial determinar que um orbe
físico
se
movesse?
Produz movimento por ser amado
foi
a resposta
de
Aristó
teles Metafisica 12.7.1072b.3-4). Aristóteles deixou por dizer precisamente o
que pretendia explicar.
Como
se relacionavam a causa motora e a coisa
movida?
Esta
sua frase de sentido obscuro não só veio pôr à prova o engenho
dos muitos comentadores subsequentes, como também originou a ideia intri
gante do amor como u ma força motriz cósmica que parece ter captado a imagi
nação de poetas e menestréis. No último verso da Divina Comédia, Dante fala
de
O
amor que move o Sol e as outras estrelas (l amor che move iI
sole
e l altre
stelle) e uma canção anónima francesa proclama O amor, o amor faz girar o
mundo
(L amour, { amour
Jait
toumer
le monde)B. E se bem que não lhe tenha
surgido qualquer contrapartida e m lingua inglesa na Idade M édia
ou
na Renas
cença, esta ideia do amor emergiu finalmente na opereta de Gilbert e Sullivan,
Iolanthe, onde ficamos a saber que
Ê
o amor que faz girar o mundo .9 Embora
não haja de modo algum a certeza de que Aristóteles seja a fonte destes senti
mentos poéticos, ele é seguramente um -
se
não o - principal candidato.
Tendo caracterizado o éter celeste como substância divina e incorruptível
e encarado a matéria terrestre como fonte de incessante mudança através da
geração e da corrupção, Aristóteles estava convencido de que a região celeste
imutável exercia
uma
influência dominante sobre a região terrestre sempre
em mudança. Era próprio de uma coisa mais nobre e perfeita influenciar uma
coisa menos nobre e menos perfeita. Daqui decorria também um reforço
poderoso da crença astrológica tradicional. Os vários modos como o dominio
celeste se efectivava viriam a alimentar as especulações dos filósofos naturais
até ao final do século XVII, altura em que a concepção do Cosmo foi radical
mente alterada. Mas, tal como com a causa do movimento celeste, Aristóteles
deixou a este respeito um legado ambíguo. Embora acreditasse que os cor
pos terrestres estavam sujeitos ao domínio celeste, acreditou igualmente que
pudessem causar efeitos por si próprios, não sendo pois meras entidades
O
LEGADO
DE ARISTOTELES
PARA
A
IDADE
MEDIA
79
passivas, dependentes de causas celestes. Como entidades compostas de mat é
ria e forma, os corpos terrestres possuíam
as
suas próprias naturezas capazes
de causar efeitos. Um corpo pesado caía para o centro da Terra não em vir
tude de qualquer poder celeste, mas porque possuía uma natureza que lhe
permitia fazê-lo sempre que não houvesse qualquer impedimento. Cada espé
cie de ser animado e inanimado tinha aspectos e propriedades característicos
que permitiam aos seus membros individuais agir de acordo com essas pro
priedades.
O responsável pela actividade celeste e pela sua influência nos assuntos
terrestres era indubitavelmente o
Sol,
cujas influências eram manifestas e pal
páveis. A sua deslocação anual ao l ongo da eclíptica originava as estações que,
por sua vez, davam origem a várias gerações e corrupções. A geração humana
dependia também do Sol, como o evidencia a muit o citada frase de Aristóteles
de que o homem é gerado pelo homem e igualmente pelo 501 .10 Aexcepção
da Lua, as provas de actividade celeste dos outros planetas eram quase inexis
tentes. No entanto, Aristóteles pressupôs que estavam também activamente
envolvidos
na
mudança terrestre. Mas foi incapaz de explicar como
as
activi
dades dos ,corpos celestes, excluindo o Sol, se relacionavam com as naturezas
independentes dos corpos terrestres. Uma vez mais, os comentadores subse
quentes ficavam entregues às suas próprias elucubrações.
A maioria das principais ideias e conceitos de Aristóteles sobre o mundo
físico acabou de ser descrita. Essas opiniões de Aristóteles contribuíram para
moldar a explicação medieval das mudanças que ocorriam na região terrestre
e esclarecer porque não ocorriam mudanças na região celeste. As ideias aqui
descritas
formam
o cerne da filosofia natural medieval, e algumas delas
impulsionaram novas áreas do pensamento. As ideias de Aristóteles não só
forneceram o esqueleto da filosofia natural medieval como também muitos
dos seus músculos e tecidos. E, no entanto, há temas sobre os quais Aristóte
les pouca orientação deixou, quer porque o tópico lhe era desconhecido, quer
porque pouco tinha a dizer a seu respeito. Noutras ocasiões, foi vago,
ou
ambíguo, e os seus comentadores tiveram de tirar as suas próprias conclusões.
