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PONTIFICA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
María Rebeca Ramírez Ramírez
O tríptico literário em Terra Nostra,
de Carlos Fuentes
DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
SÃO PAULO2011
PONTIFICA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
María Rebeca Ramírez Ramírez
O tríptico literário em Terra Nostra,
de Carlos Fuentes
DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
Tese apresentada � Banca Examinadora como
exig�ncia parcial para obten��o do t�tulo de
Doutor em Ci�ncias Sociais – Antropologia – pela
Pontif�cia Universidade Cat�lica de S�o Paulo,
sob orienta��o do Prof. Doutor Edgard de Assis
Carvalho.
S�O PAULO2011
Banca Examinadora
À memória de Raquel.
Aos amores da minha vida.
AGRADECIMENTOS
A Deus, pela Sua presença constante em minha vida e por conduzir-me por este
caminho.
À Raquel, minha mãe, por despertar em mim o prazer pela vida e pelos estudos.
Aos meus amados pelo amor, compreensão, paciência, apoio ilimitado, incentivo e
ajuda entusiasmada.
Ao Prof. Dr. Edgard de Assis Carvalho pela atenção, amizade generosa e pela
orientação segura, fatos que contribuíram para o desenvolvimento e resultados
desta pesquisa. Agradeço-lhe ainda por ter-me revelado a possibilidade de fazer do
encontro com a Antropologia uma experiência de sensibilidade.
À Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, pela oportunidade concedida, pelos
desafios e pela realização.
À CAPES pela concessão bolsa de estudos, que possibilitou a realização da
pesquisa.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo pelo conhecimento adquirido.
À Josefine pela fidelidade, companhia e amizade incondicional.
A todos que, direta ou indiretamente, colaboraram para a realização desta tese.
RESUMO
A tese estabelece a relação tríptica entre os três mundos de Terra Nostra (1975) de
Carlos Fuentes. Ao contrário da concepção linear da História, difundida pelas
correntes do progresso, a tradição precolombina indica a multiciplicidade de tempos
possibilitando que variadas e distantes épocas sejam realidades contemporâneas no
instante da narrativa. Sob esse prisma, o romance percorre as transversalidades
temporais e espaciais dos mitos ameríndios e da história dos conquistadores do
Novo Mundo. De forma descontinua, fragmentada, polifônica e carnavalizada,
segundo a óptica de Mikhail Bakhtin, Walter Mignolo, Edgar Morin, Giambattista
Vico, o popular e o erudito, o passado, o presente e o futuro, conquistadores e
conquistados se imbricam em circularidades trípticas que resgatam por meio da
imaginação e da linguagem poética a memória encoberta pelo discurso histórico
linear. Terra Nostra pode ser interpretada como uma leitura paralela e alternativa
que, ao mesmo tempo em que discute a antropogênese latinoamericana, observa
um passado inacabado e constantemente presente nas formulações do devir, isto é,
das utopias sociais e políticas.
Palavras-chave: Terra Nostra. Tríptico. Antropogênese. Utopia. Carnavalização.
ABSTRACT
The thesis establishes a relationship between the three worlds of Terra Nostra
(1975), written by Carlos Fuentes. Differently from the linear concept of history, the
pre-Colombian tradition understands the world as a multiplicity of historical times,
making it possible that several past ages become contemporary realities during the
narrative. Terra Nostra goes through the time and space transversalities of
Amerindian myths and the history of the New World conquistadors. Conquered and
conquerors rescue the popular memory, hidden by the linear historical discourse,
through imagination and poetical language, in a discontinuous, fragmented,
polyphonic, carnivalized way, according to Mikhail Bakhtin, Walter Mignolo, Edgar
Morin, Giambattista Vico. Terra Nostra can be considered as a parallel and
alternative understanding of the reality that, at the same time, discusses Latin-
American anthropogenesis, observes an unfinished past that is always present at the
future conceptions, which are social and political utopias.
Keywords: Terra Nostra. Tryptical. Anthropogenesis. Utopia. Carnivalization.
RÉSUMÉ
La th�se �tabli une relation triptyque entre les trois mondes de Terra Nostra (1975)
de Carlos Fuentes. Contrairement � la conception lin�aire de l’Histoire, diffus�e par
les courants du progr�s, la tradition pr�colombienne indique la multiplicit� des temps,
permettant que des �poques diverses et �loign�es deviennent des r�alit�s
contemporaines au moment de la narration. Selon ce point de vue, le roman
parcourt les transversalit�s temporelles et spatiales des mythes am�rindiens et de
l’histoire des conqu�rants du Nouveau Monde. D’une mani�re discontinue,
fragment�e, polyphonique, carnavalesque, selon l’optique de Mikhail Bakhtin, Walter
Mignolo, Edgar Morin, Giambattista Vico, le populaire et l’�rudit, le pass�, le pr�sent
et le futur, les conqu�rents et les conquis s’imbriquent en des circularit�s triptyques
qui rach�tent par l’imagination et le langage po�tique la m�moire masqu�e par le
discours historique lin�aire. Terra Nostra peut �tre interpr�t�e comme �tant une
lecture parall�le et alternative qui, em m�me temps qu’elle discute l’anthropog�n�se
latino-am�ricaine, observe um pass� inachev� et au m�me temps pr�sent dans les
formulations du devenir, c’est-�-dire des utopies sociales et politiques.
Mots-Cl�s: Terra Nostra. Triptyque. Anthropog�n�se. Utopie. Carnavalisation.
RESUMEN
La tesis establece la relación tríptica entre los tres mundos de Terra Nostra (1975)
de Carlos Fuentes. Al contrario del concepto lineal de la Historia, propagado por las
corrientes del progreso, la tradición precolombina revela la multiplicidad del tiempo lo
que hace posible que variadas y distantes épocas sean realidades contemporáneas
en el instante de la narrativa. Bajo ese prisma, la novela recorre las
transversalidades temporales y espaciales de los mitos amerindios y la historia de
los conquistadores del Nuevo Mundo. De manera descontinuada, fragmentada,
polifónica y carnavalizada, desde la óptica de Mijail Bajtín, Walter Mignolo, Edgar
Morin, Giambattista Vico, lo popular y lo erudito, el pasado, el presente y el futuro,
conquistadores y conquistados se superponen en circularidades trípticas que
rescatan por medio de la imaginación y del lenguaje poético la memoria encubierta
por el discurso histórico lineal. Terra Nostra puede ser interpretada como una dupla
lectura, paralela y alternativa, que al mismo tiempo en que escudriña la
antropogénesis latinoamericana revela un pasado inconcluso y tenazmente presente
en las enunciaciones del porvenir, es decir en las utopías sociales y políticas.
Palabras-clave: Terra Nostra. Tríptico. Antropogénesis. Utopía. Carnavalización.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 01
PRIMEIRA PARTE
A carnavalização da história em O Velho Mundo ..................................................... 23
SEGUNDA PARTE
Os intertextos no mito fundacional em O Mundo Novo .......................................... 137
TERCEIRA PARTE
A esfera das possibilidades da memória em o outro mundo .................................. 204
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 316
BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................... 328
ANEXOS ............................................................................................................... 347
1
INTRODUÇÃO
Memória e desejo são imaginação presente. Este é o horizonte da literatura. Imaginar o passado. Recordar o futuro. Um escritor conjuga os tempos e as tensões da vida humana com meios verbais.
Carlos Fuentes Valiente mundo nuevo.
Carlos Fuentes é considerado um dos principais escritores latino-americanos
do século XX. Influenciado pela modernidade de Miguel de Cervantes, escreve como
crítico das culturas da América e do mundo. Seu pensamento sociopolítico e literário
alcança o século XXI; como cronista da devastação pré-colombiana, investiga o
passado de relações disjuntas da história do nosso continente e percebe a relação
polar entre civilização e barbárie, tradição pré-hispânica e modernidade. Essa
polarização influencia seu fazer literário, que somado à sua visão particular da
história delineia a trajetória de seus escritos. Sua constante preocupação pela
releitura da história se efetua pelo método do revisionismo do passado histórico y
literário do universo latino-americano. A história é uma espiral de múltiplas viagens
temporais, afirma. E qual é a idade do tempo? Eterna pergunta que paira no ciclo
narrativo organizado e denominado por ele como La edad del tiempo e inclui relatos
densos, complexos e repletos de personagens alegóricos.
A esse ciclo pertence Terra Nostra (1975), romance narrado num universo
sincrético e sustentador da sobrevivência do mundo antigo de uma América de
fórmulas de vida mágica, de reminiscências pré-hispânicas, da comunhão dos
tempos, da simultaneidade da história, da outraidade imaginada e destilada ao longo
das radiografias sociais de mundos fictícios criados na obra. Um espaço privilegiado
onde o mito cria outras realidades, miragens espelhadas na idade do tempo. Uma
cosmovisão particular do autor, em que o épico se esboça por meio de uma
linguagem carnavalesca, irreverente, simbólica alimentada pelas referências
intertextuais, que na obra caracterizam a polifonia.
2
Carlos Fuentes afirma em Valiente mundo nuevo (1992), que se faz
necess�rio abrir as p�ginas mais “obscuras das �reas cinzentas do registro hist�rico”
e que “h� que dar voz aos sil�ncios da nossa hist�ria”, e acrescenta: “o meio
privilegiado para a explora��o de tal passado n�o � o �mbito discursivo da historia,
sen�o o espa�o imaginativo da literatura de cria��o (...) que cria uma realidade
paralela por meio do mito e duma linguagem contemporizada”. (1992, p.12). A
pluralidade de significados desafia o conceito tradicional da historiografia, “utilit�ria
de estruturas totalizantes em busca da legitima��o de um passado suscet�vel �
manipula��o” (1992, p.13).
Terra Nostra se publica na metade da d�cada dos setenta; cinco s�culos ap�s
a primeira gram�tica da l�ngua espanhola de Antonio de Nebrija, e dezessete anos
antes que se completassem os quinhentos anos do Descobrimento da Am�rica. S�o
antecedentes de um passado pluridimensional, aberto e reinterpret�vel que o
romance carnavaliza pela ruptura da narrativa linear de uma hist�ria un�voca. No
relato, a realidade social se cruza com o destino individual das personagens, como
um mosaico sincr�tico, espelho granformado que reflete poss�veis imagens da
antropog�nese do homem latino-americano.
A arte, particularmente a literatura, representa a realidade de um modo que
produz com maior fidelidade sua natureza amb�gua. Carlos Fuentes assegura que a
literatura “revela o real que subjaz por tr�s do contexto comumente aceito da
realidade, o mundo da fic��o � um componente essencial da realidade, cada
inst�ncia imaginativa constitui uma a��o potencial, uma hist�ria inexplorada” (1992,
p.18). Diz que pela imagina��o se alargam os limites do mundo conhecido e, ao
imaginar mundos, consequentemente, torna-se poss�vel perceber a realidade
emp�rica de outro modo.
“A poesia sabe e pode enfrentar a realidade total, para al�m da vis�o reduzida
do esquema ideol�gico, da necessidade pol�tica moment�nea ou do simples fato
hist�rico; a literatura, em nome da polival�ncia do real, cria o real, e ao acrescentar
seu pr�prio real, deixa de ser correspond�ncia verbal de verdades anteriores a ela”
(1992, p.18). Trata-se de uma realidade de papel, inven��o e cria��o na qual a
literatura diz coisas do mundo utilizando novas possibilidades narrativas; novos
procedimentos formais que forjam a imaginar outras hist�rias � margem da oficial, a
arte literária é empecilho dos absolutos e questionadora do mundo unívoco.
3
No ensaio Valiente mundo nuevo, que tem como subt�tulo, Épica, utopía y
mito em la novela hispanoamericana reafirma mais uma vez o eixo tem�tico de
toda sua obra, cujo mote principal � o tempo. Em seus escritos, Carlos Fuentes situa
grande parte da narrativa na hist�ria do M�xico, evoca o universo pr�-hisp�nico para
memoriz�-lo no espa�o da imagina��o, reivindica o passado a partir do presente
“repovoando os espa�os escuros da Hist�ria. Recordamos aqui, hoje. Amanh�
teremos uma imagem do que foi o presente. N�o podemos ignorar isto, como n�o
podemos ignorar que o passado foi vivido, que a origem do passado � o presente”
(p.17).
Intrinsecamente latino-americano e cidad�o do mundo, homem das letras,
romancista, contista, ensa�sta, teatr�logo, autor m�ltiplo, leitor das realidades do
nosso continente, cr�tico e tradutor de sua cultura nativa. O universo liter�rio de
Carlos Fuentes abrange renovadas possibilidades de reflex�o sobre os diversos
temas que permitem diferentes propostas interdisciplinares de pesquisa cient�fica na
�rea da Literatura, Hist�ria, Antropologia, Sociologia, Psicologia, Pol�tica, Filosofia.
Preocupado com a identidade latino-americana, observa que a hist�ria do continente
inclui as das civiliza��es ind�genas pr�-colombianas mexicas dos toltecas, olmecas,
astecas e de tantos outros grupos nativos origin�rios dos quatro cantos da Am�rica.
Essa reflex�o inclui sistematicamente o aporte da Espanha no M�xico, ponto de
encontro entre dois mundos de culturas diferentes. O que � a Am�rica? Europeia,
criolla, �ndia? E sempre chega � mesma conclus�o, somos um povo Indo-Afro-
Americano.
Afirma que no universo da literatura, o passado � imagina��o e que o futuro se
constr�i “do desejo de hoje pelo encontro entre nossos movimentos de funda��o –
�pica e mito; utopia e barroco – com as manifesta��es modernas da narrativa
hispano-americana, mediante o entrela�amento constante do movimento com suas
fun��es: dar nome e dar voz; recordar e desejar” (1992, p28, 29). Como exemplo
dessa constru��o liter�ria, cita Jorge Lu�s Borges e a nova refuta��o do tempo que
acumula todos os espa�os do mundo em sua obra El Aleph, ou a multiplicidade do
tempo em El jardín de senderos que se bifurcan, at� aproximar-se da totalidade
do conhecimento em La biblioteca de papel, cuja imagem apresenta uma esp�cie
de labirinto de palavras refletidas por espelhos, diz Carlos Fuentes:
4
Apenas para fazer-nos sentir que o mundo dos livros est� liberado das demandas da cronologia ou da sucess�o lineal: um autor, uma biblioteca, um livro, significam todos os autores e todos os livros, presentes aqui, agora, contempor�neos uns aos outros n�o somente no espa�o sen�o no tempo. (...). Um livro, um tempo, um espa�o, uma biblioteca em muitos lugares e em muitos tempos. Pois a condi��o para essa unidade da literatura � a pluralidade das leituras. Borges acaso cria totalidades de tempo e espa�o, em El jardín de senderos que se bifurcan, o narrador concebe cada possibilidade de tempo (...) l� duas vers�es do mesmo cap�tulo �pico. N�o a vers�o ortodoxa, �nica, sen�o uma segunda vers�o, heterodoxa: n�o somente a reforma, sen�o a contrarreforma; n�o s� a conquista, sen�o a contra-conquista. (1992, p.38-39).
Cita Don Quijote que sai de La Mancha para entrar no universo liter�rio
universal e, a partir da�, percorre o mundo imagin�rio de todas as gera��es.
“Cervantes confronta imagina��o e realidade, inaugura o romance moderno e cria a
pluralidade nas percep��es da sociedade” (p.40). Os que percebem a
simultaneidade de obras de diferentes autores, nos mais variados tempos, s�o os
leitores, diz Carlos Fuentes, porque a leitura desde diferentes lugares e �pocas
possibilita a compreens�o do texto como um mosaico narrativo, alcan�ando a
constru��o polif�nica, compreendida como um territ�rio ocupado por quem l� e por
quem escreve. Esse mecanismo estabelece o conceito de intertextualidade
enunciado por Julia Kristeva.
A intertextualidade se constr�i como uma rede de rela��es, constituindo-se em um novo texto, fruto das leituras de narrativas anteriores. Configurando o processo da escrita em um processo de releitura e de reescrita, todo texto sempre representa a leitura de outros textos. Todo texto � absor��o e transforma��o de outro texto. Em lugar da no��o de intersubjetividade, se instala a da intertextualidade, e a linguagem po�tica se l�, pelo menos, como dupla (...). A linguagem po�tica aparece como um di�logo de textos: toda sequ�ncia se faz em rela��o � outra proveniente de outro corpus, de maneira que toda sequ�ncia est� duplamente orientada: para o ato de reminisc�ncia (evoca��o de outra escrita) e para o ato de intima��o (a transforma��o dessa escritura). (1985, p.50).
Em sua busca por reler o passado, Carlos Fuentes aproxima os diferentes
campos do saber e os redimensiona criando novos sentidos de interpreta��o num
constante movimento interdisciplinar. As reflex�es sobre a antropog�nese latino-
americana e as considera��es sobre a multiciplicidade cultural sustentam o ide�rio
tratado na tese de Valiente mundo nuevo (1992), as mesmas se explicitam nos
5
ensaios El espejo enterrado (1992), La Nueva Novela Hispanoamericana (1969),
Territorios del tiempo (1990), Geografía de la novela (1993), Nuevo Tiempo
Mexicano (1995), importantes fontes de consulta, manancial comum que abastecem
o corpus da pesquisa. Em Valiente mundo nuevo, reflete-se sobre o processo
hist�rico e comenta a tradi��o multicultural hispano-americana.
Estas incluem, pelo menos, o mundo m�tico das civiliza��es pr�-hisp�nicas e a heran�a mediterr�nea trazida por Espanha ao Novo Mundo: tradi��o greco-latina viva nas disjuntivas temporais: permanecer e fluir; no apego ao direito escrito e � filosofia est�ica; imers�o na filosofia crist�, seus dogmas, hierarquias e promessas. Renascimento e contrarreforma; conquista e contra-conquista; superviv�ncia judia; aporte africano; nova civiliza��o mesti�a, crioula, ind�gena e negra. (...) a coexist�ncia de todos os n�veis hist�ricos � apenas o signo externo de uma decis�o subconsciente desta terra e desta gente: todo tempo deve ser mantido. (1992, p. 23).
Essas ideias s�o ampliadas, reiteras e discutidas em Terra Nostra na inten��o
de abarcar a multiplicidade de culturas e de tempos hist�ricos, que somados
constituem o caudal cognitivo dos povos da Pen�nsula Ib�rica e da Am�rica Latina.
O romance introduz a tese sobre a forma��o pluricultural do sujeito hispano-
americano por meio da fragmenta��o temporal e pelas refer�ncias intertextuais das
obras liter�rias produzidas durante os s�culos XVI e XVII. Os recortes hist�rico-
liter�rios revelam a inten��o de apresentar a sua vers�o sobre as ra�zes
socioculturais da Pen�nsula Ib�rica e as consequ�ncias dessas na Am�rica durante
o processo de coloniza��o.
Pela via metaf�rica, um recurso liter�rio poss�vel, o romance apresenta
algumas das caracter�sticas constitutivas da idiossincrasia do latino-americano. Os
argumentos defendidos se referem a uma antiga preocupa��o de Carlos Fuentes
que resume e sintetiza suas inquietudes no que diz respeito “ao destino que
responde-corresponde ao povo Indo-Afro-Americano” (1992, p. 10).
No M�xico nativo de Carlos Fuentes ocorre a g�nese de um Novo Mundo
inventado pela imposi��o decisiva da civiliza��o espanhola do s�culo XVI sobre a
civiliza��o asteca. Essas civiliza��es t�m diferentes pontos de vista a respeito da
concep��o do tempo; para os povos pr�-hisp�nicos o tempo � c�clico; para os
europeus o tempo � lineal.
6
A linearidade da história resume o passado pela natureza restrita de suas
fontes e pelas inexoráveis exigências impostas pelo tempo e pelo lugar da
ocorrência, Terra Nostra, respaldada pela imaginação literária, evoca as páginas da
História para compor uma versão possível dos acontecimentos que no passado
teriam dado origem à situação político-econômica da América Latina da década de
setenta.
Emoldurada pela palavra que legitima e amalgama a temática histórico-literária
de Terra Nostra, O Velho Mundo, O Mundo Novo e O Outro Mundo, a tese
estabelece a relação tríptica entre eles estruturando-os como um tríptico literário
organizando seus episódios cronologicamente. Trata-se de inúmeros fragmentos
que no romance são apresentados como uma sucessão de flashbacks, por meio de
narrativas entrecortadas, em conexões sugeridas pela obra que se estabelecem
sutilmente. A fábula do Descobrimento, da Conquista e da Colonização das terras da
Nova Espanha forma o eixo condutor no processo narrativo do romance, mesclando
ingredientes indígenas e europeus amalgama os sujeitos, os discursos e as
representações para emoldurar o encontro-confronto dos três mundos num duelo de
versões narrativas.
O corpus se organiza, segundo o modelo tríptico, de acordo com a trilogia do
romance. A primeira parte, A carnavalização da história em O Velho Mundo, focaliza
a história da Espanha e a sua relação com a América; essa relação se constrói em
torno na figura sociopolítica do rei Felipe II e da personagem literária Celestina cujos
lábios estão tatuados e regravados os fatos marcantes que dão origem à narrativa.
Discute as estruturas monolíticas do poder representadas na figura do Senhor
inserida no edifício de El Escorial, que na obra se reconhece como Palácio. O
primeiro episódio se inicia com um relato breve sobre o encontro entre dois jovens,
Polo Febo e Celestina, em Paris, no dia 14 de julho de 1999. Nessa sequência
inicial, ocorrem muitos relatos extraordinários, marcados pela aura do Juízo Final
preconizada pelo iminente fim de século. A personagem Celestina aparece pela
primeira vez e revela-se como protagonista e conhecedora dos fatos que abrangem
os séculos XVI e XVII, época que compreende a permanência da dinastia dos
Áustria no trono da Espanha.
A segunda parte do tríptico intitulada Os intertextos no mito fundacional em O
Mundo Novo reconstrói o mito de Quetzalcóatl e captura as realidades alternativas
7
que consentem diálogos possíveis num plano pluridimensional. A possível
construção da antropogênese latino-americana, somada à memória cultural das
personagens do romance, autoriza a fusão do relato histórico com o ficcional, ambos
se fundem nas múltiplas vozes das personagens que forçam a ficção a mover-se
pelo território da verossimilhança para confrontar a versão linear dos relatos
históricos. A reinvenção dos mitos pré-hispânicos e as crônicas da conquista, na
visão de Carlos Fuentes, formam um duplo eixo estruturador: a saga do deus
mesoamericano Quetzalcóatl e o descobrimento-conquista da América. A figura de
Quetzalcóatl, dentro do contexto da obra, articula a história da Conquista. As
aventuras do Peregrino no Novo Mundo se correspondem, por um lado, com as
etapas principais da vida Quetzalcóatl-Topiltzin e, por outro, com momentos
significativos da conquista da América. O estudo de estes dois componentes se
realiza em estreita relação com as fontes documentais do romance.
A terceira parte, A esfera das possibilidades em O Outro Mundo, apresenta O
Velho Mundo transformado pela intersecção com O mundo novo. Nesse encontro
predomina a ideia da história como um espelho, as figuras e os sucessos históricos
evocam o replicam outras personagens e outros acontecimentos. O Outro Mundo é
o reflexo do Velho Mundo, suas características socioeconômicas e políticas se
assemelham as dos povos dominados pelo poder absoluto no passado. Esses fatos
explicitam a multiplicidade de focos narrativos que existem no romance, ao mesmo
tempo que questionam o discurso histórico linear que privilegia um único ponto de
vista, uma única verdade e apenas uma versão da realidade.
Para pensar a História da Espanha e a da América dos séculos XVI e XVII,
Carlos Fuentes instaura uma ruptura da ordem espaço-temporal e a polifonia de
vozes narrativas. Essa fusão constrói versões múltiplas da História, produto das
diferentes formas de conceber e de elaborar a narrativa. A última parte do Tríptico
convoca algumas das personagens da primeira parte e introduz outras de diversas
obras literárias, surgem muitas histórias paralelas que foram iniciadas em episódios
anteriores que se encontram e se entrecruzam para mentir e para desmentir os fatos
anteriormente narrados.
O Outro Mundo contempla todos os movimentos de oposição presentes no
romance e, em especial, o poder herético da imaginação representado na figura dos
intelectuais, cientistas, escritores, artistas que alimentam o desejo por reconstruir a
8
mem�ria latino-americana. A narrativa se desloca no tempo e no espa�o, a
intertextualidade convoca uma multiciplicidade de obras e de personagens da
literatura universal para reuni-los no palco do plurilingu�smo, lugar em que a
heterogeneidade fica expl�cita como constitutiva da linguagem liter�ria.
A imagem evoca o s�culo XVI e o Teatro de Giulio Camillo que, interessado em
sintetizar a arte da mem�ria, desenhou um prodigioso Teatro da Mem�ria invertendo
os pap�is tradicionais do teatro. No lugar de atores, um espectador solit�rio se
situava no cen�rio, contemplando a atua��o que se desenvolvia ao seu redor, nas
gradas ascendentes do audit�rio. Na obra, o palco do Teatro da mem�ria de Val�rio
Camillo possibilita a oportunidade de imaginar destinos poss�veis ao reescrever a
hist�ria numa “fortale�a de papel”, materialidade de Terra Nostra.
As teorias formuladas por Mikhail Bakhtin em seus escritos, A Cultura Popular
na Idade Média e no Renascimento. O Contexto de François Rebelais (2002),
Problemas literários y estéticos (1986), El método formal en los estudios
literarios: introducción crítica a una poética sociológica (1994), Problemas da
poética de Dostiévki (2000), Questões de literatura e de estética (2002)
permitem compreender os recortes temporais como forma aberta e plurivocal de
perceber a hist�ria, em oposi��o ao discurso un�voco do relato linear.
A atitude transgressora que retira as personagens hist�ricas, m�ticas e liter�rias
do seu lugar comum caracteriza a carnavaliza��o da hist�ria por meio da linguagem
romanesca. O autor russo situa sua abordagem te�rica no campo das ci�ncias da
linguagem e dos estudos sobre a po�tica sociol�gica, valorizando a possibilidade de
construir uma ci�ncia das rela��es, o dialogismo, em que a mente teria uma fun��o
construtiva fundamental. Por ser um modo de sistematiza��o do conhecimento, de
ordena��o das partes num todo e de constru��o da percep��o, o dialogismo se
fundamenta n�o apenas como categoria est�tica, mas tamb�m como princ�pio
filos�fico que orienta um m�todo de investiga��o baseado na carnavaliza��o.
A reflex�o te�rica de Mikhail Bakhtin permite compreender o desdobramento
temporal como din�mico e criador; representante da mem�ria criativa no processo
de desenvolvimento na rela��o entre literatura e hist�ria, como uma das “formas
composicionais de organiza��o do plurilingu�smo no romance, para que os textos
alheios, provenientes da prosa extraliter�ria, processem o recurso do recorte como
sugest�o par�dica” (2002, p.8). Com o objetivo de estudar a composi��o cr�tica da
9
narrativa hist�rica, elaborada por meio de uma estrutura narrativa fragmentada,
analisam-se os elementos da carnavaliza��o, os intertextos na reconstru��o
dial�gica dos mitos mesoamericanos e a polifonia na esfera do desejo e da utopia
como subs�dios propostos pela mem�ria circular no romance.
A contextualiza��o do mito na literatura possibilita diversas interpreta��es
reveladas pelo conceito de mito liter�rio apresentado nos escritos de Mircea Eliade
em Aspectos do mito (1963). Comenta que “Os mitos de origem prolongam e
completam o mito cosmog�nico: contam como o Mundo foi modificado, enriquecido
ou empobrecido” Mito e Realidade (1972). A obra de Maria Zaira Turchi, Literatura
e antropologia do imaginário (2003) relaciona a Antropologia com a arte da
palavra e percebe o romance de natureza hist�rico-�pico-l�rico como uma das
express�es mais significativas da literatura contempor�nea, por construir mundos
f�rteis de aventuras e sentimentos.
Em Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura (2001), para
Hayden White h� que refletir sobre a forma de organiza��o e elabora��o das
narrativas hist�ricas para que elas adquiram sentido, pois os conte�dos hist�rico-
m�ticos s�o percebidos como afirma��es metaf�ricas que sugerem um complexo de
s�mbolos que possibilitam a fus�o do romance e da hist�ria por meio da imagina��o
construtiva.
A ideia de que hist�ria e fic��o tecem o discurso hist�rico se ap�ia nas
reflex�es de Paul Ricoeur sobre a temporalidade, “Contando hist�rias, os homens
articulam sua experi�ncia do tempo, orientam-se no caos das modalidades
potenciais de desenvolvimento, marcam com enredos e desenlaces o curso muito
complicado das a��es reais dos homens (...) a hist�ria do romance faz da literatura
“um enorme canteiro de experimenta��o” (Paul Ricoeur, 1990, p.43).
Para reconstruir o mito, o romance atravessa o tempo por um espa�o fant�stico
que oscila entre a hist�ria e a fic��o; os dados hist�ricos e m�ticos s�o extra�dos das
obras de Miguel- Le�n Portilla, El reverso de la Conquista. Relaciones Aztecas,
Mayas e Incas El destino de la palabra (1964); De la oralidad y los códices
mesoamericanos a la escritura alfabética (1992); Visión de los vencidos;
Relaciones indígenas de la Conquista (1969); Motivos de la antropología
americanista, indagaciones en la diferencia (2001). Esses escritos s�o
importantes para compreender no romance as rela��es que se estabelecem entre
10
culturas provenientes de mundos diferentes e para entender os mecanismos do
processo da conquista relatados, que ao construir a mito-hist�ria geram um novo
mito de origem como consequ�ncia do encontro-fus�o entre as culturas pr�-
hisp�nicas e o interesse sociopol�tico cultural do homem europeu.
Estudiosos da Hist�ria do Descobrimento e da Conquista do nosso continente
Octavio Paz (2009) e Tzvetan Torodov (2005) comentam que as narrativas que
comp�em a Hist�ria do per�odo da funda��o da Am�rica est�o marcadas pela
conflu�ncia de textos liter�rios europeus. Esses documentos s�o poss�veis vias para
explicitar as interfaces da literatura, no que se refere �s narrativas hist�ricas. Diz
Torodov que “as narrativas hist�ricas s�o n�o apenas modelos de acontecimentos e
processos passados, mas tamb�m afirma��es metaf�ricas que sugerem uma
rela��o de similitude entre esses e o tipo de hist�ria que convencionalmente
utilizamos para conferir aos acontecimentos das nossas vidas significados
culturalmente sancionados” (2005, p.42). Carlos Fuentes n�o descarta esse tempo
de funda��es marcado pela imagina��o; em Terra Nostra as refer�ncias textuais ao
Diario de Cristóbal Colón (1994) e �s Cartas de relación, de Hernán Cortés
(2006) surgem como documentos essenciais para criar as imagens do Novo Mundo
e as da Conquista do M�xico.
Os estudos cr�ticos de Walter Mignolo (1993) a respeito das rela��es entre a
Hist�ria e a Literatura estabelecem par�metros te�ricos que orientam a perspectiva
anal�tica sobre a constru��o da hist�ria em Terra Nostra. O autor comenta que na
literatura latino-americana das �ltimas d�cadas do s�culo XX surge uma nova forma
de narrativa, fruto do di�logo entre as ci�ncias humanas. Nesse sentido, a literatura
percebe o car�ter heterog�neo de forma��o dos diferentes espa�os culturais. Essa
apropria��o tem sido conceituada como etnoliteratura, poesia experimental,
literatura etno-cultural, e outros. Essas obras representam um desafio do ponto de
vista da sua classifica��o e an�lises, em alguns casos s�o denominadas como
romance da antropog�nesis ou etno-romance. Ressaltam o lugar da enuncia��o dos
discursos, desarticulando c�nones e tradi��es em concord�ncia com a ideia de
inven��o de Am�rica preconizada por Edmund O�Gorman, que mitiga o sentido de
descobrimento difundido pelo discurso europeu.
Terra Nostra pertence ao g�nero liter�rio conceituado como Novo Romance
Hist�rico, nos termos de Seymour Menton (1993), que caracteriza o discurso
11
romanesco como voltado para uma inst�ncia temporal do passado, heran�a do
modelo romance hist�rico de Walter Scott. Menton comenta que a Europa do s�culo
XIX � o ber�o onde nasce o romance hist�rico, esse fato coincide com a
necessidade de legitimar as tradi��es nacionais sob a ideia de que existe uma
hist�ria universal eurocentrista. Argumenta que motivado pela f� no historicismo, o
romancista procura no passado as for�as motrizes da sua pr�pria hist�ria, e que o
romance hist�rico hispano-americano ambiciona criar a legitimidade nacional
estabelecendo uma aproxima��o entre o universo sociocultural latino-americano e o
modelo europeu. “Os romances hist�ricos escritos sob a influ�ncia do modernismo
hispano-americano (1882-1915) n�o possu�ram o mesmo empenho no sentido de
atingir uma consci�ncia nacional, mas sim tratam de escapar das descri��es
naturalistas – positivistas ou do materialismo burgu�s e procuram uma re-cria��o
fidedigna ao mesmo tempo embelezada de certas �pocas do passado, no plano do
escapismo” (Menton, 1993, p.37).
Partindo desse conceito, o romance compreende-se como um escrito que se
situa total ou parcialmente num passado n�o vivenciado diretamente pelo autor.
Menton estabelece como romance hist�rico tradicional aquele surgido entre 1826-
1949, vinculado � origem dos romances nacionalistas e ao romance hist�rico
rom�ntico, “O romance hist�rico tradicional se remonta ao s�culo XIX e se identifica
principalmente com o Romantismo, embora evolucionasse no s�culo XIX dentro da
est�tica do Modernismo, do crioulismo e ainda dentro do existencialismo”.
Argumenta que, no s�culo XX, “as grandes guerras mundiais frustram o otimismo
inicial com rela��o ao progresso hist�rico, embora no imagin�rio ocidental a ideia de
que a Europa � o ber�o de uma civiliza��o supostamente continua j� estava
solidificada” (1993 p.31-35).
No Novo Mundo, complementa Menton, a narrativa latino-americana procura
obscurecer os traumas da conquista ib�rica e cria imagens que se aproximem ao
modelo da civiliza��o europeia. Procura esquecer o passado,transcende a
diversidade constitutiva do latino-americano e “constr�i uma face homog�nea
inserida num passado nacional comum, interpretada pela produ��o de a��es
romanescas de significativas hist�rias exemplares, cujos protagonistas personificam
tramas coloniais que explicam os projetos rom�ntico-liberais programados para as
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novas na��es. A partir desse momento o romance l� a hist�ria, interpreta e explicita
as inten��es da �poca em que se escreve” (1993, p.16).
O tempo hist�rico e o m�tico se conjugam harmoniosamente para criar a
verossimilhan�a no universo do romance, ao mesmo tempo funcionam como vias
seguras para compreender a cosmovis�o dos povos representados nas figuras das
personagens de Terra Nostra. A forma de organiza��o significativa do relato
hist�rico implica no entendimento de que na narrativa n�o h� apenas a mera
reprodu��o de acontecimentos nela descritos, mas que essa tamb�m acumula em si
um complexo universo de s�mbolos culturais que envolvem e tentam explicar esses
acontecimentos. A multiciplidade temporal articula a reflex�o do autor mexicano
sobre o tempo em espiral, que percebido como peregrino e construtor da hist�ria flui
num constante movimento de corsi e recorsi, estrutura narrativa m�ltipla que
percorre e recorta a hist�ria permitindo no romance a concep��o de um passado
inacabado, segundo os postulados do pensador Giambattista Vico, em A ciência
nova (1999). Esses escritos instauram um movimento circular que re�ne as
presen�as da mem�ria e do tempo no espa�o criado em Terra Nostra.
A narrativa de Carlos Fuentes entrela�a o passado, o presente e o futuro para
revelar verdades poss�veis e tecer uma hist�ria sem fim constitu�da pelas vozes
marginalizadas da História, pela valoriza��o das tradi��es culturais, pelo
questionamento dos dogmas e pelo preenchimento dos vazios impostos pelo
discurso totalizador. A preocupa��o quanto � multiplicidade cultural latino-americana
� uma diretriz tem�tica em sua obra, seu acervo liter�rio desde a primeira cole��o
de contos, Los días enmascarados (1954), at� seus �ltimos ensaios demonstram a
sua preocupa��o por reescrever a hist�ria do continente americano e principalmente
a hist�ria do M�xico, eixo de toda a sua narrativa.
Sua produ��o liter�ria observa o passado como pluridimensional, aberto,
reinterpret�vel e vivo dentro do mundo contempor�neo. Para Carlos Fuentes, o meio
privilegiado para explorar o passado se encontra no espa�o da cria��o liter�ria. Em
contos como Por la boca de los dioses, Chac Mool ou Tlactocatzine, inclu�dos em
Los días enmascarados, descreve o passado pr�-hisp�nico e sua rela��o de
conflito ainda latente na realidade atual. Nos tr�s contos, o passado esquecido
irrompe para reinterpretar os mitos com a inten��o de refletir sobre o inevit�vel
conflito entre as lembran�as do passado e a percep��o do presente, para isso a
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obra alude aos cinco dias finais do calendário asteca como aporte pré-cortesiano à
cultura mexicana moderna. Os tempos inclusos e vitais de todos os homens são a
ramificação metafísica das preocupações quanto aos diferentes tempos históricos
pelos quais transitam as realidades hispano-americanas. Em ambos os casos, os
tempos são representações de vozes culturais e interiores, como nos contos que as
evidenciam.
Em La región más transparente (1958), retoma temas relacionados à
identidade mexicana, examinados de forma embrionária em Los días
enmascarados (1954). O romance registra um período preciso da vida sociocultural
mexicana, o tempo da narrativa no qual se insere a maior parte da ação é o ano de
1951. A obra ilustra um México moderno, que concebido a partir de personagens
representativos de todos os setores sociais das grandes cidades refletem sobre o
inevitável conflito entre as lembranças do passado e a percepção do presente a
procura das raízes pré-hispânicas que parecem incompreensíveis para a
mentalidade da cultura mestiça que configura o México atual. Como uma fotografia
do tempo, constrói um registro cuidadoso do cotidiano das diferentes classes
sociais. A cidade é intelectualmente descrita pela personagem Manuel Zamacoma,
uma espécie de filósofo que vive preocupado em analisar as porções culturais que
formam o ser mexicano. Ele surge segurando um exemplar da obra de Octavio Paz,
El laberinto de la soledad (1959), o que revela um recorte do pensamento da
época.
Esse recorte se centra na perspectiva filosófica dos intelectuais daquele
momento mexicano. No entanto, contraposta a ela, surge o universo da oralidade,
manifestado por Teódula Moctezuma, mãe de Ixca Cienfuegos e uma espécie de
mentor de seu projeto. A metáfora de Terra Nostra remete a essa ideia do tempo
fragmentado no espaço, como também às teorias intelectuais plasmadas no
universo mágico permeado pela mãe de Ixca. A personagem de Ixca Cienfuegos
revela-se como a prática exacerbada das teorias concebidas pelo filósofo Manuel
Zamacoma. Uma vez que seu projeto fracassa, demonstra-se que a busca por uma
pureza original não possui mais espaço no universo multicultural mexicano. O
filósofo morre brutalmente assassinado em um bar de estrada, acontecimento que
denota o confronto com a face oculta do ser mexicano e, consequentemente, do
latino-americano, composta pelo machismo e pelos complexos acumulados.
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A Cidade de M�xico, com seu duplo humano Ixca Cienfuegos, � a grande
protagonista; a personagem traduz o universo m�tico pr�-hisp�nico latente, uma vez
que percorre as diversas classes sociais mexicanas em busca de uma v�tima
espont�nea para participar de um sacrif�cio ritual asteca, pois dessa forma a gl�ria
do passado mexicano seria restaurada. O romance prop�e uma vis�o fragmentada
da realidade e as refer�ncias espaciais se desdobram em refer�ncias temporais.
Cada parte da cidade descrita revela um espa�o concreto que, ao mesmo tempo,
significa um tempo m�ltiplo. Alguns destes espa�os s�o apontados como
possibilidades de ac�mulo de tempos diversos, da mesma forma que em Terra
Nostra.
A narrativa de La región más transparente reflete o conflito entre as
diferentes concep��es de tempo; e a forma de construir esse per�odo da Hist�ria do
M�xico centra-se na conflu�ncia dos diferentes registros das tradi��es intelectuais e
da oralidade expl�cita. Fragmentando as unidades temporais impl�citas no espa�o da
cidade, ambiciona a percep��o de um todo multitemporal. Ao expor a constru��o
filos�fica, representada pela personagem Zamacoma, junto � constru��o m�gica de
Ixca Cienfuegos, al�m de explicitar a brutalidade cotidiana, questiona, como em
Terra Nostra, o real e a constru��o das poss�veis verdades impl�citas no discurso
hist�rico. A conflu�ncia de tempo linear e de tempo m�tico se evidencia na
simultaneidade sugerida pelos espa�os da narrativa, como a pra�a central que
cumpre o papel de reunir as vozes apagadas pela hist�ria. Revela-se a inten��o de
assinalar os tempos mexicanos, tempos que ainda n�o se realizaram como reafirma
nos ensaios de Nuevo tiempo mexicano (1971).
La muerte de Artemio Cruz (1962) analisa a psicologia de um membro
representativo da oligarquia, fruto do processo revolucion�rio. O romance relata
epis�dios da revolu��o de 1910, que n�o teriam resolvido as injusti�as seculares da
na��o mexicana. Na sociedade burguesa mexicana da �poca da Revolu��o, surge
Artemio Cruz, um sujeito pobre, mesti�o, que entra na Revolu��o levado pela
fatalidade e algum idealismo. Acaba desiludido e se casa com a filha de um antigo
latifundi�rio, consegue poder econ�mico e pol�tico e participa da “venda do pa�s” ao
imperialismo ianque. As sequ�ncias narrativas s�o apresentadas pelos pronomes
“eu”, refer�ncia ao tempo presente de Artemio Cruz prostrado e agonizante no seu
leito de morte; e o “tu”, representando aspectos subconscientes de Artemio, que
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narra a hist�ria da personagem sem respeitar qualquer cronologia e o “ele”, que
surge como nivelamento l�gico que permite seguir a hist�ria pessoal de Artemio
Cruz. Essa figura representa a classe dominante mexicana, que mesmo
reconhecendo sua tradi��o revolucion�ria, entrega o pa�s aos poderes estrangeiros
e reprime os que n�o aceitam esse modelo de domina��o.
A hist�ria do M�xico perpassa a trajet�ria de Artemio Cruz, o romance
interpreta os fatos constitutivos do ser mexicano; pela fragmenta��o temporal a
narrativa imprime o car�ter inovador � obra que relata grandes momentos da hist�ria
do seu pa�s. Os diferentes pontos de vista e possibilidades de contar a hist�ria,
assim como fluxos narrativos interrompidos, prenunciam a fragmenta��o proposta
em Terra Nostra, dessa vez, como em Artemio Cruz, n�o se trata da vida de um
indiv�duo refletida em um pa�s, e sim de tempos, de espa�os e de narrativas
diversas que se fragmentam e, ao mesmo tempo, fundam um espa�o-tempo
particular, simb�lico pela necessidade de construir e perceber o real como
subst�ncia de questionamento.
Em Aura (1962) se superp�em a hist�ria e a fic��o quando o protagonista, um
historiador de profiss�o, recebe o encargo de escrever a biografia de um antigo
general mexicano. A trama reflete sobre os enganosos mecanismos da mem�ria, e a
dificuldades de reconstruir a personalidade individual em um mundo em que a
identidade est� permanentemente exposta ao desdobramento e a dispers�o. O
tempo se multiplica, ou se fragmenta no momento presente como neste romance. A
formula��o est�tica que se constr�i mediante a profus�o de vozes de diferentes
tempos remete aos tempos hist�ricos mexicanos que se encadeiam sem cumprirem-
se efetivamente. Parece que este fato leva ao escritor a enfocar em algumas de
suas obras, que recortam a Hist�ria mexicana, momentos hist�ricos cl�ssicos de
ruptura e reconstru��o do imagin�rio, ou seja, da Conquista e da Revolu��o.
Esses momentos exemplificam os presentes cont�nuos que resgatam os
para�sos subvertidos, refletem a capacidade imanente das rupturas na medida em
que revelam a transcend�ncia impl�cita aos limites da resist�ncia. Essa capacidade
de perceber a constru��o da narrativa hist�rica como uma ordena��o linear dos
fatos, permite a fragmenta��o nos diferentes paradigmas significativos permitidos �
obra liter�ria. A mesma problem�tica reaparece em Cambio de piel (1975), quando
o passado pr�-hisp�nico, representado pela paisagem da cidade de Cholula, serve
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de palco para a aventura existencialista das personagens. A obra contempla o
passado como pluridimensional, reinterpret�vel, aberto e ainda vivo no mundo
contempor�neo.
Em Gringo Viejo (1985), o sentimento de solid�o e os ideais da revolu��o
marcam as figuras do general Arroyo e Harriet Winslow, uma mulher sem filhos que
vai ao M�xico para ser professora na casa de uma fam�lia de fazendeiros mexicanos
e termina incorporando-se ao grupo de revolucion�rios comandado por Arroyo. A
personagem hist�rico-fict�cia Ambroise Bierce, o gringo viejo, assim como Harriet e o
general Arroyo estabelecem uma grande met�fora das conflu�ncias temporais entre
o passado e o presente, que disputam as fronteiras interiores de cada um. O tempo
ao qual est�o submetidas as personagens � o tempo da ruptura, do desequil�brio e
do caos instaurado nas usurpa��es de poder. Enquanto fato hist�rico, a Revolu��o
invade o limite temporal interior de cada personagem e permite a cada uma delas
viver suas trajet�rias e questionar os direcionamentos de suas vidas.
O universo pr�-hisp�nico reaparece em Cristóbal Nonato (1987). Trata-se de
uma obra de propor��es �picas, com personagens representativas das diferentes
camadas sociais que transformam a Cidade de M�xico do s�culo XX em
protagonista e amalgamador da realidade nacional e em palco prop�cio para que os
mitos pr�-hisp�nicos manifestem a sua presen�a apocal�ptica, par�dica e grotesca.
O protagonista, um embri�o em processo de gesta��o, reflexiona ironicamente
sobre o processo de reda��o do romance enquanto dialoga com o leitor.
O discurso auto-reflexivo das personagens criadas por Carlos Fuentes desafia
a cren�a de que as manifesta��es hist�ricas s�o objetivas, neutras ou imparciais.
Por meio de um narrador autoconsciente em primeira pessoa, Carlos Fuentes
ridiculariza o conceito tradicional da hist�ria utilit�ria que corresponde a estruturas
totalizantes. Contempla a constru��o dos estados-na��o nos mesmos termos que a
produ��o dos romances: “ambos s�o atos de fabula��o que buscam sua
legitimidade em um passado suscept�vel de manipula��o” (1978, p.13).
A mesma preocupa��o acontece em El tuerto es rey (1970) e Todos los
gatos son pardos (1970) quando se discutem alguns dos problemas hist�ricos de
Hispano-Am�rica desde perspectivas diferentes. Temas como o Descobrimento e a
Conquista da Nova Espanha geram a cr�tica ao poder e � autoridade. De Todos los
gatos son pardos um grande n�mero dos dados historiogr�ficos s�o reelaborados
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e revistos em Terra Nostra: o tempo da conquista, o encontro e as consequências
desse encontro são o alvo constante nas reflexões da obra. Escrita para o teatro, a
peça revela a sua inquietude sobre a complexidade de teorias acerca da formação
cultural mexicana, teorias discutidas entre os anos quarenta e cinquenta no México
pelos críticos Alfonso Reyes, José Vasconcelos e Octavio Paz.
Carlos Fuentes constrói literalmente o momento da conquista do México,
destacando como protagonistas as figuras de Moctezuma e a sua corte, Hernán
Cortés e sua expedição e, num coro de vozes, algumas das personagens míticas da
cultura asteca. O momento histórico surge amplamente documentado com seus
referenciais míticos e históricos correspondentes para fomentar o diálogo entre dois
discursos imaginários; a memória é o resultado da leitura dos cronistas e dos
historiadores, tanto índios como espanhóis. No prólogo dessa peça escreve:
(...) é ao mesmo tempo uma memória pessoal e histórica, já que indagar sobre as nossas origens comuns para entender a nossa existência presente requer ambas as memórias no México, o único país que eu conheço, além da Espanha e dos do mundo eslavo, não em vão excêntrico como nós, onde se perguntar Quem sou eu? Quem é o meu pai e quem é minha mãe, equivale a perguntar-se, Quem significa toda esta nossa história? (1970, p.9).
O diálogo imaginário entre o tempo atual com os cronistas, Moctezuma e
Hernán Cortés, gera a memória circular. O passado histórico se recompõe ao refletir
o tempo presente; o diálogo com as figuras históricas provoca o confronto entre mito
e realidade questionando a ideia de verdade na construção da narrativa histórica
linear. Nessa versão, a construção da História da Conquista é antes de tudo, uma
interpretação antropológica do ser mexicano, em primeiro lugar, e das origens
históricas e míticas do latino-americano.
Em La Campaña (1990), o período histórico recortado reflete os movimentos
de independência na América espanhola entre os anos de 1810 e 1821. A trama
centra-se no referencial hispano-americano que constitui, nesse momento histórico
específico, um mesmo paradigma de ideal de independência. No início da narrativa,
surge a Revolução de Maio na Argentina, o dia é precisamente marcado, 24 de maio
de 1810. O romance transita por esse instante da História do país que termina com o
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fim das campa�as e o governo Rivadavia. Mais do que um recorte hist�rico, a
narrativa recorta os ideais de um tempo libert�rio.
Os ideais incorporados pela personagem Baltazar Bustos, que proclama a
liberdade, igualdade e fraternidade como cr�tica � pr�tica de incorporar modelos de
governo importados da Europa � realidade da Am�rica Latina, surgem no momento
de ruptura na constru��o do imagin�rio e dos referenciais europeus, momento que
se produz pela conflu�ncia de vozes e de tempos que se interrelacionam para
catalisar os imagin�rios inerentes �s popula��es americanas.
Diz Raymond L. Williams que “tais obras constituem a continua��o dos temas
de Terra Nostra: a origem das culturas e da hist�ria da Am�rica. La campanha
refere a hist�ria de Am�rica desde que o Cone Sul alcan�ou sua independ�ncia e
pode ser lida como uma par�dia do romance hist�rico do s�culo XIX” (1998, p.71).
O interesse pelo tema da Conquista da Am�rica se reitera em Ceremonias del Alba
(1991) quando explora o passado no espa�o dial�gico entre o tempo m�tico e o
tempo linear, para “dar uma voz aos sil�ncios da nossa hist�ria” (1978, p.13).
Nos ensaios La nueva novela hispanoamericana (1989), Cervantes o la
crítica de la lectura (1976), Valiente mundo nuevo (1992) e Geografía de la
novela (1993), Carlos Fuentes enuncia algumas das ideias mais importantes sobre
a sua concep��o de romance, “n�o � a hist�ria de todo romance uma evoca��o da
hist�ria mais do que uma correspond�ncia com a hist�ria? Este compromisso do
romance – realidade imaginativa, narra��o da na��o da sociedade e da sua cultura,
compromisso de inventar verbalmente a segunda hist�ria sem a qual a primeira �
ileg�vel” (1993, p.26). Considera que o mesmo corresponde � Modernidade e afirma,
“o romance � fruto do pensamento moderno” (1993, p.28).
Para formar o embasamento te�rico sobre o romance, como g�nero liter�rio,
Carlos Fuentes contrasta as express�es liter�rias da Idade Antiga frente �s
express�es liter�rias da Idade Moderna. A primeira grande divis�o encontra-se nas
formas, “enquanto que as primeiras demonstra��es liter�rias eram eminentemente
l�ricas, �picas e dram�ticas; na Modernidade, o romance ocupa um lugar priorit�rio”
(1989, p.16). Afirma que “O romance � a �pica de uma sociedade em luta consigo
mesma. A literatura potencial e conflituosa do nosso tempo tenta proporcionar-nos a
parte n�o escrita e n�o lida do mundo (...) as grandes obras do passado s�o parte
do futuro. Est�o sempre esperando ser lidas pela primeira vez (...) porque, embora
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tenham sido escritas no passado, foram escritas para ser lidas no presente” (1993,
p.30).
Defende a inven��o de uma nova forma de linguagem que libere � literatura
hispano-americana dos limites da representa��o documental e naturalista. Essa
tend�ncia documental teria a sua origem na necessidade de registrar e de avaliar as
tens�es num continente em busca da sua identidade, mas carente dos meios de
express�o necess�rios para represent�-la. A aus�ncia de ve�culos democr�ticos de
comunica��o ou de uma classe intelectual emancipada teria obrigado o romancista a
exercer o papel de rep�rter revolucion�rio e de pensador legislador.
Com o romance da revolu��o, fruto da revis�o da hist�ria, representado pelo
escritor Juan Rulfo, teria se produzido uma mudan�a de enormes consequ�ncias
para a hist�ria liter�ria hispano-americana, como a introdu��o da ambiguidade
necess�ria para a representa��o do mundo moderno e a articula��o entre a
tem�tica da revolu��o e os grandes mitos universais. “Trata-se, segundo o autor, do
conceito de literatura dissidente, que se op�e �s formas monol�ticas do poder da
linguagem, da ambiguidade de significados, da pluralidade de significados, da
constela��o de ideias, da abertura” (1976, p. 32).
Seus ensaios desenvolvem uma base sociohist�rica que permitem
compreender uma das afirma��es contidas na narrativa de Terra Nostra, “toda essa
carga policultural que chega a Am�rica trazida pelos conquistadores” (1992, p.46).
Na constante busca pela antropog�nese latino-americana, reflete sobre a hist�ria, a
sociedade e a literatura espanhola do per�odo de 1492 a 1615. A partir de distintos
�ngulos e perspectivas, busca nas origens as ra�zes que corresponderiam � cultura
da Pen�nsula Ib�rica que miscigenada � cultura dos povos pr�-colombianos
resultaria no que hoje se entende como idiossincrasia latino-americana. Inquieto por
desentranhar este tema, apresenta desde seus primeiros modelos narrativos uma
via a ser percorrida em Terra Nostra.
O conflito constitui o mote central que desenvolve em El Espejo Enterrado
(1992), cujo t�tulo procede do costume dos �ndios olmecas e totonacas de enterrar
seus mortos com um espelho que serviria de guia durante a longa viagem ao
inframundo. Carlos Fuentes comenta que o t�tulo tamb�m faz refer�ncia � obra de
Ram�n Xirau L´Espil Soterrat, um espelho que olha desde a Am�rica para o
Mediterr�neo e do Mediterr�neo para a Am�rica.
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Os conquistadores espanh�is, franceses e norte-americanos t�m entrado ao M�xico atreves de Veracruz. Mas as mais antigas culturas, os olmecas ao sul do porto, desde h� 3500 anos, e os totonacas ao norte, com uma antiguidade de 1500 anos, tamb�m t�msuas ra�zes aqui. Nas tumbas de seus s�tios religiosos tem-se encontrado espelhos enterrados, cujo prop�sito era guiar os mortos em sua viagem ao inframundo. C�ncavos, opacos, polidos, contendo uma centelha da luz nascida em meio � escurid�o. Mas o espelho enterrado n�o forma parte apenas da imagina��o ind�gena americana. O poeta mexicano-catal�o Ram�n Xirau intitulou um de seus livros L´Espil Soterrat - O espelho enterrado -, recuperando uma antiga tradi��o mediterr�nea n�o muito longe das dos antigos habitantes ind�genas das Am�ricas. Um espelho que olha das Am�ricas para o Mediterr�neo, e do Mediterr�neo �s Am�ricas. Este � o sentido e o ritmo deste livro. (1992, p. 11-12).
Reflete a rela��o do Novo Mundo com a Espanha e reconsidera temas centrais
tratados em Terra Nostra. A Espanha desenhada � multicultural, as ra�zes culturais
judeu-crist�s, �rabes, gregas, latinas, cartagineses, g�ticas e ciganas s�o
reconhec�veis ao longo de toda a Pen�nsula Ib�rica. No s�culo XVI, a Espanha
policultural se encontra com o Novo Mundo tamb�m enriquecido pela cultura dos
povos pr�-colombianos. A cren�a nas distintas alternativas e valores culturais se
constituem em abundante material e eixo central para a reescrita do universo
hisp�nico que, enriquecido pela inclus�o do material pr�-hisp�nico, gera a utopia e a
inven��o da Am�rica na obra.
Em 12 de outubro de 1492, Crist�v�o Colombo desembarcou numa pequena ilha do hemisf�rio ocidental. A fa�anha do navegante foi um triunfo da hip�tese sobre os fatos: a evid�ncia indicava que a terra era plana; a hip�tese, que era redonda. Colombo apostou na hip�tese; pois a terra � redonda e pode-se chegar ao Oriente navegando para o Ocidente. Mas errou na sua geografia. Acreditou ter desembarcado na �sia. Seu desejo era alcan�ar as fabulosas terras de Cipango (Jap�o) e Catai, na China, reduzindo a rota europeia contornando a costa da �frica, at� o extremo sul do Cabo da Boa Esperan�a e logo pelo Leste at� o Oceano �ndico e as ilhas das especiarias. N�o foi a primeira nem a �ltima desorienta��o ocidental. Nestas ilhas, que ele chamou de “as �ndias”, Colombo estabeleceu as primeiras popula��es europeias no Novo Mundo. (...) Colombo teve que inventar o descobrimento de grandes riquezas em bosques, p�rolas e ouro, e enviar essa informa��o � Espanha. (...) Mas Colombo, mais do que o ouro, ofereceu � Europa uma vis�o da idade de ouro restaurada: estas eram as terras da Utopia, o tempo feliz do homem natural. Colombo tinha descoberto o para�so terreno e o bom selvagem que o habitava. (...). No in�cio Colombo deu um
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passo para a idade dourada. Mas logo, pelos seus pr�prios atos, o para�so terreno foi destru�do e os bons selvagens foram percebidos como “bons para trabalhar a terra, semear e fazer tudo o que for mandado”. Desde ent�o, o continente americano tem vivido entre o sonho e a realidade, tem vivido o div�rcio entre a boa sociedade que desejamos e a sociedade imperfeita em que realmente vivemos. Temos persistido na esperan�a ut�pica porque fomos fundados pela utopia, porque a mem�ria da sociedade feliz est� na origem da Am�rica, e tamb�m no fim do caminho, como meta e realiza��o dasnossas esperan�as. (1992, p.9,10).
A cole��o de ensaios Tiempo mexicano (1971) � a primeira exposi��o
detalhada da sua utopia social. Em seus escritos analisa a sociedade mexicana em
uma ampla perspectiva hist�rica; o autor se mostra interessado na conflu�ncia das
tr�s grandes concep��es do tempo, na realidade presente do seu pa�s: a vis�o
m�tica e circular do passado pr�-hisp�nico, a concep��o teol�gica e lineal da cultura
europeia e as formas h�bridas surgidas como consequ�ncia da mesti�agem. Para o
autor, toda tend�ncia documental se origina na necessidade de registrar e de avaliar
as tens�es de um continente � procura da sua identidade, mas que carece dos
meios de express�o necess�rios para represent�-la.
Explica que a ideia de “conhecer a Espanha para que o M�xico possa
reconhecer-se a si mesmo” tem sua correspond�ncia no reconhecimento ibero-
americano por parte da Espanha, o que se traduz no seu pr�prio autoconhecimento.
A reflex�o acrescenta a ideia de que a l�ngua espanhola � a chave dessa integra��o
entre a Espanha e a Am�rica, pois do mesmo modo que a hist�ria e a literatura, as
ra�zes liter�rias compartidas, n�o s�o um patrim�nio exclusivo da Espanha, e sim
riqueza cultural compartida e constru�da por todas as na��es dos falantes da mesma
l�ngua. “a l�ngua sempre foi companheira do imp�rio, e consequentemente, para
subverter as for�as opressoras que legitimam a hegemonia das classes
privilegiadas, deve-se come�ar pela linguagem” (Cristóbal Nonato, p. 97).
Os escritores de Iberoam�rica nos prop�em uma contribui��o pr�pria da literatura. A linguagem � a raiz da esperan�a. Trair a linguagem � a maior sombra da nossa exist�ncia. A utopia americana, cria��o da linguagem (...) uma multid�o de linguagens, dos europeus, �ndios, negros, mulatos, mesti�os. O romance latino-americano pede-nos para expandir essas linguagens, todas elas, libertando-as dos costumes, o esquecimento ou o sil�ncio, transformando-os em met�foras inclusivas, din�micas, que admitam toas as nossas formas
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verbais: impuras, barrocas, conflitivas, sincr�ticas, policulturais. (1993, p. 22).
Ao longo das p�ginas de Terra Nostra, Carlos Fuentes discute sua tese que se
reafirma em seus in�meros escritos e entrevistas: “Vivemos hoje. Amanh� teremos
uma imagem do que foi o presente. N�o podemos ignorar isto, como n�o podemos
ignorar que o passado foi vivido, que a origem do passado � o presente, o passado
n�o est� conclu�do; o passado tem que ser reinventado a cada momento para que
n�o se fossilize entre as m�os” (1992, p.17). Essas ideias sobre a multiplicidade de
culturas do sujeito hispano-americano t�o presentes na interpreta��o da Hist�ria da
Am�rica, relacionadas � preocupa��o por compreender o contexto cultural ib�rico,
motivaram a escolha do romance Terra Nostra para este estudo.
Obra que exige um estudo pr�vio a respeito das culturas ib�ricas e americanas,
correspondente ao per�odo hist�rico dos s�culos XVI e XVII, e dos mitos
mesoamericanos. Carlos Fuentes argumenta que “o presente chama de hist�rico
tudo quanto tem um lugar no passado. Mas somente aquilo, que mant�m um sentido
para o nosso presente, tem um lugar no passado” (1992, p.31). Para interpretar o
passado, a intertextualidade � um instrumento chave que institui o di�logo
multicultural e politemporal entre o universo da cultura pr�-hisp�nica e a espanhola
desses s�culos. O tr�ptico liter�rio em an�lise perpassa as concep��es de Carlos
Fuentes relacionadas ao movimento incessante entre o presente e o passado.
Ao final da tese encontram-se os anexos que sistematizam os referenciais
hist�ricos mencionados em Terra Nostra.
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PRIMEIRA PARTE
El tiempo se vierte, indiferente a nosotros, nos defendemos de él invirtiéndolo, reinvirtiéndolo, divirtiéndolo, subvirtiéndolo, convirtiéndolo: la reversión pura es atributo del tiempo puro, sin hombres; la reversión y la conversión son respuesta humana, módulo del tiempo, corrupción de su limpia y fatal indiferencia. Escribir es combatir el tiempo a destiempo: a la intemperie cuando llueve, en un sótano cuando brilla el sol. Escribir es un contratiempo.
Geografía de la Novela
Escribe, Guzmán, escribe, lo escrito permanece, lo escrito es verdad en si porque no se le puede someter a la prueba de la verdad ni a comprobación alguna, ésa es la realidad plena de lo escrito, su realidad de papel, plena y única.
Terra Nostra
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I
A CARNAVALIZAÇÃO DA HISTÓRIA EM O VELHO MUNDO
(...) como n�o ver nestas profecias da antiga cria��o mexicana um espelho para o nosso pr�prio tempo, para nossa obstinada diverg�ncia entre a promessa da vida e a certeza da morte, entre a avan�ada consci�ncia humanista, cient�fica, verbaliz�vel, �tica, e a fatal inconsci�ncia pol�tica da destrui��o, do sil�ncio e da morte.
Carlos Fuentes Nuevo tiempo mexicano
O cr�tico liter�rio Santiago Juan Navarro em seu ensaio Entre el revisionismo
histórico y la literatura de resistencia (1995) comenta que a tend�ncia revisionista
da fic��o hist�rica p�s-modernista se constitui em um “p�s-modernismo de
resist�ncia”. E acrescenta que, frente as estrat�gias do simulacro que dominam a
sociedade de consumo e o elitismo da cultura institucional, autores como Carlos
Fuentes apresentam em suas obras uma din�mica de enfrentamento cultural em que
as estrat�gias de representa��o hegem�nicas s�o inscritas, e ao mesmo tempo
subvertidas, ao propor uma profunda reflex�o sobre a hist�ria e sobre a forma
textual em que � transmitida e recriada.
A obra de Fuentes exemplifica um n�mero substancial das caracter�sticas formais atribu�das ao p�s-modernismo liter�rio. (...) Uma grande parte dos romances do boom responde � tend�ncia da desconstru��o inerente � p�s-modernidade (...) a radical decomposi��o de toda autoridade (e em especial �s conven��es liter�rias dominantes) como princ�pio que rege os textos p�s-modernistas. A obra de Fuentes � transgressora no uso extremo de um ponto de vista que desconstr�i os pressupostos b�sicos do romance realista. Por um lado, utiliza narradores que discutem abertamente a arbitrariedade do romance convencional e as limita��es de toda perspectiva hist�rica. Por outro lado, se vale de vozes narrativas m�ltiplas e de pontos de vista m�veis que
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contradizem o poder monológico das representações convencionais e comunicam uma impressão polifônica. Esta apertura formal é expressão de uma ideologia que celebra a pluralidade como um valor supremo e se opõe aos sistemas culturais vigentes. No lugar do elitismo, as proporções monológicas, e a centralização que caracterizam à cultura institucionalizada, Fuentes propõe uma ideologia baseada na diferença que celebra o papel dos grupos marginalizados e as culturas locais. (...) obras como Terra Nostra ou Cien años de soledad podem descrever-se como romances à busca de uma síntese utópica das culturas de Hispano-América. Esta inclinação totalizadora adota matizes pós-modernistas pela sua condição ambígua, fragmentária e plural. (...) em algumas ocasiões é explicitamente parodiada como ocorre em Terra Nostra com a metáfora de El Escorial. (...) Ademais do seu interesse na materialidade dos elementos narrativos e a sua relação com os outros universos discursivos, estas obras tratam com igual (ou superior) profundidade questões de ordem epistemológica e político. Qual é a natureza do passado e de suas consequências? Como se produz o nosso conhecimento do passado? Como se transmite dito conhecimento? Como se sanciona uma versão particular da história? Como podemos produzir versões alternativas e como podem ser consideradas politicamente efetivas? Estas são questões que vão além de uma mera exploração ontológica do universo textual no âmbito especifico do pós-modernismo. (Navarro, 1995, p.196-197).
Escrita entre 1968 e 1975, ano em que foi publicada, Terra Nostra representa
uma época em que a Espanha e a maior parte dos países da América Latina vivem
a repressão de regimes totalitários. Santiago Juan Navarro observa que Carlos
Fuentes busca em seu romance uma chave que permita explicar a conjuntura
histórica do mundo hispânico da segunda metade do século XX. Ao longo da revisão
histórica registrada na obra, tenta diagnosticar o labirinto político hispânico desse
período aludindo às manifestações fascistas e à agonia de Francisco Franco na
Espanha, o terrorismo de Estado praticado no Chile, Argentina, Uruguai, Bolívia,
Peru, Guatemala e Republica Dominicana; a corrupção e monopólio do poder no
México e ao caudilhismo e à dependência político-econômica de toda a região do
Caribe em relação aos Estados Unidos da América. Comenta que o escritor
mexicano reescreve grande parte da história ocidental, centrando sua atenção na
alvorada da Idade Média e no enfrentamento cultural entre a Espanha imperial e o
México pré-hispânico.
Fuentes busca em seu romance respostas para a encruzilhada histórica em que se encontra Hispano-América durante a segunda metade do século XX. Para isso, o romancista mexicano reescreve boa parte da história (...) mas a característica mais destacada e
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surpreendente do romance � o uso de uma hist�ria ap�crifa que acaba por desalojar a vers�o herdada das cr�nicas oficiais. Em Terra Nostra a hist�ria tradicional de cronologias exatas – sucess�es din�sticas, grandes fa�anhas e empresas �picas – cede lugar a um aparente caos de personagens e de vozes narrativas em que � dif�cil estabelecer a agencia hist�rica. O resultado � uma vers�o alternativa do passado onde os elementos fant�sticos, �s vezes, parecem verdadeiros. A sensa��o de caos que podemos experimentar durante os primeiros momentos da leitura, progressivamente, cede lugar � impress�o contr�ria: tudo no romance parece responder a um grande desenho em que o leitor � convidado a estabelecer conex�es entre os elementos mais dispersos.
(Navarro. 2002, p.50).
A obra est� dividida em tr�s grandes partes: O Velho Mundo, O Mundo Novo e
O Outro Mundo. Emoldurada pela palavra que legitima e amalgama a tem�tica
hist�rico-liter�ria dos tr�s mundos de Terra Nostra, a tese estabelece a rela��o
tr�ptica entre os mundos estruturados como um tr�ptico liter�rio organizando seus
epis�dios cronologicamente. Trata-se de in�meros fragmentos que no romance s�o
apresentados como uma sucess�o de flashbacks, por meio de narrativas
entrecortadas, em conex�es sugeridas pela obra que se estabelecem sutilmente. A
f�bula do Descobrimento, da Conquista e da Coloniza��o das terras da Nova
Espanha forma o eixo condutor no processo narrativo do romance, que mesclando
ingredientes ind�genas e europeus amalgama os sujeitos, os discursos e as
representa��es para emoldurar o encontro-confronto dos tr�s mundos num duelo de
vers�es narrativas. Os motivos b�sicos que determinam os cen�rios s�o o Imp�rio
romano de Tib�rio C�sar, a Espanha do s�culo XVI e XVII, a Am�rica do
Descobrimento-Conquista e a cidade escatol�gica da Paris de 1999.
Terra Nostra (1975), consta de setecentas e oitenta e tr�s paginas, cento e
quarenta e quatro segmentos narrativos divididos formalmente nas tr�s partes da
obra. O relato se inicia e termina no mesmo lugar geogr�fico, na cidade de Paris de
1999, primeiro e �ltimo epis�dio. Os cento e quarenta e dois epis�dios restantes
acontecem na Espanha do s�culo XVI e XVII e em suas �reas de influ�ncia na
Am�rica e no Mediterr�neo.
A obra se traduz pelo complexo jogo entre a Hist�ria linear e a oficiosa,
elaborada por Carlos Fuentes mediante as lacunas deixadas pela primeira. No plano
metodol�gico proposto para este estudo, as partes do tr�ptico foram divididas
seguindo a organiza��o interna da obra. Cada uma das partes do Tr�ptico se
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corresponde com um dos mundos referidos e a estrutura��o tem�tica interna da
obra. A primeira parte � a mais extensa, O Velho Mundo relata uma f�bula hist�rica
que tem como referencial os s�culos XVI e XVII, �poca da dinastia dos �ustria no
trono da Espanha. O correlato o constitui a Espanha autorit�ria, f�nebre e dogm�tica
cujo foco se situa na Espanha imperial e, em particular, no reinado de Felipe II. O
foco discute as estruturas monol�ticas do poder representadas na figura do monarca
no Pal�cio de El Escorial. Centrada na Espanha imperial, em particular, no reinado
de Felipe II, a personagem o Senhor representa uma s�ntese das personagens
hist�ricas de Carlos V, de Felipe II e dos outros reis dessa dinastia. O Mundo Novo
reinventa os mitos pr�-hisp�nicos e as cr�nicas da Conquista na figura da
personagem o Peregrino que chega a Tenochtitl�n onde participa do mito de
Quetzalc�atl no Vale de An�huac do s�culo XVI. O Outro Mundo retorna � Espanha
do s�culo XVI, onde o Velho Mundo se articula de maneira diferente marcado pela
contraposi��o � exist�ncia de O Mundo Novo.
Segundo Navarro, em Terra Nostra coexistem tensamente a fragmenta��o e a
totaliza��o, pois no mesmo espa�o convivem o disperso e o monumental. As tr�s
partes do romance se correspondem nos tr�s �mbitos distintos para dramatizar a
vis�o particular do devir hist�rico: a Espanha medieval centralizada na figura do
Senhor no Velho Mundo “elabora uma radiografia do poder tir�nico que aflige os
povos hispanofalantes ao longo dos s�culos”. Comenta que O Velho Mundo n�o
pretende reproduzir objetivamente a realidade hist�rica ou utiliz�-la como simples
fundo de uma trama fict�cia. A reescrita do passado anseia iluminar as �reas
obscuras da hist�ria lineal que permitam explicar a origem das formas de poder que
dominam a esfera pol�tica do mundo hisp�nico moderno. Como um todo no
romance, a vis�o historiogr�fica que apresenta n�o busca refletir objetivamente a
realidade hist�rica ou us�-la como simples transfundo de uma trama fict�cia. No
processo de contextualiza��o, Felipe II personificado na figura do Senhor ostenta a
personalidade mais rica e complexa na obra.
Pela f�bula do descobrimento e a conquista da Am�rica, o Mundo Novo visita
os mitos mesoamericanos num tempo circular e a reinven��o que Carlos Fuentes
faz dos mitos pr�-hisp�nicos e das cr�nicas da Conquista. E em O Outro Mundo
surgem os movimentos her�ticos � sombra do Renascimento em oposi��o �
ortodoxia do mundo do Senhor. Ressalta o poder da imagina��o representado na
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figura da casta intelectual, escritores, artistas e cientistas, e na met�fora auto-
reflexiva do Teatro da Mem�ria de Val�rio Camillo. A esse padr�o geral se somam
os ciclos tem�ticos em que se agrupam os epis�dios, as redes simb�licas e a
cont�nua s�rie de bin�mios que faz com que todas as personagens, situa��o ou
ideia se defina por oposi��o ao seu contr�rio.
O projeto historiogr�fico de Fuentes aponta, na verdade, para uma reescrita do passado que permita iluminar as �reas obscuras da hist�ria oficial. No caso de “O Velho Mundo”, busca-se uma explica��o da origem das formas de poder que dominam a esfera pol�tica do mundo hisp�nico moderno. Lembremos que no momento de produ��o de Terra Nostra (1969-1974), a Espanha e a Hispano-Am�rica vivem ou sob regimes militares totalit�rios, ou ent�o em fr�geis democracias onde as formas de representa��o popular est�o sujeitas aos interesses e vontade das oligarquias dominantes e do capital estrangeiro. Esta primeira parte do romance indaga precisamente nas ra�zes desta situa��o, ou seja, no momento em que se criaram as bases para a atual condi��o de dom�nio e depend�ncia que padecem os pa�ses de fala espanhola. Para isso situa a a��o principal do romance na Espanha dos �ustria, per�odo em que a pen�nsula alcan�a seu cenit imperial e a Am�rica latina come�a a sofrer os efeitos de uma coloniza��o deficiente. (Navarro. 2002, p. 57).
Subdividido em cinquenta e nove epis�dios, n�o ordenados
cronologicamente, O Velho Mundo os intitula de acordo com o seu conte�do, cada
uma deles sugere as situa��es que seguem uma sequ�ncia. A narrativa se inicia
com o primeiro epis�dio Carne, Esferas, olhos cinzentos junto ao Sena, na cidade
de Paris, no ver�o do dia14 de julho de 1999. Nela ocorre o encontro de dois jovens,
Polo Febo e Celestina. O jovem presencia acontecimentos extravagantes, como o
nascimento de uma crian�a com seis dedos em cada p� e estigmatizado com uma
cruz vermelha gravada nas costas. Na sequ�ncia, o jovem recebe uma carta
rubricada por Celestina e Ludovico explicando que com o nascimento daquela
crian�a se cumpre uma profecia. O beb� recebe o nome de Iohannes Agrippa.
Celestina � uma jovem de l�bios tatuados que desenha nas cal�adas das ruas de
Paris. Numa tarde ardente e chuvosa de ver�o, o jovem se encontrar com
Celestina,durante a tormenta, Polo Febo cai no rio do Sena. Com a inten��o de
ajud�-lo, Celestina joga uma garrafa verde e selada, mas Polo Febo desaparece
levado pela correnteza. A partir da�, come�a a rela��o das hist�rias que comp�em o
romance.
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Polo Febo � um jovem mexicano que vive desorientado em Paris. � loiro e
forte, e aleijado, perdeu um bra�o, mas n�o sabe explicar como. O jovem procura
sua identidade no tempo e na Hist�ria, se reconhece como apenas um imigrante
sem passado e sem futuro. A �nica coisa que sabe de si mesmo � que, foi batizado
dessa maneira por um “velho louco que nunca aceitou um passado que n�o
alimentasse o presente ou um presente que n�o compreendesse o passado” (p.27).
o narrador o descreve como Polo enigm�tico, Polo peregrino, Polo aleijado, Polo
apocal�ptico, Polo duplo, o homem sandu�che emparedado entre um “passado como
mem�ria e um futuro como desejo” (p.29). Polo Febo fala de si, e se apresenta – “Eu
sou s�, e apenas sou um pobre inv�lido que ganho a vida como homem-sandu�che
de um caf� de bairro, n�o tenho outro emprego sen�o este, humilde e satisfat�rio,
juro-lhes que n�o tenho outro destino” (p.30).
A reflex�o suscita os duplos latentes em Polo: luz e sombra; apocalipse e
g�nese, homem-sandu�che emparedado num tempo circular, “Polo sereno, mutilado,
trivial” (p.27). Todos os adjetivos atribu�dos a essa personagem s�o esclarecidos ao
longo do romance, na medida em que como protagonista e relator de hist�rias, vive
grandes aventuras em busca da sua identidade.
O primeiro par�grafo do romance apresenta uma enigm�tica vis�o da origem
humana. Polo Febo dorme e sonha e como pitonisa tenta desvendar os mist�rios
dos mundos sonhados:
Incr�vel o primeiro animal que sonhou com outro animal. Monstruoso o primeiro vertebrado que logrou se por sobre dois p�s e assim espalhou o terror entre bestas normais que ainda se arrastavam, com alegre e natural proximidade, pelo lodo criador. Assombrosos o primeiro telefonema, o primeiro fervor, a primeira can��o e a primeira tanga. L� pelas quatro da manh� de um quatorze de julho, Polo Febo, adormecido em seu quartinho, no s�t�o, de porta e janelas abertas, sonhou o anterior e dispunha-se a responder a si mesmo. Ent�o foi visitado dentro do sonho por uma figura mon�stica, sombria, sem rosto, que refletiu em seu nome, continuando com palavras um sonho de puras imagens. (TN, p.13).
O sonho-reflex�o de Polo Febo, sobre a g�nese do homem, inicia o relato do
romance, uma esp�cie de evoca��o das imagens sobre as origens do mundo, da
esp�cie humana e das coisas. Uma figura obscura aparece no seu sonho,
simbolizando o papel aleg�rico da personagem, criatura de significa��o simb�lica e
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cultural no �mbito neobarroco, que condensa em si outros poss�veis significados
provenientes do mundo das artes e da mitologia.
O nome Polo se remonta � imagem do sol, Apolo significa brilhante e �
representado como um jovem de bela estatura, dotado de uma beleza serena,
inspirador dos adivinhos. Na Gr�cia, era conhecido como filho de Zeus e Leta,
mestre da harmonia celeste e terrestre, promotor da vida. Seus or�culos versados,
obscuros e amb�guos eram tidos como purificadores; na Roma antiga, era o deus da
medicina e das parturientes, da poesia e da m�sica; Polo do latim medieval, polaris,
as duas extremidades de um eixo imagin�rio sobre o qual a Terra executa o
movimento de rota��o. Por outro, Febo lado faz alus�o a Fobo, � personifica��o do
medo, que tinha um irm�o chamado Deimos (o espanto). Em Polo Febo (luz e
sombra) se anuncia a dualidade deste simb�lico personagem que permeia toda a
obra.
A janela sempre aberta de seu quarto desempenha a fun��o de vest�bulo
indicador da subvers�o do tempo, iniciadora de novas hist�rias a serem contadas e
recontadas pelas m�ltiplas vozes narradoras no romance. A alegoria espelha-se no
mito de Janos viajante das eras; do latim Ianus, um dos principais deuses romanos.
Era o primeiro deus a ser mencionado nas preces, e o primeiro a receber a por��o
do sacrif�cio. Janos � mencionado como o guardi�o do universo, abridor e fechador
de todas as coisas, olhando para o lado de dentro e para o de fora da porta. Passou
a ser o deus dos in�cios – por exemplo, da primeira hora do dia e do primeiro m�s do
ano – Ianuarius. Jano era representado com duas faces (bifrons), uma voltada para
frente e a outra para tr�s, sugerindo vigil�ncia constante ou simbolizando sua
sabedoria, como conhecedor do passado e adivinho do futuro.
Diz o romance que o letargo on�rico � o estado preferido pelas profecias para
se manifestar em toda sua dimens�o. S�o os monges, na maioria das vezes os
encarregados por divulgar os segredos da alma durante o per�odo da Idade M�dia. A
figura de um monge an�nimo, sujeito enigm�tico, decifrador do passado, presente e
futuro se introduz no sonho de Polo Febo para traduzir as imagens prof�ticas. “A
figura monacal � anunciadora de novos tempos” (p.27).
Polo Febo percorre as ruas e assiste a acontecimentos extravagantes. O
ambiente apresenta uma cidade apocal�ptica, esdr�xula, ultimamente confusa,
diferente. Os �ltimos trinta e tr�s dias t�m sido de caos, de destrui��o e de trevas; �
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um lugar onde paira a desconfian�a e o sobressalto perante os fatos provocados por
causas desconhecidas.
Transcorreram trinta e tr�s dias e meio, durante os quais, aparentemente, o Arco de Triunfo virou areia e a Torre Eiffel um jardim zool�gico. Ao povo lhe divertiu que a oxidada obra da Exposi��o Universal servisse como balan�o de macacos, rampa de le�es, guarida de ursos e povoad�ssimo avi�rio. Quase um s�culo de reprodu��es, s�mbolos e refer�ncias a tinham reduzido ao mais triste e estranh�vel estado de lugar comum. Agora o v�o cont�nuo, a dispers�o de pombas, as forma��es de gansos, as solid�es das corujas e as pencas de morcegos farsantes e indecisos no meio de tantas metamorfoses, entretinham e agradavam. A inquieta��o come�ou quando uma crian�a percebeu a passagem de um abutre que, desdobrando as asas na ponta da arma��o, tra�ou um vasto c�rculo sobre Papsy e em seguida voou em linha reta at� as torres de Saint-Sulpice, onde se instalou em um canto do perp�tuo andaime da eterna restaura��o desse templo e olhou, com avareza e irrita��o, as ruas desertas do bairro. (TN, p.14,15)
A imagem do her�i protagonista, Polo Febo belo jovem, loiro e forte �
rebaixada pelo adjetivo “Polo mutilado” que subverte o conceito tradicional do her�i:
Polo Febo tem medo de perder sua �nica m�o, “O verdadeiro motivo de seu medo
(...) a simples imagem de sua �nica m�o devorada pela fuma�a” (p. 20).
N�o. Muito mais: continuo acreditando que o sol sai todos os dias e que cada novo sol anuncia um novo dia, um dia que ontem foi futuro; continuo acreditando que hoje prometer� um amanh� no instante em que virar uma p�gina, antes imprevis�vel, depois irrepet�vel, do tempo. Polo Febo afastou primeiramente a franja ruiva de seus olhos, ajeitou com uma m�o (pois n�o tinha duas) a espessa cabeleira que lhe caia sobre os ombros. A fuma�a o cercava, sua m�o estendida, introduzida dentro da fuma�a, tinha ro�ado em carne alheia, corpos velozes, nus e alheios (...). Polo sentiu vergonha de ter sentido medo. O verdadeiro motivo desse medo (...) a simples imagem de sua �nica m�o avan�ada, devorada pela fuma�a. Invis�vel. Sumida. Mutilada pelo ar. S� tenho uma. S� me resta uma (...). A calma voltou ao corpo do jovem mutilado. (...) E continuava ali, parado no meio da fuma�a, exibindo uns cartazes que ningu�m olhava.
(TN, p. 19, 23).
O ambiente apocal�ptico divide Polo Febo em sensa��es e sentimentos
opostos: medo e curiosidade, perplexidade e aceita��o. O jovem biparte o mundo
que o cerca: uma das partes est� voltada para o passado, para admitir e consagrar o
momento presente; a outra, para um futuro voltado para uma mem�ria m�tica. Paris
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celebra um ato p�blico, aparentemente trata-se de uma cerim�nia religiosa,
peregrinos, penitentes e povo em geral se misturam para olhar obla��es e sacrif�cios
p�blicos. A festa dos penitentes na pra�a n�o distingue hierarquia entre os homens,
todos participam. H� muita fuma�a; o odor de sangue, cabelos e unhas queimadas
invade a atmosfera, percebem-se corpos nus, h� distribui��o de alimentos, muitos
risos e l�grimas. O cheiro das ruas parece diferente; o ar dessa manh� de ver�o
parece impregnado de um forte odor de carne, cabelos e unhas queimados.
A fuma�a o cercava; (...) Escondeu os dedos que recordavam e conservavam o tato de um grosso azeite, quase uma manteiga. Corpos alheios, corpos invis�veis e n�o entanto presentes, velozes, cobertos de gordura (...). Polo come�ou a correr para longe da Pra�a Saint-Sulpice, para longe da fuma�a e do tato e do fedor: n�o havia outro cheiro porque o de Saint-Sulpice tinha se imposto a todos os outros; odor de gordura, de carne, unha e cabelos queimados era o assassino dos recordados perfumes de flor e tabaco, de palha e cal�ada molhada. Correu (...). Ao copo disse Polo entre os dentes. –Viemos para rir ou para chorar; estamos nascendo ou morrendo? Princ�pio ou fim, causa ou efeito, problema ou solu��o: que coisa estamos vivendo? Novamente a raz�o prop�s as interroga��es; por�m a mem�ria, mais veloz que a raz�o, voltava para tr�s, para um cinema do bairro latino; Polo acompanhava seus patr�es carregados de viveres pela rua do Drago (...). Polo recordava-se de um velho filme que tinha visto quando crian�a, espantado, paralisado pela abund�ncia insignificante da morte, um filme chamado “Noite e N�voa” – nevoa, a fuma�a da pra�a, a bruma que escapava das torres guardadas por abutres –, noite e n�voa, a solu��o final, causa, efeito, problema, solu��o. (TN p.20, 21)
Em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento – o contexto de
François Rabelais (2002), Mikhail Bakhtin distingue como elemento do carnaval,
entre outros, as figuras exc�ntricas e grotescas. Enfatiza que, dentro dos escritos
escatol�gicos de Rabelais, existe uma evidente inten��o de descobrir as ra�zes da
cultura popular e as pr�ticas do carnaval renascentista. A cultura carnavalesca do
Renascimento implicava em,
Suspens�o temporal de todas as distin��es hier�rquicas, das barreiras sociais entre os homens e das proibi��es da vida corrente. O destronamento carnavalesco acompanhado de golpes e de inj�rias � tamb�m um rebaixamento e um sepultamento, todos os atributos reais est�o subvertidos, invertidos, o alto no lugar do baixo: � o mundo �s avessas (...) trata-se do rebaixamento dos valores da cultura oficial, que processa imagens distorcidas do mundo, em que
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o homem e suas a��es aparecem deformados, em toda sua ambival�ncia e inacabamento (2002 p.38, 325).
Bakhtin distingue dois tipos de romance: o monol�gico, dominado por uma
�nica voz, e o polif�nico, dominado por um di�logo com o mundo e pela palavra
sempre orientada para o outro. Na din�mica do romance polif�nico, o limite do
significado depende do contexto, mas o contexto em si n�o tem limites por causa da
heteroglossia, que � percebida por Bakhtin como a diversidade, a ilimita��o e a
pluralidade de linguagens. Nos termos do autor russo, Terra Nostra se caracteriza
como uma obra polif�nica. A narrativa dos tr�s mundos abriga in�meras vozes que
ecoam para dialogar com os outros discursos liter�rios, hist�ricos e filos�ficos. Esses
discursos se orientam sempre para o discurso dos outros. Para Carlos Fuentes,
leitor de Bakhtin:
O romance � um campo de energia determinado pela luta incessante entre as for�as centr�petas que menosprezam a hist�ria, resistem �s mudan�as, desejam a morte e pretendem manter as coisas id�nticas, juntas, imut�veis; e as for�as centr�fugas que amam as mudan�as, o devir da hist�ria e asseguram que as coisas se mantenham variadas, diferentes, afastadas entre si. O reconhecimento de este combate leva a Bakhtin a encontrar na escrita e na leitura de romances, um m�todo de conhecimento baseado na compreens�o das rela��es entre o eu e o outro, que � compar�vel � rela��o entre autor e personagem, entre o escritor e o leitor. Minha voz, diz Bakhtin, pode significar algo, mas em todo caso, as minhas palavras chegam envolvidas em camadas contextuais determinadas pelas vozes dos outros e pela pluralidade de linguagens que habitam no interior de qualquer sistema social. (...) No n�vel verbal, todos somos participantes, dependemos uns dos outros e somos parte de um trabalho din�mico e perpetuamente inacabado, que consiste em criar o mundo, criando a hist�ria, a sociedade e a literatura. (Fuentes, 1999, p.15).
Para Bakhtin, o romance n�o � apenas um instrumento de di�logo entre as
personagens, linguagens, g�neros, for�as sociais, per�odos hist�ricos distantes e
cont�guos, o romance � fruto da pluralidade de contextos inerentes � linguagem, o
texto narrativo extrai e concerta uma s�rie de confronta��es ideol�gicas que
permitem que o escritor extraia novos significados das palavras, pois, no dizer de
Bakhtin, a palavra � sempre algo compartido, pois “enquanto o homem viva, vive em
virtude de seu ser incompleto, de n�o ter dito a sua �ltima palavra”. Para Carlos
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Fuentes o romance � uma forma de narrativa em que tudo possui um significado
alternativo:
Narrativa onde tudo possui um significado alterno. Constru��o verbal n�o-liter�ria, n�o realista, que concerta o confronto dial�gico entre as diversas linguagens. Essas caracter�sticas do romance segundo Bakhtin voltadas para o estudo do romance hispano-americano: forma incompleta, arena onde podem reunir-se hist�rias distantes e linguagens em conflitos, transcendem � ortodoxia da linguagem monol�gica, ou de apenas uma �nica cosmovis�o – trata-se das linguagens e das vis�es da teocracia asteca, da Contrarreforma espanhola, do racionalismo e do hedonismo p�s-industrial –. Gostaria de reunir neste livro as ideias citadas por Vico e por Bakhtin: a hist�ria � feita por n�s; o passado � parte do presente e o passado hist�rico se faz presente por meio da cultura, demonstrando a variedade da criatividade humana. As ideias de Vico unidas �s ideias de Bakhtin: o romance como produto cultural que traduz dinamicamente os conflitos da rela��o entre o ser pr�prio e o ser alheio, o indiv�duo e a sociedade, o passado e o presente, o contempor�neo e o hist�rico, o acabado e o inacabado, mediante uma constante admiss�o da pluralidade e do diverso na linguagem e na vida. (1999, p.16).
As imagens inacabadas e abertas s�o caracter�sticas pr�prias dos princ�pios da
carnavaliza��o; como o rebaixamento de s�mbolos patri�ticos e de figuras
enaltecidas pela cultura oficial, a presen�a da par�dia hipertextual que potencializa o
dialogismo, a bivocalidade narrativa representadas na figura do her�i incompleto,
Polo Mutilado � um deus grego �s avessas que vivencia uma cidade luz rebaixada;
Polo Febo barroco: luz e sombra; Polo Febo perdido na ambival�ncia dos fatos
narrados “Quem estava nascendo? Quem estava morrendo? Quem conta? Quem
ouve? Quem sonha?” (p.34).
Que as �guas do Sena fervessem pode ter acontecido, trinta e tr�s dias antes, uma milagrosa calamidade; (...) os esqueletos das barcas amontoarem-se sob o olhar ir�nico de Enrique o Bearn�s (...) O Arco do Triunfo converteu-se em areia e a Torre Eiffel em zool�gico (...) Pelo que se refere � torre do senhor Eiffel, sua transforma��o s� foi criticada pelos suicidas em potencial (...). As pessoas achavam engra�ado que a oxidada obra da Exposi��o Universal servisse de balan�o de macacos, rampa de le�es, guarida de ursos e povoad�ssimo avi�rio. Quase um s�culo de reprodu��es, s�mbolos e refer�ncias tinham-na reduzido ao mais triste e estranh�vel estado de lugar-comum. (...) e Polo pode ver o c�u de Paris incendiado pela tormenta como se a luta entre a luz e as trevas fosse resolvida em um confronto a�reo: e as pontes flutuavam como barcos na n�voa. (...) Passar�o muitos s�is antes que Polo Febo condescenda em
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analisar as impress�es que o estado e a postura, ou seja a causa e o efeito, de madame Zaharia, lhe provocaram. Talvez seja poss�vel adiantar-se, sem autoriza��o do protagonista, que os termos de sua equa��o matutina se inverteram: o mundo, irremediavelmente, rejuvenescia e era necess�rio tomarem-se decis�es.(TN, p.13-16).
O di�logo simb�lico gera um confronto saud�vel ente passado e presente,
entre o relato oficial e o ap�crifo, entre a pol�tica e a religi�o, entre a mem�ria
anestesiada e a mem�ria de ressurgimentos. O mesmo di�logo suscita os duplos
latentes em Polo: luz e sombra; do apocalipse e do g�nese; do mito e da linguagem
transformadora, homem-sandu�che emparedado no tempo migrante e transgressor;
“Polo sereno, mutilado, trivial” (p.19). Em Literatura e antropologia do imaginário
(2003), Maria Zaira Turchi escreve sobre a alteridade e mito do duplo. O mito do
duplo aparece, ent�o, como s�mbolo da procura da identidade, externa e interna, do
indiv�duo como ser original, corpo e alma, no momento em que esbarra com dois
seres distintos numa s� pessoa, um verdadeiro duplo, porque o fio costurou a vida
imagin�ria e real numa s� pessoa (p.20).
No contexto das rela��es sociais, Bakhtin percebe o homem como
sociohist�rico, ativo, transformador, pl�stico, permanente e criador de significa��es.
Na teoria da linguagem romanesca, real�a o fen�meno plurilingu�stico, pluriestil�stico
e plurivocal no conceito de dialogismo, a duplicidade de que toda palavra, toda
enuncia��o cultural, tem import�ncia para conhecer o homem e seu fazer cultural de
uma forma abrangente. As personagens do g�nero romance conseguem apreender
a complexidade do homem heterog�neo, plurivocal, poliss�mico, que
incessantemente e devido � multival�ncia de suas paix�es e � plasticidade dos
eternos conflitos, � eternamente inacabado, um ser inconcluso.
Antes de dirigir-se ao seu trabalho no bar-caf�-tabaqueria Le Bouquet, Polo
Febo decide recolher sua correspond�ncia no quarto da zeladora, Madame Zaharia,
uma senhora com mais de noventa anos. Na habita��o encontra uma carta
misteriosa e v� a velha zeladora prestes a dar a luz.
(...) Polo sentiu cheiro de carne, cabelo e unhas e carne queimados. Polo olhou para as torres de Saint-Sulpice repetindo na mente o cat�logo dos odores costumeiros. Pela primeira vez em seus vinte e dois ver�os, fechou a janela e se deteve sem saber que fazer. Pela primeira vez, em seus vinte e dois ver�es, fechou a janela e parou sem saber o que fazer. Mal pode dar-se conta de que nesse instante come�ou a lamentar o signo suficiente de sua liberdade que era a
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janela sempre aberta, de dia e de noite, no inverno e no ver�o, quer chovesse quer trovejasse. Mal pode identificar sua inabitual indecis�o com um sentimento de que ele e o mundo a seu redor envelheciam irremediavelmente. (...) no quarto logo acima do por�o, ele parou e bateu com os n�s dos dedos na porta da zeladora. (...) Madame Zaharia gemeu com as contra��es (TN, p.13,17).
A anci� madame Zaharia d� � luz em meio a uma situa��o grotesca. As
imagens s�o produzidas diretamente pela �tica do rebaixamento; tudo que �
elevado, espiritual e ideal, como o nascimento de um beb�, � transferido para o
plano material corporal. Na cena do nascimento do menino estigmatizado, nada �
definido, tudo aparece em constante transforma��o. O campo dos procedimentos
grotescos se manifesta na dimens�o dial�gica, pela excentricidade e pela alus�o �
ambival�ncia da morte que da � luz; “das entranhas mortas surge a vida renovada”.
Quando o menino nasceu com os p�s em primeiro lugar (...) contou seis dedos em cada p� e observou com assombro a marca de nascen�a nas costas: uma cruz vermelha de carne entre as esp�duas. N�o soube se deveria aproximar o menino dos bra�os dessa velha de mais de noventa anos que acabava de pari-lo ou se ele mesmo deveria carreg�-lo e embal�-lo e afast�-lo de uma suspeita de contamina��o e morte por asfixia. Optou pela segunda solu��o: sentiu, na verdade, medo de que a velha Madame Zaharia afogasse ou devorasse um filho chegado t�o fora de tempo e aproximou-se do antigo espelho de moldura dourada onde a zeladora costumava encaixar entre o vidro e a moldura as escassas e improv�veis cartas dirigidas aos inquilinos. (...) ali estava uma carta dirigida a ele. (TN, p.17).
O grotesco apresenta subdivis�es de express�o, o grotesco f�sico �
apresentado pela transfigura��o da realidade, como na passagem anterior de Terra
Nostra, em que a anci� d� a luz. O grotesco social est� presente nas rela��es
interpessoais, nas festas oficiais e n�o-oficiais e, consequentemente, o que fica
registrado como coroamento e destronamento dos indiv�duos da sociedade inseridos
num determinado per�odo de tempo.
Uma idosa d� a luz e o nascimento de uma crian�a com seis dedos em cada
p�, estigmatizado com uma cruz vermelha nas costas, s�o os fatos extravagantes
que antecedem ao recebimento da carta misteriosa assinada por dois
desconhecidos para Polo Febo, Ludovico e Celestina. Instru�do sobre o nome a ser
dado ao beb�, Iohannes Agrippa, a carta termina com um convite dos
desconhecidos para um encontro no Sena. Na sequencia, o jovem caminha pelas
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ruas de Paris, como homem-sandu�che, chega � Pra�a Saint-Sulpice e vivencia
fatos extraordin�rios que caracterizam a narrativa carnavalesca.
Um abutre im�vel desapareceu entre as nuvens de fuma�a preta que sa�a, como um bafo delator. E o enorme vazio arom�tico encheu-se, de uma vez, com um ofensivo e gigantesco arquejo. (...) ali estava uma carta dirigida a ele. Pensou que seria uma das tantas notifica��es que de tempo em tempo lhe chegavam, sempre com atraso, pois o desleixo quase total dos servi�os postais j� era um fato normal desta �poca, na qual tudo o que tinha significado progresso cem anos atr�s, agora deixava de funcionar com efici�ncia e pontualidade. Nem o cloro purificava as �guas, nem o correio chegava a tempo. E os micr�bios tinham imposto seu reino triunfal sobre as vacinas: indefesos humanos, vermes imunes. (...) No jovem corpo de Polo ocultava-se talvez um antigo otimismo. (...) Enquanto n�o lhe sobreviessem acidentes como o de Madame Zaharia (e quem � que botaria a �nica m�o no fogo nos tempos que correm?), n�o tinha motivo para interromper o ritmo normal de sua exist�ncia.
(TN, p. 14, 15, 17, 19).
Bakhtin distingue como elemento do carnaval, entre outros, as figuras
exc�ntricas e grotescas. Enfatiza que dentro dos escritos escatol�gicos de Rabelais
existe uma evidente inten��o de descobrir as ra�zes da cultura popular e as pr�ticas
do carnaval renascentista e prop�e a segunda metade do s�culo XVII como o in�cio
da carnavaliza��o na literatura, cabe notar que a partir do per�odo cl�ssico essa se
integra ao sistema da tradi��o liter�ria (p.185).
As rela��es do carnaval com a atividade liter�ria s�o definidas pelo o conceito
da carnavaliza��o, em que a literatura carnavalizada � aquela que experimenta
direta ou indiretamente a influ�ncia do folclore carnavalesco antigo ou medieval (p.
152). A cultura carnavalesca do Renascimento implicava na “suspens�o temporal de
todas as distin��es hier�rquicas, das barreiras sociais entre os homens e das
proibi��es da vida corrente: “a transposi��o do carnaval � linguagem da literatura �
uma influ�ncia determinante para esta” (p.172). A fun��o exercida pela
carnavaliza��o na literatura radica na supress�o de “toda classe de barreiras entre
os g�neros, entre os sistemas cerrados de pensamento e entre diversos estilos: “a
carnavaliza��o elimina os sistemas fechados, aproxima o que estava afastado e une
o que estava separado” (2002, p.189).
O grotesco bakhtiniano se verifica no ambiente destacado pela voz do narrador
que apresenta duas concep��es de mundo: a primeira da personagem Polo Febo
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que, para manter a sensatez julga os acontecimentos; a outra, do povo que intui nos
estranhos acontecimentos uma oportunidade de participar de uma festa final. Essas
festividades, “em todas as suas fases hist�ricas, ligaram-se a per�odos de crise, de
transtorno, na vida da natureza, da sociedade e do homem” (2000, p. 8). A
celebra��o consiste em levar o povo � rua para apreciar a cerim�nia dos penitentes
que anunciam o Apocalipse.
O espet�culo explodiu diante de seu olhar e o tirou da atitude nost�lgica, temerosa, pensativa. Circo ou trag�dia, cerim�nia batismal ou vig�lia f�nebre, o evento tinha ressuscitado um sentimento ancestral. Ao longo da avenida, as cabe�as protegiam-se do sol com gorros fr�gios; abundavam as fitas coloridas e variadas bandeirolas. A primeira fileira de assentos nos degraus tinha sido reservada para algumas velhas que, naturalmente e em obs�quio �s consabidas imagens, tricotavam sem parar e lan�avam exclama��es a medida que passavam ante elas os contingentes de homens, jovens e crian�as portando bandeiras e c�rios acesos em pleno dia. (...) precedido por um monge com cil�cio e gadanha ao ombro e todos, descal�os e fatigados, iam chegando a p� dos diversos pontos que seus pend�es cor escarlates (...). Bandos de cinquenta, de cem, de duzentos homens sujos e barbados, mo�os que moviam com dificuldade os corpos doloridos (TN, p.22).
A necessidade de festejar se inicia nos prim�rdios da civiliza��o; o homem
comemora a chegada da primavera ou uma colheita abastada, a vida ou a morte;
todos esses movimentos s�o percebidos sob o �ngulo de um “renascimento”, de
origem ou de rein�cio de uma possibilidade de um Novo Mundo. Bakhtin nos diz que
a festa era a “segunda vida do povo, que penetrava temporariamente no reino
ut�pico da universalidade, liberdade, igualdade e abund�ncia”; para ele, toda
festividade tem sempre uma rela��o marcada com o tempo.
As festividades (qualquer que seja o seu tipo) s�o uma forma primordial, marcante, da civiliza��o humana. N�o � preciso consider�-las nem explic�-las como um produto das condi��es e finalidades pr�ticas do trabalho coletivo, nem interpreta��o mais vulgar ainda, da necessidade biol�gica (fisiol�gica) de descanso peri�dico. As festividades tiveram sempre um conte�do essencial, um sentido profundo, exprimiram sempre uma concep��o de mundo (...). A sua san��o deve emanar (...) dos fins superiores da exist�ncia humana, isto �, do mundo dos ideais. Sem isso, n�o pode existir nenhum clima de festa. As festividades t�m sempre uma rela��o marcada com o tempo. Na sua base, encontra-se constantemente uma concep��o determinada e concreta do tempo natural (c�smico), biol�gico e hist�rico. Alem disso, as festividades, em todas as suas fases hist�ricas, ligaram-se a per�odos de crise, de transtorno, na
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vida da natureza, da sociedade e do homem. A morte e a ressurrei��o, a altern�ncia e a renova��o constitu�ram sempre os aspectos marcantes da festa. E s�o precisamente esses momentos –nas formas concretas das diferentes festas – que criaram o clima t�pico da festa. (2002, p.8).
Bakhtin biparte as configura��es das festas realizadas durante o per�odo da
Idade M�dia em Oficial e em N�o Oficial. Quanto � primeira categoria nos diz que o
tom da festa oficial era de “seriedade sem falha, e o princ�pio c�mico lhe era
estranho” (2002, p.8). Essa modalidade est� ligada ao sentido superior do indiv�duo,
pertence ao plano do ideal de uma vis�o superior �quela do mundo e da vida. A
festa oficial distingue hierarquicamente os homens, cada um ocupa seu lugar de
acordo com sua posi��o social, de acordo com cada classe; altas ou baixas. A festa
oficial era aquela promovida desde o poder, sempre em datas previamente
marcadas, “dotadas de um car�ter s�rio que contribu�a para consagrar, sancionar o
regime em vigor, para fortific�-lo” (2002 p.8).
A festa oficial, �s vezes mesmo contra as suas inten��es, tendia a consagrar a estabilidade, a imutabilidade e a perenidade das regras que regiam o mundo: hierarquias, valores normas e tabus religiosos, pol�ticos e morais correntes. A festa era o triunfo da verdade pr�-fabricada, vitoriosa, dominante, que assumia a apar�ncia de uma verdade eterna, imut�vel e perempt�ria. Por isso o tom da festa oficial s� podia ser o da seriedade sem falha, e o princ�pio c�mico lhe era estranho. Assim, a festa oficial tra�a a verdadeira natureza da festa humana e desfigurava-a. (2002, p.8).
As festas do primeiro tipo distinguiam hierarquicamente os homens. Nas do
segundo tipo, o indiv�duo se sentia verdadeiramente humano, tinha a completa
liberdade de estabelecer rela��es interpessoais. O lado c�mico e popular das festas
tendia a apresentar um futuro melhor, abund�ncia material, igualdade, liberdade
assim como nas saturnais romanas.
Ao contr�rio da festa oficial, o carnaval era o triunfo de uma esp�cie de liberta��o tempor�ria da verdade [...] Nestes casos, apesar das diferen�as de car�ter e orienta��o, a forma do grotesco carnavalesco cumpre fun��es semelhantes: ilumina a ousadia da inven��o, permite associar elementos heterog�neos, aproximar o que est� distante, ajuda a libertar-se do ponto de vista dominante sobre o mundo, de todas as conven��es e de elementos banais e habituais, comumente admitidos; permite olhar o universo com novos olhos, compreender at� que ponto � relativo tudo o que existe e, portanto, permite compreender a possibilidade de uma ordem totalmente
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diferente do mundo dominante e do regime vigente, de aboli��o provis�ria de todas as rela��es hier�rquicas, privil�gios, regras e tabus. (2002, p.8,30).
Na festa n�o oficial, por ser pass�vel de falhas, sujeito a mudan�as de estados
f�sicos e psicol�gicos, o indiv�duo sentia-se livre para relacionar-se com seus
semelhantes.
Gra�as a essa transforma��o, contribu�am para a cria��o de uma atmosfera de liberdade, e do aspecto c�mico secund�rio do mundo. Passaremos agora � segunda forma de cultura c�mica popular: as obras verbais (...) os elementos culturais limitados desaparecem, e apenas subsistem os elementos humanos, universais e ut�picos do riso popular. Uma qualidade importante do riso (...) � que escarnece dos pr�prios burladores (...) o riso popular ambivalente expressa uma opini�o sobre um mundo em plena evolu��o no qual est�o inclu�dos os que riem (...). Com toda a sua materialidade imediata, continuam sendo os elementos fundamentais do sistema das imagens grotescas. (...). As festividades tiveram sempre um conte�do essencial, um sentido profundo, exprimiram sempre uma concep��o de mundo. (...) da consci�ncia da alegre relatividade das verdades e autoridades no poder. Ela caracteriza-se, principalmente, pela l�gica original das coisas ao avesso, ao contr�rio (...), como um mundo ao rev�s (...). N�o se trata de folclore (embora algumas dessas obras em l�ngua vulgar possam ser consideradas assim). Essa literatura est� imbu�da da concep��o carnavalesca do mundo. Os elementos culturais limitados desaparecem, e apenas subsistem os elementos humanos, universais e ut�picos do riso popular. Uma qualidade importante do riso (...) � que escarnece dos pr�prios burladores (...) o riso popular ambivalente expressa uma opini�o sobre um mundo em plena evolu��o no qual est�o inclu�dos os que riem (...). Com toda a sua materialidade imediata, continuam sendo os elementos fundamentais do sistema das imagens grotescas. (...) As festividades tiveram sempre um conte�do essencial, um sentido profundo, exprimiram sempre uma concep��o de mundo. (...). Como resultado, a nova forma de comunica��o produziu novas formas lingu�sticas: g�neros in�ditos, mudan�as de sentido ou elimina��o de certas formas desusadas, etc. � muito conhecida a exist�ncia de fen�menos similares na �poca atual (2002, p.4-11,33).
A festa medieval era bipartida, uma das partes estava voltada para o passado,
servindo para sancionar e consagrar o regime existente; a outra, para o futuro, rindo
pela possibilidade da nova vida. Os participantes dessas festas eram as pessoas
que n�o faziam parte dos estratos sociais mais altos, a cultura c�mica pertencia ao
povo; a verdade do riso contagiava a todos e o riso era percebido como forma antiga
de representa��o da linguagem: “postura est�tica criadora da vis�o art�stica fora do
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sistema l�gico e pr�ximo da �tica do rebaixamento” (2002, p.106). O ritual e as
imagens da festa visavam a encarnar o pr�prio tempo, que trazia a morte e a vida, a
transforma��o do antigo em novo, caos final e renascimento. Durante a festa o
tempo brinca e ri, det�m o poder supremo do universo, enfatiza o futuro, da� a
import�ncia do carnaval e do riso.
