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VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN∕ 1808-8716 Cardoso. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 4(gt27):1-16
Os invisíveis da ciência no Brasil, da periferia parao centro da controvérsia. Um olhar sociotécnico –o “mundo” corporativo a frente do “mundo”acadêmico
G27 - Controvérsias insurgentes e ciências emergentes
Maria Cristina de Oliveira Cardoso
VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716 Cardoso. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 4(gt27):1-∕ 16
Introdução
Ao iniciar o mestrado, no início de 2017, após mais de 30 anos de trabalho no
“mundo”1 corporativo, não imaginei encontrar um mundo tão familiar. Devido às primeiras
semelhanças encontradas, optei por trazer os mundos corporativos para dentro da pesquisa.
Durante este primeiro período de estudos, procurei um caminho onde fosse possível mostrar
um pouco da multidisciplinaridade dos mundos corporativos, mundos para onde também
convergem vários saberes e várias ciências. A opção pela abordagem dos Estudos CTS
(Ciências, Tecnologias e Sociedades) deu-se a partir da observação de como os mundos
corporativos se ajustariam à teoria, pelo menos no que se refere a ter um “olhar”
sociotécnico. Nos mundos corporativos, por exemplo, pelo que pude observar, lidar com
multiplicidade de narrativas onde contexto e conteúdo se confundem, é, muitas vezes, uma
questão de sobrevivência do negócio. Um exemplo desta possibilidade de ajuste à teoria
seria o projeto FIAT Mio. Iniciado em 2009, com o sugestivo slogan “um carro para chamar
de seu”, o projeto é uma plataforma de experiência da marca que começou com uma
criação colaborativa do carro-conceito. O carro-conceito foi apresentado, aqui no Brasil, no
salão do automóvel de 2010. Este projeto ajudou a repensar a indústria (BUENO,
BALESTRIN, 2012).
1 Aqui a palavra mundo é utilizada para sugerir a dimensão do mercado corporativo
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Figura 1: Carro-conceito MIO –fonte:<https://carros.uol.com.br/album/2010_conceitos_salao_album.htm
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Além disto, dentro dos mundos corporativos se vislumbra o desenvolvimento de uma
ciência que aqui chamarei de “ciência do cotidiano”, ciência esta que muitas vezes não é
considerada como tal, mesmo dentro das próprias empresas. As adaptações necessárias
nas tecnologias e técnicas utilizadas (em sua maioria importadas), desenvolvidas por
profissionais (cientistas invisíveis) de dentro das empresas, são muitas vezes tachadas, nas
próprias empresas e fora delas, de gambiarras, invencionices, estudos “não científicos” ou
mesmo consequência de “processos”2. Ainda persiste uma imagem idealizada dos países
que tomamos como modelo: “buscando o esperado, não encontram o realizado”
(FIGUERÔA, 1995, p.17)
Produziram assim categorias analíticas para uma “historia dos vencedores”, deixando de lado a“história cotidiana” das ciências, que constitui, na verdade, a maior parte do processo. Penso que épossível um novo olhar para as atividades científicas desenvolvidas no Brasil, até hoje poucovalorizadas. Sem esquecer, contudo, que sempre estiveram balizadas pelo marco da condiçãocolonial do país(...).(FIGUERÔA, 1995, p.17)
Dentro das empresas, esta “ciência do cotidiano”, realizada na sua maioria em
“laboratórios” regionais, é por vezes ignorada pelo “mainstream” da própria empresa ou se
perde na burocracia. Quando o produto se estabelece, as inscrições (LATOUR,2000,p.112)
que deram forma ao mesmo, perdem a importância. Informações, conhecimentos tácitos,
contribuições da sociedade, desaparecem no meio dos papéis e lucro, e só serão
resgatados, por estes mesmos “cientistas invisíveis” em um próximo projeto, se forem
necessários. Quase sempre, apenas parte deste conhecimento ficará na mente dos
engenheiros, técnicos e colaboradores, e os mesmos darão continuidade a tradição oral de
passagem de um conhecimento, ou daquilo em que ele se transformou.