Outras vezes, as suas explicações revelaram-se inadequadas e exigiram substi
tuição. Em alguns casos,
as
suas interpretações foram drasticamente modifi
cadas com base
na
experiência, como sucedeu com o seu sistema de orbes
concêntricos, ou com base na teologia cristã, como foi o caso da eternidade
do mundo. No entanto, a maioria das ideias de Aristóteles foi utilizada como
o melhor e o mais fiável guia para a compreensão da natureza e das suas
obras. Para
os
estudiosos medievais, Aristóteles era o verdadeiro Filósofo.
7/23/2019 Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media
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8
os
FUNDAMENTOS DA C I ~ N C [ MODERNA NA
IDADE
MllDIA
No seu comentário ao
Sobre
s
Céus caelo ,
Averróis prestou a Aristóteles
a mais honrosa homenagem, ao declarar que o filósofo era:
A regra e o exemplo que a natureza idealizou para mostrar a perfeição
última do homem .. os ensinamentos de Aristóteles são a suprema ver
dade, porque a sua mente era a expressão última da mente humana.
Daí que se tenha afirmado com toda a razão que foi criado e nos foi
dado pela divina providência para virmos a saber tudo o que é possível
saber-se. Louvemos a Deus por ter colocado este homem à parte de
todos os outros no que respeitaàperfeição e de lhe ter permitido apro
ximar-se tão perto da mais elevada dignidade que à humanidade foi
permitido atingir.
David Knowles, um historiador de filosofia medieval, não exagerava ao
considerar este como o mais impressionante panegírico alguma vez prestado
por um grande filósofo a outro».12 Na verdade, Averróis considerou Aristóte
les
quase infalível porque, ao longo de mil anos, não fora detectado nenhum
erro nos seus escritos.
Aristóteles era também muito admirado
no
Ocidente Latino. Dante falou
por muitos ao descrever Aristóteles como o Mestre daqueles que sabem .
São Tomás de Aquino encarava Aristóteles como alguém que atingira o nível
mais elevado do pensamento humano sem o beneficio da fé cristã. Poderia
supor-se que, com tão reverentes atitudes, os estudiosos medievais teriam
tentado permanecer tão próximo quanto possível do grande mestre. Mas,
pelos motivos já aduzidos, afastaram-se frequentemente. No capítulo 6 irei
descrever o modo como os discípulos e os admiradores medievais de Aristóte
les modificaram e expandiram a sua filosofia natural, mesmo defendendo os
seus prindpios básicos e permanecendo fiéis ao seu espírito. Antes, porém,
descreverei a introdução turbulenta da filosofia natural aristotélica na Europa
duran te o século XIII.
ENSINAMENTOS
ARISTOTIlLICOS
E osTEOLOGOS
81
5 O acolhimento e o impacto dos ensinamentos
aristotélicos e a reacção da Igreja e dos seus
teólogos
Existiam importantes pontos de conflito entre a doutrina da Igreja e
as
ideias defendidas nos livros de filosofia natural de Aristóteles. A introdução
das obras de Aristóteles na Cristandade Latina no século XIII era potencial
mente problemática para a Igreja e
os
seus teólogos. O choque, que era quase
inevitável, não tardou e parece ter sido particularmente violento na Universi
dade de Paris, que possuía a maior escola teológica da Idade Média Latina e
uma das melhores e maiores faculdades de artes. No entanto, nunca se deverá
permitir que o conflito que se gerou obscureça o facto mais importante, ou
seja, que as obras traduzidas de Aristóteles foram entusiasticamente acolhidas
e muito respeitadas, tanto por mestres em artes como por teólogos. Na reali
dade, a filosofia de Aristóteles foi tão calorosamente recebida que,
por
muito que o tentassem, as forças contra ela reunidas viram-se incapazes de
prevalecer.
Condenação de
1277
A luta contra Aristóteles concentrou-se na Universidade de Paris e nos
seus arredores. Em
1210,
pouco depois de as obras de Aristóteles sobre filoso
fia natural terem ficado disponíveis em latim, o sínodo diocesano de
Sens
decretou que os livros de Aristóteles sobre filosofia natural e todos os seus
comentários não podiam ser lidos em Paris, quer em público quer em pri
vado, sob pena de excomunhão. Confinada
à
região de Paris, esta interdição
foi repetida em 1215 especificamente para a Universidade de Paris. A 13 de
Abril de 1231, a mesma interdição foi modificada e recebeu uma sanção do
papa Gregório
IX
que, numa famosa bula, Parens scientiarum (frequente
mente chamada, por outras razões, Magna Carta da Universidade de Paris),
ordenou que os tratados ofensivos de Aristóteles
fossem
expurgados de erro,
para essa tarefa nomeou a
3
de Abril uma comissão de três individuos. Por
motivos até hoje desconhecidos, a comissão papal não chegou a apresentar
7/23/2019 Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media
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821 os FUNDAMENTOS DA ClllNCIA MODERNA NA IDADE MWIA
qualquer relatório e a ordem para que os livros de Aristóteles fossem
expurgados nunca foi levada a cabo. Curiosamente, em
1245,
o papa Inocên
cio IV estendeu a interdição à Universidade de Toulouse,
de
onde fora feito
anos antes 1229) um convite endereçado a mestres e estudantes para ali se
dirigirem, dado que os livros de Aristóteles, proibidos e m Paris, eram aí estu
dados livremente. A interdição lançada em Paris sobre os livros de Aristóteles
sobre filosofia natural esteve em vigor durante aproximadamente quarenta
anos, até 1255.
