quatro poetas quatro cidades
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
Quatro poetas quatro cidades:
Adriano Espínola, Arnaldo Antunes, Caio Meira e Nicolas Behr
Filipe Bitencourt Manzoni
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2014
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Quatro poetas quatro cidades:
Adriano Espínola, Arnaldo Antunes, Caio Meira e Nicolas Behr
Filipe Bitencourt Manzoni
Dissertação de Mestrado a ser apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas
da Universidade Federal do Rio de Janeiro como
quesito para a obtenção do Título de Mestre em
Letras Vernáculas (Literatura Brasileira).
Orientador: Prof. Doutor Eucanaã Ferraz
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2014
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Quatro poetas quatro cidades:
Adriano Espínola, Arnaldo Antunes, Caio Meira e Nicolas Behr
Filipe Bitencourt Manzoni
Orientador: Professor Doutor Eucanaã Ferraz
Dissertação de Mestrado a ser apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do
Título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira).
Examinada por:
_____________________________________________________________
Presidente, Prof. Doutor Eucanaã Ferraz –
_____________________________________________________________
Prof. Doutor Frederico Oliveira Coelho - PUC-RJ
_____________________________________________________________
Prof. Doutor Eduardo dos Santos Coelho - UFRJ
_____________________________________________________________
Prof. Doutor Alberto Pucheu Neto – UFRJ, Suplente
_____________________________________________________________
Prof. Doutor Godofredo de Oliveira Neto - UERJ, Suplente
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2014
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Manzoni, Filipe Bitencourt.
Quatro poetas quatro cidades: Adriano Espínola, Arnaldo Antunes, Caio
Meira e Nicolas Behr/ Filipe Bitencourt Manzoni. – Rio de Janeiro: UFRJ/ FL,
2014
117f; 29,7 cm
Orientador: Eucanaã Ferraz
Dissertação (mestrado) – UFRJ/ Faculdade de Letras/ Programa de Pós-
Graduação em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira), 2014.
Referências Bibliográficas: f. 113-117.
1. Poesia Contemporânea. 2. Poesia Urbana. 3. Adriano Espínola. 4.
Arnaldo Antunes. 5. Caio Meira. 6. Nicolas Behr. I. Ferraz, Eucanaã. II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas (Literatura Brasileira). III. Quatro poetas quatro cidades: Adriano
Espínola, Arnaldo Antunes, Caio Meira e Nicolas Behr.
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Resumo
Quatro poetas quatro cidades:
Adriano Espínola, Arnaldo Antunes, Caio Meira e Nicolas Behr
Filipe Bitencourt Manzoni
Orientador: Professor Doutor Eucanaã Ferraz
Resumo da Dissertação de Mestrado a ser apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a
obtenção do Título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira).
Nosso trabalho se propõe a mapear as imagens da cidade na poesia
contemporânea brasileira a partir de um recorte de quatro poetas: Adriano Espínola,
Arnaldo Antunes, Caio Meira e Nicolas Behr. Buscamos um mapeamento imagético e
formal, tentando mostrar algumas das estratégias e traços recorrentes na abordagem da
cidade, bem como as implicações das priorizações do urbano empreendidas por cada
autor. A escolha do corpus se pauta pela grande possibilidade de contrastes observáveis
entre as obras dos autores, tomados sempre em uma estrutura dialogal e comparativa
sob a qual percorremos questões que passam pelo urbanismo, pelas atualizações feitas à
concepção de cidade, pelas renegociações empreendidas entre o sujeito e o urbano e
pela filosofia da linguagem, na medida em que a cidade pouco a pouco torna-se
indistinta de uma corrente linguística urbana.
Palavras Chave: Poesia Contemporânea, Poesia Urbana, Adriano Espínola,
Arnaldo Antunes, Caio Meira, Nicolas Behr.
Rio de janeiro
Fevereiro de 2014
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Abstract
Four poets four cities:
Adriano Espínola, Arnaldo Antunes, Caio Meira e Nicolas Behr
Filipe Bitencourt Manzoni
Orientador: Professor Doutor Eucanaã Ferraz
Abstract da Dissertação de Mestrado a ser apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a
obtenção do Título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira).
The main goal of this research is to collect and analyze different images of the
urban contemporary brazilian poetry, based on a selection of four poets: Adriano
Espínola, Arnaldo Antunes, Caio Meira and Nicolas Behr. By searching for different
images and poetic forms that this writers used to bring forward the urban experience,
this project exposes some of their strategies alog with the different meanings that the
urban enviroment recieves in each one and canvasses the reason why some commonly
stable concepts like subject, spatial delimitation and the city itself, don´t seem
applicable in dynamism of their experimentation. This corpus was selected based on the
great possibility of contrast between different poets, brought together one against other,
forming an opposing structure, in wich we present different subjects concerning
urbanismo, literary criticism and philosophy of the language.
Key-words: Contemporary Poetry, Urban Poetry, Adriano Espínola, Arnaldo
Antunes, Caio Meira e Nicolas Behr.
Rio de Janeiro
Fevereiro 2014
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Agradecimentos
À Capes; instituição de fomento que possibilitou uma maior tranquilidade para o
processo de escrita,
Ao meu orientador, Eucanaã Ferraz, pelas discussões e xerox valiosíssimos, mas
principalmente por ter botado fé no projeto desde o início;
Aos professores que contribuíram de forma substantiva à minha formação, em
especial Ary Pimentel, Antônio Carlos Secchin, Alberto Pucheu e Nonato Gurgel,
Aos poetas, que numa radical contemporaneidade não só se mantém escrevendo,
mas também respondendo e-mail, em especial à Nicolas Behr e Adriano Espínola,
À família, que apesar de distante sempre tinha jeito de ir visitar pra dar uma
pausa; em especial à minha mãe por ter deixado eu virar isto e à minha vó por nunca ter
se incomodado por todos os livros que eu roubava,
À Julia, por estar sempre junto na loucura que foram esses dois anos (e nos anos
anteriores também) e pelas cotoveladas bem-vindas,
À psicopinga, grupo de apoio que contribuiu em muitas ressacas criativas e
pequenas traições em forma de canção e outras plinidades,
Aos amigos que compartilham deste problema com a literatura: Victor, Luana,
Thaís e Rafael, Daiane e Rayssa, e por serem gente esquisita assim como são,
Aos amigos que ficaram pelo sul, ou por aí, por fazerem a última resistência
anti-loucura: Pedro, Chico, thiagolima, Vini, Bianca, Bibiana, Alberto, Miag e Guil.
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Índice
Introdução ......................................................................................................... 8
Capítulo I – Cidade tempo e espaço ............................................................... 16
I.1 – O cristal e a chama revisitados ...................................................................18
I.2 – Um pacto temporal .....................................................................................29
Capítulo II – Intervalos entre corpo e cidade ................................................ 41
II.1 Constrição e flanêrie ....................................................................................43
II.2 Corpo sensível ..............................................................................................52
II.3 Hipersensibilidade e dilaceramento .............................................................60
II.4 Do um ao vários ...........................................................................................69
Capítulo III – Discurso e Ruína ...................................................................... 77
III.1 – Cidade e Polifonia ....................................................................................79
III.2 – Nomeação .................................................................................................88
III.3 – Arquitetando a Ruína ...............................................................................98
Conclusão ........................................................................................................ 105
Referências Bibliográficas .............................................................................. 112
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Introdução
A cidade apresenta-se como uma imagem de difícil trato por ser esquiva a
qualquer tentativa de definição. Se nos detivermos em seu caráter antropológico,
confunde-se com o próprio conceito de cultura; se nos voltamos para sua delimitação
espacial, deixamos de lado a especificidade de suas relações de sentido; e se atentamos
ainda para a consolidação de uma experiência urbana nos moldes que conhecemos,
nossa delimitação fica indistinta entre o surgimento da sociedade industrial e a
experiência da globalização contemporânea.
Não menos problemático do que o estabelecimento de um marco inicial histórico
é também a tentativa de definição sincrônica de sua experiência. Novamente, cada olhar
parece gerar um reflexo de sua própria estreiteza e delimitação; seja a priorização de um
pacto temporal específico, seja enquanto um constante choque entre estranhos, a cidade
parece admitir de bom grado os mais diversos recortes conflituosos. A convivência de
esgotamentos antagônicos parece, nesse sentido, desautorizar qualquer ponto de partida
para nossa abordagem que não seja, precisamente, uma inclusão infinita de tensões, que
fuja o quanto possa de qualquer delimitação como objeto de pesquisa.
Embora não seja do nosso interesse propor uma abordagem historiográfica da
cidade, vale a pena observar em Giulio Carlo Argan, ao circunscrever o objeto de estudo
da história da arte, esbarra num problema semelhante no que tange a sua historiografia.
Trata-se também de algo que oscila entre um pluralismo fenomenológico e a afirmação
de um conceito unitário de arte (ARGAN, 2005 p.82). A arte é passível também dos
mesmos alargamentos conceituais para os quais tudo é arte, toda experiência pode ser
relida como artística, e tudo que existe existe, de alguma forma, artisticamente.
Argan sugere que as diferentes artes, com todos os seus sistemas específicos de
significação, podem ser consideradas como formas de um sistema unitário a partir do
momento em que “todas juntas, com as suas diversidades de categorias, de
procedimentos e de níveis quantitativos e qualificativos, constituem a cidade”
(ARGAN, 2005 p.76).
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Argan, apesar de não resolver nossa dificuldade de delimitação do urbano, ou
mesmo complicando-a ainda mais, nos apontando novamente para a abrangência da
cidade, ao postular o caráter eminentemente artístico desta, oferece-nos uma alternativa,
graças à outra de suas detidas reflexões sobre a história da arte. O autor problematiza o
reconhecimento do caráter artístico da arte, e, pela própria identificação que faz entre
arte e cidade, lemos aí uma possibilidade de um mecanismo do reconhecimento da
urbanidade do urbano. Segundo o autor, o olhar sempre confere valor ao objeto artístico
a partir de uma percepção específica, que busca, de alguma forma, reafirmar-se:
O que o chamado juízo de valor verifica na obra de arte não é, decerto, a
conformidade a uma determinada cultura, nem a sua superação, mas uma
estrutura cultural específica, justamente aquela graças a qual os valores
podem ser captados, não na dimensão sem tempo do pensamento abstrato,
mas na do presente absoluto, da percepção. (...) o exato instante da percepção
ou da apreensão da obra; não é portanto o momento conclusivo, mas o
momento inicial da atuação do historiador (ARGAN, 2005 p.26)
A cidade, tal qual a arte, teria suas dificuldades de delimitação estreitamente
ligadas com a contemporaneidade de suas reatualizações. Ambas fundariam sua
delimitação sempre a partir da apreensão contemporânea do objeto, a percepção a partir
da qual um sentido pode ser gerado.
O contemporâneo se faz assim como o instante do qual pode partir todo recorte
da cidade, organizando e historicizando-a conforme suas próprias priorizações. Só se
pode delimitar (ou reconhecer a possibilidade de uma delimitação estática) a partir do
contemporâneo. Ele é o eterno agora no qual a cidade existe.
Argan ainda sugere que a cidade é um sistema de diferentes linguagens
artísticas. Novamente, cabe ressaltar que é só pelo aspecto pluralista e inclusivo que
parecemos dar espaço para a mobilidade própria à imagem do urbano. Se a cidade nos
figura como, materialmente, um conjunto de linguagens (sejam elas reconhecidas como
artísticas ou não), a cidade se configura como uma grande rede de discursos, ou antes,
de diferentes linguagens, em constante ressignificação, a partir da qual o olhar do
contemporâneo confere (ou reconhece) sentido e urbanidade.
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Nesse sentido, cabe ressaltarmos a centralidade da língua nessa rede, ou ainda,
da poesia, como discurso específico que não está comprometido a priori com nenhum
objetivismo comunicativo, propagandístico ou informacional. A poesia seria, de certa
forma, o “local” de onde os discursos urbanos poderiam ser tirados de suas teleologias
habituais, isto é, de seus sentidos consagrados (conferidos pelo olhar contemporâneo) e
colocados de volta, à disposição do olhar, para que se reconheça neles, de novo, o
urbano.
Descartada a possibilidade de delinear precisamente um limite para a cidade
enquanto objeto de estudo, interessa-nos flagrar na poesia contemporânea a diversidade
a partir da qual se dá o próprio mecanismo de reconhecimento da urbanidade. É vital,
portanto, buscarmos um corpus que traga em si uma pluralidade discursiva, imagética e
formal condizente com a multiplicidade de recortes e priorizações possíveis da
experiência urbana. A partir desse contraste é que poderemos flagrar o urbano que
escapa às cristalizações e reduções conceituais.
Assim, recortamos da poesia brasileira contemporânea quatro autores: Adriano
Espínola, Nicolas Behr, Arnaldo Antunes e Caio Meira. Cada um deles se insere em um
cenário poético muito diferente dos outros, relendo seu próprio recorte da tradição e
mantendo diálogo com obras que vão do barroco ao marginal, passando pelo
concretismo.
É importante ainda, pela natureza fugidia da experiência urbana, que o nosso
estudo se guie por uma metodologia contrapositiva e dialogal, isolando algumas das
questões que nos parecem centrais e comuns aos autores e que sejam tratadas, o quanto
possível, de diferentes formas. Procederemos, assim, guiados por contrastes e buscando
no intervalo da diversidade entre os poetas um urbano que subjaz às diferentes
possibilidades de recortes.
Organizaremos os temas de forma que se preserve uma certa linearidade entre
eles, partindo de uma concepção da cidade a partir das categorias primárias de tempo e
espaço no primeiro capítulo; em seguida, ampliaremos nossa concepção para uma
cidade como experiência sensorial e discursiva, considerando suas diferentes
renegociações com o sujeito; finalmente as oposições vão se desfazer e a cidade será, tal
qual o sujeito, uma configuração plenamente discursiva a partir da qual engendra-se,
com a ressignificação e o dinamismo da língua, a própria ruína.
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Por motivo de ritmo na escrita dos capítulos, optamos por fazer, numa
apresentação inicial, um breve levantamento da produção dos poetas, bem como de
algumas questões que nos parecem mais importantes. Ressaltamos que tal amostragem
se restringe apenas à produção que abordaremos adiante.
Voltamo-nos à poesia de Adriano Espínola em sua fase inicial, produzida entre
as décadas de 80 e 90, mais especificamente nos três poemas recorrentemente
reconhecidos como trilogia do transporte urbano: o primeiro, o poema “Minha gravata
colorida”, atualmente rebatizado de “Ônibus”, presente no seu segundo livro O lote
clandestino1 (1982); e os dois poemas, lançados separadamente, Táxi (1986) e Metrô
(1993), reunidos adiante em um só volume, Em trânsito; Táxi/Metrô (1996).
Tais obras são um marco na produção de Adriano: Táxi alcançou grande
repercussão, sendo traduzido para o inglês e o francês, e, de certa forma, foi a partir dele
que a Adriano investiu definitivamente na forma “epopeia urbana”, escrevendo Metrô e
relendo “Minha gravata colorida”, destacado de seu livro original e integrado às três
obras épico-urbanas. Poderíamos dizer que a trilogia do transporte urbano começa pela
sua segunda obra e dela se estende para as duas outras.
É importante ressaltar que a clara opção pelo espaço urbano como tema central é
marcante em toda a produção inicial do poeta. Em vários dos poemas de O lote
clandestino a cidade não aparece apenas como elemento componente, mas sim tema de
um retrato irônico que relê diversos elementos de um bucolismo ao qual o poeta se
contrapõe, inserindo-os descaracterizados no fluxo caótico da cidade, mesmo antes de
sua afirmação de maior fôlego em de Táxi e Metrô.
Quanto aos três poemas, tomados em conjunto, cabe ressaltar o quanto, além do
mesmo tema, da mesma estrutura em versos livres e do dado épico da viagem como
motor da narrativa, há ainda uma tensão decorrente da incapacidade de fixar com
imagens a vertigem pulsante da cidade captada pelo sujeito em trânsito (naturalmente
esses dados são mais verificáveis a partir de Táxi, pela própria afirmação de sua forma
épica centrada na vertigem). Adriano lança mão, assim, de cada vez mais elementos
1 Na realidade este foi seu segundo livro editado; mas o autor já havia lançado e vendido um pequeno
livreto chamado Uma cidade, em uma edição artesanal vendida de mão em mão, antes de Fala favela.
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diversos para tentar dar conta da vertigem, buscando uma instantaneidade cada vez
maior para a estrutura de seus versos e imagens, aproximando-os de um viés concretista,
em especial em Metrô.
Nicolas Behr começa a produzir relativamente na mesma época que Adriano,
lançando em 1977 seu primeiro livro mimeografado, Iogurte com farinha, ao qual se
somará mais de trinta outros livros, quase todos artesanais, mimeografados e vendidos
de mão em mão em Brasília.
Nicolas possui uma obsessão, se não pela cidade, especificamente por Brasília,
(onde foi morar ainda menino, com dez anos de idade) centro temático de sua obra.
Diversos elementos arquitetônicos da cidade, monumentos, autopistas e a própria
concepção de uma cidade planejada invadem sua poesia, construindo uma crítica ao
artificialismo do modelo organizacional do espaço, sempre revestida de humor irônico,
extrapolando alguns dos mitos modernos recriados por Brasília até o seu ridículo.
A obra de Nicolas se compõe, em grande parte, de livretos artesanais produzidos
e vendidos pelo poeta durante a década de 70. Nos voltaremos para dois de seus
volumes de poesia reunida – onde estão a maior parte de seus poemas sobre Brasília:
Restos Vitais e Vinde a mim as palavrinhas, ambos editados pelo autor em 2005. A
esses se somarão suas três antologias: Poesília (poesia pau-brasília) - compilação
específica de seus poemas sobre Brasília -, de 2002; Laranja seleta, de 2007 e O bagaço
da laranja, de 2009. Integra ainda nosso corpus behriano Braxília revisitada vol.1, de
2004 e Brasilíada, mais recente de suas obras sobre a capital, lançada em 2010, na qual
encontramos uma série de poemas inéditos e diversas revisões de outros já publicados.
Nicolas inventa para sua poesia uma forma recorrente, muito próxima do poema-
minuto e do poema-piada, em textos curtos, raramente com mais do que seis versos,
sempre trazidos numa linguagem coloquial e frequentemente parodiando discursos
clássicos e figuras públicas da fundação de Brasília. O poeta parece eleger um conjunto
de palavras que remetem a um todo orgânico, entre arquitetura, estrutura burocrática e
concepção geométrica do espaço, ao qual sua poesia parece sempre se contrapor como
alternativa marginal e subversiva.
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Há uma forte tendência a enquadrar Nicolas como um representante do cenário
da poesia marginal dos anos 70 e 80, em especial por seu caráter irônico e pelo tom
coloquial dos seus poemas. Cabe, porém, manter certas ressalvas devido ao
deslocamento do poeta do Rio de Janeiro- polo da produção marginal – e sua inserção
em Brasília, com pouco mais de dez anos passados de sua inauguração. Ressaltamos o
quanto, em adição à subversão da produção literária canônica – traço recorrente da
estética marginal-, a poesia de Nicolas flagra a arquitetura planejada da cidade como
contraposta à ironia e à irreverência do seu verso, travando uma disputa discursiva que
passa diretamente pela reapropriação e ressignificação dos elementos arquitetônicos do
plano piloto.
Arnaldo Antunes começa a produzir seus primeiros livros, como os dois poetas
anteriores, em edições artesanais, editadas pelo próprio autor nos primeiros anos da
década de oitenta, um pouco antes de integrar o grupo de música Titãs do Iê Iê Iê.
Arnaldo atua desde o início de sua carreira em diversos suportes e códigos diferentes,
ressaltando-se de início a letra de música e a poesia e, a partir da década de noventa,
diversas outras alternativas multimídia, mesclando música, poesia, fotografia, animação
e demais elementos da linguagem pop.
Diferentemente da obra dos outros dois poetas que já citamos, a de Arnaldo não
traz a cidade em sua configuração clássica como um tema central. Não encontramos
carros, engarrafamentos, neons, autopistas, concreto ou asfalto como signos recorrentes;
mas por se tratar de um dos poetas mais conectados com o mundo digital e novos
códigos, sua linguagem fala sempre a partir de uma configuração discursiva que é
inseparável da experiência urbana contemporânea. A predominância do aspecto visual
de sua poética ainda dialoga com um viés publicitário, aproveitando elementos de
tipografia e fragmentos de propagandas em suas colagens, bem como do grafite, muito
presente em suas obras caligráficas.
Conforme sugerimos acima, é impossível esboçar uma forma mais recorrente na
poesia de Arnaldo; a mera tentativa esbarraria numa diversidade de suportes: CDs,
livros, painéis e arquivos de vídeo. Mesmo se nos restringirmos ao texto escrito, temos
em sua obra desde caligrafias, conforme dissemos, até poemas em verso livre, sonetos e
poemas concretos. Arnaldo é, dentro de nosso recorte, o poeta que abrange a maior
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variedade de formas e códigos, atuando diversas vezes em uma zona do inclassificável,
onde inventa códigos e linguagens próprias a cada poema, motivo pelo qual nos
deteremos, nas escolhas formais de seus poemas conforme eles são trazidos para nossa
discussão.
Nos voltamos à obra de Arnaldo Antunes a partir de sua antologia Como é que
chama o nome disso (2006), consistindo numa amostragem substancial de diversos de
seus livros no decorrer de mais de vinte anos de produção e a compilação de algumas
caligrafias. Compõe ainda nosso corpus dois de seus livros iniciais - Psia (1986) e
Tudos (1990) - que possuem um espaço menor na antologia - e seu livro posterior, n.d.a.
(2010).
Finalmente, nos voltaremos à obra de Caio Meira, a mais recente e menos
extensa dos quatro poetas. Abordaremos poemas de quase todos os seus livros, não nos
referindo diretamente apenas a sua obra de estreia No oco da mão (1993), por crer que,
apesar de presente enquanto proposta, a questão do urbano ainda não está tão
desenvolvida quanto no decorrer de seus outros três volumes: Corpo Solo (1998),
Coisas que o primeiro cachorro na rua pode dizer (2003) e o mais recente Romance
(2013).
Caio possui em seu percurso poético um crescente diálogo com a prosa,
abandonando a estrutura versificada inicial de No oco da mão e Corpo Solo, e
produzindo poemas em versos extensos, predominantemente em períodos igualmente
longos, quase sem pontuação, construção que se afasta muito do verso tradicional,
principalmente em seu terceiro livro. A aproximação com a prosa ainda aparece em
nomes de blocos de poemas ou de livros como “prosa do chão” ou Romance.
Há ainda uma espécie de fixação de Caio pela corporalidade, quase sempre
tomada a partir do seu contato com a cidade. O corpo aparece sempre relido num viés
de profunda dessacralização, concebido a partir de sua materialidade dissecada,
reconhecendo órgãos internos e vísceras como legítimos materiais de contato com o
mundo. A conjunção entre este vocabulário fisiológico e diversos elementos
corriqueiros do ambiente urbano vai configurar uma espécie de jargão usado pelo poeta,
no qual componentes mecânicos de motores de carros ocupam o mesmo espaço que
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estruturas muito específicas da biologia, todos tomados a partir de um profundo
prosaísmo.
Cabe ressaltar que a cidade na poesia de Caio parece se ligar estreitamente com
uma tendência algo dissolutiva dos limites do sujeito. Parece central para sua poética
relativizar as fronteiras individuais e corporais, reconhecendo o sujeito como transitório
num teatro de vozes, abordado mais diretamente em uma estratégia personificadora
empreendida a partir do seu terceiro livro.