O riso carnavalesco � em primeiro lugar patrim�nio do povo (...), todos riem, o riso � geral; em segundo lugar, � universal, atinge a todas as coisas e pessoas (...),, no seu alegre relativismo; por �ltimo, o riso � ambivalente: alegre e cheio de alvoro�o, mas ao mesmo tempo burlador e sarc�stico, nega e afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente. O povo n�o se exclui do mundo em evolu��o. Tamb�m ele se sente incompleto; tamb�m ele renasce e se renova com a morte (...) o riso popular ambivalente expressa uma opini�o sobre o mundo em plena evolu��o no qual est�o inclu�dos os que riem. (...) No carnaval forja-se, em forma concreto-sensorial semi-real, semi-representada e vivenci�vel, um novo modus vivendi de rela��es m�tuas do homem com o homem, capaz de opor-se �s onipotentes rela��es hier�rquico-sociais da vida extracarnavalesca. O comportamento, o gesto e a palavra do homem libertam-se do poder de qualquer posi��o hier�rquica (de classe, t�tulo, idade, fortuna) que os determinava totalmente na vida extracarnavalesca, raz�o pela qual se tornam exc�ntricos e inoportunos do ponto de vista da l�gica do cotidiano n�o-carnavalesco. (2002, p.10,110,106).
A linguagem familiar � uma das caracter�sticas da literatura carnavalizada,
“uma esp�cie de recrea��o das palavras e das coisas deixadas em liberdade,
liberadas do aperto do sentido, da l�gica, da hierarquia verbal (...) somente ao gozar
de uma total liberdade, as palavras colocam-se em rela��o e numa vizinhan�a
completamente inusitadas” (2002, p.327). Esse � o aspecto fundamental da obra de
Rabelais e que Bakhtin v� surgir no estilo do autor gra�as � sua �ntima conviv�ncia
com as fontes orais da linguagem, respons�veis pela cria��o da din�mica verbal
totalmente distanciada das conven��es e dic��es liter�rias j� consagradas.
Vivenciar o carnaval significava envolver-se em brincadeiras, jogos e
mutila��es f�sicas, comilan�as e bebedeiras como atitude primordialmente festiva.
Da� que o termo carnaval implique na invers�o dos valores do dia-a-dia da vida do
homem comum. O carnavalesco pode ser percebido em tr�s aspectos: os
espet�culos rituais, as composi��es c�micas verbais, e as variadas formas de
blasf�mias.
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Na pr�tica, as tr�s modalidades se entrela�am e os participantes em conjunto
usam m�scaras e fantasiados de monstros dan�am em longas prociss�es pelas vias
p�blicas com a inten��o de mostrar os diversos significados do carnaval, um tempo
de prazer em que se festeja o nascimento da vida festiva e a morte do tempo
comum, como aspecto fundamental da cultura popular.
Vive-se mundo �s avessas, vis�o renovada do tempo, da hist�ria e do destino;
tempo da utopia, da cosmologia da vida carnavalesca. Justaposi��es extravagantes,
mescla grotesca de confronta��es entre o alto e o baixo corporal; igualdade de
condi��es quando as classes superiores e as inferiores participam livremente; o
espiritual e o material, o jovem e o velho, o homem e a mulher todos perdem suas
fronteiras e seus limites. Como invers�o dos valores sociais dominantes, os
participantes do evento parodiavam as ideias cristalizadas da oficialidade.
Entender a literatura nesse contexto, valorizando os enunciados em seus
aspectos verbais e n�o-verbais leva Bakhtin a afirmar que “o estilo oral de Rabelais
� constitu�do de palavras virgens que, sa�das pela primeira vez das profundezas da
vida popular, da l�ngua falada, entram para o sistema da l�ngua escrita e impressa”
(2000, p. 402). Observa ainda que “todos os povos modernos t�m imensas esferas
de linguagens n�o-publicadas, cuja exist�ncia a l�ngua liter�ria falada educada,
nega” (2000, p. 369).
A literatura grotesca, tal como foi praticada pela cultura medieval, � entendida
como uma manifesta��o de rebaixamento dos valores da cultura oficial, que
processa imagens distorcidas do mundo, no qual o homem e suas a��es aparecem
deformados, em toda sua monstruosidade, ambival�ncia e inacabamento. Os
participantes dessa modalidade s�o indiv�duos dos estratos sociais baixos, os rituais
e as imagens inacabadas encaram o pr�prio tempo, transformam o velho em novo.
O tempo brinca, det�m o poder supremo do universo e das conven��es da
linearidade.
Polo Febo e seu patr�o transitam pelas ruas de Paris, levam alimentos para os
peregrinos que, ao inv�s de rezar e jejuar se sacrificam comendo nus. O povo
aproveita o instante presente, o futuro parece imprevis�vel, o fim do mundo est�
pr�ximo, Paris est� morrendo, o mundo conhecido at� ent�o est� no fim.
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Nos termos bakhtinianos, o banquete hiperb�lico � uma express�o da cultura
folcl�rica das multid�es e uma ocasi�o para a com�dia e o festival que reafirma a
vida. O ato de comer se transforma num banquete para todos. As imagens da
abund�ncia e o consumo extravagante de corpos abertos, nus e mutantes reafirmam
a conex�o do povo com o mundo corporal e celebram simultaneamente a uni�o dos
seres humanos com o mundo f�sico e seu triunfo delicioso sobre o mundo: “o homem
vencia o mundo (...) a fronteira entre o homem e o mundo se anulava num sentido
que lhe era favor�vel” (2000, p.250-253).
Se o banquete bakhtiniano representa uma celebra��o do ciclo da vida e uma
regenera��o que procede da mutua alimenta��o do mundo e do povo, nas imagens
apocal�pticas de Terra Nostra o banquete se transforma numa par�dia cruel das
possibilidades do banquete festivo e renovador, o povo parisiense n�o celebra a
festa da vida, mas o fim dela.
Ningu�m negar� que, apesar de seus ocasionais deslizes, nosso her�i � basicamente um homem digno. A consci�ncia de s�-lo o fez diminuir o passo assim que viu que se aproximava do bulevar e que, a menos que tudo houvesse se transformado da noite para o dia, ali o esperaria o costumeiro (h� trinta e tr�s dias e meio) espet�culo. (...) essa massa compacta de costas e cabe�as, essa multid�o alinhada de seis em seis ao fundo, encarapitada nas �rvores ou sentada em degraus que tinham sido ocupadas desde a noite anterior, sen�o antes. (...) e em duas passadas alcan�ou o dono do Caf� Le Bouquet que se dirigia com sua esposa e uma cesta cheia de p�es, queijos e alcachofras, para o bulevar. (...) A patroa sorriu, olhando os cartazes e aprovando a fidelidade de Polo a seu emprego – Mais do que direito. Obriga��o. Sem n�s morreriam de fome. (...) O espet�culo explodiu diante do seu olhar (...). Circo ou trag�dia, cerim�nia batismal ou f�nebre, o evento tinha ressuscitado um sentimento ancestral. Ao longo da avenida, as cabe�as protegiam-se do sol com gorros fr�gios; abundavam os la�os tricolores e bandeirolas variadas. (...) lan�avam exclama��es � medida que passavam diante delas os contingentes de homens, jovens e crian�as portando bandeiras e c�rios acesos em pleno dia. (TN, p. 20,21).
As imagens festivas subvertem o sentido austero do rito religioso e, ao mesmo
tempo, carnavalizam a festa popular e cria-se o caos como uma das caracter�sticas
do grotesco liter�rio. O uso frequente de elementos transformadores da realidade,
no mundo ao avesso, subverte qualquer um dos valores que conceituem uma
situa��o de forma fechada, definitiva. O grotesco funciona como uma esp�cie de
fuga do real. Diz Bakhtin: “O aspecto essencial do grotesco � a est�tica da
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deformidade. O grotesco e o sublime complementam-se mutuamente, sua unidade
produz a beleza aut�ntica que o cl�ssico puro � incapaz de atingir” (2002, p.38).
Cada contingente ia unindo-se aos demais diante da igreja de Saint-Germain em meio � vivas, aos brindes e �s chacotas de alguns, ao espanto sepulcral e � fascina��o de outros, e aos ocasionais, dispersos, flutuantes coros que voltavam a cantar (...) milhares de pessoas lutavam por um lugar destacado, cantavam, riam, comiam, gemiam, cansavam-se, abra�avam-se, repeliam-se, brincavam entre si, choravam e bebiam, enquanto o tempo se esgotava para Paris como uma drenagem turbulenta e os peregrinos descal�os davam as m�os para formar um c�rculo duplo cujos extremos tocavam, no norte, a livraria Gallimard e Caf� Le Bonaparte, no oeste o Caf� d�s Deux Magots, no sul Le Drugstore e a casa de disco Vidal e a butique Ted Lapidus e no leste a igreja mesmo, alta, severa e coberta de telhas. (...) Polo e o patr�o dirigiam-se ao duplo c�rculo de peregrinos que come�ava a se despir em sil�ncio; ao verem aproximarem-se os dois homens com o cesto, os mais pr�ximos olharam-se entre si sem falar; suprimiram uma exclama��o e uma prov�vel alegria; ca�ram de joelhos e sem levantar as cabe�as humilhadas diante dos provedores tomaram, cada um, um peda�o de p�o e outro de queijo e uma alcachofra e os devoravam, sempre de joelhos, com atitude sacramental e as cabe�as inclinadas, partindo o p�o, saboreando o queijo, desfolhando a alcachofra, como se estes fossem atos primeiros e ao mesmo tempo finais, como se estivessem recordando e prevendo o ato b�sico de comer, como se n�o quisessem esquec�-lo, como se quisessem inscrev�-lo nos instintos do futuro (Polo Antrop�logo); comeram com pressa crescente, pois agora, a partir do centro do c�rculo, avan�ava para eles o Monge com um l�tego na m�o. Os peregrinos voltaram a inclinar as cabe�as diante de Polo e do Patr�o e acabaram de se despir at� ficarem, como todos os outros homens, jovens e crian�as que formavam o c�rculo duplo, cobertos somente por uma estreita saia de juta que lhes ca�a da cintura at� os tornozelos. (TN, p. 22, 23).
Durante a celebra��o, a divis�o entre as classes � esquecida, Polo Febo e o
patr�o participam lado a lado dos acontecimentos, interagem livre e
espontaneamente, “milhares de pessoas lutavam por um lugar destacado,
cantavam, riam, comiam, gemiam” (p.25). A riqueza e a complexidade das imagens
grotescas implicam na est�tica desenvolvida pela linguagem. O princ�pio material
corporal est� na base do conjunto verbal manipulado por Rabelais, constituindo o
que Bakhtin denomina de “vocabul�rio da pra�a p�blica” (2000, p.8). Um repert�rio
oral, avesso aos c�nones da linguagem culta e totalmente liberado para as
manifesta��es espont�neas da fala comum. As atitudes grosseiras e as inj�rias
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praticadas nas cenas anteriores, assim como as impreca��es e os juramentos, criam
uma atmosfera verbal pr�pria da literatura carnavalesca.
O espet�culo explodiu diante do seu olhar (...) um monge com cil�cio e gadanha ao ombro e todos, descal�os e fatigados, iam chegando a p� dos diversos pontos que seus pend�es escarlates anunciavam com letras de brocado (...). Bandos de cinqu�nta, de cem, de duzentos homens sujos e barbados, mo�os que moviam com dificuldade os corpos doloridos, crian�as com m�os negras, catarrentos, remelentos, ensebados; todos entoando essa cantoria obsessiva: o lugar � aquilo tempo � agora e Agora e aqui. Aqui e agora. (...) Cada contingente ia unindo-se aos demais diante da igreja de Saint-Germain em meio � vivas, aos brindes e �s chacotas de alguns, ao espanto sepulcral e � fascina��o de outros, e aos ocasionais, dispersos, flutuantes coros que voltavam a cantar (...) milhares de pessoas lutavam por um lugar destacado, cantavam, riam, comiam, gemiam, cansavam-se, abra�avam-se, repeliam-se, brincavam entre si, choravam e bebiam, enquanto o tempo se esgotava para Paris como uma drenagem turbulenta e os peregrinos descal�os davam as m�os para formar um c�rculo duplo (...). Polo e o patr�o se dirigiram ao duplo c�rculo de peregrinos que come�avam a se despir em sil�ncio (...) a multid�o prorrompeu em gritos e solu�os (...). Os penitentes fitavam o c�u e cantavam, o Monge os exortava � ora��o, � piedade e ao medo dos dias vindouros e os l�tegos golpeavam as costas nuas com um ru�do ritmado que s� se interrompia quando o dardo da ponta do l�tego batia na carne de um penitente. (TN, p.21-25).
O momento � anacr�nico, as personagens da Idade M�dia invadem a Paris
apocal�ptica de Polo Febo no ano de 1999. A seita m�stica dos flagelantes que
pertence ao s�culo XIII surge no romance e se mistura com o resto do povo
parisiense do final do s�culo XX que, submersa nas trevas, arde em chamas, “a
fuma�a o rodeava, o inc�ndio provoca uma cortina de fuma�a e por detr�s da uma
multid�o, surge o grupo de flagelantes e de penitentes” (p.19).
O caos do final dos tempos, representado pelos flagelantes milenaristas,
irrompe atrav�s da cortina de fuma�a carnavalizando o mundo. A partir da�, �
converg�ncia dos tempos soma a uma combina��o de personagens hist�ricos
interagindo com os da fic��o, o mundo vira ao avesso e a realidade hist�rica n�o
parece t�o mais concreta e verdadeira que a da fic��o e, por sua vez, a fic��o n�o �
mais fant�stica e inveross�mil que a pr�pria realidade. A fus�o de datas, vozes e
tempos se entrela�am e se encontram. As figuras hist�ricas se agrupam
ideologicamente, todas possuem uma atitude comum, se op�em � repress�o e ao
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poder absoluto, fazem refer�ncia aos movimentos subversivos ou revolucion�rios de
todos os tempos. Impera uma realidade fabulosa e delirante, imagin�ria e hist�rica
que, na reflex�o de Polo Febo, “n�o podia haver mal algum, a menos que a vida
tivesse adotado as fei��es da morte e a morte o semblante da vida” (p.30).
Da oralidade marcada pela diversidade de combina��es exc�ntricas surgem,
desde ano 1789, as vozes do passado que se al�am e cantarolam La Camagnole e
Ça Ira, da Revolu��o Francesa. N�o h� harmonia aparente entre a imagem social e
o conte�do da enuncia��o. Paralelamente, entram em cena os poetas Fran�ois
Villon (1431-1463), Pierre Gringoire (1475-1538) dos s�culos XV e XVI, a rainha
Margot e o duque de Guisa do s�culo XVI e Bonaparte e Louis Adolphe Thiers
ressuscitam o s�culo XVIII e o XIX e dialogam com o poeta Jacques Pr�vert (1900-
1977) do s�culo XX.
Agregam-se ao grupo de manifestantes vozes an�nimas que declamam
refr�es, cita��es, frases e senten�as pronunciadas por personagens famosas, “Paris
bem vale uma missa” e “se Deus me concede a gra�a de viver alguns anos, quero
que haja uma galinha na panela de cada campon�s, aos domingos”, do rei Enrique
IV da Fran�a (1553-1610). E ainda: “Cada soldado traz na sua mochila o bast�o de
Marechal; o que falta � ter vontade de vencer” atribu�da a Napole�o; o lema que
reapareceu durante a revolu��o dos estudantes, em maio de 1968 “A imagina��o ao
poder”.
Tamb�m se destaca a deforma��o de cita��es famosas como a da figura
importante da Revolu��o Francesa, madame Jeanne Marie Roland (1754-1793), que
antes de ser guilhotinada teria exclamado “Oh liberdade quantos crimes se cometem
em teu nome!”. Nesse universo carnavalesco, as personagens se transformam em
uma cont�nua rede de metamorfoses, mudando de identidade e de posi��o social,
dissolvendo as hierarquias e as barreiras “do alto e do baixo”, nos termos
bakhtinianos.
(...) dispersos, flutuantes coros que voltavam a cantar La Camagnolee �a Ira. Contradit�ria e simultaneamente, as vozes exigiam a for�a para o poeta Villon e o fuzilamento para o usurpador Bonaparte, pediam marchas contra a Bastilha e contra o governo de Thiers em Versalhes, recitavam sem ordem o poeta Gringoire e o poeta Pr�vert, clamavam contra os assassinos do Duque de Guise e os excessos da rainha Margot, anunciavam confusamente a morte do amigo do povo em sua tina de �gua morna e o nascimento do futuro rei Sol no leito gelado de Ana da �ustria; este gritava um frango em cada
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panela, aquele bordão de marechal em cada mochila, a outra Paris vale uma missa, a de mais além, enriquecei! a mais próxima, a imaginação ao poder! e uma voz aguda, ululante, anônima, ganhava de todas as outras, gritando, repetindo obsessivamente, oh crime quantas liberdades se cometem em teu nome. (TN, p.22).
O último segmento dessa colagem cultural se volta para o espaço da ficção
literária, onde seres fadados a sofrer por causa do amor, da cobiça ou pela sede de
vingança, enfrentam a solidão ou a morte. Criaturas do capítulo final de suas
respectivas histórias, que aparecem e desaparecem no meio às vozes do povo: as
personagens de Os miseráveis (1862), Jean Valjean e Javert de Vitor Hugo; a
heroína de Alexandre Dumas filho em A dama das camélias (1848), aparece na
versão musical da opera de Verdi; La Traviata, na figura da cortesã tísica, cantando
a área de despedida e, surge também, o atormentado Rafael de Valentin, de Honoré
Balzac, personagem principal de A pele de onagro (1831).
(...) um ex-presidiário e um inspetor de polícia levantavam timidamente a tampa metálica de uma sarjeta, olhavam o que acontecia sem acreditar no que estavam vendo e tornaram a desaparecer perdidos no escuro favo dos esgotos de Paris. Uma cortesã tísica olhava por trás das janelas fechadas de seu alto apartamento com tédio e desengano, corria as cortinas, recostava-se em um sofá e, na penumbra, cantava uma área de despedida. Um homem jovem, esbelto e febril, vestido com sobrecasaca, chapéu alto e calça preta, caminhavam lentamente, indiferente à multidão, a atenção fixa na diminuta pele de onagro que por minutos se encolhia na palma de sua mão (TN, p.23).
Além dos juramentos, das injúrias ou blasfêmias, variadas figuras e tipos de
indivíduos marginalizados apresentam-se como forma de grotesco naquela
escatológica Paris: os loucos, os ébrios, os cegos, os mancos, os tolos, os tísicos.
Essas personagens, geralmente, representam indivíduos apartados da sociedade,
fazem parte de uma parcela que foge da normalidade, ou seja, não se enquadram
entre os que não apresentam defeitos visíveis. Para Bakhtin, eles representam a
liberdade de expressão dentro do romance; na literatura carnavalizada esses seres
podem fazer e dizer tudo livremente. Mas, para os que possuem estado físico-
mental perfeito lhes é proibido. Cada um dos pairas pode discorrer a respeito dos
poderosos ou criticar as instituições. A fala dos socialmente excluídos, como os
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embriagados, tolos ou loucos, possui licen�a para gritar livremente seu
descontentamento social nos lugares p�blicos.
Bandos de cinquenta, de cem, de duzentos homens sujos e barbados, mo�os que moviam com dificuldade os corpos doloridos, crian�as com m�os negras, ensebados e sujos; todos entoando essa cantiga obsessiva: O lugar � aqui; O tempo � agora; Agora � aqui; Aqui � agora. Cada contingente ia unindo-se aos demais diante da igreja de Saint-Germain, em meio os brindes e �s chacotas de alguns, ao sepulcral espanto e fascina��o de outros (TN, p. 22).
Por considerar a hist�ria linear como uma constru��o ao servi�o do poder
institucional, o romance tenta restabelecer o equil�brio no arquivo hist�rico, para isso
reorganiza o registro historiogr�fico contempor�neo mediante a cosmovis�o plural e
flex�vel deslocando o foco da vers�o oficial para os grupos minorit�rios,
tradicionalmente silenciados – a minoria dos radicais, vision�rios, artes�os, hereges
e revolucion�rios. Terra Nostra questiona essa divis�o entre fic��o e realidade e
cria uma hist�ria particular a ser vivida no espa�o do romance, para isso evoca e
reinterpreta as hist�rias ap�crifas e fant�sticas da cultura popular.
O elemento que comp�e o grotesco � o vocabul�rio empregado em pra�a
p�blica por ocasi�o das festas n�o oficiais, caracteriza-se pelas grosserias e inj�rias,
em especial pelas disputas, di�logos par�dicos e as cr�nicas. As situa��es que Polo
Febo vivencia est�o imbu�das da concep��o carnavalesca do mundo e legitimam o
grotesco liter�rio. “Grosserias blasfemat�rias dirigidas �s antigas divindades (...)
constitu�am um elemento necess�rio aos cultos c�micos mais antigos. Essas
blasf�mias eram ambivalentes; embora degradassem e mortificasse,
simultaneamente, regeneravam e renovavam” (2002, p.15).
Durante o per�odo em que se celebrava a festa popular, a divis�o entre as
classes sociais assim como as regras de comportamento estavam abolidas. Para os
participantes, o espa�o p�blico era o lugar da alegria, do riso, da liberdade e do
pranto. Em Paris, o fim do mundo est� pr�ximo e, por isso mesmo, todos t�m que
aproveitar ao m�ximo seus �ltimos momentos de vida; no riso e no pranto. Os
arrependidos precisam penitenciar os excessos cometidos na cidade; um grupo de
penitentes seminus se mortifica em favor de todos.
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Milhares de pessoas lutavam, cantavam, riam, comiam, gemiam, cansavam-se, abra�avam-se, repeliam-se, brincavam entre si, choravam e bebiam O Monge, no centro do duplo c�rculo, fez com que o l�tego estrondeasse uma vez e os peregrinos do primeiro c�rculo, o interno, deixaram-se cair de bru�os e com os bra�os abertos no ch�o, um depois do outro, lenta e sucessivamente. (...) O Monge dirigiu-se a eles e um manto de sil�ncio desceu sobre a multid�o: o l�tego estrondeou primeiro no ar e em seguida contra os punhos, as m�os, as costas, os ventres, as cabe�as, os olhos, os l�bios. Quase todos reprimiram os gritos. Algu�m solu�ou. (...) A not�cia da autoflagela��o foi comunicada de boca em boca, at� explodir em uma pat�tica ova��o, mescla de miseric�rdia e prazer. (...) Polo virou as costas e caminhou (TN, p.25).
Bakhtin comenta que os rituais carnavalescos, em sua grande maioria,
transformaram-se em literatura e, junto com eles, as situa��es de enredo adquiriram
profundidade simb�lica auxiliados pela par�dia, elemento fundamental na ocorr�ncia
da carnavaliza��o. Outro elemento insepar�vel de todos os g�neros carnavalizados
� a s�tira, cujo tema principal � a cr�tica �s institui��es, �s pessoas, aos grupos ou
aos h�bitos sociais por meio do exemplo moralizante e do humor: “a par�dia � a
cria��o do mundo �s avessas. Parodiar � subverter, libertar o discurso” (2002,
p.122). A par�dia � um efeito de linguagem, o texto parod�stico faz uma
reapresenta��o, uma maneira nova e diferente de ler o convencional.
A vis�o escatol�gica percebe o fim do mundo como um per�odo de acerto de
contas, imagem do fim das vidas e do julgamento definitivo sobre elas. Ao incorporar
elementos carnavalescos a situa��o se transforma em “um espet�culo bom para ser
montado em pra�a p�blica, onde qualquer sentimento de medo ou de
arrependimento � vencido pelo riso e pela curiosidade do povo gra�as �
ambival�ncia de todas as imagens” (2002, p.157).
O apocalipse carnavalizado testemunha a permuta��o do alto e do baixo
corporal na l�gica da invers�o, pr�pria da cultura popular: os grandes s�o
destronados, neste caso as institui��es que ret�m o poder; os inferiores s�o
coroados, como Polo Febo o iniciador e protagonista das hist�rias narradas em
Terra Nostra. O romance cria mundos fict�cios que justificam sua natureza
carnavalesca pela excepcionalidade e inacabamento de apresenta��o, rompe com a
linearidade, entrela�ando o passado, o presente e o futuro num constante agora.
Em culturas em que as manifesta��es mais elementares do s�rio s�o
destronadas, o vocabul�rio da pra�a p�blica cria uma linguagem acima de tudo
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ambivalente, “um Janos de duplo rosto” (2002, p.142). O jovem Polo Febo � o portal
simb�lico entre as diferentes �pocas e, ao mesmo tempo, o Peregrino dos tr�s
mundos de Terra Nostra.
A caracter�stica mais importante na carnavaliza��o liter�ria consiste em que a fantasia mais audaciosa, descomedida e a aventura sejam interiormente motivadas, justificadas e localizadas pelo fim puramente filos�fico-ideologico de criar situa��es extraordin�rias para provocar e experimentar uma ideia (...). Em toda a literatura mundial n�o se encontra talvez g�nero mais livre em g�neros imagin�rios e fant�sticos. O verdadeiro grotesco (...) esfor�a-se por exprimir nas suas imagens o devir, o crescimento, o inacabamento perp�tuo da exist�ncia: � o motivo pelo qual ele d� nas suas imagens os dois p�los do devir (...) a velhice est� gr�vida, a morte est� prenhe. (Bakhtin. 2002, p.46).
Ap�s vivenciar os atos expiat�rios dos penitentes, Polo Febo se depara com
outro acontecimento ins�lito. Percebe que o singular epis�dio ocorrido na habita��o
da anci� madame Zaharia se repete paralelamente em toda a Paris. Nos edif�cios,
nas pra�as e nas ruas, em todos os cantos, a mulheres de todas as idades d�o � luz
e os rec�m-nascidos invadem a cidade. No entorno do inabitual evento, gen�rico e
de efeito multiplicativo, as parturientes e as parteiras d�o � luz simultaneamente e a
cidade luz, literalmente, d� � luz novas hist�rias. Alegoricamente, a hist�ria de Terra
Nostra nasce tamb�m em julho, ap�s o caos e em Paris: “Julho,... murmurou Polo...
em Paris tudo acontece em julho, sempre (...) julho � c�lera de multid�es e de
muitos reis decapitados” (p.28).
Ali estavam, ao longo do Quai Voltaire, as jovens e as velhas, as gordas e as magras, as alegres e as inconsol�veis, as serenas e as agitadas, recostadas em ambos os lados das cal�adas, umas com acotoveladas no parapeito do cais, outras acocoradas embaixo dos pr�dios (...). At� onde o olhar alcan�ava – a ponte de Alexandre III de um lado, e o Saint-Michel do outro - as mulheres jaziam nas cal�adas e outras as ajudavam. O singular milagre da casa da Madame Zaharia era o milagre coletivo dos cais; as senhoras, de todas as idades, formas e condi��es, pariam. (...) As anci�s, algumas erguidas com dignidade, outras encurvadas como um b�culo de pastor; as velhinhas at� ontem entregues �s suas recorda��es (...) esses pergaminhos octogen�rios que caminham cautelosamente pelas ruas e resmungam para os transeuntes; esses vetustos coura�ados que brigam todos os dias nos mercados e ao p� das escadas; todas elas, a formid�vel, pavorosa e arraigada gerontocracia feminina de Paris, abriam a boca e piscavam os olhos, indecisas entre duas atitudes: interrogar com espanto ou fingir um conhecimento secreto. Para Polo
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foi suficiente v�-las para concluir que nenhuma delas sabia quem era o pai de seu filho. (TN, p.28,29).
As marcas caracter�sticas da literatura carnavalizada tratam do aspecto
grotesco, que � entendido por Bakhtin como uma manifesta��o de rebaixamento dos
valores da cultura oficial que processa imagens distorcidas do mundo. A
multiplica��o de parturientes, os corpos flagelados e o exagero das imagens
ca�ticas sugerem o baixo corporal material e corporal que, nos termos de Bakhtin,
inverte os valores do s�rio, do pulcro, do elevado, do sublime e do espiritual. No
baixo material e corporal tudo o que � considerado como espiritual � transferido para
o plano corporal, como o exagero das cenas das parturientes, “at� as velhinhas at�
ontem entregues �s suas recorda��es”, parem na rua.
O baixo material e corporal regenerador. O grotesco � um g�nero constitu�do a partir de manifesta��es da cultura popular, sem deixar, contudo, de se reportar aos g�neros elevados; revela o outro p�lo dessa hierarquia com o qual entra em oposi��o. � a manifesta��o especifica do c�mico em contraste com as formas do s�rio. A rela��o cl�ssico-grotesco � dialetizada na teoria bakhtiniana quando ocorre o rebaixamento. Nesse sentido, o rebaixamento � percebido na “�tica de manifesta��o do fen�meno grotesco em que tudo que � espiritual, elevado, sublime, � transferido para o plano material e corporal. (2002, p.314).
Polo Febo tem um encontro marcado com a jovem Celestina, figura da
mem�ria ao longo de toda a narrativa. Ela sabe e conhece o tempo anterior e como
caracter�stica desses saberes tem os l�bios tatuados com duas bocas: “uma boca
diria palavras deste tempo; a outra: as de um tempo esquecido” (p.31). Celestina
assegura conhec�-lo desde um tempo anterior, quando seu nome e hist�ria eram
outros. Fala de uma Espanha de �pocas distantes, de persegui��o, de morte, de dor
e de renova��o.
Uma mo�a estava sentada na metade da ponte. De longe, contra a luz (Polo sobe os degraus que conduzem � Pont des Arts) (...) a mo�a desenhava sobre o asfalto da ponte (...) a tatuagem era uma boca � parte, uma segunda boca e tamb�m s� a boca da jovem, por�m aperfei�oada (...). Ao lado da jovem mulher estava, de p�, uma grossa verde garrafa (...) selada e lacrada com um gesso vermelho, antigo, lavrado e virgem (...). Polo olhou o c�u escuro e a jovem olhou para Polo e ele, sem olh�-la, pensou primeiro no desenho apagado pela chuva e em seguida, inexplicavelmente, em
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uma frase que durante v�rios dias lhe rondava nos sonhos, inexpressa at� esse instante preciso. Os l�bios tatuados se moveram e disseram o que ele pensava: - Incr�vel o primeiro animal que sonhou com outro animal. (...). Escute at� o fim. A viagem desce a Espanha � longa e dif�cil. Os albergues est�o repletos e os caminhos s�o dia a dia mais perigosos. (,,,) O terror propaga-se desde Toledo at� Orleans. Queimaram as terras, as colheitas, os est�bulos. Assaltam e destroem os mosteiros, as igrejas e os pal�cios. S�o terr�veis: assassinaram (...); semeiam a fome no seu caminho (...). Anunciam a aproxima��o de um novo reino e dizem viver em perfeita alegria. Esperam o mil�nio que se ir� iniciar neste inverno, por�m n�o como uma data, mas como uma oportunidade de se refazer o mundo. Citam um dos seus poetas eremitas e com ele cantam que um povo sem hist�ria n�o se redime do tempo, pois a hist�ria � um tecido de instantes intemporais. Ludovico � o mestre; ensina que a verdadeira hist�ria ser� viver e glorificar esses instantes temporais e n�o, como agora, sacrific�-los a um futuro inalcan��vel e devorador, pois cada vez que o futuro se torna instante, repudiamo-lo em nome do futuro que desejamos e jamais teremos (TN, p. 31-33).
P�lo Febo parece n�o compreender as palavras da mo�a, que o chama
repetidamente de “Juan, Juan”; confuso “por uma mem�ria de ressurgimentos”,
“lutando contra o vento que n�o lhe permitia ler”, e cego por causa da intensa chuva
que molha seu rosto, “Polo perdeu o equil�brio” e cai da Pont des Arts sendo
arrastado pelas �guas obscuras do rio; a mo�a o v� desaparecer no leito quente do
Sena. Celestina lan�a uma das tr�s garrafas verdes e seladas no rio. Esses objetos
relacionam as hist�rias que comp�em o romance por conter em seu interior as
mem�rias de tempos inacabados, do presente, futuro e passado.
Polo sentiu vontade de fugir (...). Levantou-se e avan�ou, debaixo da chuva, para Polo. Polo retrocedeu. A mo�a estendeu-lhe a m�o. (...) – O que � que est� acontecendo com voc�? N�o me reconhece? N�o lhe disse que voltaria hoje? Polo sentiu vontade de fugir; girou a cabe�a (...) agora chovia intensamente, o fr�gil desenho executado pela jovem escorregava para o rio em espirales de cor opaca. (...) A mo�a estendeu-lhe a m�o. (...) A viagem desde a Espanha � longa e dif�cil (...). Vim para avis�-lo como lhe prometi (...) Polo observou com fascina��o a caligrafia dos l�bios que lhe acabavam de falar – a jovem possui duas bocas; com uma delas talvez fale do seu amor; com a outra, n�o do seu �dio mas do seu mart�rio; amor contra mist�rio; mist�rio contra amor; estupidez confundir mist�rio com �dio; uma boca diria palavras deste tempo; a outra, as de um tempo esquecido. (...) Polo retrocedeu e a mo�a avan�ou. (...) lutando contra o vento que lhe desmanchava a cumprida cabeleira sobre o rosto e o cegava duplamente, vento e cabelo, lutando contra o odor cada vez mais pr�ximo de unhas queimadas e a lembran�a do tato de azeite e placenta, lutando contra as palavras que tinha pronunciado sem entender, ditadas por uma mem�ria de
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ressurgimentos, (...) Polo perdeu o equil�brio (...). E a mo�a, por cujo olhar passavam as mesmas interroga��es, as mesmas mem�rias, as mesmas sobreviv�ncias, nelas detalhadas como eram nele gen�ricas, esticou o bra�o para pegar Polo. Como ia saber que o mo�o era maneta? Ela ficou presa no ar, com a m�o arranhada pelos alfinetes da manga, e Polo caiu. (...) A mo�a atirou no rio a verde e selada garrafa, (...) a jovem repetia no sil�ncio, intercaladamente: -Esta � a minha narrativa. Desejo que voc� ou�a minha hist�ria. Ou�a. Ou�a. air�tsih ahnim acuo euq oreuq. Air�tsih ahnim � atse. (TN, p. 34-36).
Ele inaugura a linguagem amb�gua na est�tica da narrativa no romance; ele
abre espa�o para o discurso-mem�ria de Celestina; Polo Febo permite que esta
revele suas caracter�sticas multifac�ticas, ambivalentes, amb�guas e polivalentes.
Celestina d� in�cio �s outras hist�rias circulares, almeja viver as m�ltiplas vidas de
Polo Febo, peregrino das p�ginas do romance.
A a��o em O Velho Mundo questiona permanentemente os princ�pios
tradicionais da raz�o, briga com as rela��es estereotipadas e altamente codificadas
de causa-efeito e quebra a linearidade do tempo ao multiplicar as vozes dos
narradores. A partir desse momento, cada uma das personagens desenha a sua
causalidade e cada uma delas possui seu pr�prio micromundo, identidade contextual
resistente a qualquer defini��o; apenas seres que resistem � categoriza��o que
possa conceitu�-los numa �nica interpreta��o. A primeira impress�o de caos que
provoca a narrativa se torna progressivamente eloquente � medida que o fio ficcional
tece a trama criada na sequ�ncia do romance.
As m�ltiplas narrativas revelam as personagens documentando os fatos de
acordo com as diferentes vers�es, ao longo do tempo. O romance, sempre aberto �s
diversas vis�es de mundo, se articula na fala da multiplicidade de vozes de
diferentes tons, s�o as diferentes linguagens sociais que, por estarem em constante
movimento, s�o polif�nicas por excel�ncia. Cada vers�o ancora causas diferentes
aos acontecimentos e multiplica os efeitos que, paradigmaticamente, se op�em. De
tudo isso resulta um leque de m�ltiplas possibilidades; vias mortas que permitem
construir um percurso coerente, que t�m como ponto de partida a Paris escatol�gica.
Na Ponts des Arts, Polo Febo encontra Celestina, a mulher de l�bios tatuados,
e, antes de cair no rio, Celestina se apresenta como desenhista de rua. Ela pinta
“um c�rculo preto, irradiando dele zonas de diversas cores, azul, granada, verde,
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amarelo; Polo quer se recordar do lugar onde o tinha visto h� tempos, uma forma
semelhante.” (p.31). O desenho resulta ser a imagem do mapa da Am�rica. Ela
relata as ocorr�ncias de sua viagem desde a Espanha at� Paris, fala de uma
cruzada liderada por Ludovico e Sim�o. A jovem come�a a recordar e penetra no
seu mundo interior e nas suas lembran�as. Surge a imagem de um universo em
decomposi��o temporal com outra hist�ria, simb�lica, on�rica, fic��o liter�ria que
irrompe no cen�rio da Paris escatol�gica para convocar o universo da mem�ria
coletiva da Espanha hebr�ia, do mundo mouro, dos reis em decad�ncia, de uma
�poca distante em um imp�rio submerso em ru�nas espectrais.
Os l�bios tatuados com duas bocas falam de amor e de mist�rio; uma boca fala
do tempo do desejo e a outra da mem�ria. Celestina chama Polo com o nome de
Juan, fazendo alus�o a Iohannes Agrippa P�stumo. Quando Polo Febo cai no rio
Sena, Celestina joga uma garrafa verde que sempre carregava com ela, como um
salva-vidas. Polo afunda e desaparece na correnteza junto com a garrafa. Uma das
ideias que predomina no romance � a da hist�ria como um espelho: cada hist�ria-
acontecimento � reflexo e consequ�ncia de outro.
Ela repete “Esta � a minha narrativa. Desejo que voc� ou�a minha hist�ria.
Ou�a, Ou�a. A�uo, A�uo. Air�tsih ahnim � atse” (p.35). O anagrama inicia outra
hist�ria contada, de outro tempo. Essa constru��o insinua a ruptura da linearidade
temporal, evoca a figura de Sherazade contando e recontando suas hist�rias para
n�o morrer; tamb�m dialoga com a obra de Lewis Carroll, Alice no país da
maravilhas (1865). Cada hist�ria se espelha em outra no mundo �s avessas,
maravilhoso, repleto de f�bulas e de metamorfoses. O enunciado anagram�tico
desencadeia a ruptura espa�o-temporal. O relato introduz a hist�ria do Velho Mundo
na vers�o do romance, um universo que transita por pistas amb�guas e complexas,
onde os seres se transformam e se deformam; se encontram e se desencontram
para contar hist�rias de acordo com suas pr�prias vers�es e verdades. A narrativa
se situa na �poca da dinastia dos �ustria no trono da Espanha.
Pela ruptura espa�o-temporal, o romance se desloca para o momento da
constru��o do Monast�rio de El Escorial, na Espanha. Surgem as figuras hist�ricas
de Felipe II, Carlos V, Felipe O formoso, Juana a Louca, Juan de �ustria, Elizabeth
Tudor, Ana de �ustria e muitos outros representantes da dinastia dos �ustria. Essas
personagens hist�ricas, cuja refer�ncia hist�rica est� delineada de acordo �
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historiografia, surgem no relato com nomes que estabelecem uma primeira relação
simbólica entre a narrativa histórica e a narrativa ficcional. Os monarcas são
transfigurados na imagem do Senhor, e as rainhas como a Senhora, Juana e a
Dama Louca.
Nesse bloco histórico destacam-se figuras que não mantém relação direta com
as personagens conhecidas pela História, Há também outras, cuja referência não
está explicitada, como Frei Julián, miniaturista e pintor; Frei Toríbio, astrônomo;
Ludovico, historiador, e muitos outros que desempenham o papel de narradores e
personagens simultaneamente. Esses seres pretendem constituir a escrita plural
desacreditando a escrita individual de um sujeito único, o autor unívoco. Os
narradores principais são o Senhor, Polo Febo, Ludovico e Celestina. Há os
secundários, cuja referência se explicita ao longo do romance. Da mesma forma são
retratadas personagens reais, ocultas na narrativa histórica, como os servos da corte
e os construtores do edifício de El Escorial. Alguns se espelham em figuras
históricas, como Guzmán, o secretário do Senhor, inspirado em Hernán Cortés, o
conquistador do México; ou a anã Barbarica, dama de companhia da Dama Louca,
inspirada nos costumes da época.
O Palácio é habitado pelos membros da realeza que, transgredindo o conceito
de tempo-espaço, convivem numa mesma época encarnados na figura do Senhor e
da Senhora. Seguindo a coerência interna da obra, esses seres são: Felipe o
Formoso, casado com Juana; a Dama Louca; Felipe o Senhor, filho e herdeiro dos
anteriores, casado com Isabel; Isabel, a Senhora, imagem de Elizabeth Tudor, sua
prima inglesa.
A corte está povoada por seres lendários como o bobo da corte de Felipe o
Formoso; Guzmán, secretário e substituto do monteiro-mor de Felipe e o duplo do
conquistador Hernán Cortez; Frei Julián, pintor, confessor e miniaturista; Frei Toríbio,
sábio e astrólogo; o Cronista, poeta e narrador; os doutores: Antonio Saura, Frei
Santiago Baena, Pedro del Água, José Luís Cuevas; o Bispo; o Comendador de
Calatrava; Gonzalo Ulloa; Inés, a filha noviça do Comendador; Milagros, a Madre
superiora; as monjas: Angústias, Clemência, Dolores, Consuelo, Remédios; as
criadas de Isabel, a Senhora: Azucena e Lolilla; a companheira da Dama Loca: Anã
Barbarica.
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Na mem�ria coletiva desses seres, permanece a presen�a de alguns dos
fantasmas dos mediterr�neos que comp�em o contexto hist�rico, antecedente para
a constru��o do Velho mundo, muitos deles teriam gerado a Espanha de Terra
Nostra, como o imperador Tib�rio C�sar, segundo Imperador romano da linhagem
dos Augustus; Teodoro de Gandarra, seu secret�rio e cronista; os amantes de C�sar
Tib�rio, Fabiano, Gaio, P�rcio, C�ntia e L�sbia; P�ncio Pilatos, procurador da Jud�ia;
O Nazir, profeta menor hebreu; Clemente, o escravo; o fantasma de Agrippa
P�stumo; o doutor judeu da Sinagoga de Toledo e o escriba de Alexandria.
A fragmenta��o e os saltos temporais somados �s refer�ncias hist�ricas
concretas, sempre mescladas �s refer�ncias ficcionais, rompem a linearidade dos
discursos hist�ricos para construir uma narrativa que remete a relatos facilmente
reconhecidos e que formam parte do nosso arsenal cognitivo. Terra Nostra n�o
apresenta novos conte�dos hist�ricos, mas os relata de outra forma, viajando com
eles no tempo. Um �nico epis�dio hist�rico pode representar uma profus�o de
m�ltiplos tempos, de conte�dos ideol�gicos, filos�ficos e morais que se repetem
para justificar uma conflu�ncia de poss�veis verdades-mentiras impl�citas aos limites
pertinentes � narrativa hist�rico-liter�ria. Da mesma forma que nos relatos m�ticos
em que o caos antecede ao cosmos, o romance se organiza e se estrutura a partir
da desordem temporal que revela um significado oculto. Segundo Carlos Fuentes, “o
caos impl�cito � ordena��o do relato e o caos relacionado aos conceitos inerentes �
forma de narrar” (1992, p.105).
O relato recorre �s vers�es ap�crifas da Hist�ria que acabam por substituir a
vis�o herdada das cr�nicas oficiais. A hist�ria tradicional de cronologias exatas, de
sucess�es din�sticas, das grandes fa�anhas e sagas �picas, cede lugar a um
aparente caos de personagens e de vozes narrativas nas quais � dif�cil estabelecer
a depend�ncia hist�rica. Disso resulta uma vers�o alternativa do passado em que os
elementos fant�sticos por vezes parecem ser os reais e os aparentemente reais s�o
o resultado da fic��o liter�ria. A narrativa acumula dimens�es e espa�os que se
desdobram em tempos diversos, personagens que transitam e se deslocam nesses
tempos, a ruptura dos limites espa�o-temporais e os recortes hist�ricos estabelecem
e consolidam as simbologias e imagin�rios coletivos. A revis�o do passado, como
caracter�stica da obra, est� presente ao logo do romance que “na sua ess�ncia
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apresenta uma comunidade de na��es que n�o tiveram a possibilidade de decidir
sobre seu pr�prio destino” (1992, p. 12).
Duas importantes hist�rias que s�o contadas e recontadas ao longo do
romance: a hist�ria de Celestina, jovem camponesa que no dia de seu casamento �
violentada pelo Senhor, que de acordo com a Lei da pernada concede o privil�gio ao
rei de desflorar as jovens s�ditas. A outra se refere ao relacionamento amoroso
entre Celestina com o jovem pr�ncipe Felipe II, antes de se tornar o novo Senhor.
Nesse momento da narrativa, o percurso da personagem fict�cia do Senhor,
inspirada em Felipe II, se apresenta ao avesso do discurso hist�rico: um monarca
s�bio, o rei Prudente, austero e extremamente pacato. O pr�ncipe se relaciona ainda
com o jovem estudante Ludovico e os tr�s vivem um curto romance.
A met�fora do romance a tr�s relaciona Ludovico, que representa a hist�ria, e
Celestina, figura da mem�ria, com o jovem pr�ncipe que ainda teria a possibilidade
de mudar o futuro peninsular. A experi�ncia amorosa vivida por Felipe com Celestina
e Ludovico ilustra tamb�m um momento que teria possibilitado a fuga do jovem
monarca do seu futuro de certezas e de seu cabal aprisionamento pelo discurso
absolutista.
Tanto Celestina como Ludovico s�o personagens misteriosos. Eles se
transformam, duplicam e at� se triplicam em outras que aparecem nas demais
sequ�ncias narrativas. Ambas representam um bloco de resist�ncia ao absolutismo
da �poca. Ludovico � um fil�sofo-historiador que questiona a f� com as quest�es
her�ticas do seu tempo. Celestina faz refer�ncia ao poder arbitr�rio do qual foi
v�tima. Absolutismo e poder est�o sempre encarnados na figura do Senhor. Tanto o
aspecto hist�rico como o ficcional enquadram essa figura transitando entre seus
pares opositores e aludindo � ideologia da �poca.
A personagem Celestina, no epis�dio Aos pés do Senhor (p.35), evoca e
provoca a ruptura espa�o-temporal. O universo de uma mem�ria que introduz a
hist�ria do Velho Mundo. Um universo onde as personagens transitam por pistas
amb�guas e complexas. A presen�a da figura do Senhor, no Pal�cio, e no espa�o da
corte, autoriza a mudan�a de �poca e de cen�rio; a partir da� a narrativa se
transporta para uma realidade n�o linear, um pulo temporal que marca o instante da
ruptura e da transgress�o carnavalesca que lan�a o foco de aten��o para os s�culos
XV e XVI.
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A express�o introdut�ria “conta-se” (p.35) d� in�cio � a��o numa manh� quente
de ver�o na Serra. O Senhor recebe Guzm�n, imagem dupla de Hern�n Cort�s.
Escriv�o e secret�rio, Guzm�n � um homem ambicioso que re�ne as caracter�sticas
do conquistador espanhol. As cenas confluem sobre o Pal�cio-necr�pole de El
Escorial, onde o Senhor, caracterizado a imagem de Felipe II, espera a chegada de
trinta f�retros contendo os restos mortais dos seus antepassados. Nessa manh�,
Guzm�n tinha preparado a ca�a.
O Senhor levantou-se cedo e abriu a janela de sua rec�mara a fim de celebrar com mais prazer o esplendoroso sol desta manh� de julho. (...). Guzm�n entrou e disse ao Senhor que a ca�a estava combinada. (...) O Senhor esbo�ou um sorriso. Olhou fixamente para o substituto do monteiro-mor e este baixou a cabe�a. Satisfeito, o Senhor botou uma m�o na cintura. (...) o Senhor n�o precisava fingir uma altivez que lhe era natural. (...) O Senhor fez avan�ar com raiva o cavalo para o grupo de rebeldes; bastou esse movimento para que baixassem as cabe�as e deixassem de murmurar. (...) ele acentuava os gestos galhardos e as nobres posturas, para fazer-se respeitar; para que seus vassalos sentissem a for�a de sua presen�a real.
(TN, p.36,39).
A partir dessas informa��es percebe-se que a constru��o hist�rica em O
Velho Mundo dialoga com o pensamento dos diferentes monarcas dos s�culos XV e
XVII da dinastia dos �ustria, os quais influenciam o tempo presente do romance no
s�culo XX. Essas a��es permeiam a imagem liter�ria do Senhor, que re�ne em si as
caracter�sticas centralizadoras do poder monol�tico de seus antepassados e o
esfor�o por perpetuar-se no mundo imut�vel do poder eternizado por um �nico
discurso autorit�rio e expansionista.
Essa ideia do poder perene se reitera ao longo do romance. Ao reagrupar
alguns dos fragmentos hist�ricos, O Velho Mundo elabora uma narrativa coerente
com a finalidade de propor discursos veross�meis, em que o real e a fic��o
arquitetam universos significativos pela prolifera��o de poss�veis verdades. No
interior delas, o registro de verossimilhan�a dessa narrativa adquire coer�ncia
interna. A concep��o de verdade hist�rica se fusiona a da fic��o permeando as
fronteiras entre o real e o imagin�rio. Da� os paralelismos s�o fundamentais para
caracterizar a figura do Senhor e compreender as combina��es de focos narrativos
que o apresentam como detentor absoluto do poder.
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Na corte, a figura do Senhor se situa na �poca da constru��o do mosteiro El
Escorial, cuja imagem arquitet�nica explora o universo da ortodoxia na figura da
personagem do monarca. Nesse espa�o, passam a existir paralelamente figuras
reais da Hist�ria linear, como o rei Felipe II, seu pai Carlos V, seu av� Felipe O
Formoso, a rainha Joana Louca, os monarcas Jo�o da �ustria e Elizabeth Tudor,
entre outros. Ao mesmo tempo, e interagindo com eles, aparecem as personagens
liter�rias criadas pela fic��o no romance: Guzm�n, a Dama Louca, a an� Barbarica,
Ludovico, Frei Juli�n e Celestina.
Outro acontecimento importante constitui a chegada, cinco s�culos atr�s, ao
Cabo dos Desastres de tr�s jovens n�ufragos que ostentam os mesmos estigmas
das crian�as que Polo Febo ajuda a nascer no primeiro epis�dio. Os tr�s n�ufragos
chegam acompanhados de tr�s garrafas verdes. S�o resgatados sucessivamente
pela rainha, a Senhora, que se transfigura ao longo da narrativa em Isabel e �
esposa do Senhor, pela Dama Louca, a m�e do Senhor e por Celestina, a pajem da
rainha consorte.
A narrativa tem como referencial fict�cio a hist�ria do Senhor numa Espanha
sombria, tradicional e aristocr�tica da Idade M�dia, �poca da Inquisi��o e da
Contrarreforma. A mem�ria da juventude do Senhor ilustra o obscurantismo religioso
e o poder absoluto da monarquia e a intoler�ncia cultural. Uma Espanha fict�cia em
que os fatos mundiais se aglomeram em uma �nica �poca e se sucedem sem ordem
cronol�gica, j� que, como lembran�as, acontecem na confusa mem�ria da
personagem o Senhor, velho e moribundo.
Os antecedentes ficcionais de Terra Nostra teriam in�cio na Roma antiga,
quando o Imperador Tib�rio C�sar, antes de ser assassinado pelo fantasma de
Iohannes Agrippa P�stumo, O Cl�udio, pronunciara uma maldi��o sobre o futuro da
Espanha. Suas palavras falavam do territ�rio espanhol, proferiam que “seria dividido
e dispersado por usurpadores, futuras encarna��es de Agrippa P�stumo que se
multiplicariam, come�ando por tr�s, at� o infinito” (p.612).
Iohannes Agrippa P�stumo, o Cl�udio, teria sido assassinado pelo servo de
Tib�rio, para lhe roubar o trono. A profecia se realiza no meio da trama, quando
surgem tr�s crian�as marcadas por dois sinais, uma cruz vermelha nas costas e seis
dedos em cada p�. S�o protegidas por Celestina e Ludovico e educadas por eles
num gueto judeu em Toledo. Essas crian�as representam as novas formas de
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pensar o mundo pelo simulacro que evoca as personagens literárias de Don Juan,
Don Quijote e Polo Febo, o Peregrino visitante e relator das novidades do Novo
Mundo.
O primeiro deles é Juan, cujo nome verdadeiro é Iohannes Agrippa, amante da
rainha Isabel, encarnada na personagem a Senhora. Após transformar-se em Don
Juan, seduz a Doña Inês e todas as mulheres da corte. Juan acaba convertido em
estátua de pedra, como na obra literária de Tirso de Molina El burlador de Sevilla. O
segundo dos náufragos assume a personalidade de Felipe O Formoso, o falecido
marido da Dama Louca. Ao se transformar no Príncipe Bobo é proclamado herdeiro
pela rainha consorte e obrigado a contrair núpcias com a anã Barbarica. Sua
identificação com Felipe O Formoso o leva a introduzir-se num sarcófago e
descansar junto ao cadáver de Felipe. O terceiro náufrago é Polo Febo transmutado
como Peregrino, conduzido ao Palácio por Celestina, onde relata ao Senhor a
história da sua viagem ao Novo Mundo.
Em El espejo enterrado (1992), Carlos Fuentes indica especificamente as três
grandes datas que configuram as coordenadas temporais de Terra Nostra, 1492,
1551 e 1598. A primeira, 1492, alude a quatro acontecimentos que mudam o
panorama histórico e cultural da Espanha renascentista: a expulsão dos judeus, a
queda de Granada, o Descobrimento do Novo Mundo e a publicação da primeira
gramática castelhana, de Antonio Nebrija. A segunda se refere à Conquista do
México e à derrota dos rebeldes comuneros de Castilla em Villalar e a terceira, à
data da morte de Felipe II.
O autor alerta que o romance não pretende ser um catálogo de fatos históricos,
cada uma dessas datas representa uma possibilidade de abertura à pluralidade
cultural abortada pelas forças da ordem monolítica, que teriam propiciado uma
clausura. No ano de 1492, a expulsão dos judeus, assim com a perseguição dos
falsos conversos, supôs o fim da coexistência multicultural florescente de sete
séculos.
Isabel e Fernando haviam apreendido as lições da longa luta pela integração nacional espanhola. (...) a unidade espanhola, formalmente alcançada por Fernando e Isabel, requeria agora uma sanção particular. O islamismo teria que ser expulso para sempre da península (...). A importância da conquista de Granada estava clara no ânimo de Fernando e Isabel. Mas não calcularam o dano que
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fariam � Espanha com a expuls�o dos judeus, no mesmo ano de 1492. E quando enviaram (...). Colombo a ca�ar quimeras no horizonte, as esperan�as dos reis espanh�is (...) de alcan�ar a rota mais r�pida at� as �ndias, verdadeiramente n�o inclu�am topar-se com um novo continente, o terceiro grande acontecimento de 1492. (...), o quarto ato deste ano crucial apenas � mencionado nos livros de hist�ria. Antonio de Nebrija publicou a primeira gram�tica da l�ngua espanhola, um instrumento de excel�ncia art�stica, de for�a moral, de alternativa pol�tica e de unidade multirracial, que sobreviveria muitas das virtudes e a maioria das loucuras dos monarcas cat�licos, Isabel de Castilla e Fernando de Arag�n.
(1992, p.88-89).
A expuls�o, al�m de provocar um trauma cultural, teve graves implic�ncias
para o futuro econ�mico da Espanha. Os judeus estavam � vanguarda das
mudan�as econ�micas do pa�s, ocupavam cargos chave da economia nacional:
banqueiros, prestamistas, comerciantes, administradores, que constitu�am “a cabe�a
de lan�a da nascente classe capitalista da Espanha” (1976, p. 39).
Santiago Juan Navarro comenta que essa expuls�o aconteceu no momento em
que a Espanha mais precisava dessa classe de profissionais; quando, acabada a
Reconquista da Pen�nsula Ib�rica, ap�s a queda do reino mouro em Granada, o
desejo expansionista dos Reis Cat�licos se direcionou para as terras da Nova
Espanha.
As empresas transoce�nicas da monarquia espanhola, aceleradas desde o descobrimento do Novo Mundo nesse mesmo ano, e seu expansionismo europeu haveriam de necessitar de um financiamento permanente que se buscou paradoxalmente nas pot�ncias estrangeiras que constitu�am seus rivais pol�ticos e econ�micos. A publica��o da gram�tica de Antonio Nebrija (primeira gram�tica de uma l�ngua europeia) teve, assim mesmo, uma import�ncia fundamental no projeto unificador de Isabel e Fernando, pois a l�ngua castelhana era concebida pela primeira vez, n�o s� como veiculo de comunica��o oficial na pen�nsula, sen�o tamb�m como instrumento de domina��o imperial. Os quatro acontecimentos mencionados apontam para um objetivo primordial do reinado dos Reis Cat�licos: o aliciamento da unidade nacional e a cria��o das bases para o futuro imp�rio espanhol. (2002, p.54)
Na segunda data aconteceram alguns fatos simult�neos e que s�o de grande
interesse para o projeto liter�rio de Carlos Fuentes. Com o projeto imperial da
monarquia consumado na pessoa do rei Carlos V, o poder da Espanha viu-se
fortalecido quando em 1521 Hern�n Cort�s conquista o M�xico, e na Espanha,
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ocorre a repress�o das Comunidades de Castela. A marcha dos conquistadores
espanh�is sobre a capital do Imp�rio Asteca � um dos temas centrais da segunda
parte de Terra Nostra.
O levante e repress�o do movimento comunero � representado pelo autor em
O Outro Mundo, terceira parte, e � objeto de an�lise em seus ensaios,
especialmente em Cervantes o la crítica de la lectura (1976, p.53-60), e no ensaio
El espejo enterrado (1992, p.163-164). A import�ncia da �ltima data de 1598 est�
associada ao ano da morte de Felipe II quando se inicia o decl�nio do imp�rio
espanhol, e uma cultura de formas degradadas de organiza��o pol�tica.
Provavelmente resulte excessivo ver na guerra civil que come�ou em 1519 um movimento precursor das revolu��es inglesa e francesa. Mas a rebeli�o das comunidades de Castela � sem d�vidas uma das refer�ncias mais poderosas e permanentes para a hist�ria da democracia na Espanha e na Am�rica espanhola. “O consentimento de todos”, “a vontade geral”, foram conceitos comuns e recorrentes nas cartas, discursos e proclama��es dos comuneros. A composi��o social da rebeli�o resulta eloquente: uns quantos membros da nobreza urbana; um grande n�mero de prefeitos, guardas e ju�zes; e muitos do baixo clero, incluindo c�negos, abades, e di�conos; uns quantos catedr�ticos, f�sicos, advogados e bachar�is; um n�mero ainda maior de comerciantes, cambistas, not�rios e farmac�uticos; e uma enorme maioria de tendeiros, joalheiros, a�ougueiros, chapeleiros, sapateiros, barbeiros, alfaiates, ferreiros e carpinteiros atuando politicamente atrav�s da Junta Geral, uma assembleia executiva baseada no voto majorit�rio, e expressamente designada para representar a vontade geral de todos. (1992, p.163).
Santiago Juan Navarro comenta que o ensaio El espejo enterrado constitui
uma nova tentativa de sistematiza��o das media��es hist�ricas que preocupam
Carlos Fuentes desde seus primeiros escritos iniciados a partir da segunda metade
do s�culo XX.
A obra concebida originalmente como um seriado para a televis�o norteamericana com motivo do quinto centen�rio do “descobrimento”, poderia ser igualmente definida como um novo esfor�o por alcan�ar um p�blico cada vez mais amplo. Se a reflex�o hist�rica de Terra Nostra se limitou a uma audi�ncia reduzida, pois recebe acusa��es de elitismo, agora tem a oportunidade de ressarcir-se de tais acusa��es, transformando uma boa parte do material hist�rico do romance em programa televisivo de grande alcance e em ensaio divulgado e publicado por uma editora comercial. A reescrita do passado hist�rico � bastante similar nas duas obras, (...) Em rela��o com Cervantes, o la crítica de la lectura, El espejo enterrado oferece a vantagem de uma organiza��o cronol�gica e tem�tica mais clara,
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assim como a inclusão de abundante material sobre o passado precortesiano. (2002, p.51).
Acrescenta que, se o ensaio apresenta uma relação cronológica do passado da
Espanha, na interpretação de Terra Nostra, o tempo circular cria uma fábula
histórica semelhante ao período espanhol que corresponde à Dinastia dos Áustria. O
contexto histórico oferece distintas perspectivas de acordo com a projeção artística
da época. Obras representativas elaboram questionamentos importantes sobe suas
respectivas sociedades, cada período detém produções que possuem um significado
especial: a época medieval, por exemplo, apresenta em primeiro lugar o livro de
Juan Ruiz, Libro de buen amor (1325).
Carlos Fuentes comenta que a corte do monarca Carlos V e a de Felipe II
teriam afrontado o espírito do Renascimento que havia sido impulsionado por Juan
Ruiz. Apresenta a sua visão da dinastia dos Áustria e comenta que Carlos V introduz
na Espanha o ideal expansionista do Sacro Império Romano Germânico. Esse
conceito de um estado central de dimensões continentais, unido ao esforço
unificador dos Reis Católicos, acaba com as tendências pluralistas e democráticas
de uma Espanha medieval a caminho da Modernidade, a procura de um
compromisso entre suas culturas e formas de governo autônomo.
Espanha estava tão preparada como qualquer outra cultura europeia para unir-se ao impulso do Renascimento. A experiência tricultural produziu dois grandes livros que nutriram o espírito renascentista na Espanha. O primeiro é o Libro del buen amor, publicado em 1325 por Juan Ruiz, Arcipreste de Hita. Seu livro é um canto aos prazeres do corpo, uma celebração das formas femininas e uma rejeição a noção de pecado. Profundamente influenciado pela poesia árabe, a mensagem conciliadora de Juan Ruiz é que a fé e o prazer não devem estar em pugna. (1992, p.92-93).
Ao retratar a personalidade do monarca, comenta a natureza dual do
imperador, o descreve como inseguro e dividido entre uma educação conciliadora e
a sua inclinação imperial que o obriga a guerrear contra seus inimigos declarados;
muçulmanos, indígenas, franceses e contra as ideias do protestantismo alemão.
Esgotado pelos problemas políticos de seu reinado, Carlos V se retira ao mosteiro
de Yuste e morre em 1558.
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A dor de cabe�a do imperador Carlos foi a superestens�o que piorou com sua dupla natureza: seguro e inseguro, duro e gentil, dividido pelas alian�as nacionais. Viveu 58 anos nesta terra; desse tempo preferiu viver em Flandes (28 anos) muito mais que nas terras germ�nicas da sua heran�a imperial (nove anos) ou ainda em seu dom�nio espanhol, o qual visitou somente sete vezes na sua vida, passando ai, no total, 18 anos. Mas o que dividiu Carlos V foi a sua incerteza sobre a forma de responder aos desafios de seu reino, mediante a concilia��o (a sua inclina��o renascentista e erasmista) ou mediante o confronto (a sua inclina��o imperial e hisp�nica). (1992, p.164-165).
Felipe II ascende ao trono no momento em que a Espanha necessitava de
mudan�as pol�tico-econ�micas urgentes, “mas elas n�o aconteceram, o monarca
demonstrou uma vontade suicida de manter im�vel a estrutura org�nica do imperium
medieval” (1992, p.157). Espanha se isola progressivamente ao n�o admitir as
reformas iniciadas em grande parte da Europa com o advento do Renascimento. A
orienta��o imperial da coroa deixa de ser europeia e, como no reinado de Carlos V,
Felipe II dirige todos os seus esfor�os para conseguir a expans�o transatl�ntica.
O car�ter hispano-americano do imp�rio de Felipe II, frente ao imp�rio europeu de Carlos V (...) a proje��o hispano-americana, na figura de Felipe II, origina a complexa rela��o entre Hispano-Am�rica e a antiga metr�pole (...). Na Europa, as d�vidas contra�das por Carlos V com banqueiros e prestamistas do norte da Europa se somaram as de Felipe II, alcan�ando n�veis desproporcionados que s� podem ser explicados em fun��o do ouro e da prata que flu�a constantemente do Novo Mundo e que servia para pagar tanto os juros dos empr�stimos como os bens manufaturados procedentes dos centros industriais dos Pa�ses Baixos. Como resultado, o norte da Europa acumulou um capital sem precedentes, que teria tr�gicas consequ�ncias para a economia espanhola e hispano-americana. Espanha estava financiando indiretamente a Europa protestante que pretendia combater, mas o pior de tudo � que estava endividando-se com as pot�ncias estrangeiras sobre a insegura base da extra��o de metais preciosos das Am�ricas (1992, p.157-164).
De acordo com essa vers�o, os �ltimos anos de reinado de Felipe II
reproduzem os de Carlos V, morre sozinho, isolado no mosteiro de El Escorial.
Carlos Fuentes retrata Felipe II como uma figura de personalidade misteriosa, de
car�ter inseguro; exalta a sua extraordin�ria capacidade de trabalho, seu esp�rito
burocr�tico, sua vida asc�tica e a sua atroz morte excrement�cia.
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Como seu pai, Felipe II tamb�m se isolou finalmente detr�s das paredes do mosteiro. Em meio a Serra de Guadarrama, erigiu um imenso monumento � ortodoxia da f�, que tamb�m serviria de mausol�u aos reis da Espanha e de memorial pela vit�ria sobre os franceses em San Quint�n, em 1557. Rodeado de cad�veres reais e de rel�quias de santos colecionadas por toda a Europa, Felipe II passou seus �ltimos anos sumido na solid�o. (1992, p.165)
Nos anos seguintes, durante os per�odos que correspondem aos reinados de
Felipe III, Felipe IV e Carlos II marcam o in�cio da ru�na pol�tica e econ�mica da
Espanha. Durante essa �poca, o pa�s se transforma paulatinamente em uma na��o
de mendigos e de sucessivas fal�ncias. Na descri��o do declive da dinastia dos
�ustria na Espanha, real�a a decad�ncia f�sica dos monarcas que se manifestaria
nos tra�os biol�gicos, desde o prognatismo de Carlos V at� o retraso mental de
Carlos II, conhecido pelo eufemismo de o Enfeiti�ado.
Durante o s�culo XVII na Espanha, a monarquia continuou retendo uma boa parte do tesouro americano para pagar suas guerras e especialmente suas d�vidas. (...) O imp�rio espanhol tinha 40 milh�es de habitantes, incluindo 16 milh�es de europeus fora da Pen�nsula Ib�rica, a qual s� tinha 9 milh�es de habitantes. Mas a divis�o entre possuidores e despossu�dos tinha crescido � medida que a riqueza se distribu�a injustamente. As cidades estavam repletas de mendigos, alguns deles aut�nticos pedintes (...). os cegos eram especialmente privilegiados e estavam autorizados para cantar can��es e vender almanaques. Mas a maioria dos 150.000 miser�veis espanh�is da �poca de Cervantes e Vel�zquez era simuladora com talentos especiais para fingir �lceras sanguinolentas e febres s�bitas. Os ladr�es (...) especialistas em arrombar portas (...) podiam despir um transeunte no meio da rua. Os bandidos eram, �s vezes, velhos soldados sem ocupa��o, ou lavradores arruinados. Para al�m do mundo dos mendigos, ladr�es e p�caros havia uma enorme dist�ncia at� a nobreza. (1992, p.181)
O per�odo que corresponde aos sucessores de Felipe II se comp�e por classes
socias muito distantes entre si. Entre nobres e plebeus existe um abismo
instranspon�vel. A Nobreza composta por fidalgos, cavalheiros e pr�ncipes acumula
privil�gios especiais, como a isen��o de impostos, tribunais especiais, imunidade
legal perante as d�vidas e ainda outras vantagens, como o direito de portar espada e
de vestir-se de maneira proibitiva para os plebeus. “Todo indiv�duo estava sujeito a
regras, privil�gios ou aus�ncia deles isso dependia do estatus social de cada um.
Desta corte (...) surgiriam os an�es e os buf�es pintados por Vel�zquez, mas
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tamb�m o pr�prio filho e herdeiro do monarca, Carlos II, chamado o Enfeiti�ado.
Carlos II, o monarca final da casa de �ustria, foi pintado (...) como um dubl� dos
buf�es deformados de Vel�zquez: impotente, ignorante, imposs�vel” (1992, p.193).
Real�a o caos econ�mico da Espanha e comenta que nos momentos de
decad�ncia e de corrup��o surge a criatividade art�stica, no meio desta degrada��o
generalizada, se produz, paradoxalmente, um florescimento cultural, o chamado
Século de Ouro espanhol, o per�odo glorioso da literatura e da pintura na Espanha.
�poca de Vel�squez, El Greco, Murillo, Zurbar�n nas artes visuais; Lope de Veja e
Calder�n de La Barca, no teatro; Quevedo e G�ngora, na poesia. “Cervantes nos
ensina a ler de novo. Vel�zquez nos ensina a ver de novo. (...) Mas estes dois,
trabalhando desde o cora��o de uma sociedade fechada, foram capazes de redefinir
a realidade nos termos da imagina��o. O que imaginamos � t�o poss�vel como o
real.” (1992 p.192).
(...) de Carlos V a Felipe IV, Europa viveu “o s�culo espanhol em mat�ria de religi�o, intelecto, arte, pol�tica e tradi��o”. N�o foi este o �ltimo exemplo de um vasto imp�rio sobrestendido, inconsciente de suas muitas falhas, mas criando de todas as maneiras, na corrup��o e na decad�ncia, o fermento necess�rio para alcan�ar o ponto mais alto da criatividade art�stica. Pois apesar da intoler�ncia (...), a decadente monarquia espanhola do s�culo XVII haveria de coexistir com o maior florescimento da cultura da Espanha: o S�culo de Ouro, a �poca gloriosa da literatura e da pintura na Espanha, a idade dos pintores El Greco, Vel�squez, Zurbar�n e Murillo; dos dramaturgos Lope de Vega e Calder�n de La Barca; de los poetas Quevedo e G�ngora, e do romancista Cervantes (1992, p.179).
O di�logo com os textos ortodoxos mencionados ocorre de forma variada
segundo o termo de intertextualidade que designa as rela��es existentes entre os
textos. O romance tamb�m interage com obra pict�rica de Vel�zquez, Las Meninas.
Carlos Fuentes comenta que “somos o resultado do ponto de vista de m�ltiplos
leitores, passados, presentes e futuros. Mas sempre presentes quando l�em Don
Quijote o v�em Las Meninas”.
Santiago Juan Navarro comenta que Carlos Fuentes inspirado em Las Meninas
criou as an�s e os buf�es que aparecem no romance para representar o espa�o do
Pal�cio de El Escorial, no entorno do Senhor.
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Na f�bula criada por Fuentes, aparecem pr�ncipes, bruxas, feiticeiras, elixires, buf�es, an�s, e as caricaturas dos monarcas a rainha Joana a Louca transitando com o cad�ver de seu esposo, a rainha Isabel relacionando-se com os ratos do Pal�cio, Don Juan seduzindo todas as mulheres do Pal�cio, o rei desflorando as jovens do lugar, a Celestina carregando todas as suas frustra��es. “O quadro maneirista oferece para o autor a vis�o de um mundo em deforma��o. (2002 p.64).
Santiago Juan Navarro afirma ainda que a produ��o liter�ria de Carlos Fuentes
se caracteriza pelo uso recorrente de formas liter�rias inovadoras e autoreflexivas,
sempre acompanhadas da reflex�o historiogr�fica. Acrescenta que dentre todas as
obras de Fuentes, Terra Nostra representa a culmina��o da sua busca formal e
hist�rica: “Outros de seus romances experimentam igualmente as mesmas formas
metas-fict�cias ou indagaram com profundidade o passado da Am�rica, mas
nenhuma delas reproduz com tanta intensidade o conflito entre as duas tend�ncias
entrela�adas, a m�vel e a din�mica, que caracterizam a metafic��o historiogr�fica”
(p.51).
No contexto do romance, o discurso lineal da hist�rica vira ao avesso e
in�meros recortes temporais e espaciais evocam, num mesmo instante narrativo, o
Imp�rio de Tib�rio C�sar e as imagens milenaristas que prenunciam um apocal�ptico
final de mundo na cidade de Paris de 1999. Surgem, em aparente sintonia, figuras
hist�ricas e m�ticas que interagem com as da literatura espanhola dos s�culos XV e
XVI paralelamente e em aparente inconex�o com as personagens da literatura
universal. A verossimilhan�a se produz na premissa est�tico-liter�ria que legitima a
ruptura da linearidade dos relatos hist�ricos e o desdobramento temporal, validando
a narrativa aberta e heterog�nea no romance.
A hist�ria da Espanha se constr�i em torno na figura sociopol�tica do rei Felipe
II e da personagem liter�ria Celestina, em cujos l�bios tatuados est�o gravados e
regravados fatos marcantes da Hist�ria que d�o origem � narrativa. O Velho Mundo
discute as estruturas monol�ticas do poder representadas na figura do Senhor e
inseridas no edif�cio de El Escorial reconhecido na obra como Pal�cio.
Celestina � uma jovem camponesa que representa as ideias da resist�ncia ao
absolutismo; e que junto com Ludovico e com outros insurrectos formam um grupo
contr�rio ao poder arbitr�rio do Senhor, cuja figura faz refer�ncia a Carlos V e a
Felipe o Formoso. Os intertextos historiogr�ficos que conformam esse referencial de
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Terra Nostra conduzem para o estudo do aspecto meta-fictício da obra. Dentro do
mundo que se configura na primeira parte da obra, Carlos Fuentes recorre a uma
organização dualista na qual cada elemento se define por oposição a seu contrário.
O padrão comum que seguem as situações da organização dualista das oposições é
a de marcar o enfrentamento entre o mundo do poder representado pelo Senhor e o
mundo da imaginação emblematizado pelo pensamento heterodoxo.
Essas personagens transitam e se desdobram nos limites espaço-temporais
impulsionados pelo imaginário coletivo, que recorta o tempo histórico-linear para
localizá-lo num tempo de fundação. A narrativa está permeada, de início ao fim, pela
linguagem onírica; os sonhos são fundamentais na construção do relato. Polo Febo
sonha com a gênese do homem; ao encerrar o primeiro episódio, Celestina anuncia
que vai contar um conto fundamentado num sonho; mais adiante, Felipe, Celestina,
Ludovico e Simão se encontram no bosque e cada um deles relata seu sonho; o
Senhor sonha um mundo imutável trancado entre os muros do seu Palácio.
Na obra Carlos Fuentes: Territórios del tiempo (1999), Jorge Hernández
comenta,
Fuentes capturou a essência concentrada do romance (...) sob o aspecto de um romance-sonho no qual várias épocas históricas se empalmam telescopicamente em uma espécie de metahistória poética e onírica; criou assim algo difícil de descrever e, em todo caso, jamais visto na literatura. Precisamente ante a constante tentação de que nossa história poderia haver sido diferente, perante os houvera que descarta o historiador (1999, p.18).
Os dois universos supõem encontros e reencontros para enfatizar o conflito
com um mundo representado pela maquinaria autoritária que rodeia o Senhor. A
gênese que abre o primeiro capítulo opõe-se ao apocalipse parisiense descrito, o
caos e o dinamismo das imagens iniciais se opõem à ordem estática da Espanha de
Felipe II, que o romance apresenta no episódio Vitória (p.52) e no qual a ortodoxia
do monarca espanhol se opõe ao mundo das heresias descrito na narrativa.
A praça caiu depois de uma luta feroz. Espalhou-se a notícia no acampamento: na hora seguinte entrava na cidade vencida e em sua memória escura e brilhante como as couraças dos mercenários alemães de seu exército, turva e líquida como as lagoas que
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rodeavam o burgo sitiado, ressuscitavam, atropeladamente, as imagens deste duro combate a heresia e as terras baixas de Brabante e da Bat�via, onde achavam ref�gio os pertinazes descendentes daqueles valdenses e insabattatos combatidos e vencidos em terra espanhola pelos long�nquos antecessores do Senhor e que com seu grupo grande de ajudantes e relapsos haviam achado um lugar propicio de ressurrei��o nestas comarcas do norte, tradicionalmente aptas para o recebimento e oculta��o dos hereges que como toupeiras ro�am de seus t�neis os alicerces da f�, tanto que em Leon, Aragon ou na Catalu�a mostravam-se e proclamavam-se com luciferina soberba � luz do dia, e assim facilmente eram perseguidos. (...) e assim sorriu amargamente o Senhor, os her�ticos parentes da austeridade (...) e que agora se chamavam adamitas, terminavam por servir o que diziam combater, avarentos, a riqueza e o poder, e isso bastava para justificar esta guerra contra os her�ticos, pr�ncipes rebeldes a Roma (...) “Toma sempre o exemplo do teu pai”, lhe havia dito desde crian�a ao Senhor sua m�e, “que em uma ocasi�o dormiu trinta dias seguidos com a armadura no corpo”. (...) Vit�ria deles, mas tamb�m da sapi�ncia b�lica, l�cida e gelada, iluminada pela f�, esfriada pela ci�ncia aprendida de seu pai, do Senhor. (TN, p.52,53).
Esse conflito narrado como uma anedota ficcional, semelhante � hist�ria da
Espanha do s�culo XVI de Felipe II, registra a batalha que teria dado origem ao
Pal�cio. Mas, a batalha de San Quintin, descrita no epis�dio acima, n�o foi contra as
heresias, como se afirma no romance, e sim contra a Fran�a. Essa constru��o
representa o prop�sito de Felipe de conglomerar seus antepassados mortos
abrigando-os num edif�cio retil�neo e sem arestas, pulcro. Mas, tamb�m almeja o
desejo de erguer um monumento que represente o triunfo da ordem e da
austeridade conquistada ap�s aquela vit�ria contra as heresias.
Como dito, o fato que deu origem � constru��o do mosteiro El Escorial foi a
vit�ria alcan�ada na Batalha de San Quint�n contra a Fran�a, em 1557. Terra Nostra
privilegia a luta do Senhor contra as heresias, isso mant�m a real causa b�lica num
plano inferior e o motivo estrat�gico-militar � depreciado, isto porque o romance
enfatiza a hist�ria no plano da luta de ideias e n�o a luta territorial entre as
pot�ncias.
Isso para Roland Barthes, A escritura do romance (1987, p.42), se deve ao
fato de que os narradores se revestem de fei��es diversas, de acordo com a
situa��o. “A voz do narrador encobre a ideologia do autor no n�vel do enunciado
narrativo”, reveste-se de fei��es diversas, muda de atitude, aparece e desaparece
de acordo com a motiva��o do autor do discurso.
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Preta e brilhante, turva e líquida memória do imediato. A praça caiu depois de uma luta feroz (...). O Senhor contemplou os chatos contornos dos países baixos e pensou que sua planura talvez exigisse um profundo escavamento para agir lentamente, ao passo que a acidentada Ibéria tentava a honra e o orgulho dos homens (...). O Senhor, entrando na cidade vencida pelo sítio, declarou-se a si mesmo ser digno da herança dinástica: em sua memória permaneciam trêmulas as imagens dos rostos arrancados pela pólvora, a carne mutilada e crua, os olhos e as mãos saltados pela balista e pelo canhão nos locais de combate onde tinham sido empregadas estas novidades; e a crueldade semelhante nos locais onde a luta havia obedecido aos velhos costumes senhoriais: os anéis da muralha enterrados na carne ferida pelos golpes de machado; a cal viva lançada nos olhos do inimigo; o combate corpo a corpo, cavalo a cavalo; a morte dos ginetes inimigos (...) atravessados pelas espadas do Senhor ao cair do cavalo, de barriga para cima, lutando como tartarugas (...) temíveis esquadrões de brilho preto nas couraças (...) e a uma hora da tarde o capitão da Bandeira do Sangue a colocou na mais alta ruína das torres devastadas, abriram-se as portas e desceram as pontes da cidade e o Senhor fez a sua entrada. (TN, p. 53-56).
Para possibilitar a compreensão de um longo período da história, a obra altera
as cronologias e acumula os fatos numa única geração. A personagem do Senhor,
representada principalmente como Felipe II, no romance, é o filho do rei Felipe o
Formoso e de Juana La Loca, quando na realidade é filho de Carlos I da Espanha
1500-1556, Imperador Carlos V da Áustria, e da rainha Isabel de Portugal (1503-
1539).
Muitos dos elementos na caracterização do Senhor são meramente fantásticos. A compreensão dum longo período histórico numa única geração resulta na alteração das cronologias. America é descoberta um século depois. O Senhor, representado principalmente como Felipe II, é o filho de Felipe o Formoso e de Joana a Louca, quando na realidade o foi de Carlos V e Isabel de Portugal. (...). No romance o Senhor contrai matrimônio com Isabel Tudor, mais nunca o consuma. Magoada pelo tratamento excessivamente delicado que recebe por parte do Senhor, seu marido, Isabel representada como uma ninfomaníaca retorna a Inglaterra, onde prepara a destruição da Armada Invencível. (2002 p.58).
Do ponto de vista político, o Senhor representa o poder autoritário concentrado
na figura do monarca absoluto. A visão que tem de si mesmo como o rei, o único,
faz com ele que se negue a ter descendência, constituindo-se assim mesmo como o
último monarca da sua dinastia. O Senhor aparece permanentemente envolvido
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numa luta paranóica contra todos os que ameaçam a sua autoridade. As novas
ideias e os descobrimentos são negados por decreto de lei. Os três náufragos, seus
irmãos, que representam a ameaça da sucessão, são confinados em seu enorme
mausoléu. Os dissidentes, como Miguel da Vida e o Cronista, são aniquilados ou
condenados às galeras.
Não, não, eu tenho a razão, culmine aqui e agora nossa linhagem, que morra o mundo conosco, mas que não mude, o mundo está muito contido dentro dos limites de este Palácio, Guzmán. (...) Queime-se um jovem por um crime nefasto e por nenhum outro; proteja-se a vida, mas castigue a culpa do meu Cronista enviando-o às galeras como cura de inocência; (...) olha o mapa pendurado no muro: olha seus limites (...) jura-me que não há mais nada,enlouqueceria se o mundo se estendesse uma polegada para o além dos confins que conhecemos: se assim fosse, teria que apreender tudo de novo, fundar tudo de novo, e não saberia mais do que sabe o peão, ou você mesmo; minhas costas, como as do Atlas, estão fatigadas; não suportam mais peso (TN, p.325-327).
O episódio, Todos os meus pecados (p. 89), descreve a visão de mundo
mediante a percepção que o monarca tem de si mesmo. No interior do Palácio em
construção, há um quadro religioso pintado por Frei Julian, o retratista oficial da
corte. O quadro se expressa utilizando narrativas bíblicas e o Edifício utiliza
narrativas históricas para ilustrar a pluralidade de ideias daquele momento histórico
iniciado pelo pensamento humanista. Essas vozes funcionam como olhares críticos
que questionam o ideal unívoco e fechado da monarquia espanhola representada
pela voz do Senhor, que se mostra atormentado e dividido em suas certezas
pretensiosas de paralisar o tempo num mesmo espaço.
O Quadro: Banhado pela atmosfera luminosa e pálida dos espaços italianos, um grupo de homens com as costas nuas para o espectador escuta a pregação da figura pousada sobre um altar de pedras no ângulo de uma praça vazia e imensa, cujas perspectivas retilíneas se perdem no fundo da gaze transparente e verdejante (...)O Palácio: Acima, na vasta planície circundante, amontoam-se os blocos de granito. Sessenta mestres canteiros com suas equipes trabalham o mármore e as carretas de bois chegam carregadas de pedra. Pedreiros carpinteiros, ferreiros, ornamentadores, ourives e lenhadores ergueram suas oficinas, tabernas e chosas em campo raso, esmagadas pelo sol, enquanto as primeiras construções se alicerçavam junto do castanhal, último refúgio da planície e da serra talhadas pela cólera da urgente edificação ordenada pelo Senhor
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Dom Felipe ao regressar de sua viagem vitoriosa contra os hereges de Flandes. (...)O Quadro: O grupo de homens nus d� as costas para o Senhor e para a Senhora para olhar o Senhor que olha seu olhar, a Senhora olha os homens. Guzm�n olhar� para seus amos que olham o quadro. Erguer�, perturbado, o olhar: e o quadro olha para ele.
(TN, p.90-96).
A complexidade do esquema direcional dos olhares, em que o espectador �
percebido, culmina com a ruptura final das estruturas entre a obra de arte e a
realidade exterior: “o quadro olha para ele”. O efeito desta aparente invers�o dos
pap�is no ato da percep��o homenageia o quadro Las meninas. Frente � obra de
Vel�zquez, Carlos Fuentes diz que,
(...) estamos sendo vistos. N�o estamos s�s. Estamos rodeados. N�o estamos sozinhos. Estamos rodeados pelos outros. Lemos, e somos lidos. Ainda n�o acabamos a nossa aventura. (...) Somos o resultado do ponto de vista de m�ltiplos leitores, passados, presentes e futuros. Mas sempre presentes quando veem As Meninas. (...) Vel�zquez e toda corte nos convidam a unir-nos � pintura, a entrar nela. Mas ao mesmo tempo, o pintor d� um passo em frente e se movimenta at� n�s. Esta � a verdadeira din�mica de esta obra mestra. Concede-nos a liberdade de entrar e de sair da pintura. Somos livres para ver a pintura, e por extens�o, ao mundo, de maneiras m�ltiplas, n�o s� de uma forma dogm�tica e ortodoxa. E estamos conscientes de que a pintura e o pintor olham para n�s. A pintura de Vel�zquez est� pintando, a tela do pintor na pintura, vira as costas para n�s, � uma obra inconclusa, em tanto que n�s estamos olhando aquilo que consideramos ser produto acabado. (1992, p.192).
Todos os fatos transcendentais confluem sobre o Pal�cio-necr�pole de El
Escorial, onde, o Senhor espera a chegada de trinta f�retros contendo os restos
mortais dos seus antepassados. Todas as personagens do romance far�o
refer�ncias a essa constru��o, relatar�o suas pr�prias vers�es e suas hist�rias
pessoais e, por meio das hist�rias, a narrativa reconstruir� o passado de cada uma
delas, assim como a origem e a natureza dos conflitos. Enquanto espera a chegada
de seus antepassados mortos para serem sepultados no Pal�cio, o Senhor apressa
e acelera a constru��o do mesmo, a demora o deixa perturbado. No interior da
cripta, o Senhor contempla um tr�ptico an�nimo trazido da cidade italiana de Orvieto,
posteriormente se sabe que se trata de uma obra de Frei Julian. As passagens que
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descrevem cenas bíblicas sob a epígrafe O quadro se alternam com passagens em
que se comenta a arquitetura de El Escorial sob a epígrafe o Palácio.
É visto no genuflexório, com as mãos unidas sobre o braço de veludo e o cão dormitando aos seus pés. Passará a manhã contemplando o quadro (...). Bateu três vezes no peito e o alão rosnou com inquietação. Batidas e rosnados ressoaram ocamente nas abóbadas, nas paredes e nos pisos nus. O Senhor se enrolou, tossindo, na capa e repetiu os três anátemas. . Oculto por detrás de uma coluna da cripta, Guzmán pode dizer que imaginava o Senhor, ao bater em seu peito, e imaginou que o Senhor, em seu peito pensava: que não devia estar ali, ajoelhado, examinando um quadro para poder examinar sua consciência, mas ativamente empenhado em apressar esta construção que, por um motivo ou outro, atrasava-se indevidamente. As diversas procissões ordenadas pelo Senhor estavam a caminho; aproximavam-se; as escutas e mensageiros diziam tê-las visto, arrastando seus pesados encargos, por montes rasos e arborizados, perto das costas, paradas nos albergues, abrigadas entre os pinheiros, desamparadas nos alfobres, impedidas pelos perigos; mas avançando sem cessar até o ponto convencionado e ordenado pelo Senhor: o mausoléu do Palácio. E o Senhor só tinha olhos e vontade para o suposto mistério de um quadro italiano. (TN, p.90).
A reflexão desse momento o faz repensar em seus princípios rígidos no que
se refere à tradição, e sobre o modo como sustenta esses princípios para o beneficio
da classe que ele mesmo representa. Essa percepção de mundo único e fechado se
concretiza com a edificação do Palácio, cuja pretensão final é a de preservar,
legitimar e eternizar o ideário da monarquia. Esse microcosmo será em última
instância um mausoléu não apenas para seus antepassados, mas também para si
próprio; uma edificação inerte onde o Senhor embalsama e amordaça a realidade da
Espanha com a pretensão de aprisionar a realidade entre suas paredes.
Não tinha, ele mesmo, ditado uma vontade inequívoca? Construir com todo furor? (...). O Senhor tossiu: sentia o nariz seco e a garganta ressecada. (...) E a sua sede foi acalmada pela ideia eternamente cravada em sua mente de que por todo desgaste material imediato estava a riqueza inesgotável da vida eterna:construía para o futuro, sim, mas também para a salvação, e a salvação não tem tempo; não é somente uma ideia (...) aqui nestas moradas espanholas, imitando as do céu, se estaria, sem diferença de dia ou de noite, fazendo o ofício dos anjos, se rogaria pela salvação dos príncipes, pela conversão dos seus estados. (TN, p.90,92)
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A vis�o de mundo mediante a percep��o que o monarca tem de si mesmo. O
Senhor contempla um tr�ptico an�nimo trazido da cidade italiana de Orvieto,
posteriormente se sabe que se trata de uma obra de Frei Julian. As passagens que
descrevem cenas b�blicas est�o destacadas sob a ep�grafe O quadro e se alternam
com as passagens em que se comenta a arquitetura de El Escorial sob a ep�grafe O
Palácio. O di�logo entre eles se constitui em uma nova oposi��o que incorpora um
numeroso contingente de conceitos que se arquitetam radicalmente pelos seus
contr�rios: a heterodoxia – ortodoxia; antropocentrismo – teocentrismo; hedonismo-
ascetismo; afirma��o do presente – nega��o do tempo; perspectivismo –
bidimensionalidade; dinamismo – estaticismo; metamorfose – mundo imut�vel;
mundo aberto – mundo lacrado. O quadro incorpora elementos do programa est�tico
de Carlos Fuentes e O Pal�cio, de forma antag�nica, se apresenta como ant�tese do
mesmo.
Em a Quinta jornada (p.613), frei Juli�n dissolve as formas do quadro com um
espelho m�gico, logo elas reaparecem no Mundo Novo submetidas a novas
combina��es. A tela, agora vazia, se desenha com formas diferentes que pouco a
pouco concretizam uma nova obra pict�rica, que pela forma como se descreve
sugere El Jardín de las delícias, de El Bosco.
O quadro de Orvieto, (...) esse quadro vindo, dizia-se, da p�tria de alguns pintores tristes, austeros e en�rgicos, o quadro que na imagina��o do Senhor tudo o que aqui ocorreu tinha visto, escutado e dito, o quadro desaparecia diante de seu olhar: seu verniz se partia, farrapos inteiros da tela se desprendiam como pele de uva, como roupagem de p�ssego, e as formas ali pintadas (...) deixavam de ser formas discern�veis e concretas, viraram outra coisa, pura luz ou puro liquido, e como um arco de luz ou um rio de cores, mesclados e fluentes, corriam por cima da cabe�a do Senhor, iam-se, iam-se... O Senhor procurou, com ar enlouquecido, a origem da for�a que despovoava o quadro e o transformava em arroio de ar crom�tico; com um s� movimento nervoso deu as costas (TN, p.615).
Frente a essas m�ltiplas metamorfoses, o Pal�cio se mant�m de in�cio ao fim
como “um quadril�tero de granito, t�o profundo quanto comprido, concebido como
um campo romano, severo e sim�trico, uma fortale�a (...) por fora um virtuoso
castelo com �ngulos de basti�o, implacavelmente austero e talhado como uma �nica
pe�a de granito” (p.99). Muitos dos elementos que neste epis�dio surgem de forma
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fugaz, adquirem maior consistência em outros momentos do romance. Por exemplo,
a história do quadro confirma a sua condição protéica frente às formas rígidas do
Palácio.
A criação do Palácio de El Escorial tem como referencial a vida de Felipe II e
as numerosas obras sobre o tema que Carlos Fuentes cita na biografia conjunta
incluída em Cervantes o la crítica a la lectura. O mesmo acontece com relação à
morte excrementícia do Senhor que rememora a terrível agonia de Felipe II e, em
alguns dos detalhes, anuncia a de Francisco Franco, que ocorre no mesmo ano da
publicação de Terra Nostra (1975). É interessante assinalar que há algumas
coincidências curiosas, como o fato de que a agonia do ditador espanhol Francisco
Franco se prolongara durante trinta e três dias, o mesmo período que Carlos
Fuentes determina para a agonia da sua personagem o Senhor; assim como o
transporte misterioso do Senhor, em seus momentos finais, para o Valle de los
Caídos, outra das conhecidas necrópoles castelhana. O mesmo lugar onde hoje
descansam os restos mortais do Generalíssimo Franco.
Em oposição ao dialogismo explícito do quadro, o Palácio é uma obra
hermeticamente selada que se fecha sobre si mesma, o espaço onde o Senhor vive
para combater tudo aquilo que é diferente ou mutável. Trata-se de uma construção
feita à medida do Senhor, onde o monarca vive aterrorizado perante ideia de um
mundo em transformação, uma morada segura desde a qual pretende conservar e
manter a realidade sobre controle.
As verdades são eternas, Guzmán, e não quero que mudem, não quero que a sabedoria primária que minha estirpe tem conservado durante séculos se transforme em objeto de usura e sela dilapidada (...). Eu estou com a razão, culmine aqui e agora nossa linha, morra o mundo conosco, mas que não mude, o mundo está contido dentro dos limites de este Palácio (...). Guzmán, a única dor que podes tirar de mim é o medo de que as coisas mudem, que o mundo seja algo mais que o mundo contido dentro do meu palácio (...). Guzmán, percebe: eu matei os inocentes para assegurar a permanência do meu mundo (...) a razão da minha vida; não destruas a pedra fundadora da minha existência; aqui, dentro deste cercado de pedra do meu Palácio está minha casa sobre a terra (...) Espanha cabe na Espanha e Espanha é este Palácio (TN, p.325-326).
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O cr�tico da obra de Carlos Fuentes, Raymond L. Williams, comenta em Los
escritos de Carlos Fuentes (1998), que o edif�cio El Escorial inicia sua constru��o
oito s�culos ap�s a constru��o da Mesquita de C�rdoba (786); dois s�culos depois
da Alhambra de Granada (1354-1391) e aproximadamente um s�culo depois da
viagem de Colombo, que coincide com a unifica��o da Espanha em 1492. O cen�rio
hist�rico de Terra Nostra assim como a constru��o do edif�cio El Escorial abrange a
Espanha de Felipe II no s�culo XVI, reinou de 1556 a 1598, a Inquisi��o, o
Renascimento europeu, a Reforma e a Conquista da Am�rica.
Quando Carlos V abdica da Coroa da Espanha em janeiro de 1556,
transferindo suas propriedades e poderes ao seu filho Felipe II, a Pen�nsula Ib�rica
ainda n�o era conhecida com o nome de Espanha, pois consistia em um
aglomerado de entidades at� ent�o relativamente aut�nomas pol�tica e
economicamente, mas que mantinham alian�as com a Coroa espanhola.
No ensaio El espejo enterrado (1992), Carlos Fuentes comenta que em
tempos remotos o territ�rio era habitado por grupos �tnicos primordiais, os celtas
indoeuropeus, os iberos, e os celtiberos da meseta central. Na sua forma��o
cultural, a Pen�nsula do ano 1000 a.C., recebe influ�ncias culturais dos gregos, dos
fen�cios e cartagineses com pequenas feitorias e col�nias comerciais
semipermantes nas costas. Os iberos chegam � pen�nsula desde o sul dois mil anos
antes Cristo aproximadamente e os Celtas, novecentos anos antes de Cristo pelo
norte, essa miscigena��o teria dado origem � cultura celtib�rica, centro da
civiliza��o agr�ria espanhola. Do ponto de vista etimol�gico o voc�bulo Hispania
deriva do p�nico, que significa terra de coelhos; j� Ibéria � uma palavra de origem
grega, referente ao rio Iber atualmente o Ebro.
O Velho Mundo de 200 a.C. apresenta a Pen�nsula Ib�rica como um territ�rio
riqu�ssimo do ponto de vista cultural; sua hist�ria escrita com os nomes de reis e de
rainhas que a conquistaram. Nessas terras permanece a mem�ria dessas tribos pr�-
romanas que nela deixam seus vest�gios – como a cultura megal�tica dos tartessos,
c�nios ou estr�mnios – agregam-se a ela povos e dialetos resultantes da conviv�ncia
com invasores, com comerciantes e com os colonizadores cartagineses, fen�cios,
gregos.
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� peninsular chegam os romanos no ano 200 a.C. que ocupam e dominam o
territ�rio da Hispania no contexto da segunda Guerra. P�nica (218 a.C – 201 a.C.).
Carlos Fuentes escreve que “O rosto da Espanha tem sido esculpido por muitas
m�os: iberos e celtas, gregos e fen�cios, cartagineses, romanos e godos, �rabes e
judeus. O cora��o da identidade espanhola acaso come�ou a bater muito antes do
registro hist�rico, h� 25.000 ou 30.000 anos, nas cavernas de Altamira, Buxo ou Tito
Bustillo, no reino cant�brico de Ast�rias” (p.19-20).
(...) durante s�culos, o Mare Nostrum foi o centro geogr�fico onde Europa, �sia e �frica se encontraram e onde as suas civiliza��es se fertilizaram mutuamente, filosofia, literatura, pol�tica, com�rcio, guerra, religi�o e arte: nenhuma faceta da civiliza��o comum � Europa, �sia e �frica seria compreens�vel sem a forma que lhes imprimiram as ribeiras do Mare Nostrum. O homem mediterr�neo podia atrever-se a explorar timidamente as costas da �frica at� o sul. Mas para o ocidente, n�o havia nada a n�o ser o medo e o mist�rio, no “nosso mar” sen�o o mar do mist�rio: Mare Ignotum. (...) a Espanha se transformou em algo assim como numa rua sem sa�da do Mediterr�neo. N�o havia nada al�m da Espanha e uma das pontas mais ocidentais da pen�nsula foi nomeada de Cabo Finisterre, o cabo do fim do mundo. A cultura espanhola foi determinada, no mais alto grau, por esta finalidade, esta excentricidade de sua posi��o geogr�fica. Chegar � Espanha significava ficar ali porque n�o havia nada depois da Espanha, exceto a op��o de viajar de regresso ao oriente, ao ponto de partida. Este duplo movimento formou as duas culturas espanholas. Uma agr�ria, profunda que se formou de costas ao mar. Esta era a cultura dos iberos. O Ebro, o rio dos iberos, era seu habitat, e iber significa rio (...). Os iberos chegaram � pen�nsula desde o sul h� dois mil anos antes Cristo; 900 a.C. se encontraram com os celtas chegados do norte e se fundiram para criar a cultura celtib�rica que constituiu o cora��o da civiliza��o agr�ria profunda da Espanha, viva at� os dias de hoje. Cultura de pastores e de aldeias, de camponeses e de instintos tribais, alimentados de carne, queijos e p�o, seu isolamento foi crescendo na medida em que o litoral mediterr�neo, da Catalunha at� a Andaluzia, se transformou num anel de popula��es estrangeiras, emp�rios e portos comerciais. Essa presen�a mediterr�nea, certamente mais comercial que pol�tica foi encabe�ada pelos fen�cios mil anos antes de Cristo. (1992, p.36)
A cultura hispano-romana surge ao longo de s�culos de dom�nio nas prov�ncias
da Hispania: os costumes, a religi�o e as leis s�o assimiladas plenamente tanto pela
popula��o nativa da pen�nsula como pelos representantes do Imp�rio. A civiliza��o
romana traz consigo o latim, al�m de aquedutos, leis, organiza��o social. O latim
vulgar, falado pelos soldados romanos, se incorpora rapidamente ao uso popular, e
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as tropas romanas recebem as influ�ncias dos dialetos locais. O interc�mbio
lingu�stico espanholiza o latim dando origem �s l�nguas romances (1992, p.37).
Carlos Fuentes acrescenta que “com Roma chegaram as forma��es mais
duradouras da cultura espanhola. L�ngua, direito, filosofia, uma vis�o da hist�ria
universal, comunica��es (...) governo e institui��es p�blicas org�nicas e duradoras”.
Os signos externos da romaniza��o est�o presentes por toda a Espanha: o teatro em M�rida, que data de 18 a.C.; a ponte de Alc�ntara, acabado em 105 a.C.; o famoso aqueduto de Segovia, constru�do na primeira cent�ria da nossa era. Mas os signos internos foram, em primeiro lugar, a linguagem, �s vezes preciso, outras epigr�fico, orat�rio, ret�rico como uma frese de C�cero, eficaz como um despacho de Julio C�sar, �ntimo como um poema amoroso de Catulo, �pico como um poema de Virg�lio. (1992, p.41-43)
Em 409 d.C. os visigodos invadem a pen�nsula e se instalam nela durante tr�s
s�culos. Para proteger a Hispania se estabelece uma unidade pol�tica que abrange
todo o territ�rio peninsular at� a parte sul da Fran�a, exceto a Gal�cia (reino da
Suevia); teoricamente, esses acontecimentos demarcam o in�cio do Estado Hispano.
Na sequ�ncia hist�rica, entre os anos 586 e 601, o primeiro o rei cat�lico visigodo,
Recaredo I unifica a religi�o entre hispano-romanos e visigodos, este fato conforma
a primeira espanholiza��o de um rei, e a fus�o da Espanha federal romana-visigoda.
Uma figura tem sido aclamada como o salvador da civiliza��o na Espanha, o primeiro fil�sofo medieval, na verdade, o primeiro espanhol. (...) S�o Isidoro, o bispo de Sevilla, foi o mais importante espanhol de toda a era que transcorre entre a queda de Roma e a invas�o mu�ulmana da pen�nsula. (…) San Isidoro foi um dos fundadores do Imp�rio Espanhol. (...) em mar�o do ano 634 (...) quatro de abril, Isidoro morreu. Menos de um s�culo depois, a Espanha forte, crist�, legalista e articulada que Isidoro tanto desejou, enfrentou a sua maior amea�a. Um novo poder surgiu para desafi�-la (...). Em 711(...) o Isl� chegou �s ribeiras do sul da Europa, invadindo a Espanha goda. (1992, p.53-55).
No per�odo de 711 a 1492, a pen�nsula conquistada pelos �rabes procedentes
do norte da �frica recebe o nome de Al-Andalus. Os islamitas s�o recebidos com
entusiasmo pelos judeus perseguidos pelo reino visigodo; e ap�s lutas territoriais e
ideol�gicas (711-1031) o Califato de C�rdoba, vive seu per�odo de maior esplendor
na Pen�nsula Ib�rica. Na sequ�ncia, o territ�rio ocupado forma um �nico estado, at�
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que as divis�es internas provocam a instabilidade pol�tica, que leva a anarquia, ao
retalhamento, � fragmenta��o do territ�rio conquistado, � desagrega��o e ao fim do
califatado.
Os crist�os aproveitam a desordem e iniciam o movimento da Reconquista, o
Magno Fernando I (1016-1065), Rei de Le�o e Castela conquista Coimbra em 1064,
e se inicia o longo processo em busca da hegemonia peninsular mediante uma
pol�tica da expans�o de Castela.
Durante o dom�nio romano, a Diocese da Hispania dependente da prefeitura
das Galias fica dividida administrativamente em v�rias prov�ncias, essas variam em
n�mero e em delimita��o, mas ultrapassam os limites geogr�ficos da pen�nsula. Os
origin�rios da pen�nsula com posse da “cidadania romana” se identificam como
hispanos, e a popula��o nativa sem a cidadania se identifica pelo nome da tribo
celta a que pertence: ilercavones, edetanos, contestanos, alcades, e outras. A
denomina��o da Hispania permanece para al�m da queda do Imp�rio Romano e
com o tempo sofre transforma��es lingu�sticas de acordo com a ocupa��o
geogr�fica: pelos romanos Spanna – Hispania; pelos visigodos e mu�ulmanos
Spania; e pelos reinos crist�os Espanha.
Submetida aos �rabes por quase oitocentos anos, a Pen�nsula Ib�rica dividida,
conquistada e reconquistada alcan�a o s�culo XV politicamente fragmentada.
Unifica-se ap�s o casamento dos Reis Cat�licos Isabel I de Castela e Fernando II de
Arag�o, que conseguem em nome de uma �nica coroa a uni�o dos territ�rios que
atualmente conformam o pa�s Espanha. Com o Descobrimento da Am�rica em 1492,
para a coroa espanhola se abrem enormes possibilidades econ�micas que
fortalecem e confirmam seu poderio.
Esses acontecimentos s�o significativos para a Espanha, pois marca a sua
passagem do mundo medieval para o mundo moderno e estabelece a unidade
idiom�tica espanhola. O castelhano como a l�ngua oficial do reino torna-se um
instrumento de poder que se estende tanto aos territ�rios da Am�rica como a todas
as terras pertencentes � coroa da Espanha, onde se estabelece uma pol�tica exterior
comum marcada pelo carisma diplom�tico de Fernando de Arag�o, cuja
consequ�ncia principal ser� a hegemonia hisp�nica na Europa entre o s�culo XV e o
XVII.
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A casa dos �ustria se inicia com o casamento de Juana, filha dos Reis
Cat�licos Fernando de Arag�o e Isabel de Castela, com Felipe o Formoso, da
�ustria. O filho herdeiro desse extenso Imp�rio � Carlos V da �ustria, Carlos I da
Espanha (1500-1558), pai de Felipe II que se transforma em personagem
fundamental para que Terra Nostra elabore o conflito entre os mundos criados na
obra. A genealogia utilizada na f�bula hist�rica do romance abrange esses
antepassados e inclui tra�os da personalidade do pr�prio Felipe II (1527-1598) e de
seus descendentes Felipe III (1578-1621), Felipe IV (1605-1665) e Carlos II (1661-
1700).
Para Carlos Fuentes, “Carlos V foi o criador do reino espanhol. O dom�nio do
Sacro Imperador Romano atingiu propor��es gigantescas, n�o tinha limites” (1992,
p.159). Seu poder alcan�ava os quatro cantos da terra: ao Norte Alemanha e os
Pa�ses Baixos; ao Leste, N�poles, Sic�lia e Cerde�a; ao Sul, todos seus dom�nios
africanos; ao Oeste as Am�ricas e, depois do descobrimento de Vasco N��ez de
Balboa em 1515, todo o Pac�fico at� as Filipinas. Carlos V governou o primeiro e
maior de todos os imp�rios modernos. Nunca ningu�m teve tanto poder, nem os
C�sares haviam controlado tantos territ�rios, tantos povos, tantas culturas, nem
tanta riqueza.
Era neto dos Reis Cat�licos, Fernando de Arag�o e Isabel de Castela, e filho da rainha Juana, quem perdeu a raz�o, obcecada pelas infidelidades de seu marido, Felipe o Formoso. (...) seu filho foi levado ao trono da Espanha com a idade de 16 anos. (...) Carlos havia recebido sua vasta heran�a, n�o mediante fatos de armas, sen�o gra�as �s alian�as matrimonias e outros arranjos seculares aos que a Casa de Habsburgo era particularmente adepta. (...) Mas Carlos, desde a idade de seis anos, havia herdado os Pa�ses Baixos. Agora, lampinho e juvenil, mostrava ao mundo o estigma da dinastia dos Habsburgo: uma mand�bula (...) t�o pronunciada que n�o lhe era imposs�vel mastigar normalmente ou ainda fechar a boca. Dizia-se que uma mosca poderia penetrar os l�bios Hamburgo, sem dificuldade, em qualquer momento. O jovem rei se deixou crescer a barba. Vestiu uma impressionante armadura. Montou em seu cavalo e foi pintado em pose soberba pelo artista italiano Tiziano. Carlos I da Espanha, melhor conhecido pelo seu t�tulo de Sacro Imperador Romano Germ�nico, Carlos V, (...) Era o herdeiro da dinastia dos Habsburgo, a mais poderosa casa real das Europa. (1992, p.159-161).
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De outro momento da vida do monarca, o historiador Francisco Ugarte
apresenta a versão retirada de textos recopilados sobre o imperador Carlos V aos 25
anos de idade e, posteriormente, nos seus últimos dias de vida.
(...) É de estatura mediana, branco, pálido; o corpo bem proporcionado, (...) aspecto grave, mas não cruel nem severo (...) toda a sua face inferior, a qual é tão longa que não parece natural de aquele corpo; parece postiça, onde ocorre que nem pode, fechando la boca, juntar os dentes inferiores com os superiores; os separa um espaço de um dente, que nem pode falar, máxime em acabar da cláusula, balbucia alguma palavra, a qual por isso não se entende bem. (...) Em este plácido lugar permaneceu por um ano e meio em retiro, afastado das cidades e da vida política, acompanhado pela ordem dos Jerônimos, que guiaram espiritualmente ao monarca até seus últimos dias. Finalmente, em 21 de setembro de 1558 faleceu de malária trás um mês de agonia e febres, causado pela picada de um mosquito proveniente das águas estancadas de um dos estanques construídos pelo pintor e experto em relógios e engenheiro hidrográfico Tiziano. (1996, p.225, 229).
Carlos V ascende ao trono em 1517 e durante seu reinado enfrenta diversos
conflitos e lutas para consolidar seu poder absoluto: luta contra as forças dos
comuneros e as derrota em 1521; contra as nações indígenas da América e as
derrota pela mão de Hernán Cortés e Francisco Pizarro; contra o novo poder
islâmico, o Império otomano que já tinha se expendido até Viena; contra os
protestantes na Alemanha e, contra seu rival francês Francisco I durante vinte e
cinco anos. Carlos V mostra pouco interesse pela Inquisição, estabelecida
oficialmente em 1478, embora a tenha usado para deter o crescimento do
Iluminismo na década entre 1520 e1530. Cansado de tanta luta para manter o poder
triunfante, Carlos V se retira exausto ao Mosteiro de Juste, onde morre em 1558.