Ao que parece, só as obras sobre ética e lógica de Aristóteles
eram ensinadas publicamente em Paris; apesar da interdição pública e pri
vada, as obras sobre física e filosofia seriam provavelmente lidas
em
privado.)
Nesse ano, u ma lista dos textos utilizados em cursos na Universidade de Paris
incluía todas as obras disponíveis de Aristóteles. As restrições, pesadas mas
impraticáveis, impostas aos estudiosos parisienses tinham chegado ao fim e
estes podiam agora desfrutar dos mesmos privilégios que os seus colegas de
Oxford a quem nunca tinha sido negado o direito de estudar e de comentar
todas as obras de Aristóteles durante os longos anos de p roibição em Paris.
Durante
as
décadas de 60 e
70
do
século XIII, desenvolveu-se em Paris
uma segunda fase da luta. Inspirados por São Boaventura Giovanni Fidanza)
1221-1274),
teólogos conservadores procuraram limitar a filosofia aristoté
lica, que constituía o cerne do novo conhecimento pagão e arábe.
Já
passara
há
muito o tempo em que uma simples interdição à leitura das obras de Aris
tóteles podia ser implem entada Com alguns resultados. Em vez de interdita
rem obras, os teólogos conservadores tentaram resolver o pr oblema pela con
denação de ideias que pensavam ser perigosas e ofensivas. Qua ndo se tornou
evidente que os seus repetidos avisos sobre os perigos da filosofia secular eram
inúteis, os teólogos tradicionalistas apelaram para o bispo de Paris, Etienne
Tempier, que, em
1270,
interveio e condenou treze artigos que provinham
quer dos ensinamentos de Aristóteles quer dos comentários de Averróis às
suas obras. Em
1272,
os mestres
em
artes
da
Universidade
de
Paris instituíram
um juramento que os obrigava a evitar a consideração de questões teológicas.
Se, por qualquer motivo, um mestre em artes se sentisse incapaz de evitar um
problema teológico, o
seu
juramento obrigava-o ainda a resolvê-lo em favor da
fé.
A intensidade da controvérsia foi sublinhada na obra Erros dos
Filósofos
de
Giles de Roma, escrita entr e
1270
e
1274,
na qual se encontrava compilada uma
lista de erros retirados das obras de Aristóteles, Averróis, Avicena, Al-Ghazzali
Abu-Hamid Muharnrned al-Ghazzali), al-Kindi e Moisés Maimonides, filóso
fos não cristãos. Quando estas medidas de contenção se revelaram incapazes de
resolver a agitaçãO, o papa João XXI deu instruções ao bispo de Paris, ainda
ENSINAMENTOS ARlsTOttLlCOSE
s
TEÓLOGOS
83
Etienne Tempier, para que tomasse providências. Após três semanas, em Março
de 1277, Tempier, baseando-se na opinião dos seus consultores teológicos, pro
clam ou a espectacular condenação de duzento s e dezanove teses.
Embora a lista de artigos cond enados pelas autoridades teológicas tivesse
sido organizada
à
pressa, sem
ordem
aparente e com pouca atenção pelos
aspectos de consistência
ou
repetição, muitos dos artigos eram relevantes para
a ciência e para a filosofia natural. C ontudo, a conde nação de um artigo não
significava que fosse controverso no âmbito da filosofia natural.
As
autorida
des podiam apenas ter exagerado a sua importância ou simplesmente tê-lo
considerado potencialmente perigoso para discussão pública. Na realidade,
alguns artigos condenados podiam nem ter sido expressos por escrito, mas
talvez apenas pronunciados em debates públicos ou em conversas privadas.
Mais ainda, a inclusão de um artigo pode ter-lhe conferido uma importância
que de outro
modo
nunca teria alcançado. A maioria dos duzentos e deza
nove artigos condenados em 1277 reflectia questões que estavam directa
mente associadas com a filosofia natural de Aristóteles e
por
conseguinte,
essa condenação fazia parte
da
recepção aos ensinamentos de Aristóteles.