Em Coisas que o primeiro cachorro na rua pode dizer, a tendência dissolutiva
se converte numa projeção de diferentes personas, a partir das quais o poeta traz outras
vozes para a primeira pessoa como ecos discursivos flagrados como instâncias possíveis
do eu no dia-a-dia urbano. Essa estratégia vai se tornar ainda mais pungente em
Romance, com a subsequente multiplicação das vozes em fragmentos anônimos no
bloco “Entre outros: fotografias”, no qual encontramos um retrato diferente do urbano,
pautado mais pela diversidade de recortes do que pela vertigem ou pelo caos.
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I. Cidade, tempo e espaço
Se, a partir da dificuldade de definição de um ponto de partida para abordarmos
a cidade, assumirmos o risco da delimitação da experiência urbana em categorias
espaciais e temporais, um novo problema surge. Qualquer definição que usássemos de
espacialidade ou de temporalidade já se encontraria ligada a uma experiência urbana do
espaço e do tempo. A cidade molda as próprias categorias sensoriais mais básicas que
poderíamos utilizar para defini-la, nos impedindo de falar de uma temporalidade ou
espacialidade da cidade, mas apenas de uma percepção urbana do espaço e do tempo.
O que pareceria, a principio, mais uma dificuldade de delimitação nos oferece,
porém, uma alternativa interessante, justamente pela possibilidade de flagrarmos a
cidade não a partir de categorias espaciotemporais constituídas a priori, mas sim a partir
do que, nestas categorias, é indissociável da experiência urbana. Nos voltaremos, assim,
para a obra dos poetas buscando mapear as imagens e os recursos formais utilizados
para dar conta das especificidades de percepção do tempo e do espaço no contexto
urbano.
Para tratar da percepção espacial, traremos inicialmente a polarização feita por
Italo Calvino entre as imagens do cristal e da chama, sínteses das tendências para o
regular e para o informe. A partir desses dois ícones extremos, gera-se um eixo onde
podemos encontrar as mais diversas representações do espaço urbano, tendendo ora para
um, ora para outro polo. Pela abrangência da tensão condensada por autor italiano, a
contraposição entre cristal e chama nos servirá ainda como um instrumental no decorrer
do nosso trabalho, absorvendo diversas tensões que compõe a representação do espaço
urbano.
No reconhecimento espacial da cidade, encontraremos também uma certa
indissociabilidade desse com a noção de mobilidade, fruto de um molde de cidade
pensada como fluxo que se impõe em diferentes reformas desde o séc. XVIII. Nesse
sentido, o dinamismo implica um signo que está na base da concepção da experiência
urbana e articula simultaneamente tempo e espaço: a velocidade. Nos deteremos no
tratamento imagético das diferentes priorizações do veloz feitas pelas poesias de
Adriano Espínola e Nicolas Behr.
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Cabe ressaltar, porém, que os últimos cinquenta anos apresentam uma guinada
no conceito de tempo através da afirmação de uma sociedade ultraconectada, cujo
bordão é a “era da velocidade”. A concepção desta se assenta, porém, sobre bases
diferentes da noção de mobilidade que podíamos observar nos projetos urbanos desde o
séc. XVIII. Pretendemos, assim, mapear algumas das implicações dessa guinada da
percepção temporal na mudança paradigmática que está presente em algumas das
experiências concretistas que encontramos na poesia de Adriano Espínola e Arnaldo
Antunes.
Separamos esse capítulo em dois blocos, com o primeiro dedicado à concepção
espacial da cidade, abordando o ambiente caótico em oposição à cidade planejada, e no
segundo a guinada observada na concepção temporal que citamos. A velocidade, por
sua centralidade no projeto urbano, atravessa os dois blocos, e é focalizada em
diferentes modelos e em possibilidades diferentes de representação. Conforme
antecipamos, optamos por uma abordagem predominantemente opositiva entre os
poetas, delimitando contrastes entre suas obras e ressaltando as diferentes implicações
das formas como essas divergências são conduzidas.
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I.1 O cristal e a chama revisitados
De um lado, a redução dos acontecimentos contingentes
a esquemas abstratos que permitissem o cálculo e a demonstração
de teoremas; do outro, o esforço das palavras para dar conta,
com a maior precisão possível, do aspecto sensível das coisas.
(CALVINO, 1990 p.88)
Em seu Seis propostas para o próximo milênio, Italo Calvino ressalta a forma
pela qual a cidade, como imagem, oferece-se como uma confluência dos mais diversos
antagonismos sem uma resolução possível. O teórico italiano caracteriza o urbano como
um símbolo complexo, capaz de abarcar em si uma tensão sem resolução entre
“racionalidade geométrica e emaranhado de existências humanas” (CALVINO, 1990
p.85).
A urbe é lida assim como síntese de uma antiga disputa entre o caótico e o
ordeiro; entre a exatidão do traçado geométrico das ruas e a indefinição do fluxo das
subjetividades em sua malha urbana. Tal abordagem, ao invés de optar por uma solução
estática, conserva o dinamismo de um jogo dialético, pois mantém a própria
possibilidade de delimitação em constante renegociação com a pulsão informe que
escapa de qualquer limite.
Ressaltamos, porém, que Calvino traz a cidade para sua conferência após uma
longa exposição sobre a exatidão e o informe. Trata-se mais da discriminação de uma
tensão específica que pode ser observada na cidade do que da constatação da
complexidade desta; o sentido de sua reflexão fecha-se na urbe, ao invés de abrir-se a
partir dela. No decorrer da sua conferência, porém, Calvino utiliza outros dois símbolos
para expressar a tensão entre a exatidão e o informe que pensamos ser de grande
relevância para nossa leitura; o cristal e a chama.
Tomados de uma analogia biológica, Calvino identifica nos dois signos uma
oposição que preserva e ilustra a tensão central de sua conferência. De um lado o cristal,
definido pela regularidade de sua geometria mineral, onde uma mesma forma molecular
se multiplica até produzir um sólido macroscópico, isto é, onde a forma é dada pela
regularidade do arranjo de uma mesma estrutura; e do outro a chama, como a
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manifestação visível da combustão, não possuindo uma forma específica regular, nem
ao menos um modelo ou estrutura que se repita; uma imagem da pura imanência.
Calvino progressivamente amplia a alçada das imagens, usadas inicialmente para
ilustrar uma tendência ao exato ou ao informe nas representações literárias, para uma
polarização mais generalista. O escritor italiano identifica na dupla cristal e chama
“duas formas da beleza perfeita da qual o olhar não consegue desprender-se, duas
maneiras de crescer no tempo, de despender a matéria circunstante, dois símbolos
morais, dois absolutos” (CALVINO, 1990 p.85).
A partir dessa dilatação da imagem, empreendida por Calvino, Renato Cordeiro
Gomes, em Todas as cidades, a cidade, relê a mesma tensão, projetando um novo
sentido para a oposição, agora observada especificamente na representação da cidade,
na qual o cristal “conota definição geométrica, que é solidez: transparência revelando
uma forma: exatidão” (GOMES, 2008 p.42) e a chama “conota vivência, que é efêmera:
pulsão forjando uma forma: fluidez” (ibidem).
Renato Cordeiro Gomes sobrepõe, assim, uma imagem sobre a outra; situando as
representações estéticas que se voltam à cidade no eixo proposto por Calvino. Dessa
forma, as inclinações à precisão ou ao disforme ilustradas pela oposição cristal-chama
passam a designar tendências e priorizações literárias no retrato da cidade. Os dois
absolutos são restringidos à representação do ambiente urbano no compromisso duplo
com a rigidez de um modelo geométrico espacial, e com a inadequação de qualquer
modelo para uma experiência por demais plural e caótica.
Após esse resgate da origem da imagem do cristal e da chama, cabe-nos voltar à
poesia e observar as ressignificações e implicações da priorização específica de cada
poeta. É importante ressaltar como as imagens trazidas por Calvino e Renato Cordeiro
Gomes servem antes para abrir novas possibilidades de leituras aos recortes urbanos
feitos pelos autores (e, nesse sentido, ela nos acompanhará em diversos momentos) do
que como um grilhão teórico com o qual se tentasse encaixar os poetas em um diagrama
unidirecional (dadas as especificidades de cada poema, dificilmente poderíamos
verificar uma oposição com a mesma justeza que vemos nos conceitos).
Tomamos assim, pela própria radicalidade de sua proposta, a trilogia do
transporte urbano de Adriano Espínola como ponto de partida. Nos três poemas que a
compõe - “Táxi”, “Metrô”, e “Minha gravata colorida” - o fluxo pelas autopistas da
21
cidade vai descobrir o espaço urbano como uma sucessão irrecuperável de imagens
fugazes, não passiveis de qualquer conceitualização estável. O comprometimento com a
mimetização das imagens tal qual elas impressionam os sentidos é atestado pela
irregularidade dos versos, como uma recusa de qualquer modelo pré-definido de métrica
ou estrofação. As imagens parecem sempre inventar sua própria forma e regras internas,
ainda que não durem mais do que uns poucos instantes antes que se percam no trânsito
pela cidade e sejam substituídas por outras novas. Adriano ressalta, assim, a
especificidade de cada imagem comprimida em sua própria brevidade irrecuperável e
faz (em especial em “Táxi” e em “Metrô”) do fluxo a experiência por excelência do
espaço urbano.
Em frente, em frente!
(Ah, avistar aquele operário que passou
como um clarão em sua bicicleta toda enfeitada,
o radinho de pilha ligado,
-explorando no selim a felicidade com mais-valia - ,
indo encontrar-se com Ritinha, 17 anos, empregada doméstica.
E eu não poder retê-lo com o Táxi
[...]
Adeus Sebastião!)
Mais depressa!
(ESPÍNOLA, 1996 p.37)
A primazia do episódico e do fugaz faz a poesia de Adriano parecer diversas
vezes mais voltada para a incapacidade de reter as imagens do que para as imagens em
si. No trecho acima, o instante que dura a cena observada, marcada pelos parênteses, se
dá num tempo passado que se tenta recuperar, como um clarão delimitado pelas
promessas de velocidade da cidade. O que ocorre é uma projeção de possibilidades para
uma imagem que, como todas as outras, já se perdeu.
Essa suspensão como possibilidade de deter qualquer imagem faz a realidade da
cidade ser a da inapreensão. Toda imagem no fluxo projeta-se como uma pequena
cristalização, um pequeno parêntese no qual, tão importante quanto sua aparição é o seu
isolamento e o que se perde entre as aparições, pois é nesse espaço que percebemos o
dinamismo do fluxo em seu pleno vigor. A descontinuidade das imagens, seu
22
isolamento em blocos discretos que impedem a constituição de uma linha causal,
imprime, assim, um caráter lacunar na poesia de Adriano, pois sugere sempre um fluxo
mais veloz de impressões sensoriais ocorrendo em segundo plano.
Assemelharíamos, assim, a sucessão de imagens na poesia de Adriano a uma
sucessão de “fotogramas de uma chama”: trata-se de pequenas cristalizações desta, que
por conta de sua descontinuidade evidenciam antes a pluralidade fenomênica não
representada do que a unidade abstrata entre as representações presentes.
É possível ainda lermos essa estratégia de descontinuidade como uma
aproximação para com a proposta de verso harmônico de Mário de Andrade em seu
“Prefácio interessantíssimo” (ANDRADE, 1972 p.13-31). Nesse sentido, o rompimento
com a linearidade (ou melodia) propõe-se a uma sobreposição das imagens (ou
harmonia). Essa possibilidade é especificamente profícua em algumas reincidências
paralelas de uma mesma estrutura, recurso que Adriano usa repetidas vezes na qual
diferentes imagens parecem se sobrepor:
Arrancada inesperada de mim pela cidade correndo fora de mim.
Carros passando perigosamente ao lado do pensamento acelerado.
Ônibus roçando com suas ancas, em cio metálico, a lateral do Táxi
Eiá, buzinas dos sentidos em alerta!
Eiá, Ultrapassagens repentinas de minha alma excessiva!
Eiá, visões do corpo a 140km/h,
em queda horizontal no abismo do asfalto!
Eiá, vertigem da quarta marcha, nos quatro pneus,
na quarta dimensão de mim mesmo na voragem do tempespaço!
Eiá, sinalizações abruptas!
Placas! Placas! Pl,cas!, ,,cas!
bat,do rá, d, s, nas ret,nas da m,te!
(ESPÍNOLA, 1996 p.45)
É interessante como no trecho acima, após os três versos introdutórios que
apresentam uma aceleração que confunde referente e referencial, os versos mergulham
na vertigem. Chamamos a atenção para a sobreposição causada pelo paralelismo,
situando todas as imagens entre o “Eiá” e a exclamação, mas também pela possibilidade
de as buzinas, ultrapassagens, visões e vertigem serem, por suas próprias características,
23
aspectos sensoriais que se dão num só instante. Nesse sentido, o paralelismo pode ser
lido como uma tentativa de se reter em diferentes imagens um mesmo instante perdido
no fluxo pela cidade.
O processo se repete sinteticamente no penúltimo verso, através do mesmo
vocábulo sendo repetido com omissão de diferentes grafemas. Fica claro, pela crescente
ilegibilidade das placas, que mesmo na sobreposição de imagens, Adriano busca
evidenciar o inesgotável desse processo; o que é irrecuperável na linearidade do tempo,
não importando de quantas reincidências harmônicas se disponha. O retrato feito por
Adriano evidencia, assim, mesmo quando parece se esforçar para recuperar uma
imagem precisa, o caos informe e dinâmico da chama, o que, mesmo numa tentativa de
reincidência de um mesmo vocábulo, progressivamente vai se perdendo pela fugacidade
inerente ao espaço urbano.
Finalmente, no último verso, a omissão de grafemas impossibilita a atribuição de
um sentido único ao trecho, gerando possibilidades como “batidas rápidas nas retinas da
morte”, “batendo rápido só na retina da mente”, dentre diversas outras permutações
possíveis. Trata-se de uma estratégia de sobreposição que abordaremos no próximo
capítulo por trazer um elemento de simultaneidade no tratamento do tempo que abre
questões específicas sobre o paradigma temporal que está em questão.
Se contrapusermos agora o recorte da cidade feito por Adriano com a poesia de
Nicolas Behr, vamos perceber um abismo e uma grande possibilidade de contraste,
especialmente no que toca no eixo cristal-chama de Calvino e Renato Cordeiro Gomes.
Não encontramos na obra de Nicolas a mesma sucessão desconexa de imagens; a
regularidade da arquitetura de Brasília nos oferece um panorama onde a geometria
cristalina das macroestruturas arquitetônicas parece tomar conta do horizonte urbano:
blocos, eixos
quadras
senhores, esta cidade
é uma aula de geometria.
(BEHR, 2007 p.58)
24
Diferentemente da proposta de Adriano, as imagens que predominam em
Nicolas evocam a perenidade. No lugar da sucessão de retratos de uma chama pulsante,
o que temos é mais voltado para “recortes” diferentes de um cristal, no qual interessa
não o que se perde na fotomontagem, mas precisamente o que nela se mostra e atesta a
consolidação de um ideal específico de cidade.
No poema acima a parataxe entre os elementos na primeira estrofe se mostra a
serviço de um efeito completamente diferente do observado em Adriano. A enumeração
nos dois primeiros versos trás, ao invés de fotografias sucessivas de uma imagem
disforme, uma apresentação de estruturas tomadas à distância, abstraídas de suas
especificidades e uniformizadas no mesmo projeto. O próprio traço humano já antecipa
a diferença que identificamos em Adriano: trata-se de um interlocutor externo para
quem a cidade é apresentada.
A caracterização da metrópole como aula de geometria (e ressaltamos o caráter
hierárquico e unidirecional dessa imagem) já a afasta da noção de chama e a aproxima
do cristal. Basta lembrar, nesse sentido, que a própria definição do cristal é geométrica:
trata-se de um sólido que possui em sua estrutura molecular uma regularidade
geométrica repetida até a sua consolidação macroscópica.
O comentário final não sugere, porém, que a presença do cristal na poesia de
Nicolas seja proveniente de uma priorização da abstração do dia-a-dia urbano. Assim
como é sugerido nesse poema (e ficará claro em diversos outros), a cidade enquanto
objeto cristalino se opõe aos moradores; trata-se de um projeto urbano específico e
sufocante, que deve ser superado; o projeto da cidade planejada é flagrado pelo olhar
como uma associação entre a cristalinidade a uma hostilidade à existência humana.
Chamamos atenção, assim, para esta última possibilidade de ler a imagem
síntese de Gomes e Calvino: aplicando a imagem do cristal sobre o próprio projeto da
cidade (e não apenas sua representação) encontramos as próprias cidades como situadas
num maior ou menor grau de cristal e chama, tendendo ora para o racionalismo
geométrico da organização espacial, ora para a ocupação implanejável e espontânea do
espaço. É claro que seria impossível separar a cidade do olhar que a representa, porém,
é essencial observar que, em Brasília, tal oposição entre traçado geométrico e
emaranhado de existências humanas está visivelmente desbalanceada por se tratar de
uma cidade planejada nos moldes do racionalismo urbano do séc. XX. É essencial levar
em conta o próprio projeto estético urbanístico e ideológico que se concretizou em
25
Brasília, no qual a supremacia do geométrico pode ser lida, tal qual na imagem proposta
por Calvino como uma contraposição da cidade projetada ao informe da sua ocupação
humana.
O cristal, nesse sentido, é um elemento recorrente na representação da cidade
ideal do sonho da modernidade. Marshall Berman analisa a importância (e o grau
fantasioso) desse modelo em seu Tudo que é sólido desmancha no ar (BERMAN, 1986,
p.223) por meio da figura do palácio de cristal no imaginário russo. Mike Davis
apresenta também um símbolo semelhante como o máximo índice de um projeto de
controle do espaço público em Los Angeles em seu Cidade de quartzo (DAVIS, 1993).
É interessante o quanto o cristal se abre como expoente de pureza, não só da matéria
como das formas, e incorpora assim projetos que têm suas bases não só no planejamento
urbano, mas num processo de assepsia constante que atravessa a modernidade.
Brasília, caracterizada por Holston como A cidade modernista (HOLSTON,
1993), toma emprestadas todas as características atribuídas ao cristal: a geometria,2 a
primazia do controle do fluxo pelas autopistas e a setorização do espaço em papéis
específicos. Sob vários sentidos, a cidade absorveu todos os aspectos do sonho da
cidade ideal moderna no auge da vigência do international style e das concepções
urbanísticas de Le Corbusier e Ludwig Hilbersheimer.
Não é rara, na poesia de Nicolas, a contraposição entre a cidade e os moradores,
onde aquela figura como hostil para com estes. É como se na concretização do modelo
espacial idealizado de Brasília, a dialética entre cristal e chama se tornasse uma disputa
violenta e opressiva que põe de um lado a população e a espontaneidade, e do outro a
artificialidade da cidade planejada. Poucos poemas são tão diretos ou concisos nesse
sentido como:
2 Ressaltamos ainda o quanto o geometrismo, expressão de Bachelard em A poética do Espaço,
pode ser observado simplesmente na facilidade para mapear o espaço nos dois poetas. Em Nicolas
estamos quase sempre no plano piloto, na vigência do urbanismo de Lúcio Costa e quando o poeta nos
apresenta outro espaço, este nos adverte muito claramente; a cidade oferece a facilidade de um dentro-
fora muito identificável. Já em Adriano Espínola, a cidade não possui limites definidos. Inicialmente
acreditamos estar lidando com Fortaleza, mas a sua viagem de Táxi ou Metrô acaba por se projetar para
além de uma cidade tomada com espaço demarcável, e a mistura das sensações acaba trazendo outras
cidades, transformando o espaço urbano que transitamos como um recorte de várias cidades, onde se
somam o Rio de Janeiro, Nova Iorque e diversas metrópoles europeias; trata-se de uma grande cidade-
chama sem limites estáticos.
26
assim nós queremos viver
dissemos nós
assim nós queremos
que vocês vivam
disse o arquiteto
(BEHR, 2009, p.66)
A separação das estrofes atesta de novo pela contraposição das lógicas
espontâneas e planejadas que se tornam uma dialética de constrição e sufocamento. A
palavra arquiteto se opõe, nesse sentido, à existência humana, e é interessante o quanto
essa visão desumanizada da arquitetura moderna apoia-se sobre diversos teóricos, desde
Ortega y Gassett até Eduardo Subiratis. Ressaltaremos, assim, alguns pontos desse
último, por suas reflexões constituírem uma ponte interessante entre o cristal, a
artificialidade e algumas imagens-símbolo que serão relidas tanto por Adriano quanto
Nicolas Behr.
Segundo Subiratis, o modelo arquitetônico que identificamos com o cristalino é
fundamentado por uma internalização do que ele chama de uma utopia do maquinismo
(SUBIRATIS, 1986 p.24-29), uma consolidação do funcionalismo como um valor em
si, a partir do qual a máquina se projeta como mecanismo perfeito, um modelo, ou um
ideal a ser seguido e reproduzido. É interessante ainda o quanto os argumentos de
Subiratis trazem em comum alguns dos mesmos nomes e impasses já citados aqui.
O maquinismo foi elevado a valor cultural supremo ao longo deste processo.
Léger em pintura, Oud ou Hilbersheimer em sua concepção de urbanismo, Le
Corbusier em sua nova ideia de arquitetura, para mencionar apenas alguns
exemplos, converteram a máquina em objetivo e valor por si, em torno do
qual se articulava o conjunto das questões formais, plásticas, compositivas,
construtivas e organizativas do desenho. (SUBIRATIS, 1986 p.29)
O geométrico alinha-se, assim, ao impessoal (ou ainda, a um “anti-pessoal” tal
qual a contraposição feita por Nicolas), onde o arquiteto molda a cidade como ”uma
ordem racional e livre da sociedade” (SUBIRATIS, 1986 p.34), funcional por
excelência. O geometrismo e a concepção da urbe como máquina, passível de ser
27
otimizada, tornam-se índices dessa misantropia inerente à arquitetura de Brasília quando
relida por Nicolas, onde a natureza e a humanidade perderam seu posto de valores por si
e encontram-se francamente prejudicadas na máquina de concreto armado que constitui
a cidade.
A utopia do maquinismo tal qual pensada por Subiratis articula ainda outros
signos no cenário urbano, dos quais ressaltaremos para nossa reflexão o da velocidade.
Subiratis ressalta a importância da vanguarda futurista nessa valorização, mas em se
tratando de cidade, suas raízes são ainda mais profundas, estando presente desde o séc.
XVIII e tendo seu marco inquestionável nas reformas de Haussman em Paris. Estas
afirmam definitivamente a concepção da cidade como um espaço do fluxo, ponto
central reafirmado diversas vezes na poesia de Adriano:
Este Táxi,
a rua rolando rente,
os telhados correndo, pensos, de um lado e outro,
a lata de lixo solitária,
as arvores caladas,
rostos e estrelas entrevistos da janela,
teu corpo passageiro
(ESPÍNOLA, 1996 p. 25)
A velocidade está na base de grande parte do que, na obra de Adriano,
ressaltamos como priorização da cidade enquanto chama; a sobreposição de imagens, a
descontinuidade destas e a primazia pelo inapreensível são todas estratégias que
contribuem para o efeito estético de vertigem provocado pela aceleração do veículo. No
trecho acima temos, em sete versos, pelo menos sete imagens sem uma conexão ou
vínculo causal, todas se sobrepondo e sistematicamente sendo deixadas para trás pela
velocidade do táxi em trânsito.
Cabe ainda ressaltar o quanto, nesse trecho assim como em muitos outros,
mesmo quando Adriano não fala tematicamente da velocidade, ele fala a partir dela.
