pedagogia de projetos
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i
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
FACULDADE DE EDUCAO
DISSERTAO DE MESTRADO
O trabalho com projetos na escola: um estudo a
partir de teorias de complexidade,
interdisciplinaridade e transversalidade
Autor: RICARDO FERNANDES PTARO Orientador: Prof. Dr. Ulisses Ferreira de Arajo
Este exemplar corresponde redao final da Dissertao
defendida por Ricardo Fernandes Ptaro e aprovada pela
Comisso Julgadora.
Data: 22/02/2008
Assinatura: ________________________________
Orientador
COMISSO JULGADORA:
__________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________
2008
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ii
by Ricardo Fernandes Ptaro, 2008.
Ficha catalogrfica elaborada pela biblioteca da Faculdade de Educao/UNICAMP
Ttulo em ingls: Education by projects at school : a study from theories of complexity, interdisciplinarity and transversality Keywords: Complexity; Transversality; Interdisciplinarity; Projects. rea de concentrao: Ensino Avaliao e Formao de Professores Titulao: Mestre em Educao Banca examinadora: Prof. Dr. Ulisses Ferreira de Arajo (Orientador) Profa. Dra. ngela Ftima Soligo Prof. Dr. Nilson Jos Machado Profa. Dra. Valria Amorim Arantes Profa. Dra. Ana Archangelo Data da defesa: 22/02/2008 Programa de Ps Graduao: Educao E-mail: ricardopataro@yahoo.com.br
Ptaro, Ricardo Fernandes. P27t O trabalho com projetos na escola : um estudo a partir de teorias de complexidade, interdisciplinaridade e transversalidade / Ricardo Fernandes Ptaro. -- Campinas, SP: [s.n.], 2008.
Orientador : Ulisses Ferreira de Arajo. Dissertao (mestrado) Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educao.
1. Complexidade. 2. Transversalidade. 3. Interdisciplinaridade. 4. Projetos. I. Arajo, Ulisses Ferreira de II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educao. III. Ttulo.
08-083-BFE
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iii
A
Cristina e Joo Victor,
pela presena, carinho, compreenso e incentivo cada
um sua maneira sem os quais este trabalho no se
concretizaria.
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v
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Ulisses Ferreira de Arajo que me acompanha e apia
desde a graduao. Por sua orientao, sobriedade e competncia, que me
fizeram perseverar neste estudo at a sua concluso.
Profa. Dra. ngela Ftima Soligo, pela presena serena, alm das
importantes contribuies e questionamentos no processo de confeco desta
pesquisa.
Ao Prof. Dr. Nilson Jos Machado, pelas provocaes e sugestes
que contriburam para o amadurecimento das idias e para a construo deste
trabalho.
Eliane Palermo Romano e Mileine Beck Goulart, sem as quais no
seria possvel desenvolver o trabalho docente descrito neste trabalho. Pelo
profissionalismo repleto de carinho que permeia nosso dia-a-dia.
s crianas da 4a srie D, queridos sujeitos da pesquisa, sem os
quais este estudo no seria possvel. Pela seriedade e empenho com que
trabalharam ao longo do ano letivo de 2005, o que tornou possvel a composio
desta investigao.
A todos os meus amigos, amigas e familiares, pelo afeto e incentivo,
e que, direta ou indiretamente, contriburam com todo este processo.
-
vii
RESUMO
O presente trabalho teve como objetivo estudar em que medida a estratgia
de projetos, enquanto metodologia de ensino, pode contribuir para o trabalho
escolar, no sentido de contemplar o conhecimento em uma perspectiva de
complexidade, interdisciplinaridade e transversalidade.
Para a pesquisa, foi utilizado um projeto escolar desenvolvido pelo
professor-pesquisador com uma turma de 4a srie do Ensino Fundamental. Os
dados coletados versavam sobre as atividades pedaggicas realizadas ao longo
do projeto, disciplinas estudadas bem como as decises de docente e discentes
ao longo do trabalho.
Os resultados da pesquisa demonstraram que a estratgia de projetos
desenvolvida incorpora elementos relativos s teorias utilizadas e que a prtica
docente analisada pode contribuir para a implantao de aes pedaggicas que
caminhem em direo das idias de complexidade, transversalidade e
interdisciplinaridade.
ABSTRACT
The present research work intended to study the contributions of education
by projects in the pedagogical work, realizing the knowledge in a complex,
interdisciplinar and transversal perspective.
The research analyzes a project developed by the teacher/researcher with a
10-years-old children classroom in 2005. The instruments used were the teachers
diary, childrens activities and project portfolio.
The results indicated that the education by projects contribute to
pedagogical practice based on complexity, transversality and interdisciplinarity.
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ix
SUMRIO
Pg. INTRODUO .................................................................................................. 17 CAPTULO I: O CONHECIMENTO E AS MUDANAS DE PARADIGMA ........ 19
Racionalidade e conhecimento ............................................................... 20 Limitaes do racionalismo .................................................................... 25 Edgar Morin e a revoluo paradigmtica .............................................. 28 Complexidade e conhecimento .............................................................. 33
a) O erro e a iluso ............................................................................ 38 b) A reduo do complexo ao simples .............................................. 41 c) A abstrao e a formalizao do conhecimento ............................ 44
Sistemas e organizao ......................................................................... 45 A opo pelo Paradigma da Complexidade ............................................ 50
CAPTULO II: A ESCOLA DIANTE DA MUDANA DE PARADIGMA .............. 53
Denise Najmanovich: a escola e a expresso da subjetividade ............. 54 Antoni J. Colom: a complexidade do ambiente escolar .......................... 59
a) A complexidade do conhecimento ................................................ 61 b) Os sistemas caticos .................................................................... 63
Montserrat Moreno: os temas transversais e as matrias curriculares ... 65 a) O construtivismo e a aventura intelectual ..................................... 70 b) Aproximar o cotidiano s matrias curriculares para lhes atribuir significado .........................................................................................
72
Ulisses F. Arajo: A escola e a construo da cidadania ....................... 73 a) Democracia ................................................................................... 76 b) Cidadania ...................................................................................... 78
A formao de cidados e cidads em uma sociedade complexa ......... 79
CAPTULO III: TRANSVERSALIDADE E ESTRATGIA DE PROJETOS ........ 83
Os objetivos da educao ...................................................................... 84 1. Transversalidade bases metodolgicas e epistemolgicas ............. 87
1.1. Disciplinas curriculares como eixo vertebrador do sistema educacional .......................................................................................
88
1.2. Temas transversais como eixo vertebrador do sistema educacional .......................................................................................
92
2. O conhecimento como uma rede de relaes .................................... 95 2.1. Pierre Lvy A metfora do hipertexto ...................................... 97
2.1.a. Breve histrico ................................................................... 97 2.1.b. O hipertexto como metfora para o jogo das significaes 99
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xi
2.1.c. A metfora do hipertexto e o conhecimento humano ......... 101 2.2. Nilson Jos Machado rede e conhecimento ............................ 104 2.3. Conhecimento como rede e as disciplinas escolares ................. 106
3. Projetos como estratgia pedaggica na escola ................................ 108 3.1. Projetos ...................................................................................... 110 3.2. Etapas de um projeto ................................................................. 112
CAPTULO IV: O PLANO DE INVESTIGAO ................................................ 115
Objetivos da pesquisa ............................................................................ 117 Metodologia ............................................................................................ 119 Instrumentos ........................................................................................... 122 Amostra .................................................................................................. 123
CAPTULO V: APRESENTAO DOS DADOS ............................................... 125
Projeto Trabalho Infantil e Educao no Brasil Unidade I
1. Discusso inicial em torno do assunto do projeto e escolha do tema ..................................................................................................
127
1.a. Observaes docentes no dirio de campo .......................... 130 ANLISE DE DADOS DA UNIDADE I .................................................... 130
Apresentao do artigo XXVI da DUDH turma ............................... 131 Escolha de temas pelas crianas da turma ....................................... 135
Unidade II
2. Produo de perguntas para compor a rede do projeto ................ 137 2.a. Observaes docentes no dirio de campo .......................... 140
ANLISE DOS DADOS DA UNIDADE II ................................................ 141 Elaborao de perguntas pelas crianas da turma ........................... 142 Disciplinas e contedos especficos dentro da rede .......................... 145
Unidade III
3. Trabalho com a pergunta 1 Por que existe explorao no trabalho de crianas? Por que elas trabalham em servios pesados, se quem tem que trabalhar so os pais? ...........................
147 3.1.a. Aula com o vdeo Profisso Criana ................................ 148 3.1.b. Observaes docentes no dirio de campo ....................... 150 3.2.a. Escrita de dilogo entre patro e criana ........................... 151 3.2.b. Observaes docentes no dirio de campo ....................... 154 3.3.a. Problemas matemticos com dados do vdeo Profisso Criana .......................................................................................
155
3.3.b. Observaes docentes no dirio de campo ....................... 160 3.4.a. Debate entre crianas, pais e patres ............................. 160
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xiii
3.4.b. Observaes docentes no dirio de campo ....................... 163 3.5.a. Histrias em quadrinhos para representar o trabalho infantil ..........................................................................................
163
3.5.b. Observaes docentes no dirio de campo ....................... 165 ANLISE DE DADOS DA UNIDADE III .................................................. 165
Contedos curriculares como instrumentos ...................................... 166 Unidade IV
4. Trabalho com a pergunta 2 O que o governo e ns podemos fazer para ajudar as crianas que esto sem estudar? .....................
173
4.1.a. Pesquisa sobre evaso escolar ......................................... 174 4.1.b. Observaes docentes no dirio de campo ....................... 180 4.2.a. Doao de jogos para a escola pblica ............................. 181 4.2.b. Observaes docentes no dirio de campo ....................... 183 4.3.a. Ida escola pblica ........................................................... 184 4.3.b. Observaes docentes no dirio de campo ....................... 188 4.4.a. Poesias e fotos da vivncia na escola pblica ................... 189 4.4.b. Observaes docentes no dirio de campo ....................... 193
ANLISE DE DADOS DA UNIDADE IV ................................................. 193 A Heterogeneidade do trabalho pedaggico ..................................... 193 Exterior indeterminado e novos caminhos ........................................ 196 Outros aspectos importantes desta unidade ..................................... 197
Unidade V
5. Outro imprevisto delineando novos rumos .................................... 200 5.1.a. A msica Bola de meia, bola de gude ............................. 201 5.1.b. Observaes docentes no dirio de campo ....................... 203
ANLISE DE DADOS DA UNIDADE V .................................................. 204 Unidade VI
6. Trabalho com a pergunta 3 O que a polcia faz quando v uma criana sendo explorada? ................................................................
