oscilações não lineares - pró-reitoria de cultura e ... … · deus afaste os paus nostálgicos...
Post on 26-Apr-2021
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1
Oscilações não
Lineares
2
“I'm trav'lin' light”
Billie Holiday
“Por isso essa cidade é babelbarroca”
Haroldo de Campos
3
Concerto de vozes
Há duas pedras em duas mãos
brincando numa espécie de descompasso
como amêndoas no trompete de Baker
dançam na gota d’água
em poças azuis passageiras
em sumos de orvalho:
fomos brutos em amar espelhos
e a melodia derrama o ocaso
Somos humanitas conservados entre metais
um pouco circundados pelo devaneio da queda
um cai caindo em retornos celestes e continentais
um vibrando nevrálgico, cristais da memória
e os versos cerrados entoam outro nome:
eu sinto parcelas em mim e me dói não ser.
Consciente apenas de que a distância que nos separa
são semimínimas eternizadas em colunas de sal
a cidade me convida
para o baile; suas luzes mesclam-se
sudoríparas por meus pelos e
teus cachos me enaltecem
como ametistas no grave silêncio.
Uma pausa
o refrão é o concreto gemendo, enfim,
4
a cidade labirinto:
Concierto de voces
noche del ameno delirio
deslizó besos en las piedras
del otañal precipício
fartamente
bebo
da melancolia
teu seio
5
Estação Jundiaí
Eu cheguei em Jundiaí como um estrangeiro vindo da capital,
mas logo me ensinaram como compor poesia na cidade;
Aqui não somos paulistas
Não somos estudantes
Não somos porta-voz de uma geração
Não somos jovens enlouquecidos pela noite
Não somos poetas de tom menor
Não somos caipiras tocando a viola espiritual
Não somos donos de igreja
Não somos membros de igreja
aqui não somos políticos, juízes, delegados
bem menos somos italianos
Não somos índios e negros construindo a malha ferroviária em 1862
Não somos tupis escravos da vila de Jundiahy
nem somos negros empilhados em barracos
Não somos Fepasa, São Camilo, Mato Dentro
Não somos universitários
Não somos ativistas da Serra do Japi
nem apreciadores do bom ar da cidade e da vida vegana
aqui não somos jovens e não cantamos o hino nacional
Não somos empreendedores
Não somos cidade-dormitório
Não somos proprietários de imóveis na Vila Arens
Não somos gays, lésbicas ou bissexuais
Não somos travestis desfilando renitentes na madrugada
6
Não somos poças rubro-sangue embaixo do salto
Aqui não somos o silêncio intermitente
aqui não há ideologia de gênero
aqui não há escola sem partido
aqui não há mendigo batendo na janela negra
aqui as pessoas não respondem em tom afável e paternalista:
“eu sei que você vai comprar droga”.
No cume da minha identidade transvestida de jundiaense,
aprendi que a cidade tem dois corações para seus moradores.
O primeiro está na Av. Antônio Frederico Ozanan, número 6000,
seguido da palpitante Av. Nove de Julho, número 3300.
Ali você toma um sorvete ou almoça hambúrguer americano,
reassiste um filme de super-herói sempre novo,
compra um vestido pra a namorada, perfume
livros lacrados e jogos de videogame.
Depois toma seu carro e se joga do terceiro andar do estacionamento.
No dia seguinte será feriado.
7
Desembarque
No meu quarto gotejam pequenas cidades
e por trás das espessuras
há outros infinitos quartos gotejando cidades.
Generais nos atravessam com multidões no bolso
e portas de aço decepam as mãos que se atrevem
a resolver o mistério das coisas
O mistério das coisas é haver uma única janela
espelhando todos os cômodos por vezes escurecidos
E as pequeninas cidades às vezes se deitam frente à única janela
Descansando entre paisagens em chamas.
8
Opala-de-Fogo
Quando os frios tons do céu de drusas
chamuscam o cigarro infinito,
nossas pernas cruzam-se no sofá
e uma ametista mancha seu umbigo.
Sodalitas dançam taciturnas
suportando facilmente essa dor,
seu ventre concêntrico,
sândalo que emana no casulo das paredes
lacrimejando.
Síncope dos metais
lembrança dos sonhos
da escápula, o desterro
do seu torso, os beijos
que aceitam o pranto
derramado como leite de âmbar
banhando suas axilas, seus pelos
mais íntimos e resistentes.
Machucaram-se seus signos,
rendidos olhos-de-gato.
Retorna à brutalidade
retoma o silêncio
pedra-da-lua
cristal-fantasma
Opala-de-fogo
9
Carta telepática ao meu velho pai
quando voltar
se encherão os dias
de diários em chamas
10
Outro dia
Digitando...
Não sei, mas quem sabe outro dia
O dia que tracemos na poça o pomo sem ângulo
sem interface, ponto fora do esboço
retido no lastro da passagem.