A partir da derrota das comunidades de Castela em Villalar e dos astecas em Tenochtitlán, Carlos V não só consolidou o Estado centralizador espanhol (...). Carlos transformou a Espanha, de uma comunidade puramente peninsular, empenhada em sua própria cruzada contra o Islã e convocada a encontrar um compromisso entre seus componentes triculturales, em um império continental (...). Prematuramente exausto, Carlos se retirou ao Monastério de Yuste, nas isoladas serras de Estremadura. Aí, se deteve arrumando seus relógios e, às vezes, ensaiando seu próprio funeral. A morte finalmente chegou em 1558. Tiziano, quem havia pintado a poderosa figura equestre armada, agora pintou um velho e simples cavaleiro, ligeiramente encurvado, totalmente vestido de preto e sentado em
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uma cadeira de couro, olhando com nostalgia, ou com distra��o, um mundo com o qual, nunca se entendeu. (1992, p.165).
Os documentos oficiais da Pen�nsula Ib�rica informam que Felipe II nasce em
Valladolid em 1527 e morre no Pal�cio-Monast�rio de S�o Louren�o de El Escorial
em 1598. Educado nas ci�ncias e nas artes, apreende latim e franc�s, mas fala
portugu�s e castelhano por op��o. Seu pai, o Imperador Carlos, se preocupa
pessoalmente com sua educa��o pol�tica e diplom�tica. O interessa na m�sica e na
arquitetura. A genealogia privilegiada de Felipe o coloca como o �nico filho herdeiro
ao trono de Carlos I da Espanha – o Imperador Carlos V – e de Isabel de Portugal;
neto de Joana de Castela e de Felipe I, por via paterna; e de Manuel I de Portugal e
de Maria de Castela pela via materna.
Ugarte relara que Felipe foi o rei soberano da Espanha, desde 1556; de
N�poles e Sic�lia, a partir de 1554; de Portugal e Algarves, desde 1580; e da
Inglaterra ao contrair matrimonio com Maria I, entre os anos de 1554 e 1558. Em 22
de outubro de 1555, na confer�ncia de Bruxelas, Carlos V concedia a Felipe II o
senhorio dos Pa�ses Baixos; as coroas de Castela, Arag�o e Sic�lia, em 16 de
janeiro de 1556; e o condado de Borgonha. Felipe II se apresenta como um rei
absolutista.
O filho primog�nito de Carlos V e da rainha Isabel de Portugal nasceu em 1527. Na sua juventude foi educado por Juan Mart�nez Siliceo e Bartolomeu de Carranza; atra�am-lhe particularmente a matem�tica e a arquitetura, mas demonstrou pouca destreza para aprender idiomas estrangeiros. Essa limita��o foi provavelmente uma das raz�es pelas que preferiu enclaustrar-se na Espanha; a partir de 1559, nunca viajou fora de sua p�tria. Tamb�m gostava da pintura e adquiriu quadros do Bosco, Brueghel, Tiziano e outros maestros para expor no El Escorial. Felipe II teve quatro esposas: Maria de Portugal, que morreu ao dar � luz seu filho (quem tamb�m morreu antes de chegar a se rei); Maria Tudor, quem morreu sem deixar descend�ncia; Isabel de Valois, que lhe deu duas filhas e Ana de �ustria, que deu � luz a Don Felipe (que reinou como Felipe III).
(1996, p.80)
Na pessoa de Felipe II, O Prudente, se concretiza a Uni�o Ib�rica durante
sessenta anos. Felipe II se casa quatro vezes: com sua prima Maria de Portugal
(1543-1545), que morre ao dar a luz seu filho Carlos em 1545. Permanece casado
com Maria Tudor entre os anos 1554 e 1558, essa uni�o pol�tica com a rainha da
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Inglaterra – onze anos mais velha – possibilita que a Espanha influencie os assuntos
da Inglaterra, como por exemplo, a restaura��o do catolicismo, em 1555, Felipe �
convocado aos Pa�ses Baixos, Maria morre no mesmo ano, e esse fato marca o fim
da conex�o entre os dois reinos.
Em 1557 o monarca derrota os franceses na batalha de San Quint�n e em
1558, na batalha de Gravelines. Aos 3 de abril de 1559, firma a Paz do Cateau-
Cambresis ao casar-se com a filha de Enrique II, Isabel de Valois (1559-1568).
Conclu�da a paz, Felipe II retorna a Espanha e reside alternadamente em Madri, que
nomeia como capital do reino, e em Villegiatures, onde constr�i o Monast�rio El
Escorial, para cumprir um voto feito por ocasi�o da vit�ria obtida na batalha de San
Quint�n. A sua �ltima esposa � Ana de �ustria (1570-1580). Durante seu reinado os
sucessos mais importantes da cultura europeia foram a inven��o da imprensa, a
rebeli�o de Mart�n Lutero e a Reforma e os escritos de Erasmo.
Carlos Fuentes comenta que Felipe II era um homem obcecado pelo trabalho,
preferia “afogar-se nos pap�is”, n�o concedia entrevistas, conhecia todos os
arquivos e o que cada um deles continha. Escrevia mais r�pido que qualquer um dos
seus secret�rios, lia e supervisava tudo o que chegava at� suas m�os. Um
contempor�neo do monarca comenta que “o rei � do tipo de pessoa que n�o se trai
nem se mexe por nenhuma circunst�ncia, mesmo que tenha um gato dentro das
cal�as” (p.174). Comenta os motivos pelos quais Felipe II ficou conhecido como o rei
Prudente.
(...) N�o lhe agradava conceder entrevistas. Preferia afogar-se nos pap�is. Comentava-se que escrevia mais r�pido que qualquer secret�rio, conhecia tudo o que continham seus arquivos, e tudo erasupervisado por ele. Um contempor�neo do rei observou: “o rei � do tipo de pessoa que n�o se trai nem se mexe por nenhuma circunst�ncia, mesmo que tenha um gato dentro das cal�as”. Foi chamado “O Prudente”, um eufemismo para indicar a sua extrema dificuldade em tomar decis�es. Mas foi fiel ao seu ideal de restaurar a unidade crist� junto com o poder da Espanha, seu imp�rio e a sua dinastia. Tamb�m se deu a si mesmo um modelo de vida, seu pr�prio pai, Carlos V, ao qual idealizou de tal forma que jamais pode comparar-se a ele. Descrito como um homem pequeno, de voz sumamente baixa, os olhos vermelhos de tanto ler documentos de Estado, rara vez sorridente (...) seu olhar meio sonhador, meio cruel, t�o ausente como astuto, faz-nos perguntar se Felipe foi prudente ou inseguro, poderoso o simplesmente abrumado. Ou o rei nos poderia contestar desde a solid�o de sua rec�mara.
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Haveria que imaginar sua ang�stia enquanto ponderava a sufici�ncia de sua vontade humana para ser o delegado de Deus na terra. (1992, p.174)
Quando o rei Carlos V abdica em favor do filho Felipe II, deixa-lhe como
heran�a um poderoso imp�rio e uma chuva de ouro e prata provenientes do Novo
Mundo, Felipe tamb�m herda uma enorme dor de cabeça, proveniente das revoltas
provocadas pelos insatisfeitos com o absolutismo espanhol.
(...) Os protestantes floresciam gra�as �s ambi��es pol�ticas dos pr�ncipes do norte da Europa. Os turcos punham em xeque o poder espanhol no Mediterr�neo. Os Pa�ses Baixos se levantaram em armas contra a Espanha. Os mouros que permaneciam na Espanha, os mouriscos, se rebelaram contra os decretos do jovem rei Felipe despojando-os da sua l�ngua e de seus costumes, em tanto que ainda a nobreza de Arag�o se rebelou contra as restri��es impostas (...). E, mesmo assim, Felipe II manteve e reafirmou seu imp�rio, durante v�rias d�cadas, como a principal pot�ncia mundial. (...) Felipe fortaleceu ainda mais seu poder (...). Complexo e conflitante, em pugna contra a reforma protestante, mas tamb�m contra o poder do Papa, Felipe, acaso, foi, principalmente, um homem em conflito consigo mesmo. (1992, p.165-166, 173).
A pol�tica exterior do Rei Prudente preocupa-se em manter a unidade religiosa
de seus dom�nios na Espanha, nos Pa�ses Baixos, em Portugal, nas Filipinas, em
N�poles, e nas Col�nias Americanas. Para tal efeito, envia seus ex�rcitos para lutar
com seus in�meros inimigos, como no levantamento dos maometanos do interior da
Espanha; os revoltados de Portugal que reclamam o trono; as rebeli�es dos Pa�ses
Baixos; e contra os piratas e a tentativa inglesa de impor seu poderio naval.
A hist�ria de Felipe II se divide em duas vers�es opostas, h� uma dicotomia
entre a “Leyenda Negra e a da Rosa”. Para uns, seus defensores, se trata de um
arqu�tipo de virtudes, um homem amante das artes, devotado ao seu povo e �s
tradi��es, temente a Deus, um Rei Prudente. Para outros, um monstro fan�tico e
d�spota.
Nas nossas mentes h� muitas “Espanhas”. Existe a Espanha da “Leyenda negra”: inquisi��o, intoler�ncia e contrarreforma, uma vis�o promovida pela alian�a da modernidade com o protestantismo, fundidos numa oposi��o secular � Espanha e todas as coisas espanholas. Depois h� a Espanha dos viajantes ingleses e a dos rom�nticos franceses, a Espanha dos touros, Carmen e o flamenco.
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E existe tamb�m a m�e Espanha vista por sua descend�ncia colonial nas Am�ricas, a Espanha amb�gua do cruel conquistador e a do santo milion�rio. (1992, p.17).
Felipe II continua a pol�tica dos seus antepassados reis Cat�licos Fernando e
Isabel. Apresenta-se como um rei intransigente em rela��o � “heresia luterana”, que
surge em v�rios pontos do pa�s, particularmente em Valladolid e em Sevilla. O
monarca tem �xito ao conseguir expulsar os protestantes da Espanha, mas a
amea�a s�o os mouriscos j� conquistados no antigo Reino de Granada, que
separados pela religi�o, pelo idioma, pelas vestimentas e pelos costumes,
permanecem como inimigos implac�veis dos espanh�is.
For�ados pelo rei a renunciar � sua cultura declaram guerra; recebem ajuda
dos mu�ulmanos de fora do pa�s e lutam contra a Espanha de Felipe: a luta dura
tr�s anos, 1567-1570. Finalmente, os mouros derrotados, separados e sem for�a
pol�tica, s�o repartidos pelo interior do pa�s onde assimilam a cultura espanhola.
Outro evento importante na hist�ria do reinado de Felipe II � a conquista de Portugal
em 1580 ocorrida ap�s a morte do jovem rei Sebasti�o na batalha de Alc�zar, ou
Alc��ar – Alc�cer-Quibir – em 1578, e logo ap�s, a morte do seu sucessor o anci�o
Cardeal Enrique em 1580. A unidade Ib�rica se estende entre os anos de 1580 a
1640.
Carlos Fuentes insiste em lembrar em seus ensaios que a ruptura cultural
implica em mudan�as econ�micas importantes para Espanha, pois os judeus
ocupam cargos importantes para a economia do pa�s: s�o banqueiros, prestamistas,
comerciantes, administradores, arrecadadores e embaixadores, que se constitu�am
na futura classe capitalista da Espanha. Essa expuls�o resulta ser uma p�ssima
estrat�gia, j� que acontece no momento em que a Espanha precisa desse grupo
humano quando, ap�s a Reconquista da pen�nsula, com a queda do reino mouro de
Granada, os Reis Cat�licos expandem seu poder para as terras americanas.
As empresas transoce�nicas da monarquia espanhola, aceleradas pelo
descobrimento nesse mesmo ano, e a ambi��o expansionista em territ�rio europeu
necessitam de financiamento permanente; paradoxalmente e perante a urg�ncia por
obter novas verbas para essa empreitada, procuram auxilio nas pot�ncias
estrangeiras, que logo se constituem em seus rivais pol�ticos e econ�micos.
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A primeira publicação de uma gramática na Europa corresponde a Antonio de
Nebrija, sua importância é fundamental para o projeto unificador da Rainha Isabel e
do Rei Fernando de Aragão, pois a língua castelhana é considerada nesse
momento, não apenas o canal de comunicação oficial na península, como também o
primeiro instrumento de dominação imperial. Esses quatro acontecimentos
concretizariam os objetivos primordiais dos Reis Católicos: a concretização da
unidade nacional e a criação das bases para a expansão do futuro Império Espanhol
espalhado pelo resto do mundo.
Da mesma forma que a figura do homem-rei se mimetiza, o período do reinado
de Felipe II divide-se em três grandes etapas, infância, plenitude e decadência. A
primeira, marca a infância até a morte da mãe, época em que assume
compromissos políticos como regente do reino apoiado por um Conselho de
Regência aos 12 anos de idade. Na segunda etapa se considera a plenitude do seu
reinado, casamentos, lutas e conquistas territoriais que incluem as terras do Novo
Mundo e, a terceira e última, iniciada em 1588, marca o declínio político e físico do
monarca. Carlos Fuentes diz que o monarca fica prostrado na cama, não consegue
nem mudar de roupas por causa das fortes dores; sofre de artroses, febre e gota.
Até que com 71 anos, depois de agonizar por cinquenta e três dias, Felipe II morre
no Palácio de El Escorial no ano de 1598.
A personalidade do Rei Prudente, Felipe II, define a história europeia da segunda metade do século XVI. Seu nascimento em Valladolid em 21 de maio de 1527 encheu de gozo a seus pais, o imperador Carlos V e dona Isabel de Portugal. As festas que se celebraram a continuação foram interrompidas quando chegou a notícia de um fato que chocou à Cristandade: o saqueio de Roma pelas tropas imperiais. (...) O pequeno Felipe foi jurado como herdeiro da coroa de Castela em 10 de maio de 1529 no convento de São Jerónimo, em Madri. A educação do príncipe fica nas mãos de dona Isabel devido as contínuas viagens do imperador. Em 1534 Don Juan Martínez Siliceo é nomeado seu tutor para que lhe ensina-se a ler e a escrever. (...) As relações de Don Felipe com a sua madre foram muito estreitas pelo que o falecimento de dona Isabel em 1539 supôs um golpe duro para o pequeno príncipe. (...) A sua chegada à Espanha em 1559 iniciou uma série de câmbios nas práticas e na la forma de governo, rompendo de esta maneira com a tradição medieval e outorgando um caráter inovador à Coroa, ao tempo que se fixavam as bases da administração pública moderna. Fruto de esses câmbios será o estabelecimento da corte permanente em Madrid (1561), a reforma da audiência de Sevilha (1556), ou a criação do Conselho de Itália (1558) e das audiências de Charcas
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(1559), Quito (1563) e Chile (1567). La paz com a Fran�a lhe permitiria por em pr�tica uma pol�tica mediterr�nea encaminhada a frear o expansionismo turco pelo norte de �frica e na zona ocidental do Mare Nostrum. (...) Felipe II foi pouco tolerante com aqueles que ele considerava como diferentes. Seu governo intentou excluir todos os grupos que n�o se adequaram ao seu projeto universal. (...) A maioria desses homens acreditava que Deus tinha um projeto para o Universo e os espanh�is a certeza de que eles eram os sinalados para lev�-los a cabo devido a sua cultura superior, ao seu idioma, �sua f� e � riqueza com que contavam para consum�-lo. (...) A monarquia de Felipe II era muito extensa e basicamente indefesa e apenas a mantinha unida a vontade coletiva dos comerciantes genoveses, os banqueiros flamengos, os soldados italianos e alem�es e os navegantes portugueses e italianos. Em consequ�ncia, o conceito mesmo de uma cultura “espanhola” pura, bem delimitada e homog�nea resultava bastante confusa na Espanha do s�culo XVI. (...) O desastre da Armada no ano de 1588 iniciar� a etapa de declive tanto pol�tica como f�sica do reinado de Felipe II (...) Esta terceira etapa vir� marcada pelo progressivo declive das fun��es do monarca j� que seus achaques e enfermidades lhe impediam de controlar todos os assuntos como era do seu agrado (...). A medida que vai avan�ando em idade, a sa�de de Felipe II se ia deteriorando e os ataques de gota se repetiam com maior frequ�ncia. Chegara um momento em que no possa assinar devido a artroses de sua m�o direita. No fim do m�s de junho de 1598, Felipe sofreu umas febres que lhe prostraram na cama, sofrendo dores t�o intensas que no se lhe podia tocar, lavar ou trocar de roupa. As cinco da madrugada do domingo 13 de setembro de 1598, Felipe II falece no monast�rio de El Escorial. Tinha 71 anos, e a sua agonia havia durado 53 dias.
(1992 p. 82, 261).
No contexto hist�rico da Espanha, Felipe II representa a unidade pol�tico-
religiosa e a grandeza de uma �poca imperial, assim como o Real Monast�rio de
San Lorenzo de El Escorial que forma parte do patrim�nio hist�rico do pa�s. O
edif�cio foi concebido pelo rei Felipe II em 1558 como uma grande obra de arte e
como signo vis�vel do seu poder. Constru�do em granito maci�o, o Pal�cio,
monast�rio, col�gio, museu de arte, biblioteca, igreja, cemit�rio e fortale�a militar �
um edif�cio de forma retangular de cento e um por duzentos e sessenta e um metros,
cujos muros exteriores se elevam a uma altura equivalente a seis andares. Situado a
mil metros sobre o n�vel do mar, em Sierra de Guadarrama, o edif�cio possui
dezesseis p�tios, oitenta e oito fontes, oitenta e seis escadas, trezentos aposentos,
um mil e duzentas portas, duas mil seiscentas e setenta e tr�s janelas e
quatrocentas e cinquenta e nove torres, as quatro mais altas localizadas nos cantos
do edif�cio.
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De acordo com Williams, h� um paralelismo, pass�vel de ser constru�do como
hip�tese, que permite afirmar que Carlos Fuentes se inspirou na arquitetura do
edif�cio de El Escorial para arquitetar Terra Nostra. Carlos Fuentes divide o
romance em tr�s grandes partes, com cento e quarenta e quatro fragmentos
narrativos “semeados de outros textos, de pretextos e de m�ltiplas imagens
hist�ricas e hipertextuais. El Escorial serviu como modelo arquitet�nico para
construir a narrativa do romance”. Comenta que “as propor��es gigantescas de El
Escorial lembram uma vila medieval, no estilo do monast�rio de St. Gall na Su��a, o
Palazzo Veccho em Floren�a, ou o distante parentesco com o Pal�cio Diocleciano,
em Spalata, mencionado nas paginas 552 e 553 de Terra Nostra” (1998, p. 90).
Esta � a cidade-pal�cio; este � o pal�cio-cidade; seu nome o diz, Spalato, espa�o de um pal�cio, cidade dentro de um pal�cio, pal�cio transformado em cidade sobre as costas escarpadas do Mar Adri�tico, �ltima morada do imperador Diocleciano, pra�as que foram p�tios, catedrais que foram mausol�us (...) bodegas que foram tabernas que foram masmorras, pal�cio imperial parcelado pelo tempo, carcomido pela usura, enegrecido pelas cozinhas, encontro de dois mundos, oriente e ocidente (...) irrita��o dos conquistadores, bizantinos, croatas, normandos, venezianos, h�ngaros (...) o pal�cio de Diocleciano, suas dezesseis torres, suas quatro portas, dissabor dos fugitivos, cruze dos caminhos, at� aqui chegaram todos, desde aqui se espalharam sobre toda a Europa crist�, desde onde Diocleciano lan�ou o edito contra os crist�os por ter ofendido os deuses romanos com o sinal da Cruz, por aqui sa�ram, e por aqui entraram (TN, p. 552-553).
O espa�o interno da Bas�lica foi desenhado e projetado por Felipe II abriga os
aposentos privados do rei, que desde sua alcova, mesmo reclinado em sua cama,
poderia observar o interior do templo, o altar, as cerim�nias; as figuras religiosas da
sua devo��o. A constru��o se inicia em 1563, mas foi-se transformando durante o
reinado de Felipe II, de acordo com as plantas e novos ajustes feitos durante tr�s
d�cadas da segunda metade do s�culo XVI, a primeira vers�o do edif�cio �
conclu�da em 1584 e ampliada e modificada nos s�culos posteriores.
Felipe II desenhou este templo assim como a sua rec�mara, de modo que desde suas habita��es pudesse ver o altar da bas�lica. Em consequ�ncia, o rei podia ver o sacerdote e presenciar a missa como um voyeur privilegiado, enquanto descansava no leito. Tamb�m podia ver as imagens sagradas (todas douradas) assim como a sua pr�pria imagem. Esta justaposi��o da engenharia religiosa e pol�tica
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dentro do mesmo espa�o sagrado reproduz a estrat�gia pol�tica das pinturas murais ao mesmo tempo em que mostra o motivo pol�tico (...) outros murais demonstram a converg�ncia entre o pol�tico e o religioso (...). Na Galeria de las Batallas, um longo mural pintado em cores vibrantes � testemunho inquestion�vel da fun��o pol�tica de El Escorial. Denominado La Batalla de Higuelera, como lembran�a da vit�ria alcan�ada por Juan II sobre Granada em 1431, o mural louva as fa�anhas militares da coroa espanhola assim com o triunfo do poder hisp�nico sobre os valores �rabes. (Williams, 1998, p.88).
Para sua constru��o, a coroa espanhola conta com o apoio dos monges
Jer�nimos e contrata os arquitetos Juan de Herrera como assistente de Juan
Bautista de Toledo, que em seu trabalho anterior na Bas�lica Vaticana fora ajudante
de Miguel �ngelo, com uma ampla forma��o humanista e te�rica assim como Frei
Antonio de Villacast�n, o construtor chefe. Na decora��o utiliza objetos culturais
heterodoxos trazidos de toda a Europa, para recriar uma arquitetura medieval,
renascentista e neocl�ssica no Pal�cio. Pela sua arquitetura influenciada pela
tradi��o �rabe, como os arcos do Pal�cio e o enorme acervo de manuscritos
heterodoxos somada � cole��o de obras de arte renascentista trazidas de toda a
Europa, especialmente da It�lia, o monast�rio de El Escorial �, segundo o cr�tico
Raymond Williams, “um objeto multicultural da Espanha do s�culo XVI” (1998, p.90).
No in�cio do s�culo XVII, ap�s a morte de Felipe II, seu filho herdeiro ao trono,
o rei Felipe III (1598-1621) faz alian�a com as cortes europeias: primeiro com a
Inglaterra de Jacobo I, sucessor de Isabel I, e assina a Paz de Londres, e logo, em
1604; com os pa�ses Baixos, a Tr�gua dois Doze anos, em 1609. Na Fran�a, ap�s o
assassinato de Enrique IV, em 1610, a regente Maria de M�dici negocia duas
alian�as importantes: os casamentos do delfim Lu�s, com a Infanta espanhola Ana
de �ustria; e o do herdeiro � coroa da Espanha, Felipe, com Isabel de Bourbon. Na
It�lia de 1615, a paz de Asti representa uma perda de prest�gio do dom�nio
espanhol. Recome�am as hostilidades, at� que pelo Tratado de Pavia, de 1617, os
envolvidos nos conflito devolvem as terras conquistadas.
Ao morrer Felipe II (...) todas suas d�vidas e fracassos ca�ram sobre a cabe�a de um filho incompetente, Felipe III. Pregui�oso (trabalhava apenas seis meses a cada ano), Felipe III delegou o poder aos seus favoritos que cometeram o colossal erro de expulsar a todos os mouros que restavam na Espanha (...) esta decis�o contraproducente praticamente arruinou a economia de Valencia e Aragón, credoras dos mouros que alugavam as terras (...). Todas as
90
institui��es perderam dinheiro e poder, muitas foram � banca-rota (...) a Espanha imperial de Felipe III pareceu transformar-se numa na��o de mendigos (1992, p.177).
Durante o reinado de Felipe III, as hostilidades contra os turcos e contra a
pirataria norte-africana continuam. Os mouros expulsos da Espanha, e estabelecidos
na Turquia e na costa da �frica, ap�iam e colaboram com os ataques piratas. No
continente americano, onde se iniciara a coloniza��o na segunda metade do s�culo
XVI, dos territ�rios sul-americanos ocupados brota a riqueza, o Novo Mundo gera
lucro e os min�rios extra�dos alcan�am relev�ncia, a prata e o ouro transportados
para Europa revolucionam a economia mundial. Para Williams, estes antecedentes
s�o importantes para compreender a constru��o hist�rica em Terra Nostra e a sua
rela��o com o a Pen�nsula Ib�rica, entendida pelo autor como terra-�tero gestora do
Novo Mundo. Afirma que h� uma aproxima��o de semelhan�a entre a constru��o
formal do romance e a proje��o arquitet�nica do edif�cio; nessa an�lise, os cen�rios
do romance se espelhariam na constru��o do Pal�cio El Escorial. Comenta ainda
que, se o edif�cio � a soma da multiciplicidade cultural “de natureza heterodoxa” que
“encerra numerosas contradi��es internas; uma imagin�ria arquitet�nica procedente
de uma amplia variedade de culturas” (1998, p.91).
Os elementos da metafic��o servem de correlato � reflex�o sobre as formas de
poder abordadas no Velho Mundo. De entre eles, o que mais se real�a � o Pal�cio-
necr�pole de El Escorial. Williams insiste no valor de El Escorial como met�fora do
projeto est�tico de Carlos Fuentes para a elabora��o do romance, o qual �
concebido como materializa��o arquitet�nica do esp�rito da Contrarreforma e como
mausol�u dos reis de Castela. “El Escorial foi um dos textos principais que, com o
tempo, deram origem a Terra Nostra” (p.89). Na opini�o do cr�tico, “Carlos Fuentes
publicou tr�s textos relacionados de muito perto com esta obra central; um anterior
ao romance, outro simultaneamente a ele e outro posterior. Estes tr�s textos
(Nowhere, t�tulo de um fragmento do romance, o ensaio Cervantes o la crítica de
la lectura, e o livro El espejo enterrado s�o as obras de Fuentes que mais se
aproximam aos temas centrais de El Escorial e Terra Nostra” (1998, p.92).
No epis�dio O primeiro testamento (p.191), acontece um di�logo entre o
Senhor e seu secret�rio, “imagine por um momento, Guzm�n, que todos pudessem
91
apresentar suas v�rias e contradit�rias vers�es do ocorrido e ainda do n�o ocorrido:
todos, digo-lhe, tanto os senhores como os servos, tanto os cordatos como os
loucos, tanto os doutores como os hereges, o que sucederia? – Haveria demasiadas
verdades. Os reinos seriam incontrol�veis” (p.194). Os fatos hist�ricos permeiam a
constru��o do discurso aberto propondo a prolifera��o de pontos de vista e
reivindicando para si a impossibilidade de determinar a verdade dos fatos. A reflex�o
proposta pelo discurso aberto gera a dial�tica entre o polif�nico-coletivo em
oposi��o ao individual– monoc�rdio desenhando as tr�s partes do romance. No
n�vel historiogr�fico, a primeira parte do romance acusa o Senhor de ocultar os
acontecimentos, de manipular a verdade e de contribuir para que a escrita seja
propriedade de um �nico autor e senhor. “se todos pudessem escrever � sua
maneira o mesmo texto, o texto j� n�o seria �nico; ent�o j� n�o seria segredo;
logo... – J� n�o seria sagrado” (p.194).
A elabora��o formal dos recortes hist�ricos propostos na obra procura o efeito
da pluralidade de interpreta��es. O romance n�o relata apenas uma �nica hist�ria,
um �nico enredo, para um mesmo fato h� muitas hist�rias. As personagens
hist�ricas convivem com as ficcionais enquanto que, paralelamente, a hist�ria linear
se liga � ap�crifa criando uma tens�o que convida o leitor a revisar a hist�ria lineal
da Espanha, para critic�-la por meio do relato oficioso. Isso acontece em conjunto
com os narradores pelo poder da imagina��o, preenchendo as lacunas daquilo que
poderia ser dito e que n�o foi, ou do que poderia ter sido registrado e n�o se levou
em conta por alguma raz�o particular do historiador da �poca em o fato ocorreu.
A po�tica de Carlos Fuentes prop�e uma obra aberta que alcan�a seu ponto
culminante em Terra Nostra, como ele mesmo comenta, “Tanto no n�vel
historiogr�fico como no metaf�sico, a narrativa enfrenta o poder monol�tico do
imp�rio frente ao poder her�tico da imagina��o” (1992, p.43). O passado do mundo
hisp�nico se bifurca em duas grandes tend�ncias, uma im�vel e cristalizada que se
op�e a outra din�mica, multicultural e libertadora. Em seus escritos a hist�ria est�
sempre vinculada a sua est�tica liter�ria, que contempla a “Hist�ria como o eterno
combate entre as for�as do despotismo, isolamento, obscurantismo e dogmatismo
frente aos defensores da participa��o, da abertura, do progresso e da dissid�ncia
(1992, p.44)”.
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El Escorial �, para Carlos Fuentes, o monumento de Felipe II � ortodoxia, �
vis�o un�voca e autosuficiente do universo e ao isolamento do mundo exterior. A
dimens�o sociopol�tica que envolve o simbolismo do Pal�cio est� diretamente
relacionada � ideologia centralizadora e absolutista da dinastia dos �ustria. O rei
Felipe II arquiteta um edif�cio majestoso e particular para proteger as verdades do
absolutismo espanhol do XVI.
No romance, as d�vidas religiosas e as pondera��es sociopol�ticas relativizam
a veracidade do discurso hist�rico, autorizando a verossimilhan�a na fic��o. O
Senhor tem como referencial espacial concreto o Pal�cio para abrigar a
complexidade e as incertezas refletidas no processo da constru��o do Edif�cio. A
inseguran�a e o medo das mudan�as sociais perseguem o imagin�rio do monarca,
teme pela perenidade da sua dinastia, a possibilidade de perder o poder absoluto
atormenta a vida do rei. Como resposta �s suas preocupa��es, Guzm�n o lembra
das conquistas alcan�adas e a signific�ncia pol�tico-religiosa que significa para a
hist�ria a magna constru��o monol�tica do Edif�cio, que espelha o desejo de
assegurar as certezas e a solidez do poder mon�rquico perpetuado.
O Senhor congregou os reinos dispersos; abafou as rebeli�es her�ticas da sua juventude; deteve o mouro e h� perseguido hebreu; construiu esta fortale�a que re�ne os s�mbolos da f� e do dom�nio. A usura das cidades, que destruiu a tantos pequenos senhorios, rende homenagem � vossa autoridade e aceita a necessidade de um poder central. Os pastores e lavradores destas terras s�o hoje os obreiros do Pal�cio: o Senhor os deixou sem outro sustento que uma jornada. � mais f�cil tirar o dinheiro do sal�rio que arrebatar as colheitas dos campos, pois os sal�rios se manipulam invisivelmente. Outras grandes empresas esperam o Senhor; n�o as encontrar� atr�s dele, sen�o mais adiante (TN, p.111).
No contexto geral, a segunda metade do s�culo XVI e a primeira do s�culo XVII
s�o transcendentais para a hist�ria da Europa. Em 1580, na Espanha, Felipe II
incorpora � sua coroa o reino de Portugal. O monarca espanhol consegue que as
cortes lusitanas o reconhe�am como rei. Isso sup�e, no plano internacional, o
dom�nio do Atl�ntico ocidental. Em 1588, a grande frota – a Armada invenc�vel –
parte de Lisboa, onde � destru�da pelas tormentas e pelos navios ingleses no Canal
da Mancha. No fim da sua vida, o monarca assina o tratado de paz de Vervins com a
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Fran�a, em 1598, e cede um regime aut�nomo aos Pa�ses Baixos, cuja autonomia �
entregue a sua filha Isabel Clara Eug�nia. O rei Felipe II morre com setenta e um
anos, em 1598, no Pal�cio de El Escorial.
Embora o romance abarque o per�odo compreendido desde o Imp�rio Romano,
da �poca de Jesus Cristo, at� a alvorada de um futuro mil�nio, no ano de 1999, a
maior parte da a��o gira em torno de tr�s eixos cronol�gicos fundamentais; as tr�s
datas importantes que configuram as coordenadas temporais na obra s�o 1492,
1521 e 1598. O ano de 1492 marca quatro acontecimentos que alteram o panorama
hist�rico e cultural da Espanha renascentista: o primeiro � a expuls�o dos judeus, a
queda de granada, a chegada de Colombo � Am�rica o descobrimento do Novo
Mundo; a publica��o da Primeira Gramática em l�ngua castelhana; a expuls�o dos
judeus e a persegui��o aos falsos conversos que provocam o fim da coexist�ncia
multicultural de sete s�culos. 1521 � o ano da Conquista de M�xico e do fracasso da
rebeli�o dos comuneros de Castilla; e o ano de 1598, ano da morte de Felipe II. Em
Terra Nostra cada uma dessas datas chave representa uma possibilidade de
abertura � pluralidade cultural abortada pelas for�as da ordem monol�tica e s�o
repetidas e comentadas infinitamente ao longo do romance.
Em Cervantes o la crítica de lectura (1976, p.63), Carlos Fuentes comenta
que o posicionamento pol�tico da corte espanhola em rela��o aos acontecimentos
internos do reino, como a revolta dos comuneros, � determinante no que se refere
ao modo como ocorreria o processo de coloniza��o na Am�rica. O autor enfatiza o
fato de que a Espanha de Carlos V e de Felipe II vive um per�odo de ostracismo
cultural; fechada em si mesma se nega a aceitar a modernidade, as ideias
renascentistas e pluralidade do pensamento humanista.
Santiago Juan Navarro comenta que do ponto de vista pol�tico, a figura do
Senhor no romance � uma par�dia na qual se condensam as caracter�sticas mais
representativas das personalidades autorit�rias da hist�ria de todos os tempos. Suas
caracter�sticas principais s�o a ortodoxia, o absolutismo e o obscurantismo pol�tico,
que somados aos elementos fant�sticos da f�bula liter�ria, conseguem recriar o
tirano universal que paira na mem�ria coletiva de todos os povos. “Enquanto
personagem representativo, o Senhor alcan�a esse objetivo ao acumular todos
esses atributos que o constituem como �nico senhor e com poderes ilimitados”
(2002, p.47).
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Acrescenta que como referencial hist�rico predominante na obra � a casa dos
�ustria de Felipe II, o romance se espelha no Senhor para reunir em torno dele uma
corte que evoca as figuras mon�rquicas da vida real: Felipe O Formoso, casado com
Joana, Joana Regina, e a Dama Louca; e Felipe O Senhor, filho e tamb�m herdeiro
de todos os anteriores, casado com Isabel; Isabel e a Senhora (Elizabeth Tudor),
sua prima inglesa; cada uma delas cumpre a miss�o de perpetuar a ideia de guardi�
da mem�ria das figuras hist�ricas dessa dinastia.
No Senhor confluem n�o apenas as figuras dos monarcas, mas, tamb�m a
imagem do ditador latino-americano, soberano moderno: amb�guo e contradit�rio,
tirano e m�rtir ao mesmo tempo. Cita o fragmento O herdeiro (p.112), no qual o
jovem Senhor participa das revoltas contra o Imp�rio e � confundido com um criado
do Pal�cio. Santiago Juan Navarro comenta sobre essa passagem: “na f�bula
liter�ria do romance, a viv�ncia direta das rebeli�es praticadas pelo Senhor durante
a sua juventude s�o representativas e carecem de fundamenta��o hist�rica” (2002,
p. 52).
Falaram em fugir e lhe contaram que j� havia gente que vivia livremente, sem amos, percorrendo os caminhos cantando, bailando, amando e fazendo penit�ncia para que este mundo se acabasse e come�asse um mundo melhor. Mas Felipe pareceu n�o os escutar (...) n�o quis averiguar para n�o se denunciar perante os dois jovens que o tinham tomado como criado (...) escapemos, sejamos livres; basta sair daqui para nos reunir com os demais homens livres nos bosques. N�s sabemos onde est�o (TN, p.113).
Em A fuga (p.118), o pr�ncipe Felipe vive sua aventura juvenil e foge da casa
real com os filhos de Pedro, convive com os revoltados que compartem as ideias
revolucion�rias dos milenaristas, “Nessa noite Felipe escapou do castelo junto aos
dois jovens camponeses (...) contaram onde podiam encontrar os ex�rcitos dos
homens livres, dos iluminados, e dos que preparavam a segunda vinda de Cristo a
terra”. O jovem Senhor � tamb�m � apontado como um ser inseguro, contradit�rio,
um parvo que duvida de tudo, tanto das suas a��es como da incoer�ncia dos
modelos estabelecidos pelos seus antepassados.
Em O Senhor dorme (p.143), um devaneio do monarca permite caracterizar em
detalhe a natureza totalizadora e opressiva do Pal�cio, isso se faz por meio de uma
das complexas estruturas abismais que habitam o universo de Terra Nostra. Ap�s
ingerir um narc�tico, o Senhor cai num sono profundo. No torpor, se v� assim
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mesmo dentro de uma paisagem fant�stica, transposi��o on�rica da geografia onde
se ergue o Pal�cio de El Escorial. Acossado por �guias e falc�es, busca
desesperadamente uma sa�da para uma realidade que se apresenta como um
calabou�o labir�ntico, “o vale era uma pris�o ao ar livre, um �nica, profunda e vasta
masmorra de muros escarpados” (p.145).
Para Navarro n�o se trata de uma pris�o real, e sim, de uma imagem
metaf�sica, localizada numa mente humana atormentada pela ansiedade e pela
culpa. O sonho � outra dessas caracter�sticas das personagens, ao longo da
narrativa todos sonham; o universo on�rico os envolve, o velho Pedro tem um sonho,
assim como Celestina, Sim�n e Ludovico. Os sonhos funcionam como chaves de
entrada nos infinitos c�rculos narrativos que se desdobram em testamentos, cr�nicas
e confiss�es.
O Senhor tem um pesadelo, sonha que est� dividido em tr�s homens
diferentes. Quando se aproxima do primeiro, v� refletidos em cada um dos seus
olhos, ou janelas, cenas de morte e de destrui��o que ocorreram na sua
adolesc�ncia. No rosto do terceiro se reconhece como um velho estendido ao sol e
em processo de putrefa��o. Reintegrado ao seu eu original, como o atual Senhor
atormentado pelo pesadelo, finaliza seu sonho com uma nova vis�o do universo
carcer�rio, dominado pela esterilidade: “c�rcere supino, gelado sol, carne de cera, o
sonhador chorou: onde, meus filhos; a quem herdar aquilo que eu herdei” (p.145).
O estado on�rico do Senhor sintetiza alguns dos eventos apresentados
anteriormente, como a adolesc�ncia do Senhor e a massacre do Alc�zar; e adianta
acontecimentos futuros: a morte e decomposi��o do monarca e ulterior metamorfose
em lobo. O pesadelo apresenta um criador megal�mano aprisionado em sua pr�pria
cria��o labir�ntica. Trata-se de uma obra monumental, mas est�ril; no Pal�cio habita
o medo, a viol�ncia e a degrada��o. � esterilidade do poder representada no sonho
do Senhor, Carlos Fuentes op�e a fecundidade da imagina��o atrelada � esfera da
arte. Mediante a recontextualiza��o outros textos se ativam simultaneamente para
apresentar as m�ltiplas verdades do discurso hist�rico, fr�gil e multifacetado.
Os textos visitados em O Velho Mundo formam parte da mem�ria cultural dos
povos onde foram produzidos, permitem o descont�nuo, descongelam a verdade
un�voca da hist�ria e revelam seres inst�veis e imprevis�veis tidos como her�is.
Textos da mem�ria, transformadores de conceitos e de preconceitos espelhados em
96
hist�rias paralelas, neles o tempo � a personagem protagonista da obra, e a hist�ria
linear � apenas uma fic��o. Terra Nostra revela a f�bula hist�rica escrita desde o
poder, oficializada, definitiva, un�voca e congelada; como em O primeiro testamento,
quando o Senhor ordena:
Escreve, Guzm�n, escreve, o escrito permanece, o escrito � verdade em si porque n�o pode ser submetido � prova da verdade nem a comprova��o alguma, � essa a realidade plena do escrito, sua realidade de papel, plena e �nica, escreve (...) espera, Guzm�n, que dizemos, que escrevemos, por mero costume, voc� nunca duvida, Guzm�n (...) que n�o foi assim, que n�o foi somente assim, poder ser assim mas tamb�m de mil formas diferentes, depende de quem o contar, depende de quem o viu e como o viu; imagina por um momento, Guzm�n, que todos pudessem apresentar suas v�rias e contradit�rias vers�es do ocorrido e ainda do n�o ocorrido; todos, digo-te, tanto os senhores como os servos, tanto os s�bios com os loucos, os doutores como os hereges, o que aconteceria, Guzm�n? Haveria demasiadas verdades. Os reinos seriam ingovern�veis. N�o, algo pior; se todos pudessem escrever � sua maneira o mesmo texto, o texto j� n�o seria �nico (...). Certo, seria assim, Guzm�n; e tu terias raz�o, os reinos seriam ingovern�veis, pois em que se fundamenta um governo a n�o ser na unidade do poder?, e tal poder unit�rio, em que se fundamenta sen�o no privil�gio de possuir o texto �nico, escrito, norma imut�vel que supera e se imp�e � confusa prolifera��o do h�bito? (...) o h�bito se dilapida, se esgota, se renova e muda sem conserto nem meta, por�m a lei n�o varia, assegura a perman�ncia e a legitimidade dos atos do poder. E em que se fundamenta essa legitimidade? (TN, p.193-194).
O desejo desmedido pelo poder o leva a consignar seu mundo por escrito. O
ato de escrever se apresenta como uma atividade necess�ria para algo que cobre
vida. “Escreve”, ordena o Senhor. A rela��o cr�tica de Guzm�n com o Senhor
obcecado por um mundo imut�vel e por objetos eternos. O recorte hist�rico deste
per�odo espec�fico da vida de Felipe II, a constru��o do edif�cio El Escorial, funciona
como ponto inicial da reflex�o no romance no que se refere ao imagin�rio
eurocentrista do s�culo XVI. A constru��o do Pal�cio ilustra a dimens�o pol�tica,
religiosa e social como imagem da ambi��o e do desejo de abarcar e centralizar o
poder absoluto num �nico espa�o. O Senhor pondera as verdades aceitas como
�nicas pela hist�ria. A constru��o do Pal�cio e a escrita da hist�ria que promove o
Senhor respondem a um mesmo impulso. Ambas s�o para ele formas de controlar a
realidade e reduzi-la a sua esfera de poder. � sintom�tico que, depois de reprimir a
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rebelião comunera, uma de suas primeiras medidas consista em ordenar que tudo
seja comunicado por escrito.
(...) os reinos seriam ingovernáveis, pois em que se fundamenta o poder? E tal poder unitário, em que se fundamenta senão no privilégio de possuir o texto único, escrito, norma imutável que supera e se impõe à confusa proliferação do hábito? Os súditos, fazendo, estão; o príncipe fazendo é; o hábito se dilapida, se esgota, se renova e muda sem conserto nem meta, porém a lei não varia, assegura a permanência e a legitimidade dos atos do poder. (...) Tu nunca duvidas Guzmán, e se não foi só assim, ou de mil maneiras diferentes? Tudo depende de quem conta, depende de quem viu e como viu; imagina Guzmán, que todos pudessem oferecer seus plurais e contraditórias versões do ocorrido; todos te digo, tanto os senhores como os servos; os loucos como os ajuizados; tanto os doutores como os hereges, o que sucederia, Guzmán? Haveria demasiadas verdades. Os reinos seriam ingovernáveis.
(TN, p,193-194).
Na concepção medievalizante de mundo, o Senhor age como detentor do
poder e estabelece os princípios da verdade única, ditada por ele que tem o mundo
em suas mãos. Manter a ordem e perpetuar o domínio da sua estirpe é um assunto
que lhe fascina, lhe desassossega e absorve seu tempo. Na sequência, discute com
Guzmán sobre a possibilidade de destruir os registros deixados pelos escritos
heréticos.
Sejamos razoáveis, Guzmán, e perguntemo-nos porque temos aceitado como verídicos uma série de fatos quando sabemos que não eram singulares, comuns, correntes, multiplicáveis até o infinito numa série de tramas repetidas até o cansaço; os vê desfilar, interminavelmente, século após século (...). Fica quieto Guzmán, deixa-me gozar nesta hora do meu poder conduzindo-te até a heresia (...) punível porque destrói a ordem e a fé (...). Lutemos contra a abominação pagã e idólatra das nações selvagens (...). Setodos pudessem escrever à sua maneira o mesmo texto, o texto já não seria o único; então já não seria sagrado. (...) e você teria razão, os reinos seriam ingovernáveis, pois em que se fundamenta um governo a não ser na unidade do poder? E tal poder unitário, em que se fundamenta senão no privilégio de possuir o texto único, escrito, norma imutável que supera e se impõe à confusa proliferação dos costumes? (...) os costumes se dilapidam, esgotam-se, se renovam, mudam sem conserto nem meta, porém a lei não varia, assegura a permanência e a legitimidade dos atos do poder. E em que se funda essa legitimidade? No que a lei e o príncipe invocam como reflexo da imutável lei divina (...) tal é a sua legitimação. (TN, p.194).
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No ensaio Cervantes o la crítica de la lectura, Carlos Fuentes comenta que o
imperador Carlos V introduziu na Espanha o ideal expansionista do Sacro Imp�rio
Romano Germ�nico “sujeita a uma perspectiva de hierarquia unit�ria”. Esse conceito
de um estado central de dimens�es continentais, somado ao esfor�o unificador dos
Reis Cat�licos, “acabou com as tend�ncias pluralistas e democr�ticas de uma
Espanha medieval caminho � modernidade e � procura por um compromisso entre
as culturas e as formas de um governo aut�nomo” (1979, p.53). Ao descrever a
personalidade de Carlos V, oferece detalhes que ajudam a compreender a
personalidade da figura do Senhor.
Em El espejo enterrado, comenta a dupla personalidade do monarca, quando
o retrata como seguro e inseguro; gentil e aturado; dividido por causa das alian�as
pol�ticas e preso entre sua forma��o erasmista, que o fazia desejar a uni�o, e a sua
inclina��o imperial que o obrigava a guerrear contra seus inimigos declarados: o
imp�rio turco, a Fran�a, o protestantismo alem�o e as na��es ind�genas. “Exausto
por causa dos problemas pol�ticos do seu reinado, Carlos V retirou-se ao Monast�rio
de Yuste, onde, rodeado de rel�gios e depois de ensaiar seu pr�prio funeral, morreu
em 1558” (1992, p.155).
No mesmo ensaio, comenta que o fim do rei Felipe II reproduz os �ltimos anos
de Carlos V. Da mesma forma que o pai, Felipe II se isolou no mosteiro de El
Escorial, no meio da serra de Guadarrama, onde ergueu um enorme monumento �
ortodoxia da f�, que tamb�m serviria de mausol�u para os reis da Espanha, de
memorial pela vit�ria sobre os franceses na batalha de San Quintin (1557). El
Escorial seria “uma morada para Deus”, um mosteiro para que os monges orassem
pela Espanha e pela realeza. O edif�cio realiza esse objetivo, al�m de ser um
Pal�cio real, uma fortale�a militar, um centro de governo, uma cidade medieval, uma
universidade e uma biblioteca. Diz Carlos Fuentes que “Felipe II, o S�bio, passou
seus �ltimos anos rodeado de cad�veres reais e de rel�quias de santos colecionadas
por toda a Europa, morre solit�rio, imobilizado e atormentado pela doen�a da gota”
(1992, p.157, 164, 169).
Na segunda metade do s�culo XVI, Felipe II considera a possibilidade de
construir o edif�cio. Em 1558, procura o espa�o f�sico para esse prop�sito: “Dever�
ser um s�tio saud�vel, que disponha de bom ar e abundante �gua, localizado na
solid�o dos campos; que seja um s�tio que permita a contempla��o, longe de Madri,
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mas n�o demasiado”. Em 1562, encontra o lugar e inicia a constru��o do mosteiro.
“Os antecedentes arquitet�nicos de El Escorial foram o monast�rio de San Isidro de
Le�n, constru�do no s�culo XII, o monast�rio de Poblet em Terragona, o monast�rio
Jerónimo de Yuste, lugar ao que se retirou Carlos V e onde foi sepultado em 1558, o
hospital de Granada (a parte poente de El Escorial quase � uma r�plica de este
edif�cio) e o hospital de La Santa Cruz de Toledo” (1992, p.82). � interessante notar
que este edif�cio tamb�m � o resultado de outros discursos arquitet�nicos e isso �
significante em Terra Nostra, pois evidencia o di�logo entre as culturas.
Felipe II concebeu El Escorial como um imponente monumento medieval, renascentista e neocl�ssico, cuja estrutura b�sica era caracter�stica dos mosteiros e hospitais medievais. Trata-se de um edif�cio retangular de granito de 101 por 261 metros, cujo formato lembra uma grelha situada a mil metros sobre o n�vel do mar no cume da Serra de Guadarrama (...). As dimens�es fabulosas e a complexidade do edif�cio podem ser percebidas nas 2600 janelas (das quais 269 s�o externas), 1200 portas, 459 torres, 88 escadas, 16 jardins, 15 claustros, 9 torres (...) pela sua arquitetura e pelas suas fun��es, El Escorial constitu�a uma s�ntese da cultura hisp�nica do s�culo XVI, a mesma cultura hisp�nica contradit�ria e heterog�nea que foi exportada ao longo de mais de tr�s s�culos �s col�nias espanholas. (...). O cen�rio hist�rico de Terra Nostra, assim como a constru��o de El Escorial, abrangem a Espanha de Felipe II no s�culo XVI (seu reinado foi de 1556 a 1598), a Inquisi��o, o Renascimento europeu, a Reforma e a Conquista da Am�rica.
(1992, p.79-82).
Felipe II tinha um esp�rito burocr�tico, extraordin�ria capacidade para trabalhar
durante longas horas, vida asc�tica, uma personalidade firme, por�m insegura,
(1992 p.157). A Espanha de Felipe II perpetuou um sistema de governo que a
manteve isolada do resto de uma Europa renascentista que passava por um per�odo
de profundas reformas pol�tico-econ�micas. Segundo o romancista, “se para a
Hist�ria, o monarca representa a unidade pol�tico-religiosa e a grandeza de uma
�poca imperial, ao longo do seu reinado Felipe II demonstrou uma vontade suicida
de manter im�vel a estrutura org�nica do imperium medieval” (Fuentes, 1989, p.63).
Como consequ�ncia disso, a orienta��o imperial da coroa deixa de ser
europeia e Felipe II dirige seus esfor�os � expans�o transatl�ntica, ilustrando o
car�ter hispano-americano do seu reinado, frente ao imp�rio europeu de Carlos V;
por esses anos, “os metais preciosos extra�dos das terras americanas financiavam
100
as d�vidas contra�das pelos monarcas espanh�is com banqueiros e prestamistas do
norte da Europa” (1992, p.83).
Santiago Juan Navarro contesta essa vis�o lend�ria do afastamento final de
Carlos V. Afirma que “desde seu retiro em Yuste, o monarca se manteve a par dos
problemas do estado e continuou aconselhando e ajudando se seu filho Felipe II”
(2002, p.48).
(...) a multid�o de personagens e de vozes que se entrecruzam nesta primeira parte do romance, � o Senhor quem recebe um tratamento diferente. Embora esta personagem compreendesse tra�os dos diferentes membros da dinastia dos �ustria. Fuentes cria a figura do Senhor sobre a base de Felipe II, com alguns elementos de Carlos V. Deste �ltimo se adotam certos dados biogr�ficos extravagantes (seu nascimento acidental numa latrina de Gante ou seu pr�prio funeral), assim como tamb�m outros elementos de grande relev�ncia hist�rica, como a repress�o do movimento dos comuneros ou a conquista do M�xico, realizada em seu reinado. De Felipe II, s�o tomados seu car�ter meticuloso e seu gosto pela burocracia, sua personalidade insegura, seu ascetismo, a impec�vel luta contra a heterodoxia religiosa e a melancolia de seus �ltimos anos. A descri��o dos tra�os f�sicos do Senhor se corresponde com a de ambos monarcas (prognatismo, mand�bula solta, hemofilia e s�filis). A vida retirada do Senhor em seu Pal�cio necr�pole repete, assim mesmo, o lend�rio isolamento de Carlos V no mosteiro de Yuste e de Felipe II em El Escorial. A constru��o do grandioso monumento de El Escorial est� obviamente tomada da vida de Felipe II e das numerosas obras sobre o tema que Fuentes cita na “bibliografia conjunta” inclu�da em Cervantes. Do mesmo modo, a morte excrement�cia do Senhor rememora a terr�vel agonia de Felipe II e em alguns detalhes anuncia a de Francisco Franco. A alus�o � morte do ditador espanhol parece imposs�vel, j� que esta aconteceu no mesmo ano da publica��o do romance. Embora, � interessante notar que h� algumas coincid�ncias surpreendentes, como o fato de que a agonia do General Franco se prolongou por trinta e tr�s dias, o mesmo per�odo de tempo que Fuentes determina para a agonia do Senhor, assim como que em seus momentos finais o Senhor seja transportado misteriosamente ao Vale dos Ca�dos, a outra grandiosa necr�pole castelhana, onde descansam os restos mortais do General�ssimo Francisco Franco. (2002, p.57).
A decad�ncia do monarca se percebe com o avan�o da narrativa, quando
pouco a pouco, o romance apresenta a agonia como met�fora de uma forma de
poder moribundo. Desde a primeira apari��o do Senhor em Terra Nostra, em um
dia de ca�a em que seus vassalos ignoram suas ordens, o rei se mostra impotente e
vencido perante alguns acontecimentos, derrotado por uma realidade que ele
101
mesmo � incapaz de compreender. Mediante esse recurso de representa��o
progressiva da perda de poder pol�tico e pessoal.
Em n�vel imediato, o romance representa a decad�ncia do imp�rio espanhol,
percept�vel desde o in�cio do reinado de Felipe II; em um n�vel mais profundo
dramatiza o fracasso dos sistemas absolutistas na tentativa de submeter a liberdade
e de manter a realidade sob seu controle. No fim, o Senhor fracassa na sua tentativa
de dirigir e de dominar o mundo desde seu Pal�cio.
O Senhor fracassa em seus intentos por manter a realidade sob seu controle. Seu poder vai minguando a medida que transcorre o romance. De fato, Terra Nostra �, em muitos sentidos, a radiografia de um poder moribundo. (...) Uma das li��es que se desprendem de Terra Nostra � que o poder, como sugere Foucault, n�o � uma propriedade sen�o uma estrat�gia, n�o � um privil�gio que algu�m possa possuir, sen�o uma din�mica rede de rela��es que est� permanentemente em tens�o. (2002, p.58).
Santiago Juan Navarro considera que Carlos Fuentes transforma a
personagem o Senhor em porta-voz do tomismo. Ao longo de uma discuss�o
teol�gica com Ludovico, o Senhor estabelece os princ�pios do mundo
medievalizante: “O livro de Deus s� pode ser lido de uma maneira: qualquer outra �
uma loucura; a vis�o do mundo � �nica; todas as palavras e todas as coisas
possuem um lugar para sempre estabelecido e uma fun��o precisa e uma
correspond�ncia exata com a eternidade divina” (p.136). De acordo com essa
perspectiva, sistematizada por Tomas de Aquino, a lei humana deve basear-se na lei
natural que �, por sua vez, a imagem perfeita da lei divina. Nessa cosmovis�o, o
Estado tem que subordinar-se �s diretrizes da Igreja, por esta ser a �nica que pode
facilitar o fim �ltimo do homem: a sua uni�o com Deus.
No n�vel religioso, para Carlos Fuentes, o Senhor representa uma vis�o de
mundo herdada do pensamento teoc�ntrico medieval. A diferen�a do resto da
Europa, onde se produz uma “consci�ncia vitoriosa do pensamento cr�tico, expans�o
capitalista e reforma religiosa, a Espanha de Felipe II continuava sujeita � hierarquia
e unit�ria pr�pria da escol�stica” (1989, p. 33). No epis�dio Sétima jornada (p.623),
o Senhor discute e argumenta com Ludovico.
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As palavras e todas as coisas possuem um lugar para sempre estabelecido e uma função precisa e uma correspondência exata com a eternidade divina (...). O mundo do homem e o mundo de Deus se expressam através de uma heráldica verbal enriquecedora, interpretável, sim, porém, imutável, Ludovico (...). Todo enriquecimento, combinação ou interpretação das palavras nos conduzem sempre à mesma perspectiva hierárquica e unitária, a uma leitura única da realidade. E fora desse cânon, toda leitura é ilícita. (TN, p.624- 625).
Na esfera cultural, diz Navarro, que a figura do monarca opõe-se radicalmente
à revolução estética do perspectivismo renascentista ou à amplitude de verdades
que representou o humanismo erasmista. As revoluções científicas que triunfam na
Europa não têm cabida no mundo inerte do soberano. Para ele, a terra continua
sendo plana e o centro do universo. Quando recebe a notícia de um Novo Mundo,
decreta a sua inexistência. O Senhor defende uma unidade impossível num mundo
dominado pela multiciplicidade e a expansão dos horizontes tanto físicos como
intelectuais.
Perante o fracasso de suas cruzadas (...) o Senhor ordena a construção de uma fortaleça que sirva de microcosmos de seu mundo caduco. Sua fortaleça será em última instância necrópole, não apenas porque é seu próprio mausoléu, senão pela própria condição de museu do inerte: o Senhor embalsama e amordaça a realidade da Espanha e tenta superar o fato da morte e o consegue, já que logra governar literalmente desde El Escorial. Assiste à decomposição de seu próprio corpo, em uma alusão ao fato histórico de sua prolongada agonia. A ironia final do romance consiste em que o governo absoluto e eterno do Senhor está circunscrito, como seu Palácio, ao mundo da morte, por isso é que quando ascende pela escada que comunica seu Palácio com o mundo do futuro se percebe a si mesmo num outro mausoléu. O Valle de los Caídos, a tumba que Franco se fez construir em vida. O único futuro que parece reservado a este sombrio monarca é o eterno vagar por um labirinto interminável de necrópole. (2002, p.59).
Como o resto das personagens de Terra Nostra, o Senhor é a amalgama de
várias figuras históricas unidas pelo recurso ficcional. Navarro comenta que Carlos
Fuentes recorre a colagem historiográfica e a fábula literária para caracterizar um rei
solitário que representa o conjunto de tendências retrógradas que formam parte da
memória coletiva dos povos americanos. Na figura do Senhor se condensa o
obscurantismo e a ortodoxia política e cultural.
103
Muitos dos elementos que caracterizam a figura do Senhor s�o de natureza puramente fant�stica. A compreens�o de um longo per�odo hist�rico em uma �nica gera��o tem como resultado a altera��o das cronologias. Am�rica � descoberta um s�culo depois. O Senhor, representado principalmente como Felipe II, � o filho de Felipe O Formoso e de Joana a Louca, quando na realidade foi filho de Carlos V e de Isabel de Portugal. A viv�ncia direta das heresias que o Senhor tem durante a sua juventude carece de toda fundamenta��o hist�rica. Assim como a batalha que deu origem � cria��o de El Escorial (a batalha de San Quint�n), descrita no cap�tulo 2, n�o foi contra as heresias, como afirma o romance, sen�o contra a Fran�a. No romance o Senhor contrai matrimonio com Isabel Tudor, mas nunca o consuma. Agravada pelo trato excessivamente cort�s que recebe de seu marido, Isabel, representada como ninfoman�aca, regressa a Inglaterra, onde prepara a destrui��o da Armada Invenc�vel. O elemento fant�stico na caracteriza��o do Senhor culmina com sua transforma��o final num lobo, como resultado da maldi��o que pesa sobre a sua dinastia. (2002, p.58)
Por motivos liter�rios e ideol�gicos, Carlos Fuentes privilegia a luta de Felipe
contra as heresias e deixa de lado as estrat�gico-militares. O romance demonstra
maior interesse pela luta ideol�gica deixando de lado a luta entre as pot�ncias. “Por
outro lado, o amor cort�s do Senhor n�o tem fundamento hist�rico, pois Felipe II se
casa quatro vezes, desses matrim�nios resultaram v�rios herdeiros, dentre eles, o
sucessor ao trono, Felipe” (2002, p.58). Na caracteriza��o das personagens, a figura
do Senhor simboliza o poder opressor da hist�ria espanhola e latino-americana, que
rejeita as mudan�as e a liberdade. � ele que possui a maior quantidade de tra�os
hist�ricos; por representar principalmente � monarquia espanhola da casa dos
Habsburgo.
No romance, ele passa por tr�s etapas de sua vida: como Felipe, o jovem
pr�ncipe herdeiro; como o rei maduro e defensor do absolutismo e como o debilitado
velho rei doente, encerrado no edif�cio El Escorial. A figura de Ludovico representa a
cultura renascentista e humanista de ocidente; estudante fugitivo, amante do
movimento pela liberdade da a��o humana, ele fora um dos amigos do Senhor na
juventude. Seu nome � um jogo de palavras que evoca o pensador Giambattista
Vico e a ideia da progress�o hist�rica do tempo em espiral.
Vico rejeitou um conceito puramente lineal da hist�ria, concebida como marcha inexor�vel para o futuro, que se desprendia do pressuposto racionalista. Concebeu a hist�ria como um movimento de corsi e ricorsi, um ritmo c�clico, em virtude do qual as civiliza��es se sucedem, nunca id�nticas entre si, mas cada uma portando a
104
memória de sua própria anterioridade, dos êxitos assim como dos fracassos das civilizações precedentes; problemas não resolvidos, mas também valores assimilados; tempo perdido, mas também tempo recobrado. Os corsi e recorsi (cursos e recursos) ascendem em forma de espiral. (1992, p.31).
Em A fuga (p.118), o jovem príncipe Felipe escapa do castelo na companhia de
dois jovens camponeses, filhos do velho Pedro, pertencentes ao exército dos
homens livres dos alumbrados. Interroga-os detalhadamente sobre a localização do
grupo e os delata. Os jovens são caçados e devorados pelos cães. Na sequência, o
príncipe encontra um grupo de milenaristas que dançava e cantava no bosque e se
une a eles.
Essa noite, Felipe escapou do castelo junto com dois jovens camponeses. Os três se esconderam no bosque vizinho e aspiraram seu abraço forte e verdejante. Não dormiram, pois Felipe interrogou os jovens, detalhadamente, lhe contaram onde podiam encontrar os exércitos de homens livres, dos iluminados e dos reis do interreino (...). Ao cair da noite, escutou uma música e aproximou-se de uma clareira onde os homens e as mulheres dançavam e cantavam: a essência divina é minha essência e minha essência é a essência divina, pois toda coisa criada é divina (...). O jovem recordou-se dos corpos sangrentos e desmembrados de seus desafortunados amigos: despiu-se e se uniu aos dançarinos. Sentiu-se embriagado e dançou com eles. (TN, p.118-119).
O romance carnavaliza a expressão milenarista, a qual alude à doutrina
escatológica cristã, que anuncia a segunda vinda de Cristo ao mundo para instaurar
seu reino messiânico antes do Juízo Final. Na obra o termo amplia seu significado,
vira ao avesso seus limites e modos de imaginar o Milênio e os inúmeros caminhos
que conduzem até ele: os movimentos dissidentes ou a seitas postulam a um
salvacionismo terrestre, coletivo, total e milagroso, cuja composição e função social
permitem comportamentos variáveis que vão desde a agressividade mais violenta ao
pacifismo mais moderado; da mais etérea espiritualidade até o materialismo terreno.
Tanto Celestina como Ludovico se transformam, duplicam e até se triplicam em
outras que aparecem nas demais sequências narrativas. Ambas representam um
bloco de resistência ao absolutismo da época. Ludovico é um filósofo-historiador que
questiona a fé com as questões heréticas do seu tempo. Celestina faz referência ao
poder arbitrário do qual foi vítima. Absolutismo e poder estão sempre encarnados na
105
figura do Senhor. Tanto o aspecto hist�rico como o ficcional enquadram essa figura
transitando entre seus pares opositores aludindo � ideologia da �poca.
As duas hist�rias dessas personagens s�o contadas e recontadas ao longo do
romance: a hist�ria de Celestina, jovem camponesa violentada pelo Senhor, que de
acordo com a Lei da pernada concede o privil�gio ao rei de desflorar as jovens
s�bditas. Celestina tamb�m se relaciona com o jovem Felipe II, antes de se tornar o
novo Senhor. Nesse momento da narrativa, o percurso da personagem fict�cia,
Felipe II, se apresenta como o avesso do relato do discurso hist�rico, que apresenta
a vida do monarca como “o rei Prudente”, austero e extremamente pacato.
O jovem Felipe conhece a Celestina no epis�dio Jus Prima Noctis (p.115) que
a descreve como uma jovem camponesa, Celestina. No dia do seu casamento com
o ferreiro Jer�nimo, Celestina, “a noiva p�lida e magra de dezesseis anos”, �
violentada, como v�tima do direito de pernada, pelo velho rei Felipe na frente do filho,
o ent�o pr�ncipe Felipe.
Celebrava-se uma grande boda camponesa no celeiro; cantava-se, bailava-se, bebia-se. O par de rec�m-casados, um ferreiro de rosto vermelho e uma jovem p�lida e magra de dezesseis anos dan�avam (...). Ent�o todos escutaram as pesadas ferraduras no curral e sentiram medo; o Senhor e seu jovem rebento, como ele chamado Felipe, entraram e o amo, sem dizer palavra, aproximou-se da noiva, tomou-a pela m�o e ofereceu-a a Felipe. (...). o jovem resistiu (...). o Senhor, de um golpe, derrubou seu filho; tirou as botas e as cal�as e fornicou com a noiva, apressada, orgulhosa, fria, sangrenta, pesadamente, enquanto Felipe olhava acena (...) Felipe disse seu nome � jovem solu�ante ela disse-lhe o seu: Celestina. (TN, p.116).
Esse epis�dio aleg�rico � uma met�fora carnavalesca da Conquista da
Am�rica. Na vis�o transgressora do romance, o encontro dos continentes se
constitui numa esp�cie de estupro praticado pelo Velho Mundo sobre a jovem
Am�rica rec�m-conquistada; logo ser� violentada pelo processo da coloniza��o e
pelos antigos interesses criados por esta.
Na sequ�ncia no epis�dio Celestina (p.118), a desesperada jovem pratica
bruxaria queimando a sua m�o no fogo, uma chaga sem cicatriz � a prova do ato.
A noiva p�lida e magra meteu-se na cama e ali, de dia e de noite, tremeu. Seu noivo tentou aproximar-se dela; mas cada vez que o
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fazia Celestina gritava recha�ando a aproxima��o do seu esposo. O jovem ferreiro baixava os olhos e a deixava em paz. Quando ficava s�, Celestina aproximava-se do fogo constantemente ati�ando para acalmar os tremores de doente; tocava as chamas com suas p�lidas m�os e abafava seus gritos e queixas mordendo uma corda. Assim continuou queimando-se, mordendo e queimando, at� que a corda fosse reduzida a um fio �mido, e as m�os a uma chaga sem cicatrizes. Quando o virginal marido viu as m�os de sua esposa e perguntou o que acontecia, ela respondeu: - Eu forniquei com o dem�nio. (TN, p.118).
Em No bosque (p.119), a jovem Celestina sai de sua casa e perambula pelo
bosque, “Celestina abandonou seu lar; tamb�m ela deambulava pelos bosques,
lavando as m�os feridas nos frescos mananciais e comendo nozes e ra�zes no
�xtase da sua aventura”.
Celestina apresenta Ludovico a Felipe. No epis�dio A cidade do sol (p.121),
quatro amigos falam de seus sonhos: Pedro deseja um mundo sem servid�o; Sim�n
imagina um mundo sem doen�as nem morte; Ludovico deseja um mundo sem
religi�o, e Celestina sonha com um mundo onde n�o haja restri��es sobre o amor.
Por meio do relato dos sonhos de cada uma das personagens, o romance inaugura
uma possibilidade de utopia que se concretizaria nas terras do Novo Mundo ainda
n�o descoberto.
Celestina abandonou seu lar; tamb�m ela deambulava pelos bosques, lavando as m�os feridas nos frescos mananciais e comendo nozes e ra�zes (...). Depois escuto os sons cada vez mais pr�ximos da m�sica e do canto. Felipe avan�ava na frente (...) o cora��o de Felipe deu um pulo, pois reconheceu em Celestina a noiva que, uma tarde, seu pai tinha tomado para si. (...) Tomou as m�os feridas de Celestina e ela respondeu: - N�o, venha voc� comigo. Eu tive um sonho. Devemos ir para o mar.
(TN, p. 118, 119, 120).
Felipe interage com os quatro sonhadores, Pedro, Celestina, Sim�n e
Ludovico. Pedro � o pai dos jovens camponeses assassinados, depois que suas
terras foram desapropriadas pelo pai de Felipe. O velho Pedro sonha com um
mundo melhor e decide construir uma embarca��o para encontrar um mundo novo.
Celestina, Ludovico e o velho Pedro formam um grupo que almeja a liberdade.
Todos se juntam ao monge Sim�o para construir a barca que os levar� ao ut�pico
mundo livre, sem monarcas; um mundo diferente do deles; t�o desejado e ainda por
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ningu�m descoberto. Celestina se encontra com o pr�ncipe Felipe e os dois se
dirigem � praia do Cabo dos Desastres, onde Pedro est� construindo o navio que
servir� para sair em busca de um Novo Mundo.
Pedro disse que imaginava um mundo sem ricos nem pobres, sem poderes arbitr�rios sobre as pessoas e as coisas. Falou com uma voz ao mesmo tempo sonhadora e brusca, imaginando uma comunidade em que cada qual seria livre para pedir e receber o que necessitasse dos demais, sem outra obriga��o que a de dar a cada um o que a ele pedissem. Cada homem seria livre para fazer o que mais gostasse, visto que todas as preocupa��es seriam ao mesmo tempo naturais e �teis. Todos olham para Celestina e a jovem apertou as m�os contra os seios, fechou os olhos e imaginou que nada seria proibido e que todos os homens e todas as mulheres poderiam escolher a pessoa e o amor que desejassem, pois todo amor � natural e aben�oado; Deus aprova todos os desejos de suas criaturas, se s�o desejos de amor e de vida e n�o de �dio e de morte. N�o plantou o pr�prio Criador a semente do desejo amoroso nos peitos de suas criaturas? O monge Sim�n disse: S� pode haver amor se as doen�as e a morte deixarem de existir. Eu sonho com um mundo no qual cada crian�a que nas�a seja feliz quanto imortal. Ningu�m voltara a temer a dor da extin��o, pois chegar a este mundo significar� habit�-lo para sempre, e assim a terra ser� o c�u e o c�u estar� na terra. (...) interveio o estudante Ludovico, suporia um mundo sem Deus, j� que o mundo imaginado por voc�s, um mundo sem poder e sem dinheiro, sem proibi��es, sem dor e sem morte, cada homem seria Deus (...). Ent�o todos olharam para o jovem Felipe e esperaram em sil�ncio. Por�m o filho do Senhor disse que ele s� falaria depois de pensar � sua maneira o que os outros acabavam de imaginar em lugar dele. (TN, p.21,22)
Para Felipe esse tipo de mundo n�o existe, o seu � um mundo do presente,
imut�vel, fixo. Valendo-se da sua ast�cia, Felipe frustra os sonhos dos seus amigos.
Conhece os cruzados milenaristas e o segue. Eles est�o convencidos de que o
mundo ideal pode ser “aqui e agora”. Felipe os trai e os leva ao pr�dio vazio do
Alc�zar, que pertence ao seu pai. O pr�ncipe delata os integrantes do “ex�rcito dos
homens livres dos alumbrados” (p.23) e entrega os milenaristas aos verdugos, e
desse modo, comete seu primeiro crime, rejeitando a sua primeira oportunidade de
mudar o mundo. Os sonhos dos quatro amigos n�o se realizam devido � interven��o
de Felipe.
O ensaio Cervantes, o la crítica de la lectura (1976) apresenta uma s�ntese
do programa est�tico e historiogr�fico de Carlos Fuentes. Aborda a problem�tica da
dupla tradi��o liter�ria que se corresponde com duas cosmovis�es antit�ticas, de um
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lado a vis�o �pica medieval ou cl�ssica, que o autor associa com o poder e com a
consolida��o da ordem estabelecida, em oposi��o com a vis�o ap�crifa da cultura
popular que subverte a ordem e favorece a ambiguidade. Alude � obra de Fernando
Rojas, “La Celestina � a primeira obra moderna na qual se manifesta claramente a
reflex�o interior sobre as a��es humanas, que num per�odo posterior, e de diversas
formas, culminar� nas obras de Cervantes e de Shakespeare” (p.46). Em El espejo
enterrado reafirma essas considera��es e comenta,
(...) � uma obra itinerante, situada nas ruas de uma cidade moderna desamparada, sem muros, pontes levadi�as (...) uma cidade moderna percebida por Rojas como colagem das realidades hist�ricas, onde os v�cios e as virtudes exemplares da moralidade medieval s�o derrotados pelos interesses, o dinheiro, a paix�o e o sexo. (...) � uma obra itinerante, situada nas ruas de uma cidade moderna desamparada, sem muros, pontes levadi�as (...) uma cidade moderna percebida por Rojas como colagem das realidades hist�ricas, onde os v�cios e as virtudes exemplares da moralidade medieval s�o derrotados pelos interesses, o dinheiro, a paix�o e o sexo. Ainda mais significante � a tragicom�dia La Celestina, escrita por Fernando Rojas depois da expuls�o dos judeus. Rojas � descendente de judeus convertidos, escreveu sua obra mestra quando ainda era um estudante da Universidade de Salamanca. (...). Todas as personagens de La Celestina gastam imensas energias em idas e vindas relacionadas �s paix�es. Mas toda esta energia termina na imobilidade absurda da morte. La Celestina � produto da Universidade de Salamanca, o maior centro de ensino da Espanha, que se concebeu a si mesma como uma alternativa human�stica � crescente ortodoxia e intoler�ncia da Coroa. Quando, em 1499, e depois de m�ltiplas d�vidas, Rojas finalmente decidiu publicar seu livro, possu�a uma aguda consci�ncia do duro destino de seus irm�os judeus. O mundo � a mudan�a, proclama La Celestina, nada sen�o mudan�as, mas junto com o destino, a mudan�a leva a todos a um final amargo e desastroso. Este � o livro que (...) ensinou ao povo espanhol a viver sem ideais. O Arcipreste Juan Ruiz e Fernando Rojas s�o humanistas que se atrevem a sonhar e a advertir, celebrando a a��o humana, mas tamb�m assinalando claramente seus perigos. (1992, p. 93)
O Senhor surge evocado por Celestina em Aos pés do Senhor (p.35), epis�dio
que inicia a narrativa de forma cl�ssica: Conta-se. Celestina � uma personagem
fict�cia que d� origem ao romance, � a que se transforma com maior liberdade por
representar a mem�ria da hist�ria liter�ria da Espanha. H� duas Celestinas no
romance: uma velha alcoviteira e trai�oeira, manhosa, ego�sta e sem escr�pulos; a
outra, uma jovem mulher aberta ao novo, amante da liberdade, aventureira. Na
dualidade se encontram e se antep�em os pares: a Celestina pajem – a Celestina
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bruxa. A primeira praticava a magia quando era jovem, mas depois de transmitir a
sua mem�ria a uma jovem tamb�m de nome Celestina, fica na lembran�a e ocupa
seu of�cio original de alcoviteira, como na tragicom�dia original, La Celestina-
Tragicomedia de Calixto y Melibea (1499).
Como a nova Celestina � uma personagem enigm�tica; interpreta o papel de
pajem da velha rainha, a Dama Louca, acompanha-a na sua viagem de
peregrina��o e participa do desfile da rainha tocando o tambor. Na praia do Cabo
dos Desastres, Celestina encontra um n�ufrago Polo Febo-Peregrino e o leva ao
Pal�cio do Senhor. No fim do Velho Mundo, no epis�dio Olhares (p.340) Celestina-
pajem junto ao velho Ludovico e com o jovem n�ufrago se apresentam ao Senhor e
relatam suas aventuras dos �ltimos vinte anos de aus�ncia do outro lado do mundo.
Os caminhos liter�rios percorridos pela Celestina de Terra Nostra evocam
alguns dos textos heterodoxos da �poca medieval e renascentista da cultura
hisp�nica, e ao mesmo tempo, irmana obras como o Libro del buen amor (1330),
de Juan Ruiz, La Celestina (1499), de Fernando Rojas, El burlador de Sevilla
(1630) de Tirso de Molina, Don Quijote de La Mancha (1605), de Miguel de
Cervantes y Saavedra. Essas obras evocadas cedem suas hist�rias para construir
as outras hist�rias no romance de Carlos Fuentes, hist�ria que em Terra Nostra se
bifurcam por infinitas vias em busca da identidade hispano-americana. Ao sintetizar
nas personagens alguns dos textos primordiais da literatura espanhola, real�a a
import�ncia do di�logo perene entre autores e obras de todos os tempos, como
caracter�stica universal da literatura.
No ensaio Valiente mundo nuevo (1992) ao refletir sobre a identidade indo-
afro-americana fala em pensar “um passado como mem�ria e um futuro como
desejo. Vivemos hoje. Amanh� teremos uma imagem do que foi o presente (...) o
passado foi vivido, a origem do passado � o presente” (p.17).
(...) tamb�m constitui uma resenha de diversos aspectos da vida da Espanha durante o per�odo de 1499 a 1598, que abrange quase toda a constru��o de El Escorial, literalmente, da publica��o da La Celestina em 1499 � de Don Quijote em 1605. Em seu ensaio Fuentes oferece a vis�o de uma Espanha multicultural, habitada por judeus, mouros e crist�os na �poca do Medievo e o Renascimento. Ao sustentar-se na obra de Am�rico Castro, Jos� Ortega e Gasset e outros estudiosos, Fuentes demonstra um interesse particular por entender como, por baixo o verniz da ortodoxia, Espanha constituiu
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um mundo vibrante de heterodoxia inclusive na Idade M�dia. (...) atrav�s dos sisudos escritos de Am�rico de Castro e de outros textos essenciais, Fuentes elogia a literatura er�tica dos �rabes da Idade M�dia e a literatura que se sustenta na rica tradi��o n�o hisp�nica, a saber, o Libro de buen amor e Celestina. De maneira consciente, Terra Nostra est� carregada de textos e, neste sentido, surge como projeto borgiano ou foucaultiano que da a entender que todos os livros s�o um. (1992, p.95, 97).
No fim do s�culo XV, surge a tragicom�dia La Celestina, o argumento
apresenta uma velha astuta, enganadora, alcoviteira, h�bil e perversa, com sua
maligna intelig�ncia conquista aliados, seu poder atroz n�o se limita a praticar o mal
em beneficio pr�prio, sen�o que o transmite como uma peste que contagia
indiscriminadamente a todos. A obra � uma admir�vel galeria de figuras humanas: a
ardente e ing�nua paix�o dos amantes, a sinistra intelig�ncia da Celestina e a
cobi�a dos criados s�o algumas caracter�sticas carnavalizadas para formar o perfil
psicol�gico das personagens do romance.
Fernando Rojas, um judeu converso, escreve La Celestina como uma
alternativa humanista � crescente ortodoxia da coroa espanhola, constr�i uma
hist�ria de personagens muito parecidos aos do romance: uma velha, suas pupilas,
dois amantes jovens e seus criados. A personagem Celestina de Carlos Fuentes,
como met�fora da velha Espanha, � uma personagem importante j� que percorre os
tr�s mundos de Terra Nostra.
(...) a tragicom�dia La Celestina, escrita por Fernando Rojas depois da expuls�o dos judeus. Rojas, o descendente de judeus conversos, escreveu sua obra sendo um estudante e desde a Universidade de Salamanca. � a hist�ria de uma velha alcoviteira, seus disc�pulos, dois jovens amantes e os criados de ambos. � uma obra itinerante, situada nas ruas de uma cidade moderna desamparada, sem muros, pontes levadi�as, uma cidade moderna vista por Rojas como a colagem da realidade hist�rica, onde os v�cios e virtudes exemplares da moralidade medieval s�o derrotados pelos interesses, o dinheiro, a paix�o e o sexo (...) Rojas tinha uma consci�ncia aguda do destino de seus irm�os judeus. O mundo � mudan�a, proclama La Celestina, nada sen�o mudan�as, mas junto ao azar, a mudan�a a todos leva a um final amargo e desastroso. (1992, p.93)
A nova ordem narrativa em O Velho Mundo se arquiteta pelo ac�mulo de
�pocas distintas num mesmo espa�o temporal constru�do em um universo
absolutamente verbal criado pela mem�ria da Celestina, “Ou�a meu conto” (p.35).
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Esta figura representa a mem�ria da Espanha liter�ria, Celestina � uma personagem
de vital import�ncia para o romance; ela atua nas tr�s partes da narrativa, � uma
figura c�clica e infinitamente pl�stica, que se desdobra, se mascara, aparece e
reaparece por entre os epis�dios interrelacionando as m�ltiplas hist�rias.
Em O Velho Mundo, surge primeiro com Polo Febo em Paris, em 1999; na
sequ�ncia como a jovem que “conta a hist�ria” para o Senhor; � a menina do
bosque; a jovem criada noiva; � a pajem tocadora do tambor e integrante da corte da
Dama Louca; tamb�m se manifesta como a “velha alcoviteira”, velha prostituta.
Quando beija os l�bios da jovem Celestina do bosque, a velha tatua os l�bios da
jovem e, a partir de ent�o, para sempre permanecem gravados neles o presente, o
passado e o futuro. Todos os tempos est�o entrela�ados entre si nos l�bios fadados
a contar e recontar a mesma hist�ria eternamente. S�o l�bios escritos e rescritos
pela fic��o liter�ria; l�bios que n�o pararam de contar as hist�rias de ambi��o e
trai��o, de amor e desamor desde a primeira publica��o de Fernando Rojas, em
1499. Carlos Fuentes, En esto creo, justifica a import�ncia da obra.
A Espanha � a filosofia grega e o direito romano. A Espanha � a Espanha das tr�s culturas – judia, crist�, �rabe – encontrando-se na corte de Afonso O S�bio e desastrosamente expulsas pelo dogmatismo cego dos reis Isabel e Fernando. A Espanha � a grande li��o de uma cultura fortalecida pela adversidade. � a Espanha do judeu convertido Fernando Rojas e do primeiro grande romance urbano, La Celestina, derrubando as muralhas da cidade medieval para que circulem livremente o sexo, o dinheiro, o amor e a morte.
(2002, p.13).
Na obra de Fernando Rojas, a personagem Celestina carnavaliza o efeito de
sentido do ser-proceder na figura da personagem liter�ria; ao contr�rio do que se
poderia supor, a funesta velha rompe com a ideia de celestial-angelical quando seu
perfil psicol�gico vira ao avesso o conceito. Etimologicamente, Celestina faz
refer�ncia � pureza delicada da cor azul claro. Carl G.Jung diz que as cores
representam alguns dos estados da alma e que, na concep��o anal�tica, exprimem e
traduzem as principais fun��es das diversas tend�ncias de pulsa��es ps�quicas do
homem, pensamento, sentimento, intui��o, sensa��o: “O azul claro transmite a
plenitude do c�u, representa o lugar dos anjos, do esp�rito e da paz. No plano
ps�quico, o azul � a cor do pensamento, da beleza, do fundamento, da sabedoria”.
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(in: Psicologia e alquimia, 1994). Celestina � uma personagem que critica o
sistema socioecon�mico e cultural do seu tempo.
A vida e a personalidade do bacharel Fernando Rojas s�o quase t�o misteriosas como sua extraordin�ria obra. Apenas sabemos que era um judeu converso, nascido em Puebla de Montalb�n, Prov�ncia de Toledo, que exerceu a advocacia, foi Prefeito Mor de Talavera de la Reina, onde morreu em 1641.(...) Escreveu uma das obras primas da literatura universal, porque, pela primeira vez na hist�ria do teatro, e adiantando-se a Shakespeare, o tr�gico e o c�mico se mesclam em iguais propor��es, de tal forma que � imposs�vel dissoci�-los. Na tragicom�dia La Celestina (1499) se inicia diretamente, e sem pre�mbulos, com o amor como for�a cega e destrutiva, da qual se serve a clarividente e implac�vel Celestina para conduzir a a��o e desencadear o destino tr�gico dos jovens amantes Calisto e Melibea. O jovem Calisto dissimula seu apetite carnal enganando-se a si mesmo com frases feitas copiadas da tradi��o po�tica do amor cort�s, que por essa �poca j� se haviam transformado em formulas vazias de sentido. � dessa literatura idealizadora, caricatura do amor, e personificada por Calisto, que Fernando Rojas se burla cruelmente ao longo da obra, que tem o prop�sito de desenmascarar o amor e apresent�-lo como “um abismo sombrio, que atrai e devora os incautos”. Por�m quem atrai a aten��o � a Celestina, uma velha terr�vel e habilidosa que utiliza sua maligna intelig�ncia aliada a recursos perversos para conseguir transformar os seres honestos em criaturas perdidas. (...) Nisso consiste o poder atroz da maldade de Celestina, que n�o se limita a praticar o mal em beneficio pr�prio, como tamb�m o transmite como uma peste que contagia indefectivelmente a todo aquele que se cruza em seu caminho. Aparentemente vulgar, ela � a mais sinistra das personagens de fic��o, e frente a ela at� a personagem de Goethe n�o passa de um anjo mau. At� Lady Macbeth parece uma coitada quando sua consci�ncia a enlouquece e aparece um rasgo da sua humanidade. Celestina n�o tem nada de anjo, � atrozmente humana, perigosamente inteligente e experiente nas batalhas da vida: “Que n�o conhe�o apenas o que vejo e ou�o mais ainda o intr�nseco com meus intelectuais olhos eu penetro”.
(Pr�logo de La Celestina, p.7-9).
A Celestina de Terra Nostra � uma personagem c�clica que percorre o espa�o-
tempo da obra para revelar outra ordem de valores; a eterna tragip�cara conhece as
ambi��es e as fraquezas do g�nero humano, por isso ela cria seus pr�prios c�digos
morais para poder sobreviver nos espa�os fict�cios da velha Espanha. Celestina,
celestial, tem a fun��o de anunciar os saltos temporais na obra, sua trajet�ria � de
vital import�ncia para a progress�o da narrativa. Ela apresenta novas vers�es da
hist�ria, acrescenta novas informa��es, constr�i novas verdades para si e para os
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outros, reescreve os fatos e estimula a reflex�o ao contrapor o discurso hist�rico
com o liter�rio. Representa a mem�ria total do passado da Espanha, a qual implica
numa dupla identidade: a do lado obscuro da Idade M�dia e a do lado da liberdade
renascentista, da etapa da transi��o cultural que acumula as mem�rias dos m�ltiplos
narradores. Seu corpo funciona como m�scara passageira feita de palavras, e as
suas palavras variam dependendo de suas m�scaras ou dos pap�is moment�neos.
Quando Celestina desempenha seus variados pap�is como feiticeira ou pajem, fala
dos seus motivos, do seu amor e sacrif�cio, da vida e da morte em um mundo feito
de papel.
Para compreender melhor o papel da dessa figura carnavalesca no romance �
importante recapitular o passado da primeira Celestina, a Celestina-bruxa. Ela surge
no epis�dio Jus Prima Noctis (p.115) na noite da sua boda com o ferreiro Jer�nimo,
violentada pelo rei Felipe o Formoso na frente de seu filho o pr�ncipe Felipe. No
fragmento intitulado Celestina (p.118), a jovem desesperada pratica bruxaria
queimando a sua m�o no fogo, uma chaga sem cicatriz � a prova do ato. Em No
bosque (p.119), a jovem Celestina sai de sua casa e perambula pelo bosque, �
violentada por dois velhos. Finalmente, a Celestina-bruxa transmite toda a sua
mem�ria para uma menina, a Celestina-pajem, que ap�s um beijo fica com os l�bios
tatuados.
A partir da�, a jovem desempenhar� pap�is importantes ao longo da narrativa
do romance; nas terras do Mundo Novo, acompanhando as aventuras de Polo Febo
e, no espa�o do Outro Mundo, num dos �ltimos di�logos do Senhor antes da sua
morte: “o Senhor se deleitava comprovando a usura daninha com que o tempo ia
cobrando do corpo da velha andarilha; no l�bio superior nascia um escuro bu�o e
crescia-lhe uma barba branca no queixo”, Celestina bruxa tamb�m se delicia ao ver
a decad�ncia do rei e diz, “Parece que voc� n�o me conhece h� vinte anos! Ai!
Quem me viu e quem me v� agora, n�o sei como seu cora��o n�o arrebenta de dor
(...) envelheci para morrer... sabe disso Sua Merc�?” (p.705).
Em Paris, ap�s o caos apocal�ptico, Celestina inicia a hist�ria no romance,
transformando-se livremente para representar a mem�ria da hist�ria liter�ria da
Espanha. H� duas Celestinas no romance: uma velha alcoviteira e trai�oeira,
manhosa, ego�sta e sem escr�pulos; a outra, uma jovem mulher aberta ao novo,
amante da liberdade, aventureira, como met�fora das duas Espanhas percebidas
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por Carlos Fuentes: uma � obscura, ego�sta e inescrupulosa como a da monarquia;
a outra, livre e sempre aberta para o novo, � a Espanha dos intelectuais
renascentistas.
Nessa dualidade se encontram e se antep�em os pares: a Celestina pajem – a
Celestina bruxa. A primeira praticava a magia quando era jovem, mas depois de
transmitir a sua mem�ria � jovem Celestina, fica na lembran�a e ocupa seu of�cio
original de alcoviteira, como na tragicom�dia original, La Celestina- Tragicomedia
de Calixto y Melibea.
A nova Celestina � uma personagem enigm�tica, interpreta o papel de pajem
da velha rainha, a Dama Louca, acompanha-a na sua viagem de peregrina��o e
participa do desfile da tocando o tambor. Na praia do Cabo dos Desastres, Celestina
encontra o n�ufrago Polo Febo-Peregrino e o leva ao Pal�cio do Senhor.
Finalmente, no epis�dio Olhares (p.340), Celestina-pajem junto ao velho Ludovico e
com o jovem n�ufrago se apresentam ao Senhor para relatar suas aventuras dos
�ltimos vinte anos de aus�ncia do outro lado do mundo.
Esses tr�s n�ufragos chegam acompanhados por tr�s garrafas verdes,
presente, passado, futuro; s�o recolhidos sucessivamente pela Senhora, Isabel,
esposa do Senhor; logo pela Dama Louca, m�e do Senhor e finalmente por
Celestina, transfigurada como a pajem do tambor da rainha consorte. O primeiro dos
n�ufragos � Juan, Iohannes Agrippa - uma das encarna��es de Agrippa P�stumo,
que fora assassinado por Cl�udio, servo de Tib�rio. Juan se transforma em amante
de Isabel, evocando a personagem Juan Tenorio, de Jos� Zorrilla, (1844). Adquire
logo as caracter�sticas de Don Juan e seduz todas as mulheres da corte, finalmente
se transforma em est�tua de pedra, como no romance original El burlador de Sevilla
(1630) de Tirso de Molina.
O segundo n�ufrago assume a personalidade de Felipe o Formoso, o falecido
marido da Dama Louca, e termina por se tornar no Pr�ncipe Bobo, proclamado
herdeiro pela rainha consorte e obrigado a contrair n�pcias com a an� Barbarica.
Sua identifica��o com Felipe o Formoso o leva a introduzir-se num sarc�fago e
descansar junto ao cad�ver de Felipe.
O terceiro resulta ser o Peregrino-Polo Febo, filho de Felipe o Formoso e de
Celestina. � conduzido ao Pal�cio por Celestina, onde relata ao Senhor a hist�ria da
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sua viagem ao Mundo Novo, �ltimo epis�dio Olhares (p.340), que termina com Polo
Febo n�ufrago, na presen�a do Senhor, reunido com a corte para ouvir o relato do
jovem. Como desconhece sua identidade e n�o lembra de seu pr�prio nome, Polo
Febo recebe o nome de Peregrino pela interven��o do velho Pedro, seu
companheiro na viagem: “- Vou cham�-lo, pois, de Peregrino” (p.359).
O jovem louro e beato poderia permanecer sempre ali; inconsciente e abandonado. (...) o mar salvou o corpo do n�ufrago; mas sequestrou seu nome. Jaz com os bra�os enredados em algas e do alto das dunas uns olhos vigiam distinguem no corpo nu o signo que querem ver: uma cruz vermelha de carne entre as esp�duas. Rosto mergulhado na areia, bra�os esticados. E no punho, segurando-a como uma t�bua de salva��o, uma garrafa grande, verde lacrada, resgatada da morte como o corpo do jovem. (TN, p.41).
Em O Velho Mundo, todos os acontecimentos confluem ao Pal�cio onde o
Senhor espera a chegada dos trinta f�retros contendo os restos dos seus
antecessores. Todos se contam hist�rias entre si, e por meio delas, o passado das
personagens se reconstr�i, assim como tamb�m a origem dos seus conflitos, que
proporciona a possibilidade de recontar a hist�ria, aproveitando o gancho do
narrador anterior, como em As mil e uma noites, em que o fim de uma narrativa,
inicia � outra.
Em Terra Nostra, n�o h� uma sequ�ncia lineal para narrar os fatos, por isso,
ap�s as cenas da Paris de 1999, a presen�a do Senhor, o Pal�cio e o espa�o a
corte autorizam a mudan�a de �poca e de cen�rio; a partir da� a narrativa se
transporta para uma realidade n�o linear, um pulo temporal que marca o instante da
ruptura e da transgress�o carnavalesca que lan�a o foco de aten��o para os s�culos
XV e XVI, para uma manh� quente de ver�o na Serra. O Senhor recebe Guzm�n,
escriv�o e secret�rio, imagem dupla de Hern�n Cort�s, que tinha preparado o dia da
ca�a.
O Senhor levantou-se cedo e abriu a janela de sua rec�mara a fim de celebrar com mais prazer o esplendoroso sol desta manh� de julho. (...) Guzm�n entrou e disse ao Senhor que a ca�a estava combinada. (...) O Senhor esbo�ou um sorriso. Olhou fixamente para o substituto do monteiro-mor e este baixou a cabe�a. Satisfeito, o Senhor botou uma m�o na cintura. (...) o Senhor n�o precisava fingir uma altivez que lhe era natural. (...) O Senhor fez avan�ar com raiva o cavalo para o grupo de rebeldes; bastou esse movimento para que
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baixassem as cabe�as e deixassem de murmurar. (...) ele acentuava os gestos galhardos e as nobres posturas, para fazer-se respeitar; para que seus vassalos sentissem a for�a de sua presen�a real.
(TN, p.36 e 39)
Fr�gil e inseguro, o Senhor demora o dia todo para tomar uma atitude. Por
perceber a vida como uma longa noite escura, o monarca duvida de todas as suas
a��es, das suas op��es, e a da coer�ncia do mundo que o rodeia; questiona o
passado e os valores da sua estirpe; reflete sobre o exerc�cio de um poder que se
perpetua, repete e avalia a incoer�ncia dos modelos estabelecidos pelos seus
antepassados.
Assim, o Senhor, muito cedo e com grande sigilo, levantava-se e colocava-se sobre as vestes uma pesada capa preta. Era seu sil�ncio t�o costumeiro e a consequente destreza para escapar da alcova, atravessar a capela sem olhar para o quadro de Orvieto e chegar ao p� da escadaria que nem mesmo o c�o Bocanegra, t�o alerta ao seu respeito, espregui�ava-se com a movimenta��o do amo, antes continuava deitado ao p� da cama (...). Por que n�o se atrevia a dar o primeiro passo? (...) Fez um r�pido c�lculo; n�o eram ainda �s quatro da manh�. Olhou primeiro para seu chinelo preto suspenso no ar. Depois passou o olhar at� o fim da escada no alto. Uma noite t�o negra quanto o seu cal�ado devolveu-lhe o olhar. Atreveu-se, deu o primeiro passo, colocou o p� direito sobre o primeiro degrau e em seguida essa noite fresca transformou-se numa aurora de dedos cor de rosa; deu o segundo passo, plantou o p� esquerdo sobre o primeiro degrau; a aurora dissipou-se numa quente manh� de luzes derretidas. Ent�o a carne do Senhor, t�o exaltada j� pelo desejo de alcan�ar o degrau seguinte, horripilou-se sem poder, durante alguns momentos, distinguir entre o temor do prazer e o calafrio do medo. (...) maldisse a cega vontade de a��o que um dia o tinha afastado e, agora, separado para sempre da �nica eternidade poss�vel: a juventude. O Senhor ficou indeciso entre subir mais um degrau o descer para o piso de granito da capela. Moveu a perna direita para subir o segundo degrau; por�m desta vez, outra vez, aquela deliciosa leveza tinha-se convertido numa pesada gravidade. Teve medo; deu meia volta e pousou a planta do p� debaixo do primeiro degrau, no piso. Olhou para o alto; o sol apagou-se do firmamento, a aurora reconquistou seu an�ncio. Moveu a perna esquerda e desceu completamente o primeiro lance; tornou a olhar para cima, para a brecha do c�u no fim da escada – a aurora tinha cedido lugar para a noite que a precedeu. (TN, p.105-107).
Os fragmentos hist�ricos, a concep��o de verdade se fusiona a da fic��o
permeando as fronteiras entre o real e o imagin�rio. Esses paralelismos s�o
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fundamentais para caracterizar a figura do Senhor e compreender as combina��es
de focos narrativos que o apresentam como detentor absoluto do poder.
A pra�a caiu depois de uma luta feroz. Espalhou-se a not�cia no acampamento: na hora seguinte entrava na cidade vencida e em sua mem�ria preta e brilhante como as coura�as dos mercen�rios alem�es de seu ex�rcito, turva e l�quida como as lagoas que rodeavam o burgo sitiado, ressuscitavam, atropeladamente, as imagens deste duro combate a heresia e as terras baixas de Brabante e da Bat�via, onde achavam ref�gio os pertinazes descendentes daqueles valdenses e insabattatos combatidos e vencidos em terra espanhola pelos long�nquos antecessores do Senhor e que com seu grupo grande de ajudantes e relapsos haviam achado um lugar propicio de ressurrei��o nestas comarcas do norte, tradicionalmente aptas para o recebimento e oculta��o dos hereges que como toupeiras ro�am de seus t�neis os alicerces da f�, tanto que em León, Aragón ou na Cataluña mostravam-se e proclamavam-se com luciferina soberba � luz do dia, e assim facilmente eram perseguidos (...) e assim sorriu amargamente o Senhor, os her�ticos parentes da austeridade (...) e que agora se chamavam adamitas, terminavam por servir a o que diziam combater, avarentos, a riqueza e o poder, e isso bastava para justificar esta guerra contra os her�ticos, pr�ncipes rebeldes a Roma (...) “Toma sempre o exemplo do teu pai”, lhe havia dito desde crian�a ao Senhor sua m�e, “que em uma ocasi�o dormiu trinta dias seguidos com a armadura no corpo”. (...) Vit�ria deles, mas tamb�m da sapi�ncia b�lica, l�cida e gelada, iluminada pela f�, esfriada pela ci�ncia aprendida de seu pai, do Senhor. (TN, p.52,53).
O epis�dio Vitória (p.52) relata a luta entre os ideais heterodoxos dos adamitas
e os ortodoxos da monarquia. A batalha inspira a constru��o do Pal�cio El Escorial.
A sua constru��o representa o prop�sito de Felipe de conglomerar seus
antepassados mortos abrigando-os num edif�cio retil�neo e sem arestas, pulcro.
Tamb�m almeja o desejo de erguer um monumento que represente o triunfo da
ordem e da austeridade conquistada ap�s vit�ria contra as heresias.
Preta e brilhante, turva e l�quida mem�ria do imediato. A pra�a caiu depois de uma luta feroz (...). O Senhor contemplou os chatos contornos dos pa�ses baixos e pensou que sua planura talvez exigisse um profundo escavamento para agir lentamente, ao passo que a acidentada Ib�ria tentava a honra e o orgulho dos homens (...). O Senhor, entrando na cidade vencida pelo s�tio, declarou-se a si mesmo ser digno da heran�a din�stica: em sua mem�ria permaneciam tr�mulas as imagens dos rostos arrancados pela p�lvora, a carne mutilada e crua, os olhos e as m�os saltados pela balista e pelo canh�o nos locais de combate onde tinham sido empregadas estas novidades; e a crueldade semelhante nos locais
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onde a luta havia obedecido aos velhos costumes senhoriais: os anéis da muralha enterrados na carne ferida pelos golpes de machado; a cal viva lançada nos olhos do inimigo; o combate corpo a corpo, cavalo a cavalo; a morte dos ginetes inimigos (...) atravessados pelas espadas do Senhor ao cair do cavalo, de barriga para cima, lutando como tartarugas (...) temíveis esquadrões de brilho preto nas couraças (...) e a uma hora da tarde o capitão da Bandeira do Sangue a colocou na mais alta ruína das torres devastadas, abriram-se as portas e desceram as pontes da cidade e o Senhor fez a sua entrada. (TN, p.53-56).
O fato que deu origem à construção do mosteiro El Escorial foi a vitória
alcançada na Batalha de San Quintín contra a França, em 1557, que não foi contra
as heresias, como afirma o romance, e sim contra a França. Terra Nostra privilegia
a luta do Senhor contra as heresias mantendo a real causa bélica num plano inferior,
o motivo estratégico-militar é depreciado porque a narrativa enfatiza a história no
plano da luta de ideias e não a luta territorial entre as potências.
A recontextualização ativa simultaneamente as múltiplas verdades do discurso
histórico, percebido como frágil e multifacetado. Os textos visitados formam parte da
memória cultural dos povos onde foram produzidos, permitem o descontinuo,
descongelam a verdade unívoca e revelam seres instáveis e imprevisíveis tidos
como heróis. Textos da memória, transformadores de conceitos e de preconceitos
espelhados em histórias paralelas que revelam a fábula histórica escrita pelo poder
e a partir do poder, oficializada, definitiva e congelada. A construção do edifício El
Escorial, como recorte histórico desse período específico da vida de Felipe II,
funciona como reflexão inicial no romance sobre o imaginário eurocentrista do
século XVI. A construção do Palácio ilustra a dimensão política, religiosa e social
como imagem da ambição e do desejo de abarcar e de centralizar o poder absoluto
num único espaço.
Carlos Fuentes em Cervantes o la crítica de lectura comenta que o
posicionamento político da corte espanhola em relação aos acontecimentos internos
do reino, como a revolta dos comuneros e dos adamistas, é determinante no que se
refere ao modo como ocorreria o processo de colonização na América. O autor
enfatiza o fato de que a Espanha de Carlos V e de Felipe II vive um período de
ostracismo cultural; fechada em si mesma se nega a aceitar a modernidade, as
ideias renascentistas e pluralidade do pensamento humanista (1976, p.63).
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O episódio Todos os meus pecados (p.89) descreve um mundo de acordo com
a percepção que o Senhor tem de si mesmo. No interior do Palácio em construção,
há um quadro religioso pintado por Frei Julian, o retratista oficial da corte. O quadro
se expressa utilizando narrativas bíblicas e o Edifício utiliza narrativas históricas para
ilustrar a pluralidade de ideias daquele momento histórico iniciado pelo pensamento
humanista. Essas vozes funcionam como olhares críticos que questionam o ideal
unívoco e fechado da monarquia espanhola. Felipe se mostra atormentado e
dividido em suas certezas pretensiosas de paralisar o tempo num mesmo espaço
físico.
O Senhor tossiu: sentia o nariz seco e a garganta ressecada. (...) E a sua sede foi acalmada pela ideia eternamente cravada em sua mente de que por todo desgaste material imediato estava a riqueza inesgotável da vida eterna: construía para o futuro, sim, mas também para a salvação, e a salvação não tem tempo; não é somente uma ideia (...) aqui nestas moradas espanholas, imitando as do céu, se estaria, sem diferença de dia ou de noite, fazendo o ofício dos anjos, se rogaria pela salvação dos príncipes, pela conversão dos seus estados (TN, p.90,92).
A reflexão desse momento o faz repensar nos seus princípios rígidos, na
tradição, e sobre o modo de sustentá-los para o benefício de uma classe que ele
mesmo representa. Essa percepção de mundo único e fechado se concretiza na
edificação do Palácio, cuja pretensão final é a de preservar, legitimar e eternizar o
ideário da monarquia. Para Carlos Fuentes, a dimensão sociopolítica que envolve o
simbolismo do edifício está diretamente relacionada à ideologia centralizadora e
absolutista da dinastia dos Áustria. O rei Felipe II arquiteta um edifício majestoso e
particular para proteger as verdades do absolutismo espanhol do XVI (1976, p.64).
A narrativa de O Velho Mundo utiliza como referencial espacial concreto o
Palácio para abrigar a complexidade e as incertezas do monarca, refletidas no
processo de construção do edifício. As dúvidas e as ponderações sociopolíticas
relativizam a veracidade do discurso histórico permitindo a verossimilhança na
ficção. A insegurança e o medo pelas mudanças sociais perseguem o imaginário do
monarca. A possibilidade de perder o poder absoluto atormenta a vida do Senhor,
teme pela perenidade da sua dinastia. Como resposta as preocupações do rei,
Guzmán o lembra das conquistas alcançadas e da significância político-religiosa que
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significa para a história a magna construção monolítica do Palácio, que espelha o
desejo de assegurar as certezas e a solidez do poder monárquico perpetuado.
O Senhor congregou os reinos dispersos; abafou as rebeliões heréticas da sua juventude; deteve o mouro e há perseguido hebreu; construiu esta fortaleça que reúne os símbolos da fé e do domínio. A usura das cidades, que destruiu a tantos pequenos senhorios, rende homenagem à vossa autoridade e aceita a necessidade de um poder central. Os pastores e lavradores destas terras são hoje os obreiros do Palácio: o Senhor os deixou sem outro sustento que uma jornada. É mais fácil tirar o dinheiro do salário que arrebatar as colheitas dos campos, pois os salários se manipulam invisivelmente. Outras grandes empresas esperam o Senhor; não as encontrará atrás dele, senão mais adiante (TN, p.111).
Obcecado por um mundo imutável e por objetos eternos, o Senhor ouve o
comentário irônico da Dama Louca, que afronta a totalidade do ideal absolutista e a
visão unívoca de mundo que o Palácio representa. A figura da rainha mãe fala com
seu neto Felipe sobre a construção do edifício, censura à perenidade do poder do
patriarcado no mundo imutável da monarquia; a visão diacrônica da história, de seus
antepassados e se opõe a ideia de poder como herança num mundo absolutista. O
questionamento acompanha à personagem que apresenta seu ponto de vista a partir
do universo feminino. Ela faz algumas observações sobre a construção do Palácio.
Sinto algo, sinto algo, - disse a Dama Louca, farejando com suas nervosas narinas, empurrada dentro do carrinho de mão pela anã (...) contento dessa ação libertadora que a velha senhora não sabia se aprovar ou condenar, pero respeitou por ser a decisão soberana do herdeiro (...) velho sangue para as núpcias com a eternidade, nosso mundo está construído para esperar o fim do mundo, nada deve mudar agora, o que era necessário fazer já está feito, escuta-me, Felipe, filho meu (...) termina teu Palácio, filho, tranca tudo em teu Palácio, sepulturas, mosteiros, pedras e ainda os futuros palácios que dentro do teu venham a ser construídos, como numa perspectiva gris e infinita, inventa dentro dos muros de teu Palácio uma réplica de tudo quanto a natureza pode oferecer e tranca tudo aqui, o duplo universo, tranca tudo para que esta seja a verdadeira natureza, no la que passa por tal, (...) pensa para que nossa ordem não mudejamais, para que as coisas sejam como as tem pensado nossa eternidade: servidão, vassalagem, zelo, homenagem, tributo, capricho, vontade soberana a nossa, passiva obediência a de todosos demais, esse é nosso mundo, e se cambia, nos mudaremos; e se morre, morreremos nós. (TN, p.300).
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O epis�dio O Senhor começa a recordar (p.108) situa-se no momento em que
Felipe espera a chegada dos seus antepassados falecidos, para serem sepultados
num mesmo lugar j� que uma das fun��es do Pal�cio ser� a abrigar os corpos dos
monarcas mortos. O Senhor conversa com Guzm�n, fala dos reis e as rainhas que
est�o por chegar � morada definitiva, e demonstra a sua insatisfa��o e desgosto
pela demora das obras. Esse � o dia de seu anivers�rio e Felipe esperava que a
escada que conduz ao orat�rio estivesse pronta, para “estar” com sua fam�lia. Os
f�retros chegam com quatro dias de atraso, e isso atrapalha os planos do Senhor,
acostumado a ser sempre obedecido.
Devo recordar ao Senhor que hoje � dia de seu anivers�rio natal�cio. Que hora s�o?S�o cinco da manh�, Sire.Tem certeza?O bom monteiro sempre conhece a hora? Ou�a... Quem construiu a escadaria que conduz da capela ao p�tio?Quem Senhor? Certamente, muita gente; e todos sem nome memor�vel.Por que n�o acabam de construi-la? Em breve chegaram os s�quitos f�nebres; por onde desceram at� a cripta?Ter�o que dar voltas, Senhor, pelo p�tio e pelo corredor, pela masmorra como todos fazemos para chegar � cripta.Voc� n�o me respondeu: por que n�o terminaram de construir essa escada? (...) Tudo preparei, tudo ordenei para que a chegada das trinta liteiras f�nebres coincidisse com o meu anivers�rio e, assim, se confundissem as celebra��es da vida e as da morte; um ano a menos de vida para mim, um ano a mais de morte para eles; por�m agora, afinal juntos, todos juntos, celebrando tanto nossos excessos quanto nossas car�ncias, diz-me Guzm�n, carecem eles de vida ou care�o eu de morte; sobra-lhes morte ou a mim sobra-me vida? (...) Ordenei; revi. Que todos cheguem juntos, no mesmo dia, no dia do meu anivers�rio. N�o foi assim, voc� viu. As caravanas se atrasaram quatro dias. (TN, p.109, 192)
Na an�lise bakhtiniana sobre o papel do discurso carnavalesco no
desenvolvimento narrativo do romance, destaca-se a import�ncia do folclore e das
cren�as como fontes c�micas populares. Ele sustenta que “o riso, como rito, destr�i
a dist�ncia �pica porque revela o homem livremente, com familiaridade; o riso lhe
arranca as m�scaras e o vira ao avesso; exibe as disparidades entre a
representa��o social e superficial e a autenticidade do ser, a dist�ncia que existe
entre o parecer e o ser potencialmente humanos” (2000, p. 48). Percebe-se o tom
ir�nico do secret�rio do monarca quando, ap�s as reclama��es do Senhor, Guzm�n
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adota uma atitude carnavalesca, sempre perpassada pelo riso explícito como forma
de reprovação para com a perpetuidade do sistema absolutista pretendido por
Felipe.