Antes de nos debruçarmos sobre essas questões específicas, é essencial des
crever uma luta interdisciplinar acesa que decorreu
no
século XIII, envol
vendo a faculdade de artes e a faculdade de teologia. A questão consistia em
determinar se a faculdade
de
artes
tinha
direito a
um
estatuto igual ao da
faculdade de teologia. O contlito exprimiu-se de variadas maneiras, mas em
nenhuma de forma tão básica como
na
luta inultrapassável entre razão e reve
lação. A razão era o modo de análise em filosofia, considerada frequentemente
equivalente às ciências teóricas, a maioria das quais só
se
tornaria uma disci
plina independente no século XVII, ou mais tarde. Os mestres em artes con
trolavam o domínio da razão
e
por conseguinte, da filosofia. Mas
os
teólogos
controlavam o domínio da revelação e não será difícil compreender porque
detinham
uma
posição superior n uma sociedade dominada pela religião.
Na sua maior parte, os teólogos
do
século XIII estavam convencidos de
que a revelação era superior a todas as formas de conhecimento e por conse
guinte subscreviam a
doutrina
tradicional que considerava o conhecimento
secular como auxiliar da teologia. São Boaventura, um dos teólogos mais
importantes do século XIII, dedicou todo um tratado à defesa da tese de que
os temas seculares ensinados na faculdade de artes da Universidade de Paris
estavam subordinados à disciplina de teologia ensinada na faculdade de teolo
gia. No tratado Da Redução das Artes à
Teologia De
reductione artium ad
theologiam , São Bonaventura procurou demonstrar que a teologia é a rainha
7/23/2019 Os Fundamentos Da Ciencia Moderna Na Idade Media
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84 os
FUNDAMENTOS DA CIWCIA MODERNA NA
IDADE MÉDIA
das ciências porque, em última análise, todo o ensino e conhecimento
depende da iluminação divina da Sagrada Escritura, cujo estudo é
do
domínio
exclusivo de teólogos. No mund o de São Boaventura, como
no
de muitos teó
logos, a fé e a razão estavam harmoniosamente unificadas, a primeira guiando
e inspirando a segunda.
Os professores das faculdades de artes de Paris e das outras universidades
tinham uma visão radicalmente diferente quanto à relação da sua disciplina
com a teologia. No sentido mais lato, ensinavam filosofia que, embora
incluisse as sete artes liberais como temas introdutórios, era constituída prin
cipalmente por metafísica, filosofia natural e filosofia moral. Dado que a filo
sofia no seu todo se baseava quase totalmente nos escritos de Aristóteles, os
professores das faculdades de artes,
na
sua maioria, consideravam-se seguido
res de Aristóteles e encaravam este filósofo como a personificaçãO da análise
racional. Na verdade, os seus meios de subsistência baseavam-se na explicação
das ideias e dos pensamentos de Aristóteles. Como demonstração de respeito,
os autores escolásticos medievais referiam-se geralmente a Aristóteles pelo
título honorífico de Filósofo
philosophus).
Encaravam-se a si próprios
como guardiões da razão e tinham orgulho no seu papel como filósofos. Se
não tivessem sido restringidos, os mestres em artes teriam provavelmente
aplicado a razão a todos
os
ramos do conhecimento, incluindo à teologia. Na
realidade. muitos deles teriam seguido a razão até
às
suas últimas consequên
cias. mesmo que colidisse com a revelação, embora, no final,
se
submetessem
à revelação com base na
fé.
De qualquer modo, encaravam a filosofia como o
instrumento apropriado para compreender o mundo. Para eles, este facto jus
tificava a sua independência em relação à teologia
e
por isso, lutaram pela sua
autonomia (para mais informação sobre este assunto, ver Capítulo 8).
Embora
os
teólogos estivessem, eles próprios, interessados na filosofia (e na
filosofia natural), e muitos a encarassem como urna disciplina distinta da teo
logia, a maioria atribuía-lhe o estatuto de subalterna. Durante o século XIII, o
primeiro século da institucionalização
da
filosofia natural aristotélica na
Europa Ocidental, as tensões entre estas duas disciplinas universitárias e as
suas faculdades indepe ndentes er am quase inevitáveis.
A disputa é evidente em pelo menos três controvérsias principais, as quais
disseram respeito I) à eternidade do mundo, (2) à chamada doutrina da
dupla verdade e (3) ao poder absoluto de Deus. O atrito interdisciplinar que
dividiu teólogos e filósofos naturais era composto de rivalidades intradisciplina
res entre
os
próprios teólogos. Os neoconservadores agostinhos acirravam-se
contra os dominicanos seguidores de São Tomás de Aquino,
os
primeiros
ENSINAMENTOS ARlSTOTÉUCOS E
os
TEÓLOGOS 85
preocupados com a demasiada confiança que
os
dominicanos depunham na
filosofia aristotélica e os segundos determinados em procurar obter uma har
monização entre razão e revelação. Entretanto, os próprios artigos condena
dos ilustram bem
as
controvérsias que oc orreram nos finais do século XlII.
