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INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 6, Edição número 25, Abril/Setembro 2017 - p
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PATRIMÔNIO, LÍNGUA E INTERCULTURALIDADE NA ESCOLA
PÚBLICA: PRÁTICAS E SABERES
Laura Janaina Dias Amato*
Andrea Yulli Ruiz**
RESUMO O presente artigo apresenta o resultado de um projeto de extensão desenvolvido no ano de
2016 na escola municipal Adele Zanotto Scalco, na cidade de Foz do Iguaçu- PR. O projeto em questão
tinha como principal objetivo aproximar aspectos da diversidade cultural latino-americana à realidade
vivida por crianças do Ensino Fundamental I, sendo que as aulas eram realizadas em língua espanhola.
Desta forma, tomou-se como meio alguns patrimônios materiais tombados e reconhecidos na América
Latina e partir deles desenvolveu-se o ensino da cultura latino-americana através da língua espanhola.
Como resultado do trabalho pudemos observar o desenvolvimento da interdisciplinaridade e da
aprendizagem intercultural.
ABSTRACT: This article presents the results of an extension project developed in 2016 at the Adele
Zanotto Scalco municipal school in the city of Foz do Iguaçu - PR. The main purpose of this project was
to bring aspects of Latin American cultural diversity closer to the reality lived by primary school
children, with classes being conducted in Spanish. In this way, it was taken as an object some material
patrimonies registered and recognized in Latin America and from them was developed the teaching of
Latin American culture through the Spanish language. As a result of the work we were able to observe
the development of interdisciplinarity and intercultural learning.
PALAVRAS-CHAVE: patrimônio cultural, aprendizagem intercultural, prática docente.
KEYWORDS: Cultural heritage, intercultural learning, teaching practice
INTRODUÇÃO
Desde 2014 o projeto Fronteira Intercultural é desenvolvido em parceria com a escola
municipal Adele Zanotto Scalco, de Foz do Iguaçu, e a Universidade Federal da
Integração Latino-Americana (UNILA). Um dos objetivos do projeto é contribuir na
aproximação dos saberes advindo dos estudantes do Ensino Fundamental I e a produção
de saberes e práticas culturais dos mais diversos países da América Latina, buscando a
desconstrução de estereótipos e aproximando as realidades culturais estabelecidas. Todo
conteúdo é ministrado em língua espanhola, por bolsista falante de espanholi. O objetivo
não é o aprendizado da língua, mas através da língua. Desta forma, pretendemos com a
reflexão e através do diálogo estabelecer possíveis práticas de uma educação
intercultural (CANDAU, 2012) para que os sujeitos e atores do processo educacional
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possam fortalecer a sua identidade como cidadãos latino-americanos, reconhecendo as
práticas sociais e a construção coletiva de saberes.
Este artigo apresenta o resultado do trabalho realizado pelo projeto citado no ano de
2016, quando escolhemos como tema memória indígena, tangenciando a educação
patrimonial e a interculturalidade. A escolha do tema se deve pelo interesse da bolsista
selecionada e em sua formação como mediadora culturalii, pois como bacharel na área a
prática didática não lhe é facultada, sendo assim, pode, durante o projeto, aprender e
refletir sobre o processo de ensino e aprendizagem que como mediadora cultural poderá
atuar. O objetivo do projeto não foi problematizar a educação patrimonial e seu uso
historiográfico, mas associar o ensino da língua espanhola e de suas culturas através de
uma educação patrimonial, estabelecendo assim práticas transdisciplinares.
Dividiremos este artigo com os seguintes pontos: primeiramente vamos apresentar o
projeto e a escola na qual atuamos. Em seguida apresentaremos alguns conceitos
relevantes ao trabalho, como educação patrimonial relacionando com o ensino
intercultural, para, por fim, detalhar algumas ações feitas e seu impacto.
1 FRONTEIRA E ENSINO
A cidade de Foz do Iguaçu se localiza no extremo oeste do estado do Paraná, fazendo
divisa com dois países: Argentina e Paraguai. Além disso, conta com um grande atrativo
turístico: as Cataratas do Iguaçu, compartilhadas com a Argentina, e trazendo para a
região um grande fluxo de turistas brasileiros e não - brasileiros. Com esse trânsito
percebemos no cotidiano da cidade uma profusão de línguas, culturas e modos de pensar
e agir conflitantes, mas não necessariamente levam a disputas concretas, talvez
imaginárias e imagéticas (PEREIRA, 2014).