Na minha humilde opinião, estes mortos bem mortos estão e há muito tempo. Não é hora de chorar por eles, mas de transformar esta cerimônia em celebração da vida e do poder que é a vossa vida. (...) O Senhor exigiu a perfeita simetria da procissão; que todos cheguem juntos a este lugar, não um em uma terça e cinco na sexta e mais três no domingo; de modo que muitos se viram obrigados a esperar ao pé da serra a chegada dos outros, dos que se atrasam por causa de acidentes na estrada, falta de orientação, tormentas inesperadas, ou encontros imprevistos, não sei...Não bastou a minha vontade.Os elementos são invencíveis, Senhor.Cala-te. Não bastaram as minhas ordens. Quatro dias de desesperada espera; quatro dias, durante os quais sucederam outros acidentes, outras mortes, outras fúrias que teriam sido evitadas se todos chegassem no dia do meu aniversário. (TN, p.192).
As personagens femininas possuem um comum denominador no romance,
todas amam independentemente da sua hierarquia ou condição social, transfiguram-
se e se relacionam entre si. Elas se dividem basicamente em dois eixos as rainhas e
as bruxas, jovens e velhas, metamorfoses que alterna os papéis de acordo com
cada situação. O episódio intitulado Todos os meus pecados (p.89) apresenta a
rainha, cujo nome Senhora acumula em si as características das quatro rainhas
esposas do monarca que ele nomeia de Isabel.
A ficção vira a historiografia ao avesso nos termos bakhtinianos da
carnavalização. Há uma ambiguidade no nome da Senhora que tem o mesmo nome
que a rainha esposa de Carlos V, mãe de Felipe II. A ironia se constitui pelo do
nome que no romance aproxima ainda mais as figuras dos reis pai Carlos V e Felipe
II, seu filho. Subentende-se que o papel da monarquia é imutável, perpétuo,
independe de quem esteja no poder, mudam apenas os nomes, mas não os fatos.
As características mais relevantes das quatro esposas de Felipe II se espelham
na vida dessas mulheres parodiadas na figura da Senhora. Na versão de Carlos
Fuentes (1992, p. 113), a primeira é sua prima-irmã Maria Manuela de Portugal, a
mãe do príncipe Carlos, nasce em Portugal, Coimbra, em 1527 e morre em
Valladolid, Espanha, em 1545. Esse contrato nupcial foi planejado pelo rei Carlos I, o
pai de Felipe II, com o propósito de obter a importante dote da princesa consorte que
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receberia de Portugal e para conseguir a estabilidade política na Península. As
bodas se celebram com festas e muito luxo na cidade de Salamanca. Dois anos
mais tarde, quando Felipe II tinha 18 anos, Maria morre depois de dar à luz a seu
único filho, o infante Carlos em 1545.
A segunda esposa é Maria I de Inglaterra, conhecida como Bloody Mary,
lembrada pela história como uma mulher vingativa, sangrenta e perseguidora dos
anglicanos; Lady Maria Tudor, Majestade Reina de Inglaterra, Irlanda, Espanha e
Sicília nasce Greenwich, Inglaterra 1516 e morre em Londres em 1558. Foi a única
filha de Catalina de Aragon com Enrique VIII; irmã de Eduardo VI, que morre em
1553, e de Elizabeth Tudor, sua sucessora no trono; participa dos conflitos gerados
por seu pai com a Igreja de Roma, Catolicismo-anglicanismo.
Obcecada por ter um filho herdeiro que afastasse do trono a sua irmã
protestante Elizabeth, Maria decide casar-se aos 37 anos de idade com Felipe II, A
boda teve lugar na Catedral de Winchester em 1554. Por enquanto que Maria se diz
apaixonada, o ponto de vista de Felipe II é puramente político e não demonstra
nenhum interesse por ela. Aos três meses de casada, Maria pensa estar grávida,
mas trata-se de distúrbios hormonais e de gravidez falsa. Durante seu reinado
sofreu duas gestações falsas devido à pressão por procriar herdeiros. Felipe II
passou a maior parte do tempo governando seus territórios na Europa continental
por enquanto que Maria permaneceu na Inglaterra até morrer.
Isabel de Valois, terceira esposa de Felipe II, nasce em Fontainebleau, França,
em 13 de abril de 1546 e morre em Madri, Espanha, em 3 de outubro de 1568. Esse
casamento resulta do tratado de paz Cateau-Cambresis entre a Espanha e a
França. Conta a história que seu primeiro pretendente foi Eduardo VI da Inglaterra,
mas como faleceu em 1553, seu substituto natural era o príncipe Carlos, o primeiro
filho de Felipe II com Maria de Portugal. Porém, quando Felipe II fica viúvo de Maria
Tudor, casa com ele. Tiveram duas filhas, Isabel Clara Eugenia e Catalina Micaela.
Após o terceiro parto a jovem rainha morre.
Ana de Áustria, rainha consorte de Espanha e de Portugal, (1549-1580) é a
quarta esposa de Felipe II. Tiveram cinco filhos: Fernando (1571-1578); Carlos
Lorenzo (1573-1575); Diego Félix (1575-1582); Maria (1580-1583) e o futuro rei da
Espanha e de Portugal Felipe III (1578-1621). A morte prematura dos infantes,
segundo os historiadores, se deve ao fato da acusada consanguinidade entre os
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c�njugues, j� que Ana de �ustria era sobrinha-prima de Felipe II, filha do imperador
Maximiliano II, primo de Felipe II e da imperatriz Maria da �ustria, irm� de Felipe II.
Ap�s alguns meses do �ltimo parto, a rainha Ana da �ustria, morre v�tima de uma
gripe epid�mica.
Pelo ac�mulo dos antecedentes ap�crifos, a personagem Senhora re�ne as
caracter�sticas das figuras das rainhas mencionadas por Carlos Fuentes. no relato, o
Senhor contrai matrim�nio com Isabel, mas nunca o consuma. Ela ironiza a falsa
austeridade da monarquia ao expressar seu desejo por algumas extravag�ncias que
permitam “mais deleit�veis concess�es ao prazer dos sentidos” (p.99).
(...) ela s� repetia o que o Senhor tinha dito uma s� vez, sem necessidade de repetir jamais as palavras dessa concep��o:construa com a maior pressa um Pal�cio mosteiro, que seja ao mesmo tempo Fortale�a e necr�poles dos Pr�ncipes. Nenhuma gala, nenhuma gula, nenhum desvario para esse projeto implacavelmente austero. Ele pensou: agora o ex�rcito de trabalhadores executava seu pensamento. A Senhora, ao olhar a tediosa planura, de seu apartamento, imaginava, alarmada, que a vontade de seu esposo acabaria sendo cumprida e confessava que ela, em segredo, sempre havia acreditado que por ser o mundo o que �, algum acidente, o imprevis�vel capricho ou o muito previs�vel desfalecimento da vontade introduziram no plano mestre do Senhor algumas, n�o muitas, por�m sendo escassas, mais deleit�veis concess�es ao prazer dos sentidos.Podem, Senhor, vir os pastores debaixo de minhas janelasapascentar suas ovelhas e talvez cantar-me umas can��es? Aqui no � uma feira, se n�o um perp�tuo servi�o de mortos que haver� de durar at� a consuma��o dos tempos. - Uns banhos, ent�o, Senhor...- O banho � costume �rabe e n�o ter� cabimento em meu Pal�cio.
Tome como exemplo minha av�, que nunca mudou o sapato e ao morrer tiveram que arrancar-lle os mesmos com esp�tula.
- Senhor: o maior dos reis cat�licos, Carlo Magno, aceitou do infiel Califa Harun-al-Rachid, sem dem�rito de sua f�, obs�quios de sedas, candelabros, perfumes, pulseiras, b�lsamos, um xadrez de marfim, uma enorme tenda de campanha com cortinas multicores e uma clepsidra que marcava as horas deixando cair bolinhas de bronze em uma bacia...
- Pois aqui n�o haver� outros tesouros a n�o ser as rel�quias que mandei trazer
- (...) Falas dos mortos; eu s� te pe�o um pequeno adorno para mim ... para os vivos
- O �nico adorno desta casa ser� o triunfo (...). Tudo igual. Tudo s�brio. Que deste lugar se diga: se v� um pilar, se v�em todos.
- Senhor, Senhor, por piedade, n�o me reproches meu desejo de beleza, desde menina sonhei possuir uma pequena parte de esta beleza das �rvores, fontes, pedras de cores e novas vistas que em esta sua terra deixaram os �rabes em outro tempo.
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- Bem se v� que �s inglesa, Isabel, o n�o cederias assim diante das tenta��es infi�is. Aqui nos temos derramado muito sangue reconquistando nossa terra espanhola.
- Era deles, Senhor, os �rabes a encheram de jardins e repuxos e mesquitas onde antes nada havia; conquistou o alheio, Senhor...
- Cala-te, mulher, n�o sabes o que diz e negas o objetivo de nosso destino, que � purificar a Espanha de toda praga infiel, extirp�-la, mutilar seus membros, ficarmos s�s com nossos ossos mortificados, por�m puros. Quer conhecer o �nico prazer concedido aos sentidos pecadores nesta fortale�a? Olhe ent�o para o alto deste edif�cio que construo, oitava maravilha do mundo, e veja como est� coroado de bolas de ouro: assim rememoro, como o fizeram meus antepassados ao reconquistar as cidades dos mouros – veja nessas bolas de ouro as cabe�as dos infi�is expostas � inclem�ncia.
A Senhora olhou com tristeza o entardecer. Depois sentiu uma sensa��o intoler�vel; a sensa��o converteu-se em uma suspeita ainda mais intoler�vel: cheiro de carne, de unhas, cabelos de homemqueimados. (TN, p.99-101).
Isolada do mundo, incomunicada, alheia da realidade e submissa �s cren�as
do preceito medieval, a voz de Isabel reafirma os aspectos centralizadores da
personalidade do Senhor e caracteriza a obsess�o por perpetuar um sistema de
poder monol�tico e desp�tico. Detalhes da vida da rainha surgem em meio aos fatos
pol�ticos vivenciados durante a revolta dos comuneros.
Uma tarde, quando j� tinha deixado de contar o tempo, de imaginar meu rosto deslavado meu esposo entrou ao p�tio � frente da tropa vitoriosa. (...) Mais tarde, meu esposo se aproximou de mim (...). E me disse que deixar�amos o velho Alc�zar de seus pais e que construiria para si na meseta um novo Pal�cio que seria ao mesmo tempo mausol�u dos pr�ncipes e templo. Assim comemoraria a vit�ria militar (...) e me disse – Isabel, voc� nunca saber� o quanto a amo e, sobretudo como a amo (...) te amo de tal maneira que jamais te tocarei; minha paix�o por ti se alimenta pelo desejo: jamais posso nem devo satisfaz�-lo, pois saciado, deixaria de desej�-la. Fui educado neste ideal; � o ideal do aut�ntico cavaleiro e a ele hei de ser fiel at� a hora da minha morte (...) admitia seus pr�prios pecados sobre tal assunto, mas uma coisa era tomar mulheres da plebe e outra tocar no seu ideal feminino, a Senhora de sua casa. (...) Felipe retirou-se com uma atitude que dizia mais do que o dito pelo espantoso contraste entre suas palavras de amor ideal e seu corpo de asquerosas taras. (TN, p.168-170, grifo nosso).
Pela voz da Senhora, emergem fatos da vida da jovem Isabel de Valois que
lembra atos de intoler�ncia pol�tico-religiosa e da persegui��o praticada pelo
monarca em nome da tradi��o. A voz feminina critica os casamentos incestuosos
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promovidos para preservar a dinastia, e relata suas experiências na corte espanhola,
ao mesmo tempo em que se lamenta ao lembrar sua infância interrompida pelos
interesses de Estado.
Fui trazida quando menina da minha pátria, a Inglaterra, ao castelo de um dos grandes senhores da Espanha, meu tio. Vim contente, pois desde o berço me tinham contado histórias da terra do sol onde florescem as laranjeiras e a neblina do meu país é desconhecida. Porém encontrei aqui o sol como se fosse uma praga e a alegria que faz nascer os corpos, um pecado, expulsava-se a luz, era condenada a perecer em obscuras masmorras. (...) Cheguei a desejar a ruidosa vulgaridade dos ingleses; lá, a bebedeira, a dança, o insulto, a gula e a sensualidade carnal compensam o clima de geladas chuvas. (...) Fui menina por muito tempo, amado meu, e mina única diversão era vestir bonecas, juntar caroços de pêssegos, despertar as preguiçosas e vestir minhas babás como os comediantes que meu pai tinha-me levado para ver em Londres. (...) Talvez meu primo, o filho do Senhor meu tio, me amasse antes, em segredo; ele me disse que de manhã na capela me contemplava desde longe, já me adorando; eu não sabia. Só entendi uma ordem dos lábios de seu pai, várias semanas mais tarde, no meio do horror e do crime; em uma sala do Alcázar, repleta de cadáveres que os guardas arrastavam pelos pés, rumo a uma pira monstruosa que durante dias infestou com seus odores nauseabundos a região. Só fiquei sabendo que essa matança de rebeldes, comuneros, hereges, mouros, judeus enganados e conduzidos para uma ratoeira pelo jovem príncipe Felipe tinha sido a prova que ele dava a seu pai: merecia tanto o poder como a minha mão. Então soube e tive que obedecer. Eu ia ser a esposa do herdeiro e nossas bodas se realizariam no altar com o sangue derramado. Teve lugar a cerimônia; desde esse momento tiveram que cessar minhas brincadeiras (...) as amas e as camareiras arrebataram-me as bonecas, esconderam minhas fantasias, descobriram o esconderijo de meus pêssegos e me impuseram um horário de aula estrito e interminável: como falar, como caminhar, como comer: como convinha a uma Dama espanhola.
(TN, p.165-166).
Em Prisioneiro do amor (p.163), a marca erótica da situação autoriza a
carnavalização quando a Senhora vivencia uma experiência grotesca de acordo com
os pressupostos bakhtinianos; uma tarde, após o passeio real, a rainha desce da
liteira trajando seus paramentos exageradamente ornamentados, tropeça e cai de
costas no pátio do Alcázar, impossibilitada de levantar-se sozinha, fica jogada no
chão durante trinta e três dias sem conseguir a ajuda de ninguém para erguer-se. A
ausência de veracidade remete a construção do universo simbólico construído no
romance com a finalidade de ilustrar a intolerância e a repressão constitutiva.
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Dobraram-me aos costumes. Converti-me em uma prisioneira da infal�vel simetria. E ao cabo de dez anos falando com frases preparadas para cada ocasi�o, aprendendo a andar empertigada e r�gida (...), por�m nem minhas m�os poderiam jamais brincar com as bonecas, nem minhas pernas correr ao redor das amas fantasiadas (...). Resignei-me. N�o entendi o exagero que agora marcaria minha vida, (esquecendo-se meu corpo de tudo que aprendi naturalmente) at� um dia em que regressei na liteira de um passeio pelos prados circundantes, estando meu marido ausente numa das guerras contra pr�ncipes rivais, ao descer falseei o p� e cai de costas sobre os ladrilhos do p�tio do Alc�zar. Pedi auxilio, pois lan�ada de costas e vestida com a arma��o de ferro e bombachas bufantes, me era imposs�vel erguer-me sozinha, mas nem os camareiros, nem os guardas, nem as amas (...) que em n�mero de cem se reuniram em torno de mim, levantaram um dedo para me erguer do ch�o. Formaram um c�rculo e me contemplavam com pena e sobressalto, e guarda-mor advertiu: - Que ningu�m toque nela. Que ningu�m a levante se n�o o fizer por si mesma. Ela � a Senhora e unicamente a m�o do Senhor podem tocar nela. Em revelia contra essas raz�es, gritei para as camareiras: n�o me vestem e despem todos os dias, n�o me penteiam, n�o tiram os piolhos dos meus cabelos, por que n�o podem tocar em mim agora? Olharam-me ofendidas, e seus olhares graves estavam dizendo-me: - uma coisa � o que se passa dentro das rec�maras, Senhora, e outra muito diferente � a que tem lugar aos olhos de todo mundo: a cerim�nia. (TN, p.166).
Cansada da indiferen�a e do tratamento pacato que o Senhor chama de amor
cort�s, a Senhora procura um jovem amante, Juan. As motiva��es da rainha s�o
duas: ter um filho herdeiro e amar Juan. Oferece-lhe muitos dos seus tesouros:
tapetes orientais, telas preciosas, dinares de ouro, moedas de prata �rabes dirhems
da Idade M�dia e suas lamenta��es e confiss�es mais �ntimas.
Toma tudo, tudo � teu; n�o h� outro luxo neste pante�o constru�do por meu esposo o Senhor, e todo o luxo que reuni para ti, esperando-te em meus sonhos e em minhas vig�lias, em minhas c�leras e em minhas tristezas, em meus enganos e em meus desenganos (...) tudo � teu e tudo � nada sem ti. (...). Oferecia-lhe ao belo e ausente jovem, com a m�o estendida, telas preciosas que pendiam sobre os muros de pedra, as arcas abertas cheias de dinares de ouro e dirhems de prata, tapetes orientais (...). Oferecia-lhe esse reduto, essa toca suntuosa ganha na picardia e no suborno, e ganha, sobretudo, gra�as � indiferen�a do Senhor. (TN, p.163).
A par�dia constitutiva recorre ao riso carnavalesco, o qual confere uma
autenticidade din�mica e livre. Isabel diz sentir saudades da sua “Merry Englande”-
Merry England – expressando o desejo de ter sido como as peregrinas inglesas,
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“pois a maior parte se perde e poucas chegam puras a seu destino e poucas cidades
h� na Lombardia ou na Fran�a onde n�o haja prostituta ou ad�ltera da ra�a inglesa”
e acrescenta, “mil vezes pior, te digo, o meu destino: peregrina perdida pela etiqueta
e pela castidade, pois uma e outra pesavam sobre meu cora��o como duras penas”.
(p.167). O grotesco da cena seguinte faz alus�o � ordem de hierarquia em que o
poder impede que a Senhora seja tocada, a n�o ser pelo Senhor, seu marido.
Da fragilidade da rainha brota a sexualidade reprimida, como se a
permissividade er�tica fosse um escape para a liberdade, uma esp�cie de sa�da
dessa situa��o opressiva. Na sequ�ncia, a Senhora vive uma experi�ncia
transgressora que carnavaliza o comportamento austero da monarquia espanhola
enclausurada no mundo medieval.
Passou a tarde; caiu a noite e s� as mais fi�is camareiras e os mais rudes soldados permaneceram perto de mim (...) no segundo dia at� as amas me abandonaram (...). Deixei de contar as horas (...) o sol me descascava a pele do rosto e fazia brotarem escuros fungos em minhas m�os; choveu durante uma noite e um dia, escorreram meus adornos e minha cabeleira e minhas saias se empaparam. Esqueci o pudor e desfiz os la�os do meu suti� para que meus secassem. Alguma noite os ratos procuraram abrigo na ampla cova das minhas an�guas erguidas; n�o pude gritar, os deixe fazer c�cegas nas coxas e ao que mais se aventurou de entre eles eu disse: “Rato, chegaste mais longe que meu pr�prio marido”. (TN, p.167).
Diz Bakhtin que o riso carnavalesco confere uma autenticidade din�mica e livre
ao relato. Observa que a par�dia � um recurso que nos obriga a “experimentar
aqueles aspectos do objeto que normalmente n�o est�o inclu�dos num g�nero
determinado; induz a um riso permanente e regenerador” (2002, p.35) que
proporciona uma vis�o m�ltipla da realidade imposs�vel de se alcan�ar no texto
un�voco.
O carnavalesco vai al�m da par�dia, embora fa�a uso dela, (...) ele � tr�gico-c�mico; � uma explora��o da linguagem e por tanto uma rebeli�o contra a hist�ria oficial e tudo o que ela representa. (...) um espa�o no qual se suspendem as leis, as proibi��es e restri��es que determinam a estrutura e a ordem da vida (...) ordin�ria (...). O carnaval � o �mbito no qual se p�e em pr�tica, mediante uma atua��o deliberadamente sens�vel, real e imagin�ria, uma nova forma de interrela��o entre os indiv�duos que se contrap�e �s todopoderosas rela��es sociohier�rquicas da vida n�o carnavalesca. Uma das manifesta��es t�picas do discurso carnavalesco a constitui
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a combina��o dionis�aca de opostos diametrais: o sagrado e o profano; a comida e os excrementos; o riso e as l�grimas. (...) o pensamento carnavalesco tamb�m habita no �mbito das perguntas essenciais, mas n�o lhes concede uma resolu��o abstrata filos�fica ou religiosamente dogm�tica; se n�o que, as encena sobre a forma deliberadamente sensual de atos e imagens carnavalizados.
(2002, p.35).
As in�meras perip�cias que permeiam a vida da Senhora tamb�m permitem
entrever outras caracter�sticas da personalidade do monarca.
Uma tarde, quando j� tinha deixado de contar o tempo, de imaginar meu rosto deslavado, meu esposo entrou no p�tio � frente da tropa vitoriosa. (...) Mais tarde, meu esposo se aproximou de mim (...). E me disse que deixar�amos o velho Alc�zar de seus pais e que construiria para si na meseta um novo Pal�cio que seria ao mesmo tempo mausol�u dos pr�ncipes e templo. Assim comemoraria a vit�ria militar (...) e me disse – Isabel, voc� nunca saber� o quanto a amo e, sobretudo como a amo (...) te amo de tal maneira que jamais te tocarei; minha paix�o por ti se alimenta pelo desejo: jamais posso nem devo satisfaz�-lo, pois saciado, deixaria de desej�-la. Fui educado neste ideal; � o ideal do aut�ntico cavaleiro e a ele hei de ser fiel at� a hora da minha morte (...) admitia seus pr�prios pecados sobre tal assunto, mas uma coisa era tomar mulheres da plebe e outra tocar no seu ideal feminino, a Senhora de sua casa. (...) Felipe retirou-se com uma atitude que dizia mais do que o dito pelo espantoso contraste entre suas palavras de amor ideal e seu corpo de asquerosas taras. (TN, p.168-170).
O Senhor tem obsess�o por tudo o que est� escrito, vive uma proje��o
par�dica do amor idealizado na Idade M�dia e perpetua a atitude do aut�ntico
cavaleiro, pastiche do amor cort�s. No epis�dio Fax (p.266), Guzm�n descobre a
rainha com seu amante, Juan. Guzm�n demonstra seu desejo de ser amante da
Senhora, oferece-se como provedor e poss�vel companheiro. � rejeitado pela rainha,
que percebe o Pal�cio como m�mese perfeita do Senhor. Ap�s a longa discuss�o ela
satiriza a obsess�o do rei pelo documento escrito, legitimador da �nica verdade
irretorqu�vel, a escrita � seu �nico instrumento para interagir com o mundo. O
di�logo com Guzm�n ilustra ironicamente as artimanhas que a Senhora utiliza para
fugir da prud�ncia exagerada do marido.
Meu marido tolera tudo; s� pode me desejar se n�o me toca, ele me disse isso, n�o pode me tocar porque est� apodrecendo; n�o tem mais rem�dio que tolerar tudo. Essa � a minha for�a certa e escassa;
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ele tolera tudo. – Porque ningu�m lhe tem dito nada. � mais: porque ningu�m o tem escrito. Ele o sabe em segredo. O sil�ncio n�o � a mola que impulsiona a autoridade do Senhor, mas a declara��o, o �dito, a lei escrita, as ordens, o estatuto, o papel. Ele vive num mundo de papel; por isso o venceremos n�s que n�o conhecemos as leis escritas, mas as leis da a��o. Para o Senhor, a honra e o papel v�o juntos: n�o h� mais testemunho de honra sen�o o escrito. (...) Para o Senhor, o honra e o papel v�o juntos: n�o h� mais testemunho da honra que o que est� escrito. Ao contr�rio, para n�s, para esses que voc� tanto deprecia, essas considera��es n�o valem; nem papel nem honra significam nada; a sobreviv�ncia, tudo. - Ou�a-me Guzm�n: quero um herdeiro (...). Estou gr�vida deste
jovem (...). Ser� belo como seu jovem pai; eu governarei com ele, Guzm�n, com eles, Guzm�n, com meu amante e nosso filho, Guzm�n. Veja como meu glorioso projeto exclui suas miser�veis ambi��es.
- Eu vos farei falta, Senhora. Desconheceis os of�cios pr�ticos da ca�ada, da guerra, do dom�nio da plebe; n�o governareis com o prazer e a beleza, n�o; eu vos farei falta, e n�o ficarei aqui se n�o for como eu quero. (...)
- Quem iria habitar neste Pal�cio?- A Senhora e eu, Senhora, eu sou homem, deixe-me demonstrar-
lhe...- Imbecil. N�o percebes nada. S� meu marido pode morar aqui. Os
outros somos todos passageiros. Somos j� usurpadores. Voc� eeu, voc� e quantos diz dominar aqui, todos e o pr�prio Pal�cio tombar�amos como montanhas de areia sem a presen�a do Senhor meu esposo. Imbecil. Este Pal�cio � dele: nasceu da sua mais profunda raz�o, de sua mais profunda necessidade. Este Pal�cio se ergue em lugar da guerra, do poder, da f�, da vida e da morte e do amor: � dele, e para ele equivale tudo, para ele � tudo. � sua morada eterna: para isso o constr�i, para viver aqui, morto, para sempre, ou para morrer aqui, vivo, para sempre. D� no mesmo. Pobre Guzm�n. (...)
- O Senhor sabe e tolera tudo (representa Guzm�n). Ent�o, seus velhos h�bitos renascem; ent�o, volta a ser filho da forma, Senhora; ent�o confunde a forma, o crime, a honra e o ato p�blico que dele se espera, como se esperou de seu pai e seu av� (TN, p.272-274).
Em Conticinium (p.293), a Dama Louca faz algumas observa��es sobre a
constru��o do Pal�cio. A personagem da rainha m�e, Dama Louca, critica a vis�o
diacr�nica da hist�ria de seus antepassados e se op�e a ideia do poder como
heran�a num mundo absolutista. O questionamento acompanha a personagem que
apresenta seu ponto de vista a partir do universo feminino, em rela��o � perenidade
do patriarcado no mundo imut�vel da monarquia. O coment�rio ir�nico afronta a
totalidade do ideal absolutista e a vis�o un�voca de mundo que o Pal�cio representa.
A rainha m�e fala com seu neto Felipe sobre a constru��o do edif�cio, reprocha um
mundo masculino e absolutista. O discurso multifacetado se constr�i por paralelos
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entre os textos históricos conhecidos e o elemento ficcional, contraponto do jogo
narrativo que confronta mentira-verdade.
Sinto algo, sinto algo, - disse a Dama Louca, farejando com suas nervosas narinas, empurrada dentro do carrinho de mão pela anã (...) contento dessa ação libertadora que a velha senhora não sabia se aprovar ou condenar, mas respeitou por ser a decisão soberana do herdeiro (...) velho sangue para as núpcias com a eternidade, nosso mundo está construído para esperar o fim do mundo, nada deve mudar agora, o que era necessário fazer já está feito. Termina e encerra tudo em teu palácio, sepulturas, mosteiros, pedras e também os futuros palácios que dentro do teu forem construídos (...) não mudes nunca nada, é esse o nosso mundo, se mudar, mudaremos, se morrer, morreremos nós (...) escuta-me, Felipe, filho meu (...) termina teu Palácio, filho, tranca tudo em teu Palácio, sepulturas, mosteiros, pedras e ainda os futuros palácios que dentro do teu venham a ser construídos, como numa perspectiva cinza e infinita, inventa dentro dos muros de teu Palácio uma réplica de tudo quanto a natureza pode oferecer e tranca tudo aqui, o duplo universo, tranca tudo para que esta seja a verdadeira natureza, não a que passa por tal. (TN, p.300).
As múltiplas vozes de outrem ad eternum provocam rupturas temporais,
fragmentação e paralelismos. Permitem uma narrativa tríptica, passado, presente e
futuro paralelamente, autorizando um universo caleidoscópico, múltiplo, como quem
observa através de múltiplos espelhos. Nessa configuração, e de acordo com a
fundamentação teórica de Bakhtin, o heterodoxo e a heteroglossia, o dialógico e o
carnavalesco instauram uma nova ordem: o cronotopo. O termo cronotopo,
encontrado por Bakhtin na física, designa a relação de interdependência entre as
categorias de tempo e de espaço no romance. Adaptado da teoria da relatividade de
Einstein, o tempo, ao se inscrever no espaço, torna-se não somente outra dimensão
desse espaço, como também resgata o modo de ver o mundo de uma época e de
um autor; é o centro organizador dos principais acontecimentos temáticos e o
princípio determinante do gênero romanesco. No início do livro Formas do tempo e
o cronotopo no romance (1981), Bakhtin conceitua o cronotopo como:
O tempo e espaço no romance (...) uma conexão intrínseca das relações temporais e espaciais que se expressam artisticamente no romance. O termo é empregado nas matemáticas e foi introduzido como parte da Teoria da Relatividade de Einstein (...). O que nos importa é o fato de que expressa a inseparabilidade do tempo e do
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espaço (...). O cronotopo é o lugar em que os nós da narrativa se atam e se desatam. Pode-se dizer que ele a ele pertence o sentido que dá forma à narração. (...) O tempo se torna efetivamente palpável e visível; o cronotopo faz com que os eventos narrativos se concretizem, os encarna e faz com que o sangue corra pelas suas veias. Um evento pode ser comunicado, passa a ser uma informação, permite dados precisos com respeito ao lugar e ao tempo dos acontecimentos. Mas o evento não se transforma numa figura. É precisamente o cronotopo que proporciona o âmbito essencial para a manifestação, a representatividade dos eventos. As peculiaridades assinaladas podem considerar-se como características positivas do tempo folclórico. Mas uma característica especial deste tempo é seu caráter cíclico que limita a força e a produtividade ideológica deste tempo. A marca do cíclico, e consequentemente a da repetição cíclica, evidente em todos os eventos que ocorrem neste tipo de tempo. O impulso do avanço do tempo é freado pelo ciclo. Por esta razão, inclusive o próprio crescimento não atinge um verdadeiro devir.
(1981, p.84-85, 209-210, 250).
O conceito de cronotopo trata de uma produção histórica. Designa um lugar
coletivo, espécie de matriz espaço-temporal de onde as várias histórias se contam-
escrevem. A cronotopia é o centro organizador dos eventos narrativos fundamentais
na obra, de uma nova civilização fruto das inúmeras formas de mestiçagens o torna
policultural e sincrético. O cronotopo caracteriza o tempo no espaço permitindo a
comunicação dos eventos; é veiculo da informação narrativa de um passado não
concluído, concebe o tempo como um movimento utópico que situa a história como
um saber articulado e constituído por quem exerce o poder; elemento imprescindível
para que Terra Nostra construa um rei representante do poder político-religioso
sintetizado no Senhor universal, como amalgama dos tempos.
Em termos um pouco elementares, dizemos que algo que poderia realizar-se no futuro se apresenta como acontecimento do passado, apesar de que de fato não é passado, senão essencialmente uma meta a ser alcançada. Esta singular transposição, esta inversão do tempo, típica das formas do pensamento mitológico e artístico em várias etapas do pensamento humano, se caracteriza por uma concepção especial do tempo, e em particular do futuro; o presente e, sobretudo o passado são enriquecidos na expectativa do futuro.
(1981 p.147-148.).
Esse conceito autoriza o romance a reagrupar os diferentes fragmentos
históricos numa narrativa coerente e dialógica, universos significativos, discursos
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verossímeis e coerência interna. A concepção de verdade se fusiona à da ficção no
universo de Felipe II, que tem como referencial histórico o palácio-mosteiro de El
Escorial, que no romance o edifício é denominado de Palácio.
Em Los escritos de Carlos Fuentes (1998), Raymond L. Williams comenta
que o Real Mosteiro de San Lorenzo de El Escorial foi concebido por Felipe II em
1558 como uma grande obra de arte e como signo visível do seu poder. Construído
em granito maciço, o palácio, monastério, colégio, museu de arte, biblioteca, igreja,
cemitério e fortaleça militar é um edifício de forma retangular de cento e um por
duzentos e sessenta e um metros, cujos muros exteriores se elevam a uma altura
equivalente a seis andares. São dezesseis pátios, oitenta e oito fontes, oitenta e seis
escadas, trezentos aposentos, um mil e duzentas portas, duas mil seiscentas e
setenta e três janelas e quatrocentas e cinquenta e nove torres, as quatro mais altas
localizadas nos cantos do edifício. El Escorial está situado a mil metros sobre o nível
do mar, em Sierra de Guadarrama.
O espaço interno da Basílica foi desenhado e projetado por Felipe II para
abrigar os aposentos privados do rei, que desde sua alcova, mesmo reclinado em
sua cama, poderia observar o interior do templo, o altar, as cerimônias e as figuras
religiosas da sua devoção. A construção se inicia em 1563, mas se foi
transformando durante o reinado de Felipe II, de acordo com as plantas e novos
ajustes feitos durante as três décadas da segunda metade do século dezesseis, a
primeira versão do edifício é concluída em 1584; foi ampliada e modificada nos
séculos posteriores.
Felipe II desenhou este templo assim como a sua recâmara, de modo que desde suas habitações pudesse ver o altar da basílica. Em consequência, o rei podia ver o sacerdote e presenciar a missa como um voyeur privilegiado, enquanto descansava no leito. Também podia ver as imagens sagradas (todas douradas) assim como a sua própria imagem. Esta justaposição da engenharia religiosa e política dentro do mesmo espaço sagrado reproduz a estratégia política das pinturas murais ao mesmo tempo em que mostra o motivo político (...) outros murais demonstram a convergência entre o político e o religioso (...). Na Galeria de las Batallas, um longo mural pintado em cores vibrantes é testemunho inquestionável da função política de El Escorial. Denominado La Batalla de Higuelera, como lembrança da vitória alcançada por Juan II sobre Granada em 1431, o mural louva as façanhas militares da coroa espanhola assim com o triunfo do poder hispânico sobre os valores árabes. (1998, p.88).
134
Para sua constru��o a coroa espanhola conta com o apoio dos monges
Jer�nimos, contrata os arquitetos Juan Bautista de Toledo, que em seu trabalho
anterior na Bas�lica Vaticana fora ajudante de Miguel �ngelo, com ampla forma��o
te�rico-humanista e Juan de Herrera como seu assistente e Frei Antonio de
Villacast�n como construtor chefe. Para recriar uma arquitetura medieval,
renascentista e neocl�ssica, decora-o com objetos culturais heterodoxos trazidos de
toda a Europa. O mosteiro El Escorial � considerado com um objeto multicultural da
Espanha do s�culo XVI devido � arquitetura influenciada pela tradi��o �rabe, como
os arcos do pal�cio e o enorme acervo de manuscritos heterodoxos e a cole��o de
obras de arte renascentista trazidas de toda a Europa, especialmente da It�lia.
A constru��o do edif�cio se inicia oito s�culos ap�s a constru��o da Mesquita
de C�rdoba (786), dois s�culos depois da Alhambra de Granada (1354-1391) e
aproximadamente um s�culo depois da viagem de Colombo, que coincide com a
unifica��o da Espanha em 1492. Estes antecedentes s�o importantes para
compreender a constru��o da hist�ria e a rela��o do romance com o a Pen�nsula
Ib�rica. El Escorial serviu como modelo arquitet�nico para construir a narrativa do
romance, “as propor��es gigantescas de El Escorial lembram uma vila medieval, no
estilo do mosteiro de St. Gall na Su��a, o Palazzo Veccho em Floren�a, ou o distante
parentesco com o Pal�cio Diocleciano, em Spalata, mencionado nas paginas 552 e
553 de Terra Nostra”. (1998, p.79).
Um paralelo diacr�nico � o espa�o de El Escorial e o de Terra Nostra. Felipe II e Carlos Fuentes conceberam seus modelos arquitet�nicos como m�ltiplos espa�os interiores de dimens�es diversas que tem uma grande variedade de sa�das ao exterior. Os espa�os grandes de El Escorial, tais como o p�tio situado entre a entrada principal e a bas�lica, a bas�lica propriamente dita e os grandes sal�es onde se mostram as pinturas, equivalem aos cap�tulos longos de Terra Nostra. De maneira mais precisa, os grandes espa�os dedicados a mostrar pinturas em El Escorial constituem o equivalente aos longos cap�tulos que, em Terra Nostra, est�o dedicados � pintura de Orvieto. Os espa�os mais reduzidos de El Escorial, tais como o P�tio de las M�scaras e algumas pequenas salas interiores, valem por cap�tulos breves e especialmente enclaustrados em Terra Nostra (1998, p.108-109).
.
Para Williams h� uma aproxima��o de semelhan�a entre a constru��o formal
do romance e a proje��o arquitet�nica do edif�cio, “os cen�rios de Terra Nostra se
135
espelham na constru��o do Pal�cio El Escorial. A complexa estrutura do romance
est� carregada de intertextos, da mesma forma que a leitura arquitet�nica do
edif�cio” (p.89). Cita alguns dos textos heterodoxos da �poca medieval e
renascentista como Libro del buen amor, de Juan Ruiz (1330), Elogio da locura,
de Erasmo de Rotterdam (1509), El burlador de Sevilla (1630) de Tirso de Molina,
Don Quijote de La Mancha (1605) de Miguel de Cervantes y Saavedra. Real�a o
interesse de Carlos Fuentes na obra de Am�rico Castro, Jos� Ortega y Gasset; nas
personagens das obras de fic��o de Borges, Joyce, Gabriel Garc�a M�rquez, Victor
Hugo. Ainda h� uma enorme riqueza de outros escritos como Las cartas de
relación de Hernán Cortés e Las cartas de Colón, “� uma prolifera��o de textos
que v�o de Tomas Moro at� Kafka” (p.91).
O edif�cio � a soma da multiciplicidade cultural “de natureza heterodoxa” que “encerra numerosas contradi��es internas. Uma imagin�ria arquitet�nica procedente de uma amplia variedade de culturas El Escorial foi um dos textos principais que, com o tempo, deram origem a Terra Nostra. Fuentes publicou tr�s textos relacionados de muito perto com esta obra central; um anterior ao romance, outro simultaneamente a ele e outro posterior. Estes tr�s textos (Nowhere, t�tulo de um fragmento do romance, o ensaio Cervantes o la crítica de la lectura, e o livro El espejo enterrado) s�o as obras de Fuentes que mais se aproximam aos temas centrais de El Escorial e Terra Nostra. (1998, p.89,92).
Todos se re�nem no Pal�cio em constru��o, onde o Senhor ouve a narrativa
do jovem n�ufrago. Decreta a inexist�ncia do Mundo Novo e decide encerrar seu
mundo ortodoxo entre os muros do edif�cio, o qual se transformar� em mausol�u
para seus antepassados e tamb�m para si pr�prio. Em seu projeto de vida, o
concebe como uma edifica��o inerte na qual pretende embalsamar amorda�ada a
realidade da Espanha, aprisionar o futuro em seu mundo imut�vel para impedir que
continue sua marcha. A ironia no romance consiste em que o governo absoluto e
eterno est� circunscrito, do mesmo modo que seu Pal�cio, ao mundo da morte.
Como o fim sempre marca um recome�o em Terra Nostra, a primeira parte do
Tr�ptico termina com o Peregrino que, na presen�a do Senhor em seu Pal�cio, inicia
a narrativa da segunda parte de Terra Nostra, O Mundo Novo. A parte central do
romance descreve as aventuras da personagem em seu descobrimento, conquista e
136
fuga do novo continente. Na sua acidentada descrição da viagem, o Peregrino cria
uma extensa rede de referências nas quais se superpõem episódios do mito de
Quetzalcóatl, o rei-deus dos astecas, e o percurso de Hernán Cortés na conquista
de México-Tenochtitlán.
137
Segunda parte
Cree entonces conmigo, dijo enérgicamente Pedro, que no creó Dios este mundo para que sólo lo habitaran los hombres que tú y yo hemos conocido. Tiene que haber otra tierra mejor, una tierra libre y feliz, imagen verdadera de Dios, pues tengo por reflejo infernal la hemos dejado atrás.
Terra Nostra
138
II
OS INTERTEXTOS NO MITO FUNDACIONAL EM O MUNDO NOVO
Quetzalc�atl se foi sem saber que tinha sido o protagonista simult�neo da cria��o e da queda. Semeou, na terra, o milho; mas nas almas dos mexicanos semeou uma infinita suspeita circular.
Carlos Fuentes Tiempo Mexicano
Diferente da ruptura radical da linearidade narrativa realizada na primeira parte
– O Velho Mundo, nesta parte central do romance – O mundo novo, os
acontecimentos descritos apresentam uma narrativa que se acomoda a uma
estrutura cronol�gica bastante precisa. Esta segunda parte a f�bula hist�rica foca
sua aten��o no conflitante encontro entre a cultura espanhola e o mundo asteca em
um per�odo que se assemelha ao do reinado de Felipe II, apresenta a experi�ncia da
viagem do Peregrino- Polo Febo na sua viagem de descobrimento, conquista e fuga
do Novo Mundo. Esses acontecimentos s�o narrados e descritos em primeira
pessoa pelo Peregrino ao Senhor no Pal�cio.
A segunda parte do romance � a mais breve das tr�s que comp�em Terra
Nostra, sua narrativa consta de dezenove epis�dios que relatam o itiner�rio do
Peregrino desde seu encontro com Pedro no litoral espanhol (p.357) at� o M�xico-
Tenochtitl�n, no cora��o do imp�rio asteca (p.457, 473). Os epis�dios seguintes
(p.372, 378) reproduzem livremente as cr�nicas do Descobrimento e da Conquista
da Am�rica. Os primeiros epis�dios descrevem o Peregrino em sua travessia
oce�nica junto a Pedro, o velho defensor das utopias sociais; a chegada de ambos �
Praia das P�rolas; a morte de Pedro; os encontros do Peregrino com os nativos da
regi�o e, principalmente, a sua viagem desde a costa do Golfo at� Tenochtitl�n, a
139
capital do reino asteca. Os �ltimos recortes (p.480,487) descrevem a fuga do
Peregrino e a sua reapari��o na mesma praia desde onde havia empreendido sua
viagem exploradora. O Mundo Novo cria uma ampla rede de alus�es em que se
sobrep�em epis�dios significativos da saga de Quetzalc�atl, o rei deus dos astecas,
e o percurso de Hern�n Cort�s em sua conquista de M�xico-Tenochtitl�n.
Quando o Peregrino-Polo Febo relata ao Senhor sua aventura nas terras
mesoamericanas, dois motivos se entrecruzam em sua narrativa formando um duplo
eixo estruturador: o mito de Quetzalc�atl e o descobrimento-conquista da Am�rica.
Tanto o componente m�tico como o hist�rico s�o submetidos a um processo de
sele��o e de adapta��o que d� lugar a um universo original no qual Carlos Fuentes
apresenta a sua vis�o particular do “traum�tico encontro entre as duas civiliza��es”
(1992, p.82).
Santiago Juan Navarro comenta que a forma como Carlos Fuentes interpreta
esses acontecimentos hist�ricos configura progressivamente a vis�o hist�rica do
autor em rela��o ao mundo hisp�nico, o qual real�a as dificuldades da modernidade
em penetrar no mundo espanhol, medieval e fechado e, consequentemente, em
Hispano-Am�rica como espelho espanhol. A entrada da Modernidade foi
obstaculizada em v�rios n�veis: econ�mico, mediante a expuls�o dos judeus;
pol�tico, mediante a repress�o do movimento comunero; religioso, mediante a
repress�o sistem�tica do pensamento heterodoxo.
Por enquanto as comunidades se rebelavam em Castela (e em Arag�n, atrav�s do movimento paralelo da Germ�nia), os filhos e irm�os dos advogados, artes�os, lavradores e fidalgos que lutaram contra Carlos V, lutavam por Carlos V no M�xico, o Caribe e a Terra Firme. De forma que uma das grandes ironias da nossa hist�ria � que, no mesmo momento em que Carlos V derrotou as for�as comuneras em Villalar em 1521, Hern�n Cort�s, derrotou as for�as astecas em Tenochtitl�n. No fundo, o problema para Espanha e para a Am�rica espanhola haveria de ser o mesmo: Que classe de ordem seria constru�da no dia seguinte das duas vit�rias coincidentes, contra os ex�rcitos da comunidade em Villalar e contra os ex�rcitos astecas em Tenochtitl�n? Infelizmente, a resposta foi que na Espanha, uma ordem vertical e autorit�ria se imporia sobre o movimento da ordem horizontal e democr�tica. E no Novo Mundo, as estruturas verticalmente organizadas do Imp�rio asteca (e mais tarde do Inca) seriam simplesmente substitu�das pelas estruturas verticais e autorit�rias dos Habsburgo espanh�is. Pode ser de outra maneira? Pudemos ter criado um sistema democr�tico depois da Reconquista da Espanha e a conquista do Novo Mundo? Esta pergunta se
140
suspender� para sempre sobre os destinos da Espanha e da Am�rica espanhola. (1992, p.164).
A Am�rica que a ortodoxia dos reis espanh�is Carlos V e Felipe II conceberam
uma ideia que se opunha dramaticamente �quela que os conquistadores realmente
conheceram. Para os primeiros, o Novo Mundo era sin�nimo de extens�o do
territ�rio da Nova Espanha, espa�o prop�cio para o exerc�cio e perpetua��o do
poder absoluto e da ortodoxia, “um espelho malformado do Velho Mundo” (1972,
p.122). J� para os outros, os viajantes que esperavam encontrar no para�so terreno
a realiza��o da utopia, a concretiza��o de seus sonhos de riqueza e de gl�ria,
encontraram um Novo Mundo in�spito, violento, territ�rio de solid�o, de in�meras
doen�as e de morte.
O cr�tico acrescenta que a ortodoxia se conceitua como doutrina satisfeita de
dogmas conclusos e excludentes. Sobrevive no conservadorismo, convenciona
estruturas invari�veis e fora dela n�o h� outras verdades; fomenta o sil�ncio, a
imobilidade por perpetuar o discurso un�voco. Frente � ortodoxia e �s suas
irrefut�veis certezas surge, em oposi��o a esta, a heresia, como movimento
individualista cujo pensamento desafia a certeza. Diz Carlos Fuentes que Am�rica
nasceu como resposta her�tica � ortodoxia de um Imp�rio que se esfor�ava em a
sujeitar a sua pr�pria imobilidade.
(...) o descobrimento da Am�rica foi traduzido, para o Renascimento, como o lugar da utopia. Mas rapidamente no Novo Mundo como na Europa a dist�ncia entre os ideias e a realidade transformou o para�so americano num inferno. Os europeus transladaram para a Am�rica os sonhos de suas pr�prias utopias fracassadas, e estas se transformaram em pesadelo � medida que o poder colonial se estendeu, e em vez de ser os beneficiados da utopia, os povos abor�genes das Am�ricas se transformaram nas v�timas do colonialismo, despojados da sua antiga f� e de suas terras heredit�rias, e obrigados a aceitar uma nova civiliza��o e uma nova religi�o, por enquanto o Renascimento europeu seguia sonhando numa utopia no Novo Mundo. (1992, p.206).
Em Cervantes, o la crítica de la lectura, Carlos Fuentes evoca a figura de Don
Quijote para revisar o contexto pol�tico-liter�rio da Espanha que inspira Miguel de
Cervantes y Saavedra para sua cria��o, Don Quijote de La Mancha (1605). Na
primeira p�gina, explica a rela��o entre Terra Nostra a seu ensaio,
141
De forma certa, o presente ensaio é fruto do romance que me tem mantido ocupado durante os últimos seis anos, Terra Nostra. As três datas que constituem as referências temporais do romance podem muito bem servir para estabelecer o transfundo histórico de Cervantes e de Don Quijote: 1492, 1521, 1598 (1976. p.46).
As datas mencionadas correspondem aos fatos relacionados ao período do
Descobrimento e da Conquista do Novo Mundo, assim como também aos da
construção do Palácio El Escorial. Ao revisar o passado, combina literatura e história
numa tentativa de explicar o universo espanhol e a sua relação com o México,
Carlos Fuentes escreve em Advertência, nas primeiras paginas do ensaio:
Tardamos três séculos em adquirir nosso nome, nossa estirpe e em reivindicar, ao mesmo tempo a independência mestiça, a nossa mãe. Para reencontrar a Espanha, o México teve que reencontrar-se a si mesmo através das lutas pela independência política e em seguida pela independência econômica; contra sucessivas invasões e mutilações territoriais; mediante uma busca constante da nossa identidade nacional, mestiça, herdeira ao mesmo tempo da civilização indígena e da civilização espanhola: a reforma de Juárez, a revolução de Zapata e o Estado Nacional de Cárdenas: o México, ao conhecer-se, acabou por reconhecer a sua autêntica herança espanhola e por defende-la com a paixão de quem resgatou seu pai da incompreensão e do ódio. (1976, p.9-10).
Carlos Fuentes comenta que, no nível oficial, a conquista de América supôs a
exploração de um modo deficiente, pois a Espanha se encontrava mais perto do
obscurantismo medieval que da abertura do pensamento do Renascimento europeu,
mas, por outro lado, isso também significou a entrada na América de uma realidade
tricultural.
A partir da derrota das comunidades de Castela em Villalar e dos astecas em Tenochtitlán, Carlos V não apenas consolidou o Estado centralista espanhol, como também o fizeram a França e a Inglaterra, e como não o puderam fazer a Alemanha e nem a Itália. Carlos transformou a Espanha, de uma comunidade puramente peninsular, empenhada na sua própria cruzada contra o Islã e chamada a encontrar um compromisso entre seus componentes triculturais, num império continental que (...) tudo abarcou em Holanda, Itália, Túnez e as Américas. (...) Lutou contra as nações indígenas das Américas através de seus violentos capitães (Hernán Cortés e Francisco Pizarro), mas ao mesmo tempo, lutou por tirar dos conquistadores o
142
domínio feudal do Novo Mundo mediante a legislação de Índias que protegia as comunidades indígenas e restringia, de jure, os poderes de facto adquiridos pelos conquistadores. Lutou contra o novo poder islâmico, o império otomano, que se havia atrevido a estender-se do Mediterrâneo ao Danúbio, chegando até as portas de Viena. Lutou contra seu rival francês, Francisco I, durante um extenuante período de um quarto de século; padeceu o amotinamento de suas próprias tropas impagáveis que saquearam a cidade pontifica, Roma, enquanto Carlos batalhava contra os protestantes na Alemanha e, finalmente, se mostrava incapaz de submetê-los, aceitando sua derrota em Habsburgo em 1555 (1992, p.164-165)
Carlos Fuentes argumenta que a obra mais importante da literatura espanhola
é Don Quijote de La Mancha. No ensaio, aborda de maneira especial a relação
entre a Espanha e o Novo Mundo.
Don Quijote (...) é o livro exemplar da decadência espanhola. O fidalgo está demasiado velho para viver suas aventuras. A era épica da Espanha há concluído. Cervantes inventou um fantasma para informar à Espanha do fim da épica. Don Quijote disse à Espanha: Estás esgotada, regressa à casa. E se Deus é bom para você, morrerás em paz. O sonho da utopia havia fracassado no Novo Mundo. (...) Não nos diz esta confrontação que a história da Espanha, e logo as das colônias americanas, é na realidade a história, e o dilema, de ser duas nações, duas culturas, duas realidades, dois sonhos, tratando desesperadamente de ver-se, de encontrar-se, de entender-se? Dois valores constantes, duas esferas da realidade, levitando às vezes, pulando sobre o vazio, executando um salto mortal (...)? É por isso que as duas figuras do romance de Cervantes, Don Quijote e Sancho Pança, retém tal validez em seu contraste e uma atração tão universal em sua configuração. Neles, o dilema da Espanha se reconhece por todos os homens e em todos os tempos; lutamos com o ideal e com o real. Lutamos entre o desejável e o possível. Enfrentamos exigências abstratas e tentamos reduzi-las a tamanho irônico mediante o absurdo. Gostaríamos de viver num mundo razoável de justiça concreta. Somos, às vezes, personagens épicos como Don Quijote, mas passamos a maior parte do tempo vivendo vidas picarescas como Sancho Pança. Gostaríamos de significar mais do que realmente somos (...). Somos todos homens e mulheres de La Mancha. E quando compreendemos que nenhum de nós é puro, que somos (...) em parte cristão, em parte judeu, com algo de mouro, muito de caucásio, de preto, de índio, sem ter que sacrificar nenhum dos nossos componentes, então compreendemos a grandeza e a servidão da Espanha, seu império, a sua Idade de Ouro e a sua inevitável decadência. (...) La Mancha, na verdade, adquiriu todo seu sentido nas Américas. (1992, p. 202, 203)
A figura simbólica de Don Quijote de La Mancha entrelaça a história da
Espanha e da Hispano-América. Ambas são percebidas como produto das
143
contradi��es provocadas pelo encontro de �pocas e de valores opostos: o
Renascimento, o Humanismo, o individualismo, a heresia, a heterodoxia enfrentando
as ideias ortodoxas dos ideais da Idade M�dia, da Contrarreforma, do pensamento
est�tico.
Don Quijote abandonou sua aldeia e seus livros para sair pelos campos de Montiel, deixou para tr�s o mundo bem ordenado da Idade M�dia, s�lido como um castelo, onde tudo tinha seu lugar, e ingressa no valente Mundo Novo do Renascimento, agitado pelos ventos da ambiguidade e a mudan�a, onde tudo est� em d�vida. (...). Com seu livro Don Quijote de La Mancha, Cervantes funda o romance moderno na na��o que com maior firmeza rejeita a modernidade. Pois se a Espanha imp�s ao mundo um �nico ponto de vista, dogm�tico, ortodoxo, Cervantes, essencialmente imagina um mundo de m�ltiplos pontos de vista, e o faz mediante a s�tira na apar�ncia inocente dos romances de cavalaria. E mais, se a modernidade se baseia em m�ltiplos pontos de vista, estes, por sua vez, se baseiam nos princ�pios da incerteza. (...). O fracasso narrado por Cervantes ressoa nos lamentos dos viajantes an�nimos das �ndias que partiram em busca de El Dorado e que acabaram devorados pela inclem�ncia da natureza, da doen�a, da morte ou, simplesmente, pelo esquecimento, “o Novo Mundo se revelou de imediato como uma natureza desproporcionada, excessiva, hiperb�lica, incomensur�vel. Esta � uma percep��o constante da cultura ibero-americana, que nasce do sentimento de assombro dos exploradores originais (1992, p.187).
O fim da utopia ad�mica na Am�rica acaba por sinalizar o fim da �pica
europeia. A derrota final de Don Quijote, o retorno � raz�o, acaba com seus ideais e
com seus sonhos demonstram a fragilidade dos ideais quando enfrentados � penosa
realidade. Esse enfrentamento representa, metaforicamente, a vulnerabilidade
hist�rica do Imp�rio Espanhol. A sua grandeza, seu poderio e o desejo de
universalismo ca�ram perante a fragilidade econ�mica que o obrigaram a se
submeter � depend�ncia de produtos provenientes das na��es inimigas, que por sua
vez se fortaleceram e enriqueceram gra�as �s verbas vindas da Espanha. Conflito
an�logo � da brilhante loucura de Don Quijote em oposi��o � inexor�vel lucidez dos
que possu�am a raz�o. Sonho e realidade. Am�rica era o sonho e a Espanha a
realidade.
Cervantes inventa um par d�spar, um fidalgo empobrecido que se imagina como um cavalheiro errante dos tempos antigos, acompanhado por um p�caro, seu escudeiro Sancho Pan�a: entre
144
ambos, estende uma ponte entre os extremos da Espanha, o picaresco e o m�stico; o realismo da superviv�ncia e o sonho imperial. (...) No mesmo ano, 1605, s�o publicados Don Quijote, El Rey Lear e Macbeth. Dois velhos loucos e um jovem assassino aparecem no cen�rio do mundo para nos lembrar a todos a gloria e a servid�o � qual a humanidade est� sujeita. Shakespeare entoa a loa do “valente mundo novo”. Cervantes lamenta o passo da Idade de Ouro. (1992, p.186).
Carlos Fuentes comenta que, no in�cio de s�culo XVI, a Espanha vive um
paradoxo: de um lado, a heresia democr�tica das Comunidades de Castela e suas
aspira��es de igualdade; do outro, a verticalidade imperial de Carlos V que acabou
com os comuneros nos campos de batalha de Villalar. Parte desse esp�rito rebelde
dos comuneros viaja para O Novo Mundo nas caravelas daqueles que deixaram o
passado no Velho Mundo. Adentraram-se no mar rumo � utopia do Novo Mundo
trazendo consigo uma aspira��o de liberdade e de mudan�as que ressurge tr�s
s�culos mais tarde com o esp�rito de Independ�ncia por parte dos pa�ses das
col�nias na Am�rica e se prolongam nos longos conflitos das for�as liberais contra
as conservadoras. A Am�rica e Don Quijote se assemelham pela original anedota
que ambos viveram, foram inventados sem que Colombo nem Cervantes
compreendessem a import�ncia nem a transcend�ncia de sua cria��o e da sua
descoberta.
A obra de Cervantes re�ne num mesmo espa�o os ideais da nobreza, a honra dos cavalheiros e a sagacidade dos escudeiros; paralelamente convivem malandros, p�caros, camponeses, barbeiros e mendigos, que em seu conjunto retratam a sociedade da velha Espanha que transita por suas ruelas, tabernas, calabou�os e pra�as carregando os sonhos de mudan�as do povo que veio para conquistar a Am�rica. Hispano-Am�rica nasceu da “fome do Ocidente, de suas tabernas e dos sub�rbios, das ruelas e das tabernas, dos mercados e dos calabou�os; da excentricidade, da tardan�a e do desassossego, da contradi��o, da torpeza, da inconsequ�ncia e da sobreviv�ncia. (1992, p.25).
Das tr�s partes nas quais se divide a obra, O Mundo Novo apresenta o espa�o
prop�cio para que romance reinvente uma grande variedade de temas mito-
hist�ricos, a interpreta��o da lenda de Quetzalc�atl e a vis�o liter�ria da conquista
que se desprende da obra. Com o objetivo de delimitar com a maior precis�o
poss�vel o transfundo hist�rico e m�tico sobre o qual Terra Nostra recria as
145
diferentes variantes da lenda no �mbito da fic��o, a tese interpreta, de acordo com a
obra de Carlos Fuentes, os textos referentes � Conquista da Nova Espanha;
hist�rias, cr�nicas e rela��es entre conquistadores e mission�rios; assim como
outras fontes liter�rias contempor�neas � obra do autor mexicano.
Carlos Fuentes privilegia a fic��o por sobre a Hist�ria; isso quer dizer que, no
n�vel historiogr�fico, o escritor prefere “ouvir o discurso �s vozes tradicionalmente
silenciadas no registro hist�rico” (1992, p.54). Em entrevista a Marie - Lise Gazarian
Gautier, publicada em Carlos Fuentes: Territorios del tiempo (1999), Carlos
Fuentes comenta.
Acredito que n�o � poss�vel ter um presente vivo com passado morto. O passado � presente e se n�o somos conscientes disso teremos graves problemas hist�ricos, pol�ticos e sociais. (...). Durante trezentos anos n�o tivemos passado. A Col�nia espanhola criou um mundo cultural em que era muito dif�cil expressar-se como uno mesmo. �ramos silenciados. Pensemos, por exemplo, no caso do famoso Frei Bartolomeu de Las Casas. Seu grande livro em defesa dos ind�genas, onde descreve o trato brutal imposto pelo sistema da Conquista, foi escrito arredor de 1530 e n�o foi publicado sen�o at� o fim do s�culo XIX. � incr�vel! Da mesma forma, o Inca Garcilaso de la Veja exaltou em sua obra o passado ind�gena da Col�nia como o virreinado espanhol no Peru, por�m seus trabalhos n�o foram publicados at� muito depois. Sor Juana de la Cruz foi silenciada, apagada. Assim que temos um passado calado e acredito que temos que capturar o passado e lhe dar vida de alguma forma. Dar-lhe relev�ncia a nossa vida atual. N�o podemos viver com trezentos anos de sil�ncio. (...) sou latino-americano, mexicano e um homem do terceiro mundo, e a identidade est� no centro de nossas preocupa��es. N�o temos uma identidade que possamos assumir facilmente (...). Acredito que isso provem de uma dupla tradi��o, a cosmogonia e a civiliza��o ind�gena e a grande tradi��o da literatura espanhola (1999, p.145, 146).
Descreve o M�xico como uma pir�mide pol�tica, econ�mica e cultural, “ao viajar
da costa, desde Acapulco no Pac�fico ou Veracruz no Golfo, se ascende at� o cume
que � Ciudad de México”. E faz refer�ncia a Octavio Paz que tamb�m descreve o
M�xico a pir�mide, em Nuevo Mundo y conquistas (1989),
As geografias tamb�m s�o simb�licas: os espa�os f�sicos se resolvem em arqu�tipos geom�tricos que s�o formas emissoras de s�mbolos. Plan�cies, vales, montanhas: os acidentes do terreno se tornam significativos apenas se inserem a hist�ria. A paisagem �
146
hist�rica e da� que se transforme em escrita cifrada e texto Hierogl�fico. As oposi��es entre mar e terra, plan�cie e montanha, ilha e continente, selva e deserto s�o s�mbolos de oposi��es hist�ricas: sociedades, culturas, civiliza��es. Cada terra � uma sociedade: um mundo e uma vis�o do mundo e do inframundo. (1989, p.36)
Em rela��o � cultura mexicana, Carlos Fuentes, busca a releitura dos fatos do
passado, aproxima a literatura ao mito e o mito a hist�ria. Ao aproximar esses
diferentes campos, os redimensiona criando um mundo percebido no espelho, em
que prevalece o conceito do duplo como no mito do deus cultural Quetzalc�atl,
met�fora da hist�ria do M�xico.
Quetzalc�atl acreditou sempre ser um deus at� que um dem�nio chegou com um espelho e lhe mostrou que tinha rosto, “Ent�o n�o sou um deus! Tenho cara como os homens’, e fugiu do M�xico, prometendo voltar. O ex�lio de Quetzalc�atl � um mito que reflete como que num espelho a hist�ria do M�xico, j� que o deus descobre que � um ser humano. A maioria da nossa hist�ria emana deste descobrimento, deste problem�tico descobrimento (1999, p.149).
Baseada na intertextualidade, a obra recopila cartas e documentos escritos
sobre a Conquista da Am�rica e os homenageia por meio da par�dia. Reconstr�i o
mito e os dados hist�ricos por meio das obras de Miguel- Le�n Portilla, El reverso
de la Conquista. Relaciones Aztecas, Mayas e Incas El destino de la palabra
(1964); De la oralidad y los códices mesoamericanos a la escritura alfabética
(1992); Visión de los vencidos; Relaciones indígenas de la Conquista (1969);
Motivos de la antropología americanista, indagaciones en la diferencia (2001).
Esses escritos s�o importantes para compreender a rela��o que se estabelece
entre culturas provenientes de mundos diferentes e para entender os mecanismos
do processo da conquista relatados, que ao construir a mitohist�ria geram um novo
mito de origem como consequ�ncia do encontro-fus�o entre as culturas pr�-
hisp�nicas e o interesse sociopol�tico cultural do homem europeu. Nesse sentido,
para M. Eliade (1963, p.25) “Os mitos de origem prolongam e completam o mito
cosmog�nico: contam como o Mundo foi modificado, enriquecido ou empobrecido”.
Os escritos de M. Eliade, Aspectos do mito (1963) e Mito e Realidade (1972)
formam parte da consulta bibliogr�fica desta segunda parte do Tr�ptico.
147
Outra obra importante � La invencion de América: Investigación acerca de
la estructura histórica del nuevo mundo y del sentido de su devenir (2001), de
Edmundo O�Gorman, citada amplamente por Calos Fuentes.
Acredito que La invención de América, el t�tulo de O�Gorman, � o melhor de todos os t�tulos, melhor que o descobrimento, o encontro de culturas, o genoc�dio, a coloniza��o o todo (...) a inven��o de um Novo Mundo como obra conjunta de europeus, de �ndios e de africanos, a inven��o de um continente mesti�o e a constante reinven��o da Am�rica (1999, p.180).
O relato em O Mundo Novo recorre �s vers�es ap�crifas da Hist�ria que
acabam por substituir a vis�o herdada das cr�nicas oficiais. A hist�ria tradicional de
cronologias exatas, de sucess�es din�sticas, das grandes fa�anhas e sagas �picas,
cede lugar a um aparente caos de personagens e de vozes narrativas nas quais �
dif�cil estabelecer a depend�ncia hist�rica. Quando Carlos Fuentes � questionado
sobre a liberdade hist�rica que transforma a fic��o em realidades, reponde que o
passado hist�rico da Espanha desencadeou o presente da Am�rica Latina e que n�o
� poss�vel compreender o Novo Mundo sem antes conhecer as mentes daqueles
que vieram do Velho Mundo:
Em Terra Nostra aparece a hist�ria da dinastia dos Habsburgo na Espanha. Tomo muit�ssimas liberdades com isso. Os cr�ticos mais solenes da Espanha e de Latino-am�rica dizem que o “Senhor Fuentes n�o sabe hist�ria, ignora as datas, n�o sabe que Carlos V foi o pai de Felipe II e filho de Felipe o Formoso. Os faz desaparecer para que Felipe o Formoso vire o pai de Felipe II e Carlos V desapare�a”. Nunca se perguntaram por que desaparece Carlos V, por que h� esta necessidade crucial de devorar o pai ao mesmo tempo em que se devora a hist�ria. � uma esp�cie de canibalismo para com a hist�ria e para com o filho, (...). A hist�ria � tal como a imaginamos. A verdadeira hist�ria n�o � uma sucess�o de datas no calend�rio. A verdadeira hist�ria acontece dentro de n�s mesmos. A vivemos, a imaginamos, prevemos alguns eventos, admitimos outros, damos plena relev�ncia a alguma coisa, esquecemos outras, as bloqueamos porque n�o queremos recordar (...) refletem obsess�es pr�prias da cultura. (...). Terra Nostra � como um museu imagin�rio do mundo hisp�nico. Ali est�o todas as coisas que nos fazem descendentes da Espanha no Novo Mundo. Todas nossas obsess�es, honra, orgulho, hist�ria, liberdade, arte, fam�lia, tudo est� ali. (1999, p.154).
148
Disso resulta uma vers�o alternativa do passado em que os elementos
fant�sticos, por vezes, parecem ser os reais e os aparentemente reais s�o o
resultado da fic��o liter�ria. A narrativa acumula dimens�es e espa�os que se
desdobram em tempos diversos, personagens que transitam e se deslocam nesses
tempos, a ruptura dos limites espa�o-temporais e os recortes hist�ricos estabelecem
e consolidam as simbologias e imagin�rios coletivos. A revis�o do passado, como
caracter�stica da obra, est� presente ao logo do romance que “na sua ess�ncia
apresenta uma comunidade de na��es que n�o tiveram a possibilidade de decidir
sobre seu pr�prio destino” (1992, p.12).
A reconstru��o do mito mesoamericano de Quetzalc�atl sugere uma divis�o
que possibilita o estudo das v�rias fei��es do mito, quest�es hist�ricas, pol�ticas,
religiosas e sociais de cultura latino-americana. Segundo Santiago Juan Navarro
(2002),“Quetzalc�atl � uma das figuras mais polifac�ticas das religi�es
mesoamericanas e seu culto pode rastrear-se desde os tempos do centro cultural de
Teotihuac�n (1000-750 d.C) at� a queda da capital asteca em 1521” (p.67). Eh�calt
Quetzalc�atl tem valor capital para as cosmogonias do M�xico central, participa dos
quatro s�is ou eras em que os astecas dividiam o passado, e do quinto sol ou era do
presente. Associado aos conceitos de fertilidade, Quetzalc�atl foi conhecido como
deus protetor do M�xico central, oeste de Oaxaca e a costa do Golfo.
O nome Quetzalc�atl, serpente de plumas de quetzal, se costuma associar com uma dupla identidade: a de um deus criador (Eh�calt Quetzalc�atl) e a de um lend�rio soberano tolteca (Topiltzin Quetzalc�atl), que adotou o nome do deus. (...) Este costume tolteco-asteca de ostentar o nome do deus como t�tulo tem provocado in�meras confus�es que tem afetado tanto � lenda no meio dos ind�genas como as recopila��es que dela fizeram os historiadores modernos. Assim nas descri��es do her�i hist�rico n�o � estranho encontrar os diferentes conceitos associados � Quetzalc�atl-deus, que tamb�m alude ao conceito de fertilidade e como doador da vida. De acordo com a cosmogonia n�huatl, o mundo teria sido criado e destru�do v�rias vezes. Em concreto, se fala de quatro s�is ou eras que precedem a era atual. Cada um destes s�is teria sido destru�do de forma diferente: o primeiro por um jaguar, o segundo pelo vento, o terceiro pela chuva e o quarto pelas �guas do grande dil�vio. Uma vez criado o quinto sol, ou era presente, gra�as ao sacrif�cio dos deuses, o universo asteca sentiu como necess�rio o cont�nuo sacrif�cio humano como oferta a tais deuses. (2002, p. 68).
149
Nos tr�s primeiros segmentos narrativos (p.357, 363, 367) o Peregrino-Polo
Febo descreve a sua viagem de descobrimento junto a Pedro, uma viagem que se
inicia sob o signo de V�nus, uma das manifesta��es de Quetzalc�atl. A forma��o do
intertexto m�tico n�huatl indica a figura do deus associada � estrela da manh�
V�nus. Documentos posteriores � Conquista apresentam transcri��es da hist�ria
asteca que falam desta figura que governou a cidade de Tol�n.
Baseado em documentos do s�culo XVI, o autor norteamericano Henry B.
Nicholson, em Topiltzin Quetzalcóatl de Tolán: una etnohistória mesoamericana
(1976), reconstr�i uma hist�ria b�sica do mito de Quetzalc�atl e de como este
florescera nas principais cidades do M�xico at� a chegada dos espanh�is em 1519.
O ensaio descreve Topiltzin Quetzalc�atl como uma personagem hist�rica do
per�odo inicial da hist�ria tolteca e cuja figura se confunde com a do �checalt
Quetzalc�atl, deus antigo da fertilidade, criador da chuva e do vento. Filho de um
dos principais conquistadores toltecas, Topiltzin vinga a morte de seu pai e assume
a lideran�a secular e sacerdotal de um grupo de Tol�n.
Durante seu reinado inova e modifica numerosos aspectos culturais,
principalmente religiosos, “isso provoca um conflito que acaba com a fuga de
Topiltzin de Tol�n. Dirigindo-se sempre para o Leste, depois de permanecer durante
muito tempo em Cholula, desaparece para al�m do horizonte conhecido” (p.38-39).
Junto ao valor de suas inova��es no �mbito da religi�o e da cultura, os documentos
analisados por Nicholson revelam a import�ncia de Topiltzin Quetzalc�atl como l�der
pol�tico e legitimador das dinastias guatemaltecas de origem tolteca.
Nicholson utiliza seis documentos para elaborar o ensaio para construir a figura
de Quetzalc�atl de Tol�n: Historia de los mejicanos por sus pinturas; Las
Relaciones de Juan Cano: relación de la genealogía y linaje de los señores que
han señoreado esta Tierra de la Nueva España y origen de los mejicanos;
Historia de Méjico; Leyenda de los cuatro soles; Historia general de las cosas
de Nueva España, de Frei Bernardino de Sahag�n, e Anales de Cuautitlán.
Santiago Juan Navarro comenta que a figura mista de Quetzalc�atl her�i-deus
est� intimamente relacionada ao fen�meno da conquista e com as vers�es
existentes sobre ela. Desde o s�culo XVI muitas hip�teses surgiram para tentar
explicar a r�pida conquista do imp�rio asteca por um grupo reduzido de espanh�is.
Uma das mais populares segue sendo atribu�da ao medo paralisante que os
150
press�gios e as profecias exerceram sobre o povo asteca, e especialmente sobre
seu soberano. De acordo com essas profecias, Quetzalc�atl deveria regressar para
reclamar seu trono no ano I da Canha do calend�rio asteca, e o desembarque dos
espanh�is no Golfo de M�xico coincidiu com esse momento anunciado.
Um problema que devemos ter sempre em conta ao tratar temas relacionados com os mitos n�huatl � a aus�ncia de uma literatura escrita anterior � conquista e a falta de elementos de ju�zo que permitam asseverar a fiabilidade de muitos dos documentos a nosso alcance. As primeiras tentativas de sistematiza��o da mitologia n�huatl, tanto por parte ind�gena como espanhola, acometeram nas d�cadas seguintes � chegada de Cort�s, ou seja, depois da queda do imp�rio asteca. (2002, p.70)
Na parte norte da Am�rica onde se estabelece o imp�rio asteca, a refer�ncia
do mito da cria��o do mundo possui variadas vers�es. O povo tolteca, que significa
construtores, cria uma cosmologia perfeitamente organizada para explicar a
forma��o do mundo e suas transforma��es sucessivas. “Num processo de
expans�o iniciada no s�culo XI d.C, os toltecas encontram povos da cultura Maya na
mesoamerica na cidade Tula, antiga Tol�n, e se misturam. Seus mitos originam as
bases dos povos posteriores a eles, especialmente aos astecas, sucessores diretos
e herdeiros de sua cultura” (1992, p.90). Para escrever sobre o povo asteca, Carlos
Fuentes se baseia nas cr�nicas de Bernal D�az de Castillo, Historia verdadera de
la conquista de la Nueva España (1632), que o descreve como uma tribo
migrat�ria estabelecida no planalto mexicano desde o ano de 1325 d.C. Pelo fato de
ser percebido pelos outras tribos como um povo errante, � denominado de povo sem
rosto.
Com a finalidade de possuir um rosto que os caracterize, o chefe da tribo usa a
Máscara Tlatoani, que tem o mesmo significado da coroa real. � um sinal da realeza
d�itica, de superioridade, de autoridade e do poder absoluto. Como ca�adores e
guerreiros experientes, os astecas submetem as tribos vizinhas, escravizam seus
opositores, estendem seus dom�nios at� se converterem num grande imp�rio. O
poder desse povo sem rosto tem seu apogeu e queda no imperador Moctezuma,
senhor da grande voz. Na cultura asteca somente pode falar aquele que possui a
m�scara do Tlatoani, o imperador: “Apenas uma voz poderia ser ouvida, no mundo
asteca, entre os l�bios da m�scara. Devolva-nos o nosso rosto! Clama o povo.
151
Devolva-nos a nossa voz! Este � o clamor que se ouve, ainda hoje, desde o cora��o
do M�xico, unindo os rostos e as vozes da hist�ria e da literatura” (1992, p. 90).
Carlos Fuentes comenta que nas p�ginas de Bernal D�az se desenham
variados rostos da figura d�itica: a dos deuses em fuga, a dos conquistadores que
se assemelham � antiga descri��o dos deuses e a do povo errante em busca de
uma terra definitiva.
Os astecas, tribo migrat�ria, apenas chegaram ao planalto mexicano em 1325, para assentar-se ali e estender seu dom�nio. Mas as civiliza��es precedentes depreciaram os rec�m chegados, chamando-os de “o povo sem rosto”. O poder dos astecas, o povo sem rosto, culmina num imperador mascarado pelo dono da Grande Voz: o Tlatoani, Moctezuma; o senhor da grande voz. (...) Devolva-nos o nosso rosto! clama o povo. Devolva-nos a nossa voz! Aquilo que Bernal diz desde o s�culo XVI significa que s� recobraremos nossa cara e nossas palavras se primeiro recobramos nosso tempo
(1992, p.89).
A colheita das narrativas dos povos da Am�rica pr�-colombiana sempre
incentiva o imagin�rio do escritor, como diz Carlos Fuentes, “Imaginar o passado.
Recordar o futuro. Um escritor conjuga os tempos e as tens�es da vida humana com
meios verbais. Recordar e escrever tudo” (1992, p.17). Cada um deles cantou com
sua pr�pria voz as in�meras lendas da sua g�nese particular. O mito de uma
deidade criadora, que antes de desaparecer misteriosamente promete voltar um dia,
pairava por toda a Am�rica pr�-hisp�nica.
O deus-cultural dos incas, no Peru, � Espuma do mar ou Viracocha e para os
astecas, no M�xico, Serpente emplumada ou Quetzalcóatl. Uma lenda peruana
relata que Viracocha desapareceu no mar pelo ocidente. Em l�ngua qu�chua
Viracocha, ou Tiqsiwiracocha, significa fundamento, base, in�cio, o nome se constr�i
pela fus�o dos voc�bulos wira (gordura) e cocha (lago-lagoa). Nesse universo
andino �gua e gordura constituem o elemento b�sico para a vida. Viracocha tinha
uma figura esbelta, barba e cabelos dourados, era civilizador e pac�fico, o deus
incaico criador do mundo e dos seres humanos. Ao sentir-se invejado e injusti�ado
pelos outros deuses, Viracocha foge de forma prodigiosa envolto por raios solares,
seus rivais o perdem de vista quando embarca rumo ao oeste e desaparece no mar
com a promessa de retornar no fim dos tempos.
152
Em Comentarios reales de los Incas (1609), o �ndio Garcilaso de La Vega
relata que nos anos que precederam � chegada dos espanh�is os incas foram
perturbados pelas for�as tel�ricas. Na cidade de Cuzco houve violentos terremotos,
cometas no c�u, uma lua rodeada de tr�plice aur�ola indicando morte, destrui��o e
caos e in�meros raios atingiram o pal�cio do Inca-rei. “Os adivinhos pressagiavam a
destrui��o do Imp�rio Inca, temiam que tudo iria a desaparecer como fuma�a”. A
profecia havia predito o fim dos tempos: “o Imp�rio Inca deveria terminar com a volta
de Viracocha, durante o reinado do d�cimo segundo imperador”. Quando os
espanh�is chegaram pelo oeste, os incas acreditaram que se tratava do retorno de
Viracocha e seu s�quito de deidades. Atahualpa era o d�cimo terceiro imperador
Inca e o “Imp�rio do Sol chegava a seu fim com Francisco Pizarro em 1532” (2002,
p.70).
Tanto no M�xico, como no Peru, os relatos descrevem uma atmosfera
apocal�ptica no meio do pavor religioso imediatamente antes do advento dos
espanh�is: press�gios e profecias anunciavam o final dos tempos. Entre os Mayas
encontram-se o Chilam Balam, ou Boca do Jaguar, do s�culo XVI, trata-se de uma
cole��o de livros escritos posteriormente, durante os s�culos XVII e XVII, na
pen�nsula de Yucat�n. Nele, o mito explica a origem de um mundo numa �poca em
que os deuses do inframundo dominavam o universo e o mantinham cativo; relata a
hist�ria dos povos da regi�o, do folclore, da medicina, da astronomia e da conquista
espanhola e predisse a aurora de uma nova era: “quando lan�arem seu sinal para o
alto, quando o lan�arem ao alto com a �rvore da vida, tudo de repente estar�
mudado. E o sucessor da primeira �rvore da vida aparecer�, e para todo o povo
ficar� clara a grande mudan�a”. Em c�digo apocal�ptico, assim como os outros
relatos messi�nicos da �poca da conquista, o Chilam Balam relata a destrui��o e o
renascimento dos nove n�veis do inframundo e os treze c�us, o roubo da Grande
Serpente, o desmoronamento do c�u e o desabamento da terra. Uma primeira
acep��o indica que Balam � um nome indicador de casta ou de fam�lia dedicada �
magia, e Chilam � o t�tulo dado �s castas xam�s.
Nos escritos de Miguel-Le�n Portilla, Visión de los vencidos. Relaciones
indígenas de la Conquista (1969), existem algumas vers�es referentes aos fatos
extraordin�rios ocorridos antes da chegada dos espanh�is: “(...) por um ano
completo, durante toda noite, a cidade Tenochtitl�n ficou iluminada por uma coluna
153
de fogo que aparecia do Leste subindo da terra para o c�u”. Existem pelo menos
duas vers�es do livro dos Informantes de Sahagún (1969), nessas vers�es diz que
um fogo misterioso destruiu o templo de Hitzilopochtli e que logo depois, o de
Xiuhtecuhtli foi atingido por uma chuva de raios. Uma estranha ave cinzenta,
levando uma esp�cie de espelho sobre a cabe�a, foi capturada quando Moctezuma
examinou o espelho, viu algo a dist�ncia que parecia uma prociss�o que se movia
velozmente, na qual figuras imponentes lutavam e se batiam umas contra as outras
e estavam montadas numa esp�cie de veado.
Antes da chegada dos conquistadores espanh�is houve sinais durante os dez anos anteriores, que anunciavam o fim dos mexicas: uma coluna de fogo em tr�s partes dividido apareceu no c�u noturno, saindo de ocidente a oriente; o templo de Hitzilopochtli foi arrasado pelo fogo, enquanto mais �gua se jogava para apag�-lo, as chamas cresciam mais; um raio caiu no templo de Xiuhtecuhtli; a �gua do lago parecia ferver; parte de Tenochtitl�n se inundou; e cantou um estranho p�ssaro parecido com uma gralha. Quando Moctezuma olhou nas suas pupilas, pode ver uma prociss�o de homes desconhecidos que faziam a guerra e vinham montados em uns como veados; gente estranha, com um corpo e duas cabe�as monstruosas e que brilhavam como o sol. (1969, p.2-5).
A vers�o de Terra Nostra oferece a saga do her�i-deus Quetzalc�atl com os
tra�os mais espetaculares e liter�rios do mito. El espejo enterrado apresenta um
ser em que se entremesclam as caracter�sticas do deus soberano e os do soberano-
sacerdote de Tol�n, assim como as in�meras e contradit�rias narrativas conhecidas.
“Quetzalc�atl, a Serpente emplumada, foi o criador da humanidade, da agricultura,
da vida em sociedade, o descobridor do milho e inventor da arquitetura, da m�sica,
da escrita, da minera��o e do artesanato. Quetzalc�atl � aquele que deu aos
homens suas ferramentas e os ensinou a plantar milho”. Pela quantidade de ensino,
Quetzalc�atl- Topiltzin foi identificado com o mesmo nome dos toltecas, palavra que
significa totalidade da cria��o (1992, p.99). Seu valor moral na antiga mesoamerica
faz com que Carlos Fuentes o equipare a Prometeu.
O Mundo Novo como na �pica hom�rica reconstr�i o mito e captura as
realidades alternativas que consentem di�logos poss�veis com outras hist�rias num
plano pluridimensional. A poss�vel constru��o da antropog�nese latino-americana,
somada � mem�ria cultural das personagens do romance autorizam a fus�o do
154
relato hist�rico com o ficcional, ambos se fundem nas m�ltiplas vozes das
personagens que for�am � fic��o a mover-se pelo territ�rio da verossimilhan�a para
confrontar a vers�o linear dos relatos hist�ricos. Esta � apenas uma possibilidade de
leitura, e mais uma constru��o permitida no �mbito da fic��o. Lembrando as
palavras de Carlos Fuentes, “O presente chama de hist�rico tudo quanto tem um
lugar no passado. Mas somente aquilo, que mant�m um sentido para o nosso
presente, tem um lugar no passado” (1992, p.31).
Segundo Mircea Eliade, em Aspectos do mito (2000), “todo mito de origem
narra e justifica uma situa��o nova – nova no sentido em que ela n�o existia desde o
princ�pio do mundo. Os mitos de origem prolongam e completam o mito
cosmog�nico: contam como o Mundo foi modificado, enriquecido ou empobrecido”
(p.25). Fala do substrato m�tico da literatura e da hist�ria, da evid�ncia de que o
homem n�o pode escapar do tempo porque “nunca houve nem haver� um tempo
sem tempo”. A fun��o do mito � a de “proclamar que o tempo existe e que deve ser
dominado se queremos recuperar o tempo original, porque a mem�ria nos diz que
�ramos felizes”, que viv�amos numa esp�cie de idade do ouro (p.62).
(...) o mito conta uma hist�ria sagrada, relata um acontecimento que teve lugar no tempo primordial, o tempo fabuloso dos come�os (...), uma realidade que passou a existir, quer seja uma realidade total, o Cosmos, quer apenas um fragmento, uma ilha, uma esp�cie vegetal, um comportamento humano � sempre, portanto, uma narra��o de uma cria��o, descreve-se como uma coisa que foi produzida, como come�ou a existir (...) o mito � considerado como uma hist�ria sagrada e, portanto uma hist�ria verdadeira, porque se refere sempre a realidades. O mito cosmog�nico � verdadeiro porque a exist�ncia do mundo est� ai para provar, o mito da origem da morte � tamb�m verdadeiro porque a imortalidade do homem o prova. (2000, p.89).
A reinven��o dos mitos pr�-hisp�nicos e as cr�nicas da conquista, na vis�o de
Carlos Fuentes, formam um duplo eixo estruturador: a saga do deus mesoamericano
Quetzalc�atl e o descobrimento-conquista da Am�rica. A figura de Quetzalc�atl,
dentro do texto-contexto da obra, articula a hist�ria da Conquista. As aventuras do
Peregrino no Novo Mundo se correspondem, por um lado, com as etapas principais
da vida Quetzalc�atl-Topiltzin e, por outro, com momentos significativos da
conquista da Am�rica. O estudo de estes dois componentes se realiza em estreita
rela��o com as fontes documentais do romance.
155
As versões conhecidas sobre o mito de Quetzalcóatl não se originam apenas
no mundo pré-hispânico, mas como resultado do sincretismo cultural que teve lugar
na Nova Espanha durante o século XVI. Para Santiago Juan Navarro, a curiosidade
que o Novo Mundo provoca na Europa estimula uma intensa produção
historiográfica destinada a narrar os fatos da conquista, a explicar os pormenores
geográficos, botânicos, étnicos, antropológicos e míticos da terra recém incorporada
à história ocidental. Os que se ocuparam dessas questões formaram o grupo dos
escritores das Índias e se incorporam à literatura espanhola do século XVI como
historiadores da primeira época do Renascimento.
Os escritores que se ocuparam de forma não especializada da conquista e da
colonização se classificam como Cronistas Generales. Os que se ocuparam com
apenas um desses aspectos foram conhecidos como Cronistas Particulares. Dentre
os Cronistas Generales se destacam Cristóvão Colombo, Fernando Colombo, Pedro
Mártir de Anglería, Frei Bartolomeu de Las Casas e Francisco López de Gomara e
Bernal Díaz de Castillo; Cristóvão Colombo, Cristóbal Colón 1451-1506, é
considerado como o primeiro escritor sobre o assunto de Índias, dele são as
primeiras impressões do mundo que ele mesmo tinha descoberto. Seu Diario de
viaje (1969) é uma das peças mais importantes desse ciclo.
Em algumas das cartas de Relaciones (1969), escritas aos Reis Católicos, o
almirante aponta os primeiros conselhos acerca da navegação, população e
legislação de ultramar; Fernando Colombo, Hernando Colón 1488-1539, filho de
Cristóvão Colombo, escreve uma abundante obra de caráter cientifico náutico.
Destaca-se a História de la vida e dos fatos do almirante Don Cristóbal Colón,
cuja primeira edição se publica em Italiano, em 1571; O italiano Pedro Mártir de
Anglería (1459-1526), conselheiro na corte dos Reis Católicos e nunca esteve na
América.
Pedro Mártir de Anglería escreve em latim duas obras sobre as Índias: Opus
epistolarum, coleção de cartas narrativas escritas em estilo jornalístico, e Decadas
de orbe novo (1969), história externa e interna da conquista, que abrange desde o
descobrimento até o ano de 1525; Frei Bartolomeu de Las Casas (1474-1566) se
destaca na história como um ardente defensor da causa indígena, escreve a
Apologética História Sumaria (1969), inúmeros informes, discursos e documentos
destinados aos reis e aos reais conselheiros.
156
O livro Brevísima relación de la destrucción de las Índias critica a Espanha
e os procedimentos utilizados durante o período da conquista Historia de las
Índias. Esses escritos dão origem à Legenda negra; Francisco López Gomara
(1512-1572), capelão de Hernán Cortés, escreve uma obra fundamental Hispania
vitorix: historia general de las Índias (1552) publicada em Zaragoza, tem como
sequência a crônica de la Conquista de la Nueva España, na qual exalta a figura
do conquistador de México, Hernán Cortés, como único herói dessa fabulosa
empresa.
Como Cronista Particular de la Nueva España o conquistador do Império
Asteca, Hernán Cortés (1485-1547) escreve cinco Cartas de Relaciones dirigidas
ao Imperador Carlos V; Bernal Díaz de Castillo (1496-1584) é um dos soldados que
participa da maioria das jornadas da conquista do México no século XVI. Em sua
crônica de duzentos e quatorze capítulos, Historia verdadera de la conquista de la
Nueva España (1632) exalta a tropa anônima.
O manuscrito escrito em 1568 chega à Espanha em 1575 e se publica em
1632; Pedro de San Buenaventura (1565?), historiador e colaborador de Sahagún,
domina três línguas: náhuatl, latim e espanhol. Redige a primeira parte dos Anales
de Cuautitlán; Pedro Ponce de León conhecedor da cultura náhuatl, escreve a
segunda parte dos Anales de Cuautitlán, mas conhecido como Códice
Chimalpopoca; Bernardino de Sahagún e sua Historia de las Cosas de Nueva
España.
Os relatos que surgem em O Mundo Novo estão relacionados aos textos dos
Cronistas Gerais e aos Cronistas Particulares. Carlos Fuentes comenta que
Cristóbal Colón descreve a América, que para o navegador eram as Índias, como
uma extensão de seus desejos e de suas projeções imaginárias sobre o Paraíso
perdido e que o discurso do Novo Mundo, a nova Espanha recém-descoberta, se
conforma pelo diálogo discursivo da história, da literatura e do mito como um anseio
do Velho mundo revelado pelos relatos dos cronistas.
O Mundo Novo se desvenda pelo ponto de vista do discurso europeu, à
maneira dos relatos dos cronistas do século XVI. Esses textos são subvertidos e
recortados pelas personagens no romance imaginando as intenções de seus autores
e as possíveis e múltiplas verdades das diferentes vozes ocultas nesses textos. O
discurso literário em O Mundo Novo se constrói pelo relato hibrido, fruto do diálogo
157
entre os relatos hist�ricos e os referencias m�ticos dos povos pr�-hisp�nicos. Os
textos compilados pelos Cronistas de las Índias descrevem a atmosfera
apocal�ptica do universo simb�lico pr�-hisp�nico, por vozes europeias. No ensaio
Valente mundo novo, Carlos Fuentes escreve:
O historiador mexicano Edmundo O�Gorman sugere que Am�rica n�o foi descoberta: foi inventada. E foi inventada seguramente, porque foi necessitada. Em seu livro La invención de América, O�Gorman fala de um homem europeu que era prisioneiro de seu mundo. O c�rcere medieval estava fabricado com as pedras do egocentrismo e a escol�stica, duas vis�es hier�rquicas de um universo arqu�tipo, perfeito, imut�vel embora finito, porque era o lugar da queda. A natureza do Novo Mundo confirma a fome de espa�o do Velho Mundo. Perdidas as estruturas est�veis da ordem medieval, o homem europeu sente-se diminu�do e despojado da sua antiga posi��o central. A terra diminui no universo de Cop�rnico. As paix�es – a vontade principalmente – se agradam para compensar esta diminui��o. Ambas as como��es se resolvem no desejo de alargar os dom�nios da terra e do homem: se deseja o Novo Mundo, se inventa o Novo Mundo, se descobre o Novo Mundo; se nomeia. Desta forma, todos os dramas da Europa renascentista v�o serrepresentados na Am�rica europeia: o drama maquiav�lico do poder, o drama erasmiano do humanismo, o drama ut�pico de Tomas Moro. E tamb�m o drama da nova percep��o da natureza. Se o Renascimento concebeu que o mundo natural estava finalmente dominado e que o homem, na verdade, era a medida de todas as coisas, incluindo a natureza, o Novo Mundo se revelou de imediato como uma natureza desproporcionada, excessiva, hiperb�lica, incomensur�vel. Esta � uma percep��o constante da cultura latino-americana, que nasce do sentimento de assombro dos exploradores originais e continua nas explora��es duma natureza sem fim.
(1992, p.50)
No romance, O Mundo Novo � desvendado pelo prisma do homem europeu,
Polo Febo-Peregrino caracteriza o narrador que descreve O Mundo Novo ao
recortar, ordenar e interpretar uma realidade e uma natureza totalmente distinta �
sua. Essa segunda parte do romance, narrada pela vis�o europeia, deve ser
compreendida de acordo com a coer�ncia interna da obra que recopila e acumula
textos impregnados de todos os relatos dos cronistas do s�culo XVI, provenientes de
testemunhas oculares, de discursos constru�dos em nome das ideologias e por
protagonistas dos acontecimentos. S�o textos h�bridos que Terra Nostra acumula
na narrativa do Peregrino. A subvers�o dos relatos originais admite a vis�o de
Carlos Fuentes sobre a inexist�ncia da verdade �nica e absoluta.
158
Na trajet�ria do deus-her�i Quetzalc�atl–serpente emplumada e do seu duplo e
opositor espelho fumegante-Tezcatlipoca, a narrativa destaca a cosmovis�o do
homem europeu sobre a Am�rica pr�-colombiana. As personagens que fazem
refer�ncia � mitologia pr�-hisp�nica s�o conhecidas pelo n�ufrago, o Peregrino. Isto
� muito significativo e coerente na obra de Carlos Fuentes, pois o material por ele
recopilado, c�dices e relatos dos conquistadores, s�o parte da vis�o do outro, o
europeu. Nessa vis�o, o ind�gena n�o protagoniza um papel de destaque neste novo
mundo, aparece, antes, a vis�o de mundo que o homem europeu possui do �ndio; no
relato do n�ufrago, h� uma nova Carta de Rela��o, que, no entanto, aparece
inserida em um tempo m�tico.
Como dito, para manter o di�logo intertextual aberto e construtor de novas
imagens, o romance recopila cartas e documentos da Conquista da Am�rica e
homenageia alguns textos hist�ricos por meio da par�dia, como um canto paralelo
de recria��o de outra realidade paralela. No romance, os elementos da Hist�ria
entretecidos pela fic��o ao relato ap�crifo interagem com as figuras liter�rias num
mesmo espa�o para criar um duplo hist�rico imagin�rio. Pela recria��o da Hist�ria,
Carlos Fuentes utiliza a par�dia de forma ampla, retoma textos de autores
consagrados, as Cr�nicas de Hern�n Cort�s, revisa os fatos hist�ricos para depois
contextualiz�-los em O Mundo Novo.
A vis�o da hist�ria resultante contraria a concep��o linear do pensamento
eurocentrista, se vale da tradi��o pr�-hisp�nica, para que, no tempo circular a
multiciplicidade de tempos possibilite que variadas e distantes �pocas sejam
realidades no ato da narrativa. O discurso liter�rio percorre os mitos no tempo-
espa�o da cultura mesti�a constitu�da tanto por uma vertente europeia como pela
americana. Os tempos da Hist�ria ocidental entretecidos com os mitos precombinos
incorporam o passado, presente e futuro, que ao imbricar-se em circularidades
resgatam, por meio da imagina��o e da linguagem po�tica, a mem�ria encoberta
pelo discurso hist�rico linear.
Os dezenove epis�dios definem o itiner�rio do Peregrino desde uma praia da
Espanha at� o M�xico do Imp�rio Asteca. O relato que o Peregrino faz do seu
percurso pelas terras americanas reproduz livremente as cr�nicas de seu
Descobrimento e da Conquista. Os primeiros epis�dios descrevem sua travessia
oce�nica junto a Pedro, o velho defensor das utopias sociais, o desembarque na
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Praia das Pérolas e a morte de Pedro. Os encontros do Peregrino com os nativos da
região e sua viagem da costa do Golfo até a cidade de Tenochtitlán. O relato da
viagem ao Mundo Novo pelo Peregrino se inicia na corte do Senhor com um relato
semelhante ao dos descobridores, conquistadores e viajantes do século XVI que
navegaram para as terras da América recém-descoberta. O ritmo atemporal da
narrativa apresenta um estilo mítico, marcado por uma atmosfera de ritual; a ação do
herói se desenvolve num tempo-espaço mítico, circular.
Ao longo da sua viagem, o Peregrino deve superar uma série de provações
que interferem em seu destino. Durante a sua caminhada, o jovem segue uma trilha
sinalizada por um fio de aranha colocado pela Senhora das mariposas, que coincide
com a rota percorrida por Hernán Cortés durante a Conquista de México. Na sua
chegada à capital, é recebido como o tão esperado deus Quetzalcóatl, pelo grande
soberano asteca. Durante a sua estadia em Tenochtitlán o Peregrino mata o
imperador e foge em uma barca de serpentes, da mesma forma que no mito asteca.
Os últimos episódios narram a fuga do Peregrino e a sua reaparição na mesma
praia desde onde havia empreendido sua exploração. Na descrição da acidentada
viagem do Peregrino, o romance cria uma ampla rede de alusões em que se
sobrepõem episódios significativos do mito Quetzalcóatl, e o percurso de Hernán
Cortés na conquista de México. Para recriar o momento do desembarque espanhol
ás terras da América, o romance resgata alguns dos relatos míticos pré-colombianos
orientados pelo códice Chimalpopoca nos quais se destaca a figura dêitica de
Quetzalcóatl e seu duplo Tezcatlipoca, na eterna luta entre luz e sombras.
Como dito, o relato do Mundo Novo se inicia no Palácio onde a corte do Senhor
se reúne. Na presença do rei Felipe, o Peregrino-Pólo Febo incorpora a função de
narrador-testemunha como simulacro do mecanismo implícito nas cartas enviadas
desde a América aos monarcas, como ocorre nos relatos de Colombo, Hernán
Cortés ou Pero Vaz de Caminha, que conseguem imprimir um efeito de veracidade
aos fatos narrados. As primeiras representações de O Mundo Novo se
correspondem com as descrições de Colombo, Diario del primer viaje (1982, p. 15
e 138); Américo Vespúcio, El nuevo mundo (1951, p. 38); Pedro Mártir de Anglería,
Décadas del nuevo mundo (1984, p. 44) e de Hernán Perez de Oliva, Historia de
la invención de las Índias (1965, p.73). São obras que refletem sobre a utópica
160
Idade de Ouro, espelhada nas terras da nova Espanha. Essa experiência na terra
recém-descoberta recapitula as formas clássicas das narrativas dos descobridores.
Toda a narrativa do Peregrino remete aos textos que compõem a História dos
primeiros encontros entre os dois continentes, esse mecanismo de construção se
subverte na trajetória permeada pela ausência de linearidade e superlotada de
alusões a símbolos e signos mágicos da personagem, que angustiadamente tenta
compreendê-los para sobreviver e não para interagir. Esse conflito é uma metáfora
das narrativas históricas dos conquistadores, que com precisão e linearidade
sustentam a autoridade do discurso do narrador.
No episódio A lenda do ancião (p.393), o Peregrino narra sua experiência com
o ancião do templo, exposto a ordem do pensamento circular. Sua forma de narrar
os fatos segue a ordenação lineal, enquanto relativiza sua capacidade de lembrar ou
de imaginar a realidade.
Senhor: ao ouvir estas palavras no templo, e o tom de gravidade que o ancião empregava para dizê-las a mim, compreendi que ele me atribuía o segredo conhecimento de sua língua; e como se diz de certos magos que co vara encantada fazem brotar água das pedras, assim brotou de meus lábios a língua que tinha chegado a aprender mudamente, durante meus longos meses de sobrevivência com o povo da selva. Não sei, no entanto, se sou totalmente fiel às palavras do velho no templo: não sei quanto esqueço ou quanto imagino, quanto perco e quanto acrescento. Não sei se tudo quanto disse o ancião só pude compreender cabalmente muito tempo depois, ao correr de meus dias de aventura no Novo Mundo: talvez só hoje esteja entendendo e repetindo à minha maneira.
(TN, p.393, grifo nosso)
No episódio Dia da lagoa (p.457), o Peregrino é o narrador-protagonista da
realização da profecia asteca e dos fenômenos anunciados nos presságios; com a
sua chegada se realiza a profecia.
Primeiro se ergueu, pois a metade do céu uma espécie de espinho de fogo, uma chama de fogo, uma segunda aurora, que se apresenta como se estivesse gotejando, como se estivesse apunhalando o céu; de base grande, de vértice estreito, uma pirâmide de pura luz: bem no centro do céu chegava bem o centro atingia o céu com umas centelhas que cintilavam em tanta espessura que parecia polvilhar estrelas: uma coluna cravada no céu, tendo seu princípio no chão da terra, afinando-se até chegar ao céu em figura piramidal, e seu
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resplendor era tal que vencia a força do sol. Parei espantado, Senhor, mas meus jovens acompanhantes me empurraram suavemente, assegurando meus braços; e em seus olhos não havia nenhum espanto, como se já soubessem disto, ou já tivessem vivido antes. E então, sem vento algum, a lagoa que era a base desta magnífica cidade, se alterou e suas águas ferveram e espumaram e atingiram grandes alturas, e as ondas se partiram em pedaços e se desmanchavam; grande foi seu impulso e ela se levantou muito alto; e meus olhos espantados viram como essas gigantescas ondas se espedaçaram contra os fundamentos das casas nas margens do lago e muitas delas caíram e afundaram; e a água cobriu-as e as submergiu inteiramente. Então meus próprios acompanhantes pararam, esperando o fim desta terrível agitação, e eu teria querido saber o que se passava, o que faziam os moradores da cidade que eu desconhecia de perto mais que, de longe, via abatida por estes sinais funestos: choravam, gritavam, sentiam temor ou cólera? Que coisa estava nos esperando, afinal? Pois para esta cidade nos encaminhávamos, em meio a portentos que certamente, pelo fato de coincidir com nossa chegada, seriam atribuídos a nós. Algo na minha pele se imobilizou e meus companheiros o souberam; tornaram a me empurrar suavemente, enquanto meus olhos fitavam uma nova calamidade: um grande fogo caiu do sol e se espalhou em brasas sobre a cidade e correu como chuva de chispas; longa se estendeu sua cauda; até bem longe chegou sua cauda; e deste cometa nasceram mais três, todos correndo com força e violência para o oriente, desfechando centelhas, até que suas grandes caudas desapareceram na direção do nascer do sol. E, ao olhar dos céus para meus pés, vi que caminhávamos sobre uma grande calçada de terra estendida entre a planície e a cidade, e as águas se tinham acalmado, e adquiriram uma opaca verdocidade, mas em algumas partes sua turbulência era lodosa e os juncos da margem ainda tremiam. Das primeiras casas que vi do outro lado, muitas jaziam derrubadas pela grande onda, mas outras ardiam, e caiam raios sem a advertência previa do trovão, incendiavam os telhados de palha, e por fim meus companheiros e eu entramos na cidade, mas ninguém prestou atenção em nós, pois os habitantes das margens corriam apavorados, havia um grande espanto; as pessoas batiam nos lábios; corriam com cântaros para apagar os incêndios, e a água funcionava como fogo acrescentado ao fogo: somente excitava aumentando as chamas. (TN, p. 458-459).
No ensaio Tiempo mexicano (1986), Carlos Fuentes relata que quando de fato
os espanhóis entram no México em 1519, o povo asteca vive sua epifania; espera o
retorno de Quetzalcóatl. É o ano de Ce Ácatl, o ano da Cana, a era da deidade que
protagonizou a criação do mundo e a queda da cosmogonia indígena. Segundo a
lenda, com ele se origina a agricultura, é o doador do milho, do artesanato, da
arquitetura e do ensino da moral. Quetzalcóatl, a serpente emplumada, vivia isolado
em seu palácio da cidade imperial de Tula. A magnificência do deus provoca a inveja
e o ciúme dos outros.
162
Conta-se nos anais de Cuautitl�n que os conhecidos por Tezcatlipoca, Llhim�catl e Tolt�catl (todos eles m�gicos certificados) decidiram expulsar da cidade dos deuses o deus Quetzalc�atl, a serpente emplumada, o criador dos homens e o instrutor nas artes b�sicas; o cultivo do milho, o polimento do jade, a pintura do mosaico, o tecido e o tingimento do algod�o. Mas necessitavam um pretexto: a queda. Pois, como representante do mais alto valor moral do universo ind�gena, Quetzalc�atl era intoc�vel. (...) Prepararam um elixir de pulque para embriag�-lo e induzi-lo ao incesto (1986, p. 17).
Como n�o conseguem destruir a integridade moral de Quetzalc�atl, deus
escuro Tezcatlipoca, Espelho fumegante, envia-lhe de presente o espelho da
verdade com a inten��o de destrui-lo. Quando Quetzalc�atl v� a pr�pria imagem
refletida fica horrorizado, percebe-se com um rosto humano envelhecido, sente
horror, vergonha e medo da sua humanidade ef�mera e fraca, teme possuir o
mesmo destino dos homens e morrer, isso lhe pareceu uma ideia insuport�vel e se
desfez do espelho.
Nessa mesma noite, Quetzalc�atl “sucumbe �s tenta��es humanas, embriaga-
se e comete incesto com a sua irm�, a bela Xochip�tatl” (p.17). No dia seguinte,
envergonhado, abandona o reino de Tula e foge rumo ao sol, pelo mar dizendo que
“o sol o chamava”. Afasta-se do reino em uma barca�a de serpentes, promete
retornar no dia de Ce Ácatl para “ver se os humanos – as suas criaturas – haviam
cuidado ou descuidado da terra”, pois esta lhes foi dada aos homens
provisoriamente, para que a cuidassem. Carlos Fuentes acaba sua vers�o livre do
mito dizendo: “Quetzalc�atl se foi sem saber que havia sido o protagonista
simult�neo da cria��o e da queda. Semeou, na terra, o milho; mas nas almas dos
mexicanos semeou uma infinita suspeita circular” (p.17). No ensaio La nueva
novela hispanoamericana (1969), acrescenta:
Prometeu regressar este ano de 1519, Ce Ácatl. Sua apar�ncia, o rosto que o espantou, era j� um press�gio: loiro, barbado de olhos claros. Os portentos se abatiam sobre Tenochtitl�n: desde antes da chegada de Cort�s, a cidade j� estava sitiada pelo mau aug�rio. Os cometas percorreram durante longas horas os c�us. As �guas da lagoa de M�xico se agitaram en gigantescas ondas, derivando casas e torres. Uma estranha mulher errava pelas ruas � meia-noite, proclamando a morte das crian�as e a perda do mundo (...). Quetzalc�atl aparecia em muitos sonhos e lhes falava com os sonhadores dizendo: “o tempo de meu regresso se aproxima. SeMoctezuma me recebe em paz, haver� abund�ncia. Si me recebe em
163
guerra, todos morrer�o de fome”. Moctezuma reuniu os sonhadores em seu pal�cio. Fez que repetissem seus sonhos; em seguida, os mandou matar. Moctezuma acreditou que matando o sonhador morreria o sonho. (...) Cort�s chegou ao M�xico – branco, loiro, barbado – como um profeta armado. Os �ndios n�o podiam resistir ao canh�o, a p�lvora nem, no in�cio, a monstruosidade mitol�gica de um centauro com seis patas. (...) Moctezuma s� possu�a um recurso final: a feiti�aria. E pede a seus m�gicos oficiais que detenham Cort�s com um fio preto estendido no caminho do conquistador. Quando a tropa passa por alto, o fr�gil obst�culo da magia, Moctezuma ordena que seus bruxos sejam executados. (p.34, 35)
Carlos Fuentes cria uma vers�o ecl�tica do mito, j� que existem pelo menos
duas vers�es distintas do fim de Quetzalc�atl; uma nos Anales de Cuautitlán ou
Códice Chimalpopoca que descrevem Quetzalc�atl como protagonista da cria��o
do planeta V�nus nestes termos: “ap�s uma longa peregrina��o chega � praia onde,
num gesto de imola��o final, coloca fogo em si mesmo. Aves de belas plumagens
contemplam suas cinzas e seu cora��o que, sa�do das cinzas, ascende finalmente
ao c�u transformado no planeta V�nus”; outra, de Sahag�n, Historia General
quando o her�i foge em dire��o ao nascer sol, numa barca de serpentes,
prometendo retornar.
Essa vers�o livre do mito de Quetzalc�atl, que na segunda parte de Terra
Nostra est� baseada no final alternativo proposto por Sahag�n, cap�tulo 7, do livro
VIII e no cap�tulo 2, do livro XII da História General (1956), descreve a fuga de
Quetzalc�atl desta maneira: “E assim, em chegando � ribeira do mar, mandou fazer
uma balsa feita de serpentes e nela entrou e se sentou como que numa canoa, e
assim se foi pelo mar navegando”. (p.62).
No romance, o Peregrino-Polo Febo inicia e termina a sua viagem sob o signo
de V�nus e abandona O Mundo Novo. Nos estudos de Miguel-Leon Portilla (1992,
p.67) sobre as culturas pr�-hisp�nicas se fundamentam na interpreta��o dos
cronistas da col�nia e de seus relatos; assim como nas interpreta��es dos c�dices
ind�genas. Outros registros nos anais atestam que a figura m�tica de Quetzalc�atl
perde seus limites precisos nos estudos e relatos: de um lado conta-se de “um rei de
sobre-humana pureza que comete incesto, envergonhado, abandona o reino de Tula
e se joga na fogueira, seu cora��o em chamas se eleva ao c�u transformado em
V�nus”. Por outro, “um deus criador e educador, tra�do, envergonhado e injusti�ado,
que promete voltar no fim dos tempos”.
