ponte pedonal sobre o rio douro concepção e … · a ponte que se apresenta é constituída...
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PONTE PEDONAL SOBRE O RIO DOURO Concepção e processo construtivo
António Adão da Fonseca1
RESUMO
O desafio era o de conceber uma ponte pedonal realmente inovadora, uma verdadeira
ponte “state-of-the-art”, que pudesse realçar a beleza e o carácter do local, classificado como
Património da Humanidade. No início, a presença poderosíssima da magnífica Ponte Luiz I
parecia tornar a tarefa impossível. Mas a melhor forma de lidar com a força é não a
enfrentando. Assim, a leveza deveria ser a principal característica da nova ponte. Não se
poderiam admitir soluções com “cabos voadores” e o material estrutural deveria ser tão
inovador quanto o fora o tipo de aço utilizado na construção da ponte projectada pelo
Engenheiro Théophile Seyrig.
Neste contexto, desenvolveu-se uma solução esplêndida: um arco vencendo um vão
único de 156 m com uma razão de esbelteza de 1:13 que sobe ligeiramente acima do tabuleiro
inferior da Ponte Luiz I e assim permite que este possa continuar a ser admirado, e adoptou-se
o aço inoxidável como material estrutural.
Fig. 1 – Alçado poente da Ponte Pedonal
1. UM NOVO ATRAVESSAMENTO
Um novo atravessamento para peões a ligar as duas cidades do Porto e de Gaia, na área
classificada como Património Mundial, será um instrumento fundamental na estratégia de
requalificação urbana de toda a área envolvida pelas margens das duas Ribeiras.
1 Engenheiro Civil, AFAssociados – Projectos de Engenharia, SA
Prof. Catedrático, Departamento de Engenharia Civil, FEUP
A qualidade da relação funcional nos caminhos pedestres à cota das duas margens será,
com a construção de uma ponte exclusiva para peões, muito acrescentada, além de vir a
constituir mais um passo no sentido de se viabilizar o grande percurso entre as cotas altas dos
dois morros – Muralhas Fernandinas – Elevador dos Guindais (em reinstalação) – Rio –
Elevador de Gaia – Mosteiro da Serra do Pilar.
2. CONDICIONANTES
2.1. Contexto Histórico / Cultural
Um atravessamento sobre o Douro implica obrigatoriamente falar sobre este. Qualquer
texto ou memória sobre as cidades de Porto e Gaia estão inevitavelmente agregadas a falar
sobre o rio Douro. Foi por ele e através dele que as duas cidades se formaram, cresceram e
naturalmente se dividiram. Factor fundamental de ligação e divisão, foi principalmente para
ambas o seu elo de desenvolvimento económico, estético e funcional.
Se Porto e Gaia tivessem desenvolvido uma relação mais próxima com o rio, como foi
exemplo o século passado, teriam com certeza uma dúzia de pontes entre ambas as margens e,
principalmente, talvez em maior número, a cota baixa. Como a sua política apontou noutro
sentido, as pontes existentes pretenderam somente resolver o problema do atravessamento, se
possível de forma rápida.
Assim se desenvolveram à cota alta grandes obras de engenharia com enormes vãos.
Obviamente, grandes obras deram lugar a poucas pontes. São exemplos disso as Pontes
D. Maria, Luiz I, da Arrábida e de S. João. Estas quatro pontes, tal como a Ponte Infante
D. Henrique, presentemente em construção, têm cada qual as suas características particulares e
apresentam aliás quer uma qualidade técnica quer uma qualidade estética que conduzem a
uma fasquia elevada e condicionam a um elevado padrão de técnica e desenho qualquer outra
que se pretenda vir a construir.