206
6.1.a. Palestra de assistente social judiciria .............................. 206 6.1.b. Observaes docentes no dirio de campo ....................... 208
ANLISE DE DADOS DA UNIDADE VI ................................................. 209 CAPTULO VI: DA ANLISE DOS DADOS AOS PROBLEMAS DA
INVESTIGAO .....................................................................................
213 a. Em que medida a prtica desenvolvida permitiu o trabalho com temas transversais de maneira articulada aos contedos escolares? ....
214
b. Em que medida o trabalho permitiu que o conhecimento fosse encarado como uma rede de relaes, e no mais apenas como um caminho linear e hierarquizado? .............................................................
218
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xv
c. O projeto desenvolvido permitiu um trabalho que se abrisse s incertezas e imprevistos da prtica pedaggica? ...................................
221
CAPTULO VII: CONSIDERAES FINAIS ..................................................... 225
Estratgia de projetos e construo de valores ...................................... 227 Finalizando ............................................................................................. 230
BIBLIOGRAFIA ................................................................................................. 233
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Introduo
O presente trabalho tem como objetivo analisar em que medida a estratgia
de projetos, enquanto metodologia de ensino, pode contribuir para o trabalho
escolar, no sentido de contemplar o conhecimento em uma perspectiva de
complexidade, interdisciplinaridade e transversalidade.
Parte-se do princpio de que o conhecimento trabalhado nas sries iniciais
do Ensino Fundamental deve ser visto como uma rede de relaes (Machado,
1995), assumindo um carter interdisciplinar e transversal, com o objetivo de
formar plenamente os(as) alunos(as), para o exerccio da cidadania e a
construo de valores como justia, democracia e solidariedade (Arajo, 2002;
2003). A proposta, assim, a de buscar compreender melhor a forma
racionalizada, fragmentada e descontextualizada com a qual o conhecimento vem
sendo trabalhado atualmente nas escolas brasileiras e que, em nossa opinio, em
pouco contribuem para a democratizao do ensino e das relaes escolares.
Desta forma, para a construo do presente trabalho, assumimos como
pressuposto terico os princpios de complexidade, de Edgar Morin (1990; 1994;
2002a), articulado proposta de re-organizao escolar apresentada por Arajo
(2002; 2003), da qual faz parte a proposta de trabalho com projetos como
estratgia pedaggica.
Assim, no primeiro captulo, discutimos acerca do paradigma da
Modernidade, em contraposio aos novos paradigmas cientficos, com destaque
para a Teoria da Complexidade, buscando demonstrar de que forma o momento
de mudana paradigmtica pelo qual estamos passando implica em nossa forma
de ver o mundo, as cincias e o conhecimento.
No segundo captulo, discutimos sobre algumas propostas que diferentes
autores, fundamentados nos novos paradigmas, apresentam como forma de
questionar o trabalho pedaggico e a organizao da escola atual. Neste sentido,
recorremos s idias de Najmanovich (2001), Moreno (1998), Colom (2004) e
Arajo (2002; 2003).
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18
Ao longo do terceiro captulo, apresentamos mais profundamente os
princpios que norteiam a proposta de Arajo (2002; 2003) sobre a qual se
baseia a presente investigao , destacando de que forma tais idias podem
contribuir para uma prtica pedaggica que caminhe em direo a um trabalho
pautado nas idias de complexidade.
No quarto captulo o intuito apresentar o plano de nossa investigao, os
objetivos, definies e justificativas da pesquisa, bem como os instrumentos e
procedimentos metodolgicos que utilizamos para comp-la.
Em seguida, no quinto captulo do presente trabalho, apresentaremos os
dados da pesquisa, realizando uma anlise do material pesquisado luz das
teorias anteriormente colocadas.
No sexto captulo, nossa inteno ser a de evidenciar em que medida os
novos paradigmas esto contemplados nos dados da investigao, buscando
responder nossos questionamentos e atender aos objetivos desta pesquisa.
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19
Captulo I
O Conhecimento e as mudanas de paradigma
Trataremos aqui do advento do racionalismo, modelo de cientificidade que
se constituiu a partir da revoluo cientfica do sculo XVII e que lanou as bases
da cincia moderna. De maneira mais especfica, esboaremos as linhas gerais do
pensamento cartesiano1 do filsofo, matemtico e fsico francs Ren Descartes
(1596-1650), considerado o pai da filosofia moderna e representante do modelo
de racionalidade que queremos assinalar.
Para isso, empregaremos os estudos do portugus Boaventura de Sousa
Santos (2005) em sua obra Um discurso sobre as cincias, as anlises de
Aranha & Martins (1993), retiradas do livro Filosofando: Introduo Filosofia,
alm de um texto elaborado pelo francs Denis Huisman (1998), entre outras
obras, inclusive do prprio Descartes.
No pleiteamos, contudo, aprofundarmo-nos ou descrever minuciosamente
o perodo histrico que compreende a revoluo cientfica, tampouco compreender
a trajetria do autor destacado. Temos conscincia inclusive de que tal revoluo
revelou inmeros outros pensadores to importantes quanto o que priorizaremos.
Nosso intuito apenas o de caracterizar uma das bases da cincia moderna
ainda largamente utilizada na atualidade com o objetivo de verificar como o
racionalismo estabeleceu influncias em alguns aspectos do que hoje entendemos
por cincia.
Em um segundo momento, apontaremos algumas limitaes no que diz
respeito forma como o modelo racional de cientificidade encara o conhecimento
e a compreenso da natureza, para depois apresentarmos uma alternativa ao
racionalismo, ou o que cremos ser um possvel caminho para a construo de um
modelo cientfico que considere de maneira multidimensional os vrios aspectos
do conhecimento humano. 1 O nome latino de Ren Descartes era Cartesius, o que explica seu pensamento caracterizado pelo racionalismo ser conhecido como cartesiano. (Aranha & Martins, 1993, p. 104).
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20
Racionalidade e conhecimento
Um conhecimento baseado na formulao de leis tem como pressuposto metaterico a idia de ordem e de estabilidade do mundo, a idia de que o passado se repete no futuro.
Segundo a mecnica newtoniana, o mundo da matria uma mquina cujas operaes se podem determinar exactamente por meio de leis fsicas e matemticas, um mundo
esttico e eterno a flutuar num espao vazio, um mundo que o racionalismo cartesiano torna cognoscvel por via da sua decomposio nos elementos que o constituem.
(Santos, 2005, p.30-31)
As origens do racionalismo cientfico que orienta a cincia moderna datam
do sculo XVII. Foi durante a primeira metade deste sculo que ocorreu a
chamada revoluo cientfica, quando a cincia deixou de ser um saber que se
adquire apenas por meio da contemplao da natureza e passou a ser encarada
de forma racional. Como destaca o filsofo francs Denis Huisman, referindo-se
s transformaes ocasionadas por essa mudana de paradigma:
A natureza no mais tratada do ponto de vista de suas substncias e qualidades, mas dotada de uma estrutura racional. O real pensa-se, calcula-se, mede-se. A teoria precede o fato (...). As conseqncias desta revoluo so decisivas. As cincias se constituem pouco a pouco como disciplinas independentes, e o racionalismo cientfico comea a conquistar sua autonomia diante da Filosofia. (Huisman, 1998, p.21)
Para entendermos as reais dimenses da ruptura ocasionada por essa
revoluo cientfica preciso salientar que, antes dessa transformao radical na
maneira como se considerava o conhecimento, a cincia baseava-se em teorias
como a de Ptolomeu (astrnomo, matemtico e gegrafo grego do sculo II que
apresentou a teoria do geocentrismo, considerando a Terra como o centro do
Universo), Hipcrates (mdico grego que viveu de 460 a 377 a.C. cuja fisiologia
era baseada na teoria dos humores), bem como no ensino escolstico e no dogma
aristotlico (Huisman, 1998, p.19-21).
Sendo assim, de acordo com Huisman (idem) a revoluo cientfica
significou a superao de diversos aspectos da cincia formal vigentes ao final do
sculo XVI. Dentre estes aspectos, podemos destacar dois, cristalizados na
concepo de cincia medieval que vigorava no perodo que destacamos.
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21
O primeiro dos aspectos superado foi a doutrina de Aristteles (filsofo
grego que viveu de 384 a 322 a.C.). Antes da revoluo cientfica do sculo XVII,
os preceitos aristotlicos eram tidos como universais e de validade permanente.
Aristteles preocupava-se em demonstrar como o sujeito pode partir de dados
exclusivamente sensveis, obtidos de maneira contemplativa, individual e concreta,
e chegar a formulaes cientficas, necessrias e universais (Pessanha, 1987,
p.XI, XII, XVII, XVIII).
Aristteles foi considerado, durante um dado perodo da Idade Mdia, como
autoridade mxima da filosofia e cincias. Como nos trazem Aranha & Martins
(1993), a teoria aristotlica afirmava que as coisas eram contingentes, ou seja,
no carregavam em si mesmas as razes de sua existncia, portanto eram
produzidas por causas exteriores. Seguindo este raciocnio, todo ser contingente
foi produzido por outro ser, tambm contingente, e assim sucessivamente, o que
ocasionava um problema. A soluo encontrada por Aristteles para que este
pensamento no tendesse ao infinito, foi o estabelecimento de um ser necessrio
e incausado, Deus. Temos ento, de forma dogmtica, que:
Toda a estrutura terica da filosofia aristotlica desemboca na teologia. A descrio das relaes entre as coisas leva ao reconhecimento da existncia de um ser superior e necessrio, ou seja, Deus. (Aranha & Martins, 1993, p.98)
Em contraposio a esse carter dogmtico do modelo aristotlico, os
expoentes da revoluo cientfica comearam a desenvolver um modelo de
cincia livre de qualquer ligao com a teologia. Os fundamentos indiscutveis da
doutrina aristotlica do lugar possibilidade de dvida e, ao contrrio do que
pregava Aristteles, o racionalismo cientfico passou a ditar que a realidade
somente poderia ser conhecida pela razo, em detrimento da sensibilidade
(Aranha & Martins, 1993, p.148). o incio da busca pela verdade atravs do
entendimento racional dos fenmenos naturais.