164
A figura pol�mica de Quetzalc�atl est� situada em meio �s disputas pela ordem
religiosa que se seguiram �s lutas pelo poderio militar entre astecas e toltecas. O
fato � que para os astecas, Quetzalc�atl partiu rumo ao Leste, prometeu voltar no
ano de Ce Ácatl, baseado no ciclo de 52 anos, �poca em que os espanh�is chegam
do Leste: vive-se o ano de 1519, ano Ce Ácatl.
A vers�o retirada do texto n�huatl e recopilada por Le�n Portilla tamb�m ilustra
o momento em que Moctezuma recebe o conquistador Hern�n Cort�s como o
esperado, e lhe concede seu trono. Para ilustrar o fato, a obra reproduz
intertextualmente as mesmas palavras: “Senhor nosso, os haveis fatigado, os haveis
cansado; j� a tua terra haveis chegado. Haveis arribado a tua cidade (M�xico). Aqui
haveis vindo a sentar-te em teu trono, a assentar teu solo. Oh, por tempo breve o
reservaram para ti, o conservaram para ti, os que j� se foram, teus substitutos”.
De acordo com a vers�o do mito que Carlos Fuentes oferecida em El espejo
enterrado, Quetzalc�atl teria anunciado que regressaria e que o faria num tempo
determinado: Ce �catl, o ano I da Cana de milho dentro do calend�rio asteca
(p.110). A chegada dos espanh�is sob o comando de Hern�n Cort�s na quinta-feira
Santa do ano de 1519 coincidiu com o momento profetizado, da� que Moctezuma
associara a vinda do conquistador com o regresso do deus.
O advento dos conquistadores foi precedido de press�gios sobrenaturais, signos no firmamento, cat�strofes naturais e toda sorte de fen�menos estranhos. Em todo o Imp�rio Asteca se sabia que a profecia estava a ponto de se realizar: Quetzalc�atl iria retornar e o tempo do quinto sol se aproximava a seu fim. Quando Moctezuma recebeu a not�cia de que fortale�as flutuantes se aproximavam pelo Leste e que delas desciam homens brancos barbados vestidos de ouro e prata sobre o lombo de bestas de quatro pernas, soube que o fim era inevit�vel (1992, p.11).
Dentre as fontes documentais do s�culo XVI que Carlos Fuentes considera
como mais completas e fidedignas e que contemplam abertamente a profecia do
regresso de Quetzalc�atl, encontra-se uma na Historia General de Sahag�n; de
acordo com os informantes ind�genas que colaboraram com esse autor, dez anos
antes da chegada dos espanh�is, aconteceram alguns press�gios funestos.
Sahag�n especifica oito deles:
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(...) uma imensa chama de fogo queimou durante um ano; o templo de Hitzilopochtli se incendiou, sem que ningu�m acendesse o fogo; o templo de Xiuhtecuhtli foi atingido por um raio, sem que ouvisse nenhum trov�o; um enorme cometa cruzou o firmamento dividindo-se em tr�s; ferveram as �guas do lago socavando os cimentos das moradias; pela noite uma mulher percorreu as ruas da cidade chorando pelo futuro de seus filhos; uns pescadores recolheram das �guas do lago um estranho p�ssaro com um espelho na cabe�a; viram-se homens deformados e seres monstruosos.
(Sahag�n, 1956, IV, p.23-4).
Carlos Fuentes reproduz esses pren�ncios literalmente em Todos los gatos
son pardos, Terra Nostra e El espejo enterrado e a influ�ncia desses press�gios
e profecias para conquistadores e conquistados. Tanto no Peru como no M�xico, o
relato m�tico descreve seres fenomenais, com caracter�sticas extraordin�rias:
indiv�duos com duas cabe�as, brancos como o giz, cabelo cacheado fino e de cor
amarelo, ou preto, barbados, corpos brilhantes que atemorizam pela luz que
emanam. Surpreendem seus alimentos, as espigas de trigo, sua escrita, suas armas
de fogo, o poder do canh�o, homens montados em seus cavalos, isso tudo os
aterroriza. “S�o como humanos com caracter�sticas de car�ter extraordin�rio” (1956,
p.25).
No seguinte texto de Miguel Le�n-Portilla, retirado do Códice Florentino:
Informantes de Sahagún, livro XII, cap�tulos III e IV, encontram-se algumas vers�es
das informa��es que Moctezuma recebeu de seus mensageiros:
Por todas as partes chegam, envolvidos em seus corpos, somente aparecem suas caras. S�o brancas, s�o como a cal. Tem o cabelo amarelo, embora o de alguns seja preto. Longa barba tamb�m amarela, o bigode tamb�m amarelo. S�o de cabelo crespo e fino, um pouco encarrujado. S�o muito fortes e robustos, nunca ficam quietos, andam afobados. Manchados como tigres, com muitas manchas de cores. Em quanto a seus alimentos, s�o como alimentos humanos: grandes, brancos, n�o pesados, qual se fossem de palha. Qual madeira de canha de milho, e como de medula de canha de milho � seu sabor. Um pouco doces, um pouco como de mel: se comem como mel, s�o comida doce. Suas barrigas, magras, alargadas como angarilla, acanaladas. Pois seus cachorros s�o enormes, de orelhas ondulantes, de grandes l�nguas penduradas, t�m olhos que derramam fogo: seus olhos s�o amarelos, de cor intensamente amarelo (...). Feito isto, logo d�o conta a Moctezuma. Disseram em que forma se havia ido admirar e o que estiveram vendo, e como � a comida daqueles. Quando ele ouviu o que lhe comunicaram os enviados, muito se espantou muito se admirou. (1968, p.79-80).
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Comenta que a “presen�a dos navegantes vindos da Europa Ocidental
surpreende os nativos que desembarcam com Hern�n Cort�s no atual porto de
Veracruz”. O imperador asteca, Moctezuma envia seus guerreiros contra os
espanh�is. Sem obter resultado, os m�gicos atribu�ram a impot�ncia � figura d�itica
dos conquistadores: loiros, barbados, vestindo armaduras e montados em cavalos.
Incapaz de deter o ex�rcito de Hern�n Cort�s, o Imp�rio Asteca se percebe
impossibilitado de deter o avan�o espanhol � capital Tenochtitl�n. Os xam�s
prometem ao povo aflito a derrota de Cort�s e de seus aliados ind�genas; “todos
cairiam nas m�os dos astecas e seriam derrotados em oito dias”. Para conseguir a
aprova��o das deidades, realizam cerim�nias e sacrif�cios humanos, mas esse fato
une as tribos subjugadas que se aliam a Hern�n Cort�s; esse fato marca o princ�pio
do fim para Moctezuma e de seu povo, quando finalmente em 1521, durante o cerco
� cidade, o Imp�rio Asteca presencia seu irremedi�vel fim. Em Valiente mundo
nuevo Carlos Fuentes escreve:
Esta n�o � apenas a terra do mito original violado, sen�o que, no Novo Mundo, o mito europeu � id�ntico, mas n�o se reconhece naterra conquistada. A for�a do mito � sua multiplica��o. O Renascimento europeu potencializa o mito cl�ssico de Oviedo e o transforma de evoca��o do passado, em sonho do devir humanista. Mas a Europa n�o reconhece sua pr�pria imagina��o no mito do �ndio; e quando descobre o Para�so na Am�rica, o elogio dura pouco, a destrui��o – �pica somada � evangeliza��o- segue o que para o homem renascentista foi aspira��o, para o homem americano se transforma, fatalmente, em nostalgia. (...) �den subvertido (...) cria��o hist�rica da mem�ria, mas tamb�m mito criado pela lembran�a. (1992, p.162).
Os �ltimos momentos do Velho Mundo, epis�dio Olhares (p.340), acabam com
o jovem n�ufrago, Polo Febo-Peregrino, na presen�a do rei dando in�cio � narrativa
da sua viagem de descoberta do Mundo novo: “O jovem fala. E o Senhor ouve o que
o jovem diz (...). E estas s�o as palavras do Peregrino” (p.354), as �ltimas palavras
do narrador iniciam a segunda parte do romance. O Mundo Novo come�a com a
fala do Peregrino, epis�dio Estrela da manhã (p.357): “Senhor: minha hist�ria
come�a ao aparecer sobre o mar a estrela matutina, chamada V�nus”. �
interessante perceber que tudo em Terra Nostra se inicia com o fim, “h� outras
vidas que s�o como c�rculos. Onde parecem terminar, na verdade se iniciam
novamente” (p.393).
167
Na segunda vers�o O Mundo Novo narra as aventuras do Peregrino-Polo Febo
em seu descobrimento, conquista e fuga do novo continente. Na descri��o da
viagem, o jovem inicia seu relato ao rei descrevendo sua passagem pelas terras
mesoamericanas. Dois motivos se entrecruzam em seu relato formando um duplo
eixo estruturador: a saga de Quetzalc�atl e o descobrimento e conquista da
Am�rica. Nos dois primeiros epis�dios, o Peregrino descreve a experi�ncia da
descoberta junto ao velho Pedro. A viagem se inicia com o signo de V�nus, uma das
manifesta��es de Quetzalc�atl.
Senhor: minha hist�ria come�a ao aparecer sobre o mar a estrela matutina, chamada V�nus, �ltima luz da noite e perpetua��o da noite na claridade da aurora – guia dos marinheiros. Cheguei uma manh� a uma paragem solit�ria da costa. Ali encontrei um velho marcado pela fadiga, por�m tenaz no esfor�o. Constru�a, � beira do mar, uma barca. Perguntei-lhe onde planejava ir; disse-me que as perguntas sobravam. Pedi-lhe a oportunidade de viajar em sua companhia; apontou com o punho fechado para um martelo, uns pregos e umas t�buas. Compreendi o pacto que me oferecia e trabalhei com ele quatorze dias e noites. Ao terminar, o silencioso velho me falou, olhando com orgulho para a arca de curtidas velas: - Finalmente! Embarcamos com V�nus, uma manh� de ver�o, tendo enchido vinte barricas com �gua dos arroios. (...) um suave z�firo nos conduz velozmente para longe da costa. E quando a perdemos de vista, (...) navegamos. (...) Disse ent�o que devia acreditar em outra terra al�m do oceano. E que se o sol afunda no poente cada noite n�o � devorado pela terra nem renasce milagrosamente, ao amanhecer, no levante, mas sim girou ao redor da terra, que deve ser redonda como o sol ou como a lua, pois seus olhos n�o viam planos no c�u, mas esferas, e n�o seria nossa terra uma monstruosa exce��o.
(TN, p.357)
A motiva��o do velho Pedro se remonta a suas lembran�as do Velho Mundo
quando, h� mais de vinte anos, sua casa foi queimada e suas terras confiscadas,
sua causa milenarista tra�da e seus filhos assassinados, tudo isso ocorrera por
ordem do Senhor.
Tr�s homens e uma mulher puseram meu projeto a perder; fui derrotado por seus desejos, pois eles s� desejavam aquilo que a nossa velha terra mentirosa promete. Atrapalharam-me, filho, por�m se salvaram, n�o creio que essa imperfeita barca�a tivesse nos levado muito longe. Abandonei o arado e fui �s praias; troquei a companhia dos lavradores pela dos marinheiros. Demorei muito a apreender o que era necess�rio. Esta nave � quase perfeita. Pobre velho, disse com melancolia crescente, se � certo o que disse, no
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final desta viagem regressaremos a nosso ponto de partida e todo terá sido em vão. (TN, p.357, 361).
Nos três primeiros episódios, predominam as referências intertextuais do
descobrimento e da conquista. A narração da travessia evoca a primeira viagem de
Colombo descrita em seus Diarios e em Historias del Almirante, de Hernando
Colombo. A mesma relação entre o velho Pedro e o Peregrino reproduz as tensões
do Almirante Colombo e os marinheiros daquela expedição rumo ao Novo mundo.
Pedro suspirou: - Acreditaria em você se acreditasses no mesmo que eu. Disse então que devia crer numa outra terra além do oceano. E que se o sol se esconde no poente a cada noite, não é devorado pela terra nem renasce milagrosamente, ao amanhecer, no levante, mas que tem girado ao redor da terra, a qual deve ser redonda como o sol e como a lua, pois seus velhos olhos não divisavam corpos planos no céu, senão esferas, e não seria nossa terra uma monstruosa exceção (...). Acredita então comigo, disse energicamente Pedro, que Deus não criou este mundo para que fosse habitado somente por homens como os que você e eu temos conhecido. Tem que haver uma terra melhor, uma terra livre e feliz, imagem verdadeira de Deus, pois tenho como reflexo infernal a que deixamos para trás.
(TN, p.361)
O episódio Mais além (p.372) situa o Peregrino no instante em que relata ao
Senhor suas primeiras imagens capturadas na chegada às praias do Mundo Novo,
após o naufrágio junto ao velho Pedro, suas primeiras impressões e sua visão
particular do Paraíso. Como protagonista da primeira viagem à América, incorpora
os recursos narrativos dos descobridores e conquistadores do século XVI.
Alguma vez viu a morte cara a cara, Senhor? Sabeis que geografia apresenta aos passivos olhos e às imóveis mãos do morto? Sem outras provas a não ser de minha própria morte, imagino o universo da extinção deve ser distinto para cada ser. (...). Conto-vos minhas primeiras impressões ao morrer (...) com os olhos da morte vi que me aproximava de uma praia e que me acompanhavam nácares flutuantes e um suave orvalho que os banhava e banhava a mim. (...). Chegava à margem de Outro Mundo (...) acreditei que regressava à vida: quis gritar uma só palavra: - Terra! (...). Deixei de ver a luz para ver que coisas ela revelava. Senhor: a praia do mais além, a praia que pela vez primeira vez tocara meus pés desnudos, era a mais formosa margem do mundo; a praia do sonho (...) esta deveria ser a costa do Paraíso, que Deus reserva aos bem-aventurados. Praia branca de areias brilhantes (...). É o céu mais limpo, sem nuvens, pura luz ardente nascida de si mesma (...) afundei minhas palmas molhadas nas areias do Éden. (...) ao abrir
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meus novos olhos de areia na hora da morte, vi unidos para sempre (...) brancas praias, escuras selvas. E o c�u da morte cobriu-se de asas velozes: uma multid�o de aves multicolores passou voando e chilreando – e eram tantas que o sol se escureceu (...). Aspirei odores novos, a nada parecidos. Acreditei nas promessas dos deuses, pois eram realidade aqui. A imensa, ondulante, branca, perfumada, luminosa praia do Para�so era um vasto cofre de areias semeadas com a maravilhosa pedreria das p�rolas (...). – Velho –murmurei-, fui o primeiro a pisar no Mundo Novo como voc� queria.
(TN, p.372, 375, grifo nosso).
O epis�dio Retorno à vida (p.375) reproduz alguns trechos das narrativas dos
conquistadores. Inicia seu relato na terra sonhada e t�o desejada, sua experi�ncia
junto ao velho Pedro na Costa das Pérolas, descreve o lugar como “uma perdida
ribeira da Cria��o”. A dualidade do seu ponto de vista que expressa por um lado o
estranhamento perante as maravilhas e, por outro, o desencanto pela realidade,
“havia vida e morte, sangue e dor, animais venenosos e mosquitos” (p. 378). O
fragmento a seguir reproduz alguns dos momentos do naufr�gio de Pedro Serrano
relatados nos Comentarios reales, 1990, p.18,20, cap�tulo oito do livro primeiro, do
Inca Garcilaso de La Vega.
Dormi longo tempo no leito de p�rolas, disse a mim mesmo que o tempo era im�vel: a mesma luz, o mesmo ondear morno, as eternas tartarugas olhando-me do limite entre a praia e o bosque. Tudo era igual (...). Se este era o Para�so, nele n�o cabiam os contrastes e as medidas da vida, noite ou dia, frio ou calor. No entanto eu tinha sede e fome. (...) uma sutil nuvem de moscas pareceu despertar de seu letargo, nascer das �guas ou cair do ar sobre minha cabe�a e minhas m�os procurando os leves ferimentos que a tormenta e minha salva��o, desesperadamente agarrado � roda do leme, tinham deixado entre minhas unhas e na superf�cie de meus bra�os e profundamente em meus joelhos. Rapidamente se fartaram do meu sangue enquanto eu combatia e os mosquitos estouravam de saciedade; e ao esmag�-los contra meu corpo notei que eram amarelos como gauda. Corri para longe da tempestade de mosquitos, banhei-me rapidamente no mar (...). Servi-me ent�o de um grande banquete de ovos de tartaruga (...). Satisfeito, me atirei de costas sobre a areia de p�rolas e pus em ordem as minhas impress�es. A sede e a fome me tinham cegado; somente agora, satisfeito e feliz, disse para comigo mesmo que tinha sido sede e fome reais, de corpo vivo (...) n�o era poss�vel que algum ser vivo nascesse no territ�rio da morte (...) fosse este Para�so ou Inferno; semelhante desprop�sito era igualmente alheio � ci�ncia e � lenda. –H� vida, h� vida – repeti para mim em voz baixa -, h� vida e h� morte por aqui; e dizer isto era mudar outra vez meu caminho, perder o
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norteamento, cair em nova voragem. H� sangue derramado, logo h� vida. Ha vida, logo eu devo sobreviver, logo necessito de companhia (...). Ent�o corri, insens�vel �s possibilidades amea�as, ao perigo estranho, para esse sinal de vida humana, temendo um enganoso inc�ndio na mata, um fogo f�tuo no cume do mar, tudo menos o que mais desejava: a companhia fraternal, Pedro, Pedro. As conchas feriram as plantas de meus p�s; corri para a borda do mar, receando j� que o cheiro de meu sangue atra�sse novamente os tem�veis mosquitos. (…) – Pedro! – gritei de joelhos – Pedro! Pedro, sou eu! Pedro, sou eu! O velho olhou sobre seus ombros; olhou-me sem surpresa e me disse: - Ocupe-se do fogo (...). Animar o fogo custou-me muitas horas. N�o o deixe morre, � o primeiro fogo do Novo Mundo. (TN, p.375-378).
A vers�o dos Comentarios reales, do Inca Garcilaso de La Veja, narram o
naufr�gio de Pedro Serrano s�o transcritos em l�ngua espanhola para denotar a
�nfase da ocasi�o.
(…) hasta que vio salir tortugas; vi�ndolas lejos de la mar, arremeti� con una de ellas y la volvi� de espaldas; lo mismo hizo de todas las que pudo, que para volverse a enderezar son torpes, y sacando un cuchillo que de ordinario sol�a traer en la cinta, que fue el medio para escapar de la muerte, degoll� y bebi� la sangre en lugar de agua; lo mismo hizo de las dem�s; la carne puso al sol para comerla hecha tasajos y para desembarazar las conchas, para coger agua en ellas de la llovediza, porque toda aquella regi�n, como es notorio, es muy lluviosa. De esta manera se sustent� los primeros d�as con matar todas las tortugas que pod�a, y algunas hab�a tan grandes y mayores que las mayores adargas, y otras como rodelas y como broqueles, de manera que las hab�a de todos tama�os. Con las muy grandes no se pod�a valer para volverlas de espaldas porque le venc�an de fuerzas, y aunque sub�a sobre ellas para cansarlas y sujetarlas, no le aprovechaba nada, porque con �l a cuestas se iban a la mar, de manera que la experiencia le dec�a a cu�les tortugas hab�a de acometer y a cu�les se hab�a de rendir. En las conchas recogi� mucha agua, porque algunas hab�a que cab�an a dos arrobas y de all� abajo.
(Comentarios, cap�tulo VIII, libro primero. p.19).
Na medida em que o Peregrino se apresenta como protagonista, percebem-se
sequ�ncias narrativas intertextuais que dialogam com os relatos dos descobridores e
conquistadores do s�culo XVI. O seguinte recorte caracteriza essa apropria��o
quando ele descreve um fruto desconhecido; na narrativa usam-se as palavras
maravilha e monstruoso, termos de uso corrente utilizados nos registro da �poca
para qualificar, descrever ou explicar.
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Eu peguei uma das pesadas frutas entre minhas m�os: era tal uma bola verde, de casca dura, t�o dura que com as m�os desprotegidas era imposs�vel abri-las. Cravei a tesoura nas entranhas do monstruoso fruto, as revolvi dentro de seu corpo at� quebrar a carapa�a. E de todas as maravilhas at� ent�o vistas nesta minha peregrina��o nenhuma ser� maior que a de ter encontrado �gua no cora��o da fruta, uma �gua transparente, embriagante, saborosa como vinho celeste de t�o pura �gua; e as carnes brancas que continham tamb�m eram saborosas. Passei a fruta a Pedro para que bebesse e comesse, enquanto exclamava com j�bilo que j� n�o passar�amos sede. (TN, p.379, 380)
No intertexto, a figura de Pedro representa os ideais do descobridor, que como
alegoria do navegador Colombo ironiza a figura dos conquistadores europeus no seu
desejo insaci�vel de possuir uma terra que supunham sem dono. Um pedaço de
terra (p.378) registra urg�ncia do velho Pedro por apossar-se da terra, construir sua
casa e delimitar sua propriedade. “Eu j� possuo o que queria. Meu peda�o de terra”
(p.381), que contrasta com a desambi��o do jovem Peregrino que afirma “detestei
as p�rolas dessa fabulosa praia, pois as teria trocado pela tua vida”.
Inc�ndio e morte. Destas coisas o velho fugia. Dor e cativeiro. Tamb�m eu? Agora que tudo se passou e eu pude fechar o c�rculo perfeito de minha peregrina��o, eu me lembro de voc�, Pedro, e se mais algu�m al�m de mim o conheceu, pe�o que o lembre comigo, tal como voc� foi, var�o verdadeiro, trabalhador de poucas palavras. S� desejava, ao encontr�-lo de volta, que me contasse a aventura de nossa salva��o (...) sabe que terra � esta? E Pedro me respondeu: -O Novo Mundo t�o desejado. (...). Com varas, barro, conchas e galhos e com pedras usadas como martelo e espinhos como pregos (...) erguia uma casa enquanto, eu subia nas palmeiras para arrancar os saborosos frutos que matavam nossa sede (...). O tim�o de nossa salva��o transformou-se em porta, passadas seis noites (...) Pedro tinha terminado sua casa, s� ent�o falou, afastando-me dela at� chegar �s margens do mar. Dali vimos o novo espa�o roubado da sela, devastado ao limite da areia, limitando, cercado e coberto –Agora nenhum Senhor poder� arrebatar-me o fruto de meu trabalho, incendiar meu lar, violar minhas mulheres ou matar meus filhos. Agora sou livre. Ganhei. O velho tossiu e lan�ou uma cuspidela ao mar; era como se cuspisse na cara do passado. (...) Eu j� n�o me movo mais. Eu j� tenho o que queria. Meu peda�o de terra.
(TN, p.380- 381, grifo nosso).
Os passos iniciais dos dois viajantes pela praia da terra americana desses
epis�dios repetem alguns dos momentos da hist�ria do naufr�gio de Pedro Serrano
e de �lvares Nunes Cabeza de Vaca. O primeiro naufraga nas costas do caribe em
1526, e o segundo em 1527. Este �ltimo convive com a tribo Ananarivo na costa do
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M�xico por oito anos, na sua segunda expedi��o percorre o sul da Am�rica e realiza
a primeira descri��o das Cataratas do Igua�u, em 1542. Esses relatos est�o
inclu�dos em Comentarios reales do Inca Garcilaso de la Vega, cap�tulo 8, livro I
(1990, p.18-20).
Carlos Fuentes comenta que o descobrimento teria levado os pensadores do
Renascimento a questionar os valores fundamentais da civiliza��o europeia e a
projetar sobre o continente americano uma ideia id�lica de poder realizar os sonhos
de uma sociedade perfeita (p.25-27). O autor lembra que pouco depois de dar-se a
conhecer os escritos de Vesp�cio, Tomas Moro publica Utopia (1516) e que, nas
d�cadas seguintes, a ordem dos jesu�tas e dos franciscanos tentaram por em pr�tica
na Am�rica as ideias de Tomas Moro (p.134).
Moro escreve sua Utopia como uma resposta � Inglaterra de seu tempo e ao tema econ�mico que apaixona seus contempor�neos: o fim da comunidade agr�ria antiga e sua substitui��o pelo sistema capitalista da enclosure, que no s�culo XVI acabou com as terras comunais, cercando-as e entregando-as para explora��o privada. Ao invocar em Utopia uma sociedade baseada no direito natural, Moro imaginou o encontro do Velho Mundo com o Novo Mundo n�o s� como o encontro do cristianismo com o paganismo, sen�o como a cria��o duma nova sociedade que acabaria por compartir tanto as virtudes como os defeitos das sociedades crist�s e abor�genes. A utopia de Moro n�o � a sociedade perfeita. Abundam nela tra�os de crueldade e exig�ncias autorit�rias. Em c�mbio, a cobi�a h� sido extirpada e a comunidade restaurada. Mas os tra�os negativos amea�am constantemente os positivos: Utopia n�o � um livro ing�nuo, e gra�as � sua din�mica de claros-escuros e op��es constantes, � uma obra que deixa abertas duas quest�es intermin�veis, que continuam sendo parte leg�tima da nossa heran�a, e da nossa preocupa��o. A primeira � quest�o dos valores da comunidade e sua situa��o respeito aos valores individuais e os valores do Estado, porque considera que estes �ltimos s�o apenas uma parte da comunidade (...). A segunda � a quest�o, derivada das duas anteriores, da organiza��o pol�tica. Se a comunidade � superior ao indiv�duo e ao Estado, diz Moro, a organiza��o pol�tica deve estar constantemente aberta e disposta a renovar-se, para refletir e servir melhor � comunidade. (1992, p.62).
Em Terra Nostra, o componente m�tico e o hist�rico s�o submetidos a um
processo de subvers�o gerando um espa�o particular onde O Mundo Novo
dramatiza a vis�o do “traum�tico encontro entre as duas civiliza��es”. No epis�dio A
troca (p.383), a personagem relata seu primeiro encontro com os nativos do Novo
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Mundo, nele, Pedro morre e o Peregrino sobrevive devido a sua sagacidade e
ast�cia racional de conquistador.
Desde o primeiro contato com os nativos, a obra de Carlos Fuentes explicita a
constru��o de uma amplia rede de refer�ncias intertextuais que associam a figura do
Peregrino com a de Hern�n Cort�s. No segmento narrativo percebe-se a capacidade
do conquistador de participar das regras de interc�mbio e de negocia��o que
imperam na vida social dos nativos, que s�o descritos como seres armados com
lan�as, emplumados, de corpos pintados, com a pele do rosto da cor da madeira, e
cabelos longos, grossos, lisos, fortes e pretos, “como as cerdas da cauda do cavalo”.
Nessa passagem, o estilo e a forma narrativa lembram os recursos utilizados no
Códice Florentino:
Girei espantado sobre meus calcanhares; ao crepitar do fogo na praia unia-se o som de arbustos pisoteados e galhos afastados, �s nossas costas na selva. Pude ofegar estupidamente: - Pedro, voc� trouxe armas? O velho negou sorrindo: - N�o far�o falta nesta terra feliz. Feliz o malfadada, era somente nossa? Ou era de seres que agora faziam surgir as cabe�as de dentro dos troncos flutuantes? N�o digo homens, Senhor, porque a primeira coisa que vi foram umas crinas pretas e longas, que confundi com caudas de cavalos e por um momento tive a vis�o estranha de �rvores flutuantes tripuladas por escuros centauros. S� ao se aproximar mais essa leva de troncos vi os rostos, da cor das pr�prias madeiras e do interior dos troncos vi cabe�as levantarem, escudos de outras florestas, por�m desta vez, de ferozes lan�as. Pedro levantou-se tranquilamente, caminhou at� a porta de sua casa e se apoiou contra a roda do tim�o. Eu me voltei de novo para olhar em dire��o do bosque (...). Ent�o saltaram dos troncos, trinta ou mais homens que se confundiam com o verdor recuperado das �guas; seus corpos da cor da madeira; vermelhas suas lan�as; verdes seus escudos (.... Olharam para n�s. Olhamos para eles.) nossos espantos eram id�nticos, nossa imobilidade tamb�m (…). E dessa troca brotou mina veloz, silenciosa pergunta: - Eles est�o nos descobrindo… ou n�s os descobrimos? (...) Olhei para Pedro como se confiasse tanto em sua sabedoria que o acreditasse capaz de entender essa l�ngua e os signos estranhos. (...). E visto que n�o pudemos responder �s suas raz�es, a c�lera do homem das plumas aumentou, e caminhou at� Pedro e voltou a falar, indicando a casa e a cerca de ramas que limitava o espa�o reclamado pelo velho a este Novo Mundo. (...). O bando de nativos destru�a a cerca, arrancava os tetos, dava coices em tudo o que o velho tinha constru�do. (...) nasceram as palavras que gritei ent�o para Pedro, sem pensar, como se outro falasse por mim e da minha voz se servisse. – Velho, ofere�a sua casa a eles! Ofere�a algo imediatamente! (…). Arranquei as tesouras enfiadas em minhas cal�as e levantei-as: brilharam obscuramente debaixo do sol e os nativos pararam repentinamente. O terror me paralisou com o
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bra�o no alto e as tesouras no punho e todas as lan�as voaram com um s� movimento para um alvo �nico: o cora��o de Pedro.
(TN, p. 383, 387).
O comportamento do Peregrino nesses epis�dios, assim como a sua posterior
integra��o na comunidade ind�gena e ulterior transforma��o em l�der messi�nico
indica o intertexto com a obra de Am�rico Vesp�cio, Mundus Novus (1503). Os
grupos ind�genas que esse autor descreve em sua obra “viviam em harmonia com a
natureza, sem o conceito de propriedade, nem de governo ou de autoridade”. As
narrativas antropol�gicas s�o codificadas e reunidas na forma de di�rio de campo
dos cronistas, logo, pela voz do Peregrino, as observa��es, contatos, viv�ncias, as
anota��es s�o reconstru�das, remodeladas e recontadas nos mesmos mecanismos
de veracidade das cartas enviadas aos monarcas durante o per�odo do
Descobrimento e da Conquista.
O epis�dio A troca (p.383), apresenta o primeiro encontro com os nativos do
continente, no qual Pedro morre e o Peregrino sobrevive devido a sua participa��o
nas regras de interc�mbio e negocia��o que governam a vida ind�gena. Na
sequ�ncia enfrenta uma nova prova quando enfrenta um grupo de ind�genas nas
praias do Novo Mundo, quando consegue salvar sua vida mediante uma oferenda
pessoal, entrega sua tesoura e em troca, recebe ouro.
Os nativos me rodearam em sil�ncio. Mantinham os escudos contra o peito. O chefe das plumas pretas avan�ou para mim. Nada havia em seu olhar pardo sen�o uma espera que podia se converter em sorriso ou careta. Estendi a m�o. Abri o punho. Ofereci as tesouras. O chefe sorriu. Pegou-as, as fez brilhar contra o sol. N�o sabia como us�-las. As manipulou de maneira desajeitada. Teve a carne de um dedo cortada. Atirou as tesouras na areia. Olhou com irrita��o seu sangue. Olhou com espanto para mim. Pegou as tesouras com grande cuidado, como que temendo que tivessem vida pr�pria. Gritou umas palavras. (...). O chefe apertou as tesouras com uma das m�os. Com a outra me passou o pequeno volume. (...). Minhas m�os sustentavam um brilhante tesouro de pepitas douradas. Tinha sido correspondido o presente de minhas tesouras. Olhei para o cad�ver de Pedro, com minhas m�os cheias de ouro. (...). Os homens da selva apagaram com pisadelas e coroadas os fogos acesos. (...) havia tristeza em meus olhos. (TN, p.386).
Em O povo da selva (p.386), o Peregrino batiza as terras com o nome de Terra
de San Pedro, aludindo � ideia de posse praticada pelos conquistadores. As
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primeiras representa��es desse Mundo Novo se correspondem com as descri��es
de Colombo, Am�rico Vesp�cio, Pedro M�rtir de Angleria e Perez de Oliva sobre a
ut�pica “Idade de Ouro” do jovem continente.
Fui embarcado em um dos troncos, que eram verdadeiras jangadas feitas cada uma do p� de uma �rvore, como um barco comprido e sem emendas. E ao me afastar novamente da costa, batizei-a em segredo com o nome de Terra de San Pedro, pois o velho morreu como um m�rtir e agora as �ltimas chamas se alimentavam de seu cad�ver. (…). Navegamos rio acima (…). E eu, Senhor, um cativo com uma bolsa de ouro nas m�os. Desembarcamos junto a uma clara paragem habitada. As embarca��es foram encalhadas no barro e uma multid�o de velhos, mulheres e crian�as nos rodeou. (…). Olhei ao meu redor, e todas as casas desta aldeia eram esteiras sobre quatro arcos, todas iguais entre si, sem signos vis�veis de superior riqueza ou superior poder (...). Comecei a me dar conta da minha situa��o quando o chefe das plumas pretas mostrou a todos as tesouras e insistiu para que eu mostrasse o pano cheio de pepitas de ouro. Ent�o todos aprovaram com prazer e as mulheres mais pr�ximas de mim me sorriram e os velhos tocaram meus ombros com suas m�os tr�mulas. Foi-me oferecida uma estranha cama feita de redes de algod�o e pendurada entre duas palmeiras e de comer uma amarga raiz. Prosseguiu a rotina desse territ�rio e eu decidi que minha salva��o seria unir-me a ela com discri��o; e assim me ocupei de fazer durante v�rios meses o que todos faziam: ati�ar o fogo, cavar a terra (...) uma terr�vel d�vida turbava minha tranquilidade. Exigiram-me, en certo momento, algo mais? Que poderia ent�o lhes dar? (TN, p.386, 388, grifo nosso).
Baseando-se nas cartas enviadas por Colombo � corte, o romance acompanha
a trajet�ria do n�ufrago parafraseando obras como as cr�nicas retiradas das Cartas
de relação de Hern�n Cort�s; os escritos de Bernal D�az, Historia verdadera de la
conquista de la Nueva España; e na obra Hispania Victrix, primera y segunda
parte de la Historia General de las Indias con todo el descubrimiento y cosas
notables que han acaesido dende quese ganaron hasta el año de 1551, do
historiador espanhol Francisco L�pez de Gomara. Este �ltimo autor n�o conheceu a
Am�rica, mas por ser amigo de Hern�n Cort�s, baseou-se nos relatos do
conquistador para publicar a obra em 1552. Al�m disso, Gomara conhecia todas as
not�cias chegadas � Europa e transcrevia seus dados antropol�gicos ajudando-se na
pesquisa com a escassa cartografia dos territ�rios conquistados.
Santiago Juan Navarro comenta que esses escritos foram considerados como
uma homenagem a Cort�s e uma dura cr�tica � coroa espanhola e a obra de foi
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censurada, confiscada e proibida pelos reis Carlos V e seu filho Felipe II, essa obra
esperou mais de cem anos para ser reimpressa. De entre as outras obras
consultadas pelo romance destacam-se a Historia de las Índias, de Bartolomeu de
las Casas e a Historia de las Cosas de Nueva España de Bernardino de Sahagún.
Eram conhecidas como as terras da Nova Espanha, até que, em 1507, o cartógrafo Martin Waldseemüller utiliza o nome América para designar o Novo Mundo em homenagem ao navegador italiano Américo Vespúcio, considerado como o primeiro europeu a compreender que as terras do Mundus Novus conformavam um novo continente: textos do descobrimento e da conquista, de relatos fatos, muitos compilados pelos cronistas de Índias. Oficialmente, o cargo de cronista de Índias teve início em 1526 com o envio da documentação reunida por Pedro Mártir de Anglería que, além de informar sobre a geografia e o modo de vida dos indígenas americanos, tinha um caráter justificativo em relação às práticas colonialistas. Neste caso, vale destacar o aporte fundamental da Brevísima relación de la destrucción de las Índias escrita a mediados do século do século XVI, por Bartolomeu de las Casas, cuja divulgação da origem a Junta de Valladolid, (1550-1551) em defesa dos indígenas. (2001, p.161).
Naquela época, a principal fonte de pesquisa eram os documentos que
continham os relatos dos soldados que participaram dos conflitos bélicos e os
manuscritos de Toríbio de Benavente e de Pedro de Alvarado. Esses são os nomes
das personagens Frei Toríbio, o astrólogo e camponês Pedro del Agua, o velho
marinheiro e companheiro do Peregrino na viagem ao Mundo novo. As imagens
narradas durante a viagem do Peregrino às terras da Nova Espanha reproduzem o
caminho percorrido por Hernán Cortés, o jovem chega à costa, passa por Cempoala,
por Cholula e pelos vulcões que rodeiam o vale de México, onde descobre
Tenochtitlán. Na descrição do mercado de Tlatelolco se intercalam dentro do texto
de Bernal Díaz sinais que precederam à conquista, segundo os relatos conservados
no Códice Florentino e tal como registra Sahagún (Miguel León-Portilla, p.123,
124).
Era um vale, Senhor, afundado no fosso de um vasto círculo de montanhas nuas, túmulos de pedra e mansos vulcões extintos. E no meio desse vale brilhava uma lagoa de prata. E no centro da lagoa brilhava, mais que ela, uma cidade branquejante, de altas torres e douradas fumaças, atravessada por grandes canais, cidade de ilhotas com edifícios de pedra e madeira submersos ao pé das águas. Detive-me admirado, perguntando-me se aquilo que via
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pertencia aos sonhos; e ao se dispararem os vapores da manh�, atr�s de seus v�us surgiram dois vulc�es que pareciam os guardas desta cidade e ambos coroados de neve. Um parecia um homem gigantesco, adormecido com a branca cabe�a inclinada sobre os pretos joelhos de pedra e o outro tinha a figura de uma mulher adormecida, deitada, coberta por uma branca mortalha, e nela alucinados meus olhos viram (...) e s� soube que ao adentrarmos na grande cidade da lagoa nos perd�amos nos labirintos de um mercado t�o grande como a pr�pria cidade, pois por onde meus p�s passavam e por onde meus olhos olhavam, em confus�o e desordem, s� balc�es de mercadorias nos rodeavam (...) ali vendiam ouro e prata e ricas pedras e plumas e mantas e objetos lavrados, e perguntavam quem nessa feira mostrava couros de tigres (...) e de veados e de outros animais. Gatos monteses, e para o ch�o olhavam os escravos e as escravas para serem vendidos (...) e sob os portais eram rapidamente cobertas as lou�as de toda esp�cie, desde vasilhas grandes e jarrinhas pequenas pintados primorosamente de brilhantes cores, miniaturas de patos e veados e flores: as barricas cheias de mel e outras guloseimas; e as madeiras, mesas, ber�os e vigas e cepos e bancos e bancas; e as madeiras, mesas, ber�os e os herbol�rios e vendedores de sal (...) e caminhando depressa por esta feira dissolvida pela chuva, pelo raio e pelo fogo imprevistos, distinguimos de longe, e somente ela imobilizou nosso andar apressado, uma mulher surgida da n�voa (...) e as suas palavras um �nico e comprido lamento: Ai meus Filhos! Ai meus filhos! N�s nos perdemos! Temos de ir para longe! Oh filhos meus! Onde vos poderei levar e esconder? (TN, p.457-460).
Os seguintes relatos retirados do texto La historia verdadera de la conquista
de la Nueva España, de Bernal D�az del Castillo e da Segunda carta-relaci�n de
Hern�n Cort�s al Emperador Carlos V – Segura de la Frontera 30 de octubre de
1520. Destacam a primeira vis�o que Hern�n Cort�s teve de Tenochtitl�n e do
mercado de Tlatelolco, transcrito em l�ngua espanhola, caracterizam, pela narrativa
do Peregrino, a intertextualidade expl�cita.
Enviada a su sacra majestad del emperador nuestro se�or, por este capit�n general de la nueva Espa�a, llamado don Cort�s, en la cual hace relaci�n de las tierras y provincias (...) En especial hace relaci�n de una grand�sima provincia muy rica, llamada Tenustitl�n, que est�, por maravilloso arte, edificada sobre una grande laguna; de la cual ciudad y provincia es un rey un grand�simo se�or llamado Moctezuma (...) Muy alto y poderoso pr�ncipe, invict�simo emperador y se�or nuestro he deseado que vuestra alteza supiese las cosas de esta tierra, que son tantas y tales que, como ya en otra ocasi�n escrib�, se puede intitular de se�or y emperador vuestra sacra majestad (...) a ocho leguas de esta ciudad est�n dos sierras muy altas y muy maravillosas, y estando arriba comenz� a salir humo, y dicen que sal�a con tanto �mpetu y ruido que parec�a que toda la sierra se ca�a abajo (...) Pasada esta puente, nos sali� a recibir aquel
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se�or Moctezuma con hasta doscientos se�ores, todos descalzos y vestidos de otra librea o manera de ropa asimismo bien rica a su uso, y m�s que la de los otros, y ven�an en dos procesiones muy arrimados a las paredes de la calle, que es muy ancha y muy hermosa y derecha, que de un cabo se parece el otro y tiene dos tercios de legua, y de la una parte y de la otra muy buenas y grandes casas, as� de aposentamientos como de mezquitas, y el dicho Moctezuma ven�a por medio de la calle con dos se�ores, el uno a la mano derecha y el otro a la izquierda, de los cuales el uno era aquel se�or grande que dije que hab�a salido a hablar en las andas y el otro era su hermano del dicho Moctezuma, se�or de aquella ciudad de Ixtapalapa de donde yo aquel d�a hab�a partido,(...) Y all� me prepuso de esta manera: “Muchos d�as ha que por vuestras escrituras tenemos de nuestros antepasados noticia que yo ni todos los que habitamos no somos naturales de ella sino extranjeros, y venidos a ella de partes muy extra�as (...) y as� volvi�; y siempre hemos sabido que los que de �l descienden hab�an de venir a sojuzgar esta tierra y a nosotros sus vasallos; y vos dec�s que ven�s do sale el sol (...) Y pues est�is en vuestra naturaleza y en vuestra casa, holgad y descansad del trabajo del camino y guerras ” (...)Porque para dar cuenta, muy poderoso se�or, a vuestra real excelencia, de la grandeza, extra�as y maravillosas cosas de esta gran ciudad del se�or�o y servicio de este Moctezuma, se�or de ella, y de los ritos y costumbres que esta gente tiene, y de la orden que en la gobernaci�n, as� de esta ciudad como de las otras que eran de este se�or, hay, ser�a menester mucho tiempo y ser muchos relatores y muy expertos; no podr� yo decir de cien partes una, de las que de ellas se podr�an decir, mas como pudiere dir� algunas cosas de las que vi, que aunque mal dichas, bien s� que ser�n de tanta admiraci�n que no se podr�n creer, porque los que ac� con nuestros propios ojos las vemos, no las podemos con el entendimiento comprender. Pero puede vuestra majestad ser cierto que si alguna falta en mi relaci�n hubiere, que ser� antes por corto que por largo, as� en esto como en todo lo dem�s de que diere cuenta a vuestra alteza, porque me parec�a justo a mi pr�ncipe y se�or, decir muy claramente la verdad sin interponer cosas que la disminuyan y acrecienten. (...). Esta gran ciudad est� fundada en esta laguna salada, y desde la tierra firme hasta el cuerpo de la dicha ciudad, por cualquiera parte que quisieren entrar a ella, hay dos leguas. Tiene cuatro entradas, todas de calzada hecha a mano, tan ancha como dos lanzas jinetas. Es tan grande la ciudad como Sevilla y C�rdoba. Son las calles de ella, digo las principales, muy anchas y muy derechas, y algunas de �stas y todas las dem�s son la mitad de tierra y por la otra mitad es agua, por la cual andan en sus canoas, y todas las calles de trecho a trecho est�n abiertas por do atraviesa el agua de las unas a las otras, y en todas estas aberturas, que algunas son muy anchas, hay sus puentes de muy anchas y muy grandes vigas, juntas y recias y bien labradas, y tales, que por muchas de ellas pueden pasar diez de a caballo juntos a la par. Y viendo que si los naturales de esta ciudad quisiesen hacer alguna traici�n, ten�an para ello mucho aparejo, por ser la dicha ciudad edificada de la manera que digo, y quitadas las puentes de las entradas y salidas, nos podr�an dejar morir de hambre sin que pudi�semos salir a la tierra. Luego que entr� en la dicha ciudad di mucha prisa en hacer cuatro bergantines, y los hice en muy breve tiempo, tales que pod�an
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echar trescientos hombres en la tierra y llevar los caballos cada vez que quisiésemos. Tiene esta ciudad muchas plazas, donde hay continuo mercado y trato de comprar y vender. Tiene otra plaza tan grande como dos veces la ciudad de Salamanca, toda cercada de portales alrededor, donde hay cotidianamente arriba de sesenta mil ánimas comprando y vendiendo; donde hay todos los géneros de mercadurías que en todas las tierras se hallan, así de mantenimientos como de vituallas, joyas de oro y plata, de plomo, de latón, de cobre, de estaño, de piedras, de huesos, de conchas, de caracoles y de plumas. Véndese cal, piedra labrada y por labrar, adobes, ladrillos, madera labrada y por labrar de diversas maneras. Hay calle de caza donde venden todos los linajes de aves que hay en la tierra, así como gallinas, perdices, codornices, lavancos, dorales, zarcetas, tórtolas, palomas, pajaritos en cañuela, papagayos, búharos, águilas, halcones, gavilanes y cernícalos; y de algunas de estas aves de rapiña, venden los cueros con su pluma y cabezas y pico y uñas. (Cartas de Relación. Hernán Cortés, p. 16)
(...) y desde llegamos a la gran plaza, que se dice el Tatelulco, como no habíamos visto tal cosa, quedamos admirados de la multitud de gente y mercaderías que en ella había (...) cada género de mercaderías estaban por sí, y tenían situados y señalados sus asientos. Comencemos por los mercaderes de oro y plata y piedras ricas y plumas y mantas y cosas labradas y con otras mercaderías de indios esclavos y esclavas (...) traíanlos atados en unas varas largas con colleras a los pescuezos, por que no se les huyesen. Luego estaban otros mercaderes que vendían (...) cueros de tigre, de leones y de nutrias y de venados y de otras alimañas e tejones e gatos monteses (...) Pues todo género de loza, hecha de mil maneras, desde tinajas grandes y jarrillos chicos; y también vendían miel y melcochas y otras golosinas (...) Pues los que vendían madera, tablas, cunas e tajos blancos y todo por sí (...) Había muchos herbolarios y mercaderías de otra manera (...) y antes de salir de la misma plaza estaban muchos otros mercaderes, que, según dijeron, eran de los que traían a vender oro en unos canutillos delgados de los ansarones de la tierra , y así blancos porque se pareciesen de oro por fuera, (...) .
(Bernal Díaz de Castillo, p.321-323).
(...) al internarnos en la vasta ciudad de la laguna nos perdíamos en los laberintos de un mercado tan vasto como la ciudad misma, pues por donde mis pies pasaban y por donde mis ojos miraban, en confusión y desorden, sólo asientos de mercaderías nos rodeaban, y gran parlería y desconciertos escuché, entre quienes allí vendían oro y plata y piedras ricas y plumas y mantas y cosas labradas, y el cielo interrogaban quienes en esta inmensa feria mostraban cueros de tigre, de leones y de nutrias, y de adives y de venados, y de otras alimañas, tejones y gatos monteses, y al suelo miraban, sin importarles los portentos, los esclavos y las esclavas allí llevados a vender, atados a unas largas varas con collares a los pescuezos (...) y bajo los portales eran rápidamente cubiertas las lozas de todo género, desde tinajas grandes y jarrillos chicos, y todos pintados con gran primor y brillantes colores, de figurillas de patos y venados y flores; y las barricas llenas de miel y melcochas y otras golosinas; y las maderas, tablas, cunas y vigas y tajos y bancos y barcas; y los
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herbolarios y vendedores de la sal arrojaban mantas de c��amo sobre sus mercader�as, y a sus pechos abrazaban las suyas los traficantes de grano de oro, metidos en canutillos delgados de los ansarones de la tierra, y as� blancos porque se pareciesen de oro por fuera, que las pepitas se desparramaban al ser apretadas descuidadamente las pieles de ansar�n que las guardaban , y tan espantados andaban los due�os de unos granos de color marr�n, seguramente tan preciosos como el oro, pues a nadie vi proteger con tal codicia lo suyo. (TN, p. 460).
Embora no romance os recortes intertextuais dialoguem para tecer um paralelo
com os modelos da narrativa dos historiadores, os relatos do Mundo Novo
desarticulam a linearidade das datas ao transgredir a ordem dos fatos narrados
tradicionalmente por ocasi�o do descobrimento e da conquista. Essa desarticula��o
autoriza a introdu��o do universo simb�lico pr�-hisp�nico e permite decompor o
entorno contextual, desnuda a figura tipicamente europeia do Peregrino,
transformando-o em personagem das narrativas pr�-colombianas. Recria livremente
a cosmogonia dos povos pr�-hisp�nicos para construir a personagem e, o mesmo
tempo em que dialoga com as cr�nicas dos conquistadores da Am�rica, recria a
vers�o da lenda asteca de Quetzalc�atl.
O nome da personagem Peregrino remete � condi��o de auto-ex�lio de
Quetzalc�atl, cujo peregrinar a Tlapallan- Tupan, a Cidade do sol, se relata nos
cap�tulos doze e treze do livro de Sahag�n, Historia General de las cosas de
Nueva España (1990, p.229 e 332). Os mitos pr�-hisp�nicos e os fatos conhecidos
da conquista se entremesclam no romance, dialogam com a vers�o de Sahag�n e
evocam a identifica��o que os astecas fizeram entre as figuras de Hern�n Cort�s e
de Quetzalc�atl.
O romance recria livremente a cosmogonia dos povos pr�-hisp�nicos para
construir o Mundo novo. Ao mesmo tempo em que dialoga com as cr�nicas dos
conquistadores da Am�rica, recria a vers�o da lenda asteca de Quetzalc�atl, que
ap�s ver seu rosto refletido no espelho fumegante, se embriaga e pratica o incesto
com a irm�, Quetzalc�atl desesperado chega � praia onde, num ato de imola��o
final, de autopuni��o, p�e fogo em si mesmo, “as aves das mais lindas plumagens
contemplam como seu cora��o ascende finalmente ao c�u transformado no planeta
V�nus”.
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Ainda e acordo com a vers�o do mito que Carlos Fuentes oferece em El
espejo enterrado, (1992, p.110): “Quetzalc�atl anunciou seu regresso, e o faria
num momento determinado: Ce Acatl,o ano 1 da cana, dentro do calend�rio asteca”.
A chegada dos espanh�is comandados por Hern�n Cort�s, “na Quinta Feira Santa
de 1519, coincidiu com o momento profetizado, da� que Moctezuma tivesse
associado a chegada do conquistador com o retorno do deus”.
No processo da constru��o liter�ria, o componente m�tico e o hist�rico s�o
intencionalmente subvertidos com a inten��o de dramatizar o traum�tico encontro
entre as duas civiliza��es. Como dito, a narrativa da travessia do Peregrino evoca a
descri��o da primeira viagem de Colombo nos Diarios, de Hernando Colombo em
Historias do Almirante, a intertextualidade constitutiva se manifesta nesse espa�o
particular de Terra Nostra quando o Peregrino, ao longo da sua viagem, segue a
rota indicada por um fio de aranha colocado pela Senhora das Mariposas.
Essa rota coincide com a de Hern�n Cort�s na conquista do M�xico; no
transcurso o Peregrino supera uma s�rie de prova��es que se interp�em em seu
caminho. Quando chega a Tenochtitl�n � recebido pelo grande soberano asteca,
como o esperado deus Quetzalc�atl. Durante a sua perman�ncia na cidade, o
Peregrino mata o imperador e foge numa barca de serpentes.
A forma��o do intertexto m�tico n�huatl cruza as refer�ncias intertextuais do
descobrimento e conquista da Nova Espanha, descritos em Diario del primer viaje,
1982, p.15-138; Am�rico Vesp�cio, El nuevo mundo; Pedro M�rtir Angler�a,
Décadas del Nuevo Mundo; P�rez de Oliva, Historia de la invención de las
Índias. Essas primeiras representa��es do Mundo Novo se correspondem com as
descri��es e refer�ncias sobre a utopia da Idade de Ouro no novo continente. Os
mitos pr�-hisp�nicos e os fatos da conquista narrados por esses cronistas se
fusionam e dialogam para construir a identidade do Peregrino, cuja figura ilustra a
identifica��o que os astecas fizeram entre o conquistador Hern�n Cort�s e o deus-
rei Quetzalc�atl.
A figura polivalente do Peregrino permite a polifonia no romance ao criar uma
extensa rede de refer�ncias nas quais se superp�em epis�dios que lembram a saga
de Quetzalc�atl e o percurso de Hern�n Cort�s na conquista de M�xico at�
Tenochtitl�n. Al�m de identific�-lo como Peregrino-Quetzalc�atl h� outras vozes que
convivem nele: Hern�n Cort�s e o Peregrino; Quetzalc�atl e seu contr�rio
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Tezcatlipoca, que se soma � voz dos conquistadores Pedro Serrano e �lvares
Nunes Cabeza de Vaca. Os primeiros passos do Peregrino no Mundo Novo
reproduzem alguns dos momentos do naufr�gio de Pedro Serrano.
Em Palavras no templo (p.391), ap�s a morte do velho Pedro, se produz o
dom�nio do intertexto m�tico pr�-hisp�nico quando o Peregrino, no espa�o sagrado
de um templo, � iniciado nos mist�rios da cosmovis�o n�huatl por um velho de idade
imemorial que conserva a mem�ria dos mitos de origem e as duas riquezas da
comunidade: o tesouro das p�rolas e o milho.
Certa manh�, vi um grande movimento no cerro. As esteiras eram recolhidas de volta, as embarca��es levantadas para o alto; o povo regressava para a margem do rio. No entanto um grupo de homens permaneceu no monte, cuidando do anci�o e de seus tesouros. (...) Caminhamos dois dias, dormindo nas redes de algod�o (...). Os p�s nus dos homens de nosso grupo subiram sem grande dificuldade os degraus, com as cestas; eu os segui (...). A gruta do templo tinha captado a luz. Na funda cavidade de teto baixo brilhavam o ouro e as p�rolas e em um dos cestos de palha, imerso em p�rolas, jazia sempre o velho (...). Pediu que me aproximasse e que me sentasse a seu lado. Pus-me de c�coras. E o anci�o falou. E a voz ressoou opaca e morta nas unidas paredes desta c�mara l�grube e resplandecente ao mesmo tempo. “Meu irm�o, seja bem-vindo. Eu o esperava” (TN, p.428).
No epis�dio A lenda do ancião (p.393), o velho oferece ao Peregrino uma
reconstru��o da cosmogonia asteca, centrando-se na cria��o da terra, do homem e
do sol. Conta o velho que a terra foi criada por obra dos deuses, que, transformados
em duas grandes serpentes, romperam os membros de uma deusa, de cujo corpo
todas as coisas nasceram. Mas quando a deusa viu os frutos que nasciam da pele
cresciam e murchavam sem serem aproveitados, convocou os tr�s deuses: o
vermelho, o branco e um terceiro preto para que do sacrif�cio de um deles pudessem
surgir os homens. Apenas o deus preto, corcunda e leproso, se sacrificou jogando-
se no ventre em chamas da deusa, de onde surgiram os homens. Das estranhas
fumegantes da deusa surgiu tamb�m uma coluna de fogo, o fantasma do deus
corcunda, que subiu ao c�u, transformando-se no primeiro sol dos homens.
Senhor: ao ouvir estas palavras no templo, e o tom de gravidade que o anci�o empregava para diz�-las a mim, compreendi que ele me atribu�a o secreto conhecimento de sua l�ngua. (...). “Salvei-me do
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mar, senhor”, disse com simplicidade. “E chegaste do oriente que � a origem de toda vida, pois ali nasce o sol” (...). Tr�s homens de m�os dadas (..) formam um c�rculo e se preparam para ser um s� homem, como no princ�pio. Tr�s aspiram a ser somente um. Um � perfeito, � a origem de tudo, um n�o pode ser dividido em nada, tudo quanto pode ser dividido � mortal, o indivis�vel � eterno (...) tr�s � a cruzada de caminhos, a unidade ou a dispers�o, tr�s � a promessa da unidade. (...). Eu ocupo o lugar do senhor da mem�ria. Eu, o estranho chegado do mar, sou o fundador. Eu, o nu e sem nada, sou o jovem chefe. Eu, o �ltimo dos homens, sou o primeiro homem.
(TN, p. 393, 394).
Embora o anci�o n�o mencione diretamente Quetzalc�atl, a sua cosmovis�o se
baseia nas diferentes vers�es do mito da cria��o, nas quais Quetzalc�atl tem um
papel importante. A primeira parte da rela��o do anci�o coincide em linhas gerais
com um dos mitos da cria��o cujos protagonistas s�o Quetzalc�atl e Tezcatlipoca. A
segunda parte da lenda do anci�o se baseia no mito de origem do quinto sol. De
acordo com o texto n�huatl do Códice Matritense, redigido por Sahag�n, baseado
em informes nativos do ano 1564, o quinto sol foi o resultado do sacrif�cio do deus
Nanahuatzin o Buboso, o deus deformado que, depois de se jogar ao fogo, se
transforma no Sol. Para Miguel Le�n- Portilla, essa vers�o da cria��o do quinto sol �
de extraordin�ria import�ncia porque esclarece uma das formas do misticismo
asteca: “pelo sacrif�cio existem o sol e a vida; somente pelo sacrif�cio poder�o
conservar-se” (2001, p. 61).
O primeiro sol. Sobre o enorme caos que era o prel�dio da vida na terra ainda n�o criada velavam os deuses. Contemplaram o combate entre a �gua e o fogo e reuniram-se para deliberar. - J� � hora de aplacar esta batalha e de dar nascimento � vida.Quando eles ordenaram, o fogo enlouquecido e as �guas ferventes aquietaram-se, ent�o, um sil�ncio escuro pairou sobre os mares e as terras: o reino da mat�ria escura havia nascido. E o primeiro Sol que dominava sobre este mundo em sombra, foi o Sol da Noite o Sol da Terra, simbolizado por um tigre. Os deuses alegraram-se, embora logo convencidos de que sua primeira tentativa de criar vida tinha fracassado: o tigre devorou todos os seres que povoavam a Terra, e esta continuou girando no espa�o escuro carregando seus mortos. O segundo sol. Os deuses reuniram-se outra vez e disseram:- Esta quietude e esta escurid�o n�o s�o boas. � preciso que nas�a um novo sol e que seu esp�rito percorra o mundo cheio de pureza: assim, os habitantes da Terra conservar�o a vida.Ent�o, uma boca gigante come�ou a soprar por sobre as montanhas e os mares, sobre os lagos e as plan�cies, havia nascido o segundo Sol. Era o Sol do ar, o esp�rito puro cujo s�mbolo era Echécatl, uma das representa��es de Quetzalcóatl como deus do vento. Mas, os
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homens, filhos desta segunda era foram torpes, e os deuses, furiosos, os transformaram em macacos. Em grande número, estes animais corriam e pulavam, chiando como enlouquecidos, pulando por entre as árvores, demonstrando o estado imperfeito da suacondição puramente animal. O terceiro sol. Outra vez os deuses reuniram-se em assembleia; e um deles disse:- Não devemos permitir que a nossa criação continue vivendo como até agora, porque esta vida é imperfeita. Que devemos fazer?Depois de uma longa discussão, os deuses decidiram destruir o segundo sol e junto com ele aquelas criaturas correspondentes a essa era. Furiosos, deram suas ordens e os céus estremeceram-se em toda sua plenitude povoada de estrelas. Nasceu o terceiro sol como uma gigantesca chama que iluminou até os confins do âmbito celeste: era o Sol chamado de Chuva de Fogo, e uma tempestade de gotas ardentes caiu por sobre toda a Terra devorando as plantas e todos os seres vivos. Os vegetais perceberam primeiro a causa da sua imobilidade, logo todos os animais, exceto as aves, cujos cantos, plumagens e vôo era a única coisa bela que animava a vida terrestre.O quarto sol. E depois do Sol de Chuva de Fogo os deuses criaram o quarto Sol, o Sol da Chuva de Água. Naquela ocasião, um grande dilúvio que perdurou por muitos dias e noites azotou o vale de Anáhuac aniquilando e alagando grande parte da terra criada. Dessa forma nasceram os mares, rios e lagos, e deles surgiram os peixes e todas as superfícies líquidas se encheram de vida. Então os deuses decidiram que tinha chegado o momento de pôr o homem sobre a terra. O quinto sol. Reunidos os deuses, decidiram que o quinto Sol, chamado Sol de Movimento, seria o pai do gênero humano. Mas para alcançar esse privilégio sobre os outros sois, seria necessário que surgisse dotado de uma virtude especial, desconhecida por todos. Como alcançar esse merecimento? Depois de muito discorrer, os deuses chegaram a conclusão de que só após o sacrifício de dois deles, o quinto Sol poderia criar e iluminar os homens que povoariam a Terra. Os deuses se reuniram... e se perguntaram uns aos outros: Quem terá a responsabilidade de iluminar o mundo? Um dos deuses, chamado Tecuciztécatl, disse:- Eu me encarrego de iluminar o mundo. Depois as deidades se pronunciaram outra vez perguntando;- Quem será o outro...?Olharam para Nanahuatzin, um dos deuses que nunca falava e que ninguém respeitava, já que apenas ouvia quando os outros deliberavam, e disseram-lhe:- Você Nanahuatzin, será o outro que iluminará.E ele respondeu:- Com muito agrado recebo essa ordem.Os dois deuses fizeram penitência durante quatro dias e um enorme fogo foi ascendido. O primeiro deus oferecia, junto com sua vida, objetos e coisas preciosas, incensos finos e jóias esplendidas. O outro, o deus do silêncio, só podia oferecer como oferenda, além de sua vida, espinhos do manguey ensanguentadas com seu próprio sangue, porque era pobre. Conta-se que, à meia noite do quinto dia colocaram-se diante do fogo e os outros deuses ordenaram:- Tecuciztécatl, entra no fogo!
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Mas, o deus rico teve medo. Tentou por tr�s vezes, por�m ele n�o teve coragem para se jogar no fogo. Ent�o, as deidades ordenaram que o deus pobre para que se sacrifique. Ele fechou os olhos, tomou coragem e se lan�ou de encontro ao fogo. Quando Tecuztécatl viu que o pobre Nanahuatzin ardia no fogo , pulou dentro da fogueira e sumiu abra�ado pelas chamas. Assim, mediante o sacrif�cio dos dois deuses, surgiu o quinto Sol e nasceram os homens na Terra. O antigo mito afirma que o quinto Sol ter� que ser aniquilado um dia para que a humanidade alcance a suma perfei��o.O quinto Sol nasceu em Teotihuacán, a cidade sagrada onde foi erguida uma pir�mide em louvor ao Sol. O quinto Sol uniu os quatro elementos e, dessa uni�o, surgiu a Idade atual. Alguns asseguram que esta � a Idade dos Terremotos, da Fome, da Guerra e de toda Confus�o; outros dizem que, sob a influ�ncia do quinto Sol, o mundo sobrevive porque os quatro elementos conjugam-se perfeitamente. Por�m, h� alguns que afirmam que a harmonia s� poder� existir se o homem adquirir o h�bito de respeitar �s divindades e de praticar as virtudes. (2001, p.63).
O Popol Vuh distingue claramente entre um ato de cria��o incompleto, anterior
� palavra primeiro, o homem, em seguida, a fim de que este habite a terra e louve os
deuses:”Fazei pois que haja germina��o, que haja alvorada, que sejamos
invocados, que sejamos adorados (...) pelo homem formado (...)”. Com a maior
simplicidade, o Livro do Conselho Maya continua a cantar o milagre da idade de
ouro: “... os homens se produziram, os homens falaram; existiu a humanidade na
superf�cie da terra. Viveram, se procriaram, fizeram filhos, fizeram filhas...” (2001,
p.161).
No conceito mexica do Quinto sol tamb�m se apresenta o conceito de
milenarismo como regenera��o apocal�ptica. Este acontece numa sequ�ncia de
cinco etapas. Segundo essa cosmogonia, existiram quatro �pocas ou s�is, cada
uma das quais exigiu a destrui��o total da anterior. O Quinto sol era o movimento
que inclu�a a cria��o da humanidade e tamb�m estava condenado � substitui��o
uma vez que se completasse a s�ntese dos opostos e se superassem as dicotomias
do universo.
A profecia se realizaria com o retorno de Quetzalc�atl que ap�s lutar com seu
duplo Tezcatlipoca, a outra metade da dualidade divina, entravariam um duelo que
culminaria com o fim do mundo conhecido at� ent�o. O apocalipse mexica se
caracteriza quando o homem europeu aporta no Novo Mundo, percebido por ele
como o Para�so original. Carlos Fuentes comenta, “o tempo da Am�rica � o tempo
da Utopia: fomos fundados pela imagina��o renascentista de uma Idade de Ouro em
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outra parte: no Novo Mundo, no Para�so original. A for�a desse mito � que �
compartido. Todas as cosmogonias ind�genas evocam uma idade feliz, coincidente
com o momento da funda��o” (1992, p.107).
O documento de Sahag�n no romance caracteriza o intertexto, a diferen�a da
narrativa marca uma importante rela��o intertextual entre o relato do Peregrino e o
do modelo n�huatl que caracteriza a carnavaliza��o do texto inaugural e a inten��o
de destacar o significado apocal�ptico da Conquista para a civiliza��o asteca. Tanto
o componente m�tico como o hist�rico s�o submetidos a um processo de subvers�o
e de apropria��o gerando um espa�o particular. Em rela��o a isso, Carlos Fuentes
escreve em Valiente mundo nuevo:
O tempo da Am�rica � o tempo da Utopia: fomos fundados pela imagina��o renascentista de uma Idade de Ouro em outra parte: no Novo Mundo, no para�so original. A for�a desse mito � que � compartido. Todas as cosmogonias ind�genas evocam uma idade feliz, coincidente com o momento da funda��o. O Popol Vuh distingue claramente entre um ato de cria��o incompleto, anterior � palavra primeiro, o homem, em seguida, a fim de que este habite a terra e louve os deuses: ”Fazei, pois que haja germina��o, que haja alvorada, que sejamos invocados, que sejamos adorados... pelo homem formado...”. com a maior simplicidade, o Livro do Conselhomaya continua a cantar o milagre da idade de ouro: “... os homens se produziram, os homens falaram; existiu a humanidade na superf�cie da terra. Viveram, se procriaram, fizeram filhos, fizeram filhas...”.
(1992, p.161).
O anci�o ensina ao Peregrino o calend�rio asteca, a concep��o c�clica do
tempo e o nascimento e morte dos s�is ou eras, que divide a hist�ria desde a
primeira cria��o do mundo at� o ocaso do mesmo. A hist�ria da cria��o da terra,
dos homens e do sol segue, na rela��o do anci�o, a ordena��o do tempo c�clico. O
modo com o qual o anci�o descreve a morte do quarto sol � similar � forma em que
se descreve no romance o sentido catastr�fico da conquista, “O quarto sol, que � o
da terra, e que desaparecer� em meio de terremotos, fome, destrui��o, guerra e
morte” (p.400).
Essa hist�ria da cria��o da terra, dos homens e do sol segue, na rela��o do anci�o, a da inven��o e ordena��o do tempo. O anci�o explica ao Peregrino o calend�rio asteca, a concep��o c�clica do tempo e o nascimento e morte dos s�is ou eras em que os astecas dividiam a hist�ria desde a primeira cria��o do mundo. H� aqui uma
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diferen�a importante com respeito ao modelo n�huatl, pois esses fatos acontecem ao Peregrino com o quarto sol, enfatizando o sentido apocal�ptico que a conquista teria para a civiliza��o asteca, j� que implicaria em sua destrui��o. (2002, p.78).
O velho das mem�rias reitera a mesma vers�o de que terra foi criada por obra
dos deuses, que transformados em duas grandes serpentes, romperam os membros
de uma deusa, “de cujo corpo todas as coisas nasceram”. E insiste, “mas a deusa ao
perceber que os frutos nascidos da sua pele cresciam e murchavam rapidamente,
convocou os tr�s deuses, um vermelho, outro branco e um terceiro preto, para que
do sacrif�cio de um deles nasceram os seres humanos”. Apenas o deus preto,
corcunda e leproso se jogou no ventre incandescente da deusa em chamas, do qual
surgiram os homens.
Quando o Peregrino se depara com a figura do anci�o, percebe que, para os
habitantes da floresta, este representa a totalidade do saber. O velho s�bio tem a
miss�o de guardar a mem�ria do seu povo, “O fim da mem�ria � o verdadeiro fim do
mundo” (p.402). Ele deve aconselhar, explicar e de transmitir as tradi��es culturais
�s novas gera��es. No fim do encontro, o anci�o se apresenta como “aquele que
lembra”, o guardi�o “do livro do destino e da mem�ria”. Diz Santiago Juan Navarro:
Ainda que n�o exista nenhuma deidade mesoamericana que ostente literalmente esses atributos, alguns dos tra�os e fun��es desta personagem evocam a figura do arqu�tipo s�bio e fil�sofo dos n�huatl. Baseando-se nos principais manuscritos de Sahag�n (Historia General y C�dice Matritense). Miguel Le�n- Portilla discute a import�ncia que na sociedade n�huatl tinha o tlamatini “o que sabe das coisas” (2002, p.76).
Algumas das caracter�sticas atribu�das ao tlamatini t�m correla��o com a
representa��o que Carlos Fuentes faz do anci�o das mem�rias. Da mesma forma
que o anci�o, o xam� n�huatl re�ne as fun��es de mestre, psic�logo, moralista,
astr�logo, metaf�sico, sacerdote e humanista. No romance, esta figura representa
um dos motivos principais da trama, a mem�ria individual e a coletiva s�o a for�a
que movimenta a reescrita do passado em Terra Nostra. O anci�o das mem�rias �
o iniciador das aventuras do Peregrino nas terras mexicanas, ele � o primeiro que o
recebe e lhe d� as boas-vindas. No fim do percurso, reaparece no mercado de
Tlatelolco para despedi-lo na sua viagem de regresso � Espanha. Todos os passos
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do Peregrino dentro do mundo asteca est�o compreendidos entre essas duas
apari��es do anci�o das mem�rias.
Durante esse encontro, o anci�o lhe explica o porqu� da sua vinda ao Novo
Mundo, da sua atua��o no passado, no presente e no futuro e as raz�es da vida
existir “como em c�rculos, onde todo parece terminar, na verdade se inicia
novamente” (p.394). O anci�o justifica seus irm�os nativos, argumenta os motivos
pelos quais assassinaram o velho marinheiro espanhol. Para o jovem, Pedro �
apenas um n�ufrago como ele, seu amigo e companheiro de aventura, e relata a
experi�ncia do encontro:
Senhor: ao ouvir estas palavras no templo, o tom de gravidade que oanci�o empregava para diz�-las a mim (...) A gruta do templo haviacapturado a luz. Na funda cavidade brilhava o ouro e as p�rolas, e num dos cestos de palmeira, imerso nas p�rolas, sempre o velho: m�os semelhantes �s ra�zes do bosque. Levantou uma delas. Pediu que chegasse mais perto, que me sentara a seu lado. Coloquei-me de c�coras. E o anci�o falou. E sua voz ressoou opaca e morta nas unidas paredes da rec�mara, l�grube e resplandecente: Meu irm�o, seja bem-vindo. Estava esperando. O vi imerso nas p�rolas (...). Interroguei o anci�o com o olhar, mas ele continuou sem prestar aten��o em mim: Al�m de que nos desafiou. Ergueu um orat�rio pata ele s�. Quis se apoderar de um peda�o de terra. Mas a terra � uma divindade e n�o pode ser possu�da por ningu�m. (...). Era um velho, respondeu-me o anci�o, os velhos s�o in�teis. Comem por�m n�o trabalham, servem somente para procurar cobras. Devem morrer o quanto antes. Um velho � a sombra da morte e est� demais no mundo (TN, p.393, 394).
� figura do Peregrino se somam as representa��es de Pedro Serrano e as de
Cabe�a de Vaca. Desde os primeiros contatos com os nativos do continente,
come�am a se formar extensas redes de refer�ncias que associam a figura do
Peregrino � de Cort�s-Quetzalc�atl recebido com palavras sugestivas: “haveis
regressado irm�o. Haveis chegado a tua casa. Ocupa nela teu lugar” (p.401). O
nome do Peregrino remete � condi��o de auto-ex�lio de Quetzalc�atl, cujo peregrinar
at� Cidade do sol se relata nos cap�tulos XII e XIII do livro de Sahag�n, Historia
General de las cosas de Nueva España (1990, p.229 e 332).
Ao longo do seu caminho, o jovem deve superar uma s�rie de prova��es que
se interp�em em seu destino. Seu percurso pelas terras do Novo Mundo
corresponde ao modelo das viagens de rito de inicia��o nos quais o her�i � testado
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antes de alcançar sua meta. Um esquema análogo se desprende das cerimônias
funerárias dos náhuatl, em que o morto devia superar sete provas difíceis antes de
conseguir o repouso final na terra dos mortos. Após quatro anos de provações, a
última das sete consistia em um enfrentamento com o temível Tezcatlipoca, deus
dos mortos. O repouso final seria alcançado só se o defunto conseguisse burlar os
enganos e trapaças do deus.
Santiago Juan Navarro relaciona várias dessas provas com as diferentes
etapas da vida de Quetzalcóatl, no seu peregrinar por Tlapallan, após deixar Tollan-
Tula. Tanto a narrativa dessa fase de Quetzalcóatl, como durante os ritos funerários
que a rememoravam, representava-se a passagem do homem para além da morte e
a sua união definitiva na mais alta esfera de espiritualidade, quando o indivíduo
acaba a sua travessia unindo-se definitivamente com o transcendental. Os dois
componentes desse duplo fio condutor mantêm um diálogo permanente com a lenda
do retorno de Quetzalcóatl e sua identificação com Hernán Cortés. A estrutura das
provas, aparentemente de iniciação, colabora com o propósito de realçar a astúcia
racional e o propósito mundano e secular do conquistador em contato com um
mundo sobrenatural. Essa ideia se confirma à medida que as ações do Peregrino se
espelham nas de Hernán Cortés, conforme os relatos de Bernal Díaz História
verdadera e de Bernardino de Sahagún em Historia general.
A ideia de espelhamento com Quetzalcóatl apresenta o Peregrino à sua longa
e tumultuada travessia pelo universo indígena. Nessa passagem, enfrenta uma série
de provas que consegue superar graças a sua astúcia: na primeira delas fica preso
em um redemoinho do qual consegue escapar depois de observar cuidadosamente
os movimentos do mesmo. Na sequência, quando o velho das memórias exige uma
nova oferenda, aparentemente o seu coração, o Peregrino mostra um espelho, e
escapa mais uma vez da morte.
Em O templo em chamas (p.409), identificada pelos lábios tatuados, surge a
segunda Celestina como a Senhora das mariposas. No transcurso do tempo se
transfigura em diferentes personagens: primeiro como a jovem da selva, a Dama das
mariposas; em seguida, a sacerdotisa do sacrifício e das imundícias e; finalmente,
como a anciã bruxa. Para o Peregrino aparece em três momentos: como a jovem da
selva, como a sacerdotisa e como a bruxa decadente. Como a jovem da selva, surge
coroada por inúmeras borboletas de múltiplas cores e possuidora da beleza e do
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horror, no dizer do Peregrino, de “terr�vel beleza”, ela � aquela que o guia pela selva
por meio de um fio de teia de aranha. O jovem se apaixona, e ela promete
reencontr�-lo ap�s vinte e cinco dias, depois que ele cumpra seu destino nessa nova
terra.
Dormi junto desses po�os largos e fundos (...) e ent�o vi brilhar no alto essa aranha: a aranha deixou cair um fio para mim; eu me agarrei (...). Levantei-me amedrontado e me lancei no meio da noite, guiado pelo fio da aranha. (...). No lugar da aranha, com a ponta do fio entre as m�os, estava a mulher. (...) apari��o de beleza deslumbrante e de deslumbrante horror, pois belo era seu vestido de algod�o cru todo coberto de j�ias e belas, por�m terr�veis (...) outra vez horr�vel e bela boca pintada de m�ltiplas cores, bela e suave negrura de seus ombros. Em seu cabelo, uma coroa de borboletas (...) vivas de cores preta, azul, amarela, verde, branca que se cruzavam voando sobre a cabe�a. (...). E s�o estas as palavras que, com minha pr�pria voz, a senhora das borboletas me disse e disse em meu nome (...) ”Segue o caminho do vulc�o (...) vinte e cinco dias e nos voltaremos a encontrar” (TN, p.413).
Em outra ocasi�o, deve superar as provas de passagem, no epis�dio A mãe e
o poço (p.415), o Peregrino � jogado pela sacerdotisa no po�o do sacrif�cio de onde
ressurge gra�as a sua habilidade em manipular os canais de �gua subterr�neos,
essa atitude � vista pelos astecas como um ato sobrenatural. Internado na floresta
se encontra com Tezcatlipoca transformado em um lenhador monstruoso; este o
desafia a que segure em suas m�os seu cora��o palpitante, coisa que o Peregrino
faz vencendo a sua repugn�ncia.
Ingressei num �nico aposento quente como a selva (...) e vi uma mulher que varria com vagaros�ssimos movimentos o ch�o de terra batido (...). Velha, velh�ssima era a varredeira que agora ergueu seu olhar para o meu (...), o sorriso de boca desdentada (...). Abri meus olhos. Encontrava-me � borda de um desses po�os de que falei, t�o largos, t�o fundos que a primeira vista parecem cavernas talhadas (...), e gritei a plenos pulm�es e em l�ngua desta terra: Por que vou morrer? E uma voz falou sobre meus ombros e disse: Por que mataste o sol (...). Afundei-me no agitado seio das �guas do po�o.
(TN, p.419).
Em outra das provas, O dia do espelho fumegante (p.426), a Senhora das
Mariposas se transfigura na sacerdotisa de los “sacrif�cios e imund�cias” (p.435),
s�ntese de Tlazolt�otl e Itzpapalotl. Na pir�mide, inicia seu of�cio com o sacrif�cio
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humano e lava o pecado do sacrificado devorando suas imund�cies. O Peregrino se
encontra no cume da pir�mide e descobre que o sacrif�cio humano � em sua honra.
A sacerdotisa oferece-lhe duas possibilidades antes de morrer: desfrutar de um ano
de prazer e felicidade na sua companhia, com a condi��o de que depois se deixe
sacrificar ou continuar peregrinando pelo mundo. O Peregrino escolhe a �ltima das
alternativas, escapando assim da morte imediata.
Na plurifuncionalidade da figura do Peregrino se percebem variadas
personalidades que convivem com ele, mas nunca o dominam por completo.
Coexistem nele Quetzac�atl e seu contr�rio Tezcatlipoca: “E eu era dois: este que
vos fala e um escuro duplo” (p.440); “Escolhemos voc�, estrangeiro, como imagem
do espelho fumegante” (p.441). No relato, os sacerdotes referem-se a ele como a
encarna��o de Tezcatlipoca, “Este �, na verdade, o senhor da noite, o caprichoso e
cruel espelho fumegante, o que perdeu um p� no dia da cria��o, quando nossa
senhora lhe arrancou o p� com suas articula��es” (p. 440).
Rodeavam-me (...) o c�ntico desses magos, Senhor, era dirigido a mim e me nomeava: - Espelho fumegante. Deixaram cair os bra�os e atr�s deles apareceu a mulher desejada, minha amante, a senhora das borboletas. (...). Para v�-la de novo tinha afrontado todos os perigos, banido todas as tenta��es, superado todos os obst�culos. E, agora, ao v�-la, contemplava uma estranha. Ela n�o olhava para mim. Era ela. E era outra. (...). Olhei para ela suplicando: - Senhora n�o est� me reconhecendo? Os cru�is da mulher n�o me devolveram o olhar. (...) – Me prometeste que ao encontrar-me novamente, multiplicarias o prazer daquela noite. – Cumpri minha promessa. Ofere�o um prazer superior a todos: a seguran�a de um ano feliz e de uma morte certa. – Senhora, � que eu vivi dois dias desde que te vi pela �ltima vez (...) – S� disso te lembras? – Entre todos os obst�culos que pus em teu caminho, entre todas as provas a que te submeti, somente quatro, dois da manh� e dois da noite, te obrigam a perguntar e a salvar teus dias: s� duas jornadas merecem tua vida? – Sim, sim, sim (...) – Aonde ir�s? – Disse a senhora outra vez impass�vel. (...) – Ao vulc�o, senhora. (...) – Adeus, Senhora. (...). Virei as costas para a pir�mide e caminhei para o vulc�o.
(TN, p.444).
Depois de superar os desafios das provas inici�ticas, no epis�dio Noite do
vulcão (p.444), o Peregrino-Quetzalc�atl deve enfrentar a �ltima prova que consiste
em seu descenso ao Mictl�n, no inframundo, onde deve encontrar-se com os
soberanos do Reino da Morte e resgatar ossos humanos. Nesse tempo m�tico e
circular, o Peregrino representa o protagonista europeu que ouve ou l� as lendas
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ex�ticas do Novo Mundo e faz parte delas. Na transgress�o espa�o-temporal do
romance, o jovem europeu forma parte da lenda que pertence a um tempo
cronologicamente anterior � conquista do M�xico e atua como her�i m�tico.
A subvers�o interna da linearidade hist�ria no romance incorpora no Peregrino
a identidade do deus-cultural Quetzac�atl, o deus expatriado e fugitivo, Serpente
emplumada que d� vida aos homens. Esse mesmo recurso faz com que o jovem
interaja com os nativos da Am�rica, como o fez Hern�n Cort�s. O romance prop�e a
simultaneidade temporal num tempo-circular em que o tempo das origens m�ticas e
o da chegada dos espanh�is �s terras da Nova Espanha se conformam num �nico
instante liter�rio.
Para construir a narrativa do descenso do Peregrino ao inframundo, o romance
recorre a uma das lendas que descrevem a cria��o do homem e a participa��o de
Quetzalc�atl como deidade. Uma vers�o da Lenda dos sóis (1558) relata que os
deuses reunidos em Teotihuac�n sentiram a necessidade de criar uma nova esp�cie
humana. Para isso, encomendaram a Quetzalc�atl a tarefa de descer at� o Mictl�n
em busca de ossos para criar uma nova etnia. No inframundo, Quetzalc�atl,
auxiliado por seu duplo nahualt, supera as provas a que fora submetido pelo Senhor
e a Senhora do Reino da Morte e foge para Tamoanchan levando consigo os ossos.
Nesse espa�o m�tico, as deidades se reuniram e criaram o primeiro homem a partir
do sacrif�cio de Quetzalc�atl, que ap�s regar os ossos com seu sangue, gerou a
vida.
No romance, a lenda do deus-leproso dialoga com os mitos da criação do
quinto sol e com o da criação do novo homem, isso permite estabelecer um vinculo
direto entre a origem da mesti�agem e o valor ut�pico associado � figura de
Quetzalc�atl. Por um lado, a lenda dos cinco s�is descreve a cria��o do homem
atual, da era do quinto sol, fruto do sacrifico de Quetzalc�atl, e por outro, cria a
vers�o para o romance. Nele, o Peregrino resgata os ossos e os rega com suas
l�grimas, estes se transformam em dez homens e dez mulheres que s�o descritos
como os recém-nascidos. Nesse instante surgem os primeiros mesti�os do Mundo
Novo, que “falam um espanhol com sotaque mais doce” (p.449)
A intertextualidade em Terra Nostra permite que pela reescrita da cosmogonia
asteca, o mito fundacional da mesti�agem adquira uma nova express�o que
subverte a ideia anterior; ou seja, a miscigenação não é mais fruto da violência é
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sim do amor. Essa afirmação de Carlos Fuentes vira ao avesso o conceito comum
da conquista espanhola: no lugar de Hernán Cortés ser percebido com um pai cruel,
Terra Nostra concede ao Mundo Novo um pai bondoso, Quetzalcóatl.
Quando o Peregrino mergulha no universo das lendas e vivencia o cronotopo
do universo simbólico do mito, na outraidade, atua como herói pré-hispânico, em um
tempo cronologicamente anterior à Conquista do México. A subversão carnavalesca
reproduz o sacrifício do deus Quetzalcóatl na pessoa do Peregrino para evidenciar a
simultaneidade temporal proposta pelo romance, no tempo do mito fundador, nas
origens da vida criada no romance, num tempo em que o mito escreve sua versão
da história.
O segmento intitulado Dia da lagoa (p.457) descreve a marcha do Peregrino
pelo México acompanhado por um grupo de vinte jovens mestiços que foram criados
por ele durante a sua visita ao inframundo. Esta nova conquista do México, desta
vez pacífica, se corresponde dialogicamente com a relação de Bernal Díaz em
Historia verdadera, quando figura do Peregrino, em quanto narrador, incorpora a
personalidade do conquistador e cronista espanhol. A narrativa deste episódio
reproduz as histórias, crônicas e relações do século XVI em vários momentos da
narrativa. Na descrição dos presságios funestos se adotam expressões próprias da
Historia General de Sahagún.
No Mundo Novo, a chegada do Peregrino- Quetzalcóatl-Cortés ao Vale de
México coincide com a aparição dos signos funestos que seguem literalmente os
descritos por Sahagún. Do ponto de vista sintático, algumas das passagens da
descrição do mercado de México-Tenochtitlán parecem seguir as descrições de
Bernal Díaz (p.460). O texto reproduz, em termos similares, a passagem na qual
Bernal Díaz demonstra a sua admiração ante o panorama do Vale de México.
Os oito presságios míticos se realizam á medida em que o Peregrino se
aproxima do México-Tenochtitlán. O primeiro presságio de Sahagún acontece
quando surge uma chama de fogo que se eleva até o céu como uma pirâmide de
luz. Na sequência, fervem as águas da lagoa e cai um grande fogo como um cometa
desde o sol e dele nascem mais três; caem raios sem trovões que incendeiam os
tetos das edificações; uma mulher surge da névoa e chora pelo destino da cidade e
de seus filhos; monstros bicéfalos anunciam o fim do mundo e, finalmente, é
encontrada na lagoa uma ave morta, cuja cabeça espelha imagens da conquista.
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No encontro do Peregrino com Moctezuma, cujo nome n�o se menciona, se
transcrevem as palavras contidas na Historia General de Sahag�n, quando o
soberano asteca recebe a Hern�n Cort�s: “Senhor nosso, est�s fatigado, cansado;
j� haveis chegado a tua terra; haveis chegado a tua cidade: M�xico. Aqui haveis
vindo a tomar posse do teu trono. Oh, por breve tempo o conservamos para ti” (Dia
da lagoa, p.463).
Iniciamos a descida para o vale e sua cidade, eu dizia comigo mesmo que tudo quanto via era miragem (...) n�o era necess�rio perguntar, eu sabia, era um sonho. Eram tamb�m um sonho meus companheiros nus, os donos da minha l�ngua (...)? Primeiro se ergueu na metade do c�u uma esp�cie de espinho de fogo, uma chama de fogo, uma segunda aurora (...), uma pir�mide de pura luz: bem no meio do c�u (...). E ent�o, sem vento algum, a lagoa que era base desta magn�fica cidade, se alterou e as �guas ferveram e espumaram de tal forma que se levantaram e atingiram grandes alturas e se dividiram em mil peda�os e se desmancharam atingindo grandes alturas; grande foi seu impulso, e meus olhos espantados viram como essas gigantescas ondas se chocaram contra os fundamentos das casas nas margens do lago e muitas delas ca�ram e afundaram; e a �gua as cobriu submergindo-as completamente. (...) e eu queria saber o que se passava e o que faziam os moradores da cidade que eu desconhecia de perto, mas que, de longe, via abatida pelos funestos sinais: choravam, gritavam, sentiam temor ou c�lera? Que coisa nos esperava, afinal? Pois para a cidade nos caminh�vamos, em meio a portentos que certamente, por coincidir com nossa chegada, seriam atribu�dos a n�s. (...) uma mulher surgida da nevoa e vestida de nevoa (...) e seu pranto profundo e l�gubre, seu rosto invis�vel por detr�s da branca cabeleira que o cobria, suas palavras um �nico e comprido lamento: Ai meus filhos! (...) E do mesmo jeito que apareceu este espectro de lamenta��es, desapareceu e nossos corpos pareceram atravessar a pura nevoa do seu corpo, e pareceu que nos encontr�vamos � beira de um canal sombrio, de �guas paradas apenas agitadas pela passagem de barcas de trevas, menos solidas que a �gua, e seus remadores eram monstros de duas cabe�as , homens com um s� corpo e duas testas, que gemiam sem presa e sem ru�do. H� de vir o fim; o mundo dever� se acabar e se consumir; deveram ser criadas novas gentes e vir�o outros habitantes do mundo. (...). N�o sei, at� o dia de hoje, se teria sido prefer�vel ficar cego de fuma�a, cego de sol, de cinzas cego, ao ver o que afinal vi: uma figura quase despida, com suas vergonhas cobertas por uma tanga como aquela que usam os pobres desta terra (...) varria as cinzas e tornava a pegar outros longos pap�is (...). Depois observei que essa vassoura cumpria dupla fun��o e que este homem quase nu a usava como muleta (...) faltava-lhe um p�. Aproximei-me. Deixou de varrer. Fitou-me de frente. Era ele outra vez. Era eu, o mesmo semblante que o espelho zelosamente guardado em meu casaquinho rasgado reproduzia fielmente. Era eu, por�m como me vi na noite do fantasma: escuro, meus olhos pretos, minha cabeleira lisa e longa e preta como crina de cavalo. Era meu
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perseguidor, o chamado Espelho Fumegante, o senhor dos sacrif�cios, o vingador que perdeu um p� no pr�prio dia da cria��o, quando foi arrancado pelas contor��es de uma terra m�e que se rompia em montanhas, rios, vales e selvas, crateras e despenhadeiros. E foram estas as suas palavras: - Senhor nosso: tu te fatigaste, te cansaste; j� chegaste � terra. Chegaste � tua cidade: M�xico. Aqui vieste para te sentares em teu trono. Oh, pouco tempo o guardamos para ti. (...). O varredor coxo afirmou v�rias vezes com a cabe�a e aos trancos caminhou at� um canto deste aposento: - Eu s� tinha uma d�vida – disse, ao levantar uma manta de algod�o e descobrir, afastada, uma enorme ave cinzenta, uma grua morta, e na moleira do p�ssaro havia como um espelho, como roda de roca, em espiral. (...) e no espelho da cabe�a podiam ser vistos o c�u e o mar, e no mar grandes montanhas que avan�avam sobre as �guas e delas desciam para as costas grande n�mero de pessoas, que vinham marchando separadas e em esquadr�es, ordenados, enfeitados � moda da guerra, e estes homens eram de carnes muito brancas e com barbas vermelhas e mostravam os dentes ao falar, e eram como monstros, pois a metade de seu corpo era de homens, por�m a outra metade era de animais com quatro patas e horr�veis focinhos espumejantes. (...). E meu duplo escuro, nu e apoiado na vassoura, disse a todos que eu era, na verdade, a Serpente Emplumada, o grande sacerdote da origem do tempo, o criador dos homens, o deus da paz e do trabalho, o educador que nos ensinou a plantar milho, a lavrar a terra, a trabalhar a pena e tornear a lou�a; � este, em verdade, o chamado Quetzalc�atl, o deus branco, inimigo dos sacrif�cios, inimigo da terra, inimigo do sangue, amigo da vida, que um dia fugiu para o Oriente, com tristeza e com c�lera, porque seus ensinamentos foram repudiados, porque as necessidades da fome e do poder e a cat�strofe e o terror levaram os homens � guerra e ao derramamento de sangue. Prometeu regressar um dia, pelo mesmo roteiro do oriente pelo qual se foi, pelo lado onde sai o grande sol e se arrebentam as grandes �guas, para restaurar o reino perdido da paz. N�o fizemos sen�o guardar seu trono enquanto regressava. Agora lho entregamos. Os sinais se manifestaram. As profecias foram cumpridas. O trono � seu e eu sou seu escravo. (...) e meu afinado ouvido pelo cont�nuo contraste entre a realidade e a maravilha suspeitou em sua entona��o um regresso aos que usou na noite do fantasma: e atr�s da do�ura das palavras um tremor met�lico me fazia duvidar da sinceridade de tudo quanto proclamava (...). Contemplei a extens�o da cidade da lagoa, atravessada por pontes e canais e aberta em vastas pra�as e erguida em amplas torres e alojada em cem mil casas e servida por duzentas mil embarca��es (...). Quantas maravilhas, Senhor crist�o que me ouvis, n�o tinha visto desde que o torvelinho do oceano me atirou � praiadas p�rolas? (TN, p. 458- 466).
Carlos Fuentes comenta que a vinda dos conquistadores foi precedida pelos
press�gios sobrenaturais expostos no romance. Em todo o Imp�rio Asteca
esperava-se a realiza��o da profecia: Quetzalc�atl ia regressar e o tempo do quinto
sol acabaria. Moctezuma recebe a not�cia de que fortale�as flutuantes se aproximam
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e que delas descem homens brancos barbados, sabe que o fim � inevit�vel (1992,
p.11).
Os fragmentos de Terra Nostra mant�m uma rela��o de correspond�ncia se
com os documentos que descrevem as primeiras impress�es dos conquistadores
nas terras do Mundo Novo. O trecho retirado da Segunda carta de Relación, de
Hern�n Cort�s, registra as impress�es da chegada � cidade Tenochtitl�n e o di�logo
entre Moctezuma e o conquistador, que o Dia da Lagoa reproduz quase que
textualmente:
Esta gran ciudad est� fundada en esta laguna salada, y desde la tierra firme hasta el cuerpo de la dicha ciudad, por cualquiera parte que quisieren entrar a ella, hay dos leguas. Tiene cuatro entradas, todas de calzada hecha a mano, tan ancha como dos lanzas jinetas. Es tan grande la ciudad como Sevilla y C�rdoba. Son las calles de ella, digo las principales, muy anchas y muy derechas, y algunas de �stas y todas las dem�s son la mitad de tierra y por la otra mitad es agua, por la cual andan en sus canoas, y todas las calles de trecho a trecho est�n abiertas por do atraviesa el agua de las unas a las otras, y en todas estas aberturas, que algunas son muy anchas, hay sus puentes de muy anchas y muy grandes vigas, juntas y recias y bien labradas, y tales, que por muchas de ellas pueden pasar diez de a caballo juntos a la par. (…) nos sali� a recibir aquel se�or Moctezuma con hasta doscientos se�ores, todos descalzos y vestidos de otra librea o manera de ropa asimismo bien rica a su uso, y m�s que la de los otros, y ven�an en dos procesiones muy arrimados a las paredes de la calle, que es muy ancha y muy hermosa y derecha, que de un cabo se parece el otro y tiene dos tercios de legua, y de la una parte y de la otra muy buenas y grandes casas, as� de aposentamientos como de mezquitas, y el dicho Moctezuma (…) el otro era su hermano del dicho Moctezuma, se�or de aquella ciudad de Ixtapalapa de donde yo aquel d�a hab�a partido,(...) Y all� me prepuso de esta manera: “Muchos d�as ha que por vuestras escrituras tenemos de nuestros antepasados noticia que yo ni todos los que habitamos no somos naturales de ella sino extranjeros, y venidos a ella de partes muy extra�as (...) y as� volvi�; y siempre hemos sabido que los que de �l descienden hab�an de venir a sojuzgar esta tierra y a nosotros sus vasallos; y vos dec�s que ven�s do sale el sol (...) Y pues est�is en vuestra naturaleza y en vuestra casa, holgad y descansad del trabajo del camino y guerras ” (...) Porque para dar cuenta, muy poderoso se�or, a vuestra real excelencia, de la grandeza, extra�as y maravillosas cosas de esta gran ciudad del se�or�o y servicio de este Moctezuma. (Segunda carta-relaci�n de Hern�n Cort�s al Emperador Carlos V –Segura de la Frontera 30 de octubre de 1520: CR. HC, 16).
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As Cartas de Hern�n Cort�s e os escritos de Gomara e Bernal D�az relatam a
queda de Quetzalc�atl. No intertexto com o romance, o tempo que o her�i europeu,
o Peregrino–Cort�s e seu duplo Quetzalc�atl-Serpente emplumada, permanece na
cidade asteca, assim como a sua queda repete as raz�es dadas no texto da lenda
original do deus-cultural asteca, s� que no lugar de ser Tezcatlipoca o enganador de
Quetzalc�atl, a armadilha � preparada pela Senhora das mariposas, quando em sua
terceira apari��o oferece um elixir ao her�i. Desta vez, a figura da Celestina aparece
transfigurada como uma anci� bruxa. A �ltima Celestina, totalmente integrada ao
Mundo Novo, caracteriza a mem�ria circular, o transcurso dos anos � vivenciado em
ciclos, Celestina-bruxa est� no fim desse ciclo e a espera de outro semelhante.
Em seu �ltimo encontro com o jovem, lamenta: “que pena, desta vez n�o
coincidiram nossos tempos, passou tanto tempo desde que te conheci, por�m t�o
pouco para ti, espera, um dia se cumprir� meu ciclo, voltarei a ser a mo�a da selva,
voltaremos a nos encontrar, em algum lugar” (p.472). Para que se complete a
realiza��o da lenda, a queda do her�i � inevit�vel, mas no lugar do incesto de
Quetzalc�atl, com o Peregrino a transgress�o sexual se manifesta mediante a
rela��o com a anci�. Na verdade, esse encontro com a Senhora das mariposas �
um feiti�o preparado pelo invejoso deus-mago-Tezcatlipoca para provocar a queda
do her�i.
Brilhante aposento: o brilho tinha um centro e esse centro voava, era uma coroa de luzes, uma constela��o de asas luminosas (...) –Senhora, �s tu? Joguei-me sobre seu rega�o, abracei-me � sua cintura, procurei seu rosto: o corpo e o semblante estavam ocultos por panos pretos; peguei em suas m�os: luvas de couro preto as cobriam e em cada m�o tinha um c�lice. Disse-me: - Bebe, jurei-te que voltar�amos a nos encontrar e que teu prazer seria redobrado. Venceste todas as tenta��es e todos os obst�culos. Chegaste ao topo do poder. Anda, bebe. (...). Bebi o conte�do do c�lice, o atirei de lado, afundei a cabe�a no rega�o de minha amante reencontrada, pensei que meus sentidos me fugiam, sequestrados pelo licor e que meu olhar, minha carne toda, minhas m�os e meus joelhos, meus ossos todos se tornavam l�quidos (...). Voltaste a me encontrar. Por�m n�o sou a mesma (...). Fui a jovem tentadora, amante de meu pr�prio irm�o, que entre meus bra�os se perdeu e perdeu seu reino de paz; fui a deusa do fogo e do incerto, que conheceste na selva; na maturidade fui a sacerdotisa que absolve os pecados e as imund�cies, os devora e assim eles deixam de existir; agora sou somente a bruxa, a anci� destruidora dos jovens, a invejosa: preciso sentar-me sobre o cad�ver de um homem jovem; esse � meu trono...tu. (...) acabei de tirar as roupas da velha
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putrefata, fechei os olhos, disse comigo mesmo n�o importa, est�s b�bado, que import�ncia tem, a podes possuir, fecha os olhos, imagina a mo�a da seva (...) n�o fa�as compara��es, ama, ama, ama, ama... (...) era � noite, olhei as tochas, olhei meu duplo escuro, apoiado na muleta. Eles me olhavam. (TN, p.472).
Na sequ�ncia, a intertextualidade expl�cita se manifesta na figura do
Peregrino-Quetzalc�atl acusado pelo pr�ncipe manco Moctezuma-Tezcatlipoca por
embriaguez e incesto. As palavras pronunciadas pelo acusador repetem a vers�o do
mito de Quetzalc�atl proposta por Carlos Fuentes no ensaio El espejo enterrado
(1992, p.54): “Vejam; olhem o jovem senhor do amor e da paz; vejam o criador dos
homens; vejam o educador manso e caritativo; vejam o inimigo do sacrif�cio e da
guerra; vejam o criador ca�do; vejam a sua vergonha nua e �bria; olhem-no �brio,
recostado na pr�pria irm�” (p. 473).
Como no mito de Topiltzin Quetzalc�atl, depois da transgress�o, sucede-se a
fuga do her�i. Na sua marcha, o Peregrino se det�m uns instantes na grande pra�a
de Tlatelolco, onde se reencontra com o anci�o das mem�rias, os jovens poetas e o
povo da cidade, no epis�dio O dia da fuga (p.480).
Caminhava fugindo pela cal�ada que une a ilhota maior do M�xico com a ilhota menor de Tlatelolco, quando vi avan�ar em minha dire��o um grupo de jovens despidos e neles reconheci os dez mo�os e as dez mo�as que me acompanharam fora do vulc�o e que falavam nossa l�ngua; correram para mim, com alegria em suas vozes e olhares; e foi esta a primeira coisa alegre que vi depois de muito tempo (...). A aurora era uma p�rola no c�u. � no centro da imensa pra�a estava colocado um cesto de vime. (...). Era o anci�o das mem�rias, o mesmo velho guardi�o das f�bulas mais antigas, que um dia me falou de uma �mida c�mara na pir�mide da selva (...). Como ent�o me disse, mas falando em nossa l�ngua castelhana: - S� bem-vindo, meu irm�o. Estamos te esperando. (...) dava-me as boas-vindas no dia da minha fuga: o �ltimo dia da minha vida no mundo novo, ao cabo de cinco dias da mem�ria que ele mesmo, agora tinha certeza disso, me havia outorgado como dom excepcional (...) fez um sinal no sentido de uma das entradas da Pra�a de Tlatelolco. Sempre fracassar�s. Sempre voltar�s. Tornar�s a fracassar. N�o te deixar�s vencer. – Senhor: est�s falando de uma fatalidade sem fim, circular e eterna? Nunca ser� resolvida? (...). Ent�o o anci�o da mem�ria tomou com for�a meu pulso e aproximou o meu rosto do seu e suas palavras eram como ar lavrado, ar escrito: Falam; e todo o poder do Senhor da Grande Voz n�o pode impedi-lo. Deste a palavra a todos, irm�o. E, por medo da palavra de todos, teu inimigo se sentir� sempre amea�ado. Ele mesmo prisioneiro. Encerrado em seu pal�cio. Imaginando que n�o h� outra voz sen�o a tua. Senhor da
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Grande voz! Ouve as vozes de todos nesta pra�a. Sabe-te mais derrotado que todas as tuas v�timas. (...). Somos tr�s, seremos sempre tr�s. A vida. A morte. E a mem�ria que as re�ne em uma flor de tr�s p�talas. (...). O presente nunca deixou de ser passado e j� est� sendo futuro. Ent�o nos reuniremos como te prometi, com nossa m�e, a terra. Seremos um com ela e suportaremos todas as batalhas da hist�ria, a vit�ria de tua derrota e a derrota dos vitoriosos.
(TN, p.482).
O relato do Peregrino segue o padr�o arqu�tipo em sete etapas das narrativas
sobre Topiltzin Quetzalc�atl: o nascimento, a juventude, a entroniza��o, o apogeu, a
queda, a fuga e a morte-desapari��o. A marcha do Peregrino segue livremente a
descri��o de Sahag�n sobre a fuga de Quetzalc�atl. Nesse mesmo padr�o, a
primeira etapa se inicia com o despertar do Peregrino em O Mundo Novo simula um
nascimento, pois a personagem desconhece a sua pr�pria origem. A segunda etapa
da juventude, a inicia��o e a maturidade se produzem na companhia do povo da
floresta, com o qual apreende a partilhar dos mesmos costumes e forma de vida da
cultura mesoamericana. A terceira, que corresponde � entroniza��o, ocorre quando
ocupa o lugar do anci�o guardi�o da mem�ria depois que este morre.
As outras etapas se sucedem livremente, o apogeu do jovem se realiza uma
vez superadas as sete provas e culminam com seu descenso ao inframundo,
quando, num ato de amor e de sacrif�cio, cria uma nova humanidade representada
nos vinte jovens mesti�os que o seguem a partir desse ato. A posterior marcha
triunfal do Peregrino sobre Tenochtitl�n � o auge da entroniza��o. Finalmente, a
representa��o da queda do Peregrino se produz da mesma forma que com
Quetzalc�atl, como resultado dos feiti�os de Tezcatlipoca; e ap�s a queda, o
Peregrino foge. Mas, embora os elementos b�sicos como “dirige-se rumo ao sol
numa barca de serpentes” coincidam com a vers�o do Códice Florentino, difere nos
detalhes. Os vinte jovens mesti�os criados pelo Peregrino o despedem desde a
margem.
O Peregrino se afasta e tr�s dele a lagoa se transforma em salitrosa e est�ril e
ele no fim � tragado pela “grande serpente de p� e �gua da lagoa mexicana” (p.492).
A �ltima etapa do percurso do Peregrino consiste na sua desapari��o no mar, rumo
ao sol sob o signo de V�nus. “E V�nus brilha at� o final da sua viagem” (p.493).
200
Novamente estes jovens nascidos do meu abra�o falaram como se me adivinhassem, como se fossem eu mesmo multiplicado, cruzado, mesclado com tudo quanto vi e toquei. Esta humanidade aqui ereta, nua, sobre a cal�ada e junto da lagoa, falou com suas m�ltiplas vozes. – A terra deu a vida (...). Abra�aram-me. Beijaram-me. Subi na barca. (...). Senhor: soube que a verdade era outra, que minha embarca��o e eu, com um movimento indescrit�vel, nos mov�amos em todas as dire��es, capturados dentro de um enorme rio subterr�neo, ou sulcando uma imensa terra submarina. (...) vendo como emergiam todas as coisas ocultas da terra, como come�avam a germinar as plantas, a correr os rios e se acoplar as bestas, a nascer os homens e, acima de tudo, V�nus brilhava a meu alcance. (...) cai do mastro, cai de costas, olhando o fogo na ponta do pau, a estrela fugitiva, a noite restaurada, o c�u l� acima, um s� lugar e n�o mais todos, um s� tempo e n�o mais todos, cai, regressei.... Fui despertado, Senhor, pelos l�bios tatuados de uma mulher vestida de pajem. Eu jazia de bru�os sobre a praia, com os bra�os abertos em cruz (TN, p.492-494).
Na primeira parte do tr�ptico, as cenas do Velho Mundo apresentam Polo-Febo
confuso, a fuma�a o cercava, vivendo num mundo estranho do futuro (1999), sem
identidade pr�pria, Polo mutilado, Polo emparedado, Polo trivial, Polo enigm�tico,
Polo peregrino, Polo aleijado, Polo apocal�ptico, Polo duplo, Polo antrop�logo -“Eu
sou s�, e apenas sou um pobre inv�lido que ganho a vida como homem-sandu�che
de um caf� de bairro, n�o tenho outro emprego sen�o este humilde e satisfat�rio,
juro-lhes que n�o tenho outro destino”. Foi batizado dessa maneira por um “velho
louco que nunca aceitou um passado que n�o alimentasse o presente ou um
presente que n�o compreendesse o passado” (p.27).
Seu nome P�lo Febo-Peregrino re�ne caracter�sticas m�ticas e hist�ricas. O
Peregrino representa um hispano-americano confuso que desconhece identidade.
Estimulado por uma personagem liter�ria, Celestina, perambula por entre suas
transfigura��es e busca, no passado da Hist�ria da Espanha, a p�tria m�e, as
raz�es da sua atual situa��o. Inicia suas aventuras em busca de suas ra�zes na
Espanha porque, para Carlos Fuentes, “por meio dos iberos, as Am�ricas receberam
a tradi��o mediterr�nea” (1992, 12).
A segunda parte do romance, revela as imagens duplas da personagem:
Peregrino-Polo Febo; Peregrino-Hern�n Cort�s; Peregrino-Serpente emplumada;
Peregrino-Espelho fumegante; Quetzalc�atl-Peregrino;Tezcatlipoca-Peregrino.
Finalmente, o Peregrino regressa � corte do Senhor, seu lugar de origem. Polo Febo
201
reconhece sua identidade de jovem latino-americano adquirida no Mundo Novo e no
final, com a descri��o da fuga do Peregrino e as refer�ncias a V�nus como
manifesta��o de Quetzalc�atl, h� uma volta ao dom�nio do intertexto m�tico que
havia desencadeado a narrativa inicial.
A alteridade representa um mito sempre que o ser humano se defronta com o
pr�prio destino, como se pode verificar na luta de Quetzalc�atl-Peregrino com
Tezcatlipoca-Peregrino para conseguir seguir seu destino. Diz Paul Ricoeur sobre a
identidade em O si mesmo como um outro (1991) que o termo id�ntico
corresponde a idem e ipse latinos, duas formas que sugerem a teoria de duas
identidades diferentes. A identidade do idem � a mesmidade e a identidade do ipse �
a ipseseidade que corresponderia �s duas perguntas fundamentais do quem sou
eu? O que sou eu? O si mesmo serve para marcar a identidade de uma pessoa em
rela��o �s demais, transmite a ideia de igualdade, identidade absoluta, similitude e
simultaneidade, significa��es que, por sua vez, podem ser atribu�das � palavra
id�ntica num quadro comparativo de distinguir ou opor um ser a outro, o alter latino.
Maria Zaira Turchi esclarece esses conceitos em Literatura e antropologia do
imaginário e explica que a alteridade designa esse outro ser distinto do si mesmo,
�s vezes, em contraposi��o a ele, significando exatamente o oposto.
O mitema da alteridade, ou mitema da sombra inevit�vel, companheira da luz, na afirma��o de Gilbert Durand (1992, p.275), representa “em primeiro lugar, o mitema da dualidade que se encontra nos mitos cl�ssicos” (...). Tais cl�ssicos recordam a revolta dos homens contra os deuses, testemunham, de certo modo, o momento de uma transgress�o dos limites do ser humano, da� o castigo, simbolizado por um corte abrupto. De Prometeu a Ad�o, o homem inicialmente uno, em estado de perfei��o, ao se revoltar, � castigado transformando-se em homem partido, imperfeito em rela��o ao homem original. A origem do duplo desencadeia a responsabilidade que o homem passa a ter do seu pr�prio destino na tentativa de equilibrar e reunificar as partes separadas, em constante conflito dos opostos: corpo-esp�rito, bem-mal, vida-morte. O mito do duplo, antigo quanto a humanidade e ainda produtivo no s�culo XX, expressa a ang�stia do homem que se sente partido e luta para recompor sua unidade no decorrer de sua exist�ncia (2003. p.212).