2.2. Contexto Local
As Ribeiras do rio Douro têm características muito particulares e bem diversas nas
duas margens. Do lado do Porto, apresenta-se um bairro de características urbanas bem
consolidadas, essencialmente habitacionais mas de um crescente lazer e turismo. Do lado de
Gaia, surge uma encosta dominada pelos armazéns de Vinho do Porto, com características
habitacionais pouco importantes e uma actividade de lazer e turismo já muito significativa
mas de um potencial imenso ainda em desenvolvimento. Ora a consolidação e qualidade de
tais actividades requerem precisamente a existência de pelo menos um atravessamento do
Douro exclusivo para peões e com características de segurança compatíveis com o conceito de
“passeio” e desfrutando do espectáculo cénico quer das duas Ribeiras quer da Ponte Luiz I.
Mas nunca afectando a navegabilidade de barcos ou de veleiros até à frente das
Ribeiras e nunca tornando a “nova ponte” no centro de todas as perspectivas, remetendo as
encostas e as margens do rio para meros cenários dessa mesma ponte.
Tal como a meados do século XIX o fora para a Ponte Pênsil, projectada pelo
Engenheiro Stanislas Bigot, o local certo para a implantação da nova Ponte Pedonal é
precisamente aquele onde existem dois pequenos promontórios graníticos, frente a frente, um
em cada margem, definindo um alinhamento transversal ao rio Douro com a largura mínima
de 156 metros. Portanto, paralelamente e a poucos metros da Ponte Luiz I.
Fig. 2 – Vista aérea do local
Claro, a vivência, lado a lado, das duas pontes exige uma concepção da nova ponte que
assegure que não existem conflitos de percepção visual e estrutural de qualquer delas. Pois,
como que em confirmação do acerto da localização da Ponte, a síntese dos diversos factores
afectando a sua concepção estrutural e hidrodinâmica conduziram a uma solução em que a
Ponte Pedonal “sobe” acima do tabuleiro inferior da Ponte Luiz I, permitindo a “leitura” de
todo esse tabuleiro; em que a zona central da Ponte Pedonal é um verdadeiro miradouro para
ambos os lados e para a própria Ponte Luiz I, a qual terá uma presença “enorme” e magnífica
na grandeza e nos pormenores da sua estrutura metálica; e em que o confronto da grande
Ponte (Luiz I) do final do século XIX com a pequena Ponte (Pedonal) do início do século XXI
as tornará ainda mais belas.
Fig. 3 – Fotomontagem: vista a partir de V. N. de Gaia
3. CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA CONCEPÇÃO DA PONTE
A Ponte proposta nasce então de um discurso técnico rigoroso que cria uma obra de
total harmonia e dignidade. Um arco singular e esbeltíssimo que “sai” de um modo natural
dos promontórios rochosos das duas margens do rio. Para além da sua beleza própria, sem
quaisquer ornamentações, a Ponte será uma grande novidade mundial e original neste tipo de
estruturas. Isto é, será uma ponte do século XXI. E esta novidade é aumentada pela utilização
exclusiva de aço inoxidável como material estrutural.
Não há nada nesta Ponte que seja acrescentado decorativamente, não há nada que não
responda às exigências funcionais, estruturais e hidrodinâmicas. Por isso tem a virtude da
simplicidade, a pureza estrutural e a regularidade geométrica.
Fig. 4 – Fotomontagens da Ponte Pedonal
Sobre este arco invulgarmente abatido apoia-se um pavimento constituído por réguas
de madeira de ipê anti-deslizantes que se separa do arco nas suas nascenças através de duas
rampas que limitam a inclinação máxima do percurso e alcançam as plataformas existentes
nas margens.
Todas as superfícies visíveis da Ponte são compostas apenas por estes dois materiais
nobres: aço inoxidável e madeira de ipê, unindo de forma harmoniosa os promontórios de
granito das duas margens do rio.