Ainda segundo Aranha & Martins, em consonncia com a filosofia
aristotlica encontramos o segundo aspecto superado pela revoluo cientfica: o
ensino escolstico, que era praticado fora das universidades de acordo com um
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modelo filosfico cristo que vigorava desde o sculo IX. Esta perspectiva de
ensino promovia uma juno entre a razo e a f, sendo que tudo o que
ameaasse a unidade da Igreja poderia ser considerado como uma ofensa ou
heresia, o que impedia qualquer possibilidade de inovao cientfica.
Dessa forma, a reflexo, a livre investigao, os debates, as contestaes
(...) terminam com o apelo ao princpio da autoridade, que consiste na
recomendao de humildade para se consultar os intrpretes autorizados pela
Igreja. (Aranha & Martins, 1993, p.101).
O racionalismo, promovido a partir da revoluo cientfica, tinha a inteno
de pregar o senso crtico, que no era compatvel com a idia de autoridade da
igreja e do saber aristotlico, fortemente arraigados na escolstica. A ligao entre
f e cincia contestada pelos ideais racionais, que defendiam a exclusividade da
razo sobre qualquer outra faculdade humana. assim que, com a revoluo
cientfica, cai por terra um determinado modelo de cincia medieval e manifestam-
se os primeiros passos da cincia moderna.
Sintetizando, so estes os aspectos cientficos bsicos que vigoravam at o
sculo XVI e que a nova gerao de pesquisadores e eruditos, mentores da
revoluo cientfica, comeavam a criticar: o modelo aristotlico de cincia
segundo o qual o sujeito poderia chegar a formulaes cientficas universais
baseando-se apenas em dados da experincia imediata, de senso comum e o
ensino escolstico e seu princpio de autoridade fortemente apoiado pela
concepo dogmtica presente no aristotelismo.
Aranha & Martins (1993, p.104) colocam ainda que, ao decretar a falncia
do aristotelismo, a revoluo cientfica do sculo XVII ocasionou nos novos
pensadores da poca o temor de incorrerem nos mesmos erros da concepo que
buscavam superar. Dessa forma, passaram a criticar a confiana exacerbada nos
sentidos e procuraram uma forma de evitar os erros ocasionados pelas
experincias do senso comum. Trata-se de uma nova viso de mundo que
desconfia das evidncias de nossa experincia imediata, tratadas muitas vezes
como iluses e consideradas uma das bases do conhecimento vulgar, segundo
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23
os novos pensadores. Quanto a isso, o filsofo francs Ren Descartes, que figura
como cone do modelo de racionalidade destacado, afirma que:
Tudo o que recebi, at presentemente, como o mais verdadeiro e seguro, aprendi-o dos sentidos ou pelos sentidos: ora, experimentei algumas vezes que esses sentidos eram enganosos, e de prudncia nunca se fiar inteiramente em quem j nos enganou uma vez. (Descartes, 1973, p. 93,94)
A problemtica que se instaura a partir disso a de descobrir quais so os
caminhos para verificar se um conhecimento ou no verdadeiro (Aranha &
Martins, 1993). O que pode ser considerado legtimo diante de alguns dos
modelos cientficos que marcaram a Idade Mdia ressaltados anteriormente.
Assim, de acordo com Santos (2005), para buscar a prova final sobre a
veracidade de um conhecimento, o racionalismo elabora um mtodo cientfico e
prioriza tudo o que fruto do raciocnio, opondo-se aos dogmas e pontos
indiscutveis da doutrina de Aristteles e sistemas de sua poca. Essa
caracterstica racional do novo paradigma remete a uma forte distino entre
conhecimento cientfico e de senso comum, bem como entre natureza e pessoa
humana. Isso por que o modelo racional reprova a idia da doutrina aristotlica de
que se poderia fazer cincia baseando-se em dados de senso comum. Como nos
diz Santos, a respeito dessa forma de encarar o conhecimento cientfico:
(...) total a separao entre a natureza e o ser humano. A natureza to-s extenso e movimento; passiva, eterna e reversvel, mecanismo cujos elementos se podem desmontar e depois relacionar sob a forma de leis; no tem qualquer outra qualidade ou dignidade que nos impea de desvendar os seus mistrios, desvendamento que no contemplativo, mas antes activo, j que visa conhecer a natureza para a dominar e controlar. (Santos, 2005, p.25)
Dessa forma, a separao entre natureza e ser humano e a busca por uma
forma de evitar o erro levam a formulao de um mtodo nico, uma das principais
caractersticas do pensamento racional. Sob a tica deste modelo de cincia, h
apenas uma forma racional de conhecimento verdadeiro, norteada por um mtodo
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24
que, se aplicado fielmente, pode levar verdade absoluta. Mais uma vez, o
pensamento de Descartes resume bem qual o intuito desse mtodo cientfico:
Quanto ao mtodo, entendo por tal regras certas e fceis cuja observao exacta far que qualquer pessoa nunca tome nada de falso por verdadeiro, e que, sem dispender inutilmente o mnimo esforo de inteligncia, chegue, por um aumento gradual e contnuo de cincia, ao verdadeiro conhecimento de tudo o que for capaz de conhecer. (Descartes, 1971, p.24)
Apoiada na convico de que o mundo racionalmente ordenado, a busca
pela verdade que a cincia moderna promove concretizada pela aplicao de
um nico mtodo cientfico encontra na matemtica a preciso e solidez que
procurava para observar os fenmenos e desvendar os mistrios da natureza.
Como nos diz Santos:
As idias que presidem observao e experimentao so as idias claras e simples a partir das quais se pode ascender a um conhecimento mais profundo e rigoroso da natureza. Essas idias so as idias matemticas. A matemtica fornece cincia moderna, no s o instrumento privilegiado de anlise, como tambm a lgica da investigao, como ainda o modelo de representao da prpria estrutura da matria. Para Galileu, o livro da natureza est inscrito em caracteres geomtricos e Einstein no pensa de modo diferente. (Santos, 2005, p.26-27)
Ainda quanto ao lugar central da matemtica no pensamento racional,
temos o que o prprio Descartes nos diz:
Comprazia-me sobretudo com as matemticas, por causa da certeza e da evidncia de suas razes; mas no notava ainda eu verdadeiro emprego, e, pensando que serviam apenas s artes mecnicas, espantava-me, de que, sendo seus fundamentos to firmes e slidos, no se tivesse edificado sobre eles nada de mais elevado. (Descartes, 2000, p.24)
No podemos negar que este modelo de cincia que ilustramos aqui
promoveu uma ruptura histrica importante ao evidenciar a insuficincia dos
modelos medievais em explicar as descobertas e avanos cientficos da poca.
Inaugurando um novo paradigma, chamado por alguns de cartesianismo,
-
25
Descartes utilizou-se da linguagem matemtica como instrumento, estendendo o
modelo matemtico de conhecimento do mundo a todos os objetos de
conhecimento possveis. No temos dvida de que esse modelo estabeleceu
bases importantes para o que entendemos por cincia hoje e no planejamos aqui
desconsiderar todas as contribuies desta forma de pensar para a constituio
do conhecimento cientfico. Entretanto, apoiando-nos em Santos (2005),
apontaremos a seguir algumas limitaes no que diz respeito forma como este
paradigma encara o conhecimento e a compreenso da natureza.
Limitaes do racionalismo
Em um primeiro momento, Santos destaca duas grandes conseqncias
decorrentes do lugar central que assume a matemtica na cincia moderna: a
quantificao e a reduo (Santos, 2005, p.27). A primeira diz respeito ao preceito
de que conhecer relaciona-se apenas ao quantificar. A exatido cientfica para o
modelo racional de cientificidade somente pode ser avaliada pela exatido das
medies realizadas. Com isso, as qualidades inerentes a um objeto correm o
risco de serem desqualificadas e, por no serem quantificveis, podem se tornar
irrelevantes. A segunda conseqncia deve-se ao fato da Cincia Moderna
reconhecer que o mundo complicado e o intelecto humano no capaz de
compreend-lo em sua totalidade. Para que seja possvel conhec-lo, ento,
preciso dividir e classificar. Depois dessa reduo do complexo ao simples, pode-
se definir com preciso e metodicamente, que o intuito da racionalidade, quais
so as relaes entre o que foi dividido, para recompor a realidade, agora com
maior entendimento dela. Assim sendo, o modelo de racionalidade cientfica:
(...) aspira formulao de leis, luz de regularidades observadas, com vista a prever o comportamento futuro dos fenmenos. A descoberta das leis da natureza assenta (...) no isolamento das condies iniciais relevantes (...) e no pressuposto de que o resultado se produzir independentemente do lugar e do tempo em que se realizarem as condies iniciais. Por outras palavras, a descoberta das leis da natureza assenta no princpio de que a posio absoluta e o tempo absoluto nunca so condies iniciais relevantes. (Santos, 2005, p.29)
-
26
De acordo com Santos (2005, p.21), o rigor metodolgico e matemtico e a
reduo da realidade podem ser vistos como caractersticas essenciais deste
paradigma cientfico e talvez as que melhor assinalam sua ruptura com os
modelos que o precedem. Com relao a esse rigor metodolgico, que busca a
ordem e a simplificao da complexidade encontrada na realidade, podemos ainda
nos remeter ao que o prprio Descartes nos diz:
Todo o mtodo consiste na ordem e disposio dos objectos sobre os quais preciso fazer incidir a penetrao da inteligncia para descobrir qualquer verdade. A ele permaneceremos cuidadosamente fiis, se reduzirmos gradualmente as proposies complicadas e obscuras a proposies mais simples, e em seguida, se, partindo da intuio das que so mais simples de todas, tratarmos de nos elevar pelos mesmos graus ao conhecimento de todas as outras. (Descartes, 1971, p.32)
Diante das idias expostas at aqui, possvel estabelecer sinteticamente
que o paradigma da racionalidade que embasa a cincia moderna utiliza-se de
alguns preceitos bsicos para conhecer o mundo. Segundo os ideais do
racionalismo, o conhecer pode ser visto como uma busca pela verdade, na
tentativa de eliminar erros, divergncias ou dvidas em direo ordem, ou seja,
perfeio do real. Mas este real complicado, por isso necessrio dividi-lo e
simplific-lo para formalizar as relaes entre as partes decompostas do real
como prescreve o prprio Descartes , e somente assim possvel compreender
a realidade e medi-la com exatido.