Talvez gesto da matéria inerte
Talvez substância úmida fundida na poeira
esvaziará o eu nesta busca pelos dias tristes
e dobrará o tempo nu no risco sem fronteira.
Digitando...
Mas por que não ouvir sua voz enquanto lê?
Por que procurar a transvaloração das retinas,
a intervenção no silêncio passadouro?
nada sei do lirismo contemporâneo
No microcosmo enxergo apenas a fibra oca
e nem no almejo de uma vida amena
eu vejo tempo retornando
e quando vejo, finjo-me eterno
à experiência da desmemória
como pedra negra de Sarduy
mas não falemos disso por hora.
Digitando...
por que não falamos do não-retrato?
11
da não-metamorfose
da não-libertinagem
do não-sentimento do mundo
da não-imagem poética
dessas coisas pós-modernas e
do trauma recriado quando
escrita e leitura querem
possuir o corpo sem esmero.
Digitando...
Se de repente o big bang
provar que não somos desta época
e não houver poeta algum que nos renda
abriremos uma caixa de ritalina
contentes com as palavras sem cadência:
esferas de sacarose
copolímero de metacrilato de amônio
copolímero de ácido metacrílico, talco
citrato de trietila, macrogol, gelatina
dióxido de titânio, óxido férrico preto
óxido férrico vermelho, óxido férrico
amarelo, óxido do desespero.
12
Delírio compartilhado
a Marcelo Valadão
Imagina nós dois
na fila do supermercado dos absurdos
iconoclastas e renitentes
brincando de realidade
13
Rua Lima
Meio comovido por essa rua em que meus pais cresceram
realento surpresos dançando o carnaval do interior:
pisão daqui, versículo de lá
sequência de muros em preces de fim de tarde.
Lembro quando eu andei vago pelo mesmo carnaval
não havia nada lá, apenas um contrato e duas mãos cruzadas.
Hoje me pergunto o que faltou nessa equação
já asfaltada e com o dobro de casas ruídas
e alguém pensa o mesmo que eu
enquanto chora no quarto ao lado.
Quilômetros e sequestros da página em branco
porque a vida tem gosto
como um morro na vila estreita dos presságios
e portões um tanto enferrujados
e olhos por trás das cores e segredos.
Quem pensa que não vinga o tédio
e procura o sentido para além dos vidros
esquece que corpo apenas brinca com o tempo
entre antigas ruas, pretextos e abrigos.
14
[Não] Oscile
exala páramo
os dias molhados
o transluzir dos quartzos
mirando rotas passagens
semiaberturas no tempo
flagelo em horizontes nus
vazios que à infância projeto.
Maciça, acanhada surjo
perturbando mudos fantasmas
venero lâminas polidas
entre prédios e figuras mortas.
Prostram-se cerradas as vigas
perdoai-me
[não]
vacila outono
encharcado pelo sono
serenando lúcida zona
da cova dos olhos
uma linha mostarda flama
edifícios sob a pele dos poros
geometrias da queda plana.
desencantada com o céu
dançando entre fumaça e véu
beijas os corpos vencidos
entre sonhos e vísceras uterinas.
Prostram-se tristes sinas
perdoai-as
oscile
15
Jaspe
enquanto o vermelho
reflui pelas pernas e viola o lençol
o mesmo vermelho transborda os lábios
adoça a saliva e tempera a canela
16
Manhã
Não ouvir sua rouca voz
escrita com agilidade
pouco sonolenta de uma luz
que tão pouco ilumina a cidade.
Não ouvir a flexão do mantra
as frias esferas descendo o telhado
o pompoarismo tântrico
o cravo na mesa de linhas
a canela manchando as paredes
enquanto respinga o café dos cristais.
Os grãos continuam a ninar
desvelados entre cartas de tarô
vozes presas em porta-retratos
nos pêndulos vazios do seu útero.
17
5 de dezembro
Irresoluto diário
abro
La Jaula
Pizarnik
nomes são:
abreviações
passagens
superfícies
vozes que deslizam soníferas
dentro e fora
maria é um nome
Pedra & Suspiro
cativeiro
em queda livre
os nomes são pretexto
18
Utopias de uma língua
Eu já chupei vários paus acadêmicos
Mas chega um momento que eles não mais cabem na boca
Crescem tanto e tanto...
E os lábios irresolutos procuram
Pirocas que saibam mais de iconoclastas,
Menos de poetas, menos de métricas
Porque hora qualquer, a boca transborda de palavras
E tanta nota de rodapé cimenta a poesia.
Cansei dos paus alegóricos
Cansei dos paus que envelhecem antes de serem espelhos.
Deus afaste os paus nostálgicos que brilham no escuro e choram na alvorada.
Quero paus que se confundam nos semáforos
Caralhos que atravessem a dimensão do Lattes
Eu quero paus metasimbólicos
Quero os paus que sejam pontes
E levem-me irrevogavelmente para o meu destino:
Torna-te quem tu és.