Indubitavelmente, a Ponte fica marcada pela utilização do aço inoxidável como
material estrutural. A pureza da sua cor, textura e brilho marcam de forma indelével a
concepção desta obra. Desde as centenárias casas do centro histórico aos edifícios públicos
(civis ou religiosos) e às magníficas pontes, os materiais estruturais empregues no património
construído da cidade do Porto sempre foram um importante símbolo dessas realizações, sem
necessidade de “delírios ornamentais” supérfluos e redundantes. Materiais rudes como a pedra
granítica, o ferro fundido e mais tarde o aço, algumas das vezes complementados com a
maleabilidade da madeira, foram sendo domesticados e humanizados ao serem trabalhados
com rigor, cuidado estético e respeito pela envolvente cultural, mas mantendo sempre
explicitamente a essência e sensibilidade da matéria prima escolhida. Assim são a Sé do
Porto, as Pontes Maria Pia e Luiz I, a torre dos Clérigos, o extinto Palácio de Cristal, o
Mercado Ferreira Borges, o edifício da Alfândega, o edifício da Bolsa, a estação de S. Bento e
tantos, tantos outros.
4. SISTEMA ESTRUTURAL DA PONTE
A Ponte que se apresenta é constituída essencialmente por uma viga caixão em aço
inoxidável com uma secção transversal que resulta da combinação da forma elíptica inferior
com a forma rectilínea superior ser realizada por arcos de circunferência, os quais asseguram,
também, uma forma hidrodinâmica à Ponte.
Fig. 5 – Modelo tridimensional da Ponte
O arco com 156 m de vão e cerca de 12 m de flecha é formado por uma secção
hidrodinâmica, em caixão unicelular com 6,6 m de largura e altura variável entre 3 m no
arranque e 2 m no meio vão. Na zona das rampas, a secção tubular é inteiramente composta
pela chapa de aço inoxidável, passando a ser uma secção mista na zona central dado que o seu
banzo superior é realizado pela laje em betão armado que serve de suporte ao pavimento em
madeira.
A forma hidrodinâmica do caixão pretende também assegurar a segurança da estrutura
quando em contacto com o elevado nível das águas do rio em caso de cheia (a maior cheia
conhecida verificou-se em 1739, com um caudal estimado em 19.000 m3/s (cerca de 1,65 km
3
por dia, a que corresponde uma velocidade média da água superior a 6 m/s). Em Dezembro de
1961 ocorreu uma cheia com um caudal máximo de cerca de 18.000 m3/s e os descarregadores
da Barragem de Crestuma estão dimensionados para um caudal de 22.000 m3/s.
Fig. 6 – Cortes transversais nos arranques e a meio-vão do arco
A chapa de aço inoxidável que realiza a secção estrutural resistente tem espessura
constante e igual a 20 mm, necessária tanto por exigências de resistência e de rigidez como
por exigências estéticas, de maneira a que todas as soldaduras internas não afectem o aspecto
exterior da superfície do arco. O aço inoxidável estrutural é o aço duplex austenítico-ferrítico
estabelecido na Norma Europeia EN 1.4462, e tem as características mecânicas seguintes (a
20ºC, salvo indicação em contrário):
- Limite elástico característico a 0.2% fyk ≥ 460 MPa
- Tensão última de rotura em tracção fpu ≥ 640 MPa
- Deformação última de rotura A5 ≥ 25 %
- Módulo de elasticidade Es = 200 GPa
- Peso específico γ = 78 kN/m3
- Coeficiente de dilatação térmica αs ≈ 1.3×10-5
ºC-1
entre 20 e 100ºC.
Mas as estruturas internas de contraventamento e rigidização são em aço carbono
S-355J2G3.
Nos arranques do arco coloca-se betão junto à face inferior da secção, obtendo-se um
funcionamento misto na resistência aos elevados momentos flectores negativos que se geram
nos encastramentos.