Em um segundo momento, Boaventura de Sousa Santos (2005) coloca sua
preocupao de que o paradigma cartesiano pode se tornar um modelo de
racionalidade global e totalitrio. Global ao pretender regrar e abarcar todas as
formas de conhecimento consideradas racionais; e totalitrio ao negar este cunho
racional a qualquer outra forma de conhecimento que no se oriente por seus
princpios epistemolgicos e metodolgicos. o caso, portanto, dos saberes do
senso comum e os estudos humansticos (em que se incluem os estudos
histricos, literrios, filosficos, teolgicos entre outros, baseados em uma
subjetividade), que correm o risco de ser considerados no cientficos e
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irracionais se tomarmos risca os preceitos listados pelo modelo cientfico de
racionalidade (Santos, 2005, p.21).
No obstante, seria uma insensatez, como j dissemos, deixar de
reconhecer o mrito das idias do filsofo francs Ren Descartes e a importncia
que tiveram para a constituio de uma cincia que possibilitou, ao longo de
sculos de trabalho, os avanos em todas as reas do conhecimento cientfico
que podemos distinguir atualmente.
Mas, assim como o modelo racional proposto por Descartes significou uma
superao do modelo aristotlico anterior, hoje, de acordo com Santos,
atravessamos um novo momento de transio. Vivemos em um tempo em que
ocorre de maneira concomitante muita coisa que est mais frente de nosso
tempo, mas tambm outras que j deveriam ter sido superadas, diante das
inmeras possibilidades de nossa realidade cientfica. o caso, por exemplo, das
potencialidades tecnolgicas confrontadas com os perigos iminentes da catstrofe
ecolgica ou da guerra nuclear (Santos, 2005, p.14). Esse tempo de descompasso
e contradio descrito por Santos exprime os limites apresentados pelo paradigma
de racionalidade, que em alguns aspectos tornou-se insuficiente para explicar a
realidade, assim como um dia tambm este evidenciou a insuficincia do modelo
que o precedia. Como nos diz Santos:
Vivemos num tempo atnito que ao debruar-se sobre si prprio descobre que os seus ps so um cruzamento de sombras, sombras que vm do passado que ora pensamos j no sermos, ora pensamos no termos ainda deixado de ser, sombras que vm do futuro que ora pensamos j sermos, ora pensamos nunca virmos a ser. (Santos, 2005, p.13)
A partir do que foi apresentado anteriormente, podemos dizer que vivemos
hoje uma nova revoluo cientfica que no se sabe ao certo quando acabar.
Essa revoluo vem apontar os limites do que Santos considera como os trs
pilares do modelo de racionalidade cientfica: o quantificar, o objetivar e o
caracterizar. Segundo Santos, o rigor cientfico do racionalismo, que est
fortemente apoiado no rigor matemtico, pode ser usado para quantificar de
maneira muito rgida e assim desqualificar os fenmenos estudados pelo cientista.
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Prosseguindo, o autor destaca que se a busca pela objetividade do racionalismo
cientfico se tornar exagerada, pode transformar em meros objetos esses
fenmenos complexos e acabar por degrad-los, descaracterizando-os. E ainda,
ao caracterizar rigorosamente, pode caricaturizar os fenmenos estudados,
deformando-os (Santos, 2005, p.54).
Diante dessa idias, Santos afirma que o paradigma racional de
cientificidade enfrenta uma crise e que a noo de lei, defendida por este modelo
de cincia, tem sido substituda pelas noes de sistema, estrutura, modelo e
processo (Santos, 2005, p.52).
So sinais claros de que algumas insuficincia dos antigos modelos em
explicar a realidade abrem espao para o despontar de um novo paradigma.
Contudo, nas palavras do prprio Santos, podemos apenas:
(...) especular acerca do paradigma que emergir deste perodo revolucionrio mas que, desde j, se pode afirmar com segurana que colapsaro as distines bsicas em que assenta o paradigma dominante (...) (Santos, 2005, p.41)
Assim sendo, situadas as bases que orientam o paradigma de racionalidade
da cincia moderna e delimitados alguns dos elementos que fundam sua
ampliao rumo a um novo modelo, passaremos agora exposio do que
cremos ser uma nova possibilidade de paradigma cientfico.
Edgar Morin e a revoluo paradigmtica
Se temos gravadas em ns essas formas de pensamento que nos levam a reduzir, a separar, a simplificar, a ocultar os grandes problemas, isto se deve ao fato de que reina em ns um paradigma profundo, oculto, que governa novas idias sem que nos demos
conta. Cremos ver a realidade; em realidade vemos o que o paradigma nos pede para ver e ocultamos o que o paradigma nos impe a no ver. Hoje, em nosso sculo, se
estabelece o seguinte problema: podemos perguntar-nos se comeou uma revoluo paradigmtica. Uma revoluo orientada, evidentemente, em direo da complexidade.
(Morin, 1994, p.276)
Ao indagar-se acerca da possibilidade de vivermos em nosso sculo uma
nova revoluo paradigmtica, o francs Edgar Morin situa a anlise dessa
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questo em trs planos: o das cincias fsicas, o das cincias humanas e o da
poltica (Morin, 1994, p.276-277).
Quanto ao primeiro plano, o das cincias fsicas, para evidenciar o
questionamento que vem sendo posto ao modelo racional de cincia em direo a
outro paradigma, Morin destaca a derrubada do que se pode intitular como sendo
o dogma central da fsica clssica, largamente influenciado pelo pensamento
racional o qual vimos tratando at o momento: a ordem. Segundo Morin, muitos
pensadores influenciados pelos ideais racionais de Descartes consideravam o
mundo como sendo perfeito e buscavam leis imutveis para explic-lo. Laplace
considerava o mundo como uma mquina mecnica absolutamente ordenada e
perfeita; Newton, por sua vez, concebia o universo como um relgio que, se fosse
bem analisado, poderia revelar os princpios e leis gerais de seu funcionamento.2
E assim, as influncias do pensamento racional no desenvolvimento da
cincia moderna produziram alguns cientistas que procuravam somente a ordem
nos fenmenos estudados, derivando-a em preceitos e regras universais que
buscavam verdades absolutas. Isto significa que, de acordo com algumas
abordagens a esse modo de se pensar a cincia, a desordem no passaria de
uma iluso, pois tudo o que se busca a ordenao das leis naturais.
Segundo Morin, este mundo de ordem e perfeio, idealizado pelos
cientistas modernos, tinha no tomo seu fundamento essencial, o tijolo elementar
e indivisvel da matria que constitui o mundo. Todavia, esse mundo perfeito
sucumbiu quando se viu que o tomo no era a unidade elementar to procurada,
mas apenas mais um sistema complexo. Alm do mais, ele prprio composto por
novas partculas que tambm so entidades altamente complexas, no limite entre
o material e o no-material, dotadas de estranha qualidade de poder ser tanto
onda quanto corpsculo, sem ser nem um nem outro. (Morin, 1994, p.277).
Prosseguindo, Morin continua enumerando outros exemplos que
evidenciam algumas insuficincias do modelo de racionalidade em explicar vrios 2Newton convenceu-nos de que, como um relgio gigantesco, o universo e seu funcionamento poderiam ser abertos e examinados; se a abertura e o exame fossem bem-feitos, no destruiriam os processos absolutamente ordenados a serem descobertos l dentro. De acordo com essa viso, uma pessoa poderia examinar o funcionamento desse universo ordenado e extrair princpios e leis gerais que poderiam explicar outras relaes observadas. (Lewis, 1999, p.147)
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aspectos do funcionamento do mundo nossa volta. Entre eles importante citar
o caso do surgimento de novas cincias que renem elementos de diversas
disciplinas clssicas, at ento tidas como isoladas entre si. Este o caso da
recente ecologia, ou mesmo da cosmologia e geologia, onde os objetos de estudo
deixam de ter um carter fechado e adquirem a noo de sistema, levando em
considerao as interaes entre os seres, elementos, condies geofsicas de
um dado lugar que possui vida e regulaes prprias. Estes exemplos de Morin
levantados para explicitar as relaes que podem se estabelecer entre diferentes
reas do saber no podem ser tomados, no entanto, como o fim da
disciplinarizao. Ao contrrio, as disciplinas clssicas continuam sendo
importantes na compreenso da realidade na medida em que tomam como objeto
de anlise uma parte da realidade que pode ajudar a compreender o todo, como
veremos mais adiante.
Diante dessas idias, Morin afirma que at mesmo o nascimento de nosso
universo conseqncia de uma dialgica de ordem e desordem (Morin, 1994,
p.277). Segundo Morin, as idias heterogneas de ordem e desordem devem ser
consideradas de maneira dialgica, pois se constituem como produtoras de todas
as organizaes existentes no Universo:
Devemos, pois, trabalhar com a desordem e com a incerteza, e darmo-nos conta de que trabalhar com a desordem e com a incerteza no significa deixar-se submergir por elas; , enfim, colocar prova um pensamento energtico que os olhe de frente. Hegel dizia que o verdadeiro pensamento o pensamento que enfrenta a morte, que olha de frente a morte. O verdadeiro pensamento o que olha de frente, enfrenta a desordem e a incerteza. (Morin, 1994, p.277)
Trata-se, portanto, de uma mudana fundamental com relao ao
paradigma racional da cincia moderna, que se baseava na busca pela certeza e
pelas verdades universais, em ltima instncia, na busca pela ordem. O que
Morin se prope a fazer aqui evidenciar que, atualmente, as cincias tm
encontrado cada vez mais evidncias de que o pensamento racional, que valoriza
apenas o que lgico, linear e ordenado, torna-se insuficiente para explicar a
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complexidade e multidimensionalidade do mundo real, se tomado de maneira
nica e exclusiva.