Não apenas como um modelo ideológico louvado e/ou criticado, a velocidade aparece
também por conta do fato de o retrato que o poeta faz ser indissociável da sua moldura
28
veicular; trata-se de um poema feito de dentro de um táxi em movimento pelas ruas da
cidade.
A condição incontornável da velocidade como experiência urbana pode ser lida,
portanto, a partir da homonímia entre veículo e texto. Tanto em Táxi, quanto em Metrô,
encontramos inúmeras autorreferrências que parecem reafirmar a todo tempo o vínculo
entre a experiência da cidade o veículo que a atravessa.
A cidade, tomada enquanto espaço puro do fluxo apoia-se, na poesia de Adriano
Espínola, num discurso que se confunde com o veículo automotor. Essa priorização do
automóvel, que chega aos anos 50 com os delírios de autopistas de Robert Moses e a
concepção urbanística de Le Corbusier, tem na otimização da velocidade a medida da
funcionalidade. Esse ideal, presente desde a concepção do plano piloto de Brasília, tem
sua centralidade ideológica ilustrada geográfica e geometricamente na imagem do eixo
rodoviário de Brasília, conhecido informalmente como eixão.
O eixão, como a principal autopista de um projeto marcado pelas autopistas,
torna-se uma grande metonímia, tanto para Nicolas quanto para a própria construção de
Brasília. Marshall Berman, em seu Tudo que é sólido desmancha no ar, aponta, tratando
da autopista Cros-Bronx, que esta é uma das estruturas “planejadas especialmente como
expressões simbólicas da modernidade” (BERMAN, 1986 p.273), e tal constatação
serve perfeitamente para ilustrarmos a importância simbólica do eixão para a construção
de Brasília. A imagem já nasce de certa forma consolidada como um símbolo da utopia
do maquinismo, do progresso e da velocidade, e é sintomaticamente subvertida pela
poesia de Nicolas:
nossa senhora do cerrado,
protetora dos pedestres
que atravessam o eixão
às seis horas da tarde,
fazei com que eu chegue
são e salvo na casa da noélia
(BEHR, 2007 p.69)
A apresentação do eixão, enquanto símbolo máximo da velocidade e da utopia
do maquinismo, longe da celebração é marcada pelo temor. A prece, como uma
29
urgência de intervenção divina junto aos perigos de atravessá-lo, transforma-o ainda
num elemento que resguarda o perigo do veloz como algo sobrenatural. É interessante
que Subiratis apresenta essa reviravolta que passa a promover a “identificação da
máquina com o demoníaco, ou seja, com uma força irracional e incontrolável de signo
negativo e destruidor” (SUBIRATIS, 1986 p.41).
A violência presente na carga afetiva da imagem alia-se ainda a uma recusa da
inserção na velocidade do trânsito. Nicolas, em contraposição com Adriano, posiciona o
olhar sempre nas margens da autopista, de forma que o eixão (assim como os blocos e
as quadras) resguarda o aspecto imóvel de um elemento arquitetônico. O olhar produz,
assim, uma dupla recusa do signo da velocidade: primeiramente ao aproximar a
autopista de um elemento anti-humano, como um potencial atentado a vida; e, num
segundo sentido, ao se posicionar deliberadamente fora do fluxo, recusando a
experiência automobilística de Brasília.
A recusa da inserção no trânsito constitui um ponto opositor entre Adriano e
Nicolas, e é especialmente relevante se levarmos em conta que, diferentemente de
Fortaleza, Rio e Nova Iorque, Brasília é a concretização do sonho de uma cidade
pensada para o fluxo. É marcante no traçado urbano de Brasília o quanto esta é
planejada especificamente como uma cidade para ser vivida a partir do automóvel, justa
medida da oposição entre a recusa de Nicolas e a inserção de Adriano Espínola.
A dialética entre o cristal e a chama aponta, assim, para uma oposição no que
tange a priorização da velocidade na obra dos dois poetas, seja enquanto inserção ou
recusa. Quanto mais pungente é o signo da velocidade enquanto trânsito pelas
autopistas, mais a poesia de Nicolas parece buscar uma alternativa de escape. No polo
diametralmente oposto, Adriano parece se esforçar para criar um texto-veículo que
possibilite viver a cidade como um espaço de trânsito veloz e desimpedido.
30
I.2 Um pacto temporal
Importa sobreviver.
No trânsito
debaixo de tiros.
ou aos trancos
[...]
Deixa, apenas, que se inscreva
-em teu corpo- a áspera canção do tempo.
(ESPÍNOLA, 2002 p.33)
Dissemos o quanto a velocidade torna-se um signo incontornável na
representação da urbe moderna; seja pelo repúdio ou louvação; a cidade como
conhecemos parece inseparável de uma concepção de fluxo e mobilidade. Cabe
ressaltar, porém, que essa identificação não é inerente ao traçado urbano; trata-se de
uma construção que nasce com a modernidade e sofre diversas mudanças,
especialmente nos séculos XX e XXI, adaptando-se a novas tecnologias e
proporcionando diferentes concepções temporais aos sujeitos em trânsito.
Em seu Carne e pedra, Richard Sennett trata detidamente dos diferentes signos e
ideários que nortearam algumas das novas concepções de urbanismo no mundo
ocidental. Ao se referir às primeiras reformas que associam a cidade a um signo de
mobilidade, Sennett ressalta que a fixação no fluxo ininterrupto tem suas bases junto a
uma analogia fisiológica. A noção de que a cidade seria tal qual um grande organismo
como o corpo humano, necessitando de um permanente trânsito de humores, fez da
velocidade um aspecto natural e necessário à vida:
Construtores e reformadores passaram a dar maior ênfase a tudo que
facilitasse a liberdade de trânsito das pessoas e seu consumo de oxigênio,
imaginando uma cidade de artérias e veias contínuas, por meio das quais os
habitantes pudessem se transportar tais quais hemácias e leucócitos no
plasma saudável. A revolução médica parecia ter operado a troca de
moralidade por saúde; e os engenheiros sociais, estabelecido a identidade
entre saúde e locomoção/circulação. Estava criado o novo arquétipo da
felicidade humana. (SENNETT, 2010 p.262-263)
31
A influência do ideal de livre movimento no urbanismo não é menor do que sua
extensão no próprio imaginário biológico-individual (Sennett chega a demonstrar um
continuum entre a metáfora sanguínea, a velocidade, e a consolidação do individualismo
no mundo ocidental, associado à liberdade e ao direito de ir e vir). Se já afirmamos
anteriormente a importância da utopia do maquinismo para a constituição da velocidade
na representação da cidade, cabe ressaltar algumas das implicações desse ideal no que
tange a percepção do tempo no ambiente urbano, mesmo quando fora do cenário
clássico da autopista.
O final do séc. XX (janela temporal onde se situam todos os poetas do nosso
corpus) apresenta uma guinada nessa questão, pois evidencia uma insuficiência da
metáfora sanguínea para entendermos a mobilidade urbana. O fluxo dos carros se
mostra cada vez mais associado ao definhamento e à estagnação no congestionamento,
enquanto, no contraponto, a indústria da informação reafirma cada vez mais a “era da
velocidade” associada à circulação de dados, ao invés de mercadorias. Encontramos
assim, a velocidade no séc. XXI diretamente associada à indústria da propaganda e
informação: internet, televisão, multicasting, broadcasting, todos são elementos que
passam a designar uma concepção do veloz que não pode mais ser pensada a partir da
metáfora espacial e circulatória que polarizou a mobilidade entre os séculos XVIII e
XX, ela deve ser atualizada.
Essa guinada na concepção da mobilidade funda uma nova percepção capaz de
dar conta de um fluxo cada vez maior de imagens fugazes. Como um novo pacto
temporal, a velocidade urbana no séc. XXI estende-se a novos ambientes, pois não
depende mais de uma adequação espacial e de um fluxo material de carros, pessoas ou
mercadorias, mas apenas de imagens e/ou dados. Nesse sentido, a recusa da velocidade
que abordamos na obra de Nicolas só é verificável quando observada em símbolos de
um imaginário específico da mobilidade urbana, pautado por um projeto e uma
concepção de cidade voltada para o trânsito automobilístico. Enquanto novo pacto
temporal, a cidade moderna já se estende, pelo sinal televisivo e rede de computadores,
desde o Rio de Janeiro, Brasília ou Diamantino (cidade onde o poeta passou a infância).
Já em Adriano Espínola, a inserção no fluxo e os recursos para a maximização
da sensação de velocidade são um pouco mais complexos. Temos em sua obra um
comportamento ambivalente entre os dois momentos da guinada que citamos:
conquanto o olhar sempre parta da velocidade segundo o modelo clássico, podemos
32
identificar alguns elementos de uma concepção temporal que se aproxima cada vez mais
da instantaneidade própria do fluxo de dados.
Nesse sentido, ressaltamos nas imagens de Adriano não apenas seu
encadeamento, mas também a sua hiper-compressão, processo que acelera a sucessão
horizontal de imagens através de um adensamento do sentido das suas partículas
componentes. Novamente, voltamos a Italo Calvino em Seis propostas para o próximo
milênio, no qual em sua segunda conferência, dedicada especificamente à rapidez,
destaca alguns pontos sobre a compressão da imagem até limites punctiformes. Segundo
ele, o segredo da rapidez está em “que os acontecimentos, independentemente de sua
duração, se tornem punctiformes” (CALVINO, 1990, p.48).
A radicalização dessa compressão na poesia de Adriano Espínola, que em alguns
momentos poderia ser lida de forma semelhante ao verso harmônico de Mário de
Andrade, evidencia esse momento de virada, quando a sobreposição das imagens dá
espaço à verticalização dessas, projetando múltiplos sentidos. Adriano utiliza jogos
fonéticos e visuais para abrir possibilidades de sentido não exploradas num mesmo
segmento gráfico, de forma que; quando abandonados no fluxo, essas imagens levam
junto possibilidades diferentes de sentido apenas sugeridas. Trata-se, então, de uma
sugestão de excesso de informações que o verso, por seu caráter linear, não é capaz de
dar conta, percebendo apenas ilhas de sentido sem um trajeto específico:
Sacolejos poeira de luz
palpitações
sombras vertigens
desligamentos além dentro
esquinas faíscas de mim
deslizamento aquém fora
ânsias silêncios cruzamentos
Estou indooo...
(ESPÍNOLA, 1996 p.62)
33
A constelação de palavras reafirma a incapacidade de conferir um único sentido
aos fragmentos de imagens dispersos, eles se alternam entre a visualidade das faíscas e a
abstração de um “além”, que pode tanto se ligar ao “de mim” do verso seguinte quanto
estar sozinho. Ao invés de construir imagens que possuem uma moldura definida e se
sucedem (ainda que sem uma ligação precisa), Adriano capta apenas fragmentos dessas
imagens, sugerindo, assim, a sua própria incompletude (até mesmo pela estrutura
lacunar do trecho). É como se o poeta nos oferecesse um relance da imagem, atestando,
portanto, a existência dela, mas não definindo os seus limites, de forma que nessa única
palavra ficam concentradas múltiplas possibilidades de sentido sobrepostas.
Ressaltamos, porém, que a noção de velocidade nesse trecho de Adriano ainda é
posta a serviço de uma articulação entre tempo e espaço. Trata-se de uma distorção
visual; o poeta não consegue captar as imagens em sua inteireza por conta de um
deslocamento espacial que fica claro no verso final “Estou indoo...”. A compressão
temporal através da condensação das imagens induz, dessa forma, uma aceleração na
sensação vertiginosa da velocidade que ainda está situada dentro da concepção clássica
da velocidade. Há, porém, em alguns trechos da poesia de Adriano, a possibilidade de
lermos uma segunda abordagem da velocidade, não mais dependente de um
deslocamento no espaço, mas de uma suspensão da linearidade espacio-temporal.
Se dissemos que a metáfora que estruturou a noção de velocidade e mobilidade
no ambiente urbano do séc. XVIII ao XX era a do sistema circulatório, McLuhan nos
oferece em seu Os meios são as massa-gens a sua atualização: a rede neural. Trata-se de
uma concepção que associa o trânsito de dados e informação pela rede como espelhado
também num aparato corporal, o sistema nervoso. Enquanto Sennett nos aponta que no
séc. XIX a própria vida e a vivacidade eram concebidas como uma decorrência do fluxo
sanguíneo, esse paradigma mudou para uma decorrência de atividade cerebral. O
cérebro, por sua vez, ainda no campo da analogia situada dentro da utopia do
maquinismo, passa a ser designado como a nova máquina perfeita, substituindo o
coração.
A nova concepção de velocidade, marcada pelo instantâneo (vale lembrar que
McLuhan nem chegou a ver o salto que se daria nos anos 90 e 2000 com a
popularização da internet) não pode ser vista como uma simples radicalização ou
aceleração da mobilidade espacial. Há uma mudança de paradigma que rearranja as
34
relações de sentido e verticaliza-as definitivamente. Ressaltamos, assim, na definição de
McLuhan de aldeia global, o que tange as novas articulações espaciotemporais:
“o nosso é o tempo do tudoagora. O ‘tempo’ cessou, o ‘espaço’
desapareceu. Vivemos hoje numa aldeia global... num acontecer simultâneo.
[...] Fomos obrigados a desviar o esforço de atenção da ação para a reação.
Hoje temos que saber antecipadamente as consequências de qualquer diretriz
ou ação, pois os resultados nos chegam de volta sem demora. Devido à
rapidez da eletricidade, não podemos mais esperar para ver o que vai
acontecer. (MCLUHAN; FIORE, 1969 p.91)
O paradigma da instantaneidade rompe com a articulação clássica entre tempo e
espaço; os modelos de análise que serviriam pra a cidade enquanto fluxo espacial não se
aplicam mais. Cabe, agora, buscarmos as mudanças e as novas relações de sentido
polarizadas pela instantaneidade do fluxo de dados na velocidade da luz.
Dissemos que encontramos em Adriano uma ambivalência dos dois universos da
velocidade. Em grande parte de Táxi, o que flagramos é a compressão das imagens, bem
como a incorporação do espaço visual da página como código pictórico, mas, tudo isso,
ainda buscando o aceleramento do fluxo. Ressaltamos, porém, que em alguns recortes o
poeta põe tais estratégias a serviço de uma velocidade que se aproxima mais do
instantâneo, e, portanto, de um tempo que está suspenso:
Estou vendo
a tarde de vidro & aço
nos separando da multidão:
brancosenxadrezados/negrosimpressionistas/judeusbarbascops
pernasprédioschapéuscarascarrõescasacosflagscartazesvitrinas
you´ve come a long way baby/walk don´t walk/whatacrowd
que jamais saberá
-ruidosamente paralisada na memória-
que por lá retorno
a 5 dólares e 25 cents a corrida naquele instante de agora.
(ESPÍNOLA, 1996. p.39)
35
É interessante como nesse trecho há uma tentativa muito clara de mudar a
concepção da forma de apreensão da imagem. O poeta desrespeita a separação entre as
palavras, juntando substantivo e adjetivo num único bloco de sentido, que apenas é
separado dos demais por intermédio das barras;3 de certa forma, questionando a
separação entre substantivo e adjetivo, quando ambos são percebidos como uma única
referência concreta. A percepção dessas imagens se dá, nesse sentido, num único
instante, sob o signo da instantaneidade, como um olhar que flagrasse essa multidão e
buscasse uma única palavra que desse conta da multiplicidade de impressões.
Progressivamente, a percepção para de isolar ou reconhecer os signos separados,
constituindo uma grande palavra que amarra diversas imagens percorridas pelo olhar,
tendo, enquanto um único significante, um significado multi-relacional. Nesse sentido, a
constituição de uma palavra que perpasse diversos referenciais, quebra também com um
paradigma temporal que se estrutura numa velocidade de apreensão sequencial. Os
outros três “signos”, que se somam no último verso da estrofe, são ainda índices
referenciais da paisagem nova iorquina, com a qual o poeta entrou em contato na década
de 70; simultaneamente o slogan do Virginia Slims, que ficou muito famoso na época, e
as placas de cruzamento de pedestres.
A simultaneidade pode ainda ser observada na microestrutura de cada uma
dessas últimas imagens, já que o “you´ve come a long way” indica, ao invés de uma
construção linear de uma frase, muito provavelmente um outdoor, uma imagem
pictórica, que é captada num instante; e o “walt don´t walk” remete, enquanto
microestrutura, a uma imagem que traz, simultaneamente, duas mensagens
intercambiantes da placa de cruzamento. Reafirma-se aqui o que dissemos a respeito da
configuração de um significante único que abarque uma referencia múltipla, mesmo no
sinal do cruzamento onde essas referências são mutuamente excludentes.
Cabe ressaltar ainda que o final desse trecho reafirma a suspensão do tempo na
associação de todas as imagens a um único instante da memória que não possui um
vínculo direto com a vertigem do táxi. Seria reducionista simplificar o jogo
passado/presente tratando a imagem como um retrato estático de um tempo que já foi.
Adriano torna-a presente ao revisitá-la, reafirma a instantaneidade e a suspensão do
3 Em revisão ainda inédita, Adriano remove as barras, mantendo nesse verso também uma grande palavra
que percorre pelas três imagens, mantém o segundo verso igual, e remove as barras e os espaços do
terceiro verso. A mudança, longe de contradizer nossa leitura, reforça a simultaneidade das imagens, e
mantém a estrutura progressiva de radicalização.
36
tempo enquanto linha cronológica, questionando a própria separação entre passado e
presente através de uma priorização do instantâneo. O fechamento do trecho ratifica,
nesse sentido, a instantaneidade da rememoração e a simultaneidade dos blocos de
sentido, não a velocidade do trânsito pela cidade. Trata-se de uma imagem em tempo-
zero; de um passado tomado num quadro e jogado no presente imediato.
Essa concepção de tempo-zero para a simultaneidade de diferentes impressões e
sentidos causados por uma mesma imagem, se aproxima muito da reconfiguração do
pacto temporal urbano quando polarizado pela instantaneidade. Podemos ainda situar
algumas experiências a partir da poesia de Arnaldo Antunes, e sua retomada da poesia
concreta nos anos 90. É necessário, nesse sentido, ressaltar que a mudança da relação
com o tempo é a raiz a partir da qual o concretismo pode ser pensado, pois este se
afasta, a um mesmo tempo do verso e do tempo linear. A sobreposição de diferentes
códigos amplia a carga semântica das imagens, impossibilitando uma leitura gradativa;
a própria apreensão do poema busca se dar instantaneamente.
A proposta da poesia concreta, desde seus manifestos da década de 50 pode,
num certo sentido, ser lida como a de uma poesia radicalmente urbana. Muito além da
representação “clássica”, com os grafemas dispostos pela página espelhando (ou
contradizendo) o tema, ou com reaproveitamentos diretos dos slogans e formatações
próprias da indústria da propaganda; interessa-nos a concepção de instantaneidade que
está na base de sua apreensão pictórica, assim como o próprio predomínio do código
visual (e suas relações intrínsecas com a cidade). Estes são, afinal, precisamente, os
pactos sensoriais e temporais fundados pela cidade moderna do final do séc. XX e XXI.
Ressaltamos assim, da poesia de Arnaldo Antunes, o poema-título do livro 2 ou
+ corpos no mesmo espaço que, em sua capa original incluía repetições do mesmo
enunciado em cores diferentes sobrepostas, mas na antologia Como é que chama o
nome disso, recebeu uma forma mais minimalista, em preto-e-branco, com as palavras
componentes apresentadas apenas uma vez:
37
(ANTUNES, 2006 p.133)
É interessante que a característica da física clássica referida por Arnaldo, a lei da
impenetrabilidade, não é simplesmente negada; a ela não se opõe uma proposição
oracional de valor contrário. Trata-se de um passo além; de um exemplo substantivo (e
não proposicional) de corpos se interpenetrando, ocupando o mesmo espaço. A
assimetria dessa contraposição entre lei física e enunciado poético, que insere, por
exemplo, o “ou +”, reforça a irrelevância que esta atribui àquela, mostrando a
capacidade da poesia de subvertê-la sem grande dificuldade.
O posicionamento privilegiado de “2 ou + corpos no mesmo espaço”, como
próprio título da obra, possibilita ainda a leitura da penetrabilidade como uma
característica intrínseca à poética de Arnaldo. Trata-se, afinal, de uma tentativa de
multiplicação de sentidos a partir de um mesmo segmento gráfico, isto é, de um mesmo
intervalo espacial, seja ele um verso clássico, concretista ou caligráfico.
Cabe ressaltar ainda que a sobreposição e a penetração espacial são, ao mesmo
tempo, uma penetração e sobreposição temporal. A mensagem, por seu caráter
38
pictórico, se dá num mesmo instante, através do embaralhamento das palavras em preto
e branco. A linearidade cronológica contra a qual a proposta concretista se coloca é
rompida, assim, juntamente com a lei da impenetrabilidade, através da reafirmação
visual da mensagem.
Além da mudança paradigmática que já ressaltamos como inerente à
instantaneidade buscada pelo poema, a sua forma em preto-e-branco causa uma
dificuldade de leitura, semelhante ao conceito fundamentalmente urbano de poluição
visual. Se lida nesse sentido, a dificuldade de leitura própria de poema, sua confusão de
palavras, reafirma o ambiente urbano como um espaço de sobreposição de códigos. Há
uma certa indissociabilidade,, então, entre o pacto temporal urbano como regido pelo
instantâneo, e a experiência diária da cidade como interpenetração (espaço-temporal)
dos mais diversos discursos (ponto ao qual voltaremos no último capítulo).
Além da instantaneidade da sobreposição de códigos, cabe ressaltar outro
elemento explorado por Arnaldo Antunes no que tange seus trabalhos caligráficos. O
poeta define a caligrafia como um “território híbrido entre os códigos verbal e visual”
(ANTUNES, 2006 p.326), e cabe ressaltar também o quanto a caligrafia absorve a
experiência genuína da escrita, em contraposição com a abstração alfabética que
constitui a tipografia.
Nesse sentido, é importante enfatizar o quanto a caligrafia traz um elemento de
identidade para o texto, uma outra camada discursiva, definida por Arnaldo como uma
“entonação gráfica” (ANTUNES 2006 p.326) que possibilita a vivência corporal do
processo de escrita. Cabe ainda ressaltar como a retomada da caligrafia, ao se opor à
repetição análoga da prensa tipográfica, parece se afastar do universo urbano industrial.
O elemento de identidade e idiossincrasia dialoga, porém, pela sua visualidade, com
pichações e grafites, imagens recorrentes na paisagem urbana industrial, que se mantém
como uma cultura caligráfica à margem da legitimação do cânone literário.
39
(ANTUNES, 2006 p.226)
Se morfologicamente o poema é composto por apenas quatro sílabas (compostas
por apenas seis letras diferentes), sua riqueza provém justamente dos diferentes registros
e possibilidades delas. A ideia da falta, sugerido pelo título “fome de sede” e sua
inversão possível “sede de fome” gera uma noção circular, que conforme avança a
leitura vertical da imagem vai dissolvendo os traços opositivos entre as letras, tornando-
as mais indistintas, ou, se preferirmos, poluídas.
Não pretendemos aqui amarrar a leitura da caligrafia de Arnaldo Antunes num
único sentido, mas é interessante ressaltar como, se suas bases se lançam em tradições
40
orientais da escrita, o limiar entre o visual e o verbal é cotidianamente verificado nas
inscrições em grafite nas grandes cidades. A semelhança com o grafite - seus elementos
comuns de desenho e escrita - traz de volta a caligrafia de Arnaldo Antunes para o
cenário urbano, pois embora não caiba a discussão dos limites específicos entre a
caligrafia e o grafite (discussão que passaria inclusive pelo suporte em que a caligrafia
se encontra), a pressuposição de uma apreensão instantânea da mensagem é comum aos
dois, bem como o caráter transgressor.