Os três artigos seguintes confirmam a hostilidade entre mestres em artes e
teólogos:
152. Que as discussões teológicas são baseadas em fábulas.
153. Que nada é mais conhecido por se conhecer teologia.
154. Que
os
únicos homens sábios do mundo
são
filósofos.
Se os mestres em artes mantinham tais opiniões, e alguns ao que parece
fizeram-no, podemos calcular o sentimento de ultraje e a animosidade que os
teólogos manifestaram. A partir de 1220, ou até mesmo antes, as autoridades
eclesiásticas preocuparam-se com o facto de a filosofia estar a penetrar rapi
damente,
e
talvez mesmo, a dominar a teologia. O papa Gregório IX tentou
preservar a relaçãO tradicional entre teologia e fllosofia, com a segunda a
actuar como auxilíar da primeira. Na realidade, Gregório reflectia uma
enorme preocupação, que vinha desde os doutores da Igreja, de que
os
esfor
ços para fortalecer a é com a razão natural fossem potencialmente perigosos,
pois implicavam que, de algum modo, a
fé
não conseguia manter-se
só
por
si.
Em 1228, Gregório
IX
orden ou em Paris q ue os mestres teológicos excluíssem
a filosofia natural da sua teologia.
A interdição de Gregório
IX
não prevaleceu. A filosofia começou a ser gra
dualmente reconhecida como uma disciplina autónoma, sendo Aristóteles a
sua autoridade principal
do
mesmo
modo
que os santos padres eram autori
dades em teologia, e
as
críticas contra o uso da filosofia natural em teologia
desvaneceram-se, embora ressurgissem de tempos a tempos,
IJlas
sempre em
vão. Talvez mais do que qualquer outro, São Tomás de Aquino procurou
definir a relaçãO entre teologia e filosofia. Fê-lo tomando cada uma como
uma
ciência independente. Os princípios fundamentais da teologia são os
artigos da fé ao passo que os princípios da filosofia
se
fundam
na
razão natu
ral. Por conseguinte, os artigos da
fé
não podem ser demonstrados pela razão.
Se a teologia e a filosofia são ciências independentes, concluir-se-á daí que
aqueles que
se
dedicam à filosofia não devem teologizar e que aqueles que
estudam teologia não devem filosofar? Relativamente
à
teologia,
São
Tomás
acreditava que um teólogo deveria servir-se da lógica, da filosofia natural e
da metafísica na medida em que o considerasse necessário, embora não
aprovasse que se teologizasse em filosofia.
Ao
estabelecer a teologia como
uma ciência independente,
São
Tomás concedia implicitamente autonomia à
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86 os
FUNDAMENTOS DA CIENCIA MODERNA NA IDADE MeDIA
filosofia daí, também à filosofia natural) como ciéncia, embora a encarasse
ainda como subordinada à teologia. No conflito iniciado no século XII, a teo
logia mantinha a supremacia face
à
filosofia. Até ao século XVII, as verdades
da fé, reveladas e não demonstradas, t inham prioridade definitiva sobre
as
verdades demonstradas pela razão.
Eternidade do mundo
Durante a década de 60 do século XIII, alguns dos mestres em artes, ou
filósofos, exerciam já a autonomia na sua disciplina, ao raciocinarem unica
mente em termos de princípios naturais. Mas era difícil permanecer indife
rente
ao
impacto teológico das suas conclusões, como se verifica em relação à
primeira das três questões controversas atrás mencionadas, nomeadamente, à
eternidade do mundo. Esta questão era, para
as
relações entre ciência e reli
gião na Idade Média, o que a teoria heliocêntrica de Copérnico veio a ser nos
séculos XVI e XVII, e a teoria da evolução de Darwin nos séculos
XIX
e XX.
A partir dos argumentos no final do primeiro livro
Sobre
os
Céus,
Aristóte
les
concluiu, logo no início do segundo livro, que o mundo no seu todo não
foi gerado e não pode ser destruido, como alguns alegam, antes
é
único e
eterno, não havendo princípio nem fim para toda a sua vida .l Na medida em
que Aristóteles baseava a sua filosofia natural na firme convicção de que o
mundo é eterno, havia aí uma forte ameaça à narrativa da Criação no Génesis.
A comprovar que a eternidade do mund o era encarada como potencialmente
perigosa, vinte e sete dos duzentos e dezanove artigos condenados em 1277
(mais de dez por cento) eram dedicados
à
sua denúncia. A eternidade do
mundo manifestava-se assim sob muita s formas. P or exemplo, o artigo 9 con
denava a proposição segundo a qual não houve um primeiro homem, nem
haverá um último; pelo contrário, sempre houve e sempre haverá a geração
do homem pelo homem ; o artigo
98
condenava a proposição de que o
mundo é eterno porque aquilo que tem uma natureza pela [actuação da] qual
poderia existir por todo o futuro, [certamente] tem uma natureza pela [actua
ção da] qual poderia ter existido por tod o o passado ; e a tese do artigo 107 de
que os elementos são eternos mas que foram feitos [ou criados] de novo na
relação que hoje apresentam foi igualmente condenada.