Em um segundo plano, Morin se prope a analisar as cincias humanas,
ou, como afirma o prprio autor, o conhecimento do ser humano3. Aprendemos a
analisar o ser humano de uma maneira comodamente disjuntiva, isto ,
encaramos a existncia biolgica do ser humano em separado das dimenses
culturais e psicolgicas. Assim, muito freqentemente o fazem os departamentos
de biologia e de cincias humanas e psicologia das universidades, sem se dar
conta de que ambos aspectos, biolgico e psquico, unem-se na constituio de
nossa humanidade. Criticando essa separao no estudo do ser humano, Morin
coloca que todo indivduo:
(...) tem um crebro, que um rgo biolgico, e um esprito, que um rgo psquico. Acaso alguma vez ambos se encontram? O esprito e o crebro no se encontram jamais. As pessoas que estudam o crebro no se do conta de que estudam o crebro com seu esprito. Vivemos nessa disjuno que nos impe sempre uma viso mutilada. Mas, alm disso, o ser humano no somente biolgico-cultural. tambm espcie-indivduo, sociedade-indivduo; o ser humano de natureza multidimensional. (Morin, 1994, p.281)
Alm disso, Morin nos chama a ateno para as dimenses simblicas,
mitolgicas e mgicas que constituem o ser humano. Cada pessoa um
intrincado mundo de interaes entre o que pode ser chamado de pensamento
racional, emprico e tcnico e as dimenses simblicas, mitolgicas e mgicas. A
partir disso, o autor busca evidenciar, mais uma vez, a necessidade de se ampliar
o modelo herdado da modernidade para se explicar a complexidade do
funcionamento do ser humano e levar-nos a um entendimento da necessidade de
um estudo que considere as interaes entre as diferentes esferas que constituem
o intricado universo da constituio humana.
3 Originalmente encontramos a palavra homem neste texto de Edgar Morin, mas por uma questo de gnero optamos por usar o termo ser humano em substituio. Este ser o procedimento adotado ao longo de todo o presente trabalho, por acreditarmos na importncia do uso de um termo que garanta o entendimento de que se fala no apenas do sexo masculino, mas tambm do feminino, em respeito s relaes de igualdade entre os gneros.
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Quanto ao terceiro plano, o da poltica, Morin afirma que esta foi durante
muito tempo considerada apenas como a capacidade de governar. Entretanto, o
autor destaca que pensar a poltica atualmente implica considerar uma srie de
outros fatores e questes. Por exemplo, durante a Revoluo Francesa a poltica
converteu-se em algo mais, alguns aspectos humanos foram-lhe incorporados e
ela pde proporcionar liberdade, igualdade e fraternidade aos cidados,
melhorando a sociedade. Segundo Morin, assim tambm ocorre com a
demografia, que era um problema puramente biolgico, mas tornou-se poltico
quando a questo do controle da natalidade e o aumento da populao tornaram-
se preocupaes de ordem social. O mesmo nos diz o autor quando cita mais um
exemplo, o da ecologia:
O problema da ecologia, que parecia uma questo totalmente exterior, converteu-se num problema poltico desde que compreendemos que a degradao que ocasionamos na biosfera apresenta conseqncias sociais e polticas, em se tratando da contaminao local de um riacho ou de um lago, que apresenta um problema concreto para uma cidade ou uma regio, ou dos problemas globais da biosfera. (Morin, 1994, p.282)
Alm disso, Morin cita outros exemplos de questes que se converteram
em problemas polticos, como a possibilidade de criar vida em proveta, ou mesmo
os avanos nas tecnologias nucleares que geram preocupaes com a vida e a
morte e com a questo do armamento nuclear (Morin, 1994, p.283).
Diante dessa idias, Morin tenta demonstrar como o modelo de
racionalismo cientfico, apresentado anteriormente atravs da filosofia cartesiana,
tem sido ampliado, tanto no mbito das cincias fsicas, como no das cincias
sociais e polticas. Segundo o autor, necessrio elaborar um pensamento
complexo apropriado para entender que esses vrios aspectos do conhecimento
humano, fsico, social e poltico, precisam se vistos em sua multidimensionalidade
(Morin, 1994, p.283). E a elaborao desse pensamento complexo passa
necessariamente pelo reconhecimento dos riscos de tomarmos o paradigma
cartesiano como nica forma de encarar a realidade, deixando de lado a
complexidade do real em nome de uma simplificao excessiva.
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a partir desse contexto que propomos a utilizao do paradigma da
complexidade como embasamento terico e epistemolgico do trabalho que aqui
se constri. Assim, ao nos darmos conta das limitaes do paradigma da
modernidade, nossa proposta ser a de encarar a realidade e o conhecimento a
partir no apenas da ordem e das certezas, mas tambm da desordem e das
incertezas que compem o mundo que nos cerca, considerando ambos aspectos
(ordem e desordem) como constituintes do conhecimento humano.
Complexidade e conhecimento
(...) o sculo XX viveu sob o domnio da pseudoracionalidade que presumia ser a nica racionalidade, mas atrofiou a compreenso, a reflexo e a viso em longo prazo. Sua insuficincia para lidar com os problemas mais graves constituiu um dos mais graves
problemas para a humanidade. Da decorre o paradoxo: o sculo XX produziu avanos gigantescos em todas as reas do
conhecimento cientfico, assim como em todos os campos da tcnica. Ao mesmo tempo, produziu nova cegueira para os problemas globais, fundamentais e complexos, e esta
cegueira gerou inmeros erros e iluses, a comear por parte dos cientistas, tcnicos e especialistas.
Por qu? Porque se desconhecem os princpios maiores do conhecimento pertinente. O parcelamento e a compartimentao dos saberes impedem apreender o que est tecido
junto. (Morin, 2002c, p.45)
De acordo com Morin (1990, p.16), vivemos um tempo em que predominam
os princpios de disjuno, reduo e abstrao, cujo conjunto constitui o que o
autor intitula de paradigma da simplificao (idem). Esse paradigma a que Morin
se refere foi formulado por Descartes quando o filsofo cartesiano props o
pensamento disjuntivo, que coloca como princpio de verdade somente as idias
claras e distintas, como vimos brevemente no incio deste captulo.
Para Morin, este paradigma disjuntivo, que embasa a cincia moderna,
possibilitou os grandes progressos do conhecimento cientfico e da reflexo
filosfica desde o sculo XVII, quando se deu a revoluo cientfica e os ideais
cartesianos afloraram. No entanto, segundo Morin, ao mesmo tempo em que
acarretou desenvolvimento cientfico, o paradigma da simplificao tambm trouxe
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conseqncias nocivas que s comearam a revelar-se mais recentemente, no
sculo XX.
Segundo o que nos traz o autor, o princpio da disjuno separou e isolou
entre si os trs grandes campos do conhecimento cientfico: a fsica, a biologia e a
cincia de estudo do ser humano. Essa separao trouxe consigo alguns riscos e
pode reduzir tambm a complexidade existente no real. Para que fosse possvel
conhecer a realidade segundo o paradigma da simplificao, era preciso reduzir o
biolgico ao fsico e o humano ao biolgico, ocasionando o que o autor denomina
uma hiperespecializao. Dessa maneira, segundo Morin, esse processo de
aprofundamento em reas to especficas do conhecimento que a cincia
moderna proporcionou por meio da disjuno, retalhou o tecido complexo do real
descaracterizando-o e simplificando-o em busca de ordem. Como nos diz Morin a
respeito das conseqncias que essa hiperespecializao teria para a cincia:
Uma hiperespecializao devia ainda rasgar e retalhar o tecido complexo das realidades, e fazer crer que o corte arbitrrio operado sobre o real era o prprio real. Ao mesmo tempo, o ideal do conhecimento cientfico clssico era descobrir, por detrs da complexidade aparente dos fenmenos, uma Ordem perfeita legislando uma mquina perptua (o cosmos), ela prpria feita de microelementos (os tomos) reunidos diferentemente em objectos e sistemas. (Morin, 1990, p.17)
Essa busca pela ordem e perfeio em meio complexidade do real
baseia-se em grande parte na quantificao e no clculo. Como nos diz Morin, o
paradigma da simplificao matematizou e formalizou o conhecimento humano
recortando pedaos da realidade e tomando-os como a prpria realidade. Isolando
os objetos daquilo que os envolve, a cincia moderna e racional desintegrou os
seres e os existentes para apenas considerarem como nicas realidades as
frmulas e equaes que governam as entidades quantificadas. (Morin, 1990,
p.17-18).
assim que, segundo Morin, o paradigma que governa a cincia como a
conhecemos atualmente torna-se insuficiente para que possamos compreender a
complexidade do que est tecido junto (Morin, 2002c, p.45). O paradigma da
simplificao tende a fragmentar, simplificar e formalizar o tecido do real,
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compreendendo a natureza unicamente a partir do funcionamento de suas partes,
que so vistas de maneira isolada sob a tica de campos especficos e
hiperespecializados do saber.
Em contraposio a esse paradigma da simplificao, Morin prope o
paradigma da complexidade, ou pensamento complexo, que supe considerar que
a realidade formada por uma extrema quantidade de interaces e de
interferncias entre um nmero muito grande de unidades. (Morin, 1990, p.51-52).