No in�cio do romance durante um sonho, Polo Febo-Peregrino viaja ao Mundo
Novo como dupla deidade da cultura asteca, um � bondoso: a Serpente Emplumada,
e o outro, a crueldade: Espelho Fumegante, ambos possuem o mesmo rosto. No
202
transcurso da luta por obter sua identidade, o Peregrino se identifica finalmente com
a Serpente Emplumada, deus da paz e da vida.
Ao falar de nós mesmos, dispomos de fato de dois modelos de permanência no tempo, que resumo por dois termos ao mesmo tempo descritivos e emblemáticos: o caráter e a palavra considerada, num e outra, reconhecemos de bom grado uma permanência que dissemos ser de nós mesmos. Minha hipótese é que a polaridade desses dois modelos de permanência da pessoa resulta de que a polaridade de caráter exprime a ação de recobrir quase completamente uma pela outra da problemática di idem e do ipse, enquanto que a fidelidade a si na manutenção da palavra dada marca o afastamento extremo entre a permanência do si e a do mesmo e, portanto, atesta plenamente a irredutibilidade das duas problemáticas uma à outra (1995, p.143).
Por meio do seu sonho, o Peregrino vive suas aventuras no universo da cultura
mexica, luta contra sua dupla imagem de maldade e bondade, finalmente se torna
um em si mesmo, recuperando sua identidade com o amor e a ternura. Esse projeto
realizado no sonho é o aspiração da recriação do mito indígena sobre a luta da
dupla deidade. A Serpente Emplumada vence o Espelho Fumegante e o Peregrino
alcança a imagem do deus da paz e da vida, como figura do homem mítico. O
peregrino percebe O Mundo Novo desde a perspectiva do europeu, surge ante ele
um mundo do medo, de sacrifícios humanos, onde domina o poder autoritário da
hierarquia cosmogônica asteca, um mundo onde tudo depende da sorte ou da
decisão do instante, num espaço em que vida e morte se equivalem.
O mito auxilia a compreensão dos relatos das viagens que se constituíram no
entremeio da história e da literatura. No decurso da narrativa de O Mundo Novo
percebe-se que o imaginário estabelece uma relação íntima entre a história e a
literatura. A partir desse entendimento, os relatos da viagem e dos discursos do
Peregrino revelam o momento sociohistórico em que esses relatos se constituíram,
no tempo em que ainda o homem sonhava com o Paraíso original.
O tempo da América é o tempo da Utopia: fomos fundados pela imaginação renascentista de uma Idade de Ouro em outra parte: no Novo Mundo, no Paraíso original. A força desse mito é que é compartido. Todas as cosmogonias indígenas evocam uma idade feliz, coincidente com o momento da fundação. O Popol Vuh distingue claramente entre um ato de criação incompleto, anterior à palavra primeiro, o homem, em seguida, a fim de que este habite a
203
terra e louve os deuses: ”Fazei, pois que haja germina��o, que haja alvorada, que sejamos invocados, que sejamos adorados... pelo homem formado...”. Com a maior simplicidade, o Livro do Conselhomaya continua a cantar o milagre da idade de ouro: “... os homens se produziram, os homens falaram; existiu a humanidade na superf�cie da terra. Viveram, se procriaram, fizeram filhos, fizeram filhas...”.
(1992, p.161).
Carlos Fuentes constr�i um mito que alimentado por todos os outros
transcende a cosmogonia do mundo greco-latino e a heran�a judeu-crist�, ao
teocentrismo medieval e a ci�ncia-magia renascentista; constr�i o processo hist�rico
do Imp�rio Espanhol e os s�mbolos da realidade da Am�rica, o conceito de passado,
presente e futuro; o sonho e a poss�vel realidade escatol�gica; o vazio e o horror, a
morte e, num ato milagroso, surge novamente a vida e, com ela, a iminente
altern�ncia do mito da hist�ria em constante transforma��o.
204
TERCEIRA PARTE
Aquí lo has escuchado todo: cuanto sucedió antes de tu llegada y después de ella, desde el primer crimen de Felipe hasta el último. Te digo, iluso de mí, que te cuento la historia para que la escribas y así quizás, la historia no se repita. Mas la historia se repite: he allí la comedia y el crimen de la historia. Nada aprenden los hombres. Cambian los tiempos, cambian los escenarios, cambian los nombres: las pasiones son las mismas. Sin embargo, el enigma de la historia que te he contado es que, repitiéndose, no se concluye: mira cuantas facetas de este hadit, de esta novela, a pesar de su apariencia de conclusión, han quedado como en suspenso, latentes, acaso, otro tiempo para reaparecer, otro espacio para germinar, otra oportunidad para manifestarse, otros nombres para nombrarse.
Terra Nostra
205
III
A ESFERA DAS POSSIBILIDADES EM O OUTRO MUNDO
Toda descoberta � um desejo, e todo desejo, uma necessidade. Inventamos o que descobrimos; descobrimos o que imaginamos. Nossa recompensa � o assombro. Pois o descobridor n�o s� quere descobrir a realidade; tamb�m quere descobrir a fantasia. (…) Recompor o rosto do primeiro homem, o rosto feliz, � a miss�o da viagem � Utopia: Am�rica aparece primeiro como a Utopia que lavar� a Europa de seus pecados hist�ricos. Mas, em seguida, Utopia � destru�da pelos mesmos que viajam em sua busca. A inven��o da Am�rica � a inven��o da utopia: A Europa deseja uma utopia, a nomeia e a encontra para, no fim, a destruir.
Valiente mundo nuevo, 1992, p.17.
.
Todos os relatos que surgem na terceira parte da trilogia solucionam os
enigmas apresentados nas duas primeiras partes do romance. A primeira parte, O
Velho Mundo, se constitui pela velha Espanha autorit�ria, f�nebre e dogm�tica
representada na figura do Senhor, que passa por tr�s etapas de sua vida: como o
jovem pr�ncipe herdeiro Felipe, como o rei maduro defensor das tradi��es e como o
velho rei doente, enfraquecido e encerrado no Pal�cio edif�cio de El Escorial.
O jovem pr�ncipe conhece quatro sonhadores: Celestina, Sim�n, Ludovico e
Pedro. Eles almejam um mundo diferente, novo e sem sofrimentos. Para Felipe
apenas existe o mundo presente e imut�vel, como o dos sonhadores � uma utopia
perigosa, ele se vale da sua ast�cia para frustrar os sonhos daqueles que amea�am
seu mundo cristalizado pela tradi��o. O jovem pr�ncipe se une aos milenaristas, que
o seguem confiantes, eles est�o convencidos de que o mundo ideal � aqui e agora.
Felipe os conduz at� a masmorra do Alc�zar e os entrega aos verdugos, nessa
ocasi�o comete seu primeiro crime rejeitando a primeira possibilidade de mudar o
mundo e perde a oportunidade de mudar seu pr�prio destino.
206
Ap�s herdar o trono, j� maduro, se casa com Isabel. Torna-se um enfurecido
defensor das tradi��es da monarquia espanhola; luta contra os hereges milenaristas
de Flandes, dirigidos por Ludovico. Ap�s a vit�ria contra os comuneros, manda
construir o edif�cio do Pal�cio de El Escorial, para nele encerrar seu mundo e evitar
as mudan�as do mundo renascentista. No Outro Mundo, aparece no ocaso da sua
vida, velho e enfraquecido.
Em Dorme o Senhor (p.143), um pesadelo evidencia essas caracter�sticas.
Durante o sono v� seu pr�prio rosto no passado, no presente e no futuro. No
passado, as pupilas de seus olhos refletem sua crueldade e ternura de adolescente,
em seu rosto est� estampada a imagem cruel do genoc�dio contra os comuneros. No
presente, se percebe como prisioneiro do Pal�cio, encarcerado entre as rochas
soltas e intranspon�veis; e no futuro, se reconhece como um velho de cera trajado de
preto, apodrecendo estendido ao sol sobre um penhasco. A tr�plice ora��o de “vida
breve, gl�ria eterna, mundo im�vel” que acompanha o Senhor no seu terceiro sonho,
Vida breve (p.154), manifesta seus desejos neste mundo, mas ao subir os trinta e
tr�s degraus, volta a ver sua pr�pria imagem refletida no espelho de m�o, desde a
sua juventude at� seu futuro pr�ximo transformado em lobo.
Carlos Fuentes comenta em El espejo enterrado que essa � a imagem da
Espanha vista pelos espanh�is, os tr�s rostos representam a Espanha num passado
duplo de crueldade-ternura; o presente decadente de uma na��o velha e debilitada
do fim da Idade de Ouro, e um futuro marcado pelo autoritarismo encarnado e
transformado na m�o forte do ditador Francisco Franco, o lobo no Valle de los
Ca�dos.
E � t�o contradit�ria como a rela��o da Espanha com ela mesma: irresoluta, �s vezes mascarada, �s vezes totalmente intolerante, manique�sta, d�vida entre o bem e o mal absolutos. Um mundo de sol e de sombra, como na pra�a de touros. Frequentemente, a Espanha se percebe a si mesma como nos a percebemos. A medida do nosso �dio � id�ntica � medida do nosso amor, mas n�o estas sen�o formas de nomear a paix�o? (1992, p.17).
A terceira parte de Terra Nostra apresenta personagens da literatura
espanhola interagindo com figuras da historiografia. Essas figuras surgem nos
grandes blocos temporais fragmentados ao longo do romance permeados pela
207
liberdade ficcional do escritor mexicano. Na primeira parte da obra, O Velho Mundo,
o rei Felipe II se transforma em personagem hist�rico-ficcional, o Senhor. J� o
Peregrino da segunda parte, O mundo Novo, em personagem m�tico-hist�rico. Em O
Outro Mundo, as personagens liter�rias Celestina, Don Juan e Don Quijote saem de
suas obras originais e aparecem como personagens da trama liter�ria de Terra
Nostra, para desvendar o porqu� dos recortes liter�rios e para fazer uma reflex�o
sobre as apropria��es de seus aspectos socioest�ticos e sobre suas implica��es na
tem�tica da obra.
A literatura de Carlos Fuentes dialoga com as obras liter�rias de outros autores
para compor a sua vis�o cr�tica da realidade; impl�cita e explicitamente em Terra
Nostra, constr�i recortes hist�rico-liter�rios que alcan�am a verossimilhan�a e a
coer�ncia interna no romance. A perspectiva simb�lica dos recortes se ancora na
discuss�o sobre a sucess�o dos poderes e as suas consequentes arbitrariedades,
percebidas como a chave que permite interpretar as origens do pensamento ib�rico,
determinantes para compreender o processo da conquista e da coloniza��o dos
povos americanos.
A obra discute a sintonia entre as formas do poder centralizador dos povos
mesoamericanos, “os guardas do Senhor da grande voz ca�ram sobre mim; com
empurr�es e coices me derrubaram e me arrastaram para longe” (p.474) e o poder
hegem�nico da Espanha dos �ustria, “pois em que se fundamenta um governo a
n�o ser na unidade do poder, e tal poder unit�rio, em que se funda sen�o no
privil�gio de possuir o texto �nico, escrito, norma imut�vel que supera e se imp�e �
confusa prolifera��o do h�bito?” (p.194). Surge nessa discuss�o um elo comum
entre as formas absolutistas dominantes, que segundo Carlos Fuentes, embora se
trate de universos culturais t�o diferentes, violentam a liberdade ao negar qualquer
diverg�ncia de ideia.
Existe um Novo Mundo, do outro lado do mar, n�o, n�o, n�o e n�o (...) a Espanha cabe na Espanha, nem mais uma polegada de terra,tudo aqui, tudo dentro do meu Pal�cio (...) tudo quanto existe namat�ria e na alma do mundo j� est� contido neste meu Pal�cio, a raz�o de minha vida, a duplica��o de tudo quanto existe, encerrado aqui, comigo, para sempre, eu o �ltimo, eu, aqui neste espa�o, aqui ao alcance da minha m�o, tudo, tudo, tudo, n�o em uma extens�o sem limites, inating�vel, multiplicada, o mundo me escapa das m�os, vida breve, gl�ria eterna, mundo im�vel, aqui, n�o me cabe uma ideia
208
a mais, um terror a mais, uma alegria a mais, um desafio a mais, aqui tudo cercado pelos muros do meu mausol�u, aqui o luxo, aqui o luto, aqui a guerra da alma, a arte de frei Juli�n, a ci�ncia de frei Tor�bio, o poder de Guzm�n, a honra da minha m�e, a pervers�o, o brinquedo e o prazer, a Senhora (...) tudo aqui at� o final, at� que consumindo-os nos consumamos e meu pr�prio projeto se cumpra: seremos os �nicos e os �ltimos, teremos conhecido e possu�do tudo, tudo ser� compreens�vel (...) tudo quanto existe e existe pela �ltima vez, para culminar aqui, comigo, conosco, n�o no vasto e espantoso acaso de um Novo Mundo onde tudo possa come�ar de novo, n�o, n�o, n�o e n�o (TN, p.499).
As refer�ncias ao discurso un�voco do rei Felipe II surgem como propostas
constantes do universo absolutista. Pelas atitudes e pelas palavras do Senhor
percebe-se a ambi��o de eternizar pela for�a essa forma de poder. Como elemento
de oposi��o a este, surgem as seitas dos adamitas ou alumbrados que resgatam o
aspecto questionador das heresias, “como para a Hist�ria lineal, essa subvers�o
insere questionamentos e diverg�ncias relegados a planos menos importantes,
acabam ocupando a periferia” (1992, p.131). Terra Nostra retoma esses planos
menos importantes pela constru��o de uma perspectiva plural e simult�nea da
narrativa de Carlos Fuentes, que se mostra atento aos momentos de conflito e de
cr�tica disseminados ao longo da Hist�ria.
O elemento que mais claramente se op�e ao universo un�voco e intolerante do
Senhor � a tradi��o de conviv�ncia �tnico-cultural entre crist�os, judeus e
mu�ulmanos, formadora da Espanha tricultural. Para Carlos Fuentes, essa
coexist�ncia se aborta primeiro no reinado de Don Fernando de Arag�n e Isabel La
Cat�lica por ocasi�o da expuls�o dos judeus. A persegui��o se estende ao grupo
dos conversos no reinado de Felipe II e culmina com a expuls�o dos mouros, por
decreto de Felipe III. Carlos Fuentes segue a corrente filos�fica do pensador
espanhol Am�rico de Castro que, em sua obra Espanha e sua história, discute e
discorda da concep��o tradicional de cultura que a divide em superior ou inferior.
Passemos agora ao confronto de civiliza��es (...). O Ocidente (...) foi curioso em rela��o a outras civiliza��es. Muitas vezes as liquidou com desprezo: os gregos chamavam de b�rbaros (...) aos que n�o falavam sua l�ngua. O par�metro de toler�ncia da diferen�a � certamente um dos mais fortes e menos discut�veis, e n�s julgamos madura a nossa cultura porque ela sabe tolerar a diferen�a e julgamos b�rbaros aqueles que pertencem � nossa e n�o a toleram.
(1982, p.134-136).
209
Em Cervantes o la crítica de la lectura, comenta que para Am�rico de Castro,
um dos elementos mais valiosos na g�nese da Espanha tricultural reside no aporte
das duas comunidades desterradas. O autor prop�e uma vis�o global da hist�ria que
permita explicar os acontecimentos pol�ticos mais relevantes na gesta��o da cultura
espanhola durante a Idade M�dia e o Renascimento.
A influ�ncia �rabe se manifesta principalmente na renova��o das ci�ncias, da filosofia, da m�sica e da literatura, assim como na introdu��o da concep��o sensual da arte, ausente na Espanha austera e sombria da Idade M�dia. O aporte da comunidade judia se percebe claramente na vida intelectual do pa�s, quando a l�ngua castelhana se firmou como veiculo de comunica��o intelectual,adquirindo dignidade liter�ria (1976, p.44).
Na vis�o de Am�rico de Castro, a cultura do povo espanhol est� basicamente
formada pelo elemento crist�o-visigodo, judeu e mu�ulmano. O projeto do autor
espanhol surge como rea��o contra a historiografia positivista. No pr�logo intitulado
Seamos señores y no siervos de nuestra historia (xi), A realidade histórica da
Espanha (1966), rejeita essa modalidade de escrita da hist�ria, e afirma, “Faz
muitos anos que discordo com a ideia que caracteriza os espanh�is como simples
objetos biol�gicos ou ps�quicos, e n�o como uma unidade coletiva de vida humana,
existente num tempo, num espa�o e com clareza de consci�ncia da sua dimens�o
social”. Esse mote tamb�m resume o projeto historiogr�fico de Carlos Fuentes.
A amea�a contra a ortodoxia monol�tica se remonta � Idade M�dia, como
express�o dos movimentos milenaristas e das heresias, que etimologicamente
significa tomar para si. As heresias representam para Carlos Fuentes a subvers�o
dos fundamentos do dogma unit�rio. Ao apresentar suas m�ltiplas vers�es,
caracteriza seu conceito da “utopia liter�ria que contempla todas as coisas desde
todos os pontos de vista poss�veis” (1976 p.22-23). As figuras milenaristas de Terra
Nostra, flagelantes e adamitas, denunciam os erros da ortodoxia do Senhor e
anunciam as mudan�as que as revolu��es cient�ficas trariam para todos.
Outra amea�a para a ortodoxia monol�tica do Senhor corresponde a outro dos
movimentos opositores evocados por Carlos Fuentes no romance: a revolta dos
comuneros referente � guerra civil das Comunidades de Castela. Para ele, esse
210
fen�meno hist�rico pode ser considerado como uma das primeiras revolu��es
modernas. O historiador Francisco Ugarte descreve o movimento em Panorama da
civilización española (1996, p.57).
As institui��es de Castela se encontravam durante o s�culo XVI em um processo de desenvolvimento pol�tico que poderia ter criado organismos democr�ticos aut�nomos do poder central. “Naquelas primeiras forma��es do Estado moderno ocidental encontravam-se embrionariamente presentes na Espanha medieval, at� o ponto de que a Espanha se teria antecipado ao resto da Europa na configura��o dessa forma pol�tica. (Ugarte, 1996, p.57).
O historiador espanhol Jos� Antonio Marawall, em sua obra Carlos V y el
pensamiento político del Renacimiento (1996), comenta que a guerra civil das
Comunidades de Castela � um fen�meno hist�rico que pode ser considerado como
uma das primeiras revolu��es modernas. “As institui��es de Castela se encontram
durante o s�culo XVI num processo de desenvolvimento pol�tico que poderia ter
culminado na cria��o de organismos democr�ticos aut�nomos do poder central”.
Marawall sugere que as primeiras forma��es do Estado moderno ocidental se
encontravam embrionariamente presentes na Espanha medieval, “ao ponto de que a
Espanha se antecipa ao resto da Europa na configura��o desta forma pol�tica”
(p.17). No in�cio do reinado de Carlos V, a pol�tica do novo rei dirigida �
centraliza��o crescente e � concentra��o do poder em torno do monarca absoluto,
somada a presen�a de representantes reais nas Comunidades acende a rebeli�o.
As cidades de Castela consideram suas liberdades civis e institucionais locais
amea�adas e, no ano de 1519, se revoltam contra o rei. S�o derrotados em Villalar
em 1521.
Para Carlos Fuentes (1976), “O fato significou um duro golpe contra as
tentativas de moderniza��o do pa�s” (p,59). Esse epis�dio interessa pelas
repercuss�es na hist�ria hispano-americana, pois no mesmo ano acontecia a
Conquista do M�xico, 1521. Isso “sup�s o triunfo da m�quina autorit�ria do Imp�rio
Espanhol e a frustra��o de qualquer esperan�a democr�tica para Hispano-Am�rica”,
al�m de que “a derrota das Comunidades em Villalar afian�ou o absolutismo e o
centralismo na Pen�nsula Ib�rica, isso teve uma import�ncia fundamental para o
futuro pol�tico do Novo Mundo” (p.59,60).
211
Nos textos recopilados pelo historiador Jos� Antonio Marawall (1996) consta
um documento atribu�do aos rebeldes comuneros. H� um manifesto que exp�e seus
motivos e o pedido de apoio �s outras popula��es de Castela; um relato sobre a
repress�o exercida por parte das tropas realistas e a descri��o dos detalhes da
derrota dos rebeldes em Villalar. Dentre os textos que ap�iam a tese sobre as
aspira��es democr�ticas do movimento comunero, o do levante das Comunidades
de Castilla (p.192, 193) dialoga diretamente com Terra Nostra e inicia o discurso
dos subversivos no epis�dio A rebelião (p. 633), “Mui magn�ficos senhores: Os
neg�cios do reino v�o dia a dia piorando e nossos inimigos v�o-se apercebendo
disto. Neste caso ser� nosso parecer que com toda a brevidade se ponham todos
em armas. Um para castigar os tiranos; o outro, para que estejamos seguros”. O
di�logo com a obra de Marawall permite que os elementos fict�cios penetrem o
documento hist�rico.
O processo de involu��o pol�tica que Carlos Fuentes percebe no processo de
repress�o das Comunidades n�o sup�s uma involu��o cultural. Afirma que se a
Idade M�dia se caracterizou pela normatividade e pela escrita de leituras �nicas
consagradas pela �pica, o Renascimento sup�s a grande expans�o do
conhecimento, do dom�nio da ambiguidade, do paradoxo e da polissemia (1976,
p.26). O Renascimento � a idade da utopia em que se revive o mito de uma
sociedade perfeita, na qual os interesses da comunidade se sobrep�em aos do
poder. O desenvolvimento dessa consci�ncia ut�pica, explica, se produziu
paralelamente ao descobrimento do Novo Mundo, “De modo que, embora a palavra
utopia signifique o ‘n�o lugar’, rapidamente come�ou a se associar com o novo
continente” (1992, p.124). Esses elementos desenvolvem em Terra Nostra um
grupo consistente de movimentos opostos � vis�o de mundo representada pelo
Senhor. Em todos os casos, h� um padr�o recorrente que tenta explicar as
dificuldades do desenvolvimento do pensamento moderno tanto na Espanha como
na Am�rica.
� Espanha multicultural se lhe apresenta o elemento heterodoxo munido do seu potencial modernizador. A transgress�o das heresias � reprimida pela m�quina do poder representada pela figura do Senhor. Em rela��o ao movimento comunero, no romance insinuam-se as consequ�ncias para Latino-Am�rica; e finalmente, a obra sugere a possibilidade de uma segunda oportunidade, em que pela experi�ncia da utopia renascentista se evite a repeti��o dos mesmos
212
erros. Esse fato � de transcendental import�ncia para Carlos Fuentes e para sua obra, j� que implica que Am�rica foi fundada como uma utopia, seu destino permanece, assim, indissoci�vel dos ideais ut�picos (1992, p.9).
A coexist�ncia dos judeus, dos mouros e dos crist�os na Espanha medieval
representa para Carlos Fuentes a materializa��o da utopia cultural. Seguindo as
teorias de Am�rico de Castro, apresenta a personagem de Mijail-Bem-Sama como
s�ntese das tr�s culturas que, durante s�culos, compartilharam vida e pensamento
na Pen�nsula Ib�rica. Frente � pureza do sangue defendida pelo Senhor, Mijail � o
“dono de todos os sangues”, essa afirma��o se repete frequentemente no romance.
Estava escrito. N�o se pode fugir para sempre dos verdugos. Pensava que evitaria suas persegui��es vivendo aqui entre eles e entre eles invis�vel seria. Veja como me enganei. (...) Conquistaram o que � nosso. N�s criamos esta terra, a embelezamos com jardins e mesquitas e claras fontes. Antes nada havia. Ali viv�amos juntas todas as ra�as: olhe meus olhos pretos e minha loira cabeleira. Sou dono de todas as ra�as (...). Como mudar a mistura de sangue do meu corpo? � sangue impuro, de �rabe e de judeu (TN, p.252).
A morte de Mijail-Bem-Sama na fogueira, decretada pelo Senhor, simboliza a
nega��o de todas as possibilidades alcan�adas nos novecentos anos de
coexist�ncia multicultural: a possibilidade de um espa�o comum de toler�ncia, a
cria��o de institui��es democr�ticas e o desenvolvimento de uma energ�tica classe
financeira e mercantil. Essa realidade hist�rica “trar� consequ�ncias importantes
para Hispano-Am�rica, onde a experi�ncia multicultural espanhola germinar� em
experimentos ut�picos que, fatalmente reproduzir� epis�dios de intoler�ncia �tnica,
social e religiosa similares � experi�ncia vivida no Velho Mundo”. A hibridez religiosa
e cultural da Espanha s�o caracter�sticas que est�o enraizadas no povo e a
distinguem das outras na��es europeias, “somente na Espanha se encontraram e
floresceram os tr�s povos do livro: crist�o, judeus e mouros” (1992, p.11).
(...) sua p�tria, Espanha, imp�e outra impossibilidade: a de si mesma, olhe como fecha suas portas, expulsa o judeu, persegue o mouro, esconde-se num mausol�u e dali governa com os homens da morte (...) s� na Espanha se encontraram e floresceram os tr�s povos do Livro: crist�os, mouros e judeus. Ao mutilar essa uni�o, a Espanha se mutilar� e mutilar� todo quanto encontrar em seu caminho (TN, p.568).
213
Os momentos de prosperidade econ�mica e de esplendor cultural surgem e
prosperam nos momentos em que a toler�ncia e a colabora��o m�tua s�o uma
realidade na sociedade espanhola. Durante o reinado de Fernando de Arag�n se
produz o florescimento da cultura e da ind�stria castelhana, “judeus e mouros
aportam � barb�rie goda, arquitetura e m�sica; ind�stria e filosofia; medicina e
poesia e assim prosperam as cidades e se gestam as institui��es da liberdade local”
(1992 9.17).
(...) houve um tempo em que os crist�os mo��rabes viveram na terra mu�ulmana e os mu�ulmanos mud�jares em terra crist�, e se toleravam entre si, e conviviam com judeus, e se diziam os tr�s povos do livro e Fernando rei de Castela proclamava-se rei das tr�s religi�es e mouros e judeus traziam para a barb�rie goda arquitetura e m�sica, ind�stria e filosofia, medicina e poesia (TN, p.635).
Os judeus eram considerados como fundamentais para o sistema econ�mico-
financeiro da �poca, ap�s a expuls�o teriam imigrado para as outras pot�ncias
estrangeiras, as quais arrancaram da Espanha a sua hegemonia imperial europeia.
Segundo Carlos Fuentes, a prosperidade cultural, causada pelo sincretismo
religioso, teria causado o crescimento dos movimentos her�ticos no contexto da
Europa crist� da Idade M�dia consolidado pelo dogma escol�stico. Paralelamente,
surgiriam os movimentos milenaristas que anunciam a Modernidade e a expans�o
do conhecimento que, mais tarde, culminaria no Renascimento (1992, p.88).
Para enfrentar o discurso un�voco do Senhor, Terra Nostra cria diferentes
alternativas que surgem como um ciclo do pensamento her�tico. Nos epis�dios
Vitória (p.52), O primeiro testamento (191), A irmã Catarina (577), Hertogenbosch
(580), O espírito livre (583), A derrota (586) e Sétima jornada (618), surgem os
textos que discutem algumas das posturas her�ticas; paralelamente a esse fato, o
Senhor dita a Guzm�n uma primeira vers�o do seu testamento, no qual h� uma
cl�usula que exige a consigna��o de todos esses escritos. Ao consignar por escrito
o leque de possibilidades aberto pelo pensamento her�tico, a inten��o do Senhor
n�o � a de divulg�-lo, mas sim, exercer um controle absoluto sobre ele.
(...) combatidos e vencidos em terra espanhola pelos long�nquos antecessores do Senhor e que com seu grupo grande de ajudantes e
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relapsos haviam achado um lugar prop�cio de ressurrei��o nestas comarcas, tradicionalmente aptas para o recebimento e oculta��o dos hereges (...). O Senhor entendia as palavras de seu antepassado e as repetia agora para si mesmo: “Que seja do conhecimento de todos que se alguma pessoa nobre ou pleb�ia descobre em nossos reinos algum herege e o mata ou mutila ou o despoja de seus bens ou lhe causa qualquer outro dano, n�o h� de ter nenhum castigo por isso; antes, merecer� nossa gra�a” (TN, p.52, 53).
Em O Outro Mundo, os irm�os do livre esp�rito protagonizam o epis�dio O
espírito livre, (p.583) que descreve o avan�o de um ex�rcito de pobres comandado
por um her�tico an�nimo conhecido como o profeta do mil�nio acompanhado por
Ludovico, que sempre est� associado aos grupos de oposi��o ao longo do romance.
O her�tico an�nimo lidera uma cruzada para abolir toda hierarquia social, para isso
se op�e a toda forma de poder e rejeita as normas de comportamento moral,
religioso e pol�tico. Os milenaristas negam a propriedade privada e todo tipo de
autoridade. Prop�em a comunidade de bens, a anarquia, a inoc�ncia e a liberdade
ilimitada do esp�rito. Evocam a figura do Peregrino descrito como um jovem loiro
com uma cruz vermelha nas costas e seis dedos em cada p�.
(...) imagine por um momento, Guzm�n, que todos pudessem apresentar suas v�rias e contradit�rias vers�es do ocorrido e ainda do n�o ocorrido; todos, digo-te, tantos os senhores como os servos, tanto os cordatos como os loucos, tanto os doutores como os hereges, o que sucederia, Guzm�n? Haveria demasiadas verdades. Os reinos seriam ingovern�veis. No, algo pior; se todos pudessem escrever � sua maneira o mesmo texto, o texto j� n�o seria o �nico.
(TN, p.191).
De prov�ncia em prov�ncia avan�avam (...) diante deles ia uma heresiarca jovem e um jovem loiro, as costas nuas para mostrar o sinal da elei��o, os p�s descal�os para causar espanto com seus seis dedos (...) o profeta do mil�nio, o pregador, a terra sem fome, sem opress�o, sem proibi��es (TN, p.583).
Ludovico esticou o bra�o para tocar em Celestina. A mo�a tomou-lhe a m�o e Ludovico falou pausadamente para o Senhor. Espere, Felipe. Voc� disse a Pedro que sua comunidade de homens livres seria derrotada: para sobreviver, os comuneros se veriam obrigados a agir como seus opressores. A liberdade seria sua meta, mas, para alcan��-la deveriam empregar os m�todos da tirania. Logo nunca seriam livres (TN, p.618).
Como todos os movimentos de oposi��o, hereges e milenaristas s�o
destru�dos pelo poder absoluto do Senhor. A derrota do pensamento her�tico se
215
apresenta no romance a partir de duas perspectivas distintas. O fragmento Vitória
apresenta a hist�ria relatada pela vis�o dos vencedores por meio da figura do
Senhor, “A pra�a caiu depois de uma batalha feroz. Espalhou-se a not�cia no
acampamento: (...) as imagens deste duro combate contra a heresia (...) combatidos
e vencidos em terra espanhola pelos long�nquos antecessores do Senhor” (p.52).
O epis�dio A derrota oferece a vis�o dos derrotados, focalizada no relato a
contrapelo de Ludovico: “Tudo est� perdido, disse o Duque. (...) Lembrem que o
populacho guiado pelo misticismo arrasa terras, destr�i colheitas, humilha os
burgueses. Assim, pois, terei triunfado, se depuser as armas” (p. 586).
Os dois epis�dios apresentam o encontro dessas personagens no centro de
uma cidade an�nima, onde as tropas do Senhor tinham exterminado a resist�ncia
her�tico-milenarista. O romance amalgama tend�ncias contradit�rias entre si e as
atribui a um mesmo grupo; por um lado observa a austeridade dos c�taros e
valdenses que predicam a acesses e o desprezo pela mat�ria, e por outro a
voluptuosidade dos adamitas, cuja proposta pretende abolir o conceito de pecado.
Embora sufocados, os movimentos her�ticos e os revolucion�rios abrem caminho
tanto ao perspectivismo como a vis�o din�mica e metam�rfica do pensamento
moderno que se inaugura com o Renascimento.
Terra Nostra � conivente com a express�o milenarista que prev� um
desenlace apocal�ptico em que Velho Mundo deve ser destru�do antes que possa
ser constru�do O Outro Mundo; o caos antes da cria��o. A cren�a na regenera��o
apocal�ptica tem suas ra�zes em muitos sistemas religiosos e inclui a profecia judeu-
crist� do advento do Messias. Existem cinco movimentos milenaristas que
conformam o n�cleo do romance, cada um dos quais se constr�i a partir daquele
que o precede, embora estejam cronologicamente invertidos desde o ano 1999 at� a
Roma de Tib�rio C�sar.
O �nico movimento que n�o acaba sendo abortado � o de 1999, em que as
imagens da Cidade de Paris de Polo Febo representam o caos anterior � cria��o, o
retorno da personagem �s origens facilita uma nova g�nese. Uma das
caracter�sticas importantes do milenarismo consiste na busca coletiva que recebe
sua for�a de uma popula��o que vive � margem da sociedade. Por esse motivo,
adquire um car�ter socialmente revolucion�rio semelhante ao das lutas dos
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marginalizados do s�culo XX. A salva��o imaginada n�o se projeta na eternidade da
outra vida, sen�o que nesta terra e durante o transcurso esta vida.
O texto menciona o fim dos flagelantes milenaristas, mas estes reaparecem no
primeiro e no �ltimo cap�tulo, na Paris de fins do mil�nio de Polo Febo, o que
comprova sua persist�ncia e proje��o para o futuro. Entrecruzando-se com esses
fatos, o romance dramatiza as atitudes das personagens durante a rebeli�o. A
dispers�o da voz narrativa num texto em que dominam os di�logos sem pontuar, a
inexist�ncia de transi��es e a aus�ncia de um narrador onisciente contribuem para
criar a sensa��o de um grande conjunto multivocal. O efeito polif�nico resultante
aspira refletir no n�vel formal o esp�rito democr�tico e igualit�rio que Carlos Fuentes
atribui ao levante popular.
N�o penseis senhores, que n�s estamos sozinhos neste esc�ndalo, que, falando sinceramente, muitos cavaleiros generosos e representantes dos tr�s estados se uniram a n�s (...) em Segovia como em Le�n, em Valladolid como em Toledo, em Soria como em Salamanca, em �vila como em Guadalajara, em Cuenca como em Burgos, em Medina como em Tordesilhas, falam com nossa mesma l�ngua cavaleiros de mediana posi��o, regedores, jurados, alcaides e s�ndicos, c�negos, abades, catedr�ticos, doutores, licenciados e bachar�is, m�dicos e f�sicos, mercadores e banqueiros, not�rios e botic�rios, sereis expulsos, judeus, perseguidos, mouros, n�o haver� lugar para v�s no reino da pureza de sangue, crist�os velhos de sangue limpo, quem s�o? (...) n�o pagaremos tributos extraordin�rios que n�o sejam aprovados pelas assembleias de todo o povo (...) toma, farta-te , bebe, esquece o pratinho di�rio de gr�o de bico, tu, mendigo, tu, rameira, tu, ermit�o (...) os adamitas, os adeptos do livre esp�rito, os alumbrados, os c�taros recostados sobre as tumbas dos pr�ncipes (TN, p.634- 639).
Essa passagem ap�crifa idealiza o movimento, por�m Marawall descarta
qualquer conex�o entre as Comunidades e os conversos. O historiador sublinha o
anti-semitismo entre os setores populares que Carlos Fuentes atribui o protagonismo
revolucion�rio. “Devido � persegui��o por parte das massas, os judeus buscaram
prote��o no seio da aristocracia. Da� que o sentimento contra a nobreza
frequentemente se somava ao anti-semitismo entre as classes baixas das cidades”
(1996, p.241).
No processo de intertextualidade, Terra Nostra dialoga com O Manifesto das
Comunidades de Castela, recopilado por Marawall, e investe � personagem
217
Guzmán o papel de proclamador das forças realistas para executar as ordens do
Senhor perante as comunidades rebeldes. O papel de Guzmán, como instigador
inicial da rebelião e repressor final da mesma, dramatiza a traição daqueles setores
da baixa nobreza que apoiaram a insurreição em defesa de seus interesses feudais,
mas que a abandonaram e a reprimiram a medida que o movimento foi adquirindo
matizes revolucionários.
(...) sou dos vossos, eu, monteiro-mor, Guzmán, (...) quem ficará a salvo da loucura e do capricho do Senhor? Pois vede o que aconteceu há apenas uns dias com um dos vossos, que saiu daqui com a língua e s mãos cortadas por ordem do Senhor, para não poder falar nem escrever sobre um dos sinistros mistérios entre os que lá acorrem; ontem foi este, hoje será outro, amanhã vocês e eu; vede o valor de nossos companheiros de estado, os burgueses de Ávila, Toledo e Burgos, dispostos a pegar em armas para que estes reinos sejam governados por leis e não por caprichos: as portas estão abertas, disto eu dou fé; está na hora de agir, Jerónimo, Martín, Nuño, acumulam-se injustiças, acumulam-se os rancores, sim, pelo Senhor (...) é hora de agir. (TN, p.640).
(...) Guzmán disse, amarrai-o com suas próprias correntes, e Jerónimo rugiu, lutou, foi subjugado e depois, de pé, olhou para os olhos de Guzmán, cuspiu no rosto de Guzmán, Judas, Judas, (...) corredores, pátios, cavalariças, cozinhas, alcovas, celas, torres, as flechas, os arcabuzes do Senhor, as espadas do Senhor, os machados do Senhor, postados em cada saída, sob cada janela, junto a cada porção do Palácio em construção interminável, tapados todos os buracos por donde pudessem escapar o estalido da pólvora, as flechadas nos peitos e nas costas dos que corriam por pátios e cozinhas, as machadas nos crânios, os punhais nos corações, as espadas nos ventres, nem um vivo, gritava Guzmán, correndo de um lugar para outro, inclusive nos que pareçam mortos, dêem-lhe uma segunda facada (...) que se espalhe o exemplo, saibam os comuneros da Junta de Ávila o que os espera, corte-se a rebelião pela raiz. (...) Guzmán pediu um só favor ao rei Don Felipe como recompensa de seus atos, o de encabeçar a expedição que iria cruzar o grande oceano em busca do Novo Mundo e certificar-se assim de sua existência ou inexistência; de bom grado acedeu o Senhor, dando-lhe provas de gratidão e munificência e instando que Guzmán embarcasse com ele grande parte de trapaceiros destes reinos, e homens de excessiva energia capazes de perturbar o sossego, de modo que a paz de sua necrópole não fosse mais perturbada por hereges, rebeldes. (TN, p.640, 655, 656).
Os rebeldes prometem aos conversos que se eles acrescentassem com seu
trabalho mais riquezas à Espanha não seriam perseguidos, nem se processaria
ninguém por origem de sangue. A composição social dos rebeldes compreende os
218
setores marginalizados que se op�em ao absolutismo do monarca ortodoxo –
oper�rios, �rabes, judeus, hereges, mendigos, prostitutas, eremitas. O romance
acentua o dramatismo desse enfrentamento fazendo com que a rebeli�o conflua
sobre o Pal�cio: “aqui estamos, no pr�prio recinto do Senhor, as portas abertas, �
hora de agir, os habitantes do Pal�cio adormecidos (...) podemos atacar
impunemente o cora��o mesmo da opress�o, atravess�-lo, cortar a cabe�a de uma
s� vez, paus, pedras, correntes, os a�os forjados em tua fr�gua, Jerónimo, as armas
dos pobres, pronto, as portas est�o abertas” (p.635-640).
O Pal�cio do Senhor constru�do como um monumento que honra os reis se
transforma por uns instantes no lar dos mendigos, territ�rio de hereges e cen�rio de
profana��o. A narrativa caracteriza um mundo carnavalesco, que nos termos de
Bakhtin, “por um tempo inverte a pir�mide social”.
(...) os elementos culturais limitados desaparecem, e apenas subsistem os elementos humanos, universais e ut�picos do riso popular. Com toda a sua materialidade imediata, continuam sendo os elementos fundamentais do sistema das imagens grotescas. (...) As festividades tiveram sempre um conte�do essencial, um sentido profundo, exprimiram sempre uma concep��o de mundo. (...) da consci�ncia da alegre relatividade das verdades e autoridades no poder. Ela caracteriza-se, principalmente, pela l�gica original das coisas ao avesso, ao contr�rio (...), como um mundo ao rev�s.
(2002, p. 9-11).
O fato hist�rico situa a batalha final em Villalar. Na fic��o, o mesmo fato se
remete ao espa�o do Pal�cio do Senhor. O fato de situar a batalha final no edif�cio
de El Escorial caracteriza o anacronismo criativo caracter�stico em Terra Nostra,
que acentua o enfrentamento dos dois grupos discursivos que se entrecruzam ao
longo do epis�dio; o passado se repete e se espelha no presente, as mesmas cenas
do epis�dio Vitória (p.25), da primeira parte do romance se duplicam em A rebelião,
(p.633).
(...) aqui mesmo havia uma fonte que jamais se secava (...) � que me lembro Mart�n, me lembro das portas abertas, assim foi a matan�a anterior, as portas abertas, tomai precau��o, esperai, j� n�o � poss�vel, Jerónimo, contemple a turba, vamos todos, pelas escadas que levam at� o Senhor, � essa a da porta aberta, que nunca se fechou, que todos respeitamos, imbecis, sempre esteve aberta, percebe o agravo? T�o pouco nos temeram? Trinta degraus at�
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descer aos sepulcros, todos armados, lanças, picas, correntes, facas, enxadas, machados, tochas de fogo, obreiros, hereges, árabes, judeus, eremitas, mendigos, Simón, Martín, Nuño e Jerónimoarrastados pela turba (...) todos pela escadaria. (...) reúnam-se, mendigos, peregrinos, eremitas, prostitutas, partidários de Pedro Valdo (...) agora, em marcha, perfeitos cátaros, aqui mora o deus do mal, incendiemos sua morada, adamitas, para o Palácio, todas as portas estão abertas, segue-me Simón, desembainhai as velhas facas, levantai as estacas, ascendei os archotes. (TN, p.635).
Da mesma forma como ocorre no relato histórico, no romance, a rebelião é
finalmente dominada e seus líderes acabam mortos ou encarcerados. A composição
étnica e social das lideranças revolucionária apresenta como líderes a três
personagens enquadrados como dentro do grupo dos operários, Martim, filho de
servos; o ferreiro Jerônimo e um mourisco de nome Nuño. O castigo aplicado aos
líderes da rebelião, Nuño e Jerônimo, adquire altos graus de violência no qual se
fundem os rituais de tortura do século XVI com as práticas terroristas das ditaduras
contemporâneas.
(...) o primeiro prisioneiro, Nuño, atado a uma das duas estacas cravadas sobre o pó da planície, nu, só vestido de tanga, os guardas o açoitam com varas, cem vezes, todo o corpo, ferido, aberto, ensanguentado, depois lhe passaram mel, aproximaram dele um bode que começa a lamber o mel com sua língua áspera, junto saem pedaços de carne, Nuño fecha os olhos, aperta os dentes, carne e cabelo, sangue e nervo, a língua áspera do bode, redobram os tambores, o segundo prisioneiro, o cabeça, o velho de barba avermelhada como fogos de sua forja, o cavalete, chega até a estaca, atam-no em cima, de modo que seus pés não toquem a terra, amarram-lhe ao dedo maior de cada pé pesos de cento e cinquenta libras e esperam meia hora, (...) e depois untam o corpo despido com sebo e põem fogo na estaca, (...) Jerónimo urra como um leão; puseram-lhe fogo somente nos lados, para que só os lados se queimem, apagam o fogo, vestem-no com uma camisa molhada com água-forte, e a acendem; chamuscam a barba de Jerónimo, ele fecha os olhos, vão-se suas pestanas e as sobrancelhas, tornam a apagar o fogo, tiram-lhe a camisa, pegam suas mãos crispadas, abrem-nas à força, fincam lhe profundamente agulhas e cravos entre as unhas dos dedos, molham e lavam o corpo com urina velha, hedionda, prendem sua mão direita entre pranchas ardentes, e apertam, e queimam, com tenazes de ferro lhe apertam o pulso, esperem, Guzmán pediu para ser o verdugo, saca o punhal da bainha, caminha até Jerónimo na estaca, corta-lhe o pênis, o mete na boca do desgraçado (...) dá a ordem final, cortem-lhe a cabeça, ponham-na espetada numa lança à entrada do Palácio, cortem o corpo em quatro partes e pendurem as partes em quatro paus nos cantos do Palácio, tal é a vontade do nosso rei e Senhor, e você Nuño (...) apodreça aqui seu corpo para exemplo e escarmento dos rebeldes.
220
(TN, p.644)
Ao castigo dos vencidos, o romance contrapõe o prêmio aos vencedores, como
acontece com Guzmán, que como recompensa pela sangrenta, porém, eficiente
repressão, solicita ao rei a graça de encabeçar uma expedição transatlântica que
comprove a existência ou inexistência do Novo Mundo.
Os momentos finais descrevem os preparativos para sua viagem. Os
participantes têm importância simbólica, pois dramatizam as ideias de Carlos
Fuentes sobre o impacto da rebelião comunera em Hispano-América. Por um lado, a
expedição aparece guiada por Guzmán, quem incorpora os valores mais negativos
da Espanha obscurantista e retrógrada; a visão autoritária do governo, os privilégios
da nobreza feudal, a repressão implacável de toda dissidência e o desprezo pela
cultura. Por outro lado, os membros da tripulação representam alguns dos estratos
mais significativos da sociedade espanhola, eles são os comuneros vencidos, que
representam a burguesia urbana e os criminais comuns, a nobreza empobrecida e
os conversos dissimulados.
(...) por uma carta mandou que as autoridades das vilas e lugares do litoral andaluz fornecessem a Guzmán tudo de que necessitasse para sua flotilha, e os deixassem zarpar (...) o Senhor prometeu a todos que se alistassem nas caravelas e que ninguém os prejudicaria nem em suas pessoas nem em seus bens por motivo de qualquer delito que tivessem cometido. Inscreveram-se assim trezentos homens e, ao vê-los subir para as caravelas com seus pobres equipamentos, Guzmán sorriu adivinhando aqui o comunero vencido e ali o criminoso comum, neste o nobre empobrecido e naquele um convertido dissimulado, num o lavrador e em outro o ferreiro rancoroso. (TN, p.656).
A expedição se une, no último momento, a personagem do Frei Julián, antítese
dos valores que representa Guzmán. O intelectual defensor dos pobres, o
iconográfico da heresia, é o missionário que busca no Novo Mundo a materialização
das utopias renascentistas. Celestina e o Peregrino embarcam com eles.
Distraído, Guzmán notou o estranho casal que, abraçado, subiu para uma das caravelas. Um homem encapuzado, de andar moroso (...) a cabeça raspada e o rosto disfarçado pela sujeira. Era a hora de zarpar. Pelas estreitas janelas de Cádiz, atrás dos verdes batentes de suas casas, apareciam rostos pálidos e desconfiados. Guzmán
221
sabia (...) o frade Juli�n, o icon�grafo do Pal�cio, ia se unir � expedi��o. Guzm�n sentiu na boca sabor de fel. (TN, p. 656).
Na constru��o intertextual da trilogia, Terra Nostra evoca a personagem
Celestina, Don Quijote e Don Juan. Para produzir a verossimilhan�a ao longo da
obra, cria para cada um deles um passado diferente e estabelece rela��es entre os
mesmos num passado comum. Esses seres fict�cios procedentes de outras obras
liter�rias ampliam sua trajet�ria e reaparecem com uma nova dimens�o; suas a��es,
correntes no interior de suas obras originais, ganham motiva��es renovadas em
representa��es simb�licas de suas respectivas �pocas de cria��o.
Para Don Quijote, que interage com outras personagens de O Mundo Novo
cria-se uma hist�ria que justifica seus atos, sempre mantendo sua ess�ncia de
Cavalheiro da triste figura como El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de La Mancha,
Miguel de Cervantes (1605). Na sua trajet�ria se relaciona com Celestina, que
tamb�m re�ne as caracter�sticas da obra Celestina, de Fernando Rojas (1499), e as
da personagem criada por Carlos Fuentes.
No epis�dio O cavaleiro da triste figura (537), Don Quijote luta contra
“feiticeiros e gigantes” em uma venta. Sancho Pan�a preocupado em salvar seu amo
de “tanta loucura”, apela para a Celestina, transfigurada na jovem personagem da
primeira parte do romance de Terra Nostra.
Ao encontr�-la, segurou-a pelo bra�o e lhe disse, manceba, sejas quem fores, ajuda-me, que meu amo enlouqueceu e acho que apenas voc� pode lhe devolver um pouco de calma e raz�o; comporta-te como uma grande dama, embora pouco importa, que ele olha a nobreza onde h� baixeza e a estirpe descobre nos mais ruins menestr�is. (TN, p.537).
Sancho apresenta esta Celestina de Fuentes a Don Quijote, mas este a
percebe como a Celestina de Rojas, a “velha alcoviteira”. O cavalheiro da triste
figura olha para Sancho decepcionado e diz:
O cavalheiro, bastante surrado, olhou intensamente para Celestina, depois para o lavrador, e estremeceu de irrita��o: � assim que zombas de mim amigo? T�o louco tu pensas que estou n�o esteja vendo diante de mim esta velha bruxa, alcoviteira, que at� as pedras gritam ao v�-la passar “velha prostituta”, e que se esfregou as costas em todos os bord�is? J� fui jovem, embora voc� n�o acredite, e perdi
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a minha virtude nas mãos de esta mesma velha falsa, barbuda, malfeitora, que prometeu introduzir-me na alcova da minha amada, me adormeceu com filtros de amor na sua alcova e tomou-me para si, tendo-lhe eu pagado antecipadamente. Conheço bem, velha avarenta, escancarada, faladora, queimada seja, desavergonhada feiticeira, fingida, prevaricadora, grosseira, urraca, alcoviteira; a outro por mais dinheiro entregou minha amada Dulcinea; que está fazendo nestas terras? Ah, cafetina vil e ambiciosa, você é artista no tribunal da luxuria, e nada, nada, nem um par de passas terá de mim (...). Fora com ela Sancho! Que estou fervendo de cólera, conhecia quando jovem, acreditava-a morta, acredite, Judas, má Páscoa lhe dê Deus, que erva na não morre nunca! E você, escudeiro, por que te empenhas em dar-me gato por lebre, e em trazer-me por princesa, criadas, prostitutas e vagabundas? Crês que não enxergo? Pensas que não distingo a realidade real coisas? Os moinhos são gigantes. Mas Celestina não é Dulcinea. Vamos, Sancho, para fora de Toledo, que bem a denominou Lívio, urbe parva, ínfima cidade, e grande é Castilla. (TN, p.538).
Essa passagem dialoga com o episódio em que Don Quijote, na obra de
Cervantes, vê a rude aldeã Aldonza Lorenzo cuidando dos porcos, e mesmo diante
das evidências tão claras da verdade, ele continua fiel ao seu discurso. Nesse
recorte, surge o avesso carnavalesco de Bakhtin, numa visão da realidade
impensável para o Don Quijote, se comparado ao episódio paralelo da personagem
original. Na obra de Cervantes, Don Quijote percebe a sua amada como uma
Dulcinea encantada, suja e empobrecida porque foi enfeitiçada e transformada numa
figura grotesca.
O Don Quijote de Terra Nostra possui lucidez suficiente para perceber a
diferença entre a sua própria realidade e a realidade ficcional. No fragmento
Dulcinea, Carlos Fuentes atribui uma nova trajetória ao homem de la Mancha,
características que remetem à personagem Calisto, da Celestina de Fernando
Rojas, dialogando com o Don Juan de Tirso de Molina, O burlador de Sevilla
(1617) e, paralelamente, com a versão romântica de Don Juan Tenório, de José
Zorrilla (1844).
Acredite-me, fui jovem, não nasci como me vêem agora, velho eabatido, fui jovem e amei, foi contado cavaleiro ao cego e a moço, e é próprio da juventude não parar de sonhar o que se quer (...). Eu amava a Dulcinea, ela se mostrava virtuosa, vali-me da velha alcoviteira, tive a donzela para mim, começou a mudar com o tempo, maldisse os galos porque anunciavam o dia e o relógio porque andava depressa (...), surpreendeu-nos o pai da menina, desafiou-me, fiquei violento, ele se tornou também violento, atravessou com a
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espada sua pr�pria filha e eu com a minha, ele; falava-se que n�o houve um dia mais sangrento em Toboso; enterraram o pai e a filha juntos sob uma lapide esculpida que representava a filha adormecida e o pai de p�, valendo-a com sua espada (...) fugi dali, minha cabe�a foi posta a pr�mio, mudei de nome, instalei-me num lugar de cujo nome n�o quero me lembrar, solit�rio, sabendo em minha pr�pria carne da verdade do que me disse essa velha prevaricadora que me conseguiu o favor de Dulcinea. (...), somente os livros foram meu consolo, li todos, imaginei que podia ser desses cavaleiros sem mancha, resgatar essas damas nobres, vencer esses p�rfidos gigantes e magos, regressar a Toboso, desencantar minha donzela adormecida, devolver-lhe a vida, t�o jovem como no dia que morreu.
(TN, p.582).
As personagens se fundem em suas pr�prias trajet�rias, compondo uma nova
trama que mant�m, de forma embrion�ria, uma rela��o com suas obras originais.
Dom Quijote conhece a Celestina e utiliza seus servi�os para conquistar Dulcinea.
Neste ponto, a trajet�ria da personagem Melibea, da obra Celestina de Fernando
Rojas, se confunde com a da personagem Dulcinea, de Don Quijote de La Mancha
de Cervantes. Don Quijote se autodenomina de Don Juan, quando descreve sua
juventude. A trajet�ria liter�ria original das obras � recriada para compor a narrativa
de Terra Nostra incrementando a reflex�o de Carlos Fuentes sobre a amplitude de
sentidos que os recortes dos textos liter�rios e os hist�ricos podem suscitar. O autor
parte da perspectiva intr�nseca das mentalidades das personagens hist�ricas e
liter�rias e, a partir desse princ�pio, constr�i a trama no romance.
O fato de imaginar um passado para Don Quijote, pela evoca��o intertextual
das obras cl�ssicas espanholas, estabelece outra dimens�o de significados. Don
Quijote e a origem da sua loucura, a sua juventude de cavaleiro, a justificativa
liter�ria da origem do seu nome como o Homem de La Mancha, que inicia a sua
trajet�ria desde ”um lugar de La Mancha de cujo nome n�o quero lembrar-me”.
Esses antecedentes geram uma poss�vel ambiguidade pela palavra “mancha”.
A refer�ncia � regi�o de La Mancha transporta a narrativa para o espa�o �rido
de uma sociedade formada por indiv�duos condicionados por padr�es de
comportamento ditados pela austeridade de um absolutismo intransigente e
aparentemente “sem mancha”. Carlos Fuentes percebe a figura quixoteana inserida
numa sociedade em que o homem tem sua liberdade manipulada pelas regras
estabelecidas pelo poder ortodoxo. Nesse ponto, a liberdade criativa amplia o
universo de Don Quijote e inventa para ele um passado poss�vel extrapolando a
224
realidade do romance de Miguel de Cervantes e, no �mbito do fazer liter�rio, institui
outras realidades imagin�veis por meio da intertextualidade.
No ensaio El espejo enterrado, prop�e uma reflex�o sobre a cultura
iberoamericana destacando a figura de Miguel de Cervantes como “portador do
sentimento de incerteza em uma �poca na qual a Espanha se comporta como a
na��o que recha�a com maior intensidade a modernidade” (p.187). A imagem da
Espanha fechada em si mesma se reflete nas palavras da Dama Louca no romance,
“Meu filho, fostes s�bio quando ao nunca abandonar a prote��o de tuas paredes e
jamais cruzar os mares para conhecer as terras. Ningu�m, nenhum soberano da
nossa casta, pisou jamais as praias do Novo Mundo” (p.740).
No mesmo ensaio, comenta que em Don Quijote de La Mancha existe um
sentimento de incerteza que perpassa as ideias relacionadas � figura do narrador,
da mesma forma que em Terra Nostra, essa atitude de Carlos Fuentes se direciona
para uma dimens�o especulativa da obra, no que se refere � constru��o ficcional.
Com seu livro Don Quijote de La Mancha, Cervantes funda o romance moderno na na��o que mais se empenha em rejeitar a modernidade. Pois se a Espanha imp�s um ponto de vista �nico, dogm�tico e ortodoxo do mundo, Cervantes, essencialmente, imagina um mundo de m�ltiplos pontos de vista, e o faz mediante uma s�tira na apar�ncia inocente dos romances de cavalaria. � mais: se a modernidade se baseia em m�ltiplos pontos de vista, estes, por sua vez, se baseiam no princ�pio da incerteza. (...). Quando Don Quijote abandona sua aldeia e parte para os campos de La Mancha, deixa tr�s de si seus livros, sua biblioteca: seu ref�gio. (...), Don Quijote tamb�m deixou para tr�s o mundo bem organizado da Idade M�dia, solido como um castelo, onde tudo tinha seu lugar reconhec�vel, e ingressa no valente Mundo Novo do Renascimento, agitado pelos ventos de ambiguidade. (1992, p.187).
Em Cervantes o la crítica de la lectura (1976), tece uma longa reflex�o sobre
os fundamentos do erasmismo e a sua repercuss�o na literatura, principalmente na
obra de Cervantes. O ponto crucial da sua an�lise se conjuga com o ide�rio
desenvolvido pela personagem Ludovico e a sua cr�tica aos absurdos, que
relativizam as verdades impostas pela ordem medieval, lan�ando d�vidas sobre a
raz�o moderna. Em Terra Nostra, na voz de Ludovico, que tem como referencial
ideol�gico o erasmismo, existe um conhecimento a respeito da trajet�ria liter�ria das
personagens Celestina, Don Quijote e Don Juan. Para ele, essas personagens s�o
225
referências do tempo em que estão vivendo. Em Réquiem (p.739), as possibilidades
da história geram uma discussão final entre o Senhor e Ludovico, que até então se
negava a abrir seus olhos para não ter que enxergar os fatos ocorridos. A dúvida de
principal de Ludovico se refere ao que pode acontecer no futuro, sua única certeza é
que a história da Espanha será sempre contada pelos livros clássicos da literatura:
Celestina, O burlador de Sevilla e Don Quijote de La Mancha.
Já não, Felipe. Abri os olhos para ler o único que se salvou de nosso tempo terrível (...). Fui mais modesto, meu amigo. Os abri para ler três livros: o da alcoviteira, o do cavaleiro da triste figura e o do burlador Don Juan. Acredita em mim, Felipe: apenas ali, nos três livros, encontrei de verdade o destino da nossa história. Encontrarás o teu Felipe? (TN, 746).
Da mesma forma que a Celestina de Fernando Rojas, a Celestina de Terra
Nostra transita pelo universo dos senhores e dos criados para desestabilizar a
ordem imposta pela intolerância e os costumes institucionalizados, subvertendo as
regras cristalizadas pelo poder, mostra as outras possíveis verdades ocultadas pela
ortodoxia. Para Carlos Fuentes, essas obras retratam a época em que foram
produzidas por meio de personagens que habitam os limites da intolerância, seres
imaginários que funcionam como espelhos de verdade de seus respectivos tempos
históricos e literários. Celestina mostra o rosto da hipocrisia institucionalizada; Don
Juan subverte o valor da honra e do amor Cortês, ao revelar a força do egoísmo e
do desejo individual como um fim em si mesmo. E em sua peregrinação pelos
campos áridos de La Mancha, a Espanha de Don Quijote revela uma sociedade
dominada pelo poder da ortodoxia medieval que recusa as ideias do Renascimento.
Essas obras são responsáveis pela construção da história no romance, pois o
conteúdo da literatura espanhola no período recortado explicita uma reflexão sobre a
história político-econômica do tempo em que foram produzidas. As referências
literárias formam o fluxo de paralelismos e rupturas históricas que compõem a trama
no romance. Ao avaliar a importância de cada uma dessas obras, o autor comenta
que essas ponderaram as ideologias dominantes da história e contribuem na
formação do universo cognitivo do homem moderno.
A Celestina mítica de Terra Nostra permeia toda a narrativa, interage com
personagens históricos como Felipe II e com os ficcionais como Ludovico, se
226
ampara nas interpreta��es liter�rias da obra de Fernando Rojas ao incorporar
algumas das caracter�sticas de La Celestina medieval, se apresenta como uma
mulher que transita pelos diferentes universos culturais, seduz pelo poder da palavra
transgressora e dissimulada, vira ao avesso o conceito tradicional do amor cort�s.
No romance, a corte espanhola torna-se perme�vel pela a��o de Celestina, ela
articula mundos e vidas, manipula o destino. Ela sintetiza o mundo feminino, rainhas
e bruxas, nobres e pleb�ias, jovens e velhas, todas se fundem nela atuando em dois
eixos: o das bruxas, nas figuras da cigana de Spalato, Celestina- pajem, Celestina
do bosque, Celestina da ponte, Senhora das mariposas, a an� Barbarica, e como ela
mesma, a odiosa e velha Celestina de Fernando Rojas; e o eixo das rainhas, Urraca,
Juana, Mariana, Carlota, Dama Louca e a Velha senhora, ambos os grupos se
consolidam num s� ser, a Celestina do fim do mil�nio.
Em Velho Mundo se apresenta como a jovem pintora de rua que “desenhava
um c�rculo preto que irradiava zonas de diversas cores, azul, granada, verde,
amarelo” (p.31), o qual resulta ser a imagem do mapa do Mundo novo, representado
na m�scara de penas. Na Ponte das Artes, encontra Polo Febo, relata sua viagem
desde a Espanha e fala da cruzada empreendida por Ludovico e Sim�n. Ela tem
duas bocas: uma fala do amor e a outra do mist�rio; uma fala deste tempo e a outra
do tempo esquecido, o nomeia Polo Febo de Juan. Ele cai no rio Sena e Celestina
joga uma garrafa verde. Depois repete o anagrama “Atse � ahnim air�tsih... Esta � a
minha hist�ria..” (p.35). As palavras anagram�ticas fazem alus�o ao espelho que,
como reflexo e refra��o da realidade, convida para entrar na Espanha do Senhor,
uma hist�ria imaginada, um reflexo ficcional da cria��o liter�ria de Carlos Fuentes.
A partir do segundo epis�dio, Aos pés do Senhor (p.35), Celestina interpreta o
papel de pajem da velha rainha, acompanhando-a na sua viagem de peregrina��o,
na praia do Cabo dos Desastres. Encontra Polo Febo n�ufrago e o conduz ao
Pal�cio do Senhor. Em Olhares (p.340), Celestina-pajem, o Peregrino e Ludovico,
velho e cego, se apresentam ao Senhor, Felipe pai, para narrar suas aventuras
ocorridas nos �ltimos vinte anos.
No Outro Mundo, Celestina e Ludovico vivem em Toledo, com eles duas das
crian�as estigmatizadas, o filho da Celestina e os outros adotados, os tr�s s�o filhos
do Senhor. Celestina-bruxa passa suas mem�rias a uma menina de doze anos, por
meio de um beijo; sem mem�ria, Celestina-bruxa desaparece da vida de Ludovico e
227
este parte com os tr�s meninos e a jovem Celestina-pajem numa viagem de
peregrina��o.
A nova celestina desempenha diversos pap�is ao longo dessa viagem. Em O
miradouro de Alexandria (p.547), interpreta o papel da irm�-esposa do cultivador
assassinado pelo pr�prio irm�o invejoso. Da mesma forma que no mito de Seth e
Os�ris, Celestina tenta ressuscitar o amado. No epis�dio, A cigana (p.556), surge na
praia de Spalato como a cigana que presenteia os tr�s irm�os com as tr�s garrafas
verdes, logos os tr�s jovens realizam sua viagem de sonhos com Ludovico. No
transcurso da viagem pelo mundo dos sonhos, Celestina ser� a Senhora das
Mariposas de um dos jovens, o Peregrino do Mundo Novo.
Em A mãe Celestina (p.591), ela surge novamente como a Celestina-bruxa na
figura da an� Barbarica, quando no seu papel original, ajuda o Senhor a capturar os
tr�s jovens irm�os estigmatizados. No fragmento A restauração (p.717), assume a
figura da jovem ind�gena que “tem os l�bios tatuados e se veste com colares de jade
e turquesa”. No momento do encontro entre a jovem com guerreiro na serra de
Veracruz, come�a o bombardeio da for�a a�rea estadunidense sobre o M�xico do
s�culo XX.
Em Réquiem (p.739), o Senhor moribundo solicita que leiam para ele o
Apocalipse de S�o Jo�o; no intertexto, Celestina representa a Babil�nia, a cidade
personificada como uma mulher e descrita no texto. No �ltimo epis�dio. A última
cidade (p.764), Celestina volta ao papel original como a jovem de Paris, seis meses
depois, aos 31 de dezembro do ano 1999, como a jovem ind�gena mexicana, “tem a
pele de porcelana, longos cabelos castanhos, saias multicoloridas e colares ciganos”
(p.777).
Celestina se encontra com Polo Febo, que acaba de ler um livro que relata a
sua pr�pria vida. Ela tenta convencer o jovem, que agora se reconhece como
mexicano, de que tudo isso aconteceu de fato, de que foi vivido por ambos,
baseando-se nas palavras de Frei Juli�n e nas do Cronista. Por meio dos beijos da
Celestina, Polo Febo lembra-se de tudo. Nos momentos finais do romance,
correspondente aos �ltimos minutos do ano de 1999, se unem e se transformam
num ser andr�geno.
228
Por se tratar de uma personagem que representa a mem�ria da hist�ria da
Espanha, os dois eixos da Celestina se encarregam de ilustrar tr�s imagens da
mesma. Celestina-bruxa � a imagem da Espanha sombria e aristocr�tica da tradi��o
mon�rquica, a da Lenda negra, da intoler�ncia e da Contrarreforma. No Velho
Mundo, Celestina-bruxa vive no fechado mundo da Idade M�dia, nela permanecem
as caracter�sticas originais da obra La Celestina, de Fernando Rojas, “a velha bruxa
alcoviteira, cobi�osa”.
Quando ela transita pelas ruelas de Toledo � identifica por Don Juan que a v�
como “a m�e” e por Don Quijote que a considera como “a velha prostituta
alcoviteira”, demonstrando as duas percep��es sobre a Espanha, um a v� como a
terra m�e sagrada e terna; o outro, como uma rameira suja e cruel. Embora a
Celestina deseje mudar seu mundo, percebe-se acorrentada num mundo medieval.
A percep��o da concep��o hist�rico- ideol�gica em La Celestina de Fernando
Rojas expressa uma cr�tica que as personagens t�m de si mesmas e da sociedade �
qual pertencem. A a��o das personagens � comentada sob diferentes pontos de
vista para configurar uma vis�o global, referencial que se evidencia por meio das
sequ�ncias narrativas ao longo do texto. Como figura transmut�vel, Celestina se
transforma livremente, ocupa diversos pap�is: irm�, esposa, cigana, m�e, bruxa,
rainha ou pleb�ia, um conjunto polif�nico reunido na voz que confronta a voz
un�voca do Senhor. O denominador comum de todas as Celestinas � o amor e como
consequ�ncia disso, no �ltimo epis�dio se une definitivamente ao Peregrino, �ltimo
sobrevivente do mundo, para come�ar uma nova era, evitando o c�rculo do velho
modelo representado na figura do Senhor.
Subverte desde sua primeira apari��o no fim do fragmento do mito
escatol�gico protagonizado por Polo Febo. As �ltimas palavras de Celestina
incorporam o aspecto introdut�rio e, literalmente, o faz no epis�dio Aos pés do
Senhor, quando inicia, ao avesso, toda a narrativa contida na primeira parte do
romance. A constru��o anagram�tica anuncia uma cria��o espelhada, fruto de outra
perspectiva construtiva: “Esta � a minha hist�ria. Quero que ou�a minha hist�ria.
Ou�a. Ou�a. Acuo. Acuo. Air�tsih ahnim acuo euq oreuq. Air�tsih ahnim � atse.”
(p.35).
A introdu��o iniciada pelo fim � significativa � medida que traduz formalmente
uma das caracter�sticas tanto de La Celestina de Fernando Rojas, como as das
229
outras ressaltadas por Terra Nostra, s�o refer�ncias que remetem ao avesso de
uma hist�ria lineal, recorte liter�rio que pode ser interpretado como uma constru��o
carnavalizada da Hist�ria pelo caminho da fic��o.
A transgress�o espa�o-temporal do primeiro epis�dio inicial de Terra Nostra
dialoga com a vis�o de mundo subvertido de La Celestina. O poder desta
personagem reside na sua capacidade de inserir o caos nas ordens sociais
preestabelecidas por subverter as hierarquias. Essa peculiaridade da personagem
comp�e o espa�o liter�rio no contexto da cidade de Paris de 1999 e, na estrutura do
romance, funciona como an�ncio do encaminhamento a toda a a��o. Esses fatos,
marco inicial que operam como uma introdu��o, s�o uma advert�ncia que indica que
o mundo o real se destr�i e que uma nova refer�ncia espa�o-temporal se inicia.
Adverte que a pr�tica de todo fato tem seu duplo sentido de a��o e como
consequ�ncia, todos os atos t�m sua resson�ncia no passado e no futuro. A partir
da� come�a a narrativa que compreende e centra sua a��o na figura do Senhor no
Velho Mundo.
Todos os relatos que surgem em O Outro Mundo solucionam os enigmas
apresentados na primeira e na segunda parte. O relato da primeira parte constitui a
velha Espanha autorit�ria, f�nebre e dogm�tica do Senhor, cuja forma de poder
inicia sua a��o a partir da expuls�o dos judeus em 1492 e se estende at� o exerc�cio
do ditador espanhol Francisco Franco (1892-1975) – lembrando que Terra Nostra
foi escrita entre os anos de 1969 a 1974, per�odo em que a Espanha e grande parte
dos pa�ses latino-americanos viviam submetidos aos regimes ditatoriais. O romance
reescreve o passado iluminando as �reas obscuras da Hist�ria linear na tentativa de
compreender as origens do poder autorit�rio que dominava a esfera pol�tica do
mundo latino-americano da d�cada de setenta. Situa a a��o na Espanha da dinastia
dos �ustria, per�odo em que a Pen�nsula Ib�rica alcan�a seu apogeu imperial e a
Am�rica Latina come�a a sofrer os efeitos de uma coloniza��o deficiente.
Centra sua aten��o na alvorada da Idade Moderna e no enfrentamento cultural
entre a Espanha imperial e o M�xico pr�-hisp�nico. Dialoga com uma boa parte da
hist�ria ocidental de cronologias exatas, de sucess�es din�sticas e de grandes
fa�anhas e empreitadas �picas das cr�nicas oficiais; e desloca a vis�o herdada da
narrativa tradicional para o plano das in�meras possibilidades de vers�es oferecidas
230
pelo acervo da vers�o ap�crifa. Essa atitude cede lugar a in�meras vozes, um caos
aparente que estabelece outros par�metros narrativos na coer�ncia interna da obra.
As formas un�vocas de poder dos povos mesoamericanos s�o discutidas no
mesmo patamar que as do poder hegem�nico da Espanha da dinastia dos �ustria.
Para Carlos Fuentes, “ao comparar esses poderes absolutistas separados por
universos culturais t�o distantes, percebe-se que existe uma semelhan�a na forma
de exerc�cio do poder e da ordem” (1976, p.54). Em ambos os casos trata-se de
sistemas estabelecidos pela viol�ncia e pela imposi��o de uma ordem ideol�gica
que abafa qualquer diverg�ncia poss�vel.
O di�logo fecundo entre os mitos pr�-hisp�nicos, os textos,as personagens e
autores consagrados da Am�rica Latina possibilita a constru��o de uma vers�o
alternativa do passado. Relatos repletos de elementos fant�sticos tornam-se
aparentemente reais no universo da fic��o liter�ria, isso propicia a ruptura da
linearidade temporal autorizando a intertextualidade. Terra Nostra apresenta
personagens da Literatura Espanhola interagindo no mesmo espa�o com as figuras
da Hist�ria da Espanha. Todos aparecem nos grandes blocos temporais
fragmentados ao longo da obra, �s vezes seguem fielmente os relatos
historiogr�ficos, em outras, surgem permeados pela liberdade ficcional, que os
permitem agir livremente. No desenvolvimento da narrativa, h� uma invers�o de
valores morais e est�ticos que caracterizam a carnavaliza��o da hist�ria nos termos
de Bakhtin.
A carnavaliza��o caracteriza-se como a celebra��o do riso, do c�mico,
subvertendo a ordem pr�-estabelecida por meio do deboche, pela s�tira da
realidade; compreende um universo de invers�o, de deslocamento, de contradi��o,
pr�prio da literatura carnavalizada. Bakhtin defende que, assim como no carnaval,
em que todas as pessoas s�o participantes ativas, da mesma forma a literatura
tamb�m abrange todos os aspectos da vida social: “As leis, proibi��es e restri��es,
que determinavam o sistema e a ordem da vida comum, isto �, extracarnavalesca,
revogam-se durante o carnaval: revogam–se antes de tudo o sistema hier�rquico e
todas as formas conexas de medo, rever�ncia, devo��o, etiqueta, etc., ou seja, tudo
o que � determinado pela desigualdade social hier�rquica ou qualquer outra esp�cie
de desigualdade entre os homens”. (2002, p.105). Carnavalizar a hist�ria na
abordagem liter�ria implica na ruptura dos padr�es tidos como oficiais, baseando-se
231
na representa��o da cultura popular, entendida como uma linguagem carregada de
s�mbolos e alegorias, em que se pontua a diverg�ncia entre o oficial e o n�o-oficial,
uma ruptura com o s�rio, o institucionalizado.
O estudo apresentado por Bakhtin possibilita uma proximidade entre o conceito
de carnavaliza��o, que para o autor representa um mundo �s avessas e tem como
referencial as festas pag�s da Antiguidade Cl�ssica greco-romana. Durante esse
per�odo se desfazem as fronteiras sociais, misturam-se os desejos, instauram-se
dicotomias como entre o sagrado e o profano, o sublime e o vulgar, o belo e o feio. A
concep��o da escrita na cria��o carnavalesca implica na liberdade de express�o, o
uso da s�tira, da ambival�ncia “e todos os matizes da linguagem carnavalesca livre
(...) penetraram fundo em quase todos os g�neros da literatura de fic��o” (2002,
p.112).
O carnaval propriamente dito n�o �, evidentemente, um fen�meno liter�rio. � uma forma sincr�tica de espet�culo de car�ter ritual, muito complexa, variada, que, sob base carnavalesca geral, apresenta diversos matizes e varia��es, dependendo da diferen�a de �pocas, povos e festejos particulares. O carnaval criou toda uma linguagem de formas concreto-sensoriais simb�licas. Essa linguagem exprime de maneira diversificada uma cosmovis�o carnavalesca uma, que lhe penetra todas as formas. � a transposi��o da linguagem do carnaval para a linguagem da literatura que chamamos carnavaliza��o da literatura. (2002, p.122).
Um dos prop�sitos da carnavaliza��o da hist�ria no romance � o de prover um
sentido de identidade, um sentido de origem a Polo Febo. Ao conhecer a hist�ria se
reconhece nela e pela voz da Celestina-mem�ria, acaba por conhecer-se a si
mesmo. No ensaio Valiente mundo nuevo, Carlos Fuentes escreve:
Para Bakhtin, em efeito, o romance � um campo de energia determinado pela luta incessante entre as for�as centr�petas que desenham a hist�ria, resistem ao movimento, desejam a morte e pretendem manter as coisas juntas, unidas, id�nticas; e as for�as centr�fugas que amam o movimento, o devir, a hist�ria, a mudan�a e asseguram que as coisas se mantenham variadas, diferentes, afastadas entre si. (...). O romance � instrumento do di�logo no sentido mais amplo: n�o apenas entre as personagens, sen�o entre as linguagens, as ci�ncias, os g�neros, as for�as socias, per�odos hist�ricos distantes e cont�nuos. (...) essas caracter�sticas do romance segundo Bakhtin s�o convenientes para o estudo do romance latino-americano: forma incompleta, arena onde podem
232
reunir-se hist�rias distantes e linguagens conflitantes, transcendendo a ortodoxia duma linguagem unit�ria de s� uma cosmovis�o – trata-se das linguagens e das vis�es da teocracia asteca, da Contrarreforma espanhola, do racionalismo e do hedonismo posindustrial. (...). O romance como um produto cultural traduz dinamicamente os conflitos da rela��o entre o pr�prio ser e o ser alheio, o indiv�duo e a sociedade, o passado e o presente, o contempor�neo e o hist�rico, o acabado e o inacabado, mediante uma constante admiss�o do plural e do diverso na linguagem e na vida. (1992, p.37, 38).
Diz Carlos Fuentes que compreender o pensamento ib�rico � determinante
para entender o modo como se processam a conquista e a coloniza��o dos povos
do Novo Mundo. A compreens�o de mundo no romance se adquire ao dialogar com
outros romances, nesse processo dial�gico, Terra Nostra evoca autores, obras e
personagens da Espanha do s�culo XVI e do XVII. A Celestina � a portadora desse
conhecimento, � quem surge em meio do caos, ela revela a hist�ria e ela conta a
sua vers�o: “Esta � a minha hist�ria. Desejo que voc� ou�a minha hist�ria” (p. 35).
Tamb�m � ela que se apresenta para o n�ufrago encontrado na praia e o leva at� o
rei para que ele relate a sua vers�o.
(...) cercou o rosto do mo�o com as m�os e aproximou a l�ngua morna e suave da boca aberta do n�ufrago. As duas l�nguas uniram-se e o jovem pensou: “Regressei. Quem sou eu? Ressuscitei. Quem � voc�? Sonhei. Quem somos? Pensou que afinal repetiu em voz alta, pois o pajem lhe respondeu, pr�ximo da orelha que n�o cessava de acariciar: - Todos n�s esquecemos oi seu nome. Eu me chamo Celestina. Desejo que ou�a uma hist�ria. Depois voc� vir�”.
(TN, p.108)
A Celestina tamb�m manifesta duas imagens: uma � a da tradi��o
mediterr�nea; a outra, a da Espanha percebida pelos latino-americanos, amb�gua,
de ambiciosa crueldade e de ternura. A nova Celestina � a imagem rom�ntica e
pitoresca da Espanha renascentista repleta de paix�o e de liberdade, que ao
resguardar a mem�ria da primeira Celestina completa sua mem�ria sobre o passado
da Espanha. Uma na��o nascida da tradi��o mediterr�nea renascentista, g�tica e
cigana e da tradi��o judia, �rabe, grega e romana. Pelo prisma dos povos da
Am�rica, a nova Celestina � uma figura ambivalente, imagem do santo mission�rio e
do cruel conquistador, como ilustra O Outro Mundo. Em El espejo enterrado, Carlos
Fuentes comenta:
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Em nossas mentes h� muitas “Espanhas”. Existe a Espanha da “Lenda negra”: Inquisi��o, intoler�ncia e Contrarreforma, uma vis�o promovida pela alian�a da modernidade com o protestantismo, fundidos por sua vez numa oposi��o secular � Espanha e a todas as coisas espanholas. Em seguida, existe a Espanha dos viajantes ingleses e dos rom�nticos franceses, a Espanha dos touros, Carmen e o flamenco. E existe tamb�m a m�e Espanha vista por sua descend�ncia colonial nas Am�ricas, a Espanha amb�gua do cruel conquistador e a do santo mission�rio, tal e como nos � oferecida, em seus murais, pelo pintor mexicano Diego Rivera. (1992, p.17).
Ao longo da narrativa de Terra Nostra � poss�vel perceber as “muitas
Espanhas” a que se refere Carlos Fuentes no texto acima citado. Os fatos hist�ricos
disseminados ao longo do romance s�o discutidos e analisados com a inten��o de
identificar essas Espanhas mencionadas pelo autor e reconhecer os acontecimentos
que as geraram. Essa tarefa se realiza por meio das in�meras vozes dos narradores
que constituem a escrita plural. As personagens desempenham simultaneamente o
papel de narrador e cr�tico, eles defendem seus respectivos pontos de vista
desacralizando a escrita individual do autor.
Bakhtin concebe os textos polif�nicos como o resultado da express�o de
diversos indiv�duos aut�nomos e livres em rela��o ao autor, a polifonia � o elemento
que harmoniza a diversidade de vozes independentes produzindo diferentes efeitos
de sentidos que ecoam m�ltiplas ideologias. A produ��o de sentidos gerada pela
heterogeneidade discursiva concebe a polifonia:
(...) a voz do her�i sobre si mesmo e o mundo � t�o plena como a palavra comum do autor; n�o est� subordinada � imagem objetiva do her�i como uma de suas caracter�sticas, mas tampouco serve de int�rprete da voz do autor. Ela possui independ�ncia excepcional na estrutura da obra, � como se soasse ao lado da palavra do autor coadunando-se de modo especial com ela e com as vozes plenivalentes de outros her�is. (1986, p. 23).
A imagem sombria e cruel em Velho Mundo se constr�i pelas vozes do Senhor,
de Ludovico, de Polo Febo-Peregrino, de Celestina, de Guzm�n, e da Senhora
reunidos no Pal�cio; em O Mundo Novo Peregrino cria a imagem amb�gua amorosa
e cruel da Espanha, por meio de um sonho e desde a cosmovis�o das vozes
provenientes da Am�rica Latina. Em O Outro Mundo Ludovico e Celestina, o
234
Cronista Miguel e Frei Juli�n se apoderam da fic��o para expor a imagem rom�ntica
e pitoresca da Espanha. Esses quatro narradores relatam os acontecimentos desde
diferentes perspectivas dial�gicas a partir de suas respectivas posturas ideol�gicas.
No romance polif�nico cada personagem tem autonomia, exprime a pr�pria
concep��o, pouco importa se ela coincida ou n�o com a ideologia do autor da obra.
A polifonia acontece quando cada personagem se manifesta com a pr�pria voz,
expressando o pensamento individual. Para Bakhtin, “existindo determinado n�mero
de personagens, existir�o diversas posturas ideol�gicas” (1986, p.24).
Todos esses seres apresentam sua pr�pria vers�o dos fatos, se defendem e
argumentam. Como no caso do Senhor e aos momentos decisivos de sua hist�ria,
que s�o narrados por ele mesmo; o universo dos tr�s jovens � narrado pelo
Peregrino; Guzm�n e o Cronista Miguel narram e escrevem vers�es opostas dos
mesmos fatos; Teodoro fala da Espanha desde sua cosmovis�o pol�tico-religiosa;
Ludovico diz e desdiz o anteriormente narrado pelos outros e o Peregrino relata de
outra maneira o que Celestina conhece e guarda na mem�ria. Todos formam um
mosaico de aproxima��o narrativa que pela perspectiva da carnavaliza��o liter�ria
prop�e um mundo ao avesso.
A carnavaliza��o est� diretamente associada � familiaridade, � ruptura de
hierarquias a partir do contato de aproxima��o. Tais caracter�sticas s� s�o poss�veis
pela utiliza��o de uma linguagem rica em ambival�ncia e potente em for�a
regeneradora. Assim como a vis�o carnavalesca, constitu�da pela ambiguidade e
duplicidade, a palavra tamb�m tem sua ess�ncia relacionada ao duplo, como
Bakhtin que prop�e: A palavra dirige-se a um interlocutor: ela � fun��o da pessoa
desse interlocutor: variar� caso se trate de uma pessoa do mesmo grupo social ou
n�o, se esta for inferior ou superior na hierarquia social, se estiver ligada ao locutor
por la�os sociais mais ou menos estreitos (2004, p.112).
Na �ltima reflex�o de Polo Febo, narrada em A última cidade, o jovem percebe
a carnavaliza��o da hist�ria pela voz do narrador onisciente, que evidencia a
ideologia do autor frente � modernidade:
Cansas rapidamente de ler. Nunca sabes si te entristeces ou te alegras pelo fato destes pap�is, destas vozes mudas de homens de outros tempos, sobreviverem �s mortes dos homens de teu tempo. Para que conservas os escritos? Ningu�m os ler� (...). � prefer�vel
235
esta segura desolação ao incerto risco de escrever para ver o escrito proibido, destruído, queimado em grandes fogueiras enquanto as massas desinformadas gritam morte a Homero, morte a Dante, morte a Shakespeare, morte a Cervantes, morte a Kafka, morte a Neruda. (...). Entre a vulgaridade do evento do evento e a impenetrabilidade do mistério, apelas à razão para que ela te salve de ambos os extremos. Estás em Paris. Desde o México não lestes bem Descartes; na verdade, ele disse ele que a razão que, sentindo-se suficiente só nos dá conta de si mesma, é uma má e pobre razão. E agora a Descartes o comparas com Pascal: tão necessariamente está o homem, que seria uma loucura não estar louco: tal é a volta do parafuso da razão. E ao pensar em Pascal pensas no teu velho Erasmo e seu elogio da Loucura que relativiza os pretensos absurdos do mundo anterior e do mundo imediato: do Medievo, Erasmo arrebata a certeza das verdades imutáveis e os dogmas impostos; da modernidade, reduz a proporção irônica do absoluto da razão e o império do eu. A loucura erasmiana é o homem posto em xeque pelo próprio homem, a razão pela própria razão. Mas é também a consciência crítica de uma razão e um ego que não querem ser enganados por ninguém, nem sequer por se mesmos. Pensas tristemente que o erasmismo pôde ser a pedra de toque da tua própria cultura hispano-americana. Porém o erasmismo passado pelo crivo espanhol derrotou-se a si mesmo. Suprimiu a distância irônica entre o homem e o mundo, para se entregar à voluptuosidade de um individualismo feroz, divorciado da sociedade, mas dependente do gesto externo, da atitude admirável, da aparência suficiente para justificar, ante um e ante os outros, a ilusão da singularidade emancipada. Uma rebelião espiritual que termina por alimentar a mesma coisa que dizia combater: a honra, a hierarquia, o atrevimento do fidalgo, solipsismo do místico e a esperança de um déspota ilustrado. (TN, p.774).
Os três mundos criados no romance são gigantescas e complexas imagens da
Espanha na sua relação com a América, todas essas imagens surgem refletidas e
refratadas gerando a ideia de espelho, dentro de uma delas se manifesta o
descobrimento da tradição cultural da América Latina. Polo Febo-Peregrino
representa os três pontos de vista culturais: a heresia medieval dirigida contra a
ortodoxia ilustrada no Velho Mundo, a utopia histórica da epopeia ocidental sobre a
conquista do México no Mundo Novo e, no Outro Mundo, a história moderna de Vico
fundadora, na ficção, da cultura ocidental.
No Velho Mundo, Polo Febo-Peregrino atua para destruir o discurso unívoco do
Senhor, quem pretende perpetuar-se como a única voz, a única ordem, unidade e
poder. No Mundo Novo se mostram as duas caras da história da América: a
conquista sangrenta por parte dos conquistadores e o sonho utópico sobre a
reconstrução do Paraíso perdido dos missionários. América Latina se apropria de
236
uma linguagem exigida pela versão oficial dos fatos dada pelos europeus. No Outro
Mundo, Polo Febo-Peregrino se remonta ao tempo circular, passado, presente,
futuro, como tempo original e fundador, que oferece a solução harmoniosa dos
opostos. No Outro Mundo, Ludovico parte na sua viagem de aprendizado pelas
palavras originais, para conhecer a origem da História.
No artigo, Lógica das diferenças e política das semelhanças da Literatura
que parece História ou Antropologia, e vice-versa (2001), Walter Mignolo
comenta que, por convenção, criou-se uma distinção abismal entre a narrativa
histórica e a literária. A narrativa historiográfica era percebida como uma
representação do real e, a literária, como mera representação do imaginário, do
ficcional e do irreal. Ele considera que há uma estreita ligação entre o relato histórico
e a ficção:
O escritor ou historiador opera dentro do contexto x de historiografia, ou e de literatura, ou se opõe a eles de uma maneira que é incompreensível, porque, ao opor-se, invoca-as (...) a heterogeneidade e a mobilidade dos níveis de conhecimento, as variações que podem ocorrer dentro de tais normas ou convenções, uma vez que em se tratando de discurso, pouco pode ser definido e sacralizado como verdade incontestável. (p.124).
Os narradores no romance muitas vezes se contradizem entre si, em outras se
complementam, justapondo os acontecimentos da história, eles interpretam a
história pelas diferentes versões e perspectivas da história do Senhor, pelo sonho do
Peregrino, pela ficção de Ludovico e pela memória de Celestina. Esta última
acumula a memória de todos, as lembranças individuais e coletivas de todos os
outros, conformando-se em memória total.
Carlos Fuentes elabora uma crítica à escrita individual, a de um sujeito único e
homogêneo. Com isso pretende realizar a escrita total, de tal forma que ao não
reconhecer-se a voz do autor, o romance passa a ser escrito por todos, pelo plural
em oposição ao eu. As personagens de Terra Nostra falam desde pontos de vista
multidirecionais e como plurisocioculturais. Em seu ensaio Cervantes o la crítica de
la lectura (1989), Carlos Fuentes comenta que Joyce defende que suas
personagens não são como as tradicionais, senão recipientes repletos de água
237
verbal, e quando essas palavras s�o pronunciadas, derramadas, por suas
personagens, se transformam em palavras escritas.
Essa proposta de constru��o liter�ria transfigura as personagens o que torna
dif�cil identificar nas in�meras narra��es a voz do narrador oficial, autoral no
romance. Ao narrar um mesmo epis�dio desde diferentes pontos de vista cria-se a
unidade poss�vel, como um Jano invertido em que as duas caras se olham de frente
para dialogar e se completar, conformando, em conjunto, a hist�ria do romance em
sua rela��o com a realidade hist�rico-cultural dos dois continentes.
Segundo Carlos Fuentes, Joyce critica a escrita individualista, monof�nica do
romance documental, ele defende a escrita total, conformada a partir de uma ordem
tr�ptica: a epopeia hom�rica, a escol�stica medieval e a progress�o hist�rica de
Vico. Em Terra Nostra o triplo processo da escrita total se constitui nos tr�s
mundos: o Velho Mundo em que domina a escol�stica da Idade M�dia e a heresia
medieval; o Mundo Novo com a �pica hom�rica representada pela �pica cl�ssica do
Peregrino; no Outro Mundo com a hist�ria moderna de Vico que faz o templo fluir em
espiral.
No Outro Mundo Ludovico parte numa viagem de aprendizagem em busca das
palavras originais. Depois de assumir sua viagem de peregrina��o ao mundo de
Os�ris e Seth, ao mito de Ulisses e ao Teatro da Mem�ria do Donno Val�rio Camillo,
o tr�plice her�i vivencia a viagem dos sonhos libertadores, entre os quais o
companheiro de Don Quijote se remonta � origem verbal da literatura, aos campos
de Montiel em La Mancha. Ao mesmo tempo, esse tr�plice her�i foi originado no mar
de Capri, onde o fantasma de Agrippa P�stumo o Cl�udio foi jogado no mar, levando
consigo a maldi��o de Tib�rio. Dentro do mar das palavras, elas se reencarnam em
tr�s figuras invis�veis: religi�o, literatura e utopia hist�rica, com seus tr�s respectivos
movimentos, surgem em forma de tr�s transgressores ou usurpadores contra a
dinastia da Espanha. Cada um deles possui sonhos de liberdade.
Na discuss�o entre a fic��o e o real, Maria Zaira Turchi comenta em seu livro
Literatura e antropologia do imaginário (2003) que a hist�ria das civiliza��es
poderia ser resumida “na aventura do homo sapiens que, entre contrastes e
antinomias, penosamente e por tentativas, abre espa�os � procura da verdade”
(2003, p.13). Nessa eterna procura, desenvolve o imagin�rio num mundo povoado
por s�mbolos na tentativa de sistematizar sua plurissignifica��o que abrange desde
238
“a imagem-modelo � imagem-energia do criador” (p.5). A imagina��o humana �
energia vital inalien�vel das configura��es de sentido que transcende e ordena
todas as outras atividades da consci�ncia.
O discurso po�tico se adentra no imagin�rio buscando a simultaneidade da imagem no modo sint�tico de dizer uma experi�ncia. (...) reproduz a flexibilidade do pensamento m�gico estabelecido pelas met�foras. (...). Na raiz da figura��o simb�lica (...) com a for�a da linguagem (...) o l�rico � a emo��o do pensamento que compreende e significa um novo sentido, em palavras ainda quentes do mist�rio da a��o interior, despojadas de outras camadas materiais. No l�rico, a consci�ncia quer realizar o duplo movimento de revelar o mundo, revelando-se a si pr�pria como reveladora do mundo. (...). Voltando ao princ�pio das estruturas m�ticas e do g�nero l�rico � preciso lembrar o se poder de atribuir ao mundo um ritmo universal que se faz presente no redobramento indefinido das imagens (...). No l�rico e no m�tico, as liga��es e as fus�es infinitas s�o organizadas pela atitude repetidora da consci�ncia, capaz de transformar o ru�do do mundo em melodia (...). Nesse processo interno, a repeti��o interessa como auto-gera��o de um sentido novo e n�o apenas como acr�scimo de detalhes e digress�es que ampliam e refor�am o campo dos temas ficcionais, narrativos ou dram�ticos. (2003, p.60, 62).
Isso porque desde o mais remoto de sua hist�ria, o homem almeja entender e
apreender o mundo que o rodeia, mais ainda, sonha com outros mundos, cruzar
fronteiras, conquistar e alcan�ar novos cumes, e nesse �mpeto por ir al�m, se faz
uma s�rie de perguntas. Para conseguir as respostas usa a imagina��o, por meio
dela viaja para al�m das estrelas, visita as gal�xias mais remotas, percorre com
gozo ou com terror as profundezas dos abismos, cruza o infinito, abre novas
estradas, tra�a novos rumos, domina o tempo e vai al�m da fantasia, imagina e, por
meio da imagina��o, cria a Arte. A express�o art�stica caminha o caminho do
homem, ele a cultiva e se deixa cativar por ela, quando procura a liberdade perdida,
ou se enfrenta o perigo, em tempos de exce��o, no meio de profundas emo��es a
desenvolve com for�a, com criatividade. A imagina��o transcende e organiza as
atividades da consci�ncia propiciando a constru��o simb�lica do mundo. No
romance, as lutas contra a realidade do Senhor se expressam por diversas
perspectivas dial�ticas e ideol�gicas: pela pintura de Juli�n, pela cr�nica das obras
liter�rias do Cronista Miguel, pelo Teatro da Mem�ria de Val�rio Camillo e a
oralidade de Celestina. Essas perspectivas apresentam uma dupla imagem, paralela
e simult�nea, da luta entre os fatos reais do Senhor e os ideais dos contr�rios.
239
O car�ter universal da arte permite que esta seja desenvolvida por todos os
povos e percebida pela Antropologia como mais uma das atividades socioculturais.
O gosto pela beleza forma parte da constru��o de mundo dos indiv�duos. Cada
grupo humano constr�i a ideia do belo conforme aos padr�es herdados ou criados
atrav�s da uma determinada vis�o de mundo. O padr�o de est�tica varia de arte
para arte, de cultura para cultura e de tempo em tempo, o que evidencia o car�ter
social das artes. Essa cosmovis�o autoriza a cria��o art�stica, que pertence ao
campo do dom�nio da cultura material e da espiritual, indissoci�veis e parte
integrante da vida dos homens. A linguagem po�tica nasce como uma necessidade
de expor sentimentos e a inspira��o possibilita a fun��o criadora como atividade do
esp�rito que se apresenta sob a forma da fic��o na sua materialidade pela palavra.
A quest�o sempre aberta, relativa � exist�ncia e � natureza de uma linguagem puramente po�tica enriqueceu-se, nas �ltimas d�cadas, em fun��o das discuss�es precedentes, atrav�s dos contributos das novas teorias da Lingu�stica, da Semi�tica e da Teoria Liter�ria. O discurso po�tico foi frequentemente, definido pela distin��o da linguagem em referencial e emotiva, denotativa e conotativa, monossignificativa e plurissignificativa, un�voca e amb�gua, meton�mica e metaf�rica. Se na teoria parece simples, na pratica verifica-se n�o existir linguagem puramente referencial do mesmo modo que n�o se pode excluir da emotiva o aspecto de refer�ncia. Se nem mesmo a linguagem cient�fica merece o qualificativo de absolutamente un�voca, a linguagem po�tica, por sua vez, n�o poder� aspirar ao t�tulo de absolutamente mult�voca. Os dois aspectos opostos podem coexistir na mesma mensagem de acordo com o estado de esp�rito do autor ou com o do leitor.
(Turchi. 2003, p.72).
A palavra liberta o pensamento e a imagem concreta, por ela o homem � capaz
de conquistar a generalidade do conceito e passa do concreto para o abstrato,
criando novas formas de express�o. Diz Jacques Lacan que “o homem se distingue
das demais criaturas por sua linguagem simb�lica articulada, pois a lei primordial
que instaura a sociedade � a ordem simb�lica, todas as institui��es, todas as
realiza��es humanas t�m car�ter simb�lico. O sujeito humano � constitu�do pela
fun��o simb�lica, e que fala porque o s�mbolo o fez homem. A linguagem fala por
interm�dio dos seres humanos, na medida em que eles a falam” (1998, p.56).
Em Elogio de la filosofía Merleau-Ponty argumenta que o homem enquanto
ser racional interpreta e expressa seus desejos, sentimentos, sonhos e
240
pensamentos e os traduz em palavras. A palavra � o instrumento mais eficaz na
comunica��o, organiza o pensamento e o explica, a palavra o acompanha nas
in�meras atividades desenvolvidas ao longo da vida, � capaz de analisar e criticar
qualquer outro tipo de linguagem.
A humanidade h� veiculado, por interm�dio da palavra, de gera��o em gera��o, o conhecimento, o comportamento e valores que constituem a cultura dos mais variados grupos sociais. (...) Respeito � linguagem, reconhecemos que este possui uma esp�cie de “interior” formado por sua pr�pria gram�tica ou inclusive sua l�gica. Mas este interior n�o est� em absoluto fechado sobre si mesmo, porque a linguagem n�o expressa apenas pensamentos sen�o tamb�m a “tomada de posi��o do sujeito no mundo dos significados
(1970, p.87).
O exerc�cio de conviv�ncia com a fala e com a escrita se estende por toda vida
do homem, num aprimoramento sem fim. A l�ngua � uma conven��o social
composta de palavras devidamente codificadas e reconhecidas como signos
lingu�sticos. O signo � um s�mbolo, um sinal portador de significa��o. O signo verbal
tem duas faces: significante – gr�fica e sonora representada por letras e sons; e
significado – representada pelo conceito transmitido, � a face abstrata. Diz Maria
Zaira Turchi que “a fantasia ing�nita produz os mitos que nada mais s�o do que a
pr�pria palavra significante na sua forma espiritual”(2003, p.19). Nessa rela��o, para
um �nico significante pode haver v�rios significados. Considerando a capacidade de
cria��o dos falantes ao compor as ora��es, nas in�meras situa��es da
comunica��o, pode-se chegar a um grau de significa��o infinito. No romance, a
Literatura, a Filosofia, a Sociologia, a Psicologia, e a Antropologia, de entre outras
�reas do saber, dialogam com a Hist�ria para real�ar as in�meras possibilidades de
leitura.
Segundo Vico, aos est�gios iniciais da humanidade corresponde uma vis�o po�tica, isto �, m�tica e criadora. Antes de conhecer as causas racionais dos fatos o homem as imagina, as cria pela for�a da imagina��o e as considera em seguida, como realidades exteriores a ele. Uma vez reconhecida a necessidade da imagina��o, para que a linguagem cumpra sua fun��o simb�lica de sentido po�tico, � preciso reconhecer que a mitologia oferece caminhos para a an�lise liter�ria, porque se fundamenta no dinamismo interno dos mitos (2003, p.72).
241
A arte liter�ria, como signific�ncia de intera��o social, fortalece as rela��es do
homem com um mundo conhecido, recriado e escrito e lido por ele. Carlos Fuentes
costuma dizer que fala um idioma emprestado desde o tempo da Conquista. Isso
seria um desafio em Hispano-Am�rica, que tem profundas ra�zes ind�genas e um
sentido de passado hist�rico “houve algo antes que chegassem os europeus. Sou
mesti�o. Tenho ancestrais espanh�is e ind�genas. O espanhol � um grande idioma,
que nos permite, de alguma forma, formar uma unidade cultural” (1999, p.144-145).
Em Geografia de la novela comenta que isso n�o � uma novidade para o
escritor da Am�rica Espanhola, trata-se de uma l�ngua que cria uma familia liter�ria.
Argumenta que o interc�mbio da literatura � t�o antigo como o Diario de a bordo de
Colombo e que os primeiros escritores em l�ngua espanhola s�o os exploradores,
conquistadores e recopiladores das �ndias que relatam “o nascimento de uma
civiliza��o indoafroamericana, da Calif�rnia a Chile na sua vertente pac�fica e do Rio
da Plata � Florida em sua vers�o atl�ntica”. Menciona o poeta chileno Pablo Neruda
em Confieso que he vivido, “em uma harmonios�ssima p�gina de sua
autobiografia, lhe canta assim � l�ngua espanhola,
Qu� buen idioma el m�o, qu� buena lengua heredamos de los conquistadores torvos... Estos andaban a zancadas por las tremendas cordilleras, por las Am�ricas encrespadas, buscando patatas, butifarras, frijolitos, tabaco preto, ouro, ma�z, huevos fritos, con aquel apetito voraz que nunca m�s se ha visto en el mundo… Todo se lo tragaban, religiones, pir�mides, tribus, (…) Por donde pasaban quedaba arrasada la tierra… pero a los b�rbaros se les ca�an de las botas, de las barbas, de los yelmos, de las herraduras, como piedrecitas, las palabras luminosas que se quedaron aqu� resplandecientes…el idioma… Salimos perdiendo… Salimos ganando… Se llevaron el oro y nos dejaron el oro… Se lo llevaron todo y nos dejaron todo… Nos dejaron las palabras.
(1993, p.169, 170).
A linguagem humana n�o pode ser explicada apenas como resultado de um
processo cont�nuo de aperfei�oamento das formas mais elementares de
comunica��o encontradas entre os outros animais, ela n�o � apenas o produto de
uma emerg�ncia evolutiva, de acordo com as teorias biol�gicas e gen�ticas. Em
Antropologia Estrutural, Claude L�vi-Strauss escreve,
242
(...) na etnologia como na lingu�stica, por conseguinte, n�o � a compara��o que fundamenta a generaliza��o, mas ao contr�rio. Se, como cremos, a atividade inconsciente do esp�rito consiste em impor formas a um conte�do, e se as formas s�o fundamentalmente as mesmas para todos os esp�ritos, antigos e modernos, primitivos e civilizados – como o estudo da fun��o simb�lica, tal como se exprime na linguagem, o mostra de maneira t�o not�vel – � preciso e basta atingir a estrutura inconsciente (...). Como chegar a esta estrutura inconsciente? � aqui que o m�todo etnol�gico e o m�todo lingu�stico se encontram (1967, p.37).
A linguagem � um fen�meno social e as palavras revestem as ideias e os
sentimentos, s�o ricas em significado e sonoridade e dificilmente designam apenas
uma coisa, j� que toda palavra utilizada num contexto novo se torna, em raz�o
disso, uma nova palavra. O signo na linguagem pode representar tanto o imagin�rio
como o real. No campo da literatura o imagin�rio � o espa�o predileto da fic��o, que
por sua vez, bebe na fonte do mito, para L�vi-Strauss, o mito deriva da assimetria
entre cren�a e realidade, liberdade e necessidade, identidade e diferen�a. O mito � a
s�ntese entre os aspectos diacr�nico e sincr�nico da linguagem, tentativa constante
de reconciliar o irreconcili�vel.
Apesar das diverg�ncias de nomenclatura, existe uma unanimidade quanto � fun��o po�tica da linguagem que se caracteriza, primaria e essencialmente, pelo fato de a mensagem criar, de modo imagin�rio, a sua pr�pria realidade. Segundo Vico, aos est�gios iniciais da humanidade corresponde uma vis�o po�tica, isto �, m�tica e criadora. Antes de conhecer as causas racionais dos fatos o homem as imagina, as cria pela for�a da imagina��o e as considera, em seguida, como realidades exteriores a ele. Uma vez reconhecida a necessidade da imagina��o, para que a linguagem cumpra sua fun��o simb�lica de sentido po�tico, � preciso reconhecer que a mitologia oferece caminhos para a an�lise liter�ria, porque se fundamenta no dinamismo interno dos mitos. (Turchi. 2003, p.72)
Na linguagem po�tica de Carlos Fuentes evoca a literatura que relata uma
parte da Hist�ria, para contar a hist�ria da Literatura e das diferentes vers�es da
Hist�ria. A literatura evocada redimensiona uma amplitude de vozes para que o
romance construa sua vis�o fragmentada e plural da realidade. Terra Nostra n�o
relata a Hist�ria da Espanha nem da Am�rica, mas a fragmenta��o das narrativas
hist�ricas; as reconstr�i para serem percebidas como possibilidades de constru��o,
da� a carnavaliza��o, que no sentido bakhtiniano que “desacraliza a vers�o �nica e
formal, o car�ter l�dico est� presente em toda experi�ncia est�tica, seja nos moldes
243
da arte cl�ssica ou da arte moderna (...). O tra�o l�dico-festivo representa um campo
precioso para o estudo da problem�tica da chamada identidade cultural” (2002,
p.87). Carlos Fuentes faz alus�o � coexist�ncia simult�nea dos contr�rios
percebidos desde m�ltiplas perspectivas em Cervantes o la crítica de la lectura,
(...) � escrita de romances onde podem coexistir todos os contr�rios vistos simultaneamente desde todas as perspectivas poss�veis. Mas, podem se chamar romances estes livros? Estes fatos radicais da escrita cr�tica que terminam por significar uma demoli��o dos g�neros, uma invas�o da escrita pelos cientistas f�sico-matematicos, pelo cinema, pela pl�stica, pela musica, pelo jornalismo, pela antropologia e, por sobre tudo, pela poesia. (1989, p.106)
Suas considera��es reafirmam a ideia de que a Hist�ria e a Literatura dialogam
com as outras ci�ncias, e que se pode ler parte da hist�ria das sociedades nas
linhas e nas entrelinhas da Literatura. Essas ideias reafirmam um dos argumentos
principais no romance, “o artif�cio liter�rio possibilita uma ampla percep��o da
sociedade” (p.35). Don Juan, Celestina e Don Quijote ingressam na narrativa de
Terra Nostra dotados de uma forte refer�ncia simb�lica, funcionam como um
contraponto para a ideologia representada pelo Senhor que � minuciosamente
descrita e reafirmada, quando essas tr�s figuras se tornam personagens do
romance, as ideias de paralelismo e de ruptura alcan�am um expoente elevado de
significa��o. Em Cervantes o la crítica de la lectura, Carlos Fuentes comenta a
configura��o m�tica constru�da a respeito da Celestina, de Don Quijote e de Don
Juan.
Cervantes era consciente do contexto cultural e hist�rico da Europa do fim do s�culo XVI e in�cios do XVII, e particularmente das realidades da Espanha como fortale�a da Contrarreforma. (...) O que faz Rojas a n�o ser que deslocar os lugares comuns da civiliza��o cort�s (o cavaleiro e a sua dama) e das colunas da certeza (o senhor, a autoridade, o amor) para sair ao encontro de um mundo que repudia a cortesia, evidencia a autoridade e gera situa��es humanas incertas e vacilantes? (...). La Celestina, em todos os n�veis, � introdutora: da carne na carne, do pensamento no pensamento, da fantasia na raz�o, do alheio no pr�prio, do proibido no consagrado, do esquecido no providencial, do sono na vig�lia, dopassado no presente. (1989, p.15, 49, 51, grifo nosso).
Carlos Fuentes convoca essas personagens liter�rias de outros autores,
refer�ncia de outras �pocas num estilo de constru��o liter�ria em que “se permite
244
dar voz aos an�nimos da hist�ria” (1992, p.118), explicitando a pluralidade de
discursos e n�o o resumo un�voco da ideologia dominante de um determinado
per�odo. Homenageia os autores evocados, “s�o sujeitos hist�ricos, reflexivos e
cr�ticos de seu pr�prio tempo. Suas obras liter�rias universalizam personagens que
disfar�am por atr�s do riso, das trapa�as, das loucuras e dos exageros a cr�tica
contra o discurso monol�gico das institui��es” (1992, p.195).
A Literatura cria a realidade pela verossimilhan�a e Terra Nostra toma como
par�metro de realidade a pr�pria realidade criada pela Literatura. Nessa realidade,
um dos motes que movimenta a narrativa no romance � a intoler�ncia �tnico-
religiosa do poder absolutista, que pretende amalgamar a cultura da pen�nsula
ib�rica sobre a vis�o un�voca do mundo medieval e sombrio que “nega a
continuidade do bom conv�vio tricultural entre judeus, mu�ulmanos e crist�os” (1992,
p.17). Essas personagens liter�rias de outros autores fazem refer�ncia a �pocas
distantes num estilo de constru��o liter�ria em que “se permite dar voz aos
an�nimos da hist�ria” (1992, p.118), explicitam a pluralidade de discursos e n�o o
resumo un�voco da ideologia dominante de um determinado per�odo. O romance
homenageia os autores evocados, “s�o sujeitos hist�ricos, reflexivos e cr�ticos de
seu pr�prio tempo. Suas obras liter�rias universalizam personagens que disfar�am
por atr�s do riso, das trapa�as, das loucuras e dos exageros a cr�tica contra o
discurso monol�gico das institui��es” (1992, p.195).
Ao pensar no di�logo entre as os obras, percebe-se que h� uma dist�ncia real
de quinhentos anos entre o relato de uma, em rela��o � outra, o ano que d� in�cio �
narrativa em Terra Nostra � 1999 e La Celestina foi escrita em 1499. Aparentemente
as circunst�ncias em que surge a personagem de Fernando Rojas s�o similares as
da personagem de Carlos Fuentes, tamb�m impera o caos numa cidade da
Espanha. Com Polo Febo, em Paris e 500 anos depois, as circunst�ncias s�o o
apocalipse. Cada t�pico desta sum�ria descri��o traz uma sobrecarga simb�lica.