Levando em linha de conta que
as
autoridades teológicas condenaram a
eternidade do mundo em vinte e sete versões diferentes, poderiamos esperar
descobrir que a crença na eternidade do mundo estava muito espalhada. Mas
a verdade é que não há registo de alguém que tenha
m ntido
essa opinião
ENSINAMENTOS
ARISTOTt:uCOS E OS TEOLOGOS I8
herética sem reservas. Porque teriam então as autoridades condenado vinte e
sete artigos para impedir que se disseminasse uma proposição que ninguém
parecia advogar explicitamente? Embora seja possível que algumas destas pro
posições, ou todas elas, tenham sido defendidas em privado e que o tema
fosse do conhecimento comum, um resposta mais provável é a que decorre
d s
respostas
às
afirmações sobre a eternidade do mundo, como é evidente
nas reacções dos dois mestres em artes mais conhecidos do século XIII, Boé-
cio de Dácia f. após 1283) e Siger de Brabante (f. ca. 1284), os quais trocaram
a França pela Itália após a promulgação da Condenação de 1277.
Boécio e Siger escreveram, cada um, um tratado sobre a eternidade do
mundo, e Boécio também abordou este terna na obra Questões sobre a ísica
Quaestiones super libras Physicorum).
No tratado
Sobre a Eternidade do
undo De aeternitate mundi), Boécio argumenta que nenhum filósofo podia
demonstrar que alguma vez tivesse surgido um primeiro movimento e daí
que um início do mundo não seja determináveL Todavia, a eternidade do
mundo
é
tão pouco demonstrável como a sua criação. Embora não se pudesse
apresenta r uma prova aceitável para qualquer destas duas afirmações, Boécio
insistiu em que não há contradição entre a
fé
cristã e a filosofia. A
fé
deve pre
valecer. E conclui que:
o mundo não é eterno, antes foi criado de novo, embora .. isto não
possa ser demonstrado por argumentos, tal como
se
pode afirmar de
outras coisas respeitantes à fé. Porque, se pudessem ser demonstradas,
não pertenceriam à
fé,
mas à ciência. [
..
] Há muitas coisas na
fé
que
não podem ser demonstradas pela razão, como [por exemplo] que
uma pessoa morta renasce exactamente como era antes, e que uma
coisa gerada regressa sem geração. E quem não crê nestas coisas é um
herético;
[e]
quem tenta conhecer estas coisas pela razão é um 10uco.
2
Contudo, nas Questões Sobre a Física, escrito aproximadamente na mesma
altura, Boécio defende que a matéria-prima é eterna
e,
por conseguinte, tem
de ser co-eterna com Deus. Na verdade,
Deus
tem de ser encarado como o
criador da matéria-prima. Para Boécio, esta conclusão decorria logicamente
da aplicação da razão ao funcionamento do mundo. Neste contexto, Deus
continua a ser considerado o criador tanto da matéria como do mundo, mas a
matéria criada
é,
mesmo assim, eterna.
Siger argumentou de modo semelhante. O mundo e as suas espécies não
podem ter sido criados, porque nenhuma espécie poderia ser tornada real a
partir de um estado prévio de potencialidade
e,
por conseguinte, cada espécie
deve ter existido previamente. Embora a razão o levasse a esta conclusão, que
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os
FUNDAMENTOS DA CIllNCIA MODERNA
NA IDADE
MllDIA
parecia proclamar a eternidade do mundo, Siger tentou precaver-se contra
possíveis acusações de heresia, insistindo em afirmar que "nós dizemos estas
coisas como sendo a opinião do Filósofo [isto
é
Aristóteles], embora sem
as
asseverar como verdadeiras".3 Onde os ditames da fé entravam em conflito
com
as
conclusões de Aristóteles, a
fé
devia prevalecer.
A atitude de Boécio e de Siger era provavelmente semelhante
à
de outros
-
talvez
de muitos - mestres em artes de finais do século XIII e
foi
exposta, no
século XIV por João de Jandun, um famoso e controverso mestre em artes.
Quando a doutrina da Igreja entrava em conflito directo com as conclusões da
filosofia natural de Aristóteles - como sucedia na questão da eternidade do
mundo
-, os
mestres em artes cediam perante a teologia e a
fé. Na
realidade,
como já vimos,
os mestres em artes de Paris estavam obrigados a fazê-lo por
juramento desde
1272
um requisito que permaneceu efectivo até ao século
XV.
Mesmo
entre os
teólogos, havia opiniões contrárias. São Tomás de
Aquino, um dos teólogos mais importantes, afastou-se dos seus colegas con
servadores e adoptou uma posição semelhante à de Boécio de Dácia. Tal
como Boécio, São Tomás de Aquino negou que qualquer demonstração ade
quada pudesse ser formulada em favor quer da criação quer da eternidade.