Isso faz com que as previses e a possibilidade de clculo do modelo racional de
cincia discutido anteriormente comecem a dar lugar tambm para a incerteza,
indeterminaes e fenmenos aleatrios. Nas palavras do prprio autor, A
complexidade num sentido tem sempre contacto com o acaso. (Morin, 1990, p.52,
grifos do autor). Esse acaso, citado pelo autor, est relacionado existncia de
fenmenos que no podem ser previstos, nem determinados e que agregam
contradio, incerteza e indistino, aspectos que o pensamento simplificador
encarava de uma maneira racional e considerava incompatveis com o
conhecimento humano. Ao contrrio do pensamento simplificador, Morin coloca
que:
A complexidade se impe primeiro como impossibilidade de simplificar; ela surge l onde a unidade complexidade produz suas emergncias, l onde se perdem as distines e clarezas nas identidades e causalidades, l onde as desordens e as incertezas perturbam os fenmenos, l onde o sujeito-observador surpreende seu prprio rosto no objeto de sua observao, l onde as antinomias fazem divagar o curso das racionalizaes... (Morin, 2002a, p.456)
Alm disso, um outro aspecto importante com relao ao paradigma da
complexidade est relacionado ao fato de que o complexo aquilo que assinala
uma dificuldade para ser explicado. O pensamento complexo, assim, no abre
todas as portas, pois nele est presente a dificuldade. Morin afirma que, no fundo,
gostaramos de evitar a complexidade, de ter idias simples para explicar o que
ocorre ao nosso redor (Morin, 1994, p.274). Mas o autor afirma tambm que a
complexidade no pode ser simplificada e nem simplesmente tomada como
sinnimo de complicao, pois o que complicado pode ser reduzido a princpios
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mais simples. A complexidade desafia nosso entendimento e O simples apenas
um momento arbitrrio de abstrao arrancado das complexidades, um
instrumento eficaz de manipulao laminando um complexo. (Morin, 2002a,
p.456).
Logo, sob a tica do pensamento complexo, a simplificao no
censurada, mas torna-se insuficiente para explicar a realidade, pois, quando se
considera o real como algo complexo que no pode ser explicado por intermdio
apenas de redues, deve-se aceitar que este real no pode ser encarado apenas
como um conhecimento ordenado e perfeito, mas tambm incerto, contraditrio e
complexo; o conhecimento complexo em sua constituio, como nos diz Morin:
Creio ter demonstrado que este tipo de reduo, absolutamente necessria, torna-se cretinizante assim que se torna suficiente, ou seja, pretende explicar tudo. O verdadeiro problema, portanto, no devolver a complicao dos desenvolvimentos a regras de base simples. A complexidade est na base. (Morin, 2002a, p.456, grifos do autor)
Como vimos acima, o prprio Morin entende ser a reduo um processo
necessrio para a constituio do conhecimento, s no admite que esta se torne
a nica forma pela qual conheceremos a realidade.
O autor coloca ainda que o pensamento complexo no onisciente. Longe
disso, o pensamento que compreende ser situado em um tempo e momento
bem definidos. Isto significa que trabalhar com a realidade a partir do pensamento
complexo demanda conceber que o conhecimento completo impossvel, ou seja,
que o prprio conhecimento em si, incompleto, incerto e agrega contradio.
Conceber a complexidade do conhecimento , tambm, entender que se faz
necessrio considerar no s seus aspectos ordenados, no s os processos de
sntese necessrios ao ato de conhecer, mas:
(...) o pensamento complexo reconhece ao mesmo tempo a impossibilidade e a necessidade de totalizao, de unificao, de sntese. Deve pois tragicamente visar totalizao, unificao, sntese, mesmo lutando contra a pretenso a essa totalidade, unidade, sntese, com a conscincia absoluta e irremedivel do carter inacabado de todo conhecimento, de todo pensamento e de toda obra. (Morin, 1999a, p.38)
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Alm disso, ao contrrio do paradigma da simplificao, que pretendia
explicar e certificar tudo a partir da reduo, o pensamento complexo rompe com o
dogmatismo da certeza. Dessa maneira, Devemos aprender a viver com a
incerteza e no, como nos quiseram ensinar h milnios, a fazer qualquer coisa
para evitar a incerteza. (Morin, 1994, p.285).
Como vimos at agora, o paradigma da complexidade busca superar alguns
limites impostos pelo racionalismo cientfico, ou paradigma da simplificao como
denomina Morin. Este ltimo preconiza os princpios de disjuno, reduo e
abstrao na medida em que, para conhecer o mundo, busca uma ordem e uma
verdade que tentem superar os erros; separa a realidade em inmeras partes para
simplific-la e formaliza as relaes entre essas partes do real para transform-las
em um conhecimento racional e aceitvel.
Para dar prosseguimento apresentao que fazemos do paradigma da
complexidade, recorremos ao que nos diz Morin:
(...) da crise desta cincia que os novos dados e as novas noes que nos permitem reconstruir um novo universo saem. Como veremos, as noes que colocam em crise a viso simplificante do universo so as mesmas que permitem conceber um universo complexo. (Morin, 2002a, p.443)
Tomando por base este ponto de vista, apresentaremos a seguir os
princpios que fundamentam o pensamento complexo a partir justamente das
limitaes do paradigma simplificador. Para isso, ressaltaremos a seguir algumas
questes que emergem da crise no pensamento cartesiano, segundo a tica de
Morin.
A primeira delas diz respeito ao erro, ao qual o pensamento cartesiano
busca sempre uma forma racional de explicao.
Em segundo lugar, trataremos da reduo do complexo ao simples, bem
como de toda a disjuno que essa reduo pressupe e das conseqncias
desta para a complexidade do conhecimento.
Em um terceiro momento, abordaremos a questo da formalizao,
abstrao e quantificao do conhecimento promovidas pela cincia moderna, o
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que pode acabar por descontextualizar todo o conhecimento da realidade nossa
volta.
Por ltimo, abordaremos as noes de sistema e organizao, conceitos
que procuram superar as limitaes do pensamento racional cujo objetivo era a
busca pela ordem e pelas certezas no conhecimento humano.
a) O erro e a iluso
Todo conhecimento comporta o risco do erro e da iluso. (...) O conhecimento, sob forma de palavra, idia, de teoria, o fruto de uma traduo/reconstruo por meio da
linguagem e do pensamento e, por conseguinte, est sujeito ao erro. Este conhecimento, ao mesmo tempo traduo e reconstruo, comporta a interpretao, o que introduz o erro na subjetividade do conhecedor, de sua viso de mundo e de seus princpios de
conhecimento. (Morin, 2002c, p.19-20)
Ao tecer algumas consideraes sobre a diversidade e multiplicidade da
noo de conhecimento, Edgar Morin enuncia que todo conhecimento comporta
uma competncia entendida como aptido para produzir conhecimento , uma
atividade cognitiva, e um saber (Morin, 1999a, p. 18). Em primeiro lugar, Morin nos
diz que as competncias e atividades cognitivas necessitam de um aparelho
cognitivo: o crebro. Em segundo lugar, que a produo de conhecimento, do
saber, acontece apenas quando o sujeito est em contato com uma cultura, uma
vez que os processos de elaborao e organizao do conhecimento ocorrem a
partir dos meios culturais disponveis (linguagem, lgica, capital de saberes,
critrios de verdade). assim que, para Morin,
(...) todo acontecimento cognitivo necessita da conjuno de processos energticos, eltricos, qumicos, fisiolgicos, cerebrais, existenciais, psicolgicos, culturais, lingsticos, lgicos, ideais, individuais, coletivos, pessoais, transpessoais e impessoais, que se encaixam uns nos outros. O conhecimento , portanto, um fenmeno multidimensional, de maneira inseparvel, simultaneamente fsico, biolgico, cerebral, mental, psicolgico, cultural, social. (Morin, 1999a, p.18)
Desta forma, Morin considera que todo o conhecimento s possvel a
partir da relao de vrios fatores, quais sejam cerebrais, mentais, e tambm
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fsicos, biolgicos, psicolgicos, culturais e sociais. Essa conjuno de fatores o
que d origem mente humana, que se desenvolve em meio relao entre a
atividade cerebral e a cultura, e responsvel pela organizao do conhecimento
e aes humanas (Morin, 2002b, p.97).
Dessa maneira, o fato do crebro humano encontrar-se fechado dentro da
caixa craniana e comunicar-se com o exterior apenas por terminais sensitivos que
recebem os diferentes estmulos (visuais, sonoros, olfativos, gustativos e tteis) do
mundo nossa volta, revela como a questo do erro e da iluso so problemas
permanentes da mente humana. Os estmulos enviados pelos cinco sentidos so
traduzidos em um cdigo e transmitidos para diferentes reas cerebrais que as
traduzem novamente e s ento as transformam em percepes. Assim sendo,
nas palavras do prprio Morin, essa dinmica cerebral indica que (...) todo
conhecimento, toda percepo, ideal ou terica, , ao mesmo tempo, uma
traduo e uma reconstruo. (Morin, 2002b, p.96).
Posto isso, Morin afirma que no compete ao crebro distinguir o imaginrio
do real. Essa distino, segundo o autor, torna-se possvel apenas pela atividade
racional da mente humana, que recorre ao controle do meio para (...) assegurar a
objetividade do mundo exterior e operar a distino e a distncia entre ns e o
mundo. (Morin, 2002b, p.97). Esse controle do meio exemplificado por Morin no
nvel da prtica (como, por exemplo, a ao humana sobre as coisas), da cultura
(a referncia ao saber comum) e da relao com nossos semelhantes (quando
nos perguntamos: o outro v as mesmas coisas que eu?).
Diante dessa caracterstica representativa do conhecimento, que sempre
uma traduo e reconstruo do real, o erro e a iluso podem ser vistos como
integrantes permanentes dos processos cognitivos da mente humana,
acompanhando sem trgua, como afirma Morin, a atividade mental do ser
humano (Morin, 2002b). Dessa maneira, encarar o conhecimento sob a tica da
complexidade entend-lo como inseguro e incompleto, por se tratar de uma
traduo do real, e no uma cpia exata deste.
Na viso dos pensadores racionalistas, a manifestao de uma contradio
em um raciocnio ou fenmeno indicava a presena de um erro. Ao encarar esse
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erro, muitas vezes o cientista moderno tomava outros raciocnios, na tentativa de
evit-lo ou enquadr-lo em uma lgica probabilstica que reduzisse a sua
presena. Na viso complexa, segundo Morin, o aparecimento de uma contradio
no significa um erro, (...) mas o atingir de uma camada profunda da realidade
que, justamente porque profunda, no pode ser traduzida para a nossa lgica.
(Morin, 1990, p.99).
Isso quer dizer que, ao contrrio do que pensavam os cientistas modernos,
influenciados pelos ideais racionais do pensamento cartesiano, o erro e a iluso
no descaracterizam o conhecimento, mas o constituem e evidenciam sua
complexidade, compreendida tambm enquanto a impossibilidade de atingir a
totalidade do saber.