19
No largo da Batata
Arria do cavalo
~ sobe calado a calçada~
dobra a calça
pisa pisa anda
desamba em mim
20
Silent Way
A filha dorme profundamente,
mas há um longo ruir dos lençóis
e a cidadela acorda suspensa
acanhada
indiferente
21
Samsara
cloridrato de fluoxetina conjunto de antidepressivos aumenta risco potencial suicida ela disse
bom dia a fadiga que esperastes em prazer tão mortal não passa de improvidência e ausentar-
se só é comparável à crueldade da ausência que importam lágrimas lânguidas se afeição toma-
me pelo ventre revirando-o e já não posso sofrer porque mil vezes ao dia me perco de estar a
rigidez de teus lábios resiste ilhada no concreto cristais ruidosos não sei se quero reação muito
comum um a cada dez casos é necessário como me sinto livre para privar-me para sempre
desses olhos nus caem de minhas coxas como outros antidepressivos casos isolados de
ideação formação da ideia e comportamento suicida logo após a interrupção em bom tom ela
me disse bom dia reação quizás incomum um a cada mil casos um para pedras brutas
rutilantes e opacas e eram só finas brumas escorrendo em espera nas pernas coxas mornas
brancas pernas brasas cerradas finitas coxas ternas mornas mistas atravessadas nos dias lisas
pouco a pouco bom dia ela disse será que sua voz me sente como ela me sinto a rigidez de
teus lábios resiste ilhada no concreto desvelar verdade surpresa perplexa me disse bom dia os
médicos devem ser consultados imediatamente se os pacientes seria só a sentir o teu interesse
talvez não fosse desagradável se outras cantassem a ausência de vozes senão como esforço de
todas as maneiras para ausentar-se ai o que seria de mim conheci o desvario senão quando me
esforcei de todas as maneiras para me curar dele bom dia fluoxetina é excretada no leite
materno mulheres comuniquem alguém diz a rigidez de teus lábios resiste ilhada no concreto
22
Um novo rosto
Falta coragem para dizer
sambe baixinho
saudade
esqueça cadência
quem precisa
quando o pé jaz
em cinzas
vem vindo
certa vida
atrás do véu
que não se veste
enquanto samba
saudade
e seja
nunca mais
23
Desembarque II
Áugures dos perfis inauditos
gritos dos amantes
delírio ameno dos anjos
apartamentos e redomas de vidro
entrelaçando línguas de mim.
Seria tudo ruído
se não fosse
Ressoou em ereções decompostas
a multidão
e nenhuma pele se tocou
24
Matriz
a Rolando Sanches Mejías
A aranha desce rente e rasa aos triângulos frios do azulejo
a matriz é o espasmo que se comprime na vertigem entre espelhos:
ligas, linhas, segmentos de reta que não desvendam forma alguma
libertam-se do abdômen forjado a ferro, pus e sucessivas cúpulas
(transmutando rígida a superfície agora o inseto é também ensejo)
enquanto só escrevo para não ser marionete do coração
Os olhos de fusão da garota (?) salteiam [obrigatoriamente] o poema
áporo metálico, exigem que o ruído seja esforço sem retorno e incalculável
que atrase os passos ou estenda as patas sobre o umbral
um sopro de lágrimas (?) inundam de mercúrio timbrando blocos
(superfície é aquilo que tem somente comprimento e largura)
enquanto só escrevo para não ser marionete do coração
Com extensões mecânicas o aracnídeo tece o desejo na pele:
a toda ereção é uma perversão e ruptura contínua
b escorada em um muro de porcelana a garota (?) relê versos neuroatípicos
c toda dopamina produzida por uma aranha é na verdade uma ordem sem discurso
d eu só escrevo porque ponto é aquilo de que nada é parte
25
Manequim
A cada 7 noites me apaixono
Por um manequim dessa cidade.
Meditando na vitrine
O silêncio de seu corpo me distrai
Boca seca, querendo um trago
de carícia, de sombra, do litrão mais
barato.
Às vezes, eles, manequins
Trocam beijos entre si
E sufocados por paredes de vidro
Numa sede impossível de matar
Se arrependem de amar em Jundiaí.
Mas há dias em que a lua se enche
E eles não querem menos
Do que a dissolução do tempo
O caos total dos lábios:
Tiram suas roupas, rasgam suas marcas
Resgatam a violência do corpo-objeto
Contra o opressor, o homem-mercado
O ardor da juventude inflamável.
Saem loucos, assim, pela rua
Cheiram todo o pó do Sanca
Esvaziam no último gole a alma
Queimam aquela ponta
26
Da língua na garrafa
No perigo
O corte
Triste é só a alvorada.
Nesses dias poéticos
Deitado em seu útero de
Plástico tatuado
Assisto, enfim,
A cidade queimar.
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