P�lo Febo � manco, como Cervantes; o apocalipse provoca efeitos absurdos como
os partos m�ltiplos em todas as mulheres de Paris, jovens e anci�s. Celestina surge
para um encontro marcado com Polo Febo h� s�culos atr�s. Bakhtin remete �s
velhas grávidas modeladas em terracota de Kertch, no Museu L’ermitage de
Leningrado em que a velhice e a gravidez s�o grotescamente representadas, nada
245
nelas est� acabado, perfeito ou est�vel. No corpo das velhas a vida se renova, trata-
se do mundo �s avessas.
A nova percep��o hist�rica que as perpassa, confere-lhes um sentido diferente, embora conservando seu conte�do e mat�ria tradicional: o coito, a gravidez, o parto, o crescimento corporal, a velhice, a desagrega��o e o despeda�amento corporal, etc. com toda a sua materialidade imediata, continuam sendo os elementos fundamentais do sistema de imagens grotescas. S�o imagens que se op�em �s imagens cl�ssicas do corpo humano acabado, perfeito e em plena maturidade, depurado das esc�rias do nascimento e do desenvolvimento (...). Combinam-se ali o corpo descomposto e disforme da velhice e o corpo ainda embrion�rio da nova vida. A vida se revela no seu processo ambivalente, interiormente contradit�rio � a quintess�ncia da incompletude (2000, p. 22-23).
O mundo ao rev�s caracteriza a carnavaliza��o nos termos de Bakhtin. O
car�ter constitutivo mais forte da carnavaliza��o refere-se ao mundo das
transgress�es e das interven��es. A carnavaliza��o na literatura instaura uma vis�o
incomum do mundo e da vida, “o mundo �s avessas significa libera��o, invers�o de
hierarquias, pap�is, regras e valores; o rito do rebaixamento inverte o alto e o baixo”
(2000, p.23). O comportamento exagerado extravasa a intensidade das emo��es:
choro, pranto, riso, em que todos participam do mesmo universo irreverente em que
os valores s�o revertidos em favor de um mundo n�o-oficial. Felipe II se torna o
sujeito que vive o conflito e a d�vida, entretanto, sua trajet�ria afirma um
absolutismo consagrado; o Peregrino vive o tempo m�tico, mas sua narrativa tenta
adequar o tempo m�tico ao tempo linear. � o mundo ao avesso onde nada parece
coincidir, exceto o sentido orientado pelo caos que antecede a toda cria��o.
O efeito de sentido c�mico, resultante do processo, est� fundado nas interfer�ncias discursivas, de tal forma que a cr�tica e a argumenta��o indireta se amenizam no n�vel do enunciado, a poss�vel agressividade, dissimulada e disseminada no conjunto enunciativo tem a fun��o deliberada de construir a ironia textual e discursiva, esses tra�os permitem a descoberta tanto das v�timas desse discurso ir�nico, (...) Assim, narrar um acontecimento torna-se tamb�m uma forma de interpretar n�o apenas o acontecimento, mas o modo de apresent�-lo e represent�-lo (2000, p.196).
Como leitor do Quijote, ato cristalizado em seu ensaio Cervantes o la crítica
de la lectura (1976), Carlos Fuentes estabelece uma liga��o com Terra Nostra,
246
comenta “De certa forma, o presente ensaio � uma vertente do romance que me
manteve ocupado durante os �ltimos seis anos, Terra Nostra” (p.36). A aproxima��o
com a obra de Cervantes surge pela import�ncia do tema da identidade e a rela��o
entre a Am�rica e a Espanha, pa�s que conceitua como “a outra metade da nossa
vida e da nossa heran�a” (p.11). Afirma que a ess�ncia do Quijote reside na cr�tica
da leitura e que em Cervantes encontramos mais ironias do que ingenuidade, mais
consci�ncia do que hipocrisia.
O prop�sito do presente ensaio � o de refletir sobre fatores imediatos que, subjetiva e objetivamente, conscientemente, ing�nua e ironicamente, hipocr�tica e criticamente se encontram nas p�ginas de Don Quijote a fim de oferecer-nos (...) uma nova forma de ler o mundo: uma cr�tica da leitura que se projeta desde as p�ginas do livro para o mundo; mas tamb�m (...) uma cr�tica da cria��o narrativa contida dentro da obra mesma: cr�tica da cria��o dentro da cria��o. (1989, p.15).
Para sustentar seu argumento, o romance parte de tr�s datas do contexto
hist�rico da Espanha: 1492 � ano em que a Espanha, como na��o, perde uma das
tr�s partes fundamentais, al�m da crist� e da �rabe, “a intelig�ncia judia, mais tarde
a sensualidade �rabe”; em 1521, durante o reinado de Carlos V, ocorre a derrota
dos comuneros de Castilla e 1598 � ano da morte de Felipe II, s�mbolo da
imobilidade da estrutura do Imp�rio Espanhol. Carlos Fuentes afirma que Cervantes
vive entre dois mundos: um � ortodoxo, medieval, un�voco; o outro corresponde �
vis�o plural da realidade, heterodoxo e voltado para a modernidade. Em Don
Quijote de La Mancha subsistem os valores da utopia, justi�a e amor conquistados
em �pocas passadas, esses valores s�o constantes na reflex�o do saudoso Don
Quijote, fazendo refer�ncia � Idade de Ouro.
Diz Carlos Fuentes, “A Espanha � a outra metade perdida do hispano-
americano; dupla como um espelho fumegante, temido e desejado, a Espanha cruel
de Hern�n Cort�s e a Espanha amorosa de Las Casas” (1976, p. 9). Construir a
hist�ria no romance implica o di�logo intertextual com a Hist�ria de Felipe O
Formoso, da rainha Juana a Louca, Hern�n Cort�s, Miguel de Cervantes, Per�n;
com a pintura de Vel�zquez, El Bosco Jer�nimo Bosch, Jos� Lu�s Cuevas; com a
produ��o cinematogr�fica de Lu�s Bu�uel; com a literatura universal; com a
antropologia de Miguel-Le�n Portilla, “O que deseja exprimir, deste modo, esse
247
artista? – Que a revela��o n�o nos foi feita de uma s� vez, Senhor, mas que se
cumpre sem cessar, pouco a pouco, para homens e �pocas diferentes e mediante
novas figuras.” (p.249).
No processo de intertextualidade, figuras, cr�nicas, imagens e personagens
procedentes de outras produ��es s�o evocadas nas p�ginas de Terra Nostra para
desempenhar fun��es diferentes �s dos textos originais, como no caso Cervantes
que surge o pr�prio Don Quijote e o Cronista do Pal�cio; os epis�dios homenageiam
Cervantes pelos subt�tulos: O cavaleiro da triste figura (p.537) e Dulcinea (p.581)
“t�o doido pensas que estou que n�o esteja vendo diante de mim e esta velha bruxa,
alcoviteira, que at� as pedras gritam quando ela passa: Prostituta velha! e que se
esfregou suas costas em todos os bordeis?” (p.538).
Na hist�ria relatada por frei Juli�n, em O Cronista (p.239), este � apresentado
com um “fidalgo empobrecido, filho de um cirurgi�o sem fortuna, frequentador fugaz
das aulas de Salamanca, herdeiro de mofados volumes onde se contam as
maravilhas da cavalaria andante, �rf�o das imposs�veis fa�anhas de Rold�o e do
Cid Rodrigo e por isso duplamente infeliz, pois, conhecendo o que existe, n�o pode
possuir e fica sozinho com a cabe�a cheia de ilus�es e o prato em jejum, sem feij�o”
(p.241). O Cronista Miguel escreve duas cr�nicas paralelas: a cr�nica de Don
Quijote e a dos �ltimos anos do Senhor, paralelamente, Frei Juli�n pinta dois
quadros importantes que narram a vida no Pal�cio, uma do Novo Testamento e a
Corte do Senhor. Os dois narradores ensinam a melhor maneira de ouvir pela leitura
e ver-interpretar os quadros, evocando a figura de Vel�zquez e a de Cervantes.
Carlos Fuentes escreve em El espejo enterrado sobre esses dois grandes mestres
da pintura e da literatura:
Cervantes nos ensina a ler de novo. Vel�zquez nos ensina a ver de novo. Sem d�vida, isto � pr�prio dos grandes artistas e escritores. Mas estes dois, trabalhando desde o cora��o de uma sociedade fechada, foram capazes de redefinir a realidade em termos da imagina��o. O que imaginamos � tanto poss�vel como real. (1992, p.192).
Carlos Fuentes argumenta que Cervantes era um homem emparedado entre
dois mundos, como Polo Febo-Peregrino: o da certeza medieval e o da d�vida
moderna. Essa luta n�o � exclusiva do Cronista, na mesma situa��o se encontram a
248
Senhora Isabel, frei Juli�n, Celestina, os in�meros narradores e at� o pr�prio Senhor
em seus momentos de profunda reflex�o. Em Os rumores (p.499) o Senhor e
Guzm�n falam sobre o Novo Mundo rec�m visitado pelo Peregrino:
Senhor: (...) congele a Espanha fora da Espanha; seu triunfo ser� duplo; os tempos n�o ter�o visto nada igual (...) seja erguida vossa raz�o de pedra e dor sobre ambos os mundos, o velho e o novo; - O Novo Mundo, Guzm�n; voc� ouviu esse mo�o falar; um mundo que deve se refazer a cada dia, ao aparecer do sol; - Sire, convertei-o em espelho da Espanha; que quantos nele se olharem, olhem a im�vel, para sempre fixa, de vossa eterna gloria (...) – Guzm�n, cale-se...-Quereis exorcizar o mundo fora dos muros deste Pal�cio mas esse mundo j� se infiltrou at� aqui (TN, p.511, 515).
No relato do frei Juli�n o Cronista “sem inspira��o” observa Mijail bem Sama,
Miguel da vida, um dos amantes da Senhora, e “dono de todos os sangues” (p.255),
ap�s um encontro amoroso, condenado, morre na fogueira por causa do poema que
revela as aventuras de alcova.
O cronista (...) passeava tentando imaginar um poema buc�lico que agradasse a seus Senhores (...) quando viu passar; pelos portais das cozinhas, um jovem de uma beleza que n�o combinava com as cinzas e o suor que eram as marcas dos outros homens que aqui trabalhavam (...). Com regozijo, o Cronista pensou conhecer nesse jovem que mordia a laranja a imagem sua est�ril pena requeria: a vis�o pastoril pedida por seus amos, a figura do pastor coroado, como os antigos rios da Arc�dia: o her�i. (...) o Cronista voltou a seu cub�culo junto aos est�bulos e sentou-se para escrever. Era uma quinta feira; no s�bado leu sua composi��o diante dos Senhores, Guzm�n, eu, eu mesmo, eu o frade e pintor que tantas tardes passei na doce, amarga, am�vel e tranquilamente desesperada companhia do Cronista, escutando suas queixas e adivinhando seus sonhos: eu Juli�n, gentil ladr�o das palavras de meu amigo.
(TN, p.243- 244).
Don Quijote aparece pela primeira vez em Terra Nostra quando Celestina
busca seu duplo pelas ruas de Toledo. Abordada por Sancho � levada a uma
hospedaria onde “quatro mo�os e o hospedeiro faziam pular sem miseric�rdia um
velho de ossos fracos, barba branca e olhos de santa c�lera; o infeliz voava pelos
ares dando gritos, berrando velhacos, tratantes, e o hospedeiro gritava mais alto,
que haveis furado todos meus odres de vinho com vossa enferrujada espada”
(p.537).
249
Quando Sancho apresenta Celestina a Don Quijote como a “principal�ssima
dama” a reconhece como a velha bruxa alcoviteira (p.538). Anos depois, no epis�dio
Gigante e princesas, Ludovico e o jovem Don Juan o encontram no moinho
abandonado, que para Don Quijote representa “as entranhas do gigante
Caraculiambro, senhor da ilha Malindr�nia (...) ouviram-se vozes lamentosas, outras
guturais e tem�veis, e estas eram de imponente amea�a, e aquelas de profunda
s�plica” (p.579).
Na sequ�ncia, a figura de Don Quijote se confunde com a de Don Juan (p.581)
“o pai de Dulcinea nos surpreendeu, atravessou com a espada sua pr�pria filha e eu
com a minha a ele”; logo como Don Quijote visita a tumba de Dulcinea e a est�tua
do pai volta � vida, “disse-me que me condenava a algo pior, que minhas
imagina��es e minhas leituras se transformassem em realidade, a que meus fracos
ossos enfrentassem realmente monstros e gigantes, a que outra vez me lan�arem
inj�rias s� para terminar a�oitado, enganado, enjaulado, tomado por louco,
desonrado, o enganador enganado” (p.582).
No epis�dio A quarta jornada (p.613) o Senhor est� convencido do fracasso de
Don Quijote, Ludovico n�o:
E que alcan�ou esse louco cavaleiro repetindo vinte vezes cada uma de suas cinquenta aventuras e as vers�es de suas aventuras para voc�s? – Simplesmente retardar o dia do ju�zo que foi a recupera��o da raz�o, a perda de seu maravilhoso mundo e a morte de cient�fica tristeza... – Ent�o a fatalidade venceu, de todos os modos, o venceu...- N�o Felipe; em Barcelona vimos suas aventuras reproduzidas no papel, em centenas e �s vezes em milhares de exemplares, gra�as a um estranho invento chegado da Alemanha, que � como coelha para reproduzir livros, pois si se mete um papel por uma boca e por outrasaem dez, ou cem, ou mil, ou um milh�o, com os mesmos caracteres...- Os livros se reproduzem?-Sim, j� n�o apenas o �nico exemplar escrito somente para voc� e por sua incumb�ncia, com iluminuras feitas por um monge, e que voc� pode guardar em sua biblioteca e reservar somente para o seu olhar.Mil dias e meio, voc� disse, por�m voc� s� deu conta de cinquenta contos em vinte vers�es: falta um meio dia.- Que n�o se cumprir� jamais, Felipe. � a soma infinita dos leitores desse livro, ao terminar de l�-lo, come�a a l�-lo outro, um minuto ap�s, e ao terminar este sua leitura, um minuto mais tarde outro a inicia, e assim sucessivamente (...), o livro nunca � lido inteiramente, o livro � de todos.
250
- Ent�o, m�sero de mim, a realidade � de todos, pois s� o escrito � real. (TN, p.610)
Nos termos de Bakhtin, a hist�ria de Don Quijote � subvertida, parodiada,
prolongada, transcendida e utilizada para realizar uma nova hist�ria: a de buscar
essa outra metade do ser hispano-americano, a outra metade temida e desejada da
Espanha monol�tica, ortodoxa e fechada. A transcend�ncia de Don Quijote estriba
na outra utopia da qual resulta a utopia liter�ria, que consiste em que o livro n�o
termine nunca de ser lido, que seja de todos e que Don Quijote nunca recobre a
raz�o, saindo uma e outra vez em busca de novas aventuras. Por meio da leitura
continua e coletiva de suas fa�anhas, Don Quijote consegue vencer a raz�o e, por
tanto, a morte. A partir desse ponto, a narrativa cobra vida e do Ludovico narrador, a
hist�ria de Don Quijote chega at� frei Juli�n, confessor de todas as personagens e
espi�o das conversa��es das sete jornadas. Juli�n, por sua vez, a narra ao Cronista
que regressa das galeras e ele as relatar� ao mundo, como ilustra o epis�dio Alma
de cera (p.672). Terra Nostra estabelece entre Erasmo e Cervantes a presen�a dos
ideais ut�picos de amor e de justi�a, que na figura de Don Quijote se realizam ao
declar�-lo vencedor de uma batalha liter�ria.
Parei neste ponto e decidi, audazmente, introduzir uma grande novidade em meu livro – este her�i de burlas, nascido da leitura, seria o primeiro her�i em se saber, al�m do mais lido. Viveria suas aventuras no tempo, estas seriam escritas, publicadas e lidas por outros. Dupla v�tima da leitura, o cavaleiro perderia duas vezes o ju�zo: primeiro ao ler; depois ao ser lido. O her�i se sabe lido: nunca Aquiles soube tal coisa. e isso o obriga a criar a si mesmo em sua pr�pria imagina��o. Fracassa, pois, quando leitor de epopeias que obsessivamente quer transferir para a realidade. Por�m, quando objeto de uma leitura, come�a a vencer a realidade, a contagi�-la com sua louca literatura de si mesmo. E esta nova leitura transforma o mundo (TN, p.673)
Durante sua juventude o Senhor se relaciona com Celestina, Ludovico, Pedro e
Sim�n, sem saber que se trata do jovem Senhor, compartem seus sonhos de um
mundo ideal, fora da realidade que os rodeia, utopias condenadas ao fracasso pela
presen�a de Felipe que diz, “Vem: a utopia n�o est� no futuro, n�o est� em outro
lugar. O tempo � agora. O lugar � aqui”. (p.131). Ap�s o massacre, Celestina diz a
Ludovico “Sim, fracassamos uma vez, e outra, e outra. Mas cada fracasso ser� a
nossa vit�ria” (p.135).
251
O intertexto com as obras desses autores opera como instrumento de cr�tica
velada pela ironia, que � um dos tra�os marcantes da modernidade. Essa estrat�gia
em seus diversos mecanismos cumpre a finalidade de criticar algumas formas j�
esgotadas; na Idade M�dia o riso parodiava os atos s�rios do mundo oficial,
casamentos, funerais, ordena��o do clero e coroa��o de reis. Em A primeira jornada
(p.595), o Cronista argumenta ironicamente,
Bons dias, em festa, viverei convosco, e boa colheita para tornar a encher a arquinha, pois vejo que dentre os pobres s� colherei lutos, e que com o Senhor, Don Felipe, zombarias, que j� correm as letras sat�ricas que assim cantam:
Certo pr�ncipe fant�stico,Com pretens�o de fil�pico,Da parte da m�e, c�mico,E de seus embustes, qu�mico.Digam-no, digam-no,Digam-no e cantem-no,Rufi�es, chulos e p�caros. (TN, p.603)
A ironia define uma forma de consci�ncia e uma concep��o de mundo, diz
Bakhtin que “a ironia penetrou em todas as l�nguas modernas; introduziu-se nas
palavras e nas formas (...) insinuou-se em toda parte, � atestada em todos seus
aspectos: desde a ironia �ntima, impercept�vel, at� a zombaria declarada” (2000,
p.371).
Mesmo no dom�nio da literatura, em todos os per�odos, houve na epopeia, na poesia l�rica e no drama, formas variadas de s�rio profundo, puro, mas aberto, sempre pronto a desaparecer e a renovar-se. O verdadeiro sério aberto n�o teme nem a par�dia nem a ironia (...). No interior de certas obras da literatura mundial, os dois aspectos do mundo – s�rio e c�mico- coexistem e se refletem mutuamente (...). O verdadeiro riso, ambivalente e universal, n�o recusa o s�rio, ele o purifica e o complementa. O purifica do dogmatismo, do car�ter unilateral, da esclerose, do fanatismo e do esp�rito categ�rico, dos elementos de medo ou intimida��o, do didatismo, da ingenuidade, e das ilus�es, de uma nefasta fixa��o sobre um plano �nico, do esgotamento est�pido. O riso impede que o s�rio se fixe e se isole da integridade ambivalente. Essas s�o as fun��es gerais do riso na hist�ria da cultura da literatura.
(2000, p.104-105)
252
O realismo grotesco atua como uma permanente composi��o de opostos,
como cria��o e destrui��o, vida e morte, degenera��o e regenera��o, em que a
carnavaliza��o desritualizante faz que se percam os limites entre “o certo e o errado,
o bom e o mau, o alto e o baixo, o sacro e o profano, o rico e o pobre”. A diversidade
discursiva do romance polif�nico potencializa os aspectos prosaicos do g�nero. Ao
conceber o romance como um discurso citado, compreende a nova sensibilidade
que o mesmo desenvolve com rela��o ao tempo hist�rico. Em El método formal en
los estudios literarios: introducción crítica a una poética sociológica (1994),
Bakhtin comenta que os textos polif�nicos se caracterizam pela falta de acabamento
e de solu��o do her�i. A posi��o do autor em rela��o ao her�i � dial�gica,
proporcionando, do in�cio ao fim, autonomia e liberdade interna. O texto, n�o sendo
fechado, permitir� ao leitor maior produ��o de sentidos gerando a polifonia. E
acrescenta, “o princ�pio composicional de Dostoievski” e o elemento definidor da
polifonia � “a unifica��o das mat�rias mais heterog�neas e mais incompat�veis” e a
exist�ncia de “centros-consci�ncias n�o reduzidos a um denominador ideol�gico”
(p.21).
A polifonia � o elemento que harmoniza a diversidade de vozes independentes
produzindo diferentes efeitos de sentidos repercutindo m�ltiplas ideologias. A
produ��o de sentidos gerada pela heterogeneidade discursiva – as v�rias vozes –
concebe a polifonia. No romance polif�nico, cada personagem tem autonomia e
exprime a pr�pria concep��o de mundo. Se existe um determinado n�mero de
personagens, existir�o diversas posturas ideol�gicas as quais repercutir�o de
maneira a serem ouvidas particularmente. Sobre o embate das v�rias vozes
ocultadas ou reveladas no texto, os textos s�o dial�gicos porque resultam do
embate de muitas vozes sociais.
Concebe a comunica��o como um processo interativo, muito mais amplo do
que a mera transmiss�o de informa��es. Para ele linguagem � intera��o social. O
sujeito que falar e escreve deixa em seu texto marcas profundas de sua sociedade,
de seu n�cleo familiar e suas experi�ncias no mundo, no seu contexto social. No
movimento de intera��o social, os sujeitos constituem seus discursos por meio das
palavras alheias de outros sujeitos, as quais ganham significa��o no seu discurso
interior e, ao mesmo tempo, geram as r�plicas ao dizer do outro, que por sua vez
v�o mobilizar o discurso desse outro, e assim por diante. A no��o de intera��o
253
verbal via discurso � gerada pelo efeito de sentidos originado pela sequ�ncia verbal,
pela situa��o, pelo contexto hist�rico social, pelas condi��es de produ��o e tamb�m
pelos pap�is sociais desempenhados pelos interlocutores. Al�m dos aspectos
lingu�sticos, as condi��es de produ��o do discurso s�o definitivas para comp�-lo, e
isso n�o se aplica somente � intera��o verbal face a face, mas adentra o discurso
romanesco.
Nos textos polif�nicos, resultado da express�o de diversos indiv�duos aut�nomos e livres em rela��o ao autor, a voz do her�i sobre si mesmo e o mundo � t�o plena como a palavra comum do autor; n�o est� subordinada � imagem objetiva do her�i como uma de suas caracter�sticas, mas tampouco serve de int�rprete da voz do autor. Ela possui independ�ncia excepcional na estrutura da obra, � como se soasse ao lado da palavra do autor coadunando-se de modo especial com ela e com as vozes plenivalentes de outros her�is.
(1994, p.3)
Ao apresentar o relato da hist�ria da velha Espanha, a linguagem
carnavalizada apresenta os fatos em tempo presente, Terra Nostra substitui as
a��es her�icas, os ideais majorados da escrita historiogr�fica, pelas a��es
cotidianas e vulgares. Quer dizer, elabora o rebaixamento dos temas e das formas
discursivas. Essa cria��o liter�ria t�o pr�xima da prosa do cotidiano, da fala que
reproduz no hoje um discurso do passado, aproxima o romance da par�dia.
A manifesta��o par�dica � uma constru��o carnavalizada, “repeti��o com
diferen�as, um canto paralelo”, como Linda Hutcheon a conceitua; processos
invertidos de representa��o, dominados pela �tica do avesso e pelo rebaixamento, o
s�rio, o sagrado, o elevado s�o destronados e uma nova ordem � implantada na
representa��o do mundo, no dizer de Bakhtin.
(...) a consci�ncia da alegre relatividade das verdades e autoridades no poder caracteriza-se, principalmente, pela l�gica original das coisas ao avesso, ao contr�rio como um mundo ao rev�s (...). O princ�pio do riso sofre uma transforma��o muito importante. Certamente o riso subsiste; n�o desaparece nem � exclu�do como nas obras ‘s�rias’; mas no realismo grotesco o riso se atenua, e toma a forma de humor, ironia, sarcasmo, jocoso. (1999, p.33).
Por representar principalmente � monarquia espanhola da casa dos
Habsburgo, a figura do Senhor � a que possui a maior quantidade de tra�os
254
hist�ricos, amalgama em si o poder opressor de todos os tempos, rejeita as
mudan�as sociais e qualquer forma de liberdade que possa abalar seu mundo, seu
�nico interesse consiste em lutar pela perenidade do seu mundo, perpetuar-se como
�nico soberano implica em n�o deixar morrer sua linhagem, em deixar um herdeiro
que legitime e eternize o poder da sua estirpe na terra, “N�o quero que o mundo
mude. N�o quero que meu corpo morra se desintegre, se transforme” (p.161).
O Senhor passa por tr�s etapas de sua vida: como Felipe, o jovem pr�ncipe
herdeiro; como o rei maduro e defensor do absolutismo; e como o debilitado velho
rei doente, encerrado no Pal�cio. No epis�dio Todos os meus pecados (p.89), o
universo s�rio da corte vira ao avesso, os valores s�o invertidos quando a figura do
monarca � rebaixada. Paulatinamente, o rei tem suas caracter�sticas ironicamente
transformadas, apresenta caracter�sticas psicol�gicas alteradas e comportamento
exc�ntrico. Parodia a realeza ao reunir nele algumas das doen�as dos diferentes
monarcas da dinastia dos �ustria relatadas ao longo das p�ginas da Hist�ria da
Espanha. Esse rei carrega tra�os fision�micos e aspectos reais dos outros da sua
estirpe, como a mand�bula prognata de Felipe II, a doen�a da Gota de Carlos V, ou a
s�filis que leva a Felipe II e “uma morte atroz, excrement�cia” (1992 p.175).
O Senhor, com a boca aberta, olhou ao redor da habita��o; jazia sobre os len��is pretos, sobre o preto palio, no aposento cujas tr�s paredes estavam cobertas por cortinas pretas e a quarta por um enorme mapa de tons cinzentos e ocres, sem outra claridade que a de uma alt�ssima lucerna, t�o alta que para abri-la e fech�-la era necess�ria uma longa vara com a ponta em gancho. (...) O Senhor surpreendeu-se a si mesmo com a boca aberta e fez um esfor�o para fech�-la. Sentiu que se asfixiava (...) o Senhor procurava respirar com a boca fechada e abrir a m�o e abrir os dedos (...). No fundo do c�u da boca do Senhor as ramifica��es das aden�ides atrofiavam-se e endureciam cada dia mais. Voltou a abrir a boca e tentou mover os dedos (...) na palma da m�o sofredora colocou a pedra azul que devia curar a gota; na outra colocou a pedra verde que terminaria por extirpar o mal da s�filis. (1992, p.89)
O monarca finalmente fracassa em seu papel como guardi�o do texto �nico,
seu empenho � frustrado pelas consequ�ncias democratizadoras que se derivaram
da introdu��o da imprensa na Espanha. No epis�dio A quarta jornada (p.608), o rei
se lamenta “m�sero de mim, a realidade � de todos, pois s� o escrito � real”, depois
que Ludovico comenta sobre o novo invento capaz de reproduzir livros. A inten��o
255
do monarca de trancar a realidade dentro dos limitados confins do seu Pal�cio choca
com uma realidade fragment�ria que se resiste a seu projeto totalizador.
N�o, Felipe; em Barcelona vimos suas aventuras reproduzidas no papel, em centenas e �s vezes em milhares de exemplares, gra�as a um estranho invento chegado da Alemanha, que � como coelha para reproduzir livros, pois se mete um papel por uma boca, por outra saem dez, ou cem, ou mil, ou um milh�o, com os mesmos caracteres (...). N�o apenas o �nico exemplar escrito somente para voc� e por sua incumb�ncia, com iluminuras feitas por um monge, e que voc� pode guardar em sua biblioteca e reservar somente para o seu olhar. (...). O Senhor saiu contristado da capela nessa noite (TN, p. 609)
No epis�dio Cinza (p.704), uma das imagens finais apresenta o Senhor na sua
incompet�ncia como leitor de uma realidade prot�ica, “Correu uma rancorosa cortina
sobre a atualidade que ensinava em oposi��o a ele, colocando-se por entre os bem
colocados blocos de granito de seu Pal�cio, mosteiro, sua necr�pole imperial. A
hist�ria era um gigantesco quebra-cabe�a; entre as m�os transparentes do Senhor,
s� tinha deixado umas quantas pe�as quebradas” (p. 714).
Finalmente, o monarca fracassa tamb�m na tentativa de reter os hereges
contr�rios � ortodoxia totalit�ria, o Senhor ordena a constru��o da sua fortale�a que
sirva de microcosmos de seu mundo caduco. A constru��o de Pal�cio ser� em
�ltima inst�ncia um mausol�u, uma necr�pole n�o apenas para seus antepassados,
como para si pr�prio; uma edifica��o inerte onde o Senhor embalsama e amorda�a
a realidade da Espanha, na pretens�o de aprisionar a realidade entre suas paredes.
Na sua �ltima fantasia necrof�lica, intenta superar o fato da sua pr�pria morte e
o consegue ao exercer o governo desde um sepulcro do edif�cio El Escorial. Desde
seu Pal�cio, o monarca assiste a sua pr�pria decomposi��o, numa alus�o hist�rica
da propaga��o e da lenta agonia de Felipe II. A ironia final no romance consiste em
que o governo absoluto e eterno do Senhor est� circunscrito, da mesma forma que
seu Pal�cio, ao mundo da morte, e da� que quando finalmente sobe a escada que
comunica seu Pal�cio com o mundo do futuro se perceba a si mesmo num outro
mausol�u, no Vale dos Ca�dos, a tumba que o general�ssimo Francisco Franco
mandou construir em vida. Ironicamente, o �nico futuro reservado ao sombrio
monarca ser� um eterno vagar por um labirinto intermin�vel de necr�poles. O
fracasso final do Senhor resulta de uma dupla derrota: no �mbito textual, surgem
256
novos escritos com tend�ncias heterodoxas, divulgados gra�as ao poder
democr�tico da imprensa; e na realidade extratextual, os novos descobrimentos
geogr�ficos e cient�ficos negam a clausura imposta pelo monarca.
As maneiras de reescrever a mem�ria da hist�ria dentro do romance ocorre por
tr�s vias poss�veis: pelo tempo no Teatro da Mem�ria do Donno Val�rio Camillo;
pela pintura nas imagens referidas ao longo da narrativa e pela escrita, na
linguagem verbal. Val�rio Camillo almeja impor um tempo duplo num mesmo
espa�o, projeta que a s�rie de fatos ideais dos anos 1938, 1975 e 1999 possam
substituir os fatos reais de 1492, 1521 e 1598. Impor essas datas na Espanha
implica na possibilidade de alcan�ar uma segunda oportunidade na hist�ria.
Ao longo da narrativa de Terra Nostra, a mem�ria se apresenta como um meio
de confronta��o com o passado. Nos �ltimos epis�dios, percebe-se que Polo Febo,
fechado em seu apartamento, leu os escritos do passado. Celestina surge em cena,
ela resulta ser a chave da mem�ria, por meio dela o jovem consegue conectar o
mundo lido com o mundo vivido para formar uma totalidade coerente. A raz�o �ltima
dessa longa s�rie de possibilidades apresentadas a que se refere o texto apela para
a introdu��o do Teatro da Mem�ria.
O epis�dio O teatro da mem�ria (p.558) descreve o encontro de Ludovico com
Dono Val�rio Camillo sobre a base intertextual da obra de Frances Yates, A arte da
memória (1966). Para a autora, Arist�teles distingue diferen�as entre mem�ria e
lembran�as: a lembran�a � a recupera��o de conhecimentos que se possu�am com
anterioridade; no segundo caso, trata-se da qualidade de conservar a mem�ria
original, fundamental para recuperar um passado contra�do em m�ltiplos momentos
interpolados no presente. Cita como exemplo a figura arquet�pica da mulher
marginalizada e silenciada pelo discurso patriarcal que conserva a mem�ria
origin�ria e, por isso, perpetua padr�es de comportamento. “Segundo Arist�teles em
De memória et reminiscentia, a mem�ria pertence � mesma zona da alma que a
imagina��o; � uma cole��o de imagens mentais formadas a partir de impress�es
sensoriais acompanhadas por um elemento temporal” (1980, p.33). Refere como
primeira obra importante sobre a arte da mem�ria a obra de Arist�teles, Ad
Herennium (86-82 a. C., III, XXII), nela, o pensador aconselha seus disc�pulos a:
257
(...) construir imagens das que se fixam por mais tempo na mem�ria. E o conseguiremos si estabelecemos as semelhan�as mais surpreendentes de que fossemos capazes (...) si a elas acrescentarmos a beleza excepcional ou um grau de fei�ra singular, se enfeitamos algumas delas, por exemplo, com coroas ou t�nicas roxas, para que a semelhan�a seja mais vis�vel (...) ou se as desfiguramos de algum modo (...) para que sua forma seja mais surpreendente, ou proporcionando-lhes efeitos c�micos as nossas imagens, porque tamb�m isso garantir� que as lembremos com maior facilidade. (1980, p. 10)
No s�culo XVI, Giulio Camillo interessado em sintetizar a arte cl�ssica da
mem�ria, desenhou um Teatro da mem�ria no qual os pap�is fundamentais do
teatro se invertem. No lugar dos atores, um espectador solit�rio se situava no
cen�rio, contemplando a atua��o que se desenvolvia no seu redor nas grades
ascendentes do audit�rio. Quatro s�culos mais tarde, Carlos Fuentes incorpora esse
recurso a Terra Nostra por meio do Teatro de Val�rio Camillo. O ensaio de Frances
Yates oferece ao romance o modelo hist�rico e intertextual dessas duas figuras
liter�rias. A figura de Donno Val�rio Camillo se espelha no erudito renascentista
Giulio Camillo, cujas teorias sobre a arte da mem�ria ocupam uma parte central na
obra da historiadora inglesa; Ludovico Dolce traduziu os tratados sobre a arte da
mem�ria, escreveu o pr�logo das obras de Giulio Camillo e do erasmista Viglius
Zuichemus, que descreve o Teatro da Mem�ria. De Viglius, Frances Yates cita uma
de suas cartas a Erasmo na qual descreve seu encontro com Giulio Camillo.
Giulio Camillo, nascido na It�lia em 1480, depois dos cinquenta inventa um teatro da mem�ria cuja fama se estendeu rapidamente pela Europa. Viglius Zuichemus, que teve a oportunidade de contemplar o teatro en Veneza, deu a seu amigo Erasmo a seguinte descri��o do mesmo: “O artefato de madeira decorada com muitas imagens cont�m pequenos compartimentos, e neles h� outras variadas divis�es. Camillo d� um lugar para cada figura e ornamento, e me mostrou uma quantidade tal de pap�is que, sabendo que C�cero era a mais abundante fonte de eloqu�ncia, nunca imaginaria que um autor fosse capaz de ter tanta, ou que a classifica��o de seus escritos pudesse gerar tantos volumes. Val�rio Camillodenomina seu teatro de diversas maneiras, t�o pronto assegurando que � alma ou mente edificada ou constru�da, como indicando que se trata de uma alma ou mente com janelas. Pretende que todas as coisas que a mente humana pode conceber e que n�o podem se ver com os olhos do corpo, depois de haver sido recolhidos mediante uma diligente medita��o, podem ser expressadas por meio de certos signos corp�reos, de tal forma que o espectador pode perceber imediatamente com seus olhos aquilo que de outra maneira permaneceria escondido nas profundidades da mente humana. E � a
258
consequ�ncia deste aspecto corp�reo que denomina a sua constru��o teatro". (1980, p.131)
A implica��o dessas figuras hist�ricas � importante, pois cada um deles reflete
facetas importantes na constru��o de Terra Nostra. Alguns dos detalhes da
descri��o do teatro indicam que este se dividia em sete partes, um espectador
solit�rio fica no cen�rio, enfrenta um semic�rculo do qual aparece representado todo
o universo em microcosmos. Mas, a fun��o principal do Teatro era a de oferecer o
que Frances Yates chama de um sistema de lugares da mem�ria, ou Arte da
memória, nele os oradores eram capazes de reter uma quantidade imensa de
informa��o (1980, p.144).
A inven��o de Giulio Camillo cont�m motivos de excepcional import�ncia para
a obra de Carlos Fuentes, no que se refere ao ideal ut�pico da representa��o e
leituras simult�neas da totalidade, a invers�o da rela��o o p�blico-cen�rio e as suas
implica��es para uma po�tica da leitura. Embora a descri��o do edif�cio do Teatro
da mem�ria em Terra Nostra se aproxime a da original, o teatro de Carlos Fuentes
cumpre uma fun��o que n�o contempla o ensaio de Frances Yates. A descri��o da
autora encerra uma densa significa��o simb�lica, o teatro descrito pela historiadora
cumpre um fim pr�tico: o cultivo da mem�ria por parte dos oradores.
O discurso liter�rio multifacetado se constr�i por paralelos entre os textos
hist�ricos conhecidos e o ficcional que relatam a vida de Felipe II, estes formam o
elo referencial de O Velho Mundo. A constru��o do edif�cio El Escorial e a escrita da
hist�ria promovida pelo Senhor correspondem ao mesmo impulso de dominar a
realidade e reduzi-la a sua esfera de poder. O Senhor falha em seu prop�sito
primordial, ele queria ser o guardi�o do texto �nico, mas fracassa socavado pelas
consequ�ncias democratizadoras que se derivam da introdu��o da imprensa na
Espanha. Como ilustra o epis�dio da Quarta jornada, “um estranho invento chegado
da Alemanha (...) para reproduzir livros (...) saem dez, ou cem, ou mil, ou um milh�o,
com os mesmos caracteres (p.608). A funcionalidade pr�tica do Teatro de Donno
Val�rio Camillo se associa a outro aspecto da mem�ria, a que encerra os fatos que
constroem a Hist�ria, essa mem�ria se refere a aquela que Carlos Fuentes qualifica
como “a mais absoluta de todas as mem�rias: a mem�ria de quanto pode ser e n�o
foi” (p.566).
259
D�mine, com excita��o crescente, manipulou, atr�s de Ludovico, uma s�rie de cordas, roldanas e bot�es; sucessivas �reas do audit�rio ficaram banhadas pela claridade; as figuras pareceram adquirir movimento, ganhar transpar�ncia, combinar-se entre si, fundirem-se umas nas outras, integrarem-se em fugazes conjuntos e transformar constantemente sua silueta original sem que esta, n�o obstante, deixasse de ser reconhec�vel. (...) - Minha inven��o se fundamenta na premissa exatamente contr�ria: o mundo � imperfeito quando acreditamos que nada falte nele; o mundo � perfeito quando sabemos algo faltar� sempre nele. Admitir� meu senhor que podemos conceber s�rias ideias de fatos que ocorreram paralelas �s s�ries reais de fatos? (...) E ao que n�o pode ser meu senhor, n�o dar� nenhuma oportunidade ao que, n�o tendo sido ontem, provavelmente nunca ser�? (TN, p. 565).
Tanto no romance como no Teatro todas as possibilidades do passado se
mesclam com todas as oportunidades do futuro, j� que “sabendo aquilo que n�o foi,
sabemos o que clama por ser: quanto n�o h� sido (...) � um fato latente, que espera
seu momento para ser, sua segunda oportunidade, a ocasi�o de viver outra vida”
(p.567). Fora do espa�o do texto, essas op��es permanecem latentes: h� que se
lembrar n�o apenas daquilo que n�o foi, sen�o que h� que imaginar aquilo que
poderia ter sido.
Donno Val�rio cessou de falar por um momento e de manipular suas cordas e bot�es. Depois mais tranquilo, perguntou a Ludovico: - Que me dar�o em troca desta inven��o que lhes permitiria lembrar-se de tudo quanto pode ter sido e n�o foi, os reis deste mundo? – Nada, MestreVal�rio. Pois s� lhes interessa saber o que realmente � ou ser�. Os olhos de Val�rio Camillo brilharam como nunca: eram a �nica luz do teatro repentinamente obscurecido: - N�o lhes importa saber tamb�m o que nunca ser�? (...) As imagens do meu teatro integram todas as possibilidades do passado, por�m representam tamb�m todas as oportunidades do futuro, pois sabendo o que n�o foi, saberemos o que clama por ser: tudo quanto foi, voc� viu, � um fato latente, que espera seu momento para ser, sua segunda oportunidade, a ocasi�o de viver outra vida. A hist�ria se repete somente porque desconhecemos a outra possibilidade de cada fato hist�rico: o que esse fato pode haver sido e n�o foi. (...) Por exemplo, que o sucedido ou o deixado de suceder em sua p�tria espanhola em 1492, 1521 ou 1598 coincida exatamente com o que ali mesmo ocorra em 1938, 1975 ou 1999. Ent�o, estou convencido disso, o espa�o dessa coincid�ncia germinar�, dar� lugar ao passado n�o cumprido que uma vez viveu e morreu ali: o duplo tempo reclamar� esse espa�o para se completar. (TN, 567, 568).
260
Em Terra Nostra, existe um mecanismo de reduplicação especular, que
consiste na superposição de níveis temporais que permite contemplar todas as
possibilidades do passado com a finalidade de evitar que os mesmos erros
cometidos não voltem a ocorrer no futuro. Embora o romance compreenda o tempo
histórico desde o Império Romano da época de César Augusto até a alvorada do
futuro milênio em 1999, como dito acima, a maior parte da ação gira em torno de
três eixos cronológicos fundamentais: 1492, ano da chegada de Colombo à América,
da expulsão dos judeus da Espanha, o fim da Reconquista de Granada e a
publicação da primeira Gramática castelhana; 1521, ano da conquista do México e
da fracassada rebelião dos comuneros de Castilla em Villalar; 1598, ano da morte de
Felipe II.
Cada uma destas datas chave representa uma possibilidade de abertura à
pluralidade cultural abortada pelas forças do poder monolítico, propiciando uma
clausura correspondente da linguagem. No Teatro da memória, Ludovico vê a
Espanha reproduzir-se a si mesma num processo de gestação:
(...) duplamente imóvel, duplamente estéril, pois sobre o que poderia ser (...) sua pátria, Espanha, impõe outra impossibilidade: a de si mesma, olhe como fecha suas portas, expulsa o judeu, persegue o mouro, esconde-se num mausoléu e dali governa com os homens da morte (...). Olhe: passam os séculos e os séculos de morte em vida, medo, silêncio culto das aparências puras, miseráveis realidades, olhe, pobreza, fome, injustiça, ignorância: um império nu que se imagina vestido com roupagens de ouro. Olhe, não haverá na história nações mais necessitadas de uma segunda oportunidade para ser o que não foram que estas que falam e falaram a sua língua; nem povos que durante tanto tempo armazenassem as possibilidades do que poderiam ter sido se não tivessem sacrificado a própria razão de seu ser: a impureza, a mistura de todos os sangues, de todas as crenças, de todos os impulsos de uma multidão de culturas. (...). Ao mutilar sua união, a Espanha se mutilará e mutilará tudo quanto encontrar em seu caminho. Essas terras terão a oportunidade que lhes negará a primeira história? (TN, p. 568).
Os acontecimentos históricos descritos refletem uma opção negada, uma
possibilidade sacrificada para aqueles submetidos à força do poder absoluto. Terra
Nostra propõe uma história que segue em movimento, inacabada, oculta,
marginalizada: a história do mito, da memória e da arte. As três primeiras datas
comentadas em O Velho Mundo: 1492, 1521, 1598 coincidem com as três últimas do
Outro Mundo: 1938, 1975 e 1999 que correspondem respectivamente à derrota do
261
ex�rcito popular pelas tropas do General Franco, no fim da Guerra civil espanhola
em 1938; a segunda corresponde � publica��o de Terra Nostra em 1975, que
coincide com o fim do �ltimo dos descendentes do Senhor na Espanha, Francisco
Franco; por �ltimo, o ano de 1999 indica o in�cio e o fim de Terra Nostra, e o �ltimo
dos mil anos da hist�ria ocidental que o escritor mexicano busca explicar nas
p�ginas do romance. Em seu discurso Dono Val�rio Camillo aporta um detalhe que
descobre um conceito chave para compreender o uso do elemento hist�rico no
romance e explica que o �pice das suas pesquisas consiste em “combinar os
elementos”.
Conhecendo-a podemos assegurar que a hist�ria n�o se pepita; que seja a outra oportunidade que pela primeira vez ocorra. Ser� este o apogeu de minhas investiga��es: combinar os elementos do meu Teatro de tal forma que duas �pocas diferentes coincidam plenamente. Por exemplo: que o que aconteceu ou deixou de acontecer em sua p�tria espanhola em 1492, 1521 ou 1598 coincida exatamente com o que ali mesmo haver� de ocorrer em 1938, 1975 ou 1999. Ent�o, estou convencido disso, o espa�o dessa coincid�ncia germinar�, dar� lugar ao passado n�o cumprido que uma vez viveu e morreu ali: o duplo tempo reclamar� esse espa�o para se completar. (TN, p. 569).
O discurso ficcional pode ser considerado como um molde dentro do qual os
desenhos significativos se conformam. A ideia se associa � no��o bakhtiniana do
cronotopo, em que a natureza e a mutua rela��o das categorias temporais e
espaciais se representam pelo modelo da realidade. O objetivo do Teatro da
Mem�ria no romance � o de alcan�ar a simultaneidade, combinar seus componentes
de tal modo que coincidam passado, presente e futuro, no dizer de Val�rio Camillo,
para que 1492, 1521 ou 1598 se tornem an�logas a 1938, 1975, 1999. Essa
nega��o da sequ�ncia linear hist�rica � tamb�m uma afirma��o do car�ter aberto do
texto; significa a compreens�o dial�tica de uma nova dimens�o temporal, em que o
tempo e o espa�o negados pelo passado recebam uma segunda oportunidade.
A interpreta��o de Val�rio Camillo sobre a constru��o da Hist�ria validar� as
ideias disseminas ao longo do romance sobre a certeza de que as verdades tidas
como absolutas n�o passam de possibilidades de interpreta��o do real. Terra
Nostra n�o ambiciona destruir o discurso da Hist�ria, constr�i outro, n�o linear, num
movimento que progride carregado de incertezas, de dissipa��es e de desvios que
262
se bifurcam por caminhos irregulares imaginados pela narrativa liter�ria. O passado
e o presente hist�ricos s�o percebidos como um movimento h�brido, an�malo,
inacabado; o futuro jamais pode ser previs�vel, pois os processos sociohist�ricos o
direcionam para o inesperado. O futuro pertence ao universo da imagina��o e o
desejo, sempre repleto de possibilidades interpretativas.
Carlos Fuentes comenta em Cervantes o la crítica de la lectura que aquilo
que se considera como realidade emp�rica � sempre uma realidade interpretada que
deve ser continuamente questionada, pois para poder operar os fatos em sequ�ncia,
o discurso oficial se v� obrigado a excluir aqueles aspectos que n�o se ajustam a
seu paradigma. O escritor necessita reinventar a hist�ria porque a imagina��o �
fundamental para recuperar um passado silenciado. A fun��o do artista � a de
resgatar a pluralidade da cultura, reviver o passado e imaginar o futuro no presente
da leitura, uma opera��o ut�pica de permanente confronta��o dial�tica, “na Am�rica
Latina n�o se assassinaram apenas os corpos, mas tamb�m os sonhos: (...)
devemos dar presen�a e atualidade inclusive aos sonhos” (1976, p.110).
Por existir num presente perp�tuo, a literatura rompe o determinismo
cronol�gico do discurso linear e ingressa na zona m�tica onde autor e leitor se
encontram e juntos imaginam um mundo alternativo. A literatura n�o alude �
realidade emp�rica propriamente tal, mas a “modelos ou conceitos da realidade nos
quais as conting�ncias e complexidades ficam reduzidas a uma estrutura
significante” (1976, p. 35). Essas estruturas s�o imagens do mundo ou sistemas
baseados no sistema social que tomam como contexto, embora n�o os reproduzam.
Essa caracter�stica se percebe no discurso autocrata do Senhor, que impele a
entender o discurso como sustentador da realidade ficcional, em que as verdades
aceitas como absolutas s�o apenas possibilidades de interpreta��o do real limitadas
ao universo da verossimilhan�a textual.
O que em Terra Nostra se apresenta como superposi��o do passado imediato
e de um futuro poss�vel �, na verdade, uma revis�o do passado remoto desde uma
perspectiva de presente. O m�todo de an�lise historiogr�fico que Carlos Fuentes
utiliza consiste na reinven��o da hist�ria por meio dos conflitos e inquietudes do
momento em que se escreve, assim como a sua proje��o ut�pica sobre o futuro
imediato. Por esse motivo, h� no romance uma mesma hist�ria interpretada por
muitas vozes diferentes, uma realidade vista, vivida e apresentada de forma plural. A
263
afirma��o de que a realidade n�o � linear justifica-se por meio das possibilidades de
percep��o e pelos discursos dos diferentes sujeitos envolvidos na trama, discursos
elaborados de forma distinta que traduzem realidades paralelas. A realidade de um
se torna diferente para o outro, n�o apenas como interpreta��o, mas tamb�m como
experi�ncia concreta de vida.
Uma vida n�o basta. S�o necess�rias m�ltiplas exist�ncias para integrar uma personalidade. Toda identidade se nutre de outras. Chamamos solidariedade no presente. Chamamos esperan�a no futuro. E por detr�s de n�s, no ilus�rio passado, vive latente, tudo quanto teve oportunidade de ser porque esperava que voc� nascesse para se lhe dar. Nada perece completamente, tudo se transforma, o que imaginamos morto apenas mudou de lugar. Voc� pertence simultaneamente ao presente, ao passado e ao futuro: a epopeia de hoje, o mito de ontem e a liberdade de amanh�. (...) Voc� n�o abriu as porta, Felipe. Acredita ter o mundo inteiro reproduzido dentro de seu Pal�cio, (...) transforme-o. Somemos nosso saber para transformar este lugar num espa�o que verdadeiramente contenha todos e num tempo que realmente os viva todos: um teatro onde n�s ocupemos o cen�rio, onde o mundo se desenrole, represente a si mesmo, em todos seus s�mbolos, tramas, muta��es, diante de nosso olhar – os espectadores no cen�rio, a representa��o no audit�rio (...) Assistiremos ao teatro da eternidade, levaremos � conclus�o o segredo e febril sonho do veneziano Val�rio Camillo: no teatro da mem�ria tudo se convertendo em todos, todos se convertendo em todo, a pluralidade eterna alimentando a unidade eterna. (TN, p.618).
A Hist�ria em Terra Nostra se apresenta como poderia ter sido e n�o como h�
sido registrada, reinventando fatos, figuras e �pocas no multiforme �mbito da
imagina��o. Diz Carlos Fuentes que a fun��o da literatura n�o � a de refletir a
realidade sen�o seu reverso, aquele lado que de outro modo ficaria oculto: “ao por
em relevo as regi�es inexploradas da cultura imperante, a literatura moda sua
cartografia, que se recobre com as imagens do que permanece cognitivamente
insond�vel” (Oviedo. 1972 p.143).
No epis�dio Confissões de um confessor (p. 637) frei Juli�n se prop�e explorar
no relato que depois trasladar� ao papel do Cronista, uma empresa dial�tica que em
muitos sentidos ilustra a de Terra Nostra, reescrever a hist�ria e visitar o passado
para que ao renovar as possibilidades negadas, o tempo vindouro possa oferecer
uma segunda oportunidade:
264
Eu frei Julián, frade e pintor, digo que assim como as palavras inimigas do Senhor e de Ludovico se confundem para nos oferecer uma nova razão nascida do encontro de dois opostos, assim mesmo se aliam sombras e luzes, silueta e volume, cor plana e profunda, perspectiva em tela, e assim deveriam se aliar, em seu livro, o real e o virtual, o que foi com o que pode ser, e o que é com o que pode ser. Por que tinha de nos contar somente o que já sabemos, e não revelar-nos o que ainda ignoramos? Por que tinha de nos descrever somente este tempo e este lugar, e não todos os tempos e espaços invisíveis que os nossos contem? Por que, em suma, tinha de se contentar com a penosa gota do sucessivo, quando sua pena lhe oferece a plenitude do simultâneo? Emprego bem meu verbo, Cronista, e digo: fique contente. Descontente, você aspirará à simultaneidade de tempos, espaços, fatos, porque os homens se resignam a esse paciente gotejar que esgota suas vidas. (TN, p.659).
Além das datas acima citadas, pelo mecanismo de reduplicação especular,
Carlos Fuentes utiliza uma metáfora arquitetônica para revelar seu projeto literário e
para insistir uma vez mais no caráter textual da realidade, o mesmo recurso utilizado
na primeira parte do romance na relação implícita na construção do texto como
metáfora do edifício de El Escorial. Essa ideia se confirma pela presença das duas
personagens que habitam o cenário textual do Teatro da memória: Donno Valério
Camillo e Ludovico. Os dois são leitores experientes. O primeiro é representado com
as características de um leitor compulsivo. A sua tartamudez é o resultado de uma
dedicação total à leitura, uma obsessão que o levou a esquecer os mecanismos da
fala. Ludovico, como experiente leitor e tradutor da cidade de Toledo, executa essa
mesma tarefa de leitura e interpretação na residência de Donno Valério Camillo.
A reduplicação especular da estrutura narrativa também reflete o princípio
estético da obra, que consiste em inserir relatos dentro de outros relatos pelo
recurso de mise en abime (estrutura abismal). A metanarrativa do Teatro da
memória apresenta claves que permitem interpretar o projeto historiográfico de Terra
Nostra, que Carlos Fuentes descreve em seu conceito antirrealista de representação
nesse episódio. A revisão do passado se materializa de duas maneiras opostas
entre si: uma baseada na exclusão-negação e outra dominada pela inclusão-
abertura. As duas atitudes estético-ideológicas se correspondem nas duas
metáforas especulares construídas no romance por meio da dialética entre o
monumentalismo totalizante do edifício de El Escorial e seu avesso representado
pela heterogeneidade que caracteriza o Teatro da Memória. Ambos expõem duas
265
vis�es culturais em conflito, o dogmatismo monol�tico frente � abertura ilimitada da
din�mica ut�pica representada no teatro do Donno Val�rio Camillo.
O conhecimento compartido � a verdadeira cria��o, fr�gil sempre, mantida por muitos desejos, erros, j�bilos, medos, perdas inesperadas e s�bitos encontros (...). O quanto eu sei sou eu mais estas vidas, estas hist�rias, estas palavras. Ofere�o-as a voc� para lhe oferecer, por meio de todos estes fatos, ideias e destinos somados hoje, aqui, o que poucos homens tiveram: uma segunda oportunidade (...) escute-me, uma segunda oportunidade (...). Esto apreendi: a gra�a � um conhecimento compartido. Ningu�m a pode guardar para si mesmo. O conhecimento compartido � a verdadeira cria��o, fr�gil sempre, mantida por muitos desejos, erros, j�bilos, medos, perdas inesperadas e s�bitos encontros (...) n�o posso separar de mim a vis�o do Teatro de Val�rio Camillo em Veneza, tudo quanto sei sou eu mais estas vidas, estas hist�rias e estas palavras, as ofere�o a voc� (...) em nome de nossa juventude perdida e nossa vida recuperada, ofere�o-te uma segunda oportunidade. (TN, p.627, 628)
O romance constr�i o recurso de mise en abime pela intertextualidade. No
romance se reproduzem e se recriam textos hist�ricos, religiosos e liter�rios e
iconogr�ficos como os quadros de Vel�squez: Las meninas, Felipe IV a caballo; de
El Bosco El jardín de las delicias; de Goya La família real de Carlos I. O romance
se constitui de outros textos, dialoga com eles e os homenageia. Em O leitor em
fábula, Umberto Eco comenta que o texto � como uma charada, cuja ambiguidade
somente pode ser decifrada pelo pr�prio leitor capaz de organizar a informa��o
transtextual. “Nenhum texto se l� independentemente da experi�ncia que o leitor
possui de outros textos. A compet�ncia intertextual (...) representa um caso especial
de hipercodifica��o e estabelece seus pr�prios par�metros (...). “A compet�ncia
intertextual abrange todos os sistemas semi�ticos com que o leitor est�
familiarizado”. (Eco, 1988, p.116).
Essa capacidade � especialmente importante em Terra Nostra, j� que a
transtextualidade funciona n�o apenas como par�metro de refer�ncias que orientam
o leitor, sen�o que tamb�m exige a habilidade de reconhecer que o romance
organiza essas refer�ncias de um modo n�o previsto pelo autor do texto evocado.
Um meio pelo qual a obra altera os referentes aludidos � a modifica��o e s�ntese de
conhecimentos e personagens hist�ricos facilmente reconhec�veis. Um exemplo
disso se percebe na figura do Senhor, que embora esteja constru�do principalmente
266
segundo o modelo do autocrático Felipe II, rei da Espanha de 1556 a 1598, também
representa, dentre outros, o rei Fernando de Aragón, sob cujo reinado (1479-1516)
ocorreu a viagem de Colombo, a expulsão dos judeus e a queda de Granada, e
Carlos V (1517-1556) responsável pela conquista do México e a repressão aos
comuneros de Castilla. O fim estéril da dinastia dos Habsburgo também se pode
associar com Carlos II, o Príncipe Bobo. Na construção da personagem Dama
Louca, a mãe do Senhor no romance, Carlos Fuentes acumula características da
rainha Juana La Loca, de Mariana de Áustria e da imperatriz do México, Doña
Carlota. No caso da figura da Senhora Isabel, a esposa do Senhor, combina-se e
inverte-se a figuras de Maria Tudor de Inglaterra com a de uma das amantes de
Felipe II, Isabel de Osorio, e a de Elizabeth de Valois. A personagem da Senhora
também reúne características das rainhas viúvas Doña Urraca.
No caso de Guzmán, o secretário do Senhor e emissário do mesmo no Novo
Mundo, relacionam-se algumas das características de Colombo, Hernán Cortés e
Nuño de Guzmán com aspectos de figuras chave da corte espanhola, como Enrique
de Guzmán, vice-rei durante o reinado de Felipe II, Pedro de Guzmán, chanceler
real de Felipe III e do ambicioso Gaspar de Guzmán, conde de Olivares, quem
governou a Espanha por vinte e um anos durante o reinado de Felipe IV. Carlos
Fuentes comenta que o vocábulo Guzmán era usado no passado para designar
nobres que serviam no exército espanhol, similar a Cortés, que dão o nome da
personagem. É o nome de Guzmán de Terra Nostra que estampa na América a
imagem da Espanha durante o terrível encontro que supõe a conquista.
(...) estela de prata que unia o Velho Mundo ao Novo Mundo, e de um me levava para o outro (...) meu nome no Novo Mundo é o nome do Velho Mundo, Quetzalcóatl, Vênus, Hespéria, Espanha, duas estrelas que são a mesma, aura e crepúsculo, misteriosa união, enigma indecifrável, cifra de dois corpos, de duas terras, de um terrível encontro. (TN, p. 494).
Paradoxalmente, essa negação à pluralidade cultural não só escraviza o Novo
Mundo, senão que também mutila a Espanha. No episódio Réquiem (p.739) o
próprio Senhor profetiza o destino do seu país quando encontra um homenzinho
ocupando seu lugar no trono. Esse homenzinho se compõe pela figura de Francisco
Franco e de Adolf Hitler.
267
A mesma ordem que querias para a Espanha foi transladada para a Nova Espanha; as mesmas hierarquias r�gidas, verticais; o mesmo estilo de governo: para os poderosos, todos os direitos e nenhuma obriga��o; para os fracos, nenhum direito e todas as obriga��es; o Novo Mundo est� povoado de espanh�is fascinado pelo inesperado luxo, o clima, a mesti�agem, as tenta��es de uma injusti�a impune. (...) E o Senhor olhava com terror, a figura sentada no trono: um homem pequeninho, (...) sentado ali, com uma boina preta, o uniforme de tosca flanela azul, uma faixa amarela e vermelha na grande barriga fofa, um espadim de brinquedo, botas pretas, olhos de carneiro triste, bigodinho dividido aparado, com o bra�o direito levantado para o alto, que chiava com voz esgani�ada: - Morte � intelig�ncia! Morte � intelig�ncia! (TN, p.734, 747).
A intera��o entre os textos n�o consiste apenas numa rela��o de influ�ncia
rec�proca, sen�o que se materializa numa s�rie de categorias baseadas nas
estrat�gias da intertextualiza��o. A estrutura abismal resulta da tematiza��o do ato
da comunica��o liter�ria, manifestada pela produ��o e pela recep��o dos textos
evocados. O mise en abime no tr�ptico liter�rio desenha a intera��o entre o universo
do texto e da realidade, pela dicotomia entre o Velho Mundo e o Mundo Novo cria-se
um universo ficcional em que os mundos se refletem especularmente.
Em Valiente mundo nuevo (1990), Carlos Fuentes que a “Espanha imp�e a
sua imagem na Am�rica para invent�-la, reinventando-se a si mesma” (p.118). O
Mundo Novo entendido em Terra Nostra � como uma utopia que a Espanha
imaginara antes que se confirmasse a sua exist�ncia, nega o pluralismo cultural na
Am�rica, da mesma forma como j� o tinha feito dentro de suas fronteiras. Os
conquistadores n�o chegam armados apenas com espadas, mas tamb�m com a
imagina��o que havia sido moldada pelas hist�rias de cavalaria, elas teriam
contribu�do para determinar a vis�o eurocentrista do Novo Mundo.
Nos relatos da conquista predomina o fant�stico e o m�tico, a fantasia e a
realidade que entrela�adas confundem-se entre o discurso ficcional e o hist�rico,
muitas vezes, dif�ceis de delimitar, “Am�rica n�o era assim outra coisa que uma
cria��o ut�pica da Europa” (p.49). Al�m de estarem contaminadas por lendas
europeias e cl�ssicas, as rela��es de alguns dos cronistas incorporam tamb�m
aspectos das religi�es pr�-colombianas, resultando em relatos de realidade e fic��o.
Diz Carlos Fuentes que nesse encontro ut�pico o Velho Mundo descobre a
exist�ncia do seu duplo, o Mundo Novo. Contudo, a comunh�o pac�fica com o outro
268
resulta ser um sonho, e como tal, se funda na cosmovis�o m�tica euroc�ntrica que
consiste na eterna luta pelo dom�nio do outro. No epis�dio Dia da fuga (p.480), as
duas partes da dualidade divina, o Peregrino-Quetzalc�atl e Tezcatlipoca, met�fora
desse encontro entre os dois mundos, protagonizam uma luta eterna pelo que
consideram como suas respectivas liberdades. O Mundo Novo resulta ser um sonho
que se assenta no contraponto m�tico � inflex�vel cosmovis�o euroc�ntrica.
Vivi dias esquecidos, ou terei de viver ainda? Agora sei que foram o ser�o dias de morte, dor e sangue, e temo igualmente haver vivido ontem como viver amanh� (...) matei eu tamb�m sou um assassino. (...) Fracassar�s sempre. Regressar�s sempre. Voltar�s a fracassar. N�o te deixar�s vencer. Conheces a ordem original da vida dos homens, que voc� fundou (...). Voc� matou seu irm�o inimigo. Esse g�meo obscuro renascer� em ti, e seguir�s combatendo-o. e renascer� aqui. Voltaremos a sofrer sob seu jugo. Voltaremos a esperar que regresses a matar outra vez (...). Teu destino � ser perseguido. Lutar. Ser derrotado. Renascer da tua derrota. Regressar. Falar. Recordar o esquecido a todos. Reinar por um instante. Ser derrotado pelas for�as do mundo. Fugir. Regressar. Recordar. Um trabalho sem fim. O mais doloroso de todos. Liberdade � o nome da tua tarefa. (TN, p. 483-484).
O fragmento acima reflete um contexto hist�rico, as experi�ncias opressoras
est�o intrinsecamente ligadas aos crimes do passado, que formam parte do abuso
do poder que as faz poss�veis, “Falas de uma fatalidade sem fim, circular e eterna”
(p.483). A hist�ria ap�crifa apresentada pelo romance cumpre uma vis�o corretiva
de cara ao futuro; ao se conhecer os passados alternativos da cat�strofe
permanente da hist�ria, poderia evitar-se que dita cat�strofe se repita. No dizer de
Camillo Val�rio, “a hist�ria s� se repete porque desconhecemos a outra
possibilidade de cada fato hist�rico” (p.567).
O processo de intertextualidade do Teatro da mem�ria responde a um
mecanismo que aparece impl�cito no teatro de Giulio Camillo e que Terra Nostra
desenvolve mediante v�rias vers�es do Aleph de Borges (1949) sobre a
apresenta��o de todas as possibilidades do passado. “O presente que nunca deixou
de ser passado e j� est� sendo futuro” (p.485). Carlos Fuentes reconhece a
influ�ncia de Jorge Lu�s Borges em rela��o ao seu conceito de segunda
oportunidade para os conhecimentos da hist�ria. A simultaneidade temporal no
romance evoca o conto de Borges El jardín de senderos que se bifurcan (1941).
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Borges comenta sobre a sua personagem, “Em todas as fic��es, cada vez que um
homem se enfrenta com diversas alternativas, opta por uma e elimina as outras;
Ts’ui P�n opta – simultaneamente – por todas” (2000, p.113).
A simultaneidade temporal em Terra Nostra fragmenta a concep��o espa�o-
temporal da Hist�ria, em Confiss�es de um confessor (p.657) frei Juli�n comenta
com o Cronista seu papel de confessor e conhecedor das hist�rias de todos. Entrega
ao Cronista a hist�ria do Senhor, comenta ainda sobre a circularidade da hist�ria, da
plenitude simult�nea dos fatos e insiste na necessidade de que algu�m escreva
suas confiss�es, pois ele est� deixando a Espanha, embarcando para Am�rica.
At� aqui, disse Juli�n ao Cronista, o que sei. E ningu�m sabe o que sei, nem sabe mais que eu. Fui o confessor de todos; n�o acredite sen�o em minha vers�o dos fatos; elimine todos os outros poss�veis narradores. (...). N�o preste aten��o ou cr�dito �quilo que outros lhe contem, prosseguiu Juli�n, nem acredite nas simples e mentirosas cronologias que sobre esta �poca se escrevem em benef�cio da l�gica de uma hist�ria linear e perec�vel; a verdadeira hist�ria � circular e eterna. (...) Eu, Juli�n, frade e pintor, digo que assim como as palavras inimigas do Senhor e de Ludovico se confundem para nos oferecer uma nova raz�o nascida do encontro de dois opostos, assim mesmo se aliam sombras e luzes, silueta e volume, cor plana e profunda, perspectiva em uma tela, e assim deveriam se aliar, em seu livro, o real e o virtual, o que foi com o que pode ser, e o que � com o que pode ser. Por que tinha de nos contar somente o que j� sabemos, e n�o revelar-nos o que ainda ignoramos? Por que tinha de nos descrever somente este tempo e este lugar, e n�o todos os tempos e espa�os invis�veis que os nossos cont�m? Por que, em suma, tinha de se contentar com a penosa gota do sucessivo, quando sua pena lhe oferece a plenitude do simult�neo?
(TN, p.657-659, grifo nosso).
O cronista tem o poder de interpretar os fatos, de mudar as palavras, para logo
escrever outra vers�o da hist�ria. A outra hist�ria nasce da fic��o, para ele o poder
da palavra possibilita criar e recriar a realidade.
Agora conheces a verdade, agora muda todas as palavras e a inten��o toda desta longa narra��o, agora revisa tudo quanto contei, Cronista, e procura achar em cada frase a mentira, o ludr�vio, a fic��o, duvide agora de tudo quanto eu disse, como far� para cotejar minhas palavras subjetivas com a objetiva verdade? (TN, p.672).
270
Tanto o Teatro da memória como a narrativa de frei Julián questionam a
elaboração da verdade no processo da elaboração da narrativa. A literatura como
construção se apóia na verossimilhança de uma possível verdade. Frei Julián e o
Cronista testemunham o poder quem escreve a verdade dos fatos e o Teatro da
Memória alude para aos perigos desse poder e alerta sobre a influência que a
imaginação exerce no ato de escrever a História. As múltiplas narrativas criadas em
Terra Nostra desordenam o mundo narrado pela história lineal, a simultaneidade
dos fatos descritos no Teatro de Valério Camillo induzem a desconfiar da verdade
documentada como única e, antes de tudo, desvendar a Literatura como
possibilidade de imaginar outras verdades em outras realidades labirínticas.
Borges comenta que poder da escrita reside na sua capacidade de recriar um
mundo inserido em outros; contar uma história variada vezes, fazer que participemos
das emoções alheias e que questionemos a realidade imediata forma parte do seu
legado, da sua concepção pessoal do mundo, que transmitido exclusivamente com
letras e signos aposta nas múltiplas leituras de uma mesma realidade. Todos os atos
ocorrem num mesmo tempo-espaço: passado, presente e futuro; os labirintos e os
enigmas; as citas oficiais paralelas às apócrifas; a religião e a ciência; os sonhos e
os jogos mentais, tudo se conforma na outraidade, num mundo que coabita paralelo
ao nosso.
Nunca soa o telefone. Pela televisão passa sempre o mesmo programa, a mesma mensagem, a da última manchete que leste no último jornal que compraste, antes de te trancares aqui. Tornas a abrir a caixa de moedas. Olhas os perfis apagados pelo tato. Joana a Louca, Felipe o Formoso, Felipe II chamado o Prudente, Isabel Tudor, Carlos II chamado o Enfeitiçado, Mariana da Áustria, Carlos IV, Maximiliano e Carlota do México, Francisco Franco: fantasmas de ontem. O que farão contigo? E repentinamente, ao fazeres para ti mesmo esta pergunta, unes os fios soltos de tua situação e de tuas leituras na escuridão, e te apercebes do que é evidente (...) com a letra morta das páginas que seguras entre as tuas mãos, essas velhíssimas histórias de Roma e Alexandria, a costa dalmática e a costa do Cantábrico, Palestina e Espanha, Veneza, o Teatro da Memória se Donno Valério Camillo, os três rapazes marcados com a cruz nas costas, a maldição de Tibério César, a solidão do rei Dom Felipe em sua necrópole castelhana, dá uma oportunidade a quem nunca a teve para se manifestar em seu tempo, fazer coincidir plenamente nosso tempo com outro, não realizado, são necessárias várias vidas para integrar uma personalidade: a imprensa e televisão não repetiram isso até não poder mais? (...) são seres de outro tempo, a luta foi entre o passado e o presente, não entre a vida e a
271
morte: Paris est� povoada de meros fantasmas (...). Sorris. A fic��o sempre urdiu suas tramas em torno de uma premissa: existem mundos habitados, superiores em for�a ou em sabedoria ao nosso. Est�o-nos vigiando. Amea�am-nos em sil�ncio. (...) Por�m acreditas assistir a outro fen�meno: os invasores n�o chegam de outro lugar, mas de outro tempo. N�o fomos invadidos por marcianos e venusianos, mas por hereges e monges do s�culo XV, conquistadores e pintores do s�culo XVI, poetas do s�culo XVII, fil�sofos e revolucion�rios do s�culo XVIII, cortes�s e ambiciosos do s�culo XIX: fomos invadidos pelo passado. Vives ent�o uma �poca que � tua ou �s espectro de outra? (...) fomos transportados a outrotempo, ou o nosso tempo h� sido invadido por outro?
(TN, p.772, 775, grifo nosso)
“Fomos invadidos pelo passado” (p.775), a invas�o citada entende-se como
uma interfer�ncia fant�stica, como em Borges, mas infere, tamb�m, numa invas�o
da mem�ria. Carlos Fuentes confere um alto valor cognoscitivo � fic��o, sugere que
� por meio da fic��o e no da hist�ria que somos capazes de compreender os
eventos do passado, e ao mesmo tempo, conhecer as alternativas ut�picas que
poderiam vir a se materializar no futuro. A reflex�o hist�rica � comunicada por meio
de uma narrativa profundamente autorreferencial que frequentemente convida a
buscar na hist�ria liter�ria as respostas para muitos acontecimentos da hist�ria
pol�tica. Em �ltima inst�ncia, a comunica��o liter�ria � apresentada como potencial
efetivo ainda n�o atualizado. Terra Nostra se revela como um mapa labir�ntico no
qual a orienta��o depender� principalmente da compet�ncia cultural e da disposi��o
para participar na tarefa de reconstruir o significado textual. Um dos problemas
te�ricos que se originam nessa po�tica � a possibilidade de estabelecer os termos e
limites da participa��o do leitor.
Por detr�s das ideias contidas no epis�dio O Teatro da memória, aprecia-se
tamb�m o intertexto com a obra sobre Cervantes em Cervantes o la Crítica de la
lectura (1976, p.43), da mesma forma que no ensaio, Carlos Fuentes no romance
discute o ato de escrever e de ler. Carlos Fuentes argumenta que a fun��o da
literatura n�o � a de reproduzir a realidade como um espelho, sen�o mostrar que
personagens e a��es s�o produtos hist�ricos. O leitor desempenha um papel
fundamental na atualiza��o do texto dentro de um contexto sociohist�rico mais
amplo.
O entorno que envolve Donno Val�rio Camillo reflete o cen�rio arquet�pico da
leitura, sua resid�ncia � descrita como “fortale�a de papel”, em cujas janelas
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“cobertas por pergaminhos, se acumulam manuscritos e documentos em forma de
muros e de pilares” (p.559). Ludovico chega a Veneza a procura de emprego como
tradutor, enviado ao pal�cio do mestre Dono Val�rio Camillo, de quem se diz possuir
uma imensa biblioteca e de ser dono de uma fortale�a de papel.
Viajaram para Veneza (...). Ludovico perguntou nos locais do velho bairro judeu, onde os refugiados da Espanha e de Portugal tinham encontrado asilo como ele agora, se algu�m precisava de um tradutor; entre risos todos lhe recomendaram que (...) cruzasse a Ponte Foscarini, e perguntasse pela casa onde morava um tal Mestre Val�rio Camillo, (...) pois era not�rio que ningu�m em Veneza acumulava maior n�mero de velhos manuscritos que o tal D�mine, que at� as janelas estavam tapadas com pergaminhos, �s vezes os pap�is ca�am na rua, os meninos faziam barquinhos com eles e os deitavam nos canais, e grande era o barulho com que o magro e tartamudo Mestre sa�a para resgatar os documentos menosprezados perguntando aos gritos se o destino de Quintiliano e Pl�nio o Velho eram empapar-se de �gua e servir de divers�o a todos. (...) Ludovico chegou sem dificuldade ao lugar descrito, mas as portas e janelas da casa impediam a passagem de qualquer pessoa ou claridade; a resid�ncia de Donno Val�rio Camillo era uma fortale�a de papel, montanhas, muros, colunas de documentos acumulados, a c�u descoberto, folhas amontoadas sobre folhas, amarelecidas, prestes a cair e mantidas de p� gra�as aos efeitos da press�o de uma coluna de pap�is contra e sobre as demais. (TN, p.538)
Al�m do jogo de palavras lúdico e Vico que sugerem seu nome, � prov�vel que
Ludovico se associe com a figura de Ludovico Agostini, autor de um tratado ut�pico
do s�culo XVI, A rep�blica imagin�ria, que prop�e melhorar a condi��o social tendo
como base a partilha das riquezas. Vive a valiosa experi�ncia de reconstruir a
realidade e, consequentemente, as poss�veis vers�es da Hist�ria. Ludovico traduz
para diferentes l�nguas obras cl�ssicas como as de C�cero, Plat�o, Fil�strato e
Pl�nio. Todas essas obras possuem um tema comum, a mem�ria. “- Sim; em Toledo
aprendi que toda mat�ria e todo esp�rito projetam aquilo que foram e o n�o fora”
(TN, p.569)
Uma vez iniciado nos segredos da arte da mem�ria, Donno Val�rio Camillo
mostra o Teatro criado por ele, no qual o espectador pode contemplar na hist�ria de
tudo aquilo que poderia ter sido e que n�o foi; todas as possibilidades do passado.
Exalta a imagina��o como instrumento de perceber, de relatar e de pensar nos
rumos da Hist�ria, sobre as grandes decis�es que mudaram o destino da
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humanidade; para ele � poss�vel recordar o que aconteceu, imaginando as outras
in�meras possibilidades.
Este � o Teatro da mem�ria. Os pap�is se invertem. Voc�, o �nico espectador, ocupa o palco. A representa��o acontece no audit�rio. (...) Veja, veja, ent�o, nas cortinas unidas de meu teatro a passagem da mais absoluta das mem�rias: a mem�ria de tudo quanto pode ser e n�o foi; olhe-a no m�nimo e no m�ximo, nos gestos n�o realizados, nas palavras n�o ditas, nas escolhas sacrificadas, nas decis�es postergadas. (TN, p.564).
O Teatro da mem�ria apresenta ao espectador diferentes op��es de imaginar
os fatos hist�ricos oriundos da reflex�o de seu criador, em imagens do que poderia
ter acontecido na vida de cada indiv�duo como met�fora do audit�rio, convida a
pensar em outras possibilidades de apreens�o da realidade, exalta a imagina��o
como forma de perceber e de contar as hist�rias da Hist�ria, alude � complicada
rede de op��es que permeiam o cotidiano de cada indiv�duo e aos poss�veis
caminhos a serem trilhados por cada um deles. Ao projetar imagens de um passado
ap�crifo, surgem novas e poss�veis vers�es: S�crates n�o bebe cicuta; Odisseu
morre no cavalo de Tr�ia; Homero n�o � cego e sim mudo; Calp�rnia Pisonis
convence C�sar para n�o comparecer ao Senado durante nos “idos de mar�o em 44
a.C”; �dipo vive conformado e feliz com seu pai adotivo; Dante se casa com Beatriz;
Colombo busca a rota terrestre para ilha de Cipango montado em um camelo,
imagina novas vers�es da vida de Plat�o, de C�cero e Catilina.
(...), pois a vida � somente uma intermin�vel sele��o entre isso e aquilo outro, uma perp�tua escolha, nunca decidida livremente, ainda quando assim o acreditamos, mas determinada pelas condi��es que outros nos imp�em (...). Olhe o paciente e silencioso C�cero enquanto escuta as tolices de Catilina; olhe como Calp�rnia convence C�sar para que n�o v� ao Senado nos idos de mar�o (...) olhe como S�crates recusa, em sua pris�o, as tenta��es do suic�dio, olhe como morre Odisseu, devorado pelas chamas, dentro do cavalo de madeira no qual os astutos troianos puseram fogo ao encontr�-lo fora dos muros da cidade, veja a velhice de Alexandre da Maced�nia, a silenciosa vis�o de Homero: veja, mas n�o fale, o regresso de Helena � sua casa, a submiss�o de Ant�gona � lei do tirano em pro da paz do reino, o �xito da rebeli�o de Esp�rtaco, olhe, olhe como esse genov�s sai para procurar a corte do Grande Khan, por terra, do poente para o levante, no lombo do camelo; olhe como se fundem e confundem meus cen�rios: olhe para esse jovem pastor, �dipo, satisfeito para sempre de viver do lado de seu pai adotivo, Pol�bio de
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Corinto, e olhe a solidão de Jocasta, a intangível angústia de uma vida que sente incompleta, vazia: só um sonho pecaminoso a redime: não terá os olhos arrancados, não terá destino, não haverá tragédia e a ordem grega perecerá fatalmente porque faltou a transgressão trágica que ao violá-la a restaurara e vivificara eternamente: a força de Roma não subjugou a alma da Grécia; a Grécia só pode ser submetida pela ausência da tragédia; olhe, a Paris ocupada pelos maometanos,(...) a cova de Platão inundada pelo rio de Heráclito, olhe, as bodas de Dante e Beatriz, um livro que nunca foi escrito, (...) olhe o máximo e olhe o mínimo, o mendigo nascido no berço do príncipe e o príncipe no do mendigo, (...) a feia formosa, o aleijado inteiro, o ignorante letrado, o rico pobre, o guerreiro músico, o político filósofo, bastou uma ínfima rodada deste grande círculo sobre o qual se assenta meu teatro, a grande trama dos três triângulos eqüiláteros dentro de uma circunferência regida pelas múltiplas combinações (...) Ofegante, Dono Valério cessou de falar por um momento e demanipular suas cordas e botões. Depois mais tranquilo, perguntou a Ludovico: - Que me darão em troca de esta invenção que lhes permitiria recordar de tudo quanto poderia ter sido e não foi, os reis de este mundo?- Nada, Mestre Valério. Pois só lhes interessa saber o que realmente é e será.Os olhos de Valério Camillo brilharam como nunca: essa era a única luz do teatro repentinamente obscurecido: - Não lhes importa saber também o que nunca será? (TN, p. 566-567).
A metáfora do Teatro da Memória de Valério Camillo sintetiza o programa
estético e o historiográfico de Carlos Fuentes como processo de produção e de
recepção do romance. Os diversos níveis de reflexão resumem ideias antes
apresentadas de modo fragmentário, resolvem alguns enigmas e contradições
apontadas e conferem uma unidade exemplar ao romance na sua totalidade.
Embora o texto que reconstrói o Teatro esteja restrito a um episódio, este
transcende suas raízes para se tornar um modelo de elaboração da narrativa em
Terra Nostra, que guiada pelas técnicas da arte da memória, coloca-nos, como
leitores, no centro do cenário e nos convida a reconstruir as imagens do romance
mediante as nossas reservas transtextuais que intervém no ato da leitura.
No Teatro de Valério Camillo, como no romance, a memória é o meio que
confronta as possibilidades do passado e as oportunidades do futuro, juntas
avançam num fluxo em espiral. Carlos Fuentes considera a história como um
fenômeno polifacético que abrange todos os níveis da realidade. Não condena a
história, mas denuncia o discurso histórico que tem funcionado como um sistema
fechado, desenhado pelo poder e edificado sobre o silêncio das vozes
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marginalizadas. Carlos Fuentes sustenta que o processo hist�rico n�o � linear nem
cronol�gico, e sim simult�neo e m�ltiple.
Carlos Fuentes argumenta em Cervantes o la crítica de la lectura que a
realidade hist�rica � uma totalidade cultural que n�o pode ser reduzida a
mecanismos psicol�gicos, pol�ticos ou econ�micos. O discurso hist�rico �pico se
manifesta como fechado porque tenta retratar o mundo atual como resultado de uma
progress�o linear e causal, justificando o mais negativo das a��es humanas. Em
contraste, ao situar-se no �mbito da imagina��o, as vozes marginalizadas pelo
discurso hist�rico, as vozes da utopia, dos sonhos, do mito e da arte, est�o
capacitadas para romper as correntes da autoridade. Por esse motivo a arte,
especialmente a literatura, representa a realidade de um modo que produz com
maior fidelidade a sua natureza amb�gua. Assegura que a literatura revela “o real”
que subjaz permanentemente por tr�s do contexto aceito pela realidade.
S� a poesia sabe enfrentar a realidade total, para al�m daquela reduzida pelo esquema ideol�gico, pela necessidade pol�tica ou pela facticidade hist�rica. (...) Pois precisamente em nome da polival�ncia do real, a literatura cria o real, acrescenta ao real, deixa de ser correspond�ncia verbal de verdades cristalizadas. Nova realidade de papel, a literatura diz coisas do mundo, mas ela mesma é uma nova coisa no mundo. (1976, p.93).
Como s�mbolo de uma cultura que se fecha em si mesma, negando-se �
realidade exterior, a Espanha do Senhor est� encapsulada no edif�cio de El Escorial.
Durante o processo de coloniza��o � exportada para Am�rica hisp�nica nessas
condi��es, segundo demonstra o discurso de Guzm�n. Guzm�n, o secret�rio do
Senhor e emiss�rio do mesmo no Novo Mundo. Por esse motivo Val�rio Camillo
confessa a Ludovico que “n�o haver� na hist�ria na��es mais necessitadas de uma
segunda oportunidade para ser aquilo que n�o foram, que estas que falam e falar�o
a tua l�ngua” (p.568). E ainda real�a a import�ncia do seu invento, especialmente
importante para um pa�s como a Espanha que “destr�i todo o que � anterior a ela e
se reproduz a si mesma” (p. 568). Das frases se desprende uma ideia de
fundamental import�ncia para Carlos Fuentes no ensaio Tiempo mexicano (1979)
“a mera auto-reflex�o conduz � esterilidade e a morte se n�o for acompanhada da
mem�ria hist�rica” (p. 93).
276
Olhe, passam s�culos e s�culos de morte em vida, medo, sil�ncio, culto das apar�ncias puras, vacuidade das subst�ncias, gestos imbecis de honra, olhe tudo, miser�veis realidades, olhe, pobreza, fome, injusti�a, ignor�ncia: um imp�rio nu que se imagina vestido com roupagens de ouro. Olhe, n�o haver� na hist�ria na��es mais necessitadas de uma segunda oportunidade para ser aquilo que n�o foram, que estas que falam e falar�o a tua l�ngua; nem povos que durante tanto tempo armazenem as possibilidades do que poderiam ter sido se n�o tivessem sacrificado a pr�pria raz�o do seu ser: a impureza, a mistura de todos os sangues, de todas as cren�as, de todos os impulsos espirituais de uma multid�o de culturas. S� na Espanha se mutilar� tudo quanto encontrar em seu caminho. Ter�o estas terras a oportunidade que lhes negara a primeira hist�ria?
(TN, p. 568-569).
Depois do discurso de Val�rio Camillo surgem umas imagens que confirmam
seu diagn�stico sobre o futuro hist�rico de Hispano-Am�rica. Por entre as grades do
teatro se projetam imagens de espolio, fome e desola��o que resumem o destino do
continente desde os imp�rios pr�-colombianos at� a atualidade. No mesmo ensaio
comenta que “a hist�ria tem que ser reinventada porque a imagina��o � fundamental
para a recupera��o do passado que tem sido silenciado”. Argumenta que “na
Am�rica Latina n�o se assassinaram apenas os corpos, mas tamb�m sonhos:
devemos recuperar tamb�m aqueles sonhos (...) devemos dar presen�a e atualidade
inclusive �queles sonhos” (1969 p.95-96).
Diante dos olhos de Ludovico, entre biombos e grades e luzes e sombras das grades deste Teatro da mem�ria de tudo o que n�o foi, mas poderia ter sido, alguma vez, passaram revestidas, com a seguran�a de que seriam estas que ele via, animadas imagens, incompreens�veis, barbados guerreiros com coura�as de ferro, bandeiras rasgadas, autos de f�, senhores de peruca, homens escuros com imensas cargas nas costa, ouviram-se discursos, proclama��es, oradores grandiloquentes, viram-se lugares e paisagens nunca vistos: templos estranhos devorados pela selva, conventos concebidos como fortale�as, rios imensos como mares, desertos pobres como uma m�o aberta, vulc�es mais altos que as estrelas, pradarias devoradas pelo horizonte, cidades de balc�es com grades, telhados vermelhos, muros estropiados, catedrais imensas, torres de vidro rachado, militares com os peitos coalhados de medalhas e galard�es, p�s cobertos de p� e espinhos, crian�as de ossos fracos e grandes barrigas, a abund�ncia ao lado da fome, lama e prata. (TN, p. 568).
O Outro Mundo contempla o discurso polif�nico da imagina��o nas figuras dos
intelectuais, escritores, artistas e cientistas. Neles, os movimentos de oposi��o ao
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discurso un�voco do Senhor s�o contemplados especialmente por meio da met�fora
auto-refletiva do Teatro da mem�ria de Donno Val�rio Camillo. A linguagem humana
� o instrumento que esses intelectuais utilizam para se opor ao obscurantismo, a fala
� a ferramenta de express�o mo palco das m�ltiplas interpreta��es. Santiago Juan
Navarro comenta que,
A fala humana � o palco onde os indiv�duos se representam e constituem o mundo de uma determinada forma ou situa��o. A palavra, como representa��o do mundo, � instrumento do pensamento, de comunica��o, uma forma de intera��o social capaz de manifestar a sensibilidade art�stica como produto do fazer humano. Toda palavra significa alguma coisa para quem a produz, ela � porta-voz do esp�rito, vontade e desejo em sua pr�pria ess�ncia. Por detr�s de toda express�o se oculta uma inten��o como fun��o significante. A linguagem humana, concebida como uma atividade individual finalisticamente orientada, � o territ�rio de a��o e de intera��o que possibilita aos membros de uma sociedade a pr�tica dos mais diversos tipos de atos que exigem dos semelhantes rea��es, comportamentos, v�nculos, compromissos, de constitui��o das identidades, de representa��o de pap�is e de negocia��o de sentidos. (Navarro, 2002, p.21)
O romance funciona como ref�gio da mem�ria, a mant�m em constante estado
de tens�o para conservar o discurso ficcional bem pr�ximo do hist�rico, n�o os
confunde, apenas propicia um di�logo poss�vel pela aproxima��o. Sem perder sua
identidade originaria, o discurso liter�rio permite que as vozes dos outros textos
permeiem o relato oficial da Hist�ria para produzir a verossimilhan�a da fic��o; para
a Hist�ria � veross�mil o que se constr�i como verdade, enquanto que para a fic��o
liter�ria basta que pare�a verdadeiro. Esse recurso ocorre nos epis�dios que narram
os �ltimos trinta e tr�s dias de vida do Senhor, carregados do elemento grotesco: “o
Senhor riu, riu, riu at� as l�grimas. O Senhor riu pela �ltima vez” (p.750) o Senhor
diz “s� tenho s�os os olhos, a l�ngua e a alma; grita e toma sopa” (p.751). Segundo
Bakhtin, “para o grotesco, a boca � a parte mais marcante do rosto. A boca domina.
O rosto grotesco se resume afinal numa boca escancarada, e todo o resto s� serve
para emoldurar essa boca, esse abismo corporal escancarado e devorador” (2000,
p.277).
O corpo grotesco n�o est� separado do resto do mundo, n�o est� isolado, acabado nem perfeito, mas ultrapassa-se a si mesmo, franqueia seus pr�prios limites. Coloca-se �nfase nas partes do corpo em que ele se abre ao mundo exterior, isto �, onde o mundo
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penetra nele ou dele sai ou ele mesmo sai para o mundo, atrav�s de orif�cios, protuber�ncias, ramifica��es e excresc�ncias, tais como a boca aberta, os �rg�os genitais, seios, falo, barriga e nariz. (...)Observamos ainda que o corpo grotesco � c�smico e universal. (...), al�m disso, as imagens grotescas do corpo predominam na linguagem n�o-oficial dos povos, sobretudo quando as imagens corporais se ligam �s inj�rias e ao riso; de maneira geral, a tem�tica das inj�rias e do riso � quase exclusivamente grotesca e corporal; o corpo que figura em todas as express�es da linguagem n�o-oficial e familiar � o corpo. Dessa forma, uma an�lise objetiva permite revelar as propriedades essenciais e fundamentais do grotesco, o que a torna extremamente rica e completamente carregada de sentido, at� nos menores detalhes. Ela � ao mesmo tempo universalista: � uma esp�cie de pequeno drama satírico da palavra, o drama do seu nascimento material, ou o do corpo que traz a palavra ao mundo. (...) da mesma forma que todas as imagens do c�mico autenticamente popular. (2000, p. 270-278)
Na literatura carnavalizada, as imagens grotescas e deformadas s�o facilmente
gravadas na mem�ria e criam um elo com os fatos hist�ricos, na descri��o da morte
do Senhor em di�logo com os relatos contempor�neos do monarca Felipe II, de
Antonio Cervera de la Torre (1600) e do m�dico Crist�bal P�rez de Herrera (1604),
reproduzidos na biografia de Cabrera e C�rdoba. Os epis�dios reproduzem o fato
dentro da coer�ncia interna do romance s�o: Cinzas (p, 704); Réquiem (p.739); Os
trinta e três degraus (p.757).
Tinha uma vaga ideia de seu pr�prio rosto. S� olhava, de passagem, em espelhos escurecidos que os fugitivos habitantes do pal�cio deixaram esquecidos, aqui e ali, nesta rec�mara, naquela torre. N�o as rugas, n�o aos cabelos brancos, n�o aos achaques: cada vez as sombras o cercavam mais. Essa era sua velhice. Lembrava de certos p�tios, certas galerias de chumbos brancos, por onde anteriormente se filtrava a luz do dia. Agora n�o. As sombras, palmo a palmo, sequestravam seu pal�cio. – para onde tinham ido todos?(...). Come�ou agora a atac�-lo um colosso de desgra�as. cinco chagas lhe brotaram,(...). Uma chaga no polegar da m�o direita, tr�s no dedo indicador da mesma m�o, e outra em um dedo do p� direito. Os cinco pontos de supura��o o atormentavam noite e dia; n�o podia suportar o contato das cobertas da cama. Afinal, as chagas cicatrizaram, por�m foi-lhe imposs�vel mover-se sozinho. Era transportado de um lugar para o outro em cadeira de m�os (...). Muitas outras vezes, quando o tratavam, mandava, vencido pelas dores agudas, que parassem ou se detivessem. (...). Por estar deitado desta maneira, sem poder-se virar, ficou com chagas nas n�degas, porque nem estas partes estavam sem apodrecimento. Dores de cabe�a, sede cont�nua, maus odores; era-lhe imposs�vel reter a comida. (...) Na �ltima noite (...) sentiu coceira no nariz. Buscou debilmente um len�o para limpar o muco que escorria junto
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com todos os sucos de seu corpo. Mas logo sentiu, com horror, que o catarro n�o escorria, mas que avan�ava espontaneamente, como um corpo: contraia-se, parava, voltava a avan�ar para a sa�da da narina de Felipe. Levou a m�o ao nariz e extraiu dele um verme branco; sufocou o grito; assoou no len�o: uma col�nia de ovinhos explodiu na fina Holanda – filhos do verme branco que se retorcia na palma da m�o do Senhor.(...). Ordenou que todos o conduzissem � capela, n�o importavam j� no seu ata�de, que j� n�o era digno de receber (...) fosse digno de assistir � sua pr�pria morte, t�o anelada faz tanto tempo, de assistir a seus pr�prios funerais, ele que tinha dado repouso nesse local de apodrecimento a toda a realiza, ele que tinha constru�do este pal�cio da morte, pensou que se estava confessando, falava aos gritos enquanto era transladado, com imensa dificuldade, da alcova para a capela, Senhor, n�o sou digno, me confesso, Pedro, perd�o, Isabel, perd�o, perd�o, perd�o, perd�o, e foi deitado no ata�de de chumbo que desde dias anteriores o esperava (...). Afundado no seu ata�de, pediu que lhe abrissem os volantes do tr�ptico flamengo, e que tomassem o ditado de suas disposi��es finais. (TN, p.704, 705, 739, 742, 748, 752)
O exagero predomina no processo descritivo do fragmento acima citado, como
caracter�stica da carnavaliza��o. O Senhor era importunado porque os m�dicos
espremiam as chagas para tirar-lhe a podrid�o, “enchia o Senhor duas ta�as de pus
a cada hora” (...) “era-lhe for�oso ficar de costas noite e dia, sem mudar de posi��o”;
das narinas emergia a podrid�o, as fezes inundavam, suas orelhas est�o putrefatas
e morre “entre as fuma�as de incenso, sebo de candeia, pus, merda e soro das
chagas” (p.752). Na literatura carnavalizada, o aspecto essencial do grotesco � a
deformidade, como diz Bakhtin, “Qualifica de grotesco tudo o que se aparta
sensivelmente das regras est�ticas correntes, tudo o que cont�m um elemento
corporal e material nitidamente marcado e exagerado”. (2000, p. 37-38)
Exagero e superabund�ncia, propens�o a sempre extrapolar dos limites, enumera��es de inconceb�vel extens�o, acumula��o de sin�nimos, degradantes correntes da linguagem familiar est�o estreitamente ligadas ao riso. Aqui tamb�m, inj�rias e elogios est�o misturados. Os superlativos elogiosos se aliam a ep�tetos malsoantes. Reencontramos os elogios injuriosos e as inj�rias elogiosas t�o pr�prias da linguagem familiar da pra�a p�blica. (...) passagem extremamente t�pica: que re�ne no mesmo plano os ind�cios da vida e da morte, os fen�menos mais diversos. (...) da concep��o grotesca do corpo nasceu e tomou forma um novo sentimento hist�rico, concreto e realista, que n�o � a ideia abstrata dos tempos futuros, mas a sensa��o viva que cada ser humano tem, de fazer parte do povo imortal, criador da hist�ria.
(2000, p.130, 145, 314 e 322).
280
Dentre a multidão de personagens e vozes que se entrecruzam nas páginas do
romance, o Senhor recebe tratamento preferencial. Embora reúna as características
de diferentes membros da dinastia dos Áustria, no romance se constrói sobre a base
de Felipe II, com algumas das características mais marcantes de Carlos V. A
descrição da aparência física do Senhor se corresponde com a de ambos monarcas:
prognatismo mandibular, sífilis e hemofilia. De Felipe II se menciona o caráter
escrupuloso, burocrata, inseguro, ascético, melancólico. De Carlos V se recapitulam
alguns dos dados de relevância histórica: a repressão do movimento comunero na
Espanha, a Conquista do México; seus dados biográficos extravagantes, seu
nascimento acidental em uma latrina de Gante, sua alcova decorada com a cor
preta; a sua saúde delicada e seus últimos dias dedicados ao reparo de relógios; o
ensaio de seu próprio funeral. A vida retirada do Senhor em seu Palácio necrópole
repete o legendário de Carlos V no mosteiro de Yuste e o de Felipe II em El Escorial.
No último episódio A última Cidade (p.764), a vivência de Polo Febo entre os
primeiros e o último episódio da obra é interpretada como uma experiência de
leitura.
Percorres lentamente a sucessão de habitações, todas comunicadas entre si por portas duplas. Pegas em tudo. Não sabes se dormes de dia e percorres de noite o apartamento, tocas nos objetos, evitas os objetos. Não ha tempo. Nada serve. As luzes elétricas vão-se tornando cada vez mais fracas. 31 de dezembro de 1999. Hoje à noite terminam apagando-se (...) As garrafas verdes, compridasvazias, para sempre cobertas de musgo, algumas toscamente tapadas com cortiça, outras fechadas com lacre vermelho depois de terem sido abertas, quando? Por quem? Com evidente pressa, outras lacradas com o selo de um anel imperial. Abres frequentemente o grande estojo de pele cordobesa onde dormem em leitos de seda branca as velhas moedas que acaricias (...) com tua única mão estendes os papéis guardados no gabinete, as crônicas transparentes, apagadas. Comparas as caligrafias, a qualidade das tintas, sua resistência ao passar do tempo. Documentos escritos em latim, hebreu, árabe, espanhol: códices com ideogramas astecas. Letras de aranha, letras de mosca, letras de rio, letras de pedra, traços de nuvem. Cansas-te rapidamente de ler. Nunca sabes se te entristeces ou te alegras pelo fato de estes papéis, de estas vozes mudas de homens de outros tempos, sobreviverem às mortes dos homens de teu tempo. Para que conservas os escritos? Ninguém os lerá porque não haverá ninguém para ler, escrever, amar, sonhar, ferir, desejar. Todo o escrito há de sobreviver intocado porque não haverá mãos para destrui-lo. É preferível esta segura desolação ao incerto risco de escrever para ver o escrito proibido, destruído, queimados em grandes fogueiras enquanto as massas
281
desinformadas gritam morte a Homero, morte a Dante, morte a Shakespeare, morte a Cervantes, morte a Kafka, morte a Neruda? (...) desde o ver�o n�o abres as janelas. Correstes as pesadas cortinas. Vives com as luzes acesas, de dia e de noite.
(TN, p.769- 770).
Celestina visita o apartamento de Polo Febo no Hotel du Pont Royal, o chama
de Peregrino e faz refer�ncias as aventuras que juntos passaram na Espanha
imperial e no Mundo novo. Polo Febo insiste em que h� permanecido no mesmo
lugar por seis meses, entre seus dois �nicos encontros, julho e dezembro de 1999.
No mesmo apartamento est�o os documentos escritos pelo Frei Juli�n e pelo
Cronista. “Celestina se encontra em Paris com o peregrino numa data muito
distante, no �ltimo dia do presente mil�nio. Como poremos ponto final a esta
narra��o se desconhecemos o que ent�o suceder�? (p.659).
A controversa entre Polo Febo e Celestina tem como ponto de partida a
quest�o de que o jovem acredita ter vivido os acontecimentos do romance atrav�s
da leitura desses documentos, por enquanto que a Celestina insiste em que ambos
experimentaram tais acontecimentos, e ainda declara que esses textos registram
uma biografia de suas vidas reais.
Abres a porta. A jovem de tez de porcelana, longa cabeleira castanha, amplas saias coloridas e colares ciganos te olha com seus profundos olhos cinzentos. (...). Dissimula tua estranheza (...). Sacodes a cabe�a. Sais do transe. (...). Pega tua m�o. A dela est� gelada. Conduz-te suavemente pelo sal�o. (...) – N�o est�s cansado Peregrino, viajaste tanto desde ca�ste da ponte naquela tarde e te perdeste nas �guas que te lan�aram na praia do Cabo... Seguras nos ombros dela e a afastas de ti: - N�o � verdade, eu fiquei fechado aqui, n�o me movi, desde o ver�o n�o abro as janelas, est�s me contando o que li nas cr�nicas e manuscritos e documentos que tenho ali, nesse gabinete, leste a mesma coisa que eu, a mesma hist�ria, eu n�o me mexi daqui (TN, p.777).
Mais uma vez o relato penetra numa estrutura abismal na qual � dif�cil
estabelecer uma distin��o clara entre o ser e seu reflexo, o original e a sua
representa��o. De acordo com isso, Polo Febo � o leitor de uma hist�ria na qual
aparece como uma personagem de fic��o com o nome de O Peregrino; mas essa
hist�ria �, ao mesmo tempo, uma biografia hist�rica que descreve momentos que ele
282
mesmo tem vivido na realidade. O di�logo entre Celestina e Polo Febo expressa
essa dupla possibilidade:
-N�o � verdade, eu fiquei fechado aqui, n�o tenho sa�do, desde o ver�o que n�o abro as janelas, voc� est� relatando aquilo que est� escrito e tenho lido nas cr�nicas e manuscritos que tenho ali, nessa gaveta, voc� lido a mesma coisa que eu, o mesmo romance, eu n�o tenho me movido de aqui... -Por que n�o pensas o contr�rio? Diz depois de beijar seu rosto. Por que n�o pensas que temos vivido o mesmo, e que esses pap�is descritos pelo Frei Juli�n e o Cronista d�o f� das nossas vidas? (TN, p.778).
O romance n�o v� contradi��o entre as duas perspectivas, por isso n�o
favorece nenhuma delas. Polo Febo tem vivido e lido simultaneamente os 142
epis�dios centrais do romance, pois a experi�ncia da leitura em Terra Nostra n�o �
concebida como um escape da realidade hist�rica e/ou textual, sen�o que uma
investiga��o em seus mecanismos de produ��o.
A queda de Polo Febo ao rio Sena e seu renascimento final na cidade de Paris sinalizam o come�o e o fim de uma atividade entendida nos termos cognoscitivos e vivenciais. Da experi�ncia dos dois mil anos que h� vivido no relativamente breve espa�o de seis meses emerge com as compet�ncias necess�rias para interpretar a realidade apocal�ptica na qual vive. A experi�ncia da leitura implica em uma transforma��o no n�vel individual e coletivo. Da leitura surgeum sujeito transformado (...) a leitura oferece a possibilidade de reformularmos e de descobrir o que parecia subtrair-se a nossa consci�ncia. A experi�ncia leitora serve tamb�m de catalisador de outras possibilidades, inclu�da a de realizar mudan�as na realidade hist�rica. Essa proje��o virtual da fic��o no mundo exterior, j� contemplada por Borges em “Tl�n, Uqbar, Orbis Thertius” � apresentada em Terra Nostra por meio de m�ltiplas transgress�es de seus paradigmas estruturais. Como em hrönir da imagin�ria regi�o de Tl�n, que acabam por invadir a realidade hist�rica, o apartamento de Febo � invadido por objetos pertencentes a epis�dios representativos de Terra Nostra: as garrafas verdes, as cr�nicas, as rel�quias guardadas pelo Senhor, os espelhos multiformes que reaparecem em tr�s partes, uma cesta cheia de perolas, os tesouros do M�xico pr�-colombiano, uma cole��o de m�scaras e mapas das geografias hist�ricas e fant�sticas de Terra Nostra. Mas se no retrato de Borges a realidade moderna era invadida por um mundo ideal, a invas�o da que Fuentes fala � uma invas�o do passado, com as suas promessas, mas tamb�m com as suas cat�strofes.
(Navarro, 2002, p. 101).
283
Nos instantes finais do romance, Polo Febo se lembra de um momento de
grande intensidade especular que teve lugar em sua habita��o, agora transformada
no novo Teatro da Mem�ria. Nesse mesmo quarto de hotel, alguns meses atr�s,
aconteceu um jogo de cartas conhecido como “La Superjoda” (os sacaneados).
Trata-se de um curioso jogo em que participam as personagens de algumas das
obras mais conhecidas da narrativa hispano-americana, s�o os protagonistas de
outras hist�rias, personagens de alguns dos romances mais representativos dessa
literatura: a personagem Oliveira de Rajuela (1963), de Julio Cort�zar; Buend�a de
Cien años de soledad (1967), de Gabriel Garc�a M�rquez; Pierre Menard autor de
El Quijote (1939), de Jorge Lu�s Borges; Cuba Venegas Tres tristes tigres (1965),
de Guillermo Cabrera Infante; Humberto el Mudito de El pájaro obsceno de la
noche (1970), de Jos� Donoso; e Sof�a e Esteban de El siglo de las luces (1962) e
Conversación en la catedral (1969), de Alejo Carpentier. O jogo � chamado da
Superjoda para homenagear o Libro de Manuel, de J�lio Cort�zar, e consiste em
“uma partida de cartas competitiva em que o ganhador � aquele que recebe a maior
quantidade de opr�brios, vilezas, derrotas e horrores: Crimes, Tiranos, Imperialismos
e Injusti�as; tais eram as quatro cartas, e vez de trevos, cora��es, espadas e
diamantes (TN, p. 766).
Oliveira, Buend�a, Cuba Venegas, Humberto o mudinho, os primos Estev�o e Sofia e o limenho Santiago Zavalita, que vivia perguntando a si mesmo em que momento o Peru foi sacaneado e que tamb�m chegou a Paris refugiado como os outros, com exce��o da rumbeira cubana, em que hora se ferrou a Am�rica Latina? N�o os tornastes a encontrar. Se ainda vivem, hoje devem andar declarando, contigo, o Peru ferrado, o Chile sacaneado, a Argentina ferrada, o M�xico ferrado, o mundo todo ferrado. (...) Todos os bons latino-americanos v�m morrer em Paris (TN, p.764).
Pierre Menard � um dos muitos autores do Quijote e faz sua apari��o no �ltimo
fragmento de Terra Nostra seguido das personagens de alguns dos romances que
representam o boom latino-americano, como Oliveira de Rayuela, Buend�a de Cien
años de soledad, Cuba Venegas de Tres tristes tigres, Santiago Zavala de
Conversación en la catedral y Humberto el Mudito de El obsceno pájaro de la
noche, entre outros. O romance apresenta o projeto dual da metafic��o
historiogr�fica mediante a figura do jogo. Por um lado, o elemento l�dico e
autorreferencial da fic��o no qual as personagens formam parte da sua realidade
284
intertextual e literária; por outra, a tendência do romance é ir além do mero jogo
formalista das vanguardas e do modernismo, para instalar-se dentro do contexto
historiográfico ao qual pertence.
Na construção ficcional da História em Terra Nostra, surge a concepção da
realidade como fragmentação ou circunstância subdivisível de acordo com a
percepção de mundo dos sujeitos em relação a seu contexto histórico-cultural, em
que a realidade se traduz como a forma de perceber e de interpretar o mundo. A
obra se compõe de recortes de discursos históricos, míticos e literários, apresenta
fatos históricos concretos, como a corte de Felipe II e o Descobrimento da América,
e fatos recriados pela ficção, como o encontro de Felipe, Celestina, Ludovico, os três
jovens estigmatizados, ou as relações entre Felipe Guzmán, como o duplo de
Hernán Cortés. Todo recorte obedece a uma motivação original e implícita
direcionada pelos fatos. Esses fatos são contados e recontados inúmeras vezes; a
estrutura segue um esquema de eterno retorno, ou de corsi-ricorsi.
Um dos aspectos relevantes na obra de Carlos Fuentes é a reiteração das
ideias que discutem as relações entre a América Latina e a Europa e,
consequentemente, a formação multicultural dos povos hispânicos. Tal questão é o
mote principal de seus ensaios iniciados em Tempo Mexicano (1971), El Espejo
Enterrado (1992) e ampliados pelos conceitos estético-literários em La nueva
novela mexicana (1969) e Valiente mundo novo (1990). Essas ideias também
conduzem a narrativa de Cervantes o la crítica de la lectura (1976). O sistema
autocrático vivenciado na América Latina durante o século XX tem sua raiz no
passado argumenta Carlos Fuentes. Essas ideais e questionamentos sobre a
formação multicultural dos povos da América Latina e a sua relação com a Europa
são arbitrados pela memória em Terra Nostra.
No processo narrativo, essa memória particular se constrói num tempo circular,
simbolicamente elaborado mediante diferentes recortes históricos. Destacam-se os
variados aspectos do poder centralizador exercido ao longo dos séculos, enfatizando
a Roma do Imperador Tibério César; a Espanha dos Áustria dos séculos XVI e XVII,
particularmente o reinado e a pessoa de Felipe II que perpassa as práticas de poder
da mesoamérica. Finalmente reflexiona sobre as formas de governo espanhol e
mexicano. No México faz referência às marcantes figuras de Carlota e Maximiliano,
285
cujo reinado durou apenas tr�s anos (1864-1867); na Espanha a Francisco Franco,
localizando-o no “Valle de los Ca�dos”.