Outra importante discussão que é trazida pela aproximação da caligrafia com o
grafite é a noção de poluição visual, podendo esta ser vista como própria do discurso da
cidade, na medida em que é uma sobreposição indiscriminada de diferentes fragmentos
de discurso. Nesse sentido, a dificuldade de leitura (ou de constituição de uma linha de
sentido) é a própria mensagem. Ao dissolver progressivamente os grafemas em “fome
de sede”, ou dificultar a leitura de “2 ou + corpos no mesmo espaço”, Arnaldo traz o
ruído comunicativo para o primeiro plano, não apenas a partir da possibilidade de
conceder-lhe sentido, mas também a partir da incapacidade de fazê-lo.
O ruído é trazido, assim (é interessante como historicamente a música do século
XX também buscou desestabilizar a divisão estanque entre as categorias de ruído e
som), como um elemento autossuficiente para os versos. Todas as possibilidades de
atribuição de significado a cada traço tornam-se insuficientes, pois se conserva em
primeiro lugar o caráter interpretativo não apenas do sentido de cada vocábulo, mas do
próprio reconhecimento de um.
É importante ressaltar que a abertura infinita de sentidos proposta pelas
caligrafias em Arnaldo Antunes se assenta sobre o mesmo pacto temporal da
instantaneidade, da sobreposição de códigos diferentes e da valorização construtiva de
sentido do ruído. É a partir da incapacidade de conferir sentidos absolutos à densidade
semântica própria da caligrafia que se problematiza novamente a concepção da poluição
visual enquanto sobreposição de fragmentos desconexos.
Num certo sentido, o caráter instantâneo como polarizador do tempo urbano
atual se expande para além de qualquer limite possível da cidade. Arnaldo possibilita a
releitura dos mesmos pactos temporais que vemos apontados no urbano quando
tematizado por Adriano Espínola, a partir do enunciado “fome de sede”, isto é, sem a
necessidade de se prender a signos gastos de cidade, como automóveis, out-doors e
neons.
41
Cabe ressaltar que a oposição da poesia de Arnaldo com a de Adriano deixa
evidente um contraste entre uma cidade aparente e uma velada. Enquanto na poesia
deste a cidade se circunscreve predominantemente do lado de fora da janela (a
constituição de barreiras será em certa medida subvertida, conforme veremos no
próximo capítulo), na poesia daquele os signos recorrentes do urbano ficam em segundo
plano, predominando a especificidade de suas vivências sensoriais e temporais. Dessa
forma, quanto mais “de relance” aparece o tema da cidade, mais entranhadas parecem as
suas categorias de experimentação, pois podem assim ser ampliadas para contextos
diferentes, não tão desgastados pela poética urbana dos séc. XIX e XX.
O paradigma urbano se estende assim para limites imapeáveis; quanto mais
buscamos nos afastar dele, mais reconhecemos seus modelos e imagens para
experiências menos óbvias. Sua noção espacial abre-se na própria possibilidade da
delimitação ou da imprecisão, sua concepção temporal abrange tanto a vertigem de uma
linearidade quanto o tempo-zero da instantaneidade. Não é possível mais situar um
“lado de fora” da cidade; o urbano se afirma, finalmente, como o alargamento máximo
do que não possui contrário.
Reconhecemos assim, matizes aparentemente mais ou menos definidas de uma
mesma concepção urbana do real, sem contornos, limites ou avesso. Cabe ressaltar a
imagem de Pentesiléia, em As cidades invisíveis; cidade sem fronteiras, que se alarga
entre periferias como um vasto terreno urbano descentrado. Tal qual nosso paradigma
urbano, Pentesiléia não apresenta nunca um núcleo ou um limite que possibilitem a
certeza fácil do limite entre dentro e fora:
A pergunta que agora começa a corroer a sua cabeça é mais angustiante: Fora
de Pentesiléia existe um lado de fora? Ou, por mais que você se afaste da
cidade, nada faz além de passar de um limbo para o outro, sem conseguir sair
dali? (CALVINO, 1990 p.143)
42
II. Intervalos entre corpo e cidade
A tensão entre cristal e chama abre uma nova dimensão para nosso estudo
quando observada fora da macroperspectiva, que abrange todo um emaranhado das
existências humanas na cidade, e trazida para o microcosmo do sujeito tomado em sua
singularidade e isolamento frente à ordem urbana. Estamos não mais falando de uma
pulsão humana indefinida, mas sim de um contato entre sujeito e cidade que é, antes de
tudo, corporal. Distinguem-se, a principio, dois corpos em contato: o do sujeito, como
um anteparo “biológico-discursivo4” e o da cidade, constituído não apenas por sua
materialidade tomada enquanto formas construídas no espaço, mas também nos papéis
sociais que estes imprimem, possibilidades de experiência, e/ou os valores simbólicos
que estão agregados ao desenho urbano.
Caio Meira aponta, em entrevista a Rodrigo de Souza Leão, que vê sua poesia
como fruto de um corpo-a-corpo com a cidade (MEIRA 2013 p.161-162), e é
justamente nas possíveis configurações entre essas duas instâncias em constante
ressignificação que nos deteremos nesse capítulo. Trata-se de uma luta corporal com um
sistema de organização do espaço que inaugura um ambiente linguístico específico e
dinâmico para sua própria expressão. Corpo e cidade são, em certa medida, sempre
negociáveis no transito urbano, e nos interessa especificamente as diferentes formas
pelas quais a poesia dá conta dessa negociação.
Há um certo equilíbrio, nesse sentido, entre a presença do corpo do poeta e do da
cidade; eles se tocam, se transformam e se ressignificam mutuamente. Os possíveis
desequilíbrios entre eles aparecem, por exemplo, em poéticas como a de Nicolas Behr,
onde Brasília se mostra como um projeto de sufocamento da experiência corporal da
cidade, de forma que todos os traços que poderiam evocar um contato físico são
relegados ao segundo plano de uma ordem que se legitima pela visualidade.
A poesia de Caio Meira, por outro lado, parece trazer uma sinestesia anterior à
partição dos sentidos, constatando o sem-limites do corpo que se alarga sensorialmente
4 Utilizamos a expressão para abranger todas as possibilidades de releituras que desapropriariam um
aspecto puramente fisiológico do corpo; e ao mesmo tempo, resguardar o sentido de unidade orientada
que condiz com a acepção biológica do corpo.
43
a partir dos seus contatos com a cidade, bem como uma incapacidade corporal-
expressiva para dar conta de uma ordem tão complexa e dinâmica quanto a cidade.
A partir dessa releitura e ampliação da zona de contato com a cidade, os próprios
estímulos sensoriais podem ser (e comumente serão) relidos como limitadores de outras
aproximações possíveis. Instaura-se assim uma busca por alternativas que contornem a
mediação prévia de uma vivência dessensibilizada, de forma que se dê um contato
“mais real” com a cidade através de uma estratégia de hipersensibilização.
Trazemos de volta, assim, a vertigem da poesia de Adriano Espínola, contrastada
agora com Caio Meira, observando como, mesmo a partir da despersonalização
máxima, quando a cidade parece tomada fora de qualquer mediação, ambos os poetas
deixam traços de uma subjetividade estilhaçada, incrustrada na paisagem urbana. Cabe
nesse sentido, nos determos nas diferentes configurações desse sujeito instável, que
figura ora como uma tentativa de dispersão num cenário vertiginoso, ora parecendo
ressurgir reagrupado a partir de fragmentos mnemônicos caóticos.
Finalmente, cabe nos determos numa última alternativa, abordada por Adriano e
Caio, na qual a alternativa para incorporar os diversos estímulos da cidade,
simultaneamente, faz da própria individualização um processo arbitrário demais. A
solução passa a ser, assim, uma multiplicação das vozes personativas, o corpo passa a
ser plural, não se moldando mais num retrato específico, mas se tornando uma série de
retratos, multiplicando uma imagem numa rede dinâmica de significados.
Assim que as alternativas poéticas assumem um contato tão estreito com o
dinâmico que não permitem mais falar de um recorte específico, ou de um olhar sobre a
cidade, mas apenas das múltiplas possibilidades de olhares, nosso ciclo se fecha,
indistinguindo corpo e cidade. Nessa configuração final onde o contato com a cidade, de
tão dispersivo que é para a subjetividade, impossibilita a constituição de um corpo ou de
uma cidade, o contato corporal passa a ser relido como apenas uma das possibilidades
de figuração de um choque que é, em si, discursivo.
Assim, como no cap. 1, dividimos este capítulo em instâncias opositivas que
permitem a comparação dos poetas em suas escolhas formais e temáticas, bem como nas
implicações destas. Priorizamos esses pontos de contato pela possibilidade de
constituição de uma linha que conceda ao capítulo uma certa linearidade.
44
II.1 Constrição e flanêrie
Uma cidade que não permite caminhar
não é também uma cidade que nega uma
morada para a mente? Podemos estar nos
dirigindo, literalmente dirigindo-nos, para a
loucura simplesmente por não cuidar dessa
necessidade humana fundamental de caminhar.
(HILLMAN, 1993 p.53)
O contato entre sujeito e cidade poderia, conforme dissemos, ser visto como a
configuração do equilíbrio entre uma subjetividade se expandindo e/ou retraindo e o
ambiente linguístico urbano que a cerca. Diferentes configurações poderiam gerar
imagens de um sujeito em expansão, multiplicado pelos choques e sensações próprios
da urbe moderna, ou limitado em um número restrito de experiências viciadas. Nesse
sentido, o ambiente pode apresentar diferentes índices de constrição, seja pela clausura
física, seja por mecanismos de controle e condicionamento.
Escolas, hospitais, prisões, todos mecanismos disciplinares clássicos analisados
por Foucault em seu Vigiar e punir (FOUCAULT, 1987) poderiam ser descritos como
espaços onde a equação se encontra desbalanceada; a ordem se mostra forte demais
privando as possibilidades do sujeito de se estender para além do espaço ao qual é
designado dentro de uma ordem reguladora pré-concebida. Tais espaços parecem se
moldar à semelhança de uma máquina, norteados por conceitos como funcionalismo e
eficiência, e buscam imprimir esse mesmo tipo de universo simbólico aos que se
encontram em seus espaços.
Não seria uma extrapolação ver todas as formas de organização do espaço
segundo um traçado específico como formas de imprimir uma função, ou de moldar um
horizonte previsível de manifestação das pulsões humanas. Um projeto de organização
sempre atravessa os mesmos mecanismos analisados por Foucault: o esquadrinhamento,
a matriz onde cada coisa pertence a um lugar específico e deve, ali, desempenhar um
papel, bem como um mecanismo de controle onde o que não cumpre seu papel
designado recebe a taxação de “fora do lugar”, e sofre, por tal, sansões específicas
(FOCAULT, 1987 p.130-136).
45
Por trazer o planejamento do espaço na macroescala de uma cidade, temos em
Brasília um território único para explorar essa determinação de um projeto urbano sobre
a atividade humana. Baseado numa profunda racionalização do espaço, poderíamos até
mesmo traçar paralelos entre passagens nas quais Foucault identifica elementos comuns
aos mecanismos disciplinares como o quadriculamento, e a localização imediata dos
corpos – “espaços que realizam a fixação e permitem a circulação; recortam segmentos
individuais e estabelecem ligações operatórias, marcam lugares e indicam valores”
(FOUCAULT, 1987 p.132) - e trechos de escritos de Le Corbusier conceituando o ideal
que acabou por erigir Brasília “cada função sua deve ocupar uma área especializada,
atendendo a quatro grandes funções: habitar, trabalhar, locomover-se, cultivar o corpo e
o espirito” (APUD FURIATI, 2007 p.27).
Esse paralelo entre a diagramação do espaço em Brasília e a estrutura setorizada
de um grande mecanismo disciplinar é largamente aproveitado pela poesia de Nicolas
Behr. O poeta parece reler o projeto do Plano Piloto como um desequilíbrio na dialética
cristal e chama, ironizando o predomínio da racionalização na estrutura da cidade.
Encontramos em sua obra uma espécie de constrição, trazida não pelo estreitamento
espacial, mas sim por uma ordem rígida que se ampara nos espaços abertos e no livre
fluxo por caminhos preestabelecidos para sufocar o ir e vir propriamente dito, tal qual
nos adianta Bachelard em seu A poética do espaço, alertando sobre a claustrofobia
possível nos espaços abertos (BACHELARD, 2008 p.223-234).
A contraposição com essa “ordem eficiente” se dá, naturalmente como uma
tentativa de “re-balancear” os dois corpos, pois, como define Furiati: “Fechado em si
mesmo pelo modelo da cidade, o poema capta o movimento de expansão do “eu” que
quer se libertar” (FURIATI, 2007 p.29). A busca por uma fuga, por um interstício que
permita ao sujeito ir além da função que lhe é atribuída em um específico setor se
mostra como uma marca perene na poesia de Nicolas:
Não consigo
sair destas palavras:
setor comercial sul
em que banco eu pago
pra sair do
setor comercial sul?
46
em quantas prestações
eu saio do
setor comercial sul?
você quer 30%
do meu salário
pra me livrar do
setor comercial sul?
dois litros do meu sangue
todos os dias
pra me tirar do
setor comercial sul?
pra sair do
setor comercial sul
eu faço qualquer negócio
só não vendo a alma
(BEHR, 2007 p.64)
Ressaltamos no poema, a tentativa desastrada de fuga, não do setor comercial sul
enquanto espaço físico, mas da própria ordem setorizada, isto é, da designação de papéis
eficientes dispostos por uma ordem racional, talvez o aspecto mais foucaultiano no
projeto de Brasília. Nicolas lança mão de alternativas sacrificiais que lhe paguem a
fuga; porém, aí o intuito se mostra ineficaz, pois as alternativas todas remetem ao
panteão de símbolos burocráticos que constituem como que uma metonímia de Brasília:
taxas de banco, prestações, impostos, porcentagens do salario, e até a extrapolação
máxima de um pagamento em seu próprio sangue, refletem uma realidade de pagamento
de taxas que já está entranhada e que é parte da mesma ordem setorizante, econômica e
burocrática da qual se tenta escapar.
É interessante ressaltar, nas últimas três estrofes o crescendo final, partindo de
um sacrifício corporal, em sangue, e esgotando-se no nível anímico, instância ainda
preservada no embate com a cidade. Essa irrupção final de uma instância anímica como
salvaguarda que parece ainda distante do vocabulário burocrático, parece reconhecer a
alma como elemento que se opõe “naturalmente” à arquitetura da capital.
47
James Hillman, em Cidade e alma (HILLMAN, 1993), aponta a influência da
arquitetura das cidades modernas na configuração da psique, mostrando como o
planejamento do espaço se manifesta também nas imagens pelas quais a psique
reconhece as mais diversas experiências humanas. Hillman aponta, nesse sentido, para
uma série de ancoragens imagéticas possíveis, providas pela cidade, para a construção
da imagem de alma. Ressaltamos de seu levantamento as imagens de profundidade,
geralmente construídas a partir de matizes, níveis e diferentes estratos da estrutura de
circulação: “As ruelas da cidade, enquanto lugar da profundidade, são a parte obscura
da cidade, o mistério da cidade, o coração” (HILLMAN, 1993 p.39).
É interessante, nesse sentido que Brasília se mostra não apenas como uma cidade
que aponta um descompasso entre o corpo humano e o corpo urbano, mas também
como uma cidade composta apenas de superfície; não permitindo nenhuma imagem de
profundidade:
o traço equivocado do arquiteto
é superfície
papel ofício é superfície
a superfície da catedral
é superfície
grama também é superfície
a solidão da superquadra
é superfície
o volume do bloco é superfície
o lago do paranoá, mesmo seco,
é superfície
Brasília é superficial
( BEHR, 2009 p. 89)
Brasília não possui em sua arquitetura qualquer imagem razoável para a
profundidade. Mesmo em objetos que trariam por sua estrutura geométrica uma noção
de terceira dimensão, a arquitetura se reveste de uma priorização da perfeição das
formas pelas suas superfícies. É interessante ressaltar o quanto os blocos e as
superquadras, estruturas arquitetônicas que se opõem à rua, aparecem no lugar desta
como sua alternativa apenas superficial.
48
A morte da rua é um objetivo manifesto na arquitetura de Brasília. Banindo a rua
e o espaço de trânsito pedestre (relegado a uma atividade obsoleta frente à autopista), a
capital sufoca diversas possibilidades de uma identificação anímica com sua estrutura
(voltaremos a esse ponto em seguida), relegando as imagens de alma (como na poesia
de Nicolas) a uma dimensão de profundo isolamento.
No que tange a dimensão corporal, a intervenção da arquitetura na experiência
cotidiana parece ainda maior. Em sua excepcionalidade de autopistas, eixos e primazia
do deslocamento automotivo, Brasília inibe – pelo menos em sua arquitetura oficial – o
contato corporal entre os transeuntes. A morte da rua é lida assim pela poesia de Nicolas
como uma frustração corporal (e diversas vezes especificamente erótica) de um desejo
de contato com a cidade:
bicos de seios
apontam a direção
do monumento na
cidade plana
sem seios
sem desejos
(BEHR, 2004 p.40)
Brasília, por seu aspecto cristalino, não parece oferecer alternativas de contato
corporal, de forma que o ímpeto erótico na poesia de Nicolas Behr se mostra como um
desejo frustrado, como uma pulsão própria à chama que não encontra espaço possível na
capital cristalina. Essa inibição do erotismo pela arquitetura geométrica e superficial
aparece ainda na erotização que encontra na sobreposição do corpo feminino com o
corpo urbano, uma forma de dar vazão ao desejo:
naquela noite
suzana estava mais w3
do que nunca
toda eixosa
cheia de L2
49
suzana,
vai ser superquadra
assim lá na minha cama
(BEHR, 2007 p.76)
Nicolas erotiza a cidade ao conferir-lhe outro corpo, substituindo os adjetivos
usuais pelas imagens clássicas da cidade – nomes de autopistas, superquadras etc. -
revestindo-as assim de carga erótica. É interessante como a sobreposição da cidade e do
feminino se dá numa imagem que mantém ainda o desejo não realizado. Mesmo quando
projetada num outro corpo, a arquitetura de Brasília ainda é ícone da frustração erótica e
da irrealização do contato corporal.
A relação entre corpo e alma de Brasília pode ser, portanto, lida a partir de um
duplo viés na poesia de Nicolas Behr: de um lado, a cidade é puramente corporal na
medida em que não oferece imagens para uma identificação anímica, e do outro,
Brasília frustra o contato corporal e a pulsão erótica, mantendo-se como uma cidade
infértil ou castrada: “Brasília / tal qual foi concebida // sem pecado original” (BEHR,
2004 p.6).
Cabe ressaltar que na dupla possibilidade de leitura entre corpo e alma, a morte
da rua – sintetizada nas autopistas, superquadras e blocos residenciais - está sempre no
centro da questão. James Hillman aponta, nesse sentido, além da importância das ruelas
para a identificação anímica, sua importância para a experiência corporal da cidade a
partir do contato e do choque entre sujeitos em seu ir e vir:
“Se a cidade não tem lugares para pausas, como é possível o encontro?
Passear, comer, falar fofocar. Esses lugares onde podemos fofocar são
incrivelmente importantes na vida da cidade. [...] Também precisamos de
lugares para o corpo. Lugares onde os corpos possam se ver uns aos outros,
encontrar-se, tocar-se, [...] Isso enfatiza a relação do corpo com a vida diária
da cidade, levando nosso corpo físico para a cidade.” (HILLMAN, 1993
p.41)
A centralidade da rua na construção das imagens corporais e anímicas é tanta
que, a partir da otimização do fluxo dos carros nas autopistas, Nicolas flagra Brasília
50
como uma espécie de não-cidade, por não configurar uma zona possível de encontro de
pessoas:
eixos que se cruzam
pessoas que não se encontram
(BEHR, 2007 p.89)
A justaposição dos dois versos traz um paralelismo antitético entre o encontro
dos eixos como uma marca fundadora da cidade5 e o isolamento das pessoas em fluxo
pelas autopistas. O poema não focaliza uma cena específica em seus dois períodos
nominais, mas constata uma tendência geral ao retraimento do contato humano como
consequência do trânsito exclusivo para os automóveis. Podemos ainda perceber que a
escolha cuidadosa do vocabulário abre uma nova possibilidade de sentido, pois se
tomarmos a acepção coloquial do verbo cruzar, que indica uma aproximação efêmera,
essa se opõe à acepção de encontrar, que resguarda um demorar-se impróprio ao trânsito
(cabe aqui retomarmos a interrogação “Se a cidade não tem lugares para pausas, como é
possível o encontro?” de Hillman). Nesse sentido, é como se o cruzamento dos eixos
inaugurasse o único gesto possível ao sujeito em trânsito em Brasília, que é cruzar com
muitos, mas não encontrar, de fato, ninguém.
O impasse da morte da rua se mostra ainda mais patente se compararmos o
retrato feito por Nicolas, com o que encontramos na poesia de Caio Meira, para o qual o
ambiente que se oferece é o do Rio de Janeiro caótico, cuja malha urbana se assemelha
a um acúmulo de cidades soterradas nas diversas reformas urbanas ao longo de quatro
séculos.
“Fachadas correm por minhas pernas, no ritmo do sangue batido
no passo,
contenho a colisão, o encontrão do ombro com o dia,
começo um arrastão no meu pulso,
sotaques fremem na curva da bacia, sedução e apetite para a mão
(MEIRA, 1998 p.25)
5 Em diversos outros poemas Nicolas ressalta (em releitura ao Relatório do plano piloto de Brasília)
como o cruzamento dos eixos constitui um marco zero, ou uma tentativa de princípio místico para a
cidade: “Brasília nasceu / de um gesto primário / dois eixos se cruzando / ou seja o próprio sinal da cruz //
como quem pede bênção / ou perdão” (BEHR 2007, p.56)
51
Não apenas na contraposição óbvia entre a abundância de choques na cidade de
um e o isolamento na de outro, mas a própria escolha pelo foco no pedestre parece
tributária de objetivos específicos e antagônicos: se em Caio a estética pedestre aparece
como uma forma de preservar o que para este é a real experiência da cidade - o choque e
a troca-, em Behr essa escolha se justifica pelo desprezo para com uma cidade planejada
para matar esse espaço. A opção pelo olhar pedestre na poesia de Caio é, dessa forma,
convergente com a experiência cotidiana da cidade, ao contrário da poesia de Nicolas,
na qual, conforme nos aponta Gilda Maria Queiroz Furiati, o que se verifica é uma
recusa “em replicar a maquete do plano piloto” (FIRUATI, 2007, p.34).
O que parece ainda estar no centro da oposição entre os poetas é a releitura da
experiência fundadora da flânerie. Presente já nos estudos pioneiros de Benjamim sobre
Baudelaire (BENJAMIM 1989 p.44-52), esta parece ser um marco ainda central para a
poesia dos dois poetas, motivo pelo qual a impossibilidade de sua experiência acarreta
configurações de uma não-cidade.
Nesse sentido, a cidade de Caio não poderia ser mais distante da de Nicolas; a
constrição provocada pelo espaço urbano não é verificável como decorrente de um
planejamento do traçado das ruas se contrapondo ao contato humano, a cidade é um
outro corpo tão volúvel quanto o do sujeito. O contato entre sujeito e cidade ainda é
marcado por uma tensão, mas não encontramos o mesmo desequilíbrio observado em
Brasília; na poesia de Caio o embate corporal é antes uma renegociação na qual sujeito
e cidade estão constantemente se expandindo e retraindo um em função do outro.