Tendo em vista essa diversidade cultural e a facilidade de transitar entre as fronteiras, os
governos do Brasil e Argentina, com a colaboração com os países do Mercosul e do
Setor Educacional do Mersocul (SEM), promoveram, em 2004, um projeto piloto que
tinha como objetivo fortalecer a integração regional e difundir os idiomas espanhol no
Brasil e português na Argentina, chamado Escolas Interculturais Bilíngues de Fronteira
(PEIBF) (BRASIL, 2008). A cidade de Foz do Iguaçu – BR e de Puerto Iguazu – AR
estão no projeto desde o seu início. Com o fortalecimento das ações e das políticas
públicas em relação a integração latino-americana, o projeto tornou-se programa e o
foco no bilíngue fora tirado do seu nome, tornando-se somente PEIF: Programa Escolas
Interculturais de Fronteira. Em Foz do Iguaçu a escola que recebe o programa é a
municipal Adele Zanotto Scalco, localizada na vila Boa Esperança, a poucos
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quilômetros da fronteira com a Argentina. Conforme documento-marco “uma educação
para as escolas de fronteira, neste contexto, implica o conhecimento e valorização das
culturas envolvidas através das práticas interculturais.” (BRASIL, 2008, p.17). O
propósito do trabalho cultural não é qualificar as diferenças existentes, mas sim
valorizar a cultura do outro, trabalhando a alteridade e a própria identidade, como
cidadão fronteiriço. Tal discurso está em consonância com Candau (2012, p. 129),
afirmando que “a interculturalidade crítica fortalece a construção de identidades
dinâmicas, abertas e plurais, assim como questiona uma visão essencializada de sua
constituição”.
Levando todos esses aspectos em consideração, o projeto de extensão Fronteira
Intercultural é desenvolvido desde o ano de 2014 na escola Adele Zanotto Scalco. A
escola, localizada no lado brasileiro, possui cerca de 900 estudantes. Em contrapartida a
escola argentina, Escuela Intercultural Bilíngüe nº 2, possui menos da metade desses
alunos. Isso se reflete diretamente na ação realizada pelo PEIF. O programa tem como
princípio o intercâmbio de docentes: os brasileiros lecionam em língua portuguesa na
escola argentina e os argentinos lecionam em língua espanhola na escola brasileira. A
metodologia utilizada é a de projetos de aprendizagem (BRASIL, 2008), na qual há o
levantamento de interesse dos alunos, a escolha de um tema, a formulação de perguntas
e a resolução das atividades. A perspectiva de trabalhar com projetos interfere
diretamente na produção de conhecimento produzido nesse ambiente escolar, pois os
saberes são trabalhados em um contínuo, isto é, integrando habilidades inter e
intrapessoais com conhecimento acadêmico. Candau (2012, p. 124) ao falar de
experiências da educação popular e em ambientes não-formais de aprendizado, afirma
que a importância dessas experiências está “[n]a intrínseca articulação entre processos
educativos e os contextos socioculturais em que estes se situam, colocando assim os
universos culturais dos atores implicados no centro das ações pedagógicas”, da mesma
forma compreendemos a função da utilização de projetos de aprendizagem em escolas
interculturais.
Retomando o projeto Fronteira Intercultural, um dos objetivos do projeto, nessa escola,
é o de sensibilizar as turmas que não participam do PEIF, pois as professorasiii
argentinas não conseguem cobrir as turmas da escola brasileira em sua totalidade, sendo
que o inverso não acontece. Assim, várias turmas da escola brasileira não tem contato
diretamente com a professora argentina. O Fronteira Intercultural não substitui o PEIF e
nem atua para tal, mas pretende, além da sensibilização, apresentar a diversidade
linguístico-cultural presente na fronteira e na América Latina, com o resgate das
tradições orais e escritas dos povos originários; e de forma crítica pretendemos abordar
a alteridade e desconstruir estereótipos. Assim, desde 2014 vimos atuando em diferentes
turmas com diferentes temáticas. Já abordamos músicas infantis tradicionais, contos e
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lendas e ano passado abordamos os patrimônios existentes e objeto de análise neste
artigo.
2. INTERCULTURALIDADE ATRAVÉS DO PATRIMÔNIO
Conforme Horta, Grunberg e Monteiro (1999, p. 6),
O conhecimento crítico e a apropriação consciente pelas comunidades do seu
patrimônio são fatores indispensáveis no processo de preservação sustentável desses
bens culturais, assim como no fortalecimento dos sentimentos de identidade e
cidadania. A Educação Patrimonial é um instrumento de “alfabetização cultural” que
possibilita ao indivíduo fazer a leitura do mundo que o rodeia, levando-o à
compreensão do universo sociocultural e da trajetória histórico-temporal em que está
inserido. Este processo leva ao reforço da autoestima dos indivíduos e comunidades
e à valorização da cultura brasileira compreendida como múltipla e plural.