Por conseguinte, é forçoso admitir que a eternidade do mundo é uma possibi
lidade (no que respeita aos argumentos de
São
Tomás de Aquino, ver Capí
tulo 6). Para o bispo de Paris e para os teólogos tradicionalistas de igual opi
nião, os argumentos propostos por Boécio, Siger e São Tomás de Aquino
devem ter parecido suspeitos. Pareciam conferir respeitabilidade à crença na
eternidade do mundo, ao mesmo tempo que minavam a confiança na sua
criação.
E
no entanto, com base na fé os três proclamavam a sua crença na
criação do mundo tal como é descrita no Génesis. Como o exprimiu São
Tomás de Aquino: "Que o mundo teve
um
princípio .. é um dogma de
fé
mas não de demonstração ou de ciência. 4
Doutrina da dupl a verdade
A atitude que os mestres em artes assumiam quando
se
vergavam perante
a fé deixava os teólogos inquietos e desconfiados. Defendiam, e muitas vezes
declararam explicitamente, que
as
verdades da filosofia natural, baseadas na
aplicação da razão natural aos princípios apriorísticos e à experiência senso
rial, não
se
podiam conciliar com
as
verdades da fé. Nestas circunstâncias, a fé
tinha de ser defendida. Mas era-o de forma ambígua, porque
os
mestres em
ENSINAMENTOS ARlSTOTl uCOS EOS TEÓLOGOS
89
artes deixavam geralmente intactas as conclusões racionais da filosofia natu
ral, mesmo quando proclamavam
as
correspondentes verdades da fé. Se por
exemplo, a eternidade do mundo era considerada uma conclusão apropriada
em filosofia natural, não deixava no entanto de ser contrária
à
fé e devia, por
conseguinte, ser rejeitada. Nestas circunstâncias, era evidente que os argu
mentos a favor da eternidade do
mundo
não tinham sido rejeitados
por
serem imperfeitos, mas apenas porque eram contrários à
fé.
Isso dava a
impressão de existirem duas verdades, uma para a filosofia natural e outra
para a fé. Uma
vez
que os mestres em artes se abstinham geralmente de conci
liar os princípios e as conclusões de Aristóteles - em que presumivelmente
acreditavam - com
as
verdades da fé poder-se-ia dizer que estavam, ainda
que de forma subtil, a defende r a causa de Aristóteles. No minimo, parece que
transmitiram aos teólogos a impressão de que subscreviam uma doutrina de
dupla verdade, como
se
torna evidente na Condenação de 1277. No prólogo à
condenação, o bispo de Paris menciona brevemente uma doutrina da dupla
verdade ao denunciar aqueles que dizem que "as coisas são verdadeiras de
acordo com a filosofia, mas não de acordo com a
fé
católica; como
se
pudes
sem existir duas verdades contrárias".5 Como exemplo do que pretendia sig
nificar, o bispo podia apontar o artigo 90 que condenava
os
que acreditavam
que um filósofo natural devia negar em absoluto a novidade [isto
é
a cria
ção] do mundo porque
ele
deve ater-se a causas naturais e a razões naturais.
Os fiéis contudo, podem negar a eternidade do mundo porque devem ater-se
a causas sobrenaturais."
Embora possa parecer que alguns mestres em artes tenham estado próxi
mos de aceitar implicitamente uma dupla verdade, ainda não
se
identificou
nenhum que acreditasse literalmente
numa
doutrina da dupla verdade.
Porém, com base no que ficou dito, podemos compreender o motivo pelo
qual muitos teólogos podem ter pensado que
Boécio
de Dácia, Siger de Bra
bante e outros - incluindo mesmo um dos seus, São Tomás de Aquino - acre
ditavam realmente na eternidade
do
mundo, mesmo quando proclamavam a
sua fidelidade ao dogma cristão da Criação. Isto torna-se óbvio na descrição
feita por Armand Maurer acerca da abordagem de Boécio de Dácia
à
eterni
dade do mundo:
Para que existissem duas verdades contrárias, a verdade cristã de que o
mundo não é eterno teria de se opor a uma verdade filosófica de que o
mundo é eterno. Mas é em vão que, no tratado de Boécio, procuramos
a afirmação de que a eternidade do mundo é filosoficamente verda
deira. É-nos simplesmente dito que tal decorre dos principios da
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9 os FUNDAMENTOS DA CItlNCIA MODERNA NA IDADE MIDIA
filosofia natural. Num ponto, Boécio afirma que decorre das verdades
das causas naturais ; mas a conclusão
em
si não é afumada explicita
mente como verdadeira. Boécio chega
muito
perto de afirmar
uma
verdade dupla mas no entanto evita fazê-lo tão declaradamente, que só
podemos concluir que o terá feito de form a deliberada. Tal como Siger
de Brabante, Boécio parece ter o maior cuidado em não colocar a fé e a
filosofia em contradição aberta no domínio
da
verdade.