2
Não sei mais por que rua crescer
se me alongo no engenho do pavimento ou no esquivo do beco
se demoro destrezas à luz do dia ou me turvo em canhestro
vacilo entre surdinas, entre portas e janelas, precipitados do sangue
e da tinta de jornais
ladeiras galgam e declinam meu olho, túneis correm e recuam de
meus pés
em minha roupa, feita de colisão e embaraço, a marca hasteada da
batalha: desenvoltura no asfalto. (MEIRA, 1998 p.55)
52
O corpo enquanto zona de superfície e contato com o urbano aparece, em Caio,
como uma zona sem fronteiras definidas. É a partir do choque e da sensação que o
corpo se alonga e se percebe. A realidade corporal só é conferida a partir de um dado
sensível, que se dá, sempre, a partir da cidade e no limite com esta. O corpo do poeta e o
da cidade não podem, dessa forma, ser pensados separadamente a partir do momento em
que, para a possibilidade de percepção da urbe, um contato corporal já tenha que ter se
dado. Ambos só existem em um jogo relacional e dinâmico, como possibilidades de
individualização mais ou menos expansiva de um mesmo contato.
Essa troca entre corpo e cidade é precisamente o desejo corporal obsessivo que
se mostra presente no revestimento erótico da cidade em Nicolas Behr, desejo este que
nunca é concretizado graças à ausência de uma zona de choque corporal. A morte da rua
se dá como marca de um desejo corporal sem possibilidade de satisfação. É sintomática,
nesse sentido, a marcante presença do corpo que encontramos em sua poesia quando se
projeta para além do horizonte de Brasília; em sua poesia naturalista - ou dendrofílica -
e na memorialista, quando se remete à infância em Diamantino.6 Se ampliamos nosso
olhar para sua obra fora da obsessão central sobre a capital, Nicolas se revela como um
poeta marcadamente corporal, fato que faz do desejo frustrado pela cidade um ponto
ainda mais importante.
É possível ainda lermos a oposição da poesia urbana de Caio Meira e Nicolas
Behr a partir da contraposição da experiência específica do contato com a rua através de
uma revisitação da experiência da flânerie. Em Caio a experiência é de uma
corporalidade máxima, na qual a conjunção entre corpo e cidade se dá num sentido no
qual a urbe vivifica e dinamiza os limites do corpo, amplia-o ou constringe a partir do
tato. Em Nicolas, por outro lado, temos uma experiência anti-corporal, onde a falta de
contato físico com a cidade tomada enquanto choque faz do sujeito uma espécie de
corpo frustrado, buscando uma experiência numa cidade que não a abriga e encontrando
apenas a possibilidade da contemplação distante dessa ordem cristalina.
6 É interessante observar como os dois temas se põem também como resistência à ordem de Brasília, pelo
diálogo que travam com essa. Seja no resgate infantil da vivência em Diamantino, seja na evocação da
vegetação do serrado, a aparição de imagens corporais, por contraste, corrobora com a fantasmagoria de
sua ausência em Brasília.
53
II.2 Corpo sensível
De manhã, meu fígado gela a calçada;
a noite prossegue mordendo meu pulmão de granito
(MEIRA, 2008 p.65)
Se Brasília frustra o contato corporal dos seus moradores, cabe ainda
ressaltarmos as especificidades provenientes do processo pelo qual o corpo se descobre
sensível na sua convivência. A reincidência da superficialidade, da arquitetura e das
formas, trazem em si uma predominância do aspecto visual na cidade de Brasília que
nos dá um ponto de partida interessante para intuirmos uma relação entre a visão, como
uma experiência fundadora da tradição ocidental, e o processo de planejamento urbano
como uma tentativa radical de reduzir a cidade a quadros funcionais idealizados.
A esse respeito, Marshall McLuhan nos aponta a relação entre a soberania da
racionalidade e a naturalização do código escrito como uma extensão do corpo humano,
processo pelo qual a predominância do aspecto visual desencadeia uma hegemonia do
linear e causal como estruturas intrínsecas ao próprio pensamento.
Em Os meios são as massa-gens (MCLUHAN, FIORE, 1969), McLuhan e Fiore
apontam o quanto a escrita influenciou a formação do pensamento racional como nós o
conhecemos. Nesse sentido, vale atentar para o contínuo de racionalização decorrente
da internalização do código escrito apontado pelo autor:
A pena de ganso pôs fim à palestra. Ela aboliu o mistério, produziu a
arquitetura e as cidades, trouxe estradas, exércitos e a burocracia. Era a
metáfora básica com que começava o ciclo da civilização, o passo das trevas
para a luz da mente. A mão que enchia a página de um pergaminho construía
uma cidade. (MCLUHAN, FIORE, 1969 p.76)
Cabe ressaltar que o recorte feito por McLuhan da cidade é especificamente o
que nessa é uma continuação do pensamento lógico-tipográfico. Os choques
inesperados, rotas absurdas e ruídos ineficazes não estão, naturalmente, ligados com
54
esse traçado planejado da cidade, pois constituem exatamente o que, pelo planejamento
e otimização, pretende-se controlar.
A predominância visual como eixo de organização se alinha, assim, com tudo o
que na cidade identificamos com o cristal7, segundo a imagem de Renato Cordeiro
Gomes, e por tal, quanto maior o caráter cristalino da cidade, mais ela tende a trazer as
marcas de uma cultura visual e mais tende a recriar e realimentar apenas essa
experiência.
É sintomático, nesse sentido, a experiência do choque ser inibida em Brasília,
conforme vimos, não apenas pela falta de contato corporal com a cidade, mas também
pelo próprio caráter de objetivação inerente à ordem visual, que, diferentemente da
experiência tátil, sempre instaura (e depende de) uma distância mínima entre objeto e
observador. Não faltam, nesse sentido, ocorrências na poesia de Nicolas Behr que
comprovam a predominância de verbos visuais para a apresentação da cidade: “me
lembrei quando vi Brasília lá de cima”, “o sr. Já nos mostrou os blocos, as quadras, os
eixos, palácios...”, “senhores, essa cidade é uma aula de geometria”, etc. Porém a
experienciação da cidade se dá predominantemente pela visão mesmo quando ela não é
apresentada por verbos visuais, pois a natureza das imagens prioriza as formas e
macroestruturas, o olhar se baseia sempre num distanciamento a partir do qual a cidade
parece com uma grande maquete de singular arquitetura.8
A visão, assim, como principal via de acesso e produtora de imagens da cidade
(mesmo quando seus signos não são reconhecidos), é índice de um desequilíbrio
sensorial que está na base da cidade, e que é frequentemente denunciado por Nicolas:
A cidade é isso mesmo
que você está vendo
mesmo que você
não esteja vendo nada
(BEHR, 2007 p.82)
7 Ainda sobre os conceitos de Renato Cordeiro Gomes, é interessante observar como a sua metáfora da
cidade como um palimpsesto guarda estreito diálogo com o trecho citado de McLuhan. Porém, naquele
toda produção de sentido se inscreve como código na cidade, e por ora, nos interessa a distinção sensorial
na representação dos dois poetas e sua relação com a soberania do aspecto visual e tipográfico. 8 Vale ainda ressaltar que o predomínio visual alia-se ainda à frustração do contato tátil na constituição de
uma perspectiva erótica-visual. A cidade estimula a excitação visual, mas não sacia corporalmente o
desejo, mantendo a experiência corporal restrita à contemplação.
55
A descoberta sensorial da cidade parece sempre partir da ordem visual
legitimada pela arquitetura, motivo pelo qual Nicolas, em diversas ocasiões, busca
alternativas para redescobrir Brasília a partir de outras experiências. O poeta aproxima-
se assim de uma espécie de autonegação tipográfica por reconhecer na escrita as
mesmas raízes tradicionais de uma cultura letrada e visual. O canal comunicativo
literário parece assim inadequado, e efetua-se um diálogo com a tradição oral como uma
contraposição subversiva, presente em releituras de chavões, lugares comuns e quebras
de paradigmas típicos da fala.
Os principais aspectos creditados, dessa forma, ao paradigma marginal, tomado
como um repúdio às poéticas canônicas numa aproximação com a oralidade e a
exclamação cotidiana, podem ser lidos, na poesia de Nicolas Behr, como um índice de
contraposição à arquitetura visual de Brasília, através de uma polarização sensorial. A
busca pela cidade descobre, assim, na fala corrente um substrato linguístico que subjaz à
ordem imposta pela arquitetura e encontra a matéria-prima para subversão e
ridicularização dessa mesma ordem:
paiê,
que monumento é aquele?
Aquele é o monumento
ao monumento desconhecido
(BEHR, 2007 p.71)
O poema flagra o instante de diálogo coloquial entre pai e filho no qual a cidade
é trazida como um traço visual distante evocado pela fala. O monumento, conforme nos
diz Renato Cordeiro Gomes, é “a mais completa autorrepresentação da cidade e sua
história” (GOMES, 2008 p.28), e se reveste aqui com todo o caráter visual
predominante em Brasília: é alheio ao fluxo do dia-a-dia, e nos é apresentado como um
retrato da ordem burocrática que se realimenta e autocelebra, mas não produz,
efetivamente, nada. Esse mecanismo circular é denunciado e exposto ao seu ridículo
pela fala cotidiana que assume o primeiro plano em resposta à predominância visual da
cidade, e faz de Brasília um distante e inútil monumento a si mesma:
56
Arte
pra arquiteto ver
poema
pra analfabeto ler
(BEHR, 2009 p. 64)
É interessante como, nesse poema, Nicolas apresenta os dois polos da tensão
estética e sensorial que estão em jogo em sua leitura da cidade. De um lado, temos a
arquitetura de Brasília, como um templo intocável que se oferece apenas à visão; e do
outro, o poema que se quer tão colado à oralidade que possa ser lido até pelos que não
leem. É interessante como Nicolas não deixa margens para uma relação semântica
inequívoca entre as duas estrofes, elas mantêm apenas o paralelismo sintático como
traço de identificação, mas nenhum conectivo que defina uma relação semântica
específica, mantendo a tensão entre os dois códigos em suspenso.
Os dois códigos tentam se reler e ressignificar numa espécie de confronto
discursivo onde o “código oficial” é relido pela fala, e o clandestino é agora escrito.
Dessa forma o próprio retrato sensorial da cidade se dá como zona de resistência e
confronto. Nicolas busca resgatar nos interstícios possíveis, estímulos que permitam um
retrato diferente, que fuja da cristalinidade da arquitetura oficial e tenha por base a
galhofa da fala popular.
Se a cidade em Nicolas pode ser tomada como um somatório de estímulos que se
situa num eixo auditivo-visual de resistência a uma ordem estabelecida, é marcante sua
contraposição com a poesia de Caio, no que esta mantém de polivalência sensitiva e
impossibilidade de definição de qualquer eixo sensorial no qual se mova.
Diferente da descoberta sensorial como opositiva à ordem da cidade, em Caio as
imagens buscam dissolver oposições, fazendo do corpo um aparato sensível anterior às
categorizações e integrado ao fluxo da cidade. As imagens não se definem em um
código ou sentido específico, mas parecem impressionar o corpo como um todo:
4.
Concebo um corpo de acolhimento
abrigo açodado, hospedeiro de praxes e uso
57
cadeira gelada de bar, calçamento de mármore gratuito: no couro e
na carne espigados contra a grade, os ângulos da habitação
sobre meus ossos, dentro do quarto rangendo abusado, o peso
improrrogável, a pronúncia copiosa e ampla das máscaras
de pernas abertas, retomo a viagem (MEIRA, 1998 p.59)
Os verbos de “apresentação” das imagens em Caio dificilmente se esgotam em
um aspecto sensorial apenas; a cidade não se ergue sobre uma ordem específica. A
partir do contato sem mediações entre os dois corpos, as imagens parecem lançar suas
bases sobre uma sinestesia que desconhece os sentidos como categorizáveis, agindo
antes dessa distinção e recebendo o discurso urbano de corpo inteiro.
De mesma natureza dessa imprecisão sinestésica das imagens é a dificuldade de
delimitação de órgãos sensoriais pela cidade. O corpo parece dilacerado em fragmentos
de vísceras e sistemas, todos experimentando a cidade através de verbos pouco usuais
para tal, como “metabolizo rostos e teorias” (MEIRA, 2003 p.15), “do calor que vibra
esses ossos” (MEIRA, 2003 p.19), ou “na carquilha do rosto, o dia rugoso convém de
corpo inteiro: costelas e cotovelos, pentelhos e mamilos” (MEIRA, 1998 p.61). Há uma
desautorização do sensível em seu sentido habitual, da pele como detentora única do
tato, e do olho como único órgão visual.
É interessante observar ainda sobre a nomeação dos órgão sensoriais o quanto o
vocabulário de Caio não se ampara nunca em abstrações ou escolhas simples, conforme
nos aponta Alberto Pucheu, em seu ensaio “O aventureiro do oco” (PUCHEU, 2013
p.222). Caio articula fragmentos corporais muito específicos, redescobrindo e
reconferindo materialidade a órgãos pouco usuais por seu prosaísmo, como o pâncreas
ectópico ou a esofagite de refluxo.
Se em Nicolas identificamos um confronto entre os sentidos como análogo ao
confronto entre os discursos oficial e subversivo, em Caio não encontramos, pelo
mesmo princípio, nenhum intento opositivo entre os discursos do poeta e da cidade; o
código utilizado por ambos é semelhante, o sujeito se insere no discurso da cidade numa
aproximação infinita, como podemos observar em “Discurso afásico no centro da
cidade”:
essas perturbações chegam por todos os lados e meios
58
a garganta sempre interrompida por alguma pancada, os olhos abalroados nas
calçadas, as vitrines interpondo luminosidade e temor
não, nenhuma imagem poderá reter, e permanece desarticulado sob a língua,
e se subtrai das fotografias ou vaza de qualquer disposição solidária
padeço dessa incerteza primitiva, deambulando da suspensão de qualquer
afirmação à remitência da frase dos populares oferecendo suas bugigangas
por que efeito ótico, por que alteração mórbida, por que afecção sonora essas
disparidades me conformam
eu poderia não ter um olho, ser banguela, maneta, capengar, mijar sangue, ter
estigmas pelo corpo
poderia comer vidro, iludir passantes, fazer embaixadas ou simplesmente
afixar num pedaço de papelão os garranchos da minha biografia
por vezes a coisa é simples e basta querer, basta anunciar, basta um gesto ou
produzir qualquer sinal compreensível para ser inserido na vigência ou no
refluxo da multidão
mas não, os rumores são logo abafados, dependurados do lado de fora das
bancas de jornal, apregoados em panfletos que não sobrevivem por mais de
dez passos
e a indignação comentada nas filas dos caixas, o suplício dos pedintes, a
reverberação do calor corporal ou apenas a deriva transeunte da tarde de
segunda-feira, todo clamor encontra, em meio a seu mutismo, sua
consumação
(MEIRA, 2003 p.29-31)
No poema acima, encontramos uma cena clássica da flanêrie; o sujeito
perambula pela cidade sem direção, recolhendo fragmentos de discursos, e tentando,
inutilmente, isolá-los do fluxo contínuo de vozes. Aparece assim, como característica
intrínseca a esse discurso, a afasia, quadro clínico definido como “enfraquecimento ou
perda quase total do poder de captação, manipulação e por vezes de expressão de
palavras como símbolos de pensamentos” (HOUAISS, 2008). O sujeito não consegue
isolar os fragmentos, ou mesmo capturá-los numa imagem estável, eles estão sempre
escapando, assim como estão os próprios versos do poema, que frequentemente
constituem períodos que não possuem uma estrutura que feche consigo mesma: faltam
verbos complementos, sujeitos. É interessante como não se define se o discurso afásico
pertence à cidade ou é o resultado da tentativa de tradução poética dela, há uma
59
continuidade entre os discursos (aí incluso o do próprio poema) e não podemos
identificar definitivamente qual dos dois (ou se os dois) é afásico.
É interessante como, diferente de Nicolas, o que parece mais caro a Caio é a
anulação da distinção entre os diferentes discursos; todos parecem tomados numa
mesma corrente contínua de mutismo e consumação. A impossibilidade de identificação
de um eixo unidirecional para se aproximar do discurso da cidade produz imagens que
não possuem demarcações claras tanto sensorialmente quanto entre si, nesse sentido a
sinestesia já abordada, corrobora com o caráter imersivo inerente ao sujeito na poesia de
Caio Meira.
Há também, na escrita de Nicolas, uma experiência de semelhante imersão, onde
o vocabulário se afasta do universo simbólico burocrático dos clipes, grampeadores e
ofícios, e reelege uma nova série de símbolos de ordem mais popular, como o pastel, a
escada rolante e o caldo de cana. Ao tratar da rodoviária de Brasília, o contato com a
cidade não se pauta mais pela consolidação da distância, mas permite uma imersão na
experiência corporal completa:
Desço aos infernos
pelas escadas rolantes
da rodoviária de Brasília
meu corpo boiando
no óleo que ferve
um pedaço do teu coração
num pastel de carne
(BEHR, 2007 p.65)
É interessante como o local escolhido para a subversão da ordem visual, a
rodoviária, constitui um local onde, tal qual sugerido por Hillman, temos uma noção de
profundidade (trata-se de uma plataforma que se situa abaixo do cruzamento do eixão
com o eixo monumental), e ao mesmo tempo, contato entre pessoas. Se podemos situar
a plataforma rodoviária de Brasília como um espaço do trânsito cabe ressaltar que ele é
marcado antes pelos itinerários caóticos do que pelo planejamento das autopistas; não
encontramos também, em sua mistura, o mesmo elemento de setorização verificada no
restante da cidade.
60
É sintomático que não encontremos nos poemas sobre a rodoviária verbos de
apresentação visual. Ela não se encontra num eixo sensorial tão bem definido quanto no
embate com a cidade, mas sim numa espécie de eixo mítico, lembrando uma espécie de
inferno cristão, em contraposição com o celestial império cristalino de Brasília
(novamente a localização no subsolo colabora com a releitura de Nicolas). A escolha de
Nicolas, nesse sentido, é clara; o que interessa é precisamente a afecção, o contato, a
recuperação de um espaço onde a cidade pode ser vivida para além da contemplação
monumental. “minha plataforma política/ é a plataforma da rodoviária” (BEHR, 2007
p.67).
A caracterização da cidade a partir da descoberta da sensibilidade apresenta
assim características muito diferentes em Caio e Nicolas. Neste último a percepção da
cidade é polarizada por um confronto entre dois códigos, assumindo uma combatividade
e uma recusa de inserção na ordem arquitetônica da cidade, que só é contornada num
espaço específico, onde a oposição à ordem cristalina permite uma imersão que não se
pauta por uma oposição. Em Caio, os estímulos da cidade antes de mais nada tem uma
tendência subvertora dos limites entre os sentidos e os corpos, de forma que a
descoberta do corpo torna-se uma forma de constatação da inserção deste num mesmo
fluxo discursivo presente em toda a cidade
61
II.3 Hipersensibilidade e dilaceramento
ademais, à proa de qualquer profusão,
viver implica esquecer a maior parte dos rastros
e concentrar-se no balanço imediato do corpo
(MEIRA, 2003 p.32)
A construção de imagens que fujam da experiência costumeira da cidade parece
uma preocupação central em quase todos os poetas que abordamos. Tal inquietação
pode ser lida como uma tentativa de subverter o lugar-comum da vivência da cidade,
tomado como uma espécie de amortecimento dos choques cotidianos que impede que a
urbe se torne um turbilhão de imagens desconexas.
Benjamim ressalta, em seus estudos sobre Baudelaire, o quanto a concepção de
uma vivência urbana depende necessariamente dessa “barreira sensorial” que filtra a
maior parte dos estímulos, fazendo da experiência diária da cidade antes uma
experiência acomodada do que uma sucessão alucinada de choques e traumas
(BENJAMIM 1989 p.108-110). A mesma leitura é reforçada por Richard Sennett, que
ressalta o quanto paralelamente ao crescimento do montante de informações com que o
cidadão entra em contato diariamente, desenvolve-se também uma capacidade de
desligamento dessa informação, processo visível no seu levantamento sobre o trânsito
pela cidade: “à medida que as vias são cada vez mais expressas e bem sinalizadas, o
motorista precisa cada vez menos se dar conta das pessoas e das construções para
prosseguir no seu movimento.” (SENNETT, 2010 p.17). A conclusão de Sennett é
muito semelhante à de Benjamim “o corpo se move de maneira passiva, anestesiado no
espaço, para destinos estabelecidos em uma geografia urbana fragmentada e
descontínua” (Ibidem.).
A gênese da maior parte das imagens tratadas pelos poetas se dá justamente a
partir de um deslocamento do lugar costumeiro da experiência, uma tentativa de
subverter o olhar já acostumado e trazer para o primeiro plano o que antes era barrado
pela percepção. Não basta, nesse sentido, se descobrir sensível, é necessário um
deslocamento da sensação anestesiada pela vivência consolidada.
62
Tal estratégia é mapeada de forma semelhante em um ensaio sobre a temática da
violência urbana na literatura brasileira, onde Karl Erik Schollhamer aponta o quanto a
hipersensibilidade parece um caminho natural de uma reconciliação com a sensação, ou
de uma metodologia para um deslocamento do estado anestesiado do qual se anseia
escapar:
É na relação entre sujeito, como corpo sensível, e a cidade como realidade
estética, que um confronto e uma simbiose novos se concretizam. Na
experiência crua e, frequentemente, penosa do urbano, o autor
contemporâneo percebe uma redenção possível da cidade enquanto realidade
humana. Nesta perspectiva encontramos, curiosamente, um resíduo
romântico num sonho latente de reconciliação com uma realidade alienada da
cidade através de um ‘mergulho’ naquilo que ela oferece de mais sensível
(SCHOLLHAMER, 2000 p.252)
O mergulho hipersensível guia-se por uma busca numa experiência mais
autêntica da cidade, como uma clara contramão do desligamento do espaço analisado
por Sennett. Lida nesse sentido, a trilogia do transporte urbano de Adriano Espínola se
mostra como um exemplo claro de deslocamento da vivência dessensibilizada. Adriano
escolhe como ponto de partida a experiência corriqueira do trânsito em um transporte
público pela cidade; tirando-o de sua vivência costumeira e buscando reter todos os
elementos que passam, impressões e visões que, numa corrida normal, passariam
despercebidas. A viagem pela cidade torna-se, assim, uma viagem de desaprendizado do
olhar, que se quer olhando tudo a primeira vez.
Engolir aos bocados o espaço da avenida e da vida,
com uma fome e uma tara subjetiva e insaciável.
Saltar com todos os sentidos
sobre o corpo ardente do instante!
-Excitação sadomasoquista de tudo,
esfregando-se em cio no meu peito aos pinotes!
(ESPÍNOLA, 1996 p.60)
63
Há, dessa forma, um esforço muito claro em absorver as imagens tal qual elas
impressionam a retina, prendendo-se mais nas impressões distorcidas pela velocidade
do que nas formas exatas que se poderia intuir que formaram o retrato. Nesse sentido, o
recorte visual feito por Adriano é semelhante ao de uma fotografia de longa exposição,
na qual o obturador foi deixado aberto por um longo período de tempo, enquanto se
percorria o seu trajeto pela cidade. A longa exposição tende a ressaltar as luzes mais
fortes e distorcer-lhes as formas por conta do movimento, gerando borrões de luz
característicos que acompanham o sentido do movimento feito pelo observador9. Esse
procedimento está no cerne de imagens como “Fortaleza, avenida de neon”, na qual a
distorção toma o primeiro plano nesse efeito especial tão comum na fotografia urbana.
Ressaltamos ainda como a longa exposição é basicamente uma forma de aproveitar por
mais tempo a sensibilidade do filme (ou sensor); pô-la sujeita aos estímulos luminosos
com menos barreiras, como uma justa analogia para a hipersensibilidade já citada.