Fig. 7 – Pormenor do betão de fundo nos arranques do arco
5. PROCESSO CONSTRUTIVO
A localização da Ponte Pedonal entre os centros históricos do Porto e de Gaia, numa
área com um intenso movimento, tanto diurno como nocturno, e muito perto da Ponte Luiz I,
única ligação existente à cota baixa entre as zonas ribeirinhas das duas cidades, condicionou a
escolha de um processo construtivo que não impossibilite a circulação pela Ponte Luiz I e que
minore a intervenção a fazer na zona. Por outro lado, sendo a estrutura em aço, portanto
relativamente ligeira - o peso da estrutura metálica é aproximadamente de 520 toneladas -
torna-se possível elevar e transportar a estrutura inteira, desde o local de construção até à sua
localização final. Mais, a possibilidade do arco ser totalmente montado em “terra firme”
permite uma limpeza final do aço inoxidável. Esta limpeza é feita com uma solução ácida
(usualmente uma combinação entre ácido fluorídrico e nítrico) que tem de ser recolhida e
tratada em local apropriado, portanto impossível de realizar sobre o rio.
No processo construtivo adoptado, o arco é totalmente montado na margem do rio,
com recurso a cimbre ao solo, sobre o qual se apoiam e se soldam entre si as aduelas “pré-
fabricadas” em aço inoxidável. Antes de proceder à retirada do cimbre, é necessário atirantar
inferiormente a estrutura, pois, sem o impulso de arco, este não é capaz de resistir aos esforços
de flexão provocados pelo seu peso próprio. Para esse efeito, são utilizados quatro tirantes
ancorados, em cada extremo, a contrafortes verticais encastrados no arco.
Fig. 8 – Processo construtivo
Para ser transportado até ao seu local definitivo, o arco é suspenso a partir de
diafragmas de contraventamento localizados no interior do arco, afastados de cerca de 90 m,
recorrendo-se a dois pórticos de translação apoiados numa barcaça ou a duas gruas flutuantes,
que o colocam na sua posição final sobre o rio. Ao ser suspenso a partir de secções
intermédias, o funcionamento estrutural do arco passa a ser predominantemente de flexão,
registando-se importantes deslocamentos horizontais e verticais nas secções extremas do arco.
Os tirantes referidos perdem a quase totalidade da força instalada, mas não deixam de agravar
a flexão instalada.
Previamente à colocação do arco no seu local definitivo, betona-se a primeira fase das
fundações do arco, com a colocação e preparação dos seus apoios provisórios. Os apoios
provisórios no Porto permitem o deslizamento longitudinal e a rotação dos contrafortes
verticais do extremo do arco, enquanto que os apoios provisórios em Gaia apenas permitem a
rotação dos contrafortes. O arco é descido com os contrafortes do lado de Gaia na vertical das
suas posições finais, deslizando nos apoios do lado do Porto à medida que o seu peso se
transfere para os apoios nas margens, até o arco atingir exactamente a mesma geometria e
esforços de quando estava atirantado e descimbrado na margem do rio. Dada a grandeza das
rotações geradas nos arranques do arco durante esta operação, é necessário utilizar apoios
especiais super-basculantes.
Após a colocação do arco na sua posição final, executa-se a segunda fase de
betonagem das sapatas de modo a encastrar o arco, deixando embebidos os contrafortes
verticais de ancoragem dos tirantes inferiores de montagem. Atingida a resistência necessária
no betão das sapatas, a força nos tirantes é libertada progressivamente, sendo cortadas, para
este efeito, as placas de ligação dos tirantes aos contrafortes que ficaram embebidos nas
sapatas. Deste modo, os maciços graníticos das margens do rio substituem os tirantes
inferiores no “fornecimento” do impulso do arco.
Fica, assim, executada a estrutura resistente principal da Ponte Pedonal. Segue-se
então a colocação da estrutura metálica das rampas de acesso e é betonada a laje mista. Por
fim, são colocados todos os acabamentos, nomeadamente o pavimento de madeira, os
guarda-corpos e o equipamento de iluminação.
6. REFERÊNCIAS
[1] “Oporto Footbridge, Oporto, Portugal”, Bridge - design & engineering, issue nº 22, First
Quarter 2001, London, pp 30, 2001.
[2] Adão da Fonseca, A., “Two 21st century arch bridges in Oporto”, The World of Bridges,
Veneza, Abril 2001.
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