Segundo o autor, a viso no complexa das cincias separa as realidades
para estud-las, e assim, as dimenses constitutivas do real correm o risco de
serem isoladas pelo cientista, que se esquece de que todas esto em interao e
constituem uma nica realidade multidimensional. Este o caso da economia
exemplificado por Morin:
A viso no complexa das cincias humanas (...) pensar que h uma realidade econmica, de um lado, uma realidade psicolgica, de outro lado, uma realidade demogrfica, de outro, etc. Julga-se que estas categorias criadas pelas universidades so realidades, mas esquece-se que na economia, por exemplo, existem as necessidades e os desejos humanos. Por detrs do dinheiro, h todo um mundo de paixes, h a psicologia humana. (...) A dimenso econmica contm as outras dimenses e no pode compreender nenhuma realidade de maneira unidimensional. (Morin, 1990, p.100)
Isso significa que parcelar ou entender a realidade de maneira
unidimensional ou especializada pode empobrecer o real. Sob a tica da
complexidade, preciso compreender que as vrias dimenses da realidade, as
quais podem ser parceladas para serem estudadas, esto ligadas umas s outras.
Isso, segundo Morin, leva a uma confuso de que a complexidade est
relacionada completude. Mas, no entanto, a complexidade, que aspira
completude, no pode ser resumida a essa completude. Embora nessa viso
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multidimensional proposta pelo pensamento complexo tudo seja solidrio, a
totalidade no a verdade, j que a realidade permeada pelos fatores de erro e
incerteza inerentes ao conhecimento humano.
Do mesmo modo, afirma o autor, a complicao, que a confuso extrema
das inter-retroaces (Morin, 1990, p.101), no pode ser confundida com a
complexidade. A complicao apenas um dos elementos da complexidade que
lhe permite tolerar a desordem, por exemplo. Portanto, completude e complicao
so constituintes da complexidade, mas no se reduzem umas s outras.
Com tudo isso, podemos dizer que fica clara a posio de Morin quanto
necessidade de superao do modelo de racionalidade cientfica, ou paradigma da
simplificao que prioriza a busca pela certeza e verdade universais e prope a
existncia de um mundo lgico, que, visto de maneira fragmentada e ordenada,
pode se fechar para as incertezas e contradies da realidade. O pensamento
complexo, proposto por Morin, busca superar essa viso, defendendo a
complexidade do real, evidenciando as inmeras interaes que existem entre os
elementos constitutivos da realidade e demonstrando a necessidade de
aprendermos a considerar o erro e a iluso como elementos que compem a
realidade dos diversos fenmenos nossa volta.
b) A reduo do complexo ao simples
(...) o paradigma da simplicidade um paradigma que pe ordem no universo e expulsa dele a desordem. A ordem reduz-se a uma lei, a um
princpio. A simplicidade v quer o uno, quer o mltiplo, mas no pode ver que o Uno pode ser ao mesmo tempo Mltiplo. O princpio da simplicidade
quer separar o que est ligado (disjuno), quer unificar o que est disperso (reduo). (Morin, 1990, p.86)
Como afirma Edgar Morin, o pensamento simplificador governou a maioria
das cincias at meados do sculo XX. O princpio de reduo inerente ao
paradigma da simplificao e que dirige as cincias de maneira geral pode
restringir o conhecimento do todo ao conhecimento de suas partes, sem levar em
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considerao que a organizao do todo pode produzir qualidades e propriedades
novas em relao s partes consideradas isoladamente (Morin, 2002c, p.42).
Segundo Morin, a inteligncia que provm de tal modelo de reduo da
complexidade do mundo fragmenta a realidade separando o que est
originalmente ligado. uma inteligncia mope, cega que parcela, reduz e
fraciona os problemas, tornando unidimensional o que multidimensional.
Conseqentemente,
(...) quanto mais os problemas se tornam multidimensionais, maior a incapacidade de pensar sua multidimensionalidade; quanto mais a crise progride, mais progride a incapacidade de pensar a crise; mais os problemas se tornam planetrios, mais eles se tornam impensveis. Incapaz de pensar o contexto e o complexo planetrio, a inteligncia cega torna-se inconsciente e irresponsvel. (Morin, 2002c, p.43)
Essa inteligncia cega, a qual se refere Morin, fruto da ambio da
cincia clssica em isolar os fenmenos, suas causas, seus efeitos, extraindo da
natureza seus segredos ao preo da simplificao. De tal maneira, essa
inteligncia tornou-se inconsciente, como nos diz Morin, e quanto mais os
problemas compreendidos enquanto questes de nossa realidade que interagem
com uma infinidade de outros fenmenos simultneos tornam-se mundiais,
maior a dificuldade dessa cincia, que busca somente a ordem, em considerar a
incerteza e aleatoriedade dos fenmenos. Apoiada nos ideais racionais do
cartesianismo,
A simplificao progrediu por redues mltiplas e sucessivas; a idia de corpo se reduzindo idia de matria, que se torna a substncia do mundo fsico, ao passo que se trata de um aspecto, de um momento (...). A matria foi enfim reduzida unidade reputada elementar, ltima, indivisvel: o tomo. No fim do sculo XIX, o universo fsico homogeneizado, atomizado, anonimizado. (Morin, 2002a, p.442)
No entanto, essa reduo e simplificao da realidade, exemplificadas
acima por Morin, tambm so necessrias e importantes para que as anlises
cientficas se dem. O problema, como nos diz Morin, que ocorreram
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permutaes de finalidades ao longo do caminho e o meio pelo qual o paradigma
simplificador estudava o mundo tornou-se o prprio fim desse estudo. Isto ,
(...) o meio a manipulao tambm se tornou fim e, manipulando para experimentar, experimentou-se para manipular; os subprodutos do desenvolvimento cientfico as tcnicas tornaram-se os produtos socialmente principais. (...). A reduo e a simplificao, necessrias s anlises, tomaram-se os motores fundamentais da pesquisa e da explicao, ocultando tudo o que no era simplificvel, ou seja, tudo o que desordem e organizao. (Morin, 2002a, p.442)
Em outras palavras, podemos dizer que a reduo do real operada pela
cincia moderna, que tinha por objetivo analisar os fenmenos estudados, tornou-
se a prpria explicao da realidade como um todo, sem se dar conta de que ao
simplificar, muitas interaes e relaes entre as partes estudadas so
desconsideradas e ignoradas. Ou seja, ao reduzir, a cincia moderna considerava
apenas uma parte da realidade analisada, mas julgava ser essa parte o todo.
Dessa maneira, segundo Morin, os objetos de estudo da cincia racional
foram isolados de seu ambiente e conseqentemente das perturbaes naturais
que sofriam nele. Em nome da objetividade, eliminou-se at o prprio cientista que
observa e estuda. Os objetos tornaram-se descontextualizados e privados de sua
organizao prpria, por que separados da realidade. Contraditoriamente, essa
abstrao do real transformou-o em uma realidade impossvel, que desconsidera
tudo o que desordem e organizao, os elementos constituintes fundamentais
do conhecimento humano. Nas palavras do prprio autor:
As coisas tomaram-se objetivas: objetos inertes, imobilizados, inorganizados, corpos mudados sempre por leis exteriores. Tais objetos, privados de formas, de organizao, de singularidade so, neste grau de abstrao, terrivelmente irreais; mas tem-se poder sobre eles, pela medida e pela experincia, e esta ao terrivelmente real. (idem, p.442)
Ou seja, a busca pela ordem e pela verdade absoluta impulsionada pelo
princpio da simplificao colocou em risco a suposta ordem e o carter indubitvel
do conhecimento que a cincia moderna perseguia. Isso nos leva prxima
questo a ser analisada.
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c) A abstrao e a formalizao do conhecimento
Como vimos anteriormente, segundo Morin, o universo simplificado pelo
pensamento reducionista um universo que corre o risco de se tornar irreal. Ao
isolar um objeto de estudo de seu ambiente natural e das interferncias inerentes
a ele, o pensamento disjuntivo cria e estuda realidades manipuladas e
controladas, pois descontextualizadas e desprovidas de sua organizao natural.
A isso, Morin denomina abstrao e formalizao do conhecimento, na medida em
que aquilo que se conhece retirado de seu contexto e formalizado por meio de
leis naturais, compartimentadas em determinadas disciplinas ou reas do saber.
Uma vez que as medies e quantificaes realizadas sob a gide do
paradigma da simplificao aparentam ser a prpria realidade, a imagem que se
constri a de uma cincia com extremado rigor e objetividade. No entanto, como
vimos, Morin destaca a caracterstica ilusria que essa cincia moderna introduz
no conhecimento. Para o ideal racional de cientificidade, conhecer quantificar. A
objetividade e exatido das cincias so avaliadas pela preciso das medidas
realizadas. Sendo assim, ao invs de buscar contextualizao, h somente a
preocupao com a simplificao da complexidade do real, que, parcelado,
estudado por disciplinas tambm isoladas entre si. Alm disso, h tambm o rigor
matemtico, que avalia apenas o que quantificvel. Desse modo, (...) a cultura
cientfica e tcnica disciplinar parcela, desune e compartimenta os saberes,
tornando cada vez mais difcil sua contextualizao. (Morin, 2002c, p.41).
Essa abstrao e formalizao do conhecimento, associada
quantificao, so caractersticas que a cincia moderna sempre considerou como
importantes e definitivas para o conhecimento cientfico. Esse conhecimento
especializado, que mede e quantifica o real, abstrai um objeto de seu contexto, ou
seja, extrai esse objeto de seu conjunto de interaes com o meio em que est
situado e o introduz no mbito conceitual abstrato das disciplinas
compartimentadas. Segundo Morin, essa abstrao disciplinar acaba por
fragmentar a multidimensionalidade dos fenmenos e pode levar a (...) uma ciso
com o concreto, privilegiando tudo o que calculvel e passvel de ser
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formalizado. (Morin, 2002c, p.41-42). a abstrao matemtica que governa a
cincia moderna.
Para Morin, este tipo de perspectiva pode levar a uma compreenso
distorcida da realidade se no levar em considerao as interaes entre os
fenmenos que formam essa realidade.