O efeito da vertigem, ponto central na análise da poesia urbana de Adriano
Espínola, poderia ser lido, portanto, num paralelo com o paradigma central da
fotografia, exaustivamente explorado por Barthes em A câmera clara, e que se
resumiria como uma reprodução mecânica do que nunca mais se repetirá (BARTHES,
1984 p.13). O mecanicismo da reprodução assemelha-se à tentativa de não filtrar os
estímulos, e a fugacidade da cena é reforçada diversas vezes pelo desencadeamento das
imagens, tornado mais uma sobreposição caótica - “Tudo isso – solto – gestos
desgarrados do tempo.” (ESPÍNOLA, 1996 p.31) - do que uma progressão imagética
propriamente dita
A abertura dos sentidos às invasões da cidade não se dá, porém, como uma
anulação utópica do medium num retrato perfeito; o poeta não se anula em favor de um
falacioso retrato de uma realidade puramente objetiva. A fotografia de Adriano não é
documental, e interessa a ela retratar a distorção do sentido, de forma que não se busca
um retrato dos exatos elementos onde estavam, mas sim da impressão que causaram em
seu trânsito pelo campo visual. Encontramos, então, uma operação ambivalente em sua
“captura” imagética que não se define claramente entre a percepção, o reconhecimento e
a rememoração, de forma que a cidade passa a evocar traços mnemônicos diversos,
9Esta é a segunda analogia fotográfica que fazemos com a poesia de Adriano; e cabe ressaltar o quanto,
no cerne das duas está a evidente primazia da distorção imediata do fenômeno. Seja na macroestrutura do
poema, tomado como uma sucessão de fotografias urbanas desconexas, seja na construção interna das
imagens deformadas, interessa mais a Adriano a distorção das fotografias do que a fidelidade ao modelo.
64
lembranças da experiência subjetiva na cidade (conforme já citamos em seu flashback
de Nova Iorque), como uma matéria caótica que parece brotar à revelia da vontade do
poeta; uma camada discursiva já colada às impressões visuais mais cruas.
Cenas específicas, fragmentos de memória encontram-se pulverizados pela
cidade, como um material discursivo que parece ser recolhido pelo olhar por meio da
mesma operação que recolhe o neon ou os passantes. A corrida do carro ou do metrô
acaba descobrindo ao mesmo tempo o espaço urbano e uma subjetividade que está nele
incrustrada de forma inseparável:
Atravessar na memória as ruas por onde andei,
passageiro existencial sempre a 20 espantos e 50 centavos de mágoa
a bandeirada.
Na próxima à esquerda, dobrar há 15 anos
na 5ª. Avenida, subindo para o Madison Square Garden.
(ESPÍNOLA, 1996 p.37)
A pulverização dos traços mnemônicos pela paisagem da cidade, que, por essa
operação passa a não poder mais ser mapeada entre Fortaleza, Rio, e Nova Iorque, faz
do espaço urbano uma espécie de cartografia mnemônica do sujeito. Todo o material
que poderíamos identificar como uma irrupção subjetiva é colocado lado-a-lado com os
demais estímulos e recebe o mesmo tipo de tratamento fotográfico de desconexão e
distorção.
A tentativa de captar a cidade de todas as formas possíveis encontra então esse
impasse no qual o fotógrafo se vê revelado junto, incrustrado, na paisagem que retratou.
A hipersensibilização parece ser incompatível com o estabelecimento de uma barreira
ou um contorno que destaque o sujeito do cenário urbano, fazendo do retrato do outro
um processo também de reconhecimento, conforme já antecipado por Karl Erick, “a
extrema individuação da vivência urbana acaba no seu oposto, no apocalipse do sujeito
enquanto tal.” (SCHOLLAMER, 2000 p.255).
O tópico da dilaceração do sujeito no cenário urbano, um centro temático
relativamente comum na poesia que se volta para a cidade, é então revisitado por
Adriano de forma muito particular, através de um jogo de imagens emparelhadas numa
65
ciranda fotográfica na qual fragmentos da cidade e do sujeito são deixados para trás tão
rápido quanto surgem, deixando visível apenas os rastros distorcidos de seus
movimentos. O reconhecimento no retrato da cidade apaga a identidade do indivíduo
como um traço opositivo ao ambiente, borra seus contornos e faz do sujeito apenas uma
continuidade dos conflitos da cidade.
A perda desse caráter opositivo e, em especial, o apagamento das fronteiras entre
sujeito e cidade, possibilitam um diálogo com uma tendência à diluição na urbe que já
observamos na poesia de Caio Meira. Apesar de muito distante da vertigem
automobilística e da sobreposição vertiginosa de imagens que verificamos em Adriano,
Caio vai operar um dilaceramento dos limites estáveis para o sujeito semelhante.
Apesar de se tratar também de um deslocamento da sensação usual da cidade, a
poesia de Caio não se comporta da mesma maneira da de Adriano no que tange a
hipersensibilidade. Ela passa pelo reconhecimento do olhar na forma de lidar com a
cidade, mas não abre os sentidos como resposta, impressionando-se com as velocidades
e luzes. Interessa para Caio uma experiência que não se paute simplesmente pela
anulação das barreiras (dado que elas são parte importante do relacionamento com a
cidade); mas sim por uma desautorização de sua legitimidade. Parece urgente para o
poeta exercer uma experiência profunda de porosidade, como fica claro em entrevista
cedida a Rodrigo de Souza Leão em 1996, na qual Caio sublinha:
“trata-se da experiência do corpo enquanto matéria e superfície em contato
com outras matérias e superfícies, explorando as misturas decorrentes, os
avizinhamentos, o embaralhamento de limites e fronteiras. Há sobretudo uma
tentativa de equivocar o limite que separa o corpo da cidade, ampliar esse
limite, recuá-lo, e principalmente estar em contato com essa região”
(MEIRA, 2013 p.164)
No lugar do encadeamento vertiginoso das imagens, é através de uma atenção
quase meditativa para com cada uma delas que Caio vai buscar a dispersão. Não se trata
apenas de sentir os estímulos barrados, mas de desautomatizar a sensação, manter-se em
contato com a zona equívoca entre corpo e cidade para, através de suas superfícies,
confundi-los. Se, visualmente, Adriano parece encadear horizontalmente as imagens,
66
Caio parece operar centripetamente uma mesma imagem em espiral, indo do contato
entre superfícies até uma zona de completa indistinção entre sujeito e cidade.
Há um esforço claro rumo à indistinção completa, que parece acontecer em
alguns poemas, quase sempre puxando um fade-out final, no qual o sujeito deita-se
sobre a cidade, diluindo-se numa espécie de maximização do tato. Essa estratégia fica
muito clara no último poema do último bloco de Corpo Solo, no qual a voz parece
esvair-se aos poucos, conforme o sujeito dispersa-se, deitado na cidade. É interessante
observar como o nome do bloco no qual esse poema se insere, “Prosa do chão”, abre um
leque de possíveis interpretações da preposição “de”; podemos falar de uma prosa que é
posse do chão, que foi enunciada pelo chão, por alguém próximo ao chão, ou ainda que
nos diz algo a respeito do chão. Em todas as possibilidades temos um deslocamento do
lugar da enunciação numa aproximação para com o chão, evocando o “impronunciável
gosto da proximidade” (MEIRA, 1998 p.53) e ampliando a zona de indistinção com a
cidade, de forma que a voz parta menos de um poeta quanto do próprio intervalo entre
sujeito e cidade:
Nunca estive tão próximo do meu olho
nunca estive tão dentro da minha boca
nem tão perto das unhas
junto aos ossos
aos dentes
terminada a distância
findo o contorno
um pouco campo, um pouco tronco, um pouco
muro: tornado lugar, deito-me no chão
meu movimento, sem casa nem porta, ânimo
fundo, dissolve-se sólido entre pedras e
entulho, vizinhos em esquecimento
sem rua, sem verbo
indefinindo
(MEIRA, 1998, p.69)
É interessante observar que o poema inicia com a proximidade e a legitimidade
da posse do próprio corpo, afastando logo de início a oposição entre corpo e cidade; a
67
experiência urbana seria tão mais próxima quanto mais o corpo é próprio, tais instâncias
seriam mais reais quanto mais indistintas.
Há um estreito diálogo com os estudos de Gaston Bachelard, acerca da dialética
interior-exterior em seu A poética do espaço, no qual o autor defende que a ideia de um
interior distinto do exterior apoia-se sobre um “geometrismo reforçado em que os
limites constituem barreiras” (BACHELARD, 2008 p.215). O rompimento com esse
geometrismo parece ser o alvo específico de Caio, que faz do final de seu livro um
instante no qual é findo o contorno, como que afastando a “facilidade geométrica” e
abolindo o traço distintivo entre dentro e fora. Caio parece apontar seus versos na
mesma direção do estudo de Bachelard, sendo possível ler em alguns parágrafos deste
uma mesma concepção de espaço da qual Caio fala em diversos pontos de sua entrevista
a Rodrigo de Souza Leão:
“O ser é sucessivamente condensação que se dispersa explodindo e dispersão
que reflui para um centro. O exterior e o interior são ambos íntimos; estão
sempre prontos a inverter-se, a trocar sua hostilidade. Se há uma superfície-
limite entre tal interior e tal exterior, essa superfície é dolorosa dos dois
lados.” (BACHELARD, 2008 p.221)
À pergunta de Bachelard - “Nesse drama da geometria íntima, onde devemos
habitar?”(ibidem) – Caio responde de forma enfática, fazendo do limite móvel, dessa
“zona equívoca” onde os limites se desconhecem, morada inquestionável de seus
versos: “toda a poesia é móvel! Faz-se poesia levando algo a seu extremo, ao ponto
máximo do seu ser, mas também à região desconhecida, fronteiriça, onde se dá a
separação com outros corpos, outra matéria, outro espírito.”(MEIRA, 2013 p.165).
Fica claro, nesse sentido, que não se trata de uma constatação simples da
artificialidade das barreiras ou de uma recusa ao geometrismo que as sustenta, pois não
parece haver um asilo estável fora da pátria geométrica. Se tudo flutua, a morada da
poesia é onde se dá o movimento. Dessa forma, a diluição operada por Caio se dá como
uma ação em curso, como um intuito flagrado no instante em que se realiza, conforme
indica o último verso do poema - “indefinindo” -, uma anomalia gramatical que força
uma flexão imprópria ao vocábulo “indefinido”, como que pondo a indefinição em
68
movimento, tirando-a da estabilidade e pondo sua ação em curso. Há uma fuga do
categorizável, seja do espaço geométrico ou do gramatical num mesmo movimento.
A habitação desse espaço do equívoco é tão radical na poesia de Caio que em
certos poemas (de forma geral, a partir de Coisas que o primeiro cachorro na rua pode
dizer) não podemos mais defini-la como uma atenção meditativa de um sujeito que se
esforça para diluir-se na cidade. Em “Close to the bone”, por exemplo, o ponto de
partida já é a indistinção, de forma que a desautorização das barreiras passa a ser o
próprio modus operandi da vida na metrópole, e a individualização, uma tentativa pífia
de fuga, fadada ao fracasso.
Inverte-se assim o jogo da dispersão (como é próprio dela), e a permeabilidade
torna-se uma nova morada, que questiona e desacredita todos os espaços seguros e
estáveis:
Acordo e durmo debaixo da pele, sobre a crosta da terra, com camadas de
cidade enterradas
movimento películas e superfícies entre outras películas e superfícies quando
saio à rua, ou quando me encosto no parapeito desta janela que se despede da
noite
acordo e durmo entre membranas impalpáveis, com enzimas, autoregulações
e imponderáveis combustões
metabolizo rostos e teorias em meio à confusão de lembranças
despropositadas, entre secreções sebáceas, tubos, alvéolos e histórias
acumuladas
por vezes sinto esse torvelinho dentro da barriga, e não sei se é fome ou
lembrança de fome, ou se são movimentos espontâneos da voracidade do
vazio
nem sei que tipo de limite representa a pele, se me separa da madrugada ou
me une a ela
se o frio que sinto nesse vidro me pertence ou sou eu que pertenço ao frio ou
ao vidro, ou se o ponto em que tudo se entrelaça surge apenas para
desaparecer
sei apenas que sou permeável a esta manhã que desaba seus vermelhos por
prédios e morros, por muros e árvores. (MEIRA, 2003 p.15)
69
Caio parece reconhecer a indistinção não como uma experiência atípica, mas sim
como a única possível. Toda estabilidade possível parece assentada sobre uma aceitação
de uma configuração específica, mas que não seria, a rigor, mais legítima que nenhuma
outra.
Cabe ressaltar ainda o quanto a mobilidade parece reaproximar os dois poetas: se
para Adriano ela é visível principalmente através das imagens que assaltam um táxi em
trânsito, em Caio ela se dá na recusa de qualquer espaço estável que perpassa não
apenas o trânsito automotivo ou pedestre, mas até mesmo a contemplação do nascer do
sol. A mobilidade torna-se assim uma instabilidade perene e incontornável – tal qual na
concepção de Bachelard - que esta na base tanto da experiência do fluxo pela autopista
como do processo de dinamização da percepção habitual ou ainda do dilaceramento do
sujeito no dia a dia da cidade.
70
II.4 - Do um aos vários
Reúno toda minha coragem e pergunto a ele se seus
escritos são ou não ficção, se toda aquela erótica
narrada é fato ou invenção. Ele me responde que
nem uma coisa nem outra, que minha pergunta
não tem qualquer sentido. (MEIRA, 2013 p.41)
A observada dispersão do sujeito não tarda em incorrer em uma desestabilização
centrífuga das demais instâncias que asseguram uma solidez ao poema. A partir do
momento em que a radicalização do dilaceramento subjetivo faz das individualizações
um processo arbitrário, estruturas formais que apontam, no poema, para a unicidade e a
estabilidade de uma voz, parecem inadequadas. É necessário, portanto, uma certa
elasticidade que permita incorporar os microacidentes diários em sua própria dicção, e
não reduzidos em uma única voz estável que pareceria uma cristalização incompatível
com o dinamismo da chama.
É notável, nesse sentido, observarmos a tensão patente na trilogia de Adriano
Espínola entre a inspiração épica – e o decorrente comprometimento com a unicidade da
obra – e a fidelidade ao caos dos microacidentes dispersos pela cidade. Essa dupla
negociação pode ser lida no contraste entre a continuidade do deslocamento espacial e a
multiplicidade das digressões lírico-subjetivas, ou ainda no misto de louvação e ironia a
que está sujeito o espaço urbano.
É, porém, pela natureza vertiginosa de seu poema - ameaçando os limites da
subjetividade em trânsito - que nos voltamos para a tensão entre a unicidade da obra e a
multiplicidade das formas observável na continuidade da voz narrativa. A voz em
primeira pessoa segue na obra de Adriano Espínola como uma improvável linha que
amarra todos os acidentes e variações de velocidade num contínuo. O narrador, nesse
sentido, deixa transparecer sem receio suas marcas autorreferencias, como em “Eu, o
real fundador do cinismo na literatura brasileira” (ESPÍNOLA, 2002 p.18), ou “eu,
condômino do precário, aceno para o mundo” (ESPÍNOLA 1996 p.70); e apesar de os
três poemas estarem embebidos em instabilidades e incertezas, não faz parte de sua
viagem o questionamento da legitimidade do seu próprio lugar no discurso; sua voz abre
e fecha todos os poemas.
71
A tensão entre esse narrador seguro e a proximidade com o caos discursivo da
cidade reaparece quando Adriano lança mão de diversas modulações, passando por
ritmos, vocabulários, métricas e estrofações muito diferentes. O poeta busca, assim,
incorporar a dissonância da cidade na diversidade modulatória da sua voz, mantendo
sua poesia elástica e mutável, mas ainda, de certa forma, singular. Tal estratégia aparece
a partir de “Táxi”, em alternância de versificação e vocabulário como “Exu tiriri /
trabalhador da encruzilhada / toma conta/ e presta conta / ao romper da madrugada // De
repente um grito estala feito um chicote / -hêêêêiiiiii! –“ (ESPÍNOLA, 1996 p.33).
É em “Metrô”, porém, que essas modulações chegam ao seu ápice, onde vemos
um soneto heroico irromper no meio dos versos livres e caóticos, espalhados pelas
páginas. Cantigas, cançonetas, trechos de versos de outros poetas ou ainda trechos de
músicas compõem uma série de dicções possíveis que se abre conforme seja maior ou
menor a urgência expressiva do poeta, fazendo a voz assumir praticamente qualquer
molde que precise.
Há ainda uma outra multiplicidade modulatória explorada por Adriano, no que
diz respeito à possibilidade de incorporação de outras personas. Essa opção é
largamente explorada em “Metrô”, onde o narrador parece se projetar em outros
caminhos paralelos, convidado a abandonar a segurança da primeira pessoa, estável, e
desvendar-se no outro, às vezes sem demarcar um personagem preciso, como em:
Logo me leva, multiplicado,
na imaginação para alguns recantos insondáveis
do universo ur
bano.
Ali, na Vila Kosmos, por exemplo,
onde janelas de pálpebras baixas espiam indiferentes
duas mulheres que se cruzam,
uma lata de lixo solitária,
um cão que fareja um pedaço de sol num canto
e um ônibus que avança...
Todos subitamente apanhados pela rede da manhã
e do esquecimento. (ESÍNOLA, 1996 p.115-116)
72
Em outros pontos a projeção se torna mais radical por incorporar um dinamismo
muito semelhante ao aplicado às imagens. As máscaras vão se alternando sem um
aprofundamento significativo, pois o que interessa é o ritmo vertiginoso encadeado por
elas e não suas especificidades:
Enquanto traço coberto de glória
a carne macia de uma holandesa
- para não mais sentir saudade dela -
a 100 florins a hora na Damstraat!
Eu, guerreiro tapuia,
Vou destrinchando o tempo e o corpo do outro
saqueando o (meu) passado
e perseguindo o esquívoco sentido
(ESPÍNOLA, 1996 p.94)
A velocidade com que os personagens mais diversos vão se alternando, sempre
com um caráter de busca, segue um modelo semelhante ao das invasões mnemônicas de
“Táxi”, pois parecem surgir como convites para ter o verso mais colado ainda à
multiplicidade de ecos cidade. O mote “quero a todos e todos lugares” – clara inspiração
na estética futurista de Álvaro de Campos -, dá a tônica dessa viagem que passa por
outros países, outras línguas e outras companhias, mantendo sempre, por conta da
vertigem do fluxo de tais ecos, uma sucessão de “últimos instantes”, quase sempre
vividos numa intensidade alucinada, e finalizados por uma sucessão de despedidas que
nunca levam muitos versos para tornarem-se novos encontros.
É preciso observar, porém, como apesar das modulações mais diversas, dos
empréstimos que toma de outros ritmos e vozes, a poesia de Adriano sempre retorna à
voz original do poeta-narrador Há uma tendência para o retorno da voz original
semelhante ao resgate de uma linha condutora, não apenas ao final do poema, mas após
cada longo trecho de modulação. Essa tendência faz a poesia de Adriano apresentar um
comportamento semelhante ao de uma música tonal, não se perdendo nos labirintos
sonoros da cidade e conseguindo manter uma estrutura tensiva que tende ainda para
uma conclusão resolutiva.
73
Dessa forma, as modulações são preparadas e emolduradas pelo discurso da
epopeia, de forma que a voz do narrador retorna mais forte após seus excursos, pois
apresenta esse caminho duplo que se aproxima infinitamente rumo aos ecos que o
interpelam, sem jamais se perder completamente neles. As mudanças e projeções em
outras vozes e itinerários se colocam, assim, eficientemente a serviço dessa voz do
poeta que retorna com toda a carga de dispersão rearranjada e incorporada em seu
próprio discurso.
Esse ideal de união dos discursos através da tessitura épica, prevalecendo
sempre a obra ao somatório dos acidentes episódicos encontra-se presente em toda a
trilogia de Adriano, e é possivelmente um ponto central que opõe a poesia dele à de
Caio Meira. Há, neste último, um aparente esforço para privilegiar o episódico da voz
sobre a obra, transformando os últimos blocos de Coisas que o primeiro cachorro na
rua pode dizer e Romance numa espécie de “anti-épica”, na medida em que
gradativamente o que poderia soar como modulação torna-se tônica de um discurso
totalmente autônomo. Não parece possível, nesse sentido, um retorno a uma voz de
origem do discurso, pois não há uma sensação de afastamento nas modulações, mas sim
de uma flutuação sem direcionamento.
Os rastros dessa estratégia aparecem desde Coisas que o primeiro cachorro na
rua pode dizer, no qual Caio parece renegociar os limites entre corpo e cidade num
crescendo até a possibilidade de experimentação do outro como próprio. Diferentemente
de Adriano, porém, ele não retorna à sua voz original e fecha o livro com as palavras
finais de Emily Dickinson, Marilyn Monroe e Billie Holiday. Não há moldura
discursiva que encerre e oriente as vozes para um fim, pelo contrário, elas parecem
apenas abrir-se a novos sentidos com o final da obra, impossibilitando a vontade de ler,
na sua obra, uma única linha de coerência que se resolva.
Porém é em seu último livro, Romance, que o que chamamos de “anti-épica” de
Caio chega ao seu máximo, especificamente no bloco “Entre outros: fotografias”;
constituído por 23 fragmentos, sempre durando uma cena apenas, e todos em primeira
pessoa. O tipo de vocabulário presente a cada voz é repetidamente negado ao fim de
cada fragmento em favor de um novo, de forma que não há uma continuidade plausível,
apenas uma sucessão de cenas, impossíveis de serem reduzidas a um traço comum;
sexo, época, atitude, todos os elementos que compõem cada uma das cenas se alternam
74
sem manter uma salvaguarda na repetição de algum aspecto, com exceção apenas da
voz em primeira pessoa e do anonimato.
A imprecisão das identidades e a flutuação já são antecipadas nos primeiros
versos do primeiro fragmento, “Minha vida, a partir desse ponto, se torna / tão tênue
quanto o fio da minha espada. / Essa sentença, apesar de não ser prévia / não poderá ser
postergada: ato derradeiro, do / qual não há retrocesso.” (MEIRA, 2013 p.29). As vozes
se sucedem sem uma linha de sentido que as amarre, ou uma voz que as enquadre,
mantendo uma flutuação característica muito diferente da alternância de vozes na poesia
de Adriano.
Todos esses desencontros, toda essa vontade de assimetria, fazem de “Entre
outros: fotografias” uma estrutura que não fecha consigo mesma; um polígono
impossível de vinte e três faces, assimétrico por qualquer ângulo que se veja. É
interessante observar como essa desarmonia inibe a possibilidade de polarização dos
fragmentos num sentido único; a absoluta contradição faz “Entre outros: fotografias”
não apresentar nenhuma característica “como um todo”, apenas a incoerência e
contradição discursivas.
É nesse bloco que a “anti-épica” chega ao seu máximo, pela falta de um centro
tonal para o qual retornar, a obra de Caio coloca a multiplicidade de choques em
primeiro plano com tal clareza que prescinde da construção de um significado
específico que organize e dê sentido à pluralidade dos discursos da cidade. “Entre
outros” mantém, nesse sentido, uma estética que guarda algo de um atonalismo em sua
projeção personativa, estilo musical que se esforça no sentido de uma
desterritorialização, a partir da qual não seja possível retornar a um ponto inicial
(WISNIK 1989 p. 176). Não há uma relação tensiva fixa entre as vozes das outras
personas e um suposto tom, mas sim uma flutuação perene entre diferentes vozes que se
alternam sem a urgência de uma conclusão.