Assim, podemos compreender que através do processo de ensino-aprendizagem é
possível articular novas maneiras de desenvolver e estimular a sensibilidade e a
consciência dos indivíduos para a importância da preservação desses bens culturais, que
refletem na própria identidade do sujeito. Soares (2003, p. 46) afirma que qualquer
objeto ou ação que se refere à identidade de um grupo, constitui seu patrimônio. No
Brasil, o órgão governamental que cuida do Patrimônio é o Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, ele atua para concretizar o processo de resgate
do patrimônio cultural e mediação do mesmo para a sociedade civil. Para cumprir tal
papel, ele criou o Guia Básico de Educação Patrimonial, contendo diversas propostas
para o desenvolvimento de ações para auxiliar e contribuir no (re)conhecimento das
pessoas no referente às questões do patrimônio cultural.
Conforme Horta, Grumberg, Monteiro (1999, p.06), a educação patrimonial
Trata-se de um processo permanente e sistemático de trabalho educacional centrado
no Patrimônio Cultural como fonte primária de conhecimento individual e coletivo.
A partir da experiência e do contato direto com as evidências e manifestações da
cultura, em todos os seus múltiplos aspectos, sentidos e significados, o trabalho de
Educação Patrimonial busca levar as crianças e adultos a um processo ativo de
conhecimento, apropriação e valorização de sua herança cultural, capacitando-os
para um melhor usufruto desses bens, e propiciando a geração e a produção de
novos conhecimentos, num processo contínuo de criação cultural.
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O projeto Fronteira Intercultural não teve como princípio utilizar a metodologia da
Educação Patrimonial, mas trabalhou com aspectos culturais que esta aborda, através da
educação intercultural. Segundo Vieira (2001, p. 120),
A educação intercultural pressupõe a intenção da interação e exige uma revisão
crítica dos métodos e conteúdos do aprendizado para que sejam contemplados
aspectos da vida multicultural. Faz-se necessária uma reflexão contínua com vistas à
superação das relações etnocêntricas presentes não apenas no contexto macrosocial,
mas também no microsocial. Ao falarmos na aceitação de múltiplas culturas,
também precisamos estar atentos às diversas identidades de grupos e indivíduos de
uma mesma cultura.
Vemos semelhanças entre a proposta da Educação Patrimonial e a Educação
Intercultural. Ambas focam no sujeito como gerador de conhecimento, a partir da
reflexão sobre e da apropriação de bens culturais. O respeito à identidade local perpassa
ambos os conceitos, que buscam formas de ampliar e conservar, no seu dinamismo, os
bens culturais e patrimoniais.
Conforme Oriá (2007, apud MORAES, s. d., p. 7),
A educação patrimonial nada mais é do que uma proposta interdisciplinar de ensino
voltada para questões pertinentes ao patrimônio cultural. Compreende desde a
inclusão nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, de temáticas ou de
conteúdos programáticos que versem sobre o conhecimento e a conservação do
patrimônio histórico, até a realização de curso de aperfeiçoamento e extensão para
os educadores e a comunidade em geral, a fim de lhes propiciar informações acerca
do acervo cultural, de forma a habilitá-los a despertar, nos educandos e na
sociedade, o senso de preservação da memória histórica e consequentemente o
interesse pelo tema.
Assim, a partir da interdisciplinaridade (educação patrimonial em conjunto com
educação intercultural) promovemos um aprendizado significativo para o aluno,
despertando seu interesse para sua própria história, no âmbito pessoal e coletivo.
Devendo ele reconhecer aspectos das mais diferentes culturas, até então tidas como
alheias, na sua própria e no seu cotidiano, para que possa respeitar assim a diversidade e
promove-la, discutindo e identificando soluções para problemas que transcendem seu
próprio universo. Tal forma de educar leva a aquisição de novas habilidades,
colaborando para uma educação libertadora, pois conforme Freire (1984, p. 99)
(...) a educação ou ação cultural para a libertação, em lugar de ser aquela alienante
transferência de conhecimento, é autentico ato de conhecer, em que os educandos –
também educadores – como consciências „intencionadas‟ ao mundo, ou como
corpos conscientes, se inserem com os educadores – educandos também – na busca
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de novos conhecimentos, como consequência do ato de reconhecer o conhecimento
existente.