E,
contudo,
aproxima-se tanto de o fazer que nos
é-fácil ver por que motivo foi
condenado pelo bispo de Paris.
6
limitações ao poder absoluto de Deus
Das três principais controvérsias anteriormen te apontadas, a terceira, a con
testação do poder absoluto de Deus, pode ter sido considerada como a poten
cialmente mais subversiva para as tradições teológicas. Dispersas pelas obras de
Aristóteles, havia proposições e conclusões que demonstravam a impossibili
dade natural de certos fenómenos. Por exemplo, Aristóteles demonstrara que
era impossível um vácuo ocorrer naturalmente dentro ou fora do mundo e
demonstrara também a impossibilidade de que pudessem existir naturalmente
outros mundos, além do nosso. Os teólogos vieram a encarar estas afirmações
aristotélicas
de
impossibilidades naturais como restrições
ao
poder absoluto
de
Deus para fazer o que lhe aprouvesse. Porque não haveria Deus de poder criar
um
vácuo dentro ou fora
do
mundo, se escolhesse fazê-lo? Porque não haveria
de criar outros mundos, se escolhesse
fazê-lo?
O artigo 147 reveIa a atitude do
bispo de Paris e dos seus colegas quando denunciou como errónea a opinião de
que Deus não pod ia fazer o que era natural mente impossível. Os artigos seguin
tes da Condenação de 1277 faziam parte daqueles que impunham limites ao
poder absoluto de Deus:
7
21. Que nada acontece por acaso, mas todas as coisas ocorrem necessaria
mente e que todas as coisas futuras existirão necessariamente, e aquelas
que não existirão ser-lhes-á impossível existir ..
34. Que a primeira causa [isto é, Deus) não poderia fazer vários mundos.
35. Que sem
um
agente adequado, como um pai e um homem, um homem
não podia ser feito [apenas) por Deus.
48. Que Deus não pode ser causa de um novo acto [ou coisa), nem Ele pode
produzir
algo
de novo.
ENSINAMENTOS R I S T O T ~ U C O S E OS TEOLOGOS
191
49. Que Deus não poderia mover os céus [ou mundo)
num
movimento
rectilíneo, porque deixaria um vácuo.
139. Que
um
acidente existindo sem um sujeito não é um acidente, excepto
equivocamente;
[e]
que é impossível que urna quantidade ou dimensão
exista por
si
própria porque isso tomá-Ia-ia uma substância.
140. Que fazer com que um acidente exista sem
um
sujeito é um argumento
impossível que implica uma contradição.
141.
Que Deus não pode fazer existir um acidente sem
um
sujeito, nem
fazer com que várias dimensões existam simultaneamente [no mesmo
lugar).
Poderiam citar-se muitos mais artigos limitativos do poder de Deus.
Todos eram condenados p orque as autoridades teológicas queriam que todas
as pessoas aceitassem que o poder de Deus era infinito, desde que não
entrasse em contradição lógica. Ao condenar a opinião de que Deus não
podia criar outros mundo s, o artigo 34 decretava que Deus podia criar tantos
mundos quantos quisesse. Embora
não
se pedisse a ninguém para acreditar
que Deus tinha criado outros mundos, o efeito do artigo 34 sobre a filosofia
natural era o de encorajar a especulação sobre as condições e as circunstâncias
que prevaleceriam se Deus tivesse realmente criado out ros mundos. O artigo 49
negava a Deus a capacidade de fazer mover o céu extremo
e,
por conseguinte,
o próprio mundo,
num
movimento rectilíneo, porque tal movimento teria
deixado
um
vácuo depois de o mundo sair da sua posição actual.
De
acordo
com a condenação do artigo 49
em
1277, os filósofos naturais escolásticos
admitiram ordeiramente que, se tal aprouvesse a Deus, Ele podia na verdade
mover o mundo rectilinearmente.
Nos artigos 139, 140 e 141, as autoridades condenaram o principio aristo
télico, na aparência evidente em si mesmo, de que um acidente não podia
existir sem
um
sujeito,
ou
uma
substância, a que era inerente e que Deus não
podia criar um acidente, ou qualidade, que não
fosse
inerente a um sujeito ou
substância. Condenaram ainda (nos artigos
139
e
141
o axioma aristotélico
segundo o qual nem quantidad e nem dimensão podiam existir independente
mente de um corpo material e denunciaram também o princípio aristotélico,
igualmente fundamental, de que du as ou mais dimensões não podiam existir
em simultâneo no mesmo lugar. Os artigos 139, 140 e 141 não só se qualifica
vam como colocando limites ao poder de Deus, mas negavam também a Deus
o poder de efectivar o dogma teológico da Eucaristia, no qual Deus transfor
mava miraculosamente o pão e o v inho usados na missa no corpo e sangue
de
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