Se diversas vezes na poesia de Adriano encontramos uma voz que constata
cinicamente o niilismo resultante do embate diário com a cidade, por exemplo; ao
abdicar de uma voz que o represente, Caio traz esse embate sem resolução para o
primeiro plano, mantendo-o dinâmico e inconcluso. Vale ressaltar que a opção pela voz
em primeira pessoa serve a objetivos opostos nos dois poetas: na obra de Adriano, ela é
um elemento de agrupamento das modulações numa continuidade narrativa
autocentrada, enquanto na obra de Caio, ela confere autonomia aos múltiplos discursos
75
contraditórios. Encontramos no último, inclusive, diversos fragmentos que permitiriam
a leitura de um titereiro por trás de todos os discursos de “Entre outros: fotografias”,
como, por exemplo, no fragmento VII:
Estou há quase dois anos em silêncio. Escuto e pronuncio vozes que não me
dizem respeito. Essa mudez estomacal comprime minhas entranhas e se
transforma no som mais franco que pode emitir meu corpo. Para tentar ser
mais genuíno e ao mesmo tempo interromper um circuito de dependências,
passo a tesoura nos cartões de credito, ando a esmo pelo bairro, me deito de
costas no chão duro. Intimamente, porem, sei que não sou senão mais um
espectador dessa agonia sem nenhum deus. (MEIRA, 2013, p.14)
Como que numa referencia suspeita, Caio nos apresenta um personagem que se
coloca como porta voz de discursos que não lhe dizem respeito: há a possível confissão
de um narrador que pode estar por trás de todas as cenas, como uma voz disfarçada,
arquitetando o teatro de vozes que nos põe a vista. Essa possibilidade, porém, se não é
inteiramente desmentida, é posta em questão por outras diversas explicações possíveis;
vários outros fragmentos servem de “explicação” da obra, e fazem de qualquer
esclarecimento apenas uma possibilidade duvidosa, como no fragmento XIII: “pergunto
a ele se seus escritos são ou não ficção, se toda aquela erótica narrada é fato ou
invenção. Ele me responde que nem uma coisa nem outra, que minha pergunta não tem
qualquer sentido” (MEIRA, 2013 p.41).
Dessa forma, Caio não nega, mas também não dá crédito às possíveis
explicações, como que se negando a fechar qualquer possibilidade de sentido.
Ressaltamos, ainda, como a cena de deitar-se no chão duro é semelhante às observadas
nos poemas que analisamos no cap. II.3, em especial em “Prosa do chão”, como se o
sujeito de Corpo solo, agora figurasse como uma das vozes possíveis nesse labirinto,
naturalmente sem privilégio hierárquico sobre elas.
Diversos outros fragmentos parecem trazer elementos recorrentes e personas
literárias de seus outros livros, todos em igual flutuação des-hierarquizada. Caio parece
desautorizar toda e qualquer fala sem utilizar, para isso, uma voz que as desautorize
literalmente. Nesse sentido, não se trata tanto de representar um projeto urbano
específico, mas sim de refutar qualquer projeto que se queira mais autêntico que outro,
76
um novo ponto de oposição entre os dois poetas, posto que não há dúvidas quanto ao
comprometimento de Adriano com uma concepção específica da cidade pautada pela
velocidade automotiva própria das metrópoles do séc. XX.
A tonalidade característica do discurso de Adriano pode ser lida, assim, como
uma espécie de comprometimento com um projeto específico de cidade, sua linearidade
tensiva borra os limites entre sujeito e cidade, mas o faz quanto a uma configuração
precisa da cidade. Nesse sentido, Caio não busca uma urbe, mas sim uma flutuação de
alternativas urbanas anacrônicas, como diversos temas que não resolvam numa
tonalidade única. Não por acaso encontramos mais uma referência suspeita em seu
“Entre outros: fotografias”, que elucida qual o tipo de música que a obra de Caio parece
buscar:
XV.
Os móveis não rangem mais, as tábuas nunca
mais vão estalar: o mundo se tornou
irremediavelmente surdo. Tento segurar
um lápis entre os dentes, na vã esperança
de transmitir ao corpo estas últimas
vibrações. Deixa estar, vou ser guiado agora
pelo meu plexo solar, esse pequeno
cérebro dentro de meu estômago.
Nunca mais as senhoras perfumadas
da sociedade, nunca mais os cavalheiros de
bigodes torcidos! Vou agarrar o destino
pela garganta: terei que ir além de minha
própria tragédia, para que minha música
vá além da música.
(MEIRA, 2013 p.43)
A multiplicidade de personas sem o respaldo de uma voz específica que dê
sentido aos discursos traz pro primeiro plano os próprios impasses da representação
entre corpo e cidade. As configurações que dependeriam da constituição de um sujeito e
uma cidade específica aparecem nos fragmentos em sua pluralidade, permitindo não um
recorte ou um retrato da cidade, mas sim uma presentificação da tensão dinâmica
inerente a todo recorte possível.
77
A cidade passa por um processo análogo ao eclipse do sujeito por conta da
extrema individualização proposto por Karl Erik. Trata-se, de certa forma, da recusa em
estabelecer um recorte específico da urbe, justapondo diversas vozes possíveis da cidade
– ampliada em seu horizonte espacio-temporal -, de maneira a manter as tensões
inerentes ao conflito dos discursos extensíveis a qualquer espaço urbano.
Lida juntamente com a dispersão corporal no ambiente urbano, a flutuação dos
diferentes discursos faz corpo e cidade serem ambos instâncias negociáveis de um
mesmo discurso inconcluso. A permanente ressignificação e trânsito, que passa a não
reconhecer mais dois lados separados, mas apenas instâncias negociáveis, reconhece a
imensidão sem contornos da cidade (tal qual abordamos no final do cap.1) perpassando
mesmo as diferentes vozes; fazendo do corpo-a-corpo com a cidade um trânsito entre
duas cristalizações possíveis (mas arbitrárias) que não esgotam uma mesma chama.
78
III. Discurso e Ruína
Em nossas dificuldades de lidar com uma imagem tão plural e dinâmica como a
da cidade, diversas vezes lançamos mão, sem nos aprofundarmos, de uma analogia
linguística e/ou semiológica. No seu jogo próprio de sintetizar diversas tensões opostas,
pondo-as em convívio numa mesma imagem, a cidade se aproxima muito do próprio
conceito de linguagem. Tal analogia ou mesmo a identificação abre novamente a
imagem da cidade para novas abordagens a partir de um paradigma linguístico.
Essa possibilidade de identificação estava, de certo modo, presente desde a
concepção da cidade enquanto um pacto espacio-temporal específico, ou ainda nas suas
diferentes configurações entre sujeito e cidade, pois são todas essas possibilidades ainda
recortes de uma realidade urbana discursiva. Dessa forma, o limite entre sujeito e
cidade, tão discutido no capítulo anterior, é apenas uma barreira discursiva, bem como é
discursiva a matéria componente das duas instâncias.
Cabe ressaltar que a poesia se torna um locus privilegiado para a representação
da cidade enquanto linguagem por não se comprometer a priori com nenhum discurso
específico e não obedecer a nenhuma exigência funcional. A poesia pode trazer
indiscriminadamente toda uma miríade de vozes que atravessam o cotidiano urbano,
movimentando-se transversalmente, recolhendo fragmentos libertos dos seus objetivos
comunicativos, propagandísticos ou explicativos, sem respeitar necessariamente
nenhuma hierarquia prévia entre eles.
Nos deteremos nesse capítulo, portanto, nas possibilidades de identificação entre
cidade e linguagem, bem como nas implicações desse paralelo a partir da observação de
alguns traços do signo linguístico quando aplicados à cidade, mapeando o
comportamento plural e dinâmico da língua urbana.
Cabe inicialmente situarmos, a partir da concepção da linguagem dos estudos de
Roland Barthes e Mikhail Bakhtin, um paralelo entre a linguagem e o fenômeno urbano,
mostrando como este pode ser lido concretamente como uma corrente discursiva de
diversos atos de fala das mais diversas fontes. Nos voltaremos, nesse sentido, para uma
análise da poesia de Caio Meira, ressaltando o quanto a cidade é indissociável de sua
configuração linguística específica.
79
Ainda nesse bloco, cabe ressaltar a figuração da pluralidade dos discursos a
partir de uma analogia com o conceito bakhtiniano de polifonia. Embora Bakhtin o
tenha desenvolvido especificamente para o romance de Dostoievski, é interessante
observar o quanto há uma clara intenção de romper com qualquer hierarquia discursiva
na poesia de Caio, assim como na de Arnaldo Antunes, para quem radicalização e
fragmentação agem mesmo na configuração interior das próprias vozes.
Em seguida nos deteremos no eixo semântico e no processo de significação,
encontrando uma dupla possibilidade de abordagem por parte dos poetas (e dos
críticos): Ora voltando-se para uma predominância da invariância do sistema
linguístico, isto é, da impossibilidade de se escapar de suas regras, transformando a
cidade em um mesmo vocabulário viciado; ora voltando-se para o dinamismo intrínseco
à língua, sua função poética e a possibilidade de dinamizar a todo tempo os
significados. Trata-se de uma configuração linguística semelhante ao impasse que
observamos entre constrição e flânerie no cap. II.
Tratamos, assim, no segundo bloco, essa dupla possibilidade de leitura,
observando inicialmente o paradigma reprodutor do discurso da cidade a partir das
poesias de Caio Meira e Nicolas Behr, fazendo através desse último uma ponte para o
paradigma inovador, e flagrando-o inteiramente concretizado em Arnaldo Antunes,
onde a mobilização da língua se torna uma preocupação central.
Finalmente, cabe nos determos no processo de dinamização do discurso a partir
da experiência específica da poesia urbana de Nicolas Behr. Ressaltamos sua
experiência por se tratar de uma disputa entre discursos muito bem polarizados, e pela
excepcionalidade do discurso de Brasília. Entre Nicolas e a capital há uma tentativa
perene de reapropriação da palavra, onde a sufocante ordem planejada é combatida com
o reconhecimento e a nomeação desta como uma ruína modernista.
A separação dos blocos não respeita a mesma simetria dos dois capítulos
anteriores, de forma que Nicolas fecha nosso estudo sozinho em um capítulo. Cremos,
porém, que ali a questão da ruína está posta como em nenhum outro, e que esta, por sua
natureza de decadência e renascimento, fecha a linearidade entre as instâncias
comparativas proposta no primeiro capítulo.
80
III. 1 Cidade – Polifonia
O olhar percorre as ruas como se fossem
páginas escritas: a cidade diz tudo
o que você deve pensar, faz você repetir
o discurso, e, enquanto você acredita
estar visitando Tamara, não faz nada
além de registrar os nomes
com os quais ela define a si própria
e todas as suas partes.
(CALVINO, 1995. p.18)
O caráter semiológico da cidade se estende para muito além das analogias. Não
apenas pela caracterização do espaço urbano a partir de um somatório de diferentes
recortes discursivos se interpenetrando; é preciso observar que a cidade possui seus
códigos específicos, bem como seus próprios processos de significação. Cabe ressaltar
que desde o nosso mapeamento inicial da cidade a partir dos estudos de Calvino,
revelando-a como uma imagem complexa que se abre em um sistema de sistemas, essa
era já uma noção comum às tentativas de definições da própria língua por parte dos
linguistas.
A cidade enquanto uma linguagem se apresentaria assim satisfazendo as já
referidas dificuldades de delimitação, dado o caráter dinâmico e plural de ambos os
conceitos. As ressignificações possíveis, a inclusão de novos sistemas e o quase
desaparecimento de outros, se explicariam ainda por uma especialização maior ou
menor dos ambientes linguísticos, conforme as diferentes necessidades históricas.
A identificação (mais do que uma aproximação) da cidade com uma rede
semiológica é ainda sugerida por Eucanaã Ferraz, em seu artigo “Poesia como
semiologia da cidade”. Eucanaã relê a sugestão de Barthes da existência de um grande
sistema semiótico que englobaria todos os outros como seus microssistemas
componentes; propondo o reconhecimento deste como sendo a cidade:
De certo modo, os estudos semiológicos realizam-se como pequenas
gramáticas, analisando segmentos que deixam ver o funcionamento de uma
81
mecânica mais complexa, mais alta, a do espaço urbano. Mesmo os estudos
que se intitulam como “sobre a cidade” estão voltados para o urbanismo, a
arquitetura, os meios de comunicação de massa ou mesmo a história,
constituindo-se em conhecimentos parciais (FERRAZ, 1995 p. 143)
Dentro desse grande sistema de linguagens, Eucanaã sugere ainda a centralidade
da própria língua, uma mediadora e atribuidora de significados para os demais
elementos componentes. A imbricação dos mais diversos sistemas semiológicos
mediados pela língua nos permite ler a cidade como uma grande rede textual, um
contínuo processo de significação perpassando os mais diversos meios e linguagens.
Se nos voltarmos especificamente para a língua, restringindo o grande sistema
aos seus fenômenos linguísticos, esbarramos na falta de uma concepção da língua como
um fragmento específico de um sistema de linguagens que possa ser identificado com a
própria cidade. Nos deteremos, assim, numa ponte possível entre a releitura de Barthes a
partir de Eucanaã, e os estudos linguísticos de Bakhtin, por partirem estes justamente de
uma concepção mais sociológica e inter-pessoal do que das heranças possíveis do
estruturalismo clássico.
Bakhtin, embora não teorize um grande sistema semiótico, parte da concretude
das relações entre os mais diversos sistemas de conhecimento, e chega, do mesmo modo
que Barthes, à centralidade da língua. A ampliação empreendida pelo filósofo para a
noção da língua busca englobar a psicologia de então, mostrando o quanto a concepção
do sujeito deve ser estendida para o de uma unidade discursiva, e explicada como um
fenômeno linguístico e social de apropriação da palavra:
“A consciência adquire forma e existência nos signos criados por um grupo
organizado no curso das relações sociais. Os signos são o alimento da
consciência individual, a matéria de seu desenvolvimento, e ela reflete sua
lógica e suas leis” (BAKHTIN, 2010 p.36).
No decorrer de seu Marxismo e filosofia da linguagem, Bakhtin articula assim
uma ponte entre sociologia e psicologia através da filosofia da linguagem, situando
sempre o caráter social da linguagem como ponto de partida (e de chegada) para seu
estudo. Dessa construção, destacaremos especificamente a sua caracterização da língua,
82
compreendida como uma corrente de atos de fala, ampliando o foco de seu estudo das
palavras, enquanto abstrações dicionarizadas, para o processo de significação
empreendido por elas. Há, nesse sentido, uma continuidade inerente à língua que
perpassa as estruturas sociais, a constituição do indivíduo e todos os processos de
atribuição de significado:
A língua não se transmite; ela dura e perdura sob a forma de um processo
evolutivo contínuo. Os indivíduos não recebem a língua pronta para ser
usada; eles penetram na corrente da comunicação verbal; ou melhor, somente
quando mergulham nessa corrente é que sua consciência desperta e começa a
operar. [...] Os sujeitos não ‘adquirem’ sua língua materna; é nela e por meio
dela que ocorre o primeiro despertar da consciência (BAKHTIN, 2010 p.111)
Apesar de estar muito longe das preocupações de Bakhtin, cabe ressaltar que
essa corrente de atos de fala se dá materialmente na cidade, fazendo com que a língua
na qual o sujeito desperta seja, na verdade, um recorte linguístico urbano. Mais do que
isso, a abordagem de Bakhtin ainda mantém em aberto a possibilidade de lermos a
corrente de atos de fala fora de seu código apenas verbal, abrangendo todas as outras
“pequenas gramáticas” semiológicas da cidade10
. Dessa forma o “despertar da
consciência” se daria não apenas a partir dos fragmentos verbais, mas inclusive dos
meios e veículos de que eles se servem, bem como das demais relações semiológicas
possíveis e no que nelas escapa à codificação puramente verbal.
A cidade estaria situada, assim, como esse grande sistema, de “mecânica
complexa”, diferentes meios e línguas que se oferecem enquanto discurso, no qual o
sujeito está necessariamente, desde o nascimento, imerso. É sintomático, nesse sentido,
que Nicolas se diga incapaz de escapar das palavras viciadas de Brasília, ou Adriano
reconheça nas esquinas da cidade o mesmo material componente de si mesmo; pois a
própria possibilidade de individualização se dá sempre em, e a partir do ambiente
urbano.
Cabe ressaltar, nesse sentido, o poema de Caio Meira “Ornitorrinco”, que parece
flagrar especificamente esse instante de identificação discursiva entre sujeito e cidade.
10 Essa leitura é autorizada pelo teórico russo em sua introdução a partir da associação entre signos e a
ideologia, mas não é levada adiante quando ele delimita seu foco de estudo na língua como sistema
semiológico/ideológico por excelência.
83
O urbano figura como uma grande corrente de fragmentos de diferentes fontes
discursivas dos quais o sujeito se percebe indissociável:
Ornitorrinco
tem aquela vez que imitei um macaco para arrancar a primeira gargalhada
dos meninos
tem o tiro passional, a quantidade de chumbo na água, as anotações
rabiscadas de madrugada no caderno verde
tem um cara discursando sobre um caixote numa praça de Londres, outro
acaba de afirmar na televisão que tudo é química
tudo é beijo, coxa, intriga, número de telefone esquecidos, sonda orbitando
outros mundos
ou tudo poderia ser geografia, economia, ortodoxia, taxionomia de órgãos
propulsores, um apêndice supurado, configurações cervicais, o mapa da vida
estampado no consultório de um japonês, no centro da cidade
tem todas as aberrações costuradas de modo a parecerem uma obra de arte,
mas que são, sobremaneira, inverossímeis
até agora o destino me tem sido maleável, e junto à mandíbula e ao esporão
junto ao pavilhão auricular a essa altura entorpecido por buzinas e alarmes
contra roubo, junto aos molares, cabem dores lancinantes e o desopilar de
uma gargalhada
cabe tudo o que entra pela janela do olho e se amontoa com as transcrições,
edições de revistas folheadas em sala de espera, diferentes versões de uma
mesma sonata de Beethoven
cabem até os estampidos que ninguém ouviu (a árvore que caiu sozinha no
meio da floresta) e listas intermináveis de tudo que faz mal à vida
um dia, talvez se chegue à conclusão de que a vida faz mal à vida, e só
seremos socorridos por essas coisas de origem remota e misteriosa
esses cachorros equívocos que atravessam cidades e voltam para casa, ou a
coordenação das revoadas de pardais às seis horas da tarde
e demais gestos peculiares de todos, híbridos de tudo e de nada, à proa de
vontades subcutâneas, pormenores do jogo de forças macroeconômicas
(sobredeterminados por uma jogada da bolsa de Cingapura)
84
e se decidirem que a vida faz mal à vida e o mundo estiver por um fio (se
digitados os códigos certos), pelo menos deixem-me perpetuar o segredo de
algumas misturas (MEIRA, 2003 p.25)
“Ornitorrinco” lança mão de uma exaustiva parataxe inicial, enumerando
diversos fragmentos discursivos e memórias aparentemente arbitrárias, para os
“costurar” num mesmo sujeito. É interessante observar como dados urbanos,
fragmentos fisiológicos e traços de memória são colocados lado a lado, em pé de
igualdade nessa constituição onde tudo é, em alguma língua, linguagem da cidade. Cabe
ainda ressaltar o quanto esse discurso urbano, em sua pluralidade, é destituído de
qualquer hierarquização, já que os diversos fragmentos se arrogam o poder de dar conta
do mundo, e estão todos em contradição. O cenário discursivo é conflituoso por
excelência e não admite essencializações que legitimem uma verdade única.
A escolha vocabular que Caio faz pelo “costurado” como atividade constituidora
do ornitorrinco não é fortuita. É sabido que o primeiro ornitorrinco levado para a
Europa empalhado para ser classificado pelos cientistas foi considerado uma farsa. Os
cientistas acreditavam que alguém havia costurado um bico de pato num corpo de
castor, tentando pregar uma peça. Após novas observações, cientistas batizaram a
espécie de Ornythorynchus Paradoxus, graças à sua estranheza particular, nome depois
abandonado até chegar ao atual Ornythoryncus anatinus.(WIKIPEDIA, 2012)
É interessante, nesse sentido, que Caio use como metáfora para a constituição do
homem num cenário urbano moderno um animal que levava o paradoxo no próprio
nome, e mesmo hoje é referido como um híbrido entre mamífero, ave e réptil, possuindo
carga genética dessas três classes. É significativo ainda o fato de o ornitorrinco ser
considerado inicialmente uma enganação, emprestando ao sujeito moderno a
contradição inerente à descontinuidade dos discursos que o compõem.
A permanência paradigmática do corpo na poesia de Caio ainda permite a leitura
de alguns dados interessantes no poema quanto ao entrecruzamento entre homem e
ornitorrinco. Vários dos fragmentos corporais enunciados pelo poeta situam
especificamente características evolutivas híbridas dos monotremados, adaptações
radicais que permitiram que a espécie dos ornitorrincos chegasse ao nosso tempo, tais
como a ausência de ouvido externo (apontada pelo pavilhão auricular) e o coquetel
venenoso no esporão. O corpo é relido, dessa forma, fora de concepções puramente
85
fisiológicas, mas a partir de seu reconhecimento discursivo paradoxal, gerando
intervalos entre corpo e ornitorrinco, fruto de uma consciência que só se conhece a
partir dos diferentes discursos urbanos.
A “contaminação” por diferentes fragmentos aparece ainda como incontornável
no desfecho do poema, pois se mostra presente mesmo nas alternativas salvacionistas ao
hibridismo do ornitorrinco, através da evidenciação da impureza mesmo nos
aparentemente prototípicos pardais e cachorros11
, trazidos em imagens de pontualidade
e domesticação. Nesse sentido, parece impossível, para a poesia de Caio, escapar à “lei
da contiguidade” (MEIRA, 2003 p.47), de forma que as alternativas essencialistas são
ficções incompatíveis com o reconhecimento da cidade como uma rede dinâmica, em
permanente ressignificação.
Como já dissemos, a poesia de Caio não configura um discurso inequívoco e
cristalino. Todas as possibilidades trazem de volta o caráter plural do discurso urbano,
composto de fragmentos sem qualquer hierarquia ou possibilidade de encerramento
num sentido. Cabe, nesse sentido, nos determos um pouco mais nesse aspecto
polifônico do discurso urbano, trazendo ainda algumas outras figurações possíveis dele.
É novamente a Bakhtin que nos voltamos, e ao seu conceito de romance
polifônico, formulado a partir da obra de Dostoiévski, definível como uma equipolência
entre as vozes narrativas (inclusa aí a do narrador). É claro que, por se tratar de um
conceito pensado especificamente para o romance, não estamos sugerindo a
aplicabilidade precisa a uma estrutura tão diferente quanto a poesia, porém cabe
observar que há um nítido esforço, tanto em Caio quanto em Arnaldo Antunes, que
aponta para a falta de hierarquização das vozes componentes do cenário urbano.
É interessante observar o quanto há uma harmonização natural entre a falta de
hierarquia inerente ao tecido discursivo urbano, e a proposição polifônica de Bakhtin; a
cidade parece servir bem como analogia para o polifônico. De fato, conforme nos
mostra José Miguel Wisnik, a polifonia propriamente dita desenvolveu-se a partir de
uma analogia urbana: “relaciona-se esse novo estilo polifônico com o desenvolvimento
das cidades, ‘com os estímulos combinados dos habitantes dos burgos - os burgueses - e
11 É interessante ainda ressaltar como a escolha de Caio prioriza dois dos animais cuja evolução mais foi
influenciada pela domesticação humana: o passer domesticus, ave com maior distribuição geográfica no
planeta graças a sua fácil convivência com ambientes urbanos; e o canis lupus familiaris, mais antigo
animal domesticado pelo homem.