Como j dissemos, os processos de abstrao, formalizao, reduo e
quantificao so necessrios e importantes para o estudo cientfico e para a
constituio do saber cientfico, mas a incerteza e a desordem que constituem os
fenmenos complexos da realidade em que vivemos tambm o so. O problema,
segundo Morin, quando uma determinada realidade estudada por meio de
processos simplificantes e ainda assim considerada como a realidade em si.
Dessa forma, o que se estuda, como j dito, uma realidade mutilada, constituda
apenas na ordem, na reduo, na simplificao e abstrao.
Frente a isso, julgamos conveniente colocar que, ao nosso ver, a proposta
do pensamento complexo no consiste em pr fim formalizao cientfica que
ocorre mediante a fragmentao do conhecimento em disciplinas ou reas do
saber , muito menos adotar uma viso holstica da realidade, abandonando a
necessidade de reduo e simplificao. Ao adotarmos o plano da complexidade
neste trabalho, entendemos tal perspectiva como uma tentativa de organizar
aspectos parciais e totais do conhecimento na busca por uma cincia consciente
de suas prprias limitaes e ao mesmo tempo comprometida com as mltiplas
interaes que podem se dar entre os elementos da realidade que se estuda.
Neste sentido, esperamos que o prximo tpico possa nos ajudar a
esclarecer tais pressupostos.
Sistemas e organizao
Como vimos, a cincia moderna e seus preceitos buscam compreender o
real a partir da ordem e das regularidades dos fenmenos. Entretanto, de acordo
com Morin, considerar a complexidade dos fenmenos e entidades da natureza
significa mais do que simplesmente medi-los e quantific-los ordenadamente.
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Conceber a complexidade do real considerar a (...) possibilidade de uma
gnese na e pela desordem (...) (Morin, 2002a, p.60).
Segundo Morin, muitos so os estudos que revelam a forte influncia da
desordem ou seja, dos desvios, das perturbaes, e dissipaes em provocar
organizao e ordem. , portanto, possvel explorar a idia de um universo que
constitui sua ordem e sua organizao na turbulncia, na instabilidade, no desvio,
na improbabilidade, na dissipao energtica. (Morin, 2002a, p.61). Isso nos leva
a acreditar que no h excluso, mas sim complementaridade entre fenmenos
desordenados e ordenados. a desordem organizadora, nas palavras do prprio
autor.
Em vista de tais colocaes, imprescindvel que passemos a considerar
no s a ordem, mas tambm a desordem como organizadora de todo
conhecimento, o que evidencia a necessidade de discorrer sobre dois conceitos
importantes para a teoria da complexidade. So eles: organizao e sistema.
Em primeiro lugar, devemos ressaltar, como nos traz Morin (2002a), que as
idias de ordem e de organizao no so as mesmas, uma vez que, para Morin,
a idia de organizao, que implica em si a idia de desorganizao, no
compatvel com o pensamento da cincia moderna. Segundo o autor,
Embora basta elevar a temperatura de um ambiente para que um cubo de gelo derreta, agitar um ovo para que ele se misture, no basta esfriar o ambiente para que o gelo retome a sua forma, agitar o ovo no sentido inverso para que ele se ordene; a organizao no a desorganizao ao inverso. E tambm em razo de todas essas dificuldades que a organizao, questo fundamental qual chegam todas as avenidas da cincia moderna, no podia ser tratada pela cincia clssica: era uma questo complexa. Reduzi-la a uma questo simples desorganizar a organizao. (Morin, 2002a, p.123)
No entanto, quando Morin se aplica na questo da organizao, no com
a inteno de definir uma fora organizadora mas sim de reconhecer seu modo
de existncia e desenvolvimento. E para isso, preciso ter em mente que a
cincia clssica fundamentada na ordem e na simplificao (...) se fundou sob
o signo da objetividade, ou seja, de um universo constitudo de objetos isolados
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(em um espao neutro) submetido a leis objetivamente universais. (Morin, 2002a,
p.124).
Nesta concepo de cincia, o objeto de estudo do cientista existe sem que
o observador participe de sua construo. uma entidade fechada, isolada e
clara, que se determina e explica isolando-a de seu ambiente e de seu
observador. Quanto mais esse objeto for isolado, mais se torna distinto e objetivo.
Sua natureza complexa decomposta em substncias mais simples,
caracterizadas e objetivadas por grandezas mensurveis. Assim, nas palavras do
prprio autor, a objetividade do universo dos objetos se mantm pela dupla
independncia destes em relao ao observador humano e ao meio natural.
(idem).
Entretanto, no incio do sculo XX operou-se uma reviravolta na base da
cincia clssica, como define Morin. O tomo no era mais a unidade primeira e
irredutvel, mas sim um sistema constitudo de partculas em interaes mtuas
que no se podem isolar de maneira precisa, nem tampouco consider-las como
elemento primrio. Isso significa que a prpria noo de unidade elementar, to
desejada pela cincia clssica, tornou-se questionvel. Assim, a partcula hesita
entre a dupla e contraditria identidade de onda e corpsculo (...) perde s vezes
toda substncia (...) ora ela considerada como um sistema composto (...) ora ela
considerada como um campo de interaes especficas. (Morin, 2002a, p.126).
Podemos dizer que a partir desse novo tomo, que no se reduz
natureza de seus constituintes, como almejava o pensamento simplificante, que
surge o conceito de sistema, o que pode ser considerado um marco rumo a um
novo paradigma cientfico. Como afirma Morin, esse tomo, que somente pode ser
explicado a partir do entendimento de sua natureza organizacional e sistmica,
(...) mostra que o universo fundado no em uma unidade indivisvel, mas em um
sistema complexo. (Morin, 2002a, p.127). Dessa maneira, o tomo passa a ser
definido a partir das interaes das quais toma parte:
Enquanto objeto, a partcula perdeu toda substncia, toda clareza, toda distino (...) Para defini-la preciso apelar para as interaes das quais
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ela participa e, quando ela faz parte de um tomo, para as interaes que tecem a organizao deste tomo. (Morin, 2002a, p.126)
Em vista do que foi exposto, a noo de sistema na perspectiva da
complexidade aparece em substituio ao conceito de objeto simplesmente o
qual se caracteriza como auto-suficiente e uniforme. Segundo Morin,
Encontram-se na natureza concentraes, agregados de sistemas, fluxos inorganizados de objetos organizados. Mas o que extraordinrio o carter polissistmico do universo organizado. Este ltimo uma impressionante arquitetura de sistemas se edificando uns sobre os outros, uns entre os outros, uns contra os outros, implicando-se e imbricando-se uns nos outros (...) (Morin, 2002a, p.127).
Assim, o sistema, que no aceita a reduo em seus elementos, tomou o
lugar do objeto simples e substancial nas cincias. Como nos traz Morin, o
encadeamento de sistemas afasta a idia de um objeto fechado, ampliando as
possibilidades de compreenso da complexidade dos fenmenos do universo.
(...) a definio de Ferdinand de Saussure (que era mais um sistemista do que um estruturalista) particularmente bem articulada e sobretudo faz surgir o conceito de organizao, ligando-o ao de totalidade e ao de inter-relao: o sistema uma totalidade organizada, feita de elementos solidrios s podendo ser definidos uns em relao aos outros em funo de seu lugar nesta totalidade (Saussure, 1931). (Morin, 2002a, p.131)
Dessa forma, um sistema, sob a tica da complexidade, deve ser concebido
como uma unidade global organizada de inter-relaes entre elementos, aes ou
indivduos. (Morin, 2002a, p.132). Ao adquirirem regularidade ou estabilidade, as
inter-relaes entre os elementos, aes ou indivduos, se tornam portadoras da
capacidade de produzir organizao. importante ressaltar, no entanto, que os
elementos no podem ser considerados unidades simples, porque so relativos ao
todo do qual fazem parte. Assim vistos, os elementos so eles mesmos sub-
sistemas, constitudos por diversos outros elementos que, encaixados e
articulados, remetem ao conceito de organizao. No h, portanto, sistema sem
organizao.
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Todavia, de acordo com Morin, a organizao de um sistema pressupe
mais do que simplesmente a idia de ordem, idealizada pelo pensamento
simplificante. Ela nasce da aleatoriedade, do encontro entre desordem e ordem.
No paradigma da complexidade, a organizao deve ser compreendida como:
(...) o que liga de maneira inter-relacional os elementos ou acontecimentos ou indivduos diversos que desde ento se tornam os componentes de um todo. Ela assegura solidariedade e solidez relativa a estas ligaes, assegurando ento ao sistema uma certa possibilidade de durao apesar das perturbaes aleatrias. A organizao, portanto: transforma, produz, religa, mantm. (Morin, 2002a, p.133)
Em vista disso, Morin prope que as idias de sistema e de organizao
sejam vistas de maneira associada, pois so sustentadas pelo que o autor destaca
como sendo a idia de inter-relao. O conceito de inter-relao remete s
diferentes formas e tipos de ligao entre os elementos/indivduos de um sistema,
e entre estes e o todo, sendo que toda inter-relao dotada de alguma
estabilidade ou regularidade adquire carter organizacional e produz um sistema.
(Morin, 2002a, p.134).
Dentro dessa concepo, sistema, organizao e inter-relao no podem
ser considerados separadamente, pois so lados diferentes de um mesmo
fenmeno, sendo que os princpios do pensamento complexo incerteza,
aleatoriedade, no-determinao e multiplicidade permeiam a idia de sistema,
de organizao e das inter-relaes que se estabelecem.
Nesse sentido, o sistema apresenta-se como um paradoxo, pois se
considerado sob o aspecto do todo, ele homogneo, mas se considerado sob o
aspecto das partes, ele diverso e heterogneo. Dessa maneira,
A primeira e fundamental complexidade do sistema associar em si a idia de unidade, por um lado, e a de diversidade ou multiplicidade do outro, que, em princpio, se repelem e se excluem. O que preciso compreender so as caractersticas da unidade complexa: um sistema () formado por partes diversas e inter-relacionadas. () dispe de qualidades prprias e irredutveis, mas ele deve ser produzido, construdo, organizado. () pode-se descomp-lo em elementos separados, mas ento sua existncia se decompe. (Morin, 2002a, p.135)
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Logo, a idi
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