Outro ponto que despertou meu interesse foi: em um país tão múltiplo em sua cultura
e com tanta diversidade como o Brasil, pouco se usa, como referência, trabalhos de
2 Processo: todo o desenvolvimento, modificações, adaptações e adequações necessárias para a implantação de equipamentos e materiais, na sua maioria importados, para se adequarem a um projeto.
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cientistas brasileiros (boa parte das referências que encontrei em minhas leituras, até agora,
são provenientes de autores da Europa e dos Estados Unidos).
Sem pretender esgotar o assunto em questão, este trabalho se dispõe a dar voz a um
grupo de “cientistas invisíveis” dos mundos corporativos, sediado no norte do Brasil,
participante de um projeto vultoso (instalação de cabo subfluvial) e de grande importância
para uma empresa, no ano de 2010. Pretende-se dar visibilidade para as inúmeras
associações entre elementos heterogêneos trazidos por diversos “atores” envolvidos que se
encontram em cena (em um determinado lugar e em um determinado tempo), durante a
construção do fato tecnológico. Trarei a visão deste grupo de cientista, as primeiras
traduções para a sociedade local, as dificuldades e os desvios necessários.
A Pesquisa
O projeto escolhido, de 2010, é o da travessia do rio Amazonas por um cabo
subfluvial realizado por uma empresa de telecomunicações. Este foi um projeto
multidisciplinar, onde foi necessário o envolvimento de vários saberes. Até então a empresa
tinha conhecimento de lançamento de cabo submarino; era a primeira vez que lançaria um
cabo subfluvial. Mas, sendo um projeto corporativo, as traduções, as adequações,
adaptações das tecnologias, não ficaram documentadas como desenvolvimento de técnicas
por não serem consideradas importantes naquele momento ou mesmo por serem
consideradas consequências da implantação do projeto. Engenheiros de diversas áreas,
técnicos, ambientalistas, colaboradores e a sociedade local participaram das etapas do
projeto, onde os saberes foram se misturando e se complementando.
Para a pesquisa, dentro de uma abordagem de Estudos de Ciência Tecnologia e
Sociedade (CTS), será exposto um dos “nós” do projeto que é o momento da chegada de
engenheiros e técnicos (“cientistas”) na Ilha da Marchantaria, no rio Solimões (o projeto de
travessia incluía a implantação de um anel óptico na Ilha da Marchantaria). Será focado o
trabalho dos engenheiros e técnicos locais (que não se encontram no eixo Rio-SP-Brasília),
nas necessidades de estudos para adaptações das técnicas e no envolvimento dos mesmos
nestes estudos. Serão revisadas as primeiras traduções para a apresentação do projeto à
comunidade, como os “cientistas” aproveitaram o conhecimento tácito desta comunidade no
que se refere ao meio ambiente e as condições fluviais para o sucesso do projeto, bem
como, serão mapeadas as controvérsias e justaposições que ocorreram nesta etapa. Este
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artigo não tem a pretensão de demonstrar as técnicas de engenharia e de outras ciências
utilizadas no projeto.
Esta pesquisa está no início, ainda embrionária. Desta forma, este artigo é construído
com a minha narrativa do projeto na chegada a Ilha da Marchantaria, sendo que a cada
momento incluirei a visão da equipe de engenheiros do norte que seguiremos, escolhidos
como porta-voz (LATOUR,2000,p.119) dos demais trabalhadores do projeto. O artigo será
desenvolvido através de cenas e os nomes dos trabalhadores envolvidos serão
preservados.
As Cenas
Cena I – Do Centro para a Periferia
Estávamos todos nos barcos que nos levariam à Ilha da Marchantaria. Havia chegado
o dia de apresentar o projeto à sociedade e a reunião foi marcada em uma das escolas. Os
diversos barcos que nos levavam, tinham como barqueiros os moradores da ilha.
Uma grande equipe da empresa estava se deslocando para esta reunião: eu, responsável
pela cadeia de suprimentos, a diretora-geral centro-norte de vendas e operações, o diretor
de operações do centro-oeste, o diretor de operações do norte e seus gerentes e
colaboradores. Além destes, estavam presentes o gerente de meio ambiente e sua equipe.