Ao ilustrar a dimens�o simb�lica desses poderes impl�citos e reincidentes, a
obra constr�i um paralelismo hegem�nico entre culturas diferentes, compara o
exerc�cio do poder centralizador de povos de ra�zes culturais dessemelhantes e
salienta a necessidade de perceber que no percurso da Hist�ria determinadas
formas de exerc�cio de poder aparecem, reaparecem e se repetem no curso da
Hist�ria. No ensaio Valiente mundo nuevo, que tem como subt�tulo �pica utopia y
mito em la novela hispanoamericana, desenvolvem-se certos preceitos est�ticos e
filos�ficos que contribuem para orientar a an�lise de Terra Nostra.
Em suas considera��es, analisa os escritos de alguns autores hispano-
americanos como Alejo Carpentier, Gabriel Garc�a M�rquez, Juan Rulfo, Julio
Cort�zar, Jorge Lu�s Borges e tantos outros que concordam com a mesma ideia
sobre a perspectiva multitemporal orientadora da constru��o hist�rica. Carlos
Fuentes ainda reflete sobre alguns dos preceitos da estrutura formal do g�nero
romanesco na perspectiva apontada pelo linguista e fil�sofo russo Mikhail Bakhtin
(1895-1975) que orienta a trama hist�rico-ficcional como uma constru��o narrativa
polif�nica. Paralelamente, na percep��o est�tica do autor mexicano, a teoria do
acontecer hist�rico do pensador napolitano do s�culo XVIII Giambattista Vico, (1668-
1744) jurista, fil�logo e fil�sofo da Hist�ria contribui para revelar outro par�metro
interpretativo que se insere num movimento de reitera��es.
Com a finalidade de conjugar estas facetas da cultura liter�ria universal com a tradi��o da literatura hispano-americana, � necess�rio um m�todo que possa acompanhar os diferentes cap�tulos deste livro, tacitamente sem interromper o fluxo das ideias, mas outorgando-lhes estrutura subjacente, funda��o. Acudo, para isso, a dois pensadores: Giambattista Vico e Mikhail Bakhtin. Atrav�s deles quero, logo, articular uma ideia amplia da literatura e da hist�ria com obras concretas da nossa literatura �s quais prestarei aten��o neste livro. (1990, p.29, grifo nosso).
Em sua obra Principi d’uma scienza nuova intorno alla natura delle
nazioni, (1725), traduzida para o portugu�s como A ci�ncia nova, Giambattista
(1999) Vico se prop�s formular os princ�pios do m�todo hist�rico. Como cr�tico
radical do racionalismo, op�e-se ao crit�rio cartesiano de ideias claras, distintas,
286
objetivas e cient�ficas como �nico caminho para se chegar ao conhecimento da
verdade, independente do desenvolvimento hist�rico ou do contexto cultural.
O racionalismo tem como base do conhecimento certo, uma ci�ncia da natureza
humana libre do mito, da supersti��o, da f�bula e das crendices populares. Vico, ao
contr�rio, v� na supersti��o e nas cren�as populares um conjunto objetivo, claro e
invari�vel de ideias como pressuposto do conhecimento. Escreve que para conhecer
algo de verdade, se requer a experi�ncia do conhecimento constru�do. O mundo
natural n�o � uma cria��o humana, n�o � conhecida nem compreendida pelos
homens; mas o mundo sociohist�rico, o mundo das na��es, pode ser reconhecido
por todos, pois � obra sua.
Conhecemos verdadeiramente aquilo que nos mesmos criamos. As matem�ticas, por exemplo, realizam esta condi��o: demonstramos a geometria por que � cria��o nossa. Como reconhecemos que a hist�ria � a nossa pr�pria cria��o? Muito em tempo, Vico fez a cr�tica a um racionalismo que poderia conduzir, e conduziu ao conceito de uma natureza humana uniforme, invari�vel, correspond�ncia fiel do conjunto invari�vel das ideias objetivas necess�rio para o conhecimento. O fil�sofo rejeita o conceito racionalista e puramente lineal da hist�ria concebido como marcha inexor�vel para o futuro. (1999, p.7).
Diz Vico, “Podemos conhecer aquilo que � feito pelo homem, mas n�o �
poss�vel conhecer a n�s mesmos completamente, pois nos n�o somos fruto da
nossa pr�pria cria��o, apenas o Criador nos conhece plenamente”. Em A Ciência
nova descreve “uma hist�ria ideal eterna, na qual correm no tempo as hist�rias de
todas as na��es em seus in�cios, progressos, estados e afins” (p.138). Logo, quem
meditar sobre esta Ci�ncia “acaba por narrar a si mesmo esta hist�ria ideal eterna,
pois este mundo de na��es foi certamente feito pelos homens (que foi o princ�pio
indubit�vel que expusemos acima)”. Em um estudo sobre a obra do autor, o cr�tico
Hayden White afirma que,
(...) essa linha de pensamento parece fazer de Vico um precursor das tentativas de Hegel e de pensadores do final do s�culo XIX, como Durkheim e Weber, de criar as ci�ncias da sociedade e da cultura, tentativas que resultam afinal na funda��o da antropologia, da sociologia, da psicologia e da economia pol�tica como disciplinas aut�nomas, com seus pr�prios objetos de estudo, m�todos de an�lise e objetos �nicos. Vico parece merecer aten��o como te�rico das ci�ncias social e como defensor das reivindica��es, por parte
287
destas, de autonomia em face das ci�ncias f�sicas, e do seu direito de buscar nas suas pr�prias conceitualiza��es suas pr�prias leis relacionais e prof�ticas (White, 2001, p.220).
A perspectiva anal�tica de Carlos Fuentes se ap�ia na ideia de que o homem �
um ser aut�nomo que cria e molda a si mesmo e seu mundo. Vico aplica isso n�o
apenas �s artes e �s ci�ncias, mas tamb�m � hist�ria, concebida como uma
experi�ncia coletiva que se estende ao longo do tempo. Explicita a ideia de que
conhecer a mente dos homens e sua express�o po�tica direciona o conhecimento
dessa história ideal eterna, pois, “quem faz as coisas pode narr�-las, por isso, a
hist�ria n�o pode ser tida como �nica e certa” (Vico, 1999, p.139).
O conhecimento hist�rico � obtido por meio da compreens�o imaginativa de que o homem � capaz. A imagina��o, da mesma forma que possibilita conceber os pensamentos, sentimentos e atos dos seres humanos meus contempor�neos separados de mim pelo espa�o, mentalidades e linguagens diferentes das minhas, tamb�m me permite compreender as culturas remotas no tempo, que nosso reconstruir imaginariamente acompanhando as modifica��es na mente humana. (...) Os mitos d�o lugar � met�fora e esta ao uso convencional da linguagem, que coincidem com a filosofia, o uso crescente da prosa e da poesia como exerc�cio est�tico (...). A maneira, portanto, de entender esses homens e seus mundos � tentar entrar em suas mentes, aprendendo os significados de seus m�todos de express�o, sejam eles mitos, cantos, dan�as, ritos, etc. Para compreender sua hist�ria � preciso entender como eles viviam e, para tanto, � necess�rio saber o que significam sua linguagem, sua arte e seus rituais (White, 2001p. 66).
Nesse sentido, Terra Nostra desvenda um conhecimento a respeito das
diferentes civiliza��es e seus respectivos representantes apropriando-se dessa
capacidade outorgada pela imagina��o. Podemos imaginar a hist�ria porque somos
capazes de supor nosso autoconhecimento e estend�-lo aos outros seres humanos.
Podemos estabelecer elos entre diferentes momentos hist�ricos e seus atores
principais, porque, conforme a orienta��o de Vico, estudar a hist�ria significa ter por
objeto de an�lise as modifica��es nas mentes dos homens baseando-se na
compreens�o imaginativa. Hayden White afirma que no “�mago do pensamento de
Vico reside um princ�pio de interpreta��o, ou, para fazer uso de um termo revivido
recentemente, um princ�pio hermen�utico do qual pensador algum na Europa antes
de Hegel sequer vislumbrou a possibilidade” (White, 2001, p. 224, 225)
288
Maria Zaira Turchi parte da teoria de que Jean Jacques Rousseau predisp�s o
culto da sensibilidade inclinada � emo��o, depois dele os rom�nticos reconstru�ram
um mundo emotivo de sonhos, de vis�es e de mitos.
(...) mais diretamente que Rousseau (...). Vico teve o m�rito, em seu Princípios de uma ciência nova, de interpretar intuitivamente as idades primitivas. Original � a descoberta do momento fant�stico, m�tico e, para ele, po�tico da inf�ncia da humanidade. A fantasia ing�nita produz os mitos que nada mais s�o do que a pr�pria palavra significante na sua forma espiritual – palavra e mito se confundem no pr�prio ato criador. Segundo a f�bula de Vico, o homem, ainda em estado ferino, ao ouvir o trov�o e o rel�mpago, associou o fato a uma for�a que n�o era dele mas de algu�m mais forte do que ele, que vinha do alto, soltou a primeira palavra – Zeus! – que era ao mesmo tempo mesmo mito e palavra. O homem primitivo que percebeu somente o estrondo no c�u e cuja fantasia encontrou uma solu��o concretizada na palavra mito, s� de maneira indireta e mediata se deu conta do maravilhoso acontecimento, quando acreditou naquilo que ele mesmo tinha inventado. (...) a filosofia do mito de Vico cont�m em germe quase todas as tend�ncias no estudo do mito; ele antecipa o desenvolvimento da ci�ncia mitol�gica (2003, p.19).
Em a Ci�ncia Nova, discute-se que na hist�ria da humanidade certas
ideologias perpassam os diferentes ciclos do fazer hist�rico. Em Terra Nostra, o
Senhor Felipe marca a experi�ncia de viver o final de uma era em que o poder em
suas m�os alcan�a o cume; da mesma forma que Tib�rio C�sar, Moctezuma,
Maximiliano e Francisco Franco, todos vivem nos limites das suas eras, na imin�ncia
do seu final. Todos utilizam o poder arbitr�rio para revitalizar o poder desgastado;
como afirma Vico, h� um retorno � barb�rie primeira dos homens.
Agora, com esse regresso das coisas humanas civis, que particularmente neste livro se meditou, reflita-se acerca dos confrontos que por toda hora, num grande n�mero de mat�rias, fizeram-se acerca dos tempos primeiros e �ltimos das na��es antigas e modernas; e ter-se-� aplicada toda a hist�ria, no mais particular e nos tempos das leis e dos fatos romanos ou dos gregos, mas (na identidade substancial de compreender a diversidade de seus modos de se expandir) ter-se-� a hist�ria ideal das leis eternas, sobre as quais correm os fatos de todas as na��es, em seus in�cios, progressos, estados, decad�ncias e fins, ainda que (o que � certamente falso) da eternidade, de tempo em tempo, nascem mundos infinitos (1999, p.479).
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Divide o avance da hist�ria em tr�s idades: Divina, Her�ica e Humana. A tese
de Vico sobre a evolu��o dos per�odos hist�ricos idealiza as tr�s idades que se
distinguem entre si pelo modo dominante de conhecer e apreender o mundo em
cada uma delas. O primeiro momento � o tempo da barb�rie, ou idade ferina, �poca
da idade divina, os sacerdotes s�o reis e o direito se rege por f�rmulas sagradas,
caracteriza-se pelo predom�nio da fantasia sobre a raz�o. A idade b�rbara se
identifica como divina porque durante esse per�odo o homem cria deuses e o
reverencia como deidades criadoras de tudo o que existe a sua volta. No est�gio
inaugural da vida humana no mundo, o poder teocr�tico-sacerdotal exerce o direito
divino, iusnaturalismo, o conhecimento predominante � o teol�gico. Distingue a
sociabilidade e a racionalidade como duas qualidades inatas da natureza humana,
duas propriedades indissoci�veis que durante a barb�rie estabelecem os primeiros
la�os sociais. Ela se caracteriza pelo exerc�cio da autoridade praticada pelos
primeiros pais das fam�lias, fundamento para a vida em sociedade.
No est�gio final dos tempos b�rbaros se inicia o advento da idade her�ica,
quando prima o iusnaturalismo her�ico e impera o conhecimento mitol�gico como
forma de apreens�o de mundo real. A personalidade dos her�is predomina e
acredita-se nos semideuses, cuja origem divina gera uma linguagem simb�lica que
tem como fun��o principal exercer a lei e o governo. Durante essa Idade o poder
est� nas m�os da aristocracia religiosa (p.147-529).
Defende a ideia de que em contraste com o direito natural, aceito por todos os
povos, existe uma grande variedade de legisla��es paralelas, esperan�osas, que
visam a mudan�a do devir, “estas se aproximam paulatinamente do direito natural
porque o direito evoluciona paralelo nas tr�s idades da humanidade”. Na terceira,
que corresponde � Idade Humana ou Cl�ssica, impera o conhecimento racional e a
lei civil. Caracteriza-se por enaltecer a intelig�ncia e a raz�o, o homem se apresenta
modesto, humilde, benigno, razo�vel. A forma de governo tende � igualdade e isso
se traduz no aparecimento do l�der-governador aristocr�tico.
A barb�rie dos sentidos permanece como prot�tipo das situa��es b�rbaras,
nas quais prevalece a desigualdade social, para ele, esse movimento se observa na
hist�ria de cada na��o em separado. A teoria c�clica da hist�ria convence o fil�sofo
de que ap�s o desenvolvimento e o apogeu das na��es surge um novo est�gio de
290
trevas, de injusti�as sociais e de decad�ncia moral, o que para Vico � uma nova
barb�rie.
Os homens da primeira idade s�o religiosos e piedosos; os da segunda,
cautelosos e �s vezes col�ricos; os da terceira idade mant�m o comportamento
ensinado pelos deveres civis. As tr�s etapas correspondem a tr�s l�nguas: uma para
os atos mudos e religiosos (l�ngua mental); outra para as armas (l�ngua de vozes de
mando); e uma terceira que serve para comunicar-se por meio da fala (l�ngua para
entender-se). Essas ideias de Vico delineiam uma teoria das fun��es da linguagem.
Convenientemente a essas tr�s sortes de natureza e governos, falaram-se tr�s esp�cies de l�nguas, que comp�em o vocabul�rio desta Ci�ncia: a primeira, no tempo das fam�lias, quando os gentios haviam sido recentemente recebidos � humanidade; essa l�ngua foi muda, mediante gestos ou corpos que tivessem naturais rela��es com as ideias que estes queriam significar; - a segunda falou-se por empresas her�icas, ou seja, por semelhan�as, compara��es, imagens, met�foras e naturais descri��es, que fazem o maior corpo da l�ngua her�ica, falada no tempo em que reinavam os her�is; - a terceira foi a l�ngua humana por palavras convencionadas pelos povos, da qual s�o absolutos senhores os povos, pr�pria das republicas populares e dos Estados mon�rquicos, para que os povos d�em os sentidos �s leis, em que devem estar com a plebe tamb�m os nobres, junto a todas as na��es, transmitidas as leis em l�nguas vulgares, a ci�ncia das leis sai da m�o dos nobres, das quais, antes, como de coisas sagradas, junto a todas conservavam uma l�ngua secreta os nobres, que, por toda a parte foram sacerdotes: que � a raz�o natural do arcano das leis junto aos patr�cios romanos, at� que surgiu a liberdade popular. Estas s�o, com efeito, as tr�s l�nguas que tamb�m os eg�pcios disseram haver sido faladas antes em seu mundo, correspondentes, de modo perfeito, tanto no n�mero como na ordem, �s tr�s idades que em seu mundo haviam decorrido antes deles: a hierogl�fica, ou seja, sagrada ou secreta, por atos mudos, convenientes �s religi�es, as quais mais importa observar do que falar; - a simb�lica, ou por semelhan�a, como h� pouco vimos ter sido a her�ica; - e, finalmente, a epistolar, ou seja, vulgar, que servia aos usos vulgares de sua vida. (...) Das tr�s l�nguas comp�e o vocabul�rio mental, para dar as pr�prias significa��es a todas as l�nguas articuladas diversas (Vico, 1999, p.47-49).
O movimento c�clico das �pocas, fluxo e refluxo de marchas e de
contramarchas, de idas e de voltas, diz Vico que a hist�ria n�o ocorre de forma lineal
empurrada pelo progresso, sen�o que em ciclos alternados de avances e de
retrocessos, em um constante corsi-ricorsi, em que corsi se refere ao “curso no
tempo ou curso dos sucessos” e ricorsi � “a��o e efeito de recorrer”. Segundo essa
291
lei, o desenvolvimento da hist�ria impl�cita no seu processo a sua pr�pria
decad�ncia, pois se o avance hist�rico � vertical, a espiral do curso e do recurso,
corsi e recorsi, faz tudo voltar ao ponto de partida num est�gio superior. Cada uma
das idades da “Hist�ria Ideal possui caracter�sticas especificas que permeiam a
hist�ria social”, repetidas no devir ao longo da hist�ria concreta, reiterando o ciclo
das idades, cada uma delas com suas pr�prias especificidades e particularidades de
tempo-espa�o. O corsi-ricorsi se completa e se reinicia de novo.
Quando um povo percorre os tr�s est�gios, inicia-se outra vez um novo ciclo,
um novo curso, e com ele uma volta � barb�rie como recurso, o recorsi. O olhar
antropol�gico do pensador defende a observ�ncia cuidadosa dos mitos e das
tradi��es como fonte da hist�ria social. Percebem-se as reminisc�ncias do passado
nos atos do presente pela rememora��o das formas culturais em constante
transforma��o.
O racionalismo, a ci�ncia e o mito se integram para gerar o princ�pio orientador
da hist�ria, em ciclos peri�dicos que, por meio da analogia existente entre eles,
fazem com que a hist�ria avance na din�mica do corsi-ricorsi. Nesse sentido, a
din�mica espiral da hist�ria repete as idas, as voltas e as revoltas da vida dos povos.
Nenhum per�odo tem a �ltima palavra, nenhum deles � definitivo, n�o existe uma
vit�ria final. A ideologia que ret�m o poder triunfador de hoje ser� a ideologia
derrocada do futuro, e que ressurgir� num per�odo posterior influenciada pelo
vaiv�m dos avan�os e dos retrocessos da hist�ria dos povos numa sequ�ncia
pendular de fluxos e de refluxos.
A hist�ria da humanidade avan�a e retrocede, mas cada retrocesso dispara a
seguinte etapa de avance, que, por sua vez, n�o ser� a definitiva e, nesse avance,
voltar� a retroceder, pois quando uma civiliza��o alcan�a seu apogeu e a
comodidade degenera em luxo, o engenho se transforma em falsa sutileza e, a partir
da�, a futilidade inicia o decl�nio. No fim do ciclo, o �pice e a opul�ncia destroem tudo
o que foi anteriormente constru�do e, no fim, o in�cio de uma nova era de barb�rie
ser� iminente.
Toda vez que a igualdade entre os homens � desrespeitada, a humanidade
recai na barb�rie; quando as leis humanas n�o refletem mais a verdadeira natureza
humana � sinal de que ocorreu novamente o embrutecimento dos ânimos, que
intoler�ncia domina o agir dos homens, e, consequentemente, a injusti�a e a
292
opress�o voltaram a direcionar os assuntos humanos. Impera ent�o a barb�rie da
reflex�o, nascida da falsa eloqu�ncia e do excesso corrosivo, como acontecera no
per�odo do fim do Imp�rio Romano e na Idade M�dia, quando num tempo de
desigualdade social o misticismo religioso predomina, o Estado-na��o se fragmenta
e o exerc�cio do poder fica nas m�os das fam�lias nobres com direito absoluto sobre
os seus servos.
A barb�rie n�o � apenas um momento hist�rico, localizado em um passado
remoto. Vico insiste em dizer que ela nunca abandona por completo a hist�ria, pois
est� sempre presente no cora��o dos homens. A hist�ria c�clica � a ant�tese
decorrente do contato da racionalidade passiva com as condi��es naturais de
exist�ncia das primeiras comunidades humanas. Nesse processo, quando a forca
bruta acompanha a for�a her�ica abra�ada a justi�a corajosa ocorre o corsi-ricorsi.
O fluxo da hist�ria cede lugar � originalidade brilhante, e nesse processo a
sociabilidade, que faz parte da racionalidade passiva, torna poss�vel a preserva��o
da cultura, de maneira que todas as gera��es recebam das anteriores os saberes
apreendidos, cujos in�cios ocorrem gra�as � arte po�tica como modalidade
educativa do g�nero humano.
A poesia designa tanto a a��o humana quanto o conte�do simb�lico que fixa e
orienta a vida dos homens. As sensa��es e a imagina��o s�o for�as modeladoras
da poesia, cujo conte�do humaniza o mundo. As duas primeiras Idades do mundo, a
dos deuses e a dos her�is, correspondem a um tempo po�tico, pois para Vico, a
poesia � imita��o da natureza humana, ou seja, “da indefinida natureza da mente
humana” que durante a barb�rie “faz de si regra do universo” (1744- 120).
A poesia foi respons�vel por todas as coisas boas e �teis criadas pelos
homens, “todas as artes do necess�rio, �til, c�modo e em boa parte tamb�m do
prazer humano se encontram nos s�culos po�ticos antes do surgimento dos
fil�sofos, porque as artes n�o s�o outra coisa que imita��es da natureza e poesias
de certo modo reais” (1744 -217). � gra�as � poesia que o se homem projeta sobre
o mundo natural e se relaciona com ele valendo-se de si pr�prio. Nessa
transfer�ncia de propriedades, consegue dar ao mundo natural uma vida subjetiva
que cria um mundo multiforme, habitado por ele, pelos corpos naturais e pelas
entidades fant�sticas que resultam dessa uni�o natural, “o mais sublime trabalho da
poesia � dar sentido e paix�o �s coisas insensatas” (1999, p.49).
293
Cada uma das idades da humanidade cria a sua l�ngua e a sua forma de
enxergar o mundo. Aos est�gios iniciais corresponde a vis�o po�tica criadora, ou
seja, antes de entender os motivos racionais dos fatos que o cercam, e pela for�a da
imagina��o, o homem os imagina e os explica. A arte po�tica, como imita��o da
natureza humana, torna o particular como universal, um universal fant�stico moldado
por alegorias que percebe e interpreta o mundo por meio de uma linguagem
simb�lica, denominativa.
Princ�pio de tais origens de l�nguas e de letras revela que os primeiros homens da gentilidade, por uma demonstra��o da necessidade de natureza, foram poetas, os quais falaram por meio de caracteres po�ticos; esta descoberta, que � a chave-mestra desta ci�ncia, nos custou a busca obstinada de quase toda a nossa vida liter�ria, porque tal natureza po�tica de tais primeiros homens, para estas nossas naturezas muito civilizadas, ela � de fato imposs�vel de ser imaginada e com grande pena nos � permitido entend�-la.
(Vico, 1744, 34)
Real�a um princ�pio comum de uma estrutura religiosa da Idade b�rbara por
meio dos relatos fabulosos provenientes dos primeiros tempos. Relatos similares
eram difundidos pelos exploradores das terras novas do Novo Mundo que
evidenciavam uma constru��o comum na forma��o de todas as sociedades
humanas. Essa descoberta tornava evidente a exist�ncia da uniformidade das ideias
humanas, que independentemente do tempo e do lugar se manifestariam
constantemente. Esses relatos sobre as culturas dos povos do passado e do
presente confluem para tr�s princ�pios comuns: a cogni��o de Deus manifestada
nas religi�es b�rbaras, os matrim�nios e o sepultamento dos mortos.
Os tr�s princ�pios correspondem � humanidade do mundo, � g�nese da
esp�cie humana, que fez brotar no homem o temor da solid�o e o impeliu ao
encontro do outro, estabelecendo por necessidade de natureza o primeiro vinculo
social que deu origem � hist�ria da humanidade. “(...) os homens primeiro sentem
sem perceber, depois percebem com �nimo perturbado e comovido, finalmente
refletem com a mente pura. Esta dignidade � o princ�pio das senten�as po�ticas,
que s�o formadas com sentidos de paix�es e de afetos, ao contr�rio das senten�as
filos�ficas” (1744, 218 e 219).
294
Por causa dos relatos entusiastas dos viajantes que durante os s�culos XVI,
XVII e XVIII percorriam as terras do Novo Mundo, desvendando as particularidades
da paisagem das terras americanas e de seus habitantes, Vico sentiu-se
antrop�logo sem ter que viajar. Esses relatos fundamentavam nele a certeza de que
no tempo moderno ainda ocorria o processo de sedimenta��o e de forma��o dos
primeiros agrupamentos humanos da Europa ocidental. A descri��o do
comportamento dos habitantes do Novo Mundo o levava a repensar as f�bulas
antigas. Na perspectiva do fil�sofo, os relatos do presente lan�am novas luzes sobre
as alegorias dos tempos da barb�rie, fabulosos. O estudo comparativo entre os
povos indo-europeus e os habitantes do Novo Mundo torna claro algo que j� havia
percebido nos costumes dos principais povos antigos do mundo mediterr�neo, que
todas as na��es do mundo t�m alguma cogni��o de Deus, pois todos se teriam
conformado em torno de alguma religi�o.
O paralelo entre o desenvolvimento cognitivo do indiv�duo e a marcha
progressiva da hist�ria n�o � meramente formal. S�o dois processos distintos que se
determinam mutuamente, pois aquilo que acontece com o indiv�duo, acontece com a
hist�ria e a hist�ria influencia a vida do indiv�duo. Assim como na vida do indiv�duo,
tamb�m na hist�ria os tempos fabulosos ficaram esquecidos na mem�ria, por�m n�o
desapareceram, eles possu�ram a sua l�gica pr�pria, uma l�gica po�tica guardada
na mem�ria, da qual ficam os vest�gios que provocam a reminisc�ncia dos
acontecimentos passados.
Como n�o � poss�vel reconstruir o passado em todas as suas dimens�es, Vico
reconstitui o comportamento do universo fabuloso dos poemas de Homero, pois
nessa narrativa po�tica h� registros de acontecimentos hist�ricos e verdadeiros, cuja
estrutura��o respeita uma l�gica po�tica. Trata-se de narrativas que o autor
conceitua como “lugares de confusa mem�ria, (...) imagens de uma mal regulada
fantasia” (1744, 330).
O passado dos historiadores � uma representa��o que na maioria das vezes �
apenas imaginada a partir de fatos verdadeiros. O passado � a condi��o ontol�gica
da exist�ncia, o eu hist�rico n�o � fruto do presente, ele foi gerado pelas
circunst�ncias anteriores ao seu nascimento em determinado tempo e lugar. Os
fatos n�o podem ser resgatados integralmente pela mem�ria, mas o comportamento
295
gerador dos eventos hist�ricos pode ser redescoberto, porque as f�bulas possuem
“sensos n�o an�logos, mas un�vocos; n�o filos�ficos, mas hist�ricos” (1744, 34).
Ao longo da hist�ria da humanidade, algumas formas definidas de pensar e de
agir perpassam os diversos ciclos hist�ricos produzindo analogias. Segundo Vico no
final, quando se completa o ciclo das tr�s idades, acontece o retorno � idade divina,
teocr�tica e sacerdotal, a primeira idade dos primeiros tempos da barb�rie.
O ponto de partida da filosofia de Vico consiste no nexo entre a verdade e a
criatividade que depreende da faculdade do fazer humano, segundo o qual a �nica
verdade que pode ser conhecida radica nos resultados da a��o criadora da
produ��o da hist�ria, da qual o homem tamb�m � produtor. Parte da premissa de
que “o fato de produzir um objeto nos faculta para conhec�-lo”. Em ess�ncia,
argumenta que o homem conhece aquilo que ele mesmo produz, a hist�ria como
produ��o humana � conhecida pelos seus produtores que em torno da hist�ria ideal
constroem suas hist�rias particulares. S�o os acontecimentos e processos
particulares ocorridos num tempo pr�prio que capacitam esse conhecimento.
Percebida como uma tarefa de inclus�o da humanidade, a intera��o com a
hist�ria deve ser compreendida como a história da cultura produzida pela natureza
humana que � eminentemente produtora de costumes, de linguagens, de liberdade e
de opress�o, num tempo inclusivo e fluido. A cultura conjuga as m�ltiplas facetas da
exist�ncia humana num todo compreens�vel, embora abstrato. Para o fil�sofo, a
natureza humana � uma realidade variada, historicamente ligada, eternamente
cambiante, m�vel e portadora da bagagem das cria��es culturais da pr�pria hist�ria.
Pela lei do corsi-ricorsi, o curso da hist�ria se compara a hist�ria particular dos
indiv�duos, inf�ncia, juventude e maturidade. Existe uma hist�ria ideal disposta pela
provid�ncia, em torno da qual se movimentam as hist�rias particulares. Segundo
esse enfoque, o homem interferiria ativamente no percurso da hist�ria fazendo-a
avan�ar nas tr�s idades sucessivas: a Idade divina, teocr�tica e sacerdotal da �poca
da barb�rie; a Idade her�ica alcan�ada pela arbitrariedade e pela viol�ncia; a Idade
human�stica que � a da raz�o e a da pondera��o.
Pela altern�ncia das idades, as tr�s etapas implicam em um constante retorno:
fluxo e refluxo dos acontecimentos. Nesse movimento n�o h� repeti��o, no fim de
296
uma das idades surge outra alimentada pela experiência das gerações que a
precederam. Cada etapa é vivida por cada nação, em tempos que lhe são próprios.
Para Vico, o século das navegações e do Descobrimento e da Conquista do
Novo Mundo corresponderia a Idade humanística, clássica para a Europa; por
enquanto que na mesma época, paralelamente, a América permanece na primeira
Idade divina, teocrática e sacerdotal da barbárie.
Finalmente, atravessando o oceano, no mundo novo, os americanos iriam percorrer agora tal curso de coisas humanas, se não tivessem sido descobertos pelos europeus. Agora, com esse regresso das coisas humanas civis, (...) reflita-se acerca dos confrontos que por toda esta obra, num grande número de matérias, fizeram-se acerca dos tempos primeiros e últimos das nações antigas e modernas; a ter-se-á aplicada toda história, não mais particular e nos tempos das leis e dos fatos romanos ou dos gregos, mas (na identidade substancial de comprometer a diversidade de seus modos de se expandir) ter-se-á a história ideal das leis eternas, sobre as quais correm os fatos de todas as nações, em seus inícios, progressos, estados, decadências e fins, ainda que (o que é certamente falso) da eternidade, de tempo em tempo, nascem mundos infinitos.
(1999, p.479).
No espaço particular de Terra Nostra, o histórico-ficcional constrói uma história
respaldada pelo pensamento filosófico de Vico que autoriza a ideia de relativização
do relato histórico oficial. Para a Europa, a Idade Média corresponde à época da
barbárie, ciclo da infância; o Renascimento é o período da adolescência, das
descobertas. Os mundos no romance possuem um elo comum: o exercício do poder
autoritário como reminiscência da época barbárie, percebido como infantilismo
cultural latente em toda sociedade humana. A presença da autocracia remete à
concepção histórica de Vico, a história é um fluxo que avança em espiral, produto
das diferentes formas de cultura.
O elo se caracteriza nas figuras de Tibério César, Felipe II e Moctezuma; cujo
paralelismo de ação entre o final do Império Romano, o governo de Maximiliano, no
México, e a ditadura de Francisco Franco, na Espanha. O poder centralizador e
repressor pode rearticular-se em diferentes contextos históricos e culturais, uma vez
que eles se justificam no final dos ciclos históricos.
297
Pediu que o levassem uma vez mais ao canto escuro onde repousava emparedada, sua m�e a Dama Louca, e perguntou-lhe: -M�e, o que fazes? (...) meu filho, (...) nenhum soberano da nossa ra�a pisou jamais as praias do Novo Mundo: foram mais discretos que eu. Mas considera meu dilema: meu belo marido, loiro como o sol, era apenas o segundo na sucess�o; viv�amos � sombra do imperador, o irm�o de Maxi, na corte de Viena (...) sempre em segundo plano (...). Como n�o ouvir o canto das sereis? Um imp�rio nosso, no M�xico, terra nossa, descoberta, conquistada e colonizada pela nossa estirpe real (...) n�o gostaram de n�s, nos enganaram, filho, lutaram contra n�s at� a morte (...) camponeses de dia e guerrilheiros pela noite, atacavam, fugiam, emboscados, um ex�rcito invis�vel de �ndios descal�os; reagimos com a c�lera da nossa estirpe: ref�ns, vilarejos, incendiados, rebeldes fuzilados, mulheres enforcadas: nada os conseguiu submeter (...) o corpo baleado, convulso no pared�o, resistia morrer (...). Meu nome � Carlota.
(TN, p. 740).
Instrumentalizado por Terra Nostra o corsi recorsi conduz a trajet�ria da
narrativa focalizando o fim de uma era de poder centralizador em cada das figuras
apresentadas nos tr�s mundos ao longo do romance: Felipe II vive o final de um
per�odo em que o poder espanhol alcan�ou um alcance indiscut�vel; da mesma
maneira que Tib�rio C�sar, Moctezuma ou Francisco Franco, que em seus universos
particulares, cada um deles, vive no limite final de suas “eras” de poder: cada um
sente a imin�ncia do seu final de ciclo que se aproxima, e cada um deles utiliza o
poder arbitr�rio que, no dizer de Vico, marca o retorno � primeira idade da barb�rie
com o objetivo de revitalizar o poder desgastado.
O presente acarreta consigo as consequ�ncias das inclina��es do passado,
reiterando o corsi-ricorsi hist�rico. Segundo Vico, o presente � fruto de uma
somat�ria de possibilidades do passado. Obra a ser constru�da pela reitera��o do
avan�o e do retraso, fluxo e refluxo da hist�ria. Carlos Fuentes reinterpreta a ideia
de Vico, redireciona e instrumentaliza a vis�o da hist�ria para, pela express�o
liter�ria, compor em Terra Nostra uma utopia m�tico-l�rica que abarca os diferentes
tempos da Am�rica e que permita ecoar as diferentes vozes ocultas pela narrativa
hist�rica. Fuentes comenta:
Vico rejeitou um conceito puramente linear da hist�ria, concebida como marcha inexor�vel para o futuro, que se desprendia do pressuposto racionalista. Ao contr�rio, concebeu a hist�ria como um movimento de corsi e recorsi, um ritmo c�clico em virtude do qual as civiliza��es se sucedem, nunca id�nticas entre si, mas cada uma portando a mem�ria de sua anterioridade, dos logros e dos fracassos
298
das civiliza��es precedentes: problemas n�o resolvidos, mas tamb�m valores assimilados; tempo perdido, mas tamb�m tempo recobrado. (...) A concep��o filos�fica da hist�ria em Vico � inclusiva, mas, em primeiro lugar, � uma concep��o humana: s� podemos conhecer aquilo que nos mesmos temos feito, a hist�ria � nossa pr�pria fabrica��o e porque devemos continuar a fazendo-a e lembrando-a, mant�-la � o nosso dever (1990, p.31-32).
Terra Nostra confronta o poder monol�tico do Imp�rio espanhol ao poder
her�tico da imagina��o. A l�gica do poder imperial, espelhada na figura do Senhor,
se op�e ao poder da imagina��o representado pelos intelectuais, escritores e
artistas, que prop�em uma vis�o de mundo identificada com as mudan�as advindas
como fruto da modernidade. Para autorizar a vis�o hist�rico-liter�ria, o romance
aglutina algumas das fontes provenientes das cr�nicas historiogr�ficas, que ao
dialogar com as vers�es ap�crifas e fant�sticas questionam as vers�es recebidas do
passado. A reinterpreta��o dos mitos e da hist�ria permite aos grupos exc�ntricos a
sua inscri��o no registro hist�rico do qual haviam sido tradicionalmente exclu�dos.
A Hist�ria � a experi�ncia sociocultural de um povo, cuja identidade particular �
fruto de seus mitos, cren�as, lendas e produ��es art�sticas. Partindo dessa
premissa, o romance privilegia a heterogeneidade cultural, reivindica a presen�a das
minorias exclu�das, critica a vis�o das formas de identidade un�voca, compreende a
hist�ria de forma mais abrangente e, a modo de Vico, procura o ideal eterno da
História ao ultrapassar o limite que separa a cultura dos povos em categorias de
“superiores” ou de “inferiores”; um ideal que abole a defini��o “cultura central e
perif�rica”. Estabelecer um conceito que n�o categorize as diferen�as, mas que
estabele�a a heterogeneidade como princ�pio, � um imperativo hist�rico para que
Terra Nostra retome os mecanismos do curso, corsi, e do recurso, recorsi.
Cada per�odo temporal recortado no romance apresenta manifesta��es
culturais distintas e cosmovis�es diferentes. As unidades simb�licas de tempo e dos
diferentes pensamentos n�o est�o isoladas no romance, o mundo ib�rico, o Imp�rio
Romano o universo m�tico pr�-hisp�nico, as grandes religi�es interagem na trama
fragmentada de Terra Nostra. O caos une a todos, e, no desenrolar da narrativa,
surgem as semelhan�as, cruzam-se os limites impostos pela geografia e pela
historiografia. A possibilidade de transitar e aceitar as diferen�as, os hibridismos
culturais, a pluralidade de discursos e suas m�ltiplas verdades no �mbito da
299
heterogeneidade cultural, que s�o o pressuposto para escrever a Hist�ria no
romance.
Terra Nostra se apropria do conceito de corsi-ricorsi e o transp�e para o
movimento de contar-recontar que, de forma insistente, prevalece ao longo da
narrativa; contar-recontar � dizer de outra forma; aumentar ou diminuir o fato
anteriormente narrado; compor e decompor a vis�o do processo que existe por
detr�s dos fatos hist�ricos ou dos dados culturais que j� est�o prontos e
organizadamente definidos. O corsi-ricorsi n�o somente abre e fecha possibilidades
para a constru��o dos distintos tempos e universos culturais, como tamb�m
estabelece a multiplicidade de leituras do romance, isso porque nele n�o h� apenas
uma �nica leitura, poss�vel de ser afirmada; existe a complexidade de interpreta��es
mim�tica aos contatos com outros universos cognitivos que � poss�vel estabelecer.
O respaldo filos�fico de Giambattista Vico autoriza a ideia desenvolvida no
romance de que uma forma de dom�nio centralizador e repressor pode rearticular-se
em conjunturas culturais desiguais e em momentos hist�ricos dessemelhantes, eles
se justificam no final dos ciclos hist�ricos. O coeficiente comum entre Felipe II,
Tib�rio C�sar e Moctezuma; entre o franquismo e o fim do Imp�rio Romano
reformula o paradigma simb�lico comum que remete � ideia de Vico e da sua
concep��o do avan�o da Hist�ria como uma espiral; h� uma progress�o c�clica da
hist�ria que retoma as antigas formas b�rbaras no exerc�cio do poder, “Ao percorrer
a hist�ria percebe-se que certas ideias perpassam os diferentes ciclos da
humanidade” (1999, p. 66).
Segundo White, o estudo das ideias dos homens e as suas modifica��es no
processo hist�rico corresponderiam a um m�todo baseado na compreens�o
imaginativa. “Os mitos d�o lugar � met�fora (...). A maneira de entender esses
homens e seus mundos � tentar entrar em suas mentes (...). Para compreender sua
hist�ria � preciso entender como eles viviam (...) o que significam sua linguagem,
sua arte e seus rituais” (2001, p. 66).
Na constru��o est�tica de Terra Nostra percebem-se os caminhos
encontrados por Carlos Fuentes na filosofia de Vico, quanto ao uso dos mitos para
expressar a Hist�ria da Espanha e da Am�rica. Os mitos mesoamericanos s�o um
caminho formal para refletir sobre as experi�ncias do homem americano; da mesma
forma, as obras liter�rias s�o uma refer�ncia ao universo cognitivo espanhol dos
300
s�culos XVI e XVII. As ideias desses sujeitos hist�ricos, distanciados pelos s�culos,
s�o aproximadas pela explora��o de seus respectivos universos m�ticos e liter�rios.
As refer�ncias utilizadas pelo autor possuem uma mesma porta de entrada para
pensar a Hist�ria daqueles s�culos, as obras de Fernando Rojas e de Cervantes
para a Espanha; os relatos dos cronistas e as transcri��es dos c�dices que
estabelecem tanto o ide�rio ind�gena como o europeu pela sua dimens�o bipartida
entre forma e conte�do.
Carlos Fuentes desvenda a Hist�ria por meio da perspectiva da produ��o
imaginativa de outros sujeitos hist�ricos. Uma Hist�ria que se constr�i pela
interpreta��o imaginativa a respeito das a��es dos protagonistas de certos fatos
hist�ricos conhecidos, ao mesmo tempo narrados pela literatura, que em si mesma
j� realiza esse movimento. O romance reconhece, em sua pr�pria elabora��o
conteud�stica e formal, como fonte a Hist�ria e a Literatura, tanto em sua forma��o
como na sua apresenta��o.
A Hist�ria escrita nas p�ginas de Terra Nostra assinala para a forma��o plural
das mentalidades e de suas possibilidades de express�o est�tica: a Hist�ria �
sempre constru��o elaborada pela conflu�ncia de poss�veis verdades e de formas
de narrar. “A forma � a desarticula��o e os conte�dos s�o a articula��o de um
universo cognitivo, em que a aus�ncia de uma forma tradicional para descrever as
mentalidades reflete, pela express�o de sua aus�ncia, a refer�ncia a essa forma
reiterada ao longo da historiografia. Existe uma forma espec�fica para relatar o mito,
a hist�ria, a filosofia” (White, 2001, p. 88). A ruptura dessas formas preconcebidas
leva a refletir sobre a quest�o entre a verdade e o discurso hist�rico formal.
A forma renovada de relatar os fatos conhecidos se ap�ia nos mitos e nas
obras liter�rias, que no romance funcionam como espelhos das verdades hist�ricas
que fundamentam seu conte�do. A ruptura das formas preconcebidas se revela pela
outra forma de narrar os fatos, o mito de Quetzalc�atl se desarticula a partir do
momento em que seu protagonista � um europeu, o Peregrino-Polo Febo, o qual se
insere no tempo m�tico ainda que narre a experi�ncia do tempo hist�rico concreto e
linear. A personagem Celestina abrange sua dimens�o liter�ria e se projeta em
outras refer�ncias ao aspecto m�tico da personagem de Fernando Rojas que se
incorpora nas outras Celestinas dispersas ao longo do romance. A reitera��o de um
gesto remete a ess�ncias da personagem e da obra original. Don Quijote j� alcan�a
301
uma dimensão mais expressiva desta multiplicação de referências pela apropriação
da literatura, pois, para Carlos Fuentes, Don Quijote resgata a mentalidade do povo
espanhol.
Don Quijote em Terra Nostra revela as intenções interpretativas de Carlos
Fuentes no que se refere às mentalidades ocultas por detrás da construção
imaginativa da história dos povos ibéricos. Nas páginas de Don Quijote está implícita
a crítica à ambição de construir um discurso unívoco de verdade. A verdade de Don
Quijote é a ficção, a verdade de Terra Nostra é História e ficção, como movimento
de construção da narrativa histórico-literária. Diz Vico que apreendemos o real nas
fontes da expressão da mentalidade humana e que o presente comporta as
possibilidades do passado, reiterando o avanço e o atraso do fluxo histórico.
A linguagem literária é pessoal, figurada, rica em significados, conotativa,
contaminada pelos sentimentos e pela ideologia do seu emissor, cumpre a função
poética da linguagem. Como qualquer arte, a literatura exige, da parte do escritor,
técnicas, conhecimentos, sensibilidade e paciência. Vinculada à sociedade em que
se origina, a literatura cria mundos ficcionais utilizando como ferramenta o texto
escrito. A linguagem literária é a arte da palavra e essa é a unidade básica da
língua; a literatura, assim como a língua que utiliza, é um instrumento de
comunicação e, por isso, cumpre também seu papel social de transmitir a cultura de
uma comunidade. Apesar de estar ligada a uma língua, que lhe serve de suporte,
não está presa a ela; pelo contrário, faz uso livre da língua, e tem licença para
subverter suas regras e o sentido de suas palavras. A literatura dialoga com as
ciências subvertendo-as por meio da linguagem simbólica.
(...) ao analisar a situação do símbolo e do imaginário nos tempos modernos, na era da ciência percebe-se que o problema ainda se coloca na velha contenda entre o valor do pensamento racional, argumentação conceitual da razão, e o gosto, a vocação e o poder do pensamento simbólico (...) não se pode dizer que a mentalidade científica se encontra em confronto direto com o imaginário. No final do milênio, a tensão entre as pressões científicas e as ressurgências simbólicas já não se apresenta em termos antagônicos, a alegada mentalidade científica e técnica parece ser uma ilusão supersticiosa mantida pela pedagogia escolar do ocidente, mas que não corresponde absolutamente ao balanço profundo da alma ocidental e contemporânea média (Turchi. 2003 p.17).
302
Carlos Fuentes comenta que a express�o liter�ria hispano-americana comp�e
uma esp�cie de utopia m�tica que abrange os diferentes tempos hist�ricos da
Am�rica espanhola e que permite ecoar a multiplicidade de vozes ocultas pela
narrativa hist�rica linear. No ensaio Valiente mundo novo afirma,
(...) o romance mexicano representa apenas um cap�tulo da empresa maior da literatura de l�ngua espanhola, a qual pertencemos todos nos e voc�s, e esta � uma literatura nascida dos mitos das culturas ind�genas, das epopeias da conquista e das utopias do Renascimento. Todos nos nutrimos delas, as esquecemos, as redescobrimos e as deixamos voar pela for�a de uma linguagem recobrada, que o primeiro foi o dos nossos primeiros grandes poetas rel�mpago, Rub�n Dar�o e Pablo Neruda, Leopoldo Lugones e Lu�s Pal�s Matos, C�sar Vallejo e Gabriela Mistral. Gra�as a eles, os romancistas tivemos uma linguagem com a qual trabalhar na tarefa inacabada da contra-conquista da Am�rica Espanhola (1992, p.171).
No mesmo ensaio, ao analisar a obra de Vico, Carlos Fuentes comenta e
afirma uma interpreta��o do pensador sobre a hist�ria, a qual direciona a vis�o do
seu registro da Hist�ria em Terra Nostra.
Vico rejeitou o conceito puramente lineal da hist�ria, concebida como marcha inexor�vel para o futuro, que se desprendia do pressuposto racionalista. Concebeu a hist�ria como um movimento de corsi e recorsi, um ritmo c�clico em virtude do qual as civiliza��es se sucedem, nunca id�nticas entre si, mas cada uma portando a mem�ria da sua pr�pria anterioridade, dos logros e dos fracassos das civiliza��es precedentes: problemas irresolvidos, mas tamb�m valores assimilados; tempo perdido, mas tamb�m tempo recobrado. (...) A filosofia da hist�ria de Vico � uma concep��o inclusiva, mas, em primeiro lugar, � uma concep��o humana: s� podemos conhecer o que nos mesmos temos feito, a hist�ria � a nossa fabrica��o; devemos conhec�-la porque � nossa e porque devemos continuar fazendo e lembrando. Se somos os criadores da hist�ria, mant�-la � o nosso dever (1992 p.31-32).
Na tentativa de compreender quais s�o o rigor e a autoridade que permeiam os
diferentes discursos hist�ricos e liter�rios, Carlos Fuentes prop�e um discurso aberto
que permita a prolifera��o de pontos de vista, reivindicando para si a impossibilidade
de determinar a verdade dos fatos, “fazer e recordar a Hist�ria s�o os caminhos
paradoxais pelos quais transita o texto da fic��o, revitalizando os conceitos de real e
de ficcional” (1992, p.32). A ruptura com a verdade �nica dos fatos hist�ricos e a
303
inclus�o das refer�ncias liter�rias, como se fossem verdades hist�ricas em Terra
Nostra, visam � heterogeneidade cultural.
Se a Hist�ria, como afirma Vico, � a experi�ncia das diferentes mentalidades
humanas, podemos imagin�-la por meio dos mitos, lendas e produ��es art�sticas,
que tamb�m formam parte do caudal cognitivo da heran�a cultural. A vis�o mais
ampla do universo cognitivo das diferentes sociedades, sem privilegiar as formas de
identidade un�voca, permite a compreens�o da Hist�ria como mais abrangente que,
no dizer de Vico, percebe o ideal eterno da História, que rompe os limites que
definem as categorias culturais como “superiores” ou “inferiores”, “civilizadas ou
primitivas”. Para isso h� que romper a fronteira que divide e que conceitua a cultura
central e cultura perif�rica.
Estabelecer um conceito cultural que n�o categorize as diferen�as, mas que
estabele�a a heterogeneidade como princ�pio � um imperativo em Terra Nostra,
representado pelo mecanismo de corsi-ricorsi dos paradigmas hist�ricos. Cada
per�odo temporal recortado no romance apresenta manifesta��es culturais e
cosmovis�es diferentes. Essas unidades simb�licas de tempo e de pensamento n�o
est�o isoladas, o Imp�rio Romano, o mundo ib�rico, as grandes religi�es e o
universo m�tico pr�-hisp�nico interagem na trama fragmentada do romance. O caos
os une dispensando os limites impostos pela geografia e pela hist�ria linear.
O cosmos ideal � a homogeneidade e a possibilidade de transitar pelas
diferen�as, isentos de culpas ou de julgamentos. Renunciar �s parcialidades e ao
pr�prio ponto de vista, afirma Carlos Fuentes, � uma forma de pensar os hibridismos
culturais. Aceitar a pluralidade dos discursos e das verdades � um pressuposto para
escrever a Hist�ria, entendida pelo autor como fruto da heterogeneidade cultural. O
movimento de corsi e recorsi abre m�ltiplas possibilidades para a constru��o dos
distintos tempos e universos culturais contidos no romance.
Pela �ptica da carnavaliza��o percebe-se que a hist�ria narrada ao avesso
realiza o prop�sito de inserir o leitor no universo da obra, cuja participa��o se realiza
na reconstru��o tanto da Hist�ria como do pr�prio romance. Os cento e quarenta e
quatro epis�dios n�o ordenados cronologicamente, prop�em a reconstru��o da
Hist�ria de acordo com o argumento hist�rico constru�do por Carlos Fuentes.
304
De acordo com a lei do corsi-ricorsi, a narrativa de Terra Nostra se tece em
forma de espiral subvertendo a linearidade histórica. A compreensão se produz pela
organização da história que se iniciaria no episódio Manuscrito de um estóico
(p.681), com a maldição de Tibério César durante o império Romano. O relato
apresenta o imperador romano, Tibério César, já reiterado em Capri, que teme a
aparição do fantasma de Agrippa Póstumo, assassinado por Tibério com a intenção
de roubar o trono ao legítimo herdeiro. Tibério, antes de morrer em mãos do
fantasma, cuja verdadeira identidade é Cláudio, servo do assassinado Agrippa
Póstumo, pronuncia a maldição sobre o futuro da Espanha: seu território será
dividido e dispersado por seus usurpadores, encarnações de Agrippa Póstumo, que
se multiplicaram, começando por três, até o infinito. A profecia de Tibério sobre a
dispersão do território hispânico por seus usurpadores no futuro está apresentada
como uma premissa básica do romance, de que a História não se conforma por
acaso, senão que está predeterminada como consequência dos atos passados.
Nos episódios O primeiro menino (p.522), A mãe Celestina (p.591), Primeira
jornada (p.595), Sétima jornada (p.623) referem-se à vida de Celestina e Ludovico
com as três crianças, filhos adotivos, durante vinte anos, depois do primeiro
massacre do Alcázar, antes da véspera do dia da caça e à viagem de aprendizado
às culturas antigas nos sonhos dos três irmãos estigmatizados.
O fio narrativo continua nos episódios Aos pés do Senhor (p.35), Quem és?
(p.63), Há um relógio que não soa (p.105), O beijo da pajem (p.107), As cinzas da
sarça (p.138), O Senhor começa a recordar (p.108), O Senhor dorme (p.143),
Guzmán fala (p.145), Desastres e portentos (p.174), O primeiro testamento (p.191),
Retrato do príncipe (p.234), O Cronista (p.239), O último casal (p.255), Olhares
(p.340) que descrevem a história do reinado do velho Felipe, enfocados no dia da
caça em que as três pessoas visitam o Palácio do Senhor.
Os episódios Estrela da manhã (p.235), Noite do retorno (p.487), Amor pela
água (p.497), Os rumores (p.499), Celestina e Ludovico (p.522), Primeira jornada
(p.595), Sétima jornada (p.623) relatam os diálogos e as ações do Senhor durante
sua conversação com seus visitantes, assim como nos episódios A semana do
Senhor (p.595), A rebelião (p.633) que completam o relato sobre a história dessa
dinastia.
305
Ap�s longas discuss�es, o Senhor decreta igualmente a inexist�ncia do Novo
Mundo e reprime, atrav�s de Guzm�n, a rebeli�o popular das comunidades de
Castela. Celestina, Ludovico e o Peregrino discutem sobre a segunda oportunidade
de recriar o mundo por eles conhecido, mas a proposta falha novamente pelo
segundo massacre dos rebeldes.
Progressivamente todos abandonam o Senhor. Isabel retorna � Inglaterra
onde, como vingan�a pelas pen�rias vividas junto ao seu marido, prepara a
destrui��o da Armada Invenc�vel. Ludovico e Celestina fogem do Pal�cio, da mesma
forma que In�s e Dom Juan, que embarcam com Guzm�n para o Novo Mundo. L� a
novi�a se converte em S�ror Juana In�s da Cruz, Guzm�n continua a tarefa de
repressor e, no extremo oposto, Frei Julian assume a personalidade de Frei
Bartolomeu das Casas e de Frei Bernardino de Sahag�n.
Em Confissões de um confessor (p.657), Corpus (p.674), Cinzas (p.704),
Réquiem (p.739) os epis�dios se encaminham para os momentos finais da vida do
Senhor. O epis�dio Os trinta e três degraus (p.757) relata a doen�a e a agonia do rei
nos seus �ltimos momentos em seu Pal�cio. Acossado por seus fantasmas, assim
como pelos espectros dos reis mortos e enterrados no mausol�u, o Senhor
apodrece em vida e ensaia seu pr�prio funeral. Ele mesmo v� seu corpo sendo
embalsamado (p.824). J� no f�retro, � chamado pelo fantasma de uma das suas
v�timas �tnicas, Mijail bem Sama, sobe a escadaria inacabada do mausol�u e
reaparece no Valle de los Caídos como fantasma, finalmente reaparece
transformado em lobo no s�culo XX (p826-830).
Em A restauração (p.717), o Senhor encontra um manuscrito que relata a
hist�ria do M�xico e dos Estados Unidos na terceira garrafa verde. L� sobre um
jovem protagonista guerrilheiro na Serra de Veracruz do s�culo XX; essa narrativa
descreve o bombardeio do ex�rcito dos Estados Unidos contra as guerrilhas
mexicanas. A hist�ria compactua com a met�fora do lobo que reaparece ao longo da
hist�ria dos homens numa esp�cie de metamorfose constante.
Gilbert Durand comenta que � importante ressaltar que a estrutura romanesca
� definida como um processo de muta��o, um ilimitado descont�nuo que se op�e ao
cont�nuo, “todo grande romance se assemelha a uma encruzilhada para onde
convergem os esfor�os do artista para escapar do prosaico, sem renegar a prosa,
para integrar a exalta��o �pica � express�o po�tica. O romanesco tem sua
306
ambiguidade no equil�brio ou na soma entre o �pico e o l�rico, um deslizamento
constante do primeiro para o segundo” (Turchi. 2003 p.151).
Na terceira parte do tr�ptico se resolvem muitos dos enigmas apresentados no
in�cio do romance, como a origem dos n�ufragos resgatados na praia do Cabo dos
Desastres (p.54). Os tr�s resultam ser filhos de Felipe o Formoso, pai do Senhor,
embora de m�e diferente; o primeiro � filho da Celestina, estuprada no dia da sua
boda pelo rei-pai; o segundo � o filho da loba e o terceiro de Isabel, a mulher do
Senhor. A origem dos tr�s n�ufragos estigmatizados e a sua reapari��o em v�rios
momentos da hist�ria ocidental se explica no manuscrito que o Senhor encontra em
uma das misteriosas garrafas verdes, que contem a mensagem do imperador
romano Tib�rio que, antes de morrer, teria amaldi�oado seu assassino, Agrippa
P�stumo, condenando-o a ressuscitar multiplicado no futuro com as marcas f�sicas
mencionadas.
Perante a amea�a que esses tr�s jovens representam, o Senhor ordena a sua
reclus�o: o pr�ncipe bobo com a an� Barbarica no Mosteiro de Verd�n, Don Juan
com S�ror In�s numa cela coberta de espelhos e o peregrino num calabou�o junto a
Ludovico e Celestina. Em seguida, o Peregrino perde o bra�o quando, obrigado por
Guzm�n a fugir ao mar, � atacado pelo falc�o. Julian, o pintor, confessa ao Cronista
Miguel ser o narrador de todas as hist�rias e lhe pede que escreva as cr�nicas dos
�ltimos dias do Senhor. Essa mesma cr�nica � apresentada ao leitor nos epis�dios
finais do romance.
No ep�logo, a narrativa do primeiro epis�dio retoma ao seu ponto de partida; o
primeiro e o �ltimo epis�dio abrem e fecham a narrativa de Terra Nostra na
apocal�ptica cidade de Paris de 1999. Em Carne, esferas, olhos cinzentos junto ao
Sena (p.13), o protagonista Polo Febo desce de seu apartamento, sai �s ruas e se
depara com uma experi�ncia fora do comum, vivencia um mundo estranho fora do
habitual, seu entorno est� metamorfoseado e a data � 14 de julho, dia em que se
comemora a Tomada da Bastilha. No �ltimo epis�dio, A última cidade (p.764), no
mesmo quarto, seis meses depois, Polo Febo l� alguns pap�is que relatam os
acontecimentos narrados ao longo das p�ginas do romance, o dia � 31 de dezembro
de 1999, v�spera do ano 2000.
O cen�rio � o quarto do hotel onde se encontra Polo Febo, um dos �ltimos
sobreviventes da esp�cie humana de um mundo em exterm�nio e povoado pelos
307
fantasmas do passado. Os momentos finais est�o repletos de alguns dos objetos
mais significativos que surgiram ao longo do romance: as garrafas verdes, as
cr�nicas dos conquistadores, umas tesouras de alfaiate, uma cesta repleta de
p�rolas, uma grande quantidade de espelhos, um cofre com os tesouros da Am�rica
antiga, uma pomba morta e uma m�scara de penas. Celestina, a mo�a de l�bios
tatuados aparece na porta, entra no quarto e beija o jovem, o beijo de Celestina est�
associado � recupera��o da mem�ria e � uni�o final do romance, simbolicamente
representado no abra�o final dos jovens. Seus corpos se fundem num �nico ser e,
dessa uni�o, surge uma criatura andr�gena, da qual haver� de nascer uma nova
humanidade, tudo isso ocorre � meia noite, no momento em que se inicia o novo
mil�nio.
Essa fus�o sintetiza a vis�o de Carlos Fuentes sobre a Hispano-Am�rica: h�
duas vers�es sobre a identidade de Polo Febo-Peregrino; a primeira simboliza a
imagem livre e aberta dos artistas e dos pensadores “a Espanha dos touros, Carmen
e o flamenco, do santo mission�rio e todas as coisas espanholas” representada na
figura de Polo Febo do primeiro epis�dio; a outra, “a Espanha da Lenda negra (...) a
m�e Espanha vista por sua descend�ncia colonial nas Am�ricas, a Espanha
amb�gua do cruel conquistador” (1992, p.17).
Essa dualidade est� representada na figura do Polo Febo-Peregrino a dupla
identidade da Espanha vista desde a Am�rica; fusionada no final de Terra Nostra
gerando em um ser complexo e completo. “E obsessivamente, por ser quem �s e
donde �s, te dizes que isto � assim, esse translado do passado tem que ser o da
menos realizada, a mais abortada, a mais latente e anelante de todas as hist�rias: a
de Espanha e a Am�rica” (p.775).
Quando Felipe sonha um encontro com o fantasma de Mijail bem Sama, este
repete em seus ouvidos uma segunda oportunidade por cada um dos trinta e tr�s
degraus da inacabada escada do edif�cio de El Escorial. Mas, ao escolher o
exterm�nio do diferente em vez do reconhecimento do outro, Felipe opta pela solid�o
e a morte, ao inv�s de escolher a harmonia primordial e a vida; escolhe a ortodoxia.
A segunda oportunidade segue latente no texto liter�rio pela met�fora
expressada no �xtase do abra�o que fecha a �ltima pagina de Terra Nostra, a
promessa de um novo g�nese incide sobre a sedu��o do leitor pelo texto no �mbito
da imagina��o. Para Ricoeur, “a met�fora � o procedimento lingu�stico dentro do
308
qual se deposita o poder simb�lico. Ela traz para a linguagem a sem�ntica do
s�mbolo, ou seja, a infinita correspond�ncia universal dos seres” (1999, p.80-81).
Ao reconstituir toda a hist�ria relatada no romance, percebe-se que os
acontecimentos est�o situados no plano dos sonhos, os tr�s mundos criados na
obra se iniciam a partir do principio do caos que precede a toda cria��o, para logo
inaugurar o cosmos narrativo do romance. O primeiro epis�dio do romance se inicia
com a g�nese do homem sonhada por um jovem mexicano, Polo Febo, que vive na
cidade apocal�ptica de Paris no ano de 1999. Esse mundo que o rodeia � bizarro,
seu entorno est� repleto de metamorfoses, sente-se um estranho, sozinho. Por ser
uma figura que possui caracter�sticas m�ticas e hist�ricas, representa os latino-
americanos em busca de uma identidade poss�vel na hist�ria da Pen�nsula Ib�rica, e
na Espanha percebida como la madre patria. Ao pensar que um povo sem passado
� um povo sem futuro, o jovem vive num mundo estranho e confuso, desconhecido e
sem sentido. Polo Febo se pergunta: “Princ�pio ou fim, causa ou efeito, que coisa
estamos vivendo?” (p.21).
O velho mundo se inicia com um relato breve sobre o encontro de dois jovens
em Paris, Polo Febo e Celestina, numa cidade vive um estranho clima apocal�ptico.
Os jovens se encontram na Ponte das Artes e, durante uma tempestade, Polo Febo
cai na correnteza do rio Sena, levando consigo uma misteriosa garrafa verde.
Chama a aten��o o fato de que tr�s garrafas verdes permeiam toda a narrativa,
tanto elas como Celestina s�o uma chave para compreender o sentido final da obra.
Celestina profere um anagrama, que prenuncia um mundo ao avesso. Ocorre
uma ruptura espa�o-temporal e a cena se transporta para os s�culos XVI e XVII,
�poca que compreende a perman�ncia da dinastia dos �ustria no trono da Espanha.
No Palacio, o Senhor espera a chegada dos f�retros de seus antepassados para
serem sepultados em seu Palacio, El Escorial. Paralelamente, aparecem tr�s
n�ufragos na praia do Cabo dos Desastres e s�o levados ao Pal�cio. Celestina,
transfigurada de pajem, conduz Polo Febo � corte. Como o jovem n�o se lembra de
sua identidade, � nomeado de Peregrino por um velho pescador chamado Pedro.
Toda a primeira parte da obra centra sua aten��o sobre a cultura da Espanha
representada na figura do monarca, o Senhor. Polo Febo-Peregrino chega perante o
Senhor � relata suas aventuras no Mundo Novo, descoberto por ele.
309
Na segunda parte do romance os mitos pr�-colombianos s�o reinterpretados
pela voz do jovem, que encarna a figura do deus-cultural Quetzalc�atl. Polo Febo-
Peregrino penetra na cosmogonia asteca e, da mesma forma que na lenda, ele foge
pelo mar. A diferen�a � que Polo Febo-Peregrino retorna a Espanha, onde relata a
exist�ncia do Mundo Novo.
Na �ltima parte de Terra Nostra, o relato se volta para a decad�ncia do Senhor
e para seus os �ltimos dias de vida no Pal�cio. Paralelamente, surgem personagens
que refletem sobre o conceito de Hist�ria e concluem em que esta se repete porque
avan�a em forma de espiral, de acordo com o pensamento de Giambattista Vico.
Ocorre um corte temporal e a cena volta � Paris de 1999 e, minutos antes da
cat�strofe final, Polo Febo e Celestina se unem gerando um ser andr�geno. A
met�fora do andr�geno representaria a uni�o final entre Europa, Celestina, e
Am�rica, Polo Febo-Peregrino, s� que dessa vez pela inclus�o de ambas as das
culturas, fus�o poss�vel no universo criado no romance. Paul Ricoeur escreve, “Na
hist�ria, a mem�ria e o esquecimento. Na mem�ria e o esquecimento, a vida. Mas
escrever a vida � outra hist�ria: inclus�o” (2000, p.48).
Embora o nascimento do andr�geno insinue a possibilidade da nova g�nese, a
continuidade da obra deve ser desenvolvida fora do romance, na imagina��o do
leitor, comenta Carlos Fuentes, que oferece a sua vis�o do que poderia ter sido se a
humanidade tivesse seguido outras op��es. O romance desarma o sonho de uma
utopia americana, mas deixa em aberto um conceito de futuro radicalmente diferente
do nosso presente imperfeito. � pela voz de Ludovico que a obra prop�e um futuro
distinto para a humanidade quando comenta “nunca regressaremos a idade do ouro
original, h� que esperar um terceiro tempo que se iniciar� nestes dias que vivemos”
(p.663). O terceiro tempo a que se refere Ludovico parece culminar no final de Terra
Nostra, no momento em que se termina a leitura do livro.
A solu��o que o texto oferece para os problemas mundiais da fome, da guerra,
do autoritarismo e at� do egocentrismo que pairam na sociedade individualista � o
fim do pr�-conceito em todos os �mbitos da sociedade. O andr�geno final como
resultado da uni�o entre Celestina e Polo Febo, acaba com as divis�es �tnicas,
sexuais, sociais e ideol�gicas que corrompem as rela��es entre os homens e que
terminaram por destrui-lo.
310
Os espectros de Celestina, Don Juan, Don Quijote, Pierre Menard, Horacio
Oliveira e Aureliano Buend�a povoam as p�ginas do texto para comunicar, uma e
outra vez, os dramas imprescind�veis da nossa cultura. Miguel da Vida, Mijail bem
Sama, ou Cronista, figuras de Cervantes, s�o os representantes da Espanha
multi�tnica e diversa que existia na Idade M�dia, antes da expuls�o dos que n�o
conseguiram provar a pureza de sangue. Representa tamb�m a popula��o
polif�nica e centrifuga que Bakhtin defende em seu conceito de imaginação dialética.
Na imagem tr�ptica de Cervantes se celebram todas as culturas e etnias que
passaram pela pen�nsula Ib�rica.
O Cronista fazia-o cantar ar�bicos o�sis, hebraicos desertos, fen�cios mares, hel�nicos templos, fortale�as de Cartago, caminhos de Roma, �midos bosques celtas, b�rbaras cavalgadas germ�nicas; nem pastor idealizado nem �pico guerreiro, nem Belardo nem Rold�n, o n�o her�i da pureza, sen�o da impureza, her�i de todos os sangues, her�i de todos os horizontes, her�i de todas as cren�as (...) por ser todas, s� podia ser a nossa (p.313-314).
O jovem Polo Febo, imagem do povo americano, prop�e submeter a sua
vontade o representante poderoso da dinastia dos Habsburgo e junto com ele os reis
e governantes autorit�rios da hist�ria da Am�rica. Este jovem � identificado pelo
Cronista-Cervantes: “Era ele, o jovem peregrino nascido com o sol e ao sol
semelhante, t�o familiarmente espanhol com sua laranja na m�o, t�o long�nquo,
ausente e estrangeiro em seu olhar de desencantado assombro: um her�i de aqui e
de l�, nosso e alheio, parente e forasteiro, case, se diria, um filho pr�digo” (p.313-
314).
O mist�rio das tr�s garrafas verdes se resolve com a compreens�o final do
romance: passado, presente e futuro trancados nessas garrafas. Migra��o do tempo
que faz com que Celestina, como representante da mem�ria, lembre das coisas e
dos fatos da sociedade medieval e totalizante daquela Espanha em que Fernando
Rojas criou a tragicom�dia em 1499. Celestina lembra-se da �poca em que a
Espanha vive a transi��o entre a Idade M�dia e o Renascimento, e essa hist�ria
total da Espanha da fic��o est� trancada na primeira garrafa.
A imagina��o liter�ria, alimentada pelo mito, transforma a Hist�ria,
convencionalmente identificada pela ordem da verdade, em outra realidade. A
311
possibilidade de exist�ncia de uma maior verdade na fic��o do que nos discursos
apresentados como verdadeiros ou historicamente confi�veis �, talvez, a mais
sobressalente discuss�o do novo romance hist�rico. A fic��o, a partir do mecanismo
da semelhan�a, satisfaz rela��es com a realidade mediadas pela imagina��o de
Carlos Fuentes. Fragmenta��o temporal que desarticula os espa�os geogr�ficos da
linearidade dos discursos da Hist�ria, entrela�ando-os com os relatos m�ticos para
evidenciar a pluralidade e construir a narrativa mito-hist�rica.
Em seu ensaio, Historia e imaginación literária (1995), o escritor argentino
No� Jitrik tece a seguinte considera��o:
A verdade pode ser mais plena pela interven��o da mentira, ou mais densa; ao contr�rio c�mbio, a verdade que n�o passa por essa prova pode aparecer como mais superficial, ou fragmentaria, ou semfundamento. A sombra destas rela��es � que certos soci�logos chegam a dizer que um romance ensina mais sobre a realidade do que certos estudos ou an�lises cient�ficas ou filos�ficos; o que eles dizem, em soma, � que certa mentira — n�o qualquer — irradia ouconstr�i mais verdade do que a que era entendida como verdade ou, o que � a mesma coisa, como rela��o precisa e bem fundada entre aparatos intelectuais e coisas. (1995, p.11).
A segunda garrafa guarda o presente narrativo do romance, no que se refere �
primeira d�cada de 1970, �poca em que a Espanha e grande parte da Am�rica-
Latino vive em estado exce��o, o romance denuncia o fato posicionando-se em
contra de qualquer forma de poder autorit�rio. Por se tratar de uma obra
politicamente engajada, o romance re�ne uma das caracter�sticas da literatura
modernista hispano-americana, critica o conceito un�voco da Hist�ria e por se
posicionar em contra dos regimes de ditadura, afirma nas entrelinhas que a verdade
tem estrutura de fic��o.
Percebida desde a perspectiva da transdisciplinaridade, a combina��o da
f�rmula Hist�ria e novo romance hist�rico resulta num dos recursos utilizados por
Carlos Fuentes na escrita de sua obra. A releitura da hist�ria no discurso liter�rio
acontece sempre de forma a questionar a Hist�ria oficial, percebida como lineal e
un�voca. O novo romance hist�rico pretende preencher as lacunas deixadas pela
historiografia e procura as outras verdades que ficaram de fora do trabalho do
312
historiador, realidades ocultas, resíduos da memória, mitos emblemáticos, material
extraliterário, marcos ideológicos que constroem a narrativa do romance.
Do ponto de vista semântico, o título do romance Terra Nostra pode ser
compreendido como o espaço habitado pelo povo Indo-Afro-Americano,
inevitavelmente tocado pela experiência do caudal cultural ibérico. Território das
língua espanholas e portuguesa, das quais emergem manifestações poéticas de
contornos mestiços e coloridos. Em cada um dos países que compõem o continente,
a arte literária, como forma específica de atividade, como forma significante e como
função social, estabelece o dialogo entre as culturas por meio da sua materialidade
específica, isto é a palavra. Em seu artigo Edgar Morin, um pensador para o Brasil,
publicado na revista Ponto e Vírgula (PUC/SP, 5/1999), Edgard de Assis Carvalho
escreve:
A co-presença das múltiplas expressões do imaginário e do real, da subjetividade e da objetividade, da razão e da desrazão dão corpo e sintonia às diversificações complexas de um processo histórico que, há milhões de anos, nada mais faz do que explicitar a unidualidade do sapiens-demens. Situado nesse entre-dois, o homem expressa não apenas a trajetória da desordem sapiental, mas a dialogia e a recursividade entre o rígido e o transitório, o substantivo e o transcendente, a ordem e o ruído, a repetição e a criatividade. Nesse oceano tormentoso, o sapiens sapiens demens equilibra-se de modo instável, confrontado com desastres irremediáveis e horrores de toda ordem, inundado por fluxos de insignificância que atravessam o cotidiano, saturado de formatos pré-estabelecidos pela biopolítica dominante. (2009, p.49-60).
A terceira garrafa abriga no seu interior o profundo desejo de um futuro livre,
representado na figura do jovem Polo Febo que, após descobrir e se reconhecer
como latino-americano se une num abraço final a Celestina-memória que, no fim,
representa às raízes culturais da Península Ibérica. Carlos Fuentes desconstrói a
história conhecida por todos para criar uma nova história, as garrafas verdes, a
memória, o desejo e o sonho acolhem em seu interior a esperança de uma
sociedade mais justa e quando caem no mar das palavras se transformam na obra
literária.
313
A literatura constrói uma nova ordem pelo desordem da linearidade temporal,
uma contradição lógica aparente, mas que, pela liberdade poética, autoriza uma
realidade multidimensional no espaço da imaginação. Carlos Fuentes comenta,
A Literatura ganha o direito de criticar o mundo demonstrando, primeiro, sua capacidade de criticar-se a si mesma. É o questionamento da obra literária pela obra literária mesma, o que nos entrega tanto a obra de arte como suas dimensões sociais (...). Nisso estriba a modernidade da nossa escrita, mas também nossa resposta a duas realidades paralelas: a crise e nossa presença potencial no mundo do século XXI. A pluralidade das culturas do mundo organizadas como presenças válidas num futuro multipolar, é a garantia de que teremos um futuro melhor. (1992, p.38)
Em Terra Nostra, o encontro entre os dois mundos, a Espanha e a América, se
transforma em sonho e em profecia e as representações de ambos se realizam por
meio de imagens e de símbolos que provêm da História, do mito e da tradição
literária. Os papéis culturais e os símbolos encarnam os ideais convergentes da vida
e das relações humanas, a metáfora do andrógeno representa a utopia da unidade,
um caminhar juntos, deixando de lado as diferenças; uma realidade plausível ou
apenas um sonho possível da imaginação literária.
O tempo-espaço se constrói pelo atrelamento dos dois modos mencionados na
primeira e da segunda parte do tríptico: a linha reta e o circulo alcançam uma espiral
eterna, em que o tempo avança de uma ação a outra, sempre nova, mas que em
sua memória guarda os sucessos das gerações anteriores influenciando o presente,
um passado com um presente oculto, presente em rotação, o presente enterrado,
contínuo. No dizer de Carlos Fuentes,
A história não é um progresso interrompido, senão que um movimento em espiral, no qual os progressos se alternam com fatores recorrentes, muitos deles negativamente regressivos (...) em fluxo perpétuo, todo sempre (...). Minha ideia de tempo não é lineal. Em ocasiões se trata de una ideia circular, em outras de um eterno retorno, em ocasiões de espirais, (...) Meu tempo constitui uma recuperação constante do passado no presente e do futuro nopresente. É um recordatório constante de que o tempo passado é memória e que o futuro é presente. É uma declaração de que o tempo passado é memória no presente e de que o que chamamos futuro é também desejo no presente. (...) Em Terra Nostra a realidade é apresentada como uma estrela de três picos. Não duvido
314
que existe uma realidade pessoal, subjetiva. Ha uma realidadematerial objetiva. Mas tamb�m existe uma individualidade coletiva com a qual sa�do a minha cultura e sa�do outras, e � esta a realidade que mais me interessa. A individual coletiva � a realidade na qual me identifico com a minha cultura. (1992, p.200).
A concep��o temporal no tr�ptico liter�rio realiza “a busca cont�nua, a busca
da segunda hist�ria, da outra linguagem, do conhecimento mediante a imagina��o,
busca, no fim, outros dizeres do leitor e da leitura” porque um escritor, um livro, uma
biblioteca nomeiam o mundo e d�o voz ao ser humano (2002, p.172). O modo de
perceber a marcha da Hist�ria n�o se relaciona apenas com o ponto de vista do
indiv�duo, mas depende da compreens�o geral de cada sociedade em Terra Nostra.
Em O velho mundo, como representa��o do pensamento ocidental, a Hist�ria se
explica como uma marcha retil�nea e irrepet�vel, fato ap�s fato num fluxo perp�tuo.
Essa interpreta��o � simbolizada por uma linha reta, iniciada desde um ponto
zero at� o final dos tempos. Em O mundo Novo, figura da Am�rica pr�-hisp�nica, ao
contr�rio, a concep��o circular do tempo se representa por um c�rculo no qual se
vaga sem possibilidade de fugir dos des�gnios das deidades. O outro mundo
entrela�a esses dois modos de explicar o transcurso da hist�ria e cria um sistema
em espiral.
A hist�ria � um tecido de instantes intemporais (...). A verdadeira hist�ria ser� viver e glorificar esses instantes temporais e n�o, como agora, sacrific�-los a um futuro inalcan��vel e devorador, pois cada vez que o futuro se torna instante, repudiamo-lo em nome do futuro que desejamos e jamais teremos. (TN, p.33).
A hegemonia cede perante o m�ltiplo que representam Polo Febo e
Celestina, Am�rica e Espanha, neles se celebram todas as culturas que j� passaram
pela Pen�nsula Ib�rica. Esse encontro representa a reivindica��o da diversidade
�tnica da Espanha e por extens�o a todo mesti�o. Terra Nostra sugere que n�o
basta desconstruir as barreiras do discurso un�voco, � preciso construir a intera��o
dial�gica de opostos que transcenda a nega��o da simples diferen�a. Essa
complexa unidade no romance � libertadora, expande o horizonte do potencial
humano baseando-se em uma hist�ria alternativa de mem�ria e imagina��o. Para
Carlos Fuentes, o papel da literatura consiste em propor “outra realidade, uma
315
realidade melhor – um novo mundo num romance, mediante as ideias e a linguagem
lado a lado com a a��o pol�tica” (1992, p.287- 288).
Espl�ndida, admir�vel, bela s�o os adjetivos que ressoam na nossa mente
quando fechamos a �ltima p�gina do romance, principalmente quando a evocamos e
a nossa mem�ria reconstr�i as experi�ncias liter�rias que a obra provoca na nossa
imagina��o. Por meio da reinterpreta��o da hist�ria, o romance nos leva a refletir
sobre a realidade latino-americana, a repensar sobre a nossa realidade multicultural
e sobre o poder da palavra capaz de interpretar os homens de todos os tempos e a
sua inten��o de explicar-se e de explicar o mundo e o lugar que nele ocupa. E como
todo na obra come�a quando termina, deixamos o caminho aberto para outros
poss�veis dizeres sobre Terra Nostra.
316
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A literatura � minha amante, e tudo o resto, sexo, pol�tica, religi�o se a tivesse, morte quando a tenha, passa pela experi�ncia liter�ria, que � o filtro de todas as outras experi�ncias da minha vida.
Carlos Fuentes. Diana o la cazadora solitaria
A trilogia do romance nos convida a reinventar o mundo pela experi�ncia
est�tica que realiza um pacto �ntimo e simb�lico entre autor, texto e leitor numa
ordem distinta: “h� que imaginar o presente, reinventando o passado, a arte n�o
pode mudar o mundo, mas pode contribuir para mudar a consci�ncia e os impulsos
dos homens que podem mudar o mundo” (1992, p.289). Oferece “um repert�rio de
possibilidades para a liberdade do leitor. O leitor se transforma assim em eleitor (...)
busca cont�nua da segunda hist�ria, da outra linguagem, do conhecimento mediante
a imagina��o, busca, no fim, do leitor e da leitura” (1993, p.31). Carlos Fuentes
sugere uma intera��o dial�tica que pretende expandir o horizonte do potencial
humano baseando-se numa hist�ria alternativa, fruto da mem�ria e da imagina��o,
“um escritor, um livro, uma biblioteca nomeiam o mundo e d�o voz ao ser humano”
(2002, p.172).
Apropriando-se dos mitos e da literatura dos primeiros conquistadores
espanh�is, o Cronista de Terra Nostra integra com certa ironia a profiss�o dos
homens que realizaram as primeiras descri��es do Novo Mundo. Carlos Fuentes
cultiva uma rela��o especial com as Cr�nicas de �ndias, encontra material
importante nos primeiros relatos dos conquistadores que descrevem admirados
aquilo que at� ent�o era totalmente desconhecido para eles. As cr�nicas dos
Naufragios, de Alves Nu�ez Cabeza de Vaca e a Historia verdadera de la
conquista de la Nueva España, de Bernal D�az del Castillo, figuram como
intertextos no romance. Com o prop�sito de realizar o que ele denomina “sua
aspira��o pela simultaneidade na escrita”, Carlos Fuentes segue os passos de Jorge
Lu�s Borges ao infundir no romance uma estrutura circular e especular de textos.
317
Terra Nostra � uma obra intertextual, nos termos de Julia Kristeva que a
conceitua como “um sistema de signos, em intera��o com outros sistemas e pr�ticas
discursivas em uma cultura dada” (1968, p.57). O romance real�a sua pr�pria
textualidade e sua intertextualidade ao evocar outras obras do pr�prio Carlos
Fuentes, de grandes autores da literatura universal e os escritos de fil�sofos,
antrop�logos, historiadores e soci�logos. Como assinala Seymour Menton, “com a
incorpora��o de ideias e de personagens tiradas de outras obras (...) a
intertextualidade n�o tem deixado de gozar de um espa�o cada vez maior entre os
te�ricos e entre a maioria dos romancistas hispano-americanos” (2002, p.23).
O conceito de tempo, que nos textos historiogr�ficos se concebe de forma
lineal, � uma constante preocupa��o em sua obra desde a primeira cole��o de
contos, Los días enmascarados (1954), quando explora a vis�o m�tica do tempo
dos astecas; “esse conceito m�tico continua vigente e incide no desenvolvimento da
sociedade mexicana” (1992, p.38). No romance explora o problema do tempo e do
passado desde diversos �ngulos: primeiro integra recortes da Historia verdadera
de la conquista de la nueva España, aludindo � iminente cat�strofe anunciada
pelas profecias m�ticas astecas que se realizam com a conquista do M�xico
comandada por Hern�n Cort�s. Em outra faceta do tempo indaga o inalcan��vel do
momento passado e o inalcan��vel do tempo futuro, como o tempo lineal da hist�ria
convencional � cronol�gico e n�o consegue indagar e representar o passado nem o
presente, cada momento aparece mediado pelas categorias de passado, presente e
futuro num tempo circular. Como afirma Paul Ricoeur “o tempo da fic��o neutraliza o
tempo da hist�ria de modo que o tempo liter�rio n�o pode ter um valor
epistemol�gico” (1995, p.33).
Para Carlos Fuentes a rela��o entre o tempo e o desenvolvimento social
constitui de fato um dos problemas mais complexos para indagar o passado, isso o
leva a pensar nas ideias de Giambattista Vico, que rejeita o conceito puramente
lineal da hist�ria concebida como um movimento de corsi e recorsi, num ritmo c�clico
em virtude do qual as civiliza��es se sucedem nunca id�nticas entre si, mas cada
uma portando a mem�ria de sua pr�pria anterioridade, de sucessos e de fracassos
das civiliza��es precedentes.
O �mpeto por conseguir a simultaneidade da escrita incide diretamente no
conceito de Hist�ria, entendido como o processo de organiza��o e representa��o do
318
passado. O romance se inicia com a perda de autoridade da palavra escrita, que
para Carlos Fuentes “consiste na integra��o de numerosas hist�rias dentro de Don
Quijote, o que impossibilita uma leitura un�voca” (1989, p.93). Impregnada do sentido
do passado, a obra trabalha as met�foras explicativas da Am�rica e as fic��es de
identidade. Seu relato arma uma rede de filia��es prestigiosas pelo di�logo com
obras da literatura universal, caracterizando a transtextualidade constitutiva interna.
Combinar presente e passado � uma das fun��es do historiador, assim como do
Cronista Miguel de Terra Nostra, cujo papel � de fundamental import�ncia nas suas
p�ginas, porque ao exercer o papel de historiador-narrador, se transforma em
guardi�o da mem�ria. � ele que tem poder de escrever o que ser� lembrado pela
hist�ria, o passado est� em suas m�os. Aquilo que ele narrar, ficar� registrado para
dar forma ao futuro. Como declara a personagem o Senhor, “O poder se funda no
texto” (p.617).
Em Cervantes, o la crítica de la lectura, Carlos Fuentes metaforicamente
postula Cervantes e Colombo como g�meos espirituais, ambos abriram o Velho
Mundo a um novo continente: “Colombo ao Novo Mundo e Cervantes ao romance
moderno. Da mesma forma que a literatura encontra resson�ncias na mem�ria de
outros textos, a identidade latino-americana depende de que se resgate todo seu
passado mutilado e condenado � amn�sia pelo discurso hist�rico, eminentemente
un�voco reprodutor da ideologia do seu criador” (1989, p.103). Como texto
poliss�mico, Terra Nostra inclui o leitor na realiza��o do discurso; essa categoria de
texto produz ideologia e estimula o leitor � criatividade porque � capaz de mobiliz�-
lo. Diz Carlos Fuentes, “se consideramos a arte em termos do seu contexto hist�rico,
n�o pode ignorar o papel do autor, pois existe um conjunto de rela��es sociais entre
o autor e seus leitores suscet�vel de se ver alterado por uma mudan�a nas for�as de
produ��o, de tal modo que o leitor se transforme em co-autor no lugar de
consumidor” (p.52).
Problematiza o conceito de Hist�ria, encerra a ambiguidade sem�ntica entre
dois significados: o de relato trama e o esfor�o por ordenar os acontecimentos. A
Hist�ria � um vasto reflexo textual, no qual se fusionam diversos discursos que
abrangem o problema da reconstru��o do passado, ou as leis que supostamente
regem o desenvolvimento das culturas. Valendo-se do pensamento de Jos� Ortega
y Gasset, Giambattista Vico, Octavio Paz, Mikhail Bakhtin, Am�rico Castro, dentre
319
outros pensadores, Carlos Fuentes constrói um jogo especular no qual se
desenvolve o texto entre diferentes conceitos de como examinar o passado. As
ideias do pensador italiano Giambattista Vico, em relação ao tempo histórico no
romance, contraria à dialética cartesiana que se apóia na razão, o sistema de Vico
presume alcançar um conhecimento filosófico pelo poder da imagem. Para Vico, a
imagem tem o mesmo valor epistemológico que o conceito, principalmente quando
se trata de indagar o passado. Por esse motivo, desde a primeira página de Terra
Nostra o narrador nos adverte que o romance é um sonho de puras imagens que
consiste no acúmulo dos diferentes discursos que se incorporam simultaneamente o
romance.
O romance evoca a História da América e a mitologia ancestral do nosso
continente para constituir um diálogo intenso que se interroga nas tensões sobre a
identidade fundacional do ser latino-americano. O enorme caudal de imagens
literárias gira em torno da nossa antropogênese pelo diálogo profuso entre o mito, a
História, a Psicologia, as Ciências Sociais, a Filosofia e a ficção literária. A literatura
evoca o mito e o mito conduz a História, mitificando a História e historiorizando o
mito, essa dicotomia se produz pelo diálogo com as outras áreas de investigação
científica. Como a História e o mito se literaturizam dentro da coerência interna da
obra, a ficção literária também contribui para mitificar certas passagens significativas
da história no romance. No cerne da obra, realidade e verdade são conceitos
debelados nas diversas interpretações das culturas que formam os povos ibéricos e
o indo-afro-americano, esse intricado universo faz pensar a História desde a
pluralidade de pontos de vista.
A construção dialógica no romance se produz pela elaboração formal dos
recortes históricos que procuram o efeito da pluralidade de interpretações. Suas
páginas não relatam apenas uma única história ou um único enredo, numa mesma
história coexistem inúmeras narrativas formando uma polifonia de versões possíveis.
Na coerência interna da obra, todos têm voz e infinitas oportunidades de mudar seus
destinos e o direito de expressar suas próprias versões dos fatos. Nesse universo da
pluralidade, as personagens históricas convivem harmoniosamente com as
ficcionais, participam dos mesmos eventos e juntas constroem suas aventuras sem
que isso afete o desenlace final. Nesse processo de circularidade, a história linear se
320
fusiona � ap�crifa criando novas hist�rias, acendendo a d�vida cr�tica sobre os
textos un�vocos e detentores da verdade.
Diz Carlos Fuentes que a historiografia possui muitas lacunas que s�o
preenchidas no romance pelo poder da imagina��o. As p�ginas em branco deixadas
pelas narrativas hist�ricas s�o completadas “com aquilo que poderia ser dito e que
n�o foi, ou com o que poderia ter sido registrado e n�o se levou em conta por
alguma raz�o particular do historiador da �poca em o fato ocorreu”. E afirma, “n�o
h� sociedade sem imagina��o nem sociedades sem linguagem. A literatura � uma
sorte de reserva, de realidade latente e alimento para a sociedade, inclusive se a
sociedade n�o percebe”. Essas palavras foram pronunciadas em Xalapa, no porto
de Veracruz, em tr�s de fevereiro de 2007, quando o autor reitera seu compromisso
com os leitores. Na sequ�ncia do seu discurso argumenta que “H� poucas coisas
t�o misteriosas como o destino de um livro. Isto � assim porque toda fic��o tem uma
origem m�ltipla, e para viver, deve ter, tamb�m, um destino m�ltiplo”.
Terra Nostra se estrutura como um tr�ptico liter�rio a partir de tr�s partes
interrelacionadas: O Velho Mundo da Espanha imperial na figura de Felipe II; O
Mundo Novo desde o momento da descoberta da Am�rica e O Outro Mundo que
conjuga tempos e espa�os, passado, presente e um futuro projetado no de 1999, na
perspectiva de um novo mil�nio. A obra abrange as culturas ib�ricas e americanas
dos s�culos XVI e XVII, os mitos mesoamericanos, a hist�ria das religi�es e
in�meras refer�ncias que foram investigadas ao longo da pesquisa. O romance
estabelece uma tese de Carlos Fuentes que se reafirma ao longo de seus escritos:
“o passado n�o est� conclu�do; o passado tem que ser reinventado a cada momento
para que n�o se fossilize entre as m�os” (1992, p.23).
Ao tratar do tempo como objeto de sua produ��o liter�ria, retoma o passado do
M�xico e o reinterpreta no presente por meio de recortes liter�rios e m�ticos que
comp�em outra ordem de interpreta��o da cultura e da hist�ria: o tempo hist�rico e
o m�tico se encontram no momento do descobrimento da Am�rica, gerando
destrui��o e regenera��o. Na imagem liter�ria do romance, com o Peregrino e sua
assimila��o com Quetzac�atl fica impl�cita a regress�o ao tempo m�tico fundacional.
O mito explica a antropog�nese do ser latino-americano a partir do encontro do
velho continente com o Novo Mundo, pelo entrelace do mito do Para�so terreno dos
321
espanhóis fusionado ao mito de Quetzalcóatl dos astecas, gerando uma nova era a
partir da miscigenação.
A fusão do Peregrino, imagem do conquistador europeu, com o mito asteca
gera a cultura mestiça e mitifica a História ao dar vida aos dez jovens da floresta,
seres latino-americanos, reproduzindo o ancestral mito da antropogênese na
simbiose da figura do Peregrino com o Quetzacóatl. Ai reside o alcance associativo
de Carlos Fuentes da reinterpretação do mito originário: no romance, como na
história de Hernán Cortés se mitifica pela identificação com Quetzacóatl como
fundadores igualmente de um novo ser, tanto no mito como na história. Assimilando
diferentes personagens da História, do mito e da literatura em Terra Nostra o fato
histórico se mitifica pela criação de uma nova identidade no Novo Mundo, processo
do qual surge o latino-americano, tanto no étnico como no cultural.
A história em Terra Nostra se constitui como uma tentativa de compreender o
presente imaginando o passado. A visão lineal se opõe a visão cíclica do tempo,
essa oposição resulta no confronto cultural entre o Novo Mundo, representado pelo
universo asteca, com o Velho Mundo da Espanha da dinastia dos Áustria. De acordo
com a noção cíclica do tempo, as figuras se metamorfoseiam para reaparecer em
diferentes lugares, períodos e formas. O tempo lineal que os espanhóis tratam de
impor ao Novo Mundo é o da Espanha dos Áustria e inclusive a Roma imperial de
Tibério, o precursor da Espanha imperial. Também se trata de um tempo lineal que
começa e termina no futuro, na Paris de 1999, na alvorada do novo milênio. O
antigo, o medieval e o moderno, o começo e o fim da história.
Os mundos criados no romance são gigantescas e complexas imagens do
universo europeu na sua relação com a América, todas essas imagens surgem
refletidas e refratadas gerando a ideia de espelho, dentro de uma delas se manifesta
o descobrimento da tradição cultural da América Latina. O tempo está presente em
todas as partes e, paradoxalmente, no centro do romance se ergue o Palácio-
mausoléu sendo construído pelo Senhor para resistir à passagem do tempo. Esse
Palácio, El Escorial, é fundamental para o desenvolvimento da narrativa em Terra
Nostra, porque a partir dele, a Espanha do Senhor trata de impor sua visão de
mundo ao México recém-conquistado. Tal como o concebe o rei, sua enorme
estrutura de pedra é uma tentativa de permanência numa terra de mudanças
322
constantes, uma fortaleça para sustentar a ordem num mundo ameaçado pela
modernidade.
Em O Velho Mundo se discutem as estruturas monolíticas do poder
representadas na figura do Senhor e no Palácio-necrópole de El Escorial. O
correlato historiográfico da primeira parte é constituído pelo reinado de Felipe II na
Espanha imperial, autoritária, fúnebre e dogmática a partir da expulsão dos judeus
em 1492 até a morte de Francisco Franco. Em O Mundo Novo se analisa a
reinvenção dos mitos pré-hispânicos e as crônicas da Conquista. Em O Outro
Mundo, se observam os movimentos de oposição presentes em Terra Nostra e, em
especial, o poder da imaginação representado na figura da casta intelectual,
escritores, artistas e cientistas, e na metáfora auto-reflexiva do Teatro da Memória
de Valério Camillo.
Esse complexo jogo entre a História linear e a apócrifa se constrói mediante as
lacunas deixadas pela primeira. Para este estudo, as partes do tríptico foram
divididas seguindo a organização interna da obra, O Velho Mundo, O Mundo Novo e
O Outro Mundo. Cada uma das partes se corresponde com um dos mundos referido.
A estruturação temática de cada um deles obedece ao estudo alcançado por meio
da pesquisa bibliográfica. O Velho Mundo aborda o passado da Espanha segundo
os princípios da carnavalização no pressuposto do teórico russo Mikhail Bakhtin. O
mundo novo, pela releitura do mito mesoamericano de Quetzalcóatl e, O Outro
Mundo, pela divisão que possibilita o estudo das várias feições do mito, questões
históricas, políticas, religiosas e sociais da cultura latino-americana, como
consequência das anteriores.
As três partes do romance se correspondem nos três âmbitos distintos para
dramatizar a visão particular do devir histórico: a Espanha medieval centralizada na
figura do Senhor no Velho Mundo elabora uma radiografia do poder tirânico que
aflige os povos hispanofalantes ao longo dos séculos. No processo de
contextualização, Felipe II personificado na figura do Senhor ostenta a
personalidade mais rica e complexa na obra. No Mundo novo, o descobrimento e a
conquista da América marcam a gênese de um povo novo com as características
culturais adquiridas pelos viajantes do Velho Mundo. No Outro Mundo são os
movimentos heréticos surgidos à sombra do Renascimento que constroem o
pensamento crítico dos filhos da América. A esse padrão geral se somam os ciclos
323
tem�ticos em que se agrupam os epis�dios, as redes simb�licas e a cont�nua s�rie
de bin�mios que faz com que todas as personagens, situa��es ou ideias se definam
por oposi��o ao seu contr�rio.
A interpreta��o da hist�ria por meio da carnavaliza��o se fortalece na par�dia.
Como caracter�stica principal no romance, a par�dia retoma textos de autores
consagrados, como as Crônicas de Hern�n Cort�s e os evoca, revisa os fatos
hist�ricos n�o para repeti-los, mas, para contextualiz�-los. A par�dia se caracteriza
pela repeti��o com diferen�as, como Linda Hutcheon a conceitua, o tempo passado
pode ser retomado e configurado nos padr�es da par�dia temporal em que Terra
Nostra se constr�i por meio de correspond�ncias: pela constru��o magn�fica do
Pal�cio de granito em oposi��o ao Teatro da Mem�ria feito de papel; pela liberdade
expl�cita do pensamento her�tico em rela��o ao pensamento dogm�tico; pela
coexist�ncia tensa entre a fragmenta��o e a totaliza��o, pois no mesmo espa�o
convivem o disperso e o monumental.
A par�dia em Terra Nostra � um canto paralelo entoado pela multiplicidade de
vozes que narram os mesmos acontecimentos in�meras vezes. A carnavaliza��o �
recria��o constante que se vale das situa��es grotescas do mundo ao avesso, cria
uma realidade paralela, l�dica e inacabada. A par�dia carnavaliza a hist�ria
colhendo elementos relevantes do passado para construir uma nova vers�o da
realidade, ou uma nova realidade, nos termos da fic��o liter�ria. A ativa��o
simult�nea de outros textos se produz direta e indiretamente; grandes obras
universais s�o visitadas, produ��es da Idade M�dia, do Renascimento e
contempor�neas; muitos autores s�o evocados criando um calidosc�pio narrativo,
fruto da intertextualidade. Esse mosaico narrativo segue o modelo bakhtiniano na
medida em que a hist�ria n�o finaliza enquanto s�ntese conclusiva. A concep��o
bakhtiniana da polifonia, da dialogia e do inacabamento evidencia-se caracterizando
a obra como polif�nica, dial�gica e aberta.
Os elementos da hist�ria lineal entretecidos pela fic��o ao relato ap�crifo
situam personagens reais interagindo com as figuras liter�rias num mesmo espa�o
para criar um duplo hist�rico imagin�rio. Paralelamente, Carlos Fuentes ergue seu
Teatro da mem�ria com palavras, constr�i um tr�ptico de papel, inspirado pela
mem�ria, gra�as � fic��o e movido pelo desejo, “o romance transforma o passado
em mem�ria, em futuro, em desejo” (2002, p.199).
324
No romance os mitos adquirem significância atual pela repetição, na sua
essência se organizam para explicar os três mundos que o compõem, tanto no
contexto da ficção como no âmbito do sagrado. Terra Nostra cria um sistema
mitológico que acolhe a cosmogonia asteca, reescreve o mito de Orfeu ou revisa o
mito da história até criar um imenso caudal de possíveis verdades que configuram
simbolicamente o mito da existência humana. Toda a narrativa mítica se apóia em
três constantes culturais: a herética, a hermética e a revolucionária, as três dialogam
para construir a versão profética milenarista que na obra de Carlos Fuentes evoca
os milenaristas revolucionários e os anarquistas míticos da Idade Média. Ao
carnavalizar a expressão milenarista que alude à doutrina escatológica que anuncia
o fim do mundo, o termo amplia seu significado, vira ao avesso seus limites e modos
de imaginar o milênio e os inúmeros caminhos que conduzem até ele: os
movimentos dissidentes ou as seitas postulam a um salvacionismo terrestre,
coletivo, total e milagroso, cuja composição e função social permitem
comportamentos variáveis que vão desde a agressividade mais violenta ao
pacifismo mais moderado; da mais etérea espiritualidade até o materialismo terreno.
Ao percorrer os séculos e espaços diferentes, o mito se refrata em outro para
renovar-se, quando atualizado se multiplica, para logo se ajustar às novas gerações
até se conformar como uma corrente de imagens permanentes cuja força é capaz de
movimentar os povos e as suas respectivas culturas ao longo dos séculos. Diz
Carlos Fuentes que o mito modifica a realidade e abona o sentido de coerência à
história humana. Mais profundos que os esquemas do pensamento racional, as
formas elaboradas pela imaginação mitológica em Terra Nostra respondem as
questões fundamentais das figuras representadas nos três mundos do romance.
Perante as realidades fundamentais vivenciadas pelo homem, nascimento, vida e
morte ou para explicar os ciclos da natureza, dos acontecimentos políticos,
econômicos e sociais, o mito se apresenta como resposta.
O mito alimenta as esperanças e a fé ardente num futuro melhor, age como
paliativo na presença do sofrimento, explica certas descobertas, fortalece as
tradições culturais explica a vida e a morte, e é por meio dele que os homens
esperam prolongar a sua existência e uma nova vida. Esse movimento dialético
entre Apocalipse e Gênese oferece uma harmonia secreta, visível no conjunto da
narrativa do romance de Carlos Fuentes na medida em que o tempo de queda
325
inaugura o tempo da reden��o e este, por sua vez, uma nova queda numa sucess�o
circular que tende para o infinito em forma de espiral, pois os mais diversos mitos,
validados no tempo, tendem a repetir-se.
Carlos Fuentes constr�i um mito que alimentado por todos os outros
transcende a cosmogonia do mundo greco-latino e a heran�a judeu-crist�, o
teocentrismo medieval e a ci�ncia-magia renascentista; constr�i o processo hist�rico
do imp�rio espanhol e os s�mbolos da realidade da Am�rica, o conceito de passado,
presente e futuro; o sonho e a poss�vel realidade escatol�gica; o vazio e o horror, a
morte e, num ato milagroso, surge novamente a vida e, com ela, a iminente
altern�ncia do mito da hist�ria em constante transforma��o.
Em Terra Nostra, a Hist�ria se faz fic��o e o mito imagina o passado
projetando um futuro poss�vel, oferece outras possibilidades da hist�ria, n�o relata
os acontecimentos conhecidos, sen�o o que poderia ter acontecido; especula, busca
adivinhar. Desfaz algumas certezas estabelecidas pelo relato hist�rico linear,
deflagra o universo das nossas incertezas, multiplica os caminhos das verdades
poss�veis, amplia o espectro das op��es a serem feitas ou refutadas. Convida a
imaginar o passado para poder projetar um futuro poss�vel. O romance insere o leitor
num universo cr�tico e questionador do nosso ser latino-americano.
Na ambi��o de abarcar as origens ib�ricas e mesmo as latinas consideradas
como formadores das mentalidades da Espanha do s�culo XVI, o romance
fragmenta a linearidade dos relatos temporais, desarticula a concep��o da Hist�ria
linear e a sua unicidade com o real, real�a a pluralidade de vozes que relatam a
hist�ria ap�crifa, desejada. O recurso que ilustra essas ideias constr�i o Senhor
como met�fora do absolutismo; o absolutismo como ant�tese do iluminismo; a
Hist�ria linear como paradoxo da ap�crifa; o Pal�cio como hip�rbole da riqueza e do
poder. Revisa os espa�os em branco deixados pela historiografia e que, preenchidos
pela criatividade liter�ria, possibilitam compreender “o homem pelo fato e o fato pelo
homem”. No espa�o liter�rio, a carnavaliza��o vira ao avesso a magnific�ncia
hist�rica dos soberanos, cria a figura do Senhor, como amalgama da realeza, um rei
que almeja a unicidade hist�rica em torno de si, uma gl�ria eterna e celestial e, ao
mesmo tempo, carnal, beirando a loucura.
Contrapondo-se a ele surgem as personagens e acontecimentos abertos a
todas as possibilidades de interpreta��o do passado. Ao descrever e ao aceitar o
326
ap�crifo e o imposs�vel, o romance se transforma no espa�o ut�pico de infinitas
possibilidades, � imagem do Teatro da Mem�ria do Donno Val�rio Camillo, que faz
de Terra Nostra o territ�rio do encontro polif�nico e multicultural, que permite
desvendar aqueles fen�menos silenciados pela hist�ria lineal.
O tempo � uma obsess�o, devir e repeti��o, circular e din�mico, como o
quadro El jardín de las delicias de El Bosco que tamb�m se desenvolve em tr�s
planos. O romance como a pintura se unifica no tr�ptico sentido dado pelo Para�so,
Terra, Inferno; Futuro, Presente, Passado; Paris, Espanha e M�xico unidos pela
desconstru��o das coordenadas racionais, como planos justapostos que constroem
O Velho Mundo, O Mundo Novo e O Outro Mundo, universos de m�ltiplas
refer�ncias culturais para explicar Am�rica na Espanha e na Am�rica, que busca o
passado num presente que projeta para o futuro.
Por meio da reinterpreta��o da hist�ria da Espanha, o romance reflete a
realidade latino-americana, disserta sobre a fun��o da religi�o, apresenta uma soma
da cultura, do mito e do poder m�gico da palavra capaz de interpretar os homens de
todos os tempos e a sua inten��o de explicar-se e de explicar o mundo e o lugar que
nele ocupa. No discurso inaugural do Simposio Carlos Fuentes, o autor mexicano
fala da literatura latino-americana e postula o romance como “um novo impulso de
funda��o, como um regresso ao ato do g�nese para redimir as culpas da viola��o
original, da bastardia fundadora”. O futuro deve buscar-se no reconhecimento de
uma identidade m�ltipla, enraizada no passado.
(...) temos que deixar � luz o que est� vivo em n�s e reconhecer a verdadeira estrutura da nossa identidade na multiplicidade dos legados que a conformam. N�o somos �rf�os. N�o estamos nus. Somos herdeiros leg�timos de um mundo vasto e plural. (...). Todos somos Colombos que apostamos � verdade da nossa imagina��o e ganhamos; todos somos Quijotes que acreditamos no que imaginamos; todos somos Don Juanes que ao imaginar desejamos e averiguamos em seguida que n�o h� desejo inocente, o desejo, para que se realize se apropria do outro, o transforma para faz�-lo seu (1980 p. 13,16).
No tr�ptico liter�rio, a met�fora do espelho que reflete os tr�s mundos
projetando-os em m�ltiplas imagens, alcan�a toda sua expressividade sob a
perspectiva da experi�ncia da leitura da obra. Nas p�ginas de Terra Nostra,
327
descobrimos mundos poss�veis e inacabados, de incertezas m�ltiplas, de reflex�es
que perduram ap�s o t�rmino de sua leitura; nas palavras do autor “o objetivo da
obra de arte � a de se tornar uma experi�ncia est�tica: ou seja, que arranque de um
golpe aquele que vive do conjunto de sua vida, por for�a da obra de arte e que, n�o
obstante, volte a referi-lo ao todo de sua exist�ncia” (1992, p.290). O romance
desestabiliza o conforto que produzem os textos un�vocos da Hist�ria, instaura a
incerteza, estimula a imaginar nosso passado e nosso futuro, muitas vezes
modificado pelas op��es n�o realizadas. A postura cr�tica decorre de uma nova
consci�ncia: � preciso construir a Hist�ria, � necess�rio saber que, ap�s o t�rmino
do romance, come�am outras leituras mais decisivas.
Os tr�s mundos registrados no tr�ptico liter�rio, emoldurados pela palavra, por
espelhos, por m�scaras, por hist�rias de amor e de �dio, por risos e por l�grimas,
pelo oficial e pelo oficioso, pelo passado e pelo presente, est�o hospedados em um
universo de papel, como o de Val�rio Camillo, ou como o de Don Quijote que nos
convida a sair com ele pelos caminhos de La Mancha, munidos com seu escudo e
lan�as da incerteza para lutar contra os gigantes das certezas hist�ricas, do discurso
un�voco e das nossas pr�prias certezas.
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ZORRILLA, J. Don Juan Tenorio. Salamanca, España: Universidad de Salamanca, 1992.
347
ANEXOS
Figura 1 – Dinastia dos �ustria (HISPANAGADIR: site, 2010).
348
Figura 2 – Heran�a e patrim�nio (WIKIPEDIA: site, 2002).
Figura 3 – Carlos V. (LIOSDEREINAS: site, 2009).
349
Figura 4 – Carlos V a cavalo en M�hlberg por Tiziano (1548). Museo del Prado. (LUZ-HIST�RIA-ARTE: site, 2009).
350
Figura 5 – Carlos V por Christoph Amberger (1532). (WIKIPEDIA, 2010).
Figura 6 - Vista exterior do Mosteiro de Yuste. (IMAGES: site, 2009).
351
Figura 7 – Mapa do dom�nio dos Habsburgo em 1547 (WARD, W. et al, 1912).
352
Figura 8 – Escudo de Carlos I antes de ser coroado como o Imperador Carlos V.(ESACADEMIC: site, 2010).
Figura 9 – San Lorenzo de El Escorial. (TRAVEL: site, 2002)
353
Figura 10- Vista de San Lorenzo de El Escorial. (TRAVEL: site, 2011).
354
Figura 11- El Mosteiro de El Escorial. (TRAVEL: site, 2002).
Figura 12- El Mosteiro de El Escorial. (SORENASIER, 2011).
355
Figura 13- Valle de los Ca�dos (FELLMADRID: site, 2002).
Figura 14 – FELIPE II por Alonso S�nchez Coello (1557). Museu de Kunsthistorisches, Viena Austria (CIAHIST�RIA: site, 2002).
357
Figura 15 – FELIPE II por Tiziano (1551). (MARAVEDIS: site, 2009).
(a)
358
(b)
Figura 16 – Mapas: (a) Dom�nio de Carlos V; (b) Expans�o. (FELLMADRID: site, 2002).
Figura 17 – La creaci�n del Mundo del Tr�ptico de las Delicias, de Jer�nimo Bosch - El Bosco (1503-1504). (TRIPTICO.COMZE: site, 2010).
359
Figura 18 – Tr�ptico El Jard�n de las Delicias – El Bosco (1503-1504). Museo del Prado. Caracter�sticas: 220 x 195 cm. Material: �leo sobre tabla. Estilo: Pintura Flamenca (MichellArt: site, 2010).
Figura 19 – El Para�so Terrenal – El Bosco. (HIST�RIA: site, 2010).
360
Figura 20 – El jard�n de las delicias – El Bosco (ARTEESPANA: site, 2010).
361
Figura 21 - El infierno musical – El Bosco (ENSAYOS: site, 2010).
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