3. EXPERIÊNCIA DE PRÁTICA DOCENTE
A bolsista, estudante do bacharelado em Letras, Artes e Mediação Cultural da UNILA,
já tivera experiência com crianças e ensino, sendo assim, não foi totalmente estranho
adentrar em uma sala de aula. Como orientadora do projeto auxiliava a estudante na
preparação das aulas em todos os aspectos: desde a seleção de conteúdos até a
didatização e aplicação dos mesmos. As aulas eram planejadas uma a uma, com o
intuito de desenvolver de forma gradual quatro tópicos relacionados ao tema principal:
Memória histórica indígena. Para que o tema fosse desenvolvido e compreendido pelas
crianças, inicialmente pensou-se em reproduzir cópias em miniaturas das diversas
construções monumentais feitas pelos povos originários da América Latina e tidas como
patrimônio histórico universal. Mas verificou-se que abordar somente o patrimônio
material reduziria o potencial enriquecedor que a cultura dos nossos ancestrais
indígenas nos deixaram, portanto, a memória histórica foi compreendida e apresentada
aos estudantes em quatro diferentes eixos: (a) oralidade, (b) grandes construções, (c)
arte pictórica e artesanal e (d) grandes invenções. A planificação das aulas relacionavam
os eixos entre si, para que múltiplas formas de exercícios e atividades fossem
relacionadas. Como exemplo, havia a leitura, em espanhol, de uma lenda (eixo a) que se
passava em um local específico (eixo b) e ao final as crianças representavam parte da
lenda e/ou a arquitetura deste local. Os aspectos interculturais eram destacados e
reforçados em cada tópico. Às crianças, pertencentes a turmas do 1º ao 3º ano do
Fundamental I, era dada a oportunidade de se manifestarem perante aos novos aspectos
culturais, assim como comparavam com fatos e histórias já conhecidas e vivenciadas
por elas e seus familiares, desta forma a aproximando a cultura alheia com a sua
própria.
Cada plano de aula era dividido em três momentos: (a) saudação e revisão, (b)tema do
dia e (c) atividade final. No momento (a) as crianças eram estimuladas a utilizar a língua
espanhola e também era retomado o tópico da aula anterior para que relembrassem não
só o conteúdo, mas também para que fosse feito a continuação do trabalho com a
memória indígena. Já em (b), a apresentação do tema partia sempre do conhecimento
prévio dos alunos, com a ajuda de imagens, vídeos, contação de história, músicas e
marionetes. Tais artifícios eram utilizados para que surgisse deles palavras e/ou aspectos
do tema da aula. Finalizando a aula com (c), os alunos fixavam o conteúdo aprendido
através de desenhos, pinturas, construção de maquetes, jogos, entre outras atividades
que buscavam criar espaço de criação, diálogo e reflexão tanto nas crianças quanto nas
professoras regentes que acompanhavam as turmas. Esse momento final, prático e
artístico é corroborada pela visão de Martins e Picosque (2006, p.6) que afirmam que
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“é preciso mediar o encontro da criança com a arte, de forma lúdica e significativa,
levando em conta os aspectos socioculturais e a história de vida de cada uma delas,
atrelada à história da humanidade”, contribuindo assim para uma educação patrimonial
que apoia uma formação humanística, a partir de uma cidadania crítica e libertária
(FREIRE, 1984).
Para que os objetivos do Fronteira Intercultural, como a sensibilização para a
diversidade e construção de uma identidade como cidadão latino-americano, fossem
atingidos, as atividades realizadas tinham como foco a cosmovisão, os saberes e os
povos do universo indígena latino-americano, as quais eram concretizadas a partir de
dinâmicas e realizações artísticas que puderam estabelecer um diálogo com o
imaginário produzido frente ao universo indígena. Passo agora a detalhar alguns dos
temas abordados, sendo estes escolhidos para representar locais definidos como
patrimônios materiais e imateriais pela UNESCO. O primeiro país escolhido foi a
Argentina, devido a proximidade geográfica e a participação da escola no PEIF com a
presença semanal de professoras argentinas. O espaço escolhido conserva importantes
pinturas rupestres, sendo uma das expressões artísticas mais antigas dos povos sul-
americanos, a chamado “La cueva de las manos”, as crianças puderam ver imagens,
imaginar o significado das pinturas e reproduzir as imagens em papel. Na aula seguinte,
a lenda asteca do sol e da lua e a cidade Teotihuacan foram apresentadas e a lenda foi
simulada pelas crianças. Outro tema tratado foram as Linhas de Nazca, no Peru
(desenho em anexo), no qual, além de aprenderem nomes de animais em espanhol, as
crianças puderam fazer sua própria representação no pátio da escola. Em outras aulas foi
abordado também as capacidades laborais, matemáticas, astronômicas e arquitetônicas
dos indígenas, apresentando as diferentes profissões e funções no mundo indígena, o
sistema de numeração, o calendário e o relógio de sol. Todas essas atividades foram
realizadas de modo prático, assim, as crianças puderam simular o cotidiano dos povos
maias e astecas. Além disso, o artesanato guarani e de indígenas da Colômbia e Peru
foram abordados e foram representados com massa de modelar. Em um dos últimos
encontros as crianças montaram a maquete de cidade maia Tikalubicada, na Guatemala
(em anexo) e com isso retomaram vários aspectos abordados no decorrer do ano,
compreenderam que a América Latina já foi palco de grandes impérios e civilizações,
dos quais usufruímos seus trabalhos e herdamos manifestações artísticas e culturais.