Já existiam algumas definições e “moedas de troca” para propor para a sociedade local. O
meu papel no projeto era a negociação com as autoridades locais e possíveis parceiros
comerciais para viabilizar a passagem do cabo pelo rio, pelas comunidades e estruturas tais
como pontes, postes, etc. Para a primeira reunião, apesar de nunca ter estado na ilha,
obtive informações que a comunidade não possuía energia cabeada (possuía um gerador
de energia) nem tampouco possuía internet fixa nas escolas.
Como estávamos indo para uma escola e havia a possibilidade de crianças estarem
presentes, um lanche seria oferecido à comunidade.
Além disto, cada equipe levava alguns equipamentos e materiais para mostrar e explicar o
projeto para a população local.
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Figura 2: Barcos utilizados
A assimetria (LATOUR, 2000) estava clara na cena. Eu tentando levar “avanços
tecnológicos”, “progresso”, sem nunca ter estado no local, preconceituando uma
necessidade da sociedade local. Levava um pacote fechado de benesses que certamente
não seria recusado e, “racionalmente” suficiente para não haver resistência à passagem do
cabo.
Tal qual na história narrada no livro “Yes, nós temos Pasteur” (CUKIERMAN,2007),
onde as discussões sobre a obrigatoriedade da vacina desfiavam os mais diversos
argumentos e para os cientistas “só se podia ser contra a obrigatoriedade por motivos
irracionais.”(Idem, 2007,p.252), não se poderia conceber que os “ribeirinhos” recusassem
tais benesses.
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Figura 1: Escola onde foi realizada a primeira reunião
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Não só quem era oriundo do chamado ”mainstream” da empresa tinha este
pensamento. Verifica-se no relato de um engenheiro local, que aqui será chamado de
“Engenharia do Norte”, tendo em vista que representa uma equipe de engenheiros e
técnicos, o mesmo prejulgamento. Xavier Polanco (1986, p.46), chama de “fuga interior dos
cérebros” a uma posição cognitiva dos cientistas do terceiro mundo, sugerindo que esta fuga
é a “consequência da orientação exógena do trabalho científico local, por sua subordinação
voluntária e profissional aos problemas e programas de pesquisa, definidos e
recompensados nos centros científicos dos países desenvolvidos”3.
Nos contatos com as comunidades que moram na Ilha da Marchantaria, além da carência de energiaelétrica, observamos que existiam duas escolas com poucos recursos, mas professores e alunosdedicados. Ora, iriamos passar pela ilha com uma tecnologia de telecomunicação de ponta, mas elesficariam totalmente à margem desse benefício. Surgiu então a ideia de contemplar no projetocompartilhamento dos postes para distribuição de energia elétrica e de dotar escolas na área doprojeto (na ilha e nas duas margens) circuitos ópticos de internet banda larga. (ENGENHARIA DONORTE4, 2017)
Portanto, fazendo uma analogia ao que sugere Polanco (1986, p.46), para a
Engenharia do Norte é “natural” seguir o modelo “universal” orientado pelo mainstream da
empresa - o centro, e, ao mesmo tempo, se posicionar como aquele que detém o
conhecimento e traz avanço e progresso para a população local- a periferia.
Cena II – A periferia não é o fim do mundo
“Bem longe, no perau profundo, vive o brasileiro nos confins do mundo. Transido de culpa,pecado, desespero e aflição, sonha outros destinos e arde no desejo de ocupar o centro. Quer largaras abas e as margens, quer incluir-se e ser incluído. Quer ser como aqueles que servem de exemploe, por isso mesmo, tem de construir símbolos de que aqui não é o fim do mundo, de que aqui não é ofim do mundo, de que aqui não é o fim do mundo” (CUKIERMAN, 2007, p. 12)
3 Tradução nossa. Original :“La “fuga interior de cerebros” es en consecuencia la orientación exógena del trabajocientífico local, por su subordinación voluntaria y profesional a los problemas y programas de investigacióndefinidos y recompensados en los centros científicos de los países desarrollados.”4 Engenharia do Norte: equipe de engenheiros e técnicos sediada no norte do Brasil, funcionários da empresa detelecomunicações, que ficou responsável pela implantação do projeto de travessia. Foi realizada uma entrevistainicial com um componente da equipe, onde foram obtidos os primeiros depoimentos, por escrito, por e-mail, emjulho de 2017.
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Ao nos aproximarmos da ilha, percebi que passar pelos canais formados pelos
igarapés não seria fácil, precisava de muita habilidade e conhecimento do local. A
possibilidade de nos perdermos seria grande se não estivéssemos acompanhados por
moradores da ilha. Os barqueiros, muito habilidosos, nos levaram com segurança até à
margem próxima a escola local.
A escola foi construída sobre pilastras, altas o suficiente para suportar as cheias do rio. Era
feita de madeira, muito bem-arrumada, mas já sabíamos da falta de recursos tecnológicos. A
garotada veio nos receber nas escadas de acesso e nos indicou o caminho.
Ao andar pelos corredores da escola, a caminho do local da reunião, observo os trabalhos
dos alunos nas paredes sem erros de português o que me traz certa surpresa. Ao chegar à
sala que havia sido reservada para a reunião, a mesma já estava cheia de habitantes da
ilha. Como não havia espaço para todos nós, parte da equipe e alguns moradores teriam
que participar da reunião assistindo pelas janelas e foi para lá que me dirigi.
Uma a uma, as equipes apresentaram sua parte no projeto. A equipe do meio ambiente era
responsável por garantir que não haveria danos ecológicos, a equipe do então Instituto 215
apresentou os benefícios sociais e, a equipe de engenharia apresentou a proposta do
projeto, a fibra ótica que seria utilizada e alguns equipamentos pequenos que havíamos
levado.
As linhas gerais do projeto foram apresentadas para as comunidades da ilha em reunião em uma dasescolas, com mapas com as rotas, amostras dos cabos que seriam utilizados, dos postes de fibra(...).(ENGENHARIA DO NORTE, 2017)
Cada equipe foi “porta-voz” de seu departamento, dando contornos e “corpo” àquilo
que não falava por si só. Segundo Latour (2000, p.119), “o porta-voz é alguém que fala em
lugar do que não fala”.
5 O Instituto 21 é atualmente o Instituto Net, Claro e Embratel. Pelo projeto de acesso à internet que beneficioualunos de 4 escolas desta região do Amazonas, o Instituto foi um dos premiados na quarta edição do prêmioValores de Brasil, concedido pelo Banco do Brasil. Disponível em<https://www.institutoclaro.org.br/blog/projeto-do-instituto-embratel-claro-conquista-premio-valores-do-brasil/>, acesso em 17/08/2017.
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Mapas da ilha com detalhes ambientais, cabos “abertos” com fibra exposta, tudo foi
apresentado para os moradores da ilha por cada uma das equipes.
Durante as exposições na reunião, ficou claro que o projeto tinha várias “partes”
dissociadas. Apesar da apresentação em conjunto e da “reunião”, cada equipe possuía um
papel a desempenhar e um resultado a obter. O relato da Engenharia do Norte sobre a
exposição para a comunidade, por exemplo, só contempla a parte técnica. Segundo
Cukierman (2011, p.212), é necessário um novo enquadramento, um novo “ângulo de
aproximação do problema” para que o “técnico” e o “social/cultural” constituam um
movimento de co-modificação.
De fato, durante a fase piloto do projeto, as equipes se depararam com diversas
situações em que o técnico e o sociocultural não se dissociavam. Em uma delas, dois cabos
de testes implantados com a mesma técnica dos cabos submarinos, técnica esta dominada
pela empresa, romperam-se. A técnica utilizada (lançar o cabo no leito do rio), não se
mostrou adequada, mas até aquele momento não havia causa aparente que justificasse o
rompimento. Foi necessária uma aproximação com a comunidade local para se entender
que uma das razões para os cabos terem rompido dava-se por uma atividade de pesca, cuja
técnica utilizada causava danos ao material.