Além disso, puderam observar o valor histórico que esses povos tiveram e que muitas
vezes não é abordado em livros de história.
CONSIDERAÇÕES
A educação crítica e reflexiva faz-se necessária hoje, principalmente por estarmos em
mundo fluído e em constante mutação. Atualmente, a mobilidade física e digital nos
permite um contato com o (não tão) distante. Assim, as distâncias tornam-se virtuais e
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as tradições acabam sendo secundárias, pois se privilegia o saber científico e as novas
tecnologias. Com isso, culturas e bens culturais que poderiam estar distantes, se
aproximam e se resignificam, tornando-se necessário ampliar o repertório cultural dos
alunos, através da (re)construção de saberes e sentidos pré-dados. Desta mesma forma,
presente e passado atuam cada vez mais próximos, (re)construindo constantemente
aquilo que sabemos sobre nós e sobre os outros.
Oriá (2007, p. 138) diz que “o direito a memória como direito de cidadania indica que
todos devem ter acesso aos bens materiais e imateriais que representa o seu passado, a
sua tradição, enfim, a sua história.” Desta maneira, nossa memória, nossa identidade, é
construída e revisitada constantemente, devido ao encurtamento das distâncias e do
mundo digital, transformando a nossa própria história. Não mais como sendo algo
unicamente local, mas uma história, uma cidadania que transcende espaços geográficos
limitados.
A escola, nessa perspectiva, precisa se adequar, ou nos dizeres de Candau (2012, p.134)
“é necessário reinventar a escola, para que possa ser mais significativa e relevante para
os tempos pós-modernos em que vivemos”, pois vivemos nessa fluidez e dinamicidade
que as novas tecnologias nos impõem. Então, ao resgatar a memória de povos indígenas
latino-americanos e trabalhar, na prática, ações que aproximam crianças dessa memória,
que não pode ser mais restrita a um povo em específico, e que a reinterpreta,
aproximando do seu cotidiano, faz com que não somente tenhamos novas práticas
escolares, mas que tenhamos “a consciência de que igualdade e diferença se exigem
mutuamente é cada vez mais forte. Os diferentes grupos socioculturais, particularmente
os historicamente marginalizados e silenciados, vêm adquirindo continuamente
crescente visibilidade e questionam a escola” (CANDAU, 2012, p. 134). E a partir desse
questionamento (dos grupos marginalizados e do trabalho sobre estes grupos) há a
formação de novos conhecimentos e contribui para a formação de uma identidade
transnacional, que supera os limites geográficos e políticos.
Percebemos que durante o ano no qual o Fronteira Intercultural atuou com o resgate da
memória indígena, as mudanças de posicionamento dos sujeitos (crianças, professoras e
bolsista) foi mais efetiva e muito mais verbalizada por eles. O engajamento de todos foi
profícuo e culminou na compreensão e respeito pelo outro, pois este outro pode ser eu
em momentos diferentes. Assim, entendemos que ao compartilharmos princípios da
Educação Patrimonial e da Educação Intercultural, em uma perspectiva interdisciplinar,
ajudamos o “reinventar a escola” proclamado por Candau e também a reinventar o
próprio indivíduo, transformando-o em um cidadão latino-americano.
ANEXOS
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Editora Unijuí, 2001. * Docente na área de Letras e Linguística da Universidade Federal da Integração Latino-Americana.
Doutora em Letras pela Universidade Federal do Paraná.
** Graduanda em Letras, Artes e Mediação Cultural da Universidade Federal da Integração Latino-
Americana.
i
A UNILA tem como característica a presença de alunos de toda a América Latina (brasileiros e
não-brasileiros), assegurada pela sua Lei nº 12.189, de 12 de janeiro de 2010.
ii A estudante cursa o bacharelado em Letras, Artes e Mediação Cultural.
iii Utilizo aqui o termo no feminino, pois a maioria dos docentes em ambas as escolas são
mulheres.
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