Primeiro foi executado um projeto-piloto, no qual dois cabos de teste foram implantados desde umadas margens do Rio Solimões até a Ilha da Marchantaria. Eles acabaram rompendo-se, mas oaprendizado foi fundamental para o projeto definitivo, pois observamos ofensores que deveriam serevitados e oportunidades a serem aproveitadas:
Os ribeirinhos usam uma técnica de pesca onde eles fazem boias com anzóis descerem a correntezado rio e as recolhem alguns quilômetros abaixo. Isso fez com que anzóis engatassem nos dois cabosópticos implantados para teste. Quando as boias eram recolhidas, o cabo óptico era puxado pelospescadores, o que causava danos ao mesmo. (ENGENHARIA DO NORTE, 2017)
Outra razão para o rompimento dos cabos foram as valas no leito do rio, resultantes
do movimento das correntezas, que deixavam os cabos expostos, tais quais varais de
roupas, à galhos e vegetações arrastados pelas correntezas, nas partes mais profundas do
rio.
Em alguns trechos do leito do rio, o cabo óptico ficou suspenso, devido a irregularidades, típicas doRio Solimões, cuja correnteza provoca “dunas” de modo que o cabo fica suspenso como se fosseuma “corda de estender roupa”. Isso faz com que galhos e vegetação trazidos pelo rio engatem nocabo, exercendo um grande esforço que acaba rompendo-o. (ENGENHARIA DO NORTE, 2017)
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Estas situações levaram a decisão de mudança no projeto. Optou-se por enterrar o
cabo no leito do rio6 para a travessia.
Um longo trecho em que o cabo foi naturalmente enterrado pela areia e por sedimentos trazidos pelorio, foi o que ficou mais preservado, o que nos indicou que o ideal seria o cabo óptico ser enterradono leito do rio. (ENGENHARIA DO NORTE, 2017)
A indicação de que o cabo óptico deveria ser enterrado veio como resultado de um
processo, que pode ser considerado um experimento. Primeiramente, cabos ópticos foram
instalados conforme a orientação já existente na empresa; depois, foram observados os
efeitos oriundos de um comportamento social (a pesca) e da natureza (correnteza). A partir
destas observações é que vem a decisão final de se enterrar o cabo.
Após análise dos resultados desse teste piloto, foi elaborado um primeiro projeto onde o cabo óptico aser usado possuiria uma armadura de aço similar a usada nos cabos submarinos e que, ao contráriodesses, que são lançados sobre o leito do mar, o cabo subfluvial deveria ser enterrado no leito do rio.(ENGENHARIA DO NORTE, 2017)
Cena III – Da Periferia da Periferia para o Centro
Após a primeira reunião, a equipe do norte, responsável pela implantação do projeto,
se instalou na ilha e as demais equipes retornaram para suas bases.
Meu trabalho, a partir da reunião, era finalizar as negociações com o governo de Estado,
Prefeituras e a empresa de energia elétrica para que tudo estivesse pronto quando
chegasse a hora. Além disto, cabia a área de suprimentos, em que trabalhava,
acompanhar o projeto quanto à necessidade de novos contratos com empresas prestadoras
de serviços e aquisições de materiais.
A reunião inicial havia sido considerada um sucesso por todos. A partir de agora, seriam os
engenheiros do norte quem ditariam o ritmo do trabalho. Por diversas vezes, a área de
suprimentos tentou apressar algumas fases para melhorar as negociações com
6 A diferença entre apenas lançar o cabo no leito do rio e enterrar o cabo é grande em termos de custo. Enterrar ocabo demanda outras equipes envolvidas como por exemplo, mergulhadores. Uma decisão deste porte, podelevar uma empresa a desistir do projeto devido ao custo adicional.
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fornecedores, mas a resposta era sempre a mesma: agora o tempo que contava não era só
o corporativo, era o tempo da ilha, do rio e das chuvas. Segundo a equipe do norte, era
necessário conhecer as “cheias” e “vazantes” do rio para obter a melhor solução de
implantação do anel óptico e dos postes que levariam a energia prometida para à ilha.
Este novo ritmo atrasava bastante o cronograma que havíamos negociado com
fornecedores e os contratos demandavam renegociações constantes. Além disto, havia sido
solicitado que, nos contratos de prestação de serviço, fosse negociada a contratação dos
moradores da ilha como mão de obra. Para nós da área de suprimentos, a solicitação era
um transtorno, pois não era filosofia da empresa interferir na escolha de mão de obra do
fornecedor. Esta demanda precisaria de aprovação da diretoria e assim foi feito. A alegação,
segundo a Engenharia do Norte era que população local poderia ajudar, já que teriam um
conhecimento tácito. A população sabia quais casas (flutuantes) se deslocavam com a
elevação das águas do rio durante as cheias, por onde caminhar em solo firme, além de
conhecer as “ruas” formadas pelos igarapés.
O primeiro encontro foi retratado em um vídeo7 institucional produzido logo depois na época
do lançamento do cabo na ilha onde, apesar de sermos nós do eixo Rio-São Paulo-Brasília
que emitimos som no vídeo, a voz que se apresentava era outra, a da Engenharia do Norte
com o “olhar local”, a mata ao redor, o rio, os igarapés, a sociedade local.
Durante o site survey8 realizado com o auxílio da comunidade local, foi possível
mapear a altura das águas no período de cheia do rio, conhecimento necessário para saber
a altura dos postes a serem comprados; mapear as casas para saber onde os postes
deveriam ser instalados para facilitar a distribuição de energia elétrica; e entender um ponto
essencial no projeto que era onde a ilha era mais “firme” durante todo o ano. Adaptações ao
projeto foram realizadas a cada tradução. Segundo Latour (2016, p.28), toda tradução é
uma fonte de ambiguidade, “um curso de ação sempre é composto por uma série de
desvios cuja interpretação, posteriormente, define uma defasagem que dá a medida da
tradução”.
7 Todas as fotos referentes ao projeto aqui apresentadas foram extraídas deste vídeo.8 O site survey é o levantamento de campo para dimensionar a área e identificar o local apropriado para instalação de equipamentos.
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Outro ponto importante foi a “naturalização” que a Engenharia do Norte realizou em técnicas
e tecnologias para adaptar o projeto à realidade local.
Como o cabo óptico seria enterrado no leito do rio, poderíamos implantá-lo na Ilha da Marchantariadiretamente enterrado no solo, mas seria uma tarefa muito difícil já que a ilha é cortada por váriosigarapés. Optamos então por usar postes e cabo aéreo autossustentável pelo seguinte:
a experiência das pessoas que moram na ilha revelou que as suas margens não são estáveis esofrem um processo de desmoronamento causado pela correnteza do Rio Solimões. Fazer alteraçõesem uma rota subterrânea é de custo muito elevado. Se o processo de desmoronamento ocorresseanualmente após cada ciclo de cheia seca do rio, como nos foi informado (e como se confirmou), oprojeto seria inviável devido ao alto custo de manutenção; As rotas ópticas aéreas na ilha procuraramentão contornar os igarapés e usar os terrenos mais firmes para implantação dos postes, já que eramtambém as áreas com moradias dos residentes na ilha, que se ressentiam da ausência de energiaelétrica. (ENGENHARIA DO NORTE, 2017)
Percebe-se que a narrativa da Engenharia do Norte já incorpora um conhecimento
que, a priori, seria um conhecimento local (cheia, localização de igarapés). Tal
conhecimento, na fala da Engenharia do Norte, torna-se “naturalizado” e imbricado com o
próprio projeto da empresa. De acordo com Latour (2016, p. 202), “a tradução já não traduz;
apenas transfere, traslada, transporta. Em vez de obter o contínuo a partir do descontínuo,
tem-se a impressão de ter descoberto, enfim, o que se pode deslocar sem sofrer mais
transformação alguma. É como se o conhecimento se deslocasse no mundo sem perda,
sem esforço, sem laboratório.” Ao final, ler a narrativa da equipe somente não se consegue
perceber todo o esforço necessário para a “naturalização” do conhecimento local.
Ainda segundo Latour (2016, pp.33-34), afinal quem “é o responsável pelo movimento
do conjunto se torna em todos os sentidos secundário (…). Porque isto só pode ser
claramente reconhecido depois dos movimentos de desvio e composição.”
As empresas contratadas pela Embratel foram orientadas a utilizar o máximo possível de mão deobra local e a conduzir qualquer pleito dos moradores diretamente à Coordenação do Projeto.(ENGENHARIA DO NORTE, 2017)
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Figura 4: Marca de água da cheia do rio
Cena IV - A voz da Periferia da Periferia
Havia, na área de suprimentos, uma preocupação quanto aos contratos já firmados e
as modificações propostas. Estávamos revendo cronograma, substituindo alguns materiais,
e era sempre complicado renegociar com fornecedores e se manter dentro do orçamento
disponibilizado. Expressamos nossas preocupações com o diretor de engenharia, mas
nossa orientação foi continuar negociando o que fosse solicitado pela equipe do norte.
Sabíamos que eles estavam adaptando alguns materiais e equipamentos já adquiridos, mas
a grande preocupação da área de suprimentos era não ser responsabilizada pelo atraso do
projeto. A sensação era que ninguém lembrava o quanto era difícil e demorado importar
equipamentos e negociar com fornecedores.
Como era impossível deslocar para as margens máquinas de perfuração de dutos, em conjunto comuma empresa de Manaus instalamos uma perfuratriz em uma balsa e construímos os dutos por ondepassaram os cabos, do rio para a margem, o que nunca tinha sido tentado, mas que se revelou umsucesso. (ENGENHARIA DO NORTE, 2017)
Uma ideia só evolui após muitos desvios e composições. As ciências e técnicas
andam juntas, mas se relacionando com os saberes. A ciência só interessa quando tem
relação com outros cursos de ação que não apenas dos cientistas. Latour (2000, p.233)
estabeleceu a diferença entre os modelos de difusão e um “espalhamento” vinculado ao
espaço-tempo. “A crença na existência de uma sociedade separada pela tecnociência é o
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resultado do modelo de difusão.” Quando mantemos fatos e máquinas dotados de inércia
própria, dá-se a impressão que as ações coletivas de humanos e/ou não-humanos
desaparece, voltando a reaparecer apenas quando algo não segue o caminho “ideal”
traçado.
Nunca estamos diante de “ciência, tecnologia e sociedade”, mas sim de uma gama de associaçõesmais fortes e mais fracas; portanto, entender o que são fatos e máquinas é o mesmo que entenderquem são as pessoas. (LATOUR, 2000, p.232)
Foram realizadas muitas modificações a partir de sugestões dos moradores. As rotas dos cabos nailha praticamente foram definidas em conjunto com os moradores, em face da experiência que elestinham em relação a identificação dos terrenos que alagavam nos períodos de cheia. (ENGENHARIADO NORTE, 2017)
Conclusão
Apenas a partir do momento em que se tenha assegurado o acesso ao distante (ao infinitamentepequeno, ao infinitamente grande, ao infinitamente complexo, ao infinitamente perigoso), as ciênciasexperimentarão a mesma transformação que descobrimos seguindo as voltas e os desvios dastécnicas. Esqueceremos as transformações necessárias para a transferência de informação efaremos como se a informação circulasse sem nenhum esforço – sem gastos de energia, sem custo,sem organização – desde a coisa conhecida até a mente de que conhece. (LATOUR, 2016, pp.201-202).
Este trabalho representa um forte pontapé inicial da pesquisa. Foi muito importante
escrevê-lo, pois deu a dimensão do que ainda está por vir: todas as controvérsias a serem
seguidas, todas as justaposições. É necessário encontrar o caminho de transformações,
buscar o enquadramento, verificar os nós mais fracos desta rede.
Na primeira entrevista realizada com a Engenharia do Norte, já deu para ter uma ideia
de quantas justaposições, como a história dos “vencedores” pode ser contada de vários
ângulos, desarticulando a referência hegemônica de ciência. Sair do eixo do mainstream da
empresa e trazer o conhecimento, a “ciência do cotidiano”, a modernidade “estrangeira”
“naturalizada” pela periferia da periferia.
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Utilizando o referencial multidisciplinar dos estudos CTS (Ciência, Tecnologia e
Sociedade) será possível identificar ações políticas lado a lado com a tecnociência e sair da
produção de ciência universal para a local, “desnaturalizando” a ciência universal através da
historicidade e estabelecendo parâmetros que permitam avaliar e “trafegar na contramão da
corrente intelectual hegemônica da modernidade ocidental” (CUKIERMAN, 2012).
Os próximos passos da pesquisa estão abertos para todos os saberes.
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VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716 Cardoso. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 4(gt27):1-∕ 16
REFERÊNCIAS:
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