86
os senhores feudais, agora na primazia do poder’, vazando as restrições eclesiásticas.”
(WISNIK, 1989 p.121).
A polifonia parece atravessar “Ornitorrinco” na convivência de diversas vozes se
interpenetrando, mas também pela capacidade de cada uma delas dar conta do real
sozinha “tudo poderia ser geografia, economia, ortodoxia [...]”. É preciso ressaltar,
porém, que o conceito de Bakhtin se assenta sobre uma configuração ainda mais radical
de completa ausência de hierarquia entre todas as instâncias discursivas, e em
“Ornitorrinco” temos ainda uma voz servindo de moldura, isto é, uma instância
discursiva que afirma a multiplicidade de discursos conflituosos que a compõem.
O mesmo não acontece em “Entre Outros”, conforme observamos no capítulo
anterior,12
onde a estrutura, heterogênea e contrastante, não possibilita uma leitura única
ou qualquer sentido privilegiado que consolide uma hierarquização das vozes. As
referências suspeitas, que possibilitariam a leitura de uma única fonte por traz do teatro
de múltiplas vozes, são, conforme dissemos, desautorizadas por serem mutuamente
excludentes, de forma que não há qualquer possibilidade de retorno a uma voz
privilegiada que encerre um sentido. A obra segue aberta e sem um direcionamento
concludente, condições que satisfazem as exigências de nossa analogia com o conceito
de Bakhtin.
Cabe ainda nos determos, à luz do conceito de polifonia de Bakhtin, na obra
Palavra desordem, de Arnaldo Antunes. Nela, Arnaldo não propõe um trabalho
específico com a caligrafia, ou com a sobreposição de diferentes códigos através de
imagens ou fotos; porém, é possivelmente onde a interpenetração de diferentes
discursos vai estar mais próxima da impossibilidade de encerramento de um sentido
inequívoco, e portanto, mais próxima da polifonia bakhtiniana.
Trata-se de uma sucessão de versos soltos, sem uma linha de sentido que os
amarre ou sugira qualquer antecipação tensiva conclusiva. Arnaldo rompe ainda com a
12Cabe ressaltar que já analisamos esse bloco de poemas de Caio à luz de uma analogia musical,
aproximando-o do atonalismo. A nova comparação sob o conceito da polifonia bakhtiniana se deve ao
sentido conferido pelo teórico russo a essa categoria. Lembramos que, musicalmente, a polifonia ainda se
encontra dentro de uma estrutura tonal de resolução hierárquica de tensões (tema da nossa análise
comparativa com Adriano Espínola), e que esse sistema se encontrava em crise contemporaneamente à
produção de Bakhtin. Ambos os eventos (crise do sistema tonal e publicação do livro de Bakhtin) situam-
se nas primeiras duas décadas do séc. XX. Cabe ainda ressaltar a aproximação feita por Wisnik com
relação aos dois sistemas “É possível pensar que a polifonia medieval e renascentistas tem certa
correspondência com a música dodecafônica [uma das formas derivadas do atonal] – ambas
contrapontísticas, uma convergindo para a tonalidade, outra divergindo dela” (WISNIK, 1989 p.184).
87
linearidade da leitura, alternando versos na horizontal e na vertical que se deslocam em
ambas as dimensões, de forma que o próprio paradigma ocidental de leitura da esquerda
para a direita e de cima para baixo parece apenas mais uma convenção arbitrária que
não precisa ser necessariamente seguida.
Também não encontramos uma subdivisão dos versos em poemas ou blocos de
sentido e nem ao menos paginação, de forma que as únicas possibilidades de subdivisão
da obra são: ou ela como um todo, ou cada verso separadamente.
(ANTUNES, 2006 p.188/189)
Palavra desordem traz um nível radical de dilaceramento discursivao pois leva o
conceito de polifonia aos seus limites dispensando a própria constituição de vozes
enquanto unidades discretas. Arnaldo incorpora diferentes fragmentos de vozes, entre
eles algumas releituras e inversões de chavões e lugares-comuns da linguagem
coloquial, todos transcritos na mesma fonte tipográfica e sem qualquer juízo de valor
observável em sua disposição ou centralidade na página; como um justo retrato da
ausência de hierarquização entre os fragmentos de discursos no cenário urbano. Cabe
88
ressaltar que essa concepção da urbe como um universo caótico de vozes se sobrepondo
foi muito provavelmente o recorte da cidade que serviu como imagem para a própria
polifonia em suas raízes musicais no século XIV.
Por suas estruturas polifônicas – ou atonais - as possibilidades de
reconhecimento de um sentido determinado, tanto em Palavra desordem como em
“Entre outros: fotografias”, sempre incorrem no risco de se tornarem ficcionalizaçôes
arbitrárias. Se em Caio a flutuação se dá numa dinâmica entre fragmentos de vozes
demarcados, é interessante observar a radicalidade da proposta de Arnaldo, onde o nível
de fragmentação atua na estrutura interna dos discursos, não demarcando precisamente
os limites entre as vozes que estão em contato. Não há um eixo tensivo específico por
não haver eixos de leitura inequívocos, apenas a flutuação entre possibilidades de
sentido anteriores à delimitação precisa de um discurso.
É interessante ainda situarmos ambos os poetas no que poderíamos chamar de
um local de representação dessa polifonia. Se para Caio, em “Ornitorrinco”, o lugar de
reconhecimento da contradição e pluralidade dos discursos da cidade é a própria
constituição do sujeito, isto é, a polifonia é observada desde suas marcas no próprio
corpo, quando escreve “Entre outros”, o poeta parece abdicar de um sujeito único que
reconheça em si a multiplicidade discursiva, mas não consegue abrir mão da
corporalidade inerente à sua obra, constituindo, assim, diversas personas alternativas.
Para multiplicar as vozes, Caio precisa multiplicar os sujeitos, mesmo que dentro deles
encontremos ecos dissonantes. É inconcebível, nesse sentido, uma voz sem corpo,
ecoando descarnada. A corporalidade é como que uma pedra angular da poesia de Caio
Meira, mesmo quando seu objetivo é a subversão dos limites do sujeito.
A poesia de Arnaldo, por outro lado, preocupa-se antes com uma materialidade
do signo pensada conforme os parâmetros de Bakhtin, do que com a corporalidade
reduzida a uma dimensão humana. Isso possibilita que a sua polifonia se construa a
partir da sobreposição “pura” de vozes, de fragmentos de discurso tomados fora da
materialização corporal específica de um sujeito. Nesse sentido, é interessante pensar o
título da dissertação de Jorge Fernando Barbosa do Amaral Arnaldo Antunes – o corpo
da palavra como um viés de leitura que reaproxima os dois poetas por meio da
corporalidade. Caio articula a polifonia atribuindo um corpo autônomo para as
diferentes vozes que ecoam no cenário urbano, enquanto Arnaldo reconhece na mesma
dispersão de ecos o que neles próprios é sua corporalidade enquanto discurso.
89
III.2 Nomeação
Nossa linguagem pode ser considerada como
uma velha cidade: uma rede de ruelas e
praças, casas novas e velhas, e casas
construídas em diferentes épocas; e isto tudo
cercado por uma quantidade de novos
subúrbios com ruas retas e regulares
e com casas uniformes
(WITTGENSTEIN, 1999 p.32)
Além da polifonia inerente ao discurso urbano no que tange a sua pluralidade,
cabe ainda nos determos em outro aspecto próprio da linguagem da cidade,
considerando seu dinamismo e permanente ressignificação. Trata-se, nesse sentido, de
uma espécie de corte vertical no discurso da cidade, mapeado a partir da palavra e do
processo constante de nomeação, onde nos deparamos sempre com a dialética entre
inovação e conservadorismo, utilizando signos reconhecíveis tais como palavras, letras
e formas para criar relações diferentes de significação.
Esta última parece apresentar sempre esse caráter duplo, afirmando, através de
um código compartilhado e relativamente estável, relações novas de sentido,
associações improváveis e contextos linguísticos novos. Há, nesse sentido, uma
possibilidade dupla de abordagem do processo: pelo seu viés conservador, isto é, pela
reincidência de um mesmo código, legitimado em diferentes fragmentos e fontes; ou
pelo seu viés inovador, a partir do qual a poesia parece gerar novas alternativas ao
processo normativo da nomeação. É preciso destacar, porém, que as duas abordagens
são parte de um mesmo processo dialético, onde as duas possibilidades constituem mais
uma diferença de priorização operada diferentemente por cada um dos poetas do que de
duas características excludentes.
É novamente no diálogo entre Barthes e Bakhtin que vamos encontrar um ponto
de partida para a concepção linguística que ancore essa dupla possibilidade de
abordagem do processo de significação. Em nossa leitura do teórico russo, concebemos
a cidade como um ambiente linguístico inescapável, a partir da qual a própria noção da
individualização pode ser gestada sempre a partir das palavras. Cabe ressaltar, porém,
90
que a cidade perdura como um código específico, oferecendo algumas restritas
“encarnações materiais em signos”, e não outras.
É nesse ponto que nos voltamos a Barthes13
, a seu já clássico Aula, no qual
defende que “a língua, como desempenho de toda linguagem não é reacionária, nem
progressista; ela é fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer”
(BARTHES, 2007 p.14). Barthes reconhece que a limitação das possibilidades de
significação projeta a língua para além do paradigma reacionário/progressista, pois
opera antes mesmo dessa divisão, condicionando a “encarnação material em signos” às
possibilidades previstas.
Trata-se de uma espécie de sequestro das possibilidades, perpetuando o discurso
através dos mesmos códigos de forma semelhante à que observamos em Nicolas Behr
em “Não consigo sair destas palavras”. Os vícios impostos pela língua se abrem, porém,
para além da escolha vocabular, conforme nos aponta Barthes:
Não são somente os fonemas, as palavras e as articulações sintáticas que
estão submetidos a um regime de liberdade condicional, já que não podemos
combiná-los de qualquer jeito; é todo o lençol do discurso que é fixado por
uma rede de regras, de constrangimentos, de opressões, de repressões,
maciças ou tênues no nível retórico, sutis e agudas no nível gramatical: a
língua aflui no discurso, o discurso reflui na língua, eles persistem um sob o
outro, como na brincadeira de mão. (BARTHES, 2007 p.30)
A persistência da malha linguística da cidade pode ser observada, num primeiro
momento, no próprio nível da escolha vocabular, especialmente nas poéticas de Caio
Meira e Nicolas Behr. Neste último pela reincidência de um vocabulário oficial da
construção e do planejamento da cidade modernista utópica, e naquele pela presença de
um prosaísmo forçoso que recolhe de fragmentos corriqueiros do cenário urbano o
material discursivo com o qual representará toda e qualquer coisa.
É interessante notar, nesse sentido, que o sequestro vocabular observado nos
dois poetas é de natureza muito semelhante, divergindo apenas no discurso perpetuado
13 Bakhtin reconhece também o mesmo caráter dual na língua; observando inclusive a insuficiência
teórica de se limitar a apenas um dos processos, caso que ele reconhece nas mais fortes correntes da
linguística de então. Porém pela própria estrutura crítica de seu Marxismo e filosofia da linguagem, a
formulação do caráter conservador da língua não é tão sucinta quanto à de Barthes.
91
pela cidade, pois para Caio o discurso da cidade é inerentemente polifônico, dinâmico e
prosaico, encontrado em fragmentos diversos seja em um passeio a pé pelo centro, ou
durante um jogo solitário de basquete. A persistência não apenas dos vocábulos
urbanos, mas também da própria polifonia como inescapável atestam pelo fascismo da
língua da cidade, pois não importa o que faça, o sujeito não parece ter, na poesia de
Caio Meira, uma alternativa que o permita habitar outro lugar que não o da dispersão
em um ambiente linguístico urbano e prosaico.
Tal relação é observável também em Nicolas, embora as especificidades da
instauração do discurso urbano “oficial” de Brasília mudem um pouco a imagem desse
conflito, pois o carrega de uma hegemonia um tanto mais violenta e radical. É
precisamente com a característica polifônica do discurso urbano que Brasília parece
querer romper, buscando se caracterizar por uma fala monocórdica, perpetuando um
paradigma do modernismo utópico através de vocábulos muito específicos: eixão,
autopistas, superquadras, etc. todas estas palavras que atravessam largamente a poesia
de Nicolas Behr, conforme já observamos nos capítulos anteriores.
Brasília invade, porém, mais do que apenas a escolha vocabular, estendendo-se
para outros aspectos do “lençol do discurso” tal qual proposto por Barthes. Nicolas
evidencia diversas vezes a convivência de diferentes instâncias de penetração do
discurso oficial da cidade, mostrando a interferência desse discurso viciado em um
trajeto urbano mais viciado ainda, alterando e subvertendo alguns do postulados
gramaticais mais básicos, rompendo com suas regras e instaurando novas, como em:
Eu S
Tu Q
Ele S
Nós S
Vós Q
Eles N
(BEHR, 2009 p.59)
É interessante ressaltar, sobre o poema acima, o gesto de “dominância das siglas
sobre todos os indivíduos, agora contidos nestes dois eixos (das quadras norte e sul)”
92
(FURIATI, 2007 p.32), ressaltado por Furiati em sua dissertação. As siglas mais do que
um recorte de discurso “colhido” da polifonia urbana, são um fragmento concreto do
processo de numeração e organização exaustivo da cidade, preenchendo a lacuna verbal
com ícones obrigatórios do discurso de Brasília.
As siglas das superquadras das asas norte e sul, que juntas constituem quase todo
o espaço residencial do plano piloto de Brasília, se transformam numa espécie de
obsessão da poesia de Nicolas, não apenas enquanto índice da organização espacial, mas
também como signos do próprio discurso hegemônico da cidade. Vale observar, no
poema abaixo, o quanto as siglas de dois blocos residenciais vão se repetindo e
deformando até terminarem não remetendo mais a bloco nenhum, sendo siglas vazias,
sem significado, mas que pela sua construção, trazem incontornavelmente a imagem do
dialeto de Brasília:
SQS415F303
SQN303F415
NQS403F315
QQQ313F405
SSS305F413
seria isso
um poema
sobre brasília?
seria um poema?
seria brasília?
(BERH, 2007 p.72)
Cabe ressaltar ainda o desfecho do poema, abrindo a possibilidade de leitura da
deformação da sigla como uma zona limítrofe entre a cidade, o discurso e o poema que
o mimetiza e deforma. O lugar do poema é precisamente o da deformação do discurso
oficial, utilizando seu próprio código aplicado fora do seu horizonte previsível e seguro,
gerando uma caricatura do discurso da cidade que escapa da reprodução pacífica de uma
mesma língua fascista. Nicolas promove como que uma alternativa ao processo
meramente reprodutor de uma ordem, num processo onde a reprodução gera a distorção,
93
como que adiantando a alternativa ao fascismo sugerida por Barthes através do qual é
possível “trapacear com a língua”.
O que Nicolas retrata em seu poema constitui uma ponte com a nossa segunda
possibilidade de abordagem do processo da significação, partindo da incapacidade de
escapar da repetição do discurso da cidade até a deformação desse discurso, feita a
partir da repetição exaustiva, gerando novos signos, novas possibilidades não previstas
no discurso hegemônico.
Esse novo recorte, onde importa mais a mobilidade do signo tirado do seu uso
banal do que a perpetuação de paradigmas estabelecidos, vai ter no processo de
nomeação o momento no qual pode operar sua guinada de reinvenção ou de trapaça com
a língua. Cabe repetir que mais uma vez que se trata mais de um deslocamento da
priorização do que de um processo completamente diferente, perpetuação e inovação
são faces indissociáveis de uma mesma dinâmica de enunciação.
Essa subversão da normatividade através de uma priorização do instante da
nomeação é ainda abordado diretamente em diversos poemas de Arnaldo Antunes.
Trata-se de uma de suas preocupações centrais, aparecendo em diversos nomes de
poemas e livros como “Nome não”, “Nome”, Como é que chama o nome disso; e sendo
uma preocupação central em dezenas de outros.
Podemos conceber o ponto de partida de Arnaldo como semelhante ao de Caio e
Nicolas: Arnaldo encara também o impasse da reprodutibilidade aparentemente
insolúvel da língua corrente e parece fazer sua poesia como uma tentativa constante de
forçar os limites possíveis para a significação - seja enquanto experimentação de outros
códigos ou usos radicais para os mesmos signos gastos.
A poesia de Arnaldo parece sempre problematizar um limite entre o conotativo e
o denotativo, roupagens novas para a mesma dialética de inovação/conservação que já
abordamos. O poeta parece sempre jogar entre o mal entendido e o banal em sua poesia,
mudando as regras dos processos de significação e mobilizando a limitação “fascista”
da língua. Cabe, nesse sentido, nos determos nos estudos de Wittgenstein, em especial
no que tange seu conceito de “jogos de linguagem”, pois é precisamente a partir de sua
distorção que Arnaldo parece encontrar um mecanismo de mobilização da nomeação.
Wittgenstein concebe os jogos de linguagem como uma alternativa dinâmica
para o processo da significação estruturalista clássico; as palavras não seriam, como na
94
concepção saussureana, significantes ligados arbitrariamente a significados específicos;
tal relação não seria própria da palavra, mas sim do jogo específico ou situação em que
ela é colocada. Nesse sentido, o significado (seja conotativo ou denotativo) não é uma
relação estável, pois não se dá a partir de uma tabela de dupla entrada entre nome e
coisa, mas sim um processo determinado pela ocorrência concreta da palavra, sujeito às
mais diversas distorções e priorizações arbitrárias de um mesmo objeto através de
diversas palavras.
Wittgenstein aproxima essa noção do jogo justamente pela maleabilidade do
conceito, isto é, por ser impossível, a partir de uma palavra, definir uma “regra comum”
para todos os seus jogos possíveis, mas apenas esboçar parentescos entre um e outro
episódio (como numa tentativa de definir o que seria um jogo), numa espécie de cadeia
associativa sem limites possíveis. Portanto “o emprego da palavra não está
regulamentado” (WITTGENSTEIN, 1999 p.53), sua significação é tão maleável quanto
a possibilidade de jogos diferentes de linguagem aos quais possamos nos propor.
Num entrecruzamento entre Wittgenstein e Barthes, poderíamos dizer que o
fascismo intrínseco à língua, segundo o semiólogo francês, é na realidade uma tendência
predominante de alguns jogos específicos, ou a recorrência de algumas regras
específicas em diversos jogos. O filósofo austríaco ressalta, porém, que as regras não
são intrínsecas às palavras, mas sim resultado de seu uso recorrente num mesmo
contexto, e problematiza ainda o deslocamento do usual de maneira muito semelhante à
trapaça da língua de Barthes.
Seguir uma regra é análogo a: seguir uma ordem. Somos treinados para isto e reagimos
de um determinado modo. Mas que aconteceria se uma pessoa reagisse desse modo, e
uma de outro modo a uma ordem ao treinamento? Quem tem razão?
(WITTGENSTEIN, 1993 p.93).
É a partir desta interrogação que Arnaldo parece fazer sua poesia, quebrando as
regras dos jogos de linguagem cristalizados, priorizando aspectos diferentes dos objetos.
A mudança dos paradigmas da nomeação aparecem de forma radical no poema “nome
não”, presente no livro Tudos:
95
Os nomes dos bichos não são os bichos.
os bichos são:
macaco gato peixe cavalo vaca elefante baleia galinha.
Os nomes das cores não são as cores.
As cores são:
preto azul amarelo verde vermelho marrom.
Os nomes dos sons não são os sons.
Os sons são.
Só os bichos são os bichos.
Só as cores são as cores
Só os sons são
som são
nome não
Os nomes dos bichos não são os bichos.
Os bichos são:
plástico pedra pelúcia ferro madeira cristal porcelana papel.
Os nomes das cores não são as cores.
as cores são
tinta cabelo cinema céu arco-íris tevê.
Os nomes dos sons.
(ANTUNES, 2010 p.59-61)
“Nome não” se organiza a partir de uma preocupação inicial com a dissociação
entre palavra e coisa, uma tentativa de fuga da referencialidade, tomada como uma regra
gasta nos jogos de linguagem. Arnaldo oscila assim entre a tentativa de fuga da
referencialidade, tomada como uma relação de identificação entre coisa e nome; e uma
incapacidade de escapar das palavras semelhante à que observamos em Nicolas Behr e
Caio Meira, conforme nos aponta Jorge Fernando Barbosa do Amaral:
96
Ao mesmo tempo em que percebemos que Arnaldo chama a atenção
para as limitações da linguagem denotativa, que não incluem as coisas em
seu universo de atuação, apenas as representam, ou seja, o ato afirmar a
existência de algo a partir de sua representação verbal não concretiza a
presença do objeto, “Os nomes dos bichos não são os bichos”, ele não escapa
ao fato de que, verbalmente, não há como se referir à coisa sem que se utilize
o signo linguístico que arbitrariamente está ligado a ela “Os bichos são: /
macaco gato peixe cavalo vaca elefante baleia galinha.” (AMARAL, 2009
p.24)
Interessa-nos, porém, a alternativa final sugerida pelo poema, após suas
sucessivas constatações da divergência entre coisa e nome. Arnaldo desloca o jogo da
linguagem da referencialidade de sua configuração usual, construindo novas relações de
sentido entre as palavras gastas, dando um novo sentido para os bichos a partir de um
jogo específico, mostrando como a coisa, seja ela qual for: um macaco de pelúcia, um
gato de cristal, ou qualquer intervalo possível entre bicho e material; pode ser priorizada
(e tornada palavra) por aspectos diferentes de sua configuração prototípica.
O processo de nomeação aparece, portanto, como uma priorização específica das
coisas, sujeita às mais diversas distorções. É interessante ressaltar ainda que, embora
Arnaldo use as mesmas palavras gastas - cinema, tevê, ferro, pelúcia, etc. - é o
deslocamento de seu sentido usual que transgride a estabilidade das regras da
referencialidade. O poeta rompe com o lugar-comum dos jogos de linguagem, pois o
sentido das palavras não está dado, as coisas “não têm um nome, a não ser no jogo”
(WITTGENSTEIN, 1993 p.46), e o jogo foi dinamizado.
Cabe ainda ressaltar como, embora não pareça que o retrato do ambiente urbano
seja uma preocupação específica de Arnaldo Antunes, a urbe é trazida como o ambiente
linguístico a ser mobilizado. Não encontramos, novamente, elementos como luzes, out-
doors ou ruas, mas é inegável a presença do urbano enquanto material discursivo que é
dinamizado pela palavra poética.
O deslocamento dos jogos usuais da linguagem é marcante ainda, na obra do
poeta, por uma espécie de didática infantil dos jogos de linguagem. Em seu livro As
coisas, Arnaldo problematiza não apenas a mobilidade do processo de significação, mas
97
também as distorções geradas pela concepção estruturalista da linguagem levada até as
últimas consequências por interrogações infantis, de forma que uma mesma palavra é
levada para diversos ambientes, ou diversos “jogos de linguagem” diferentes, gerando
significações diferentes dos normalmente previsíveis, como no poema “as palavras”:
Há muitas e muito poucas palavras. Por exemplo: pegamos um corpo. Se
continuarmos a linha que sai do lado de fora de um dos pés (isto é, do ponto
de vista do próprio corpo: o lado direito do pé direito ou o lado esquerdo do
lado esquerdo) e vai pelo chão até o outro pé, teremos a palavra planeta, que
inclui o corpo. Incluídos nesse corpo tempos membros. Entre os membros
pernas. Dentro das pernas pés. Nos pés dedos e nos dedos unhas. Mas se
dissermos unhas podem ser das mãos. Se estiverem riscando um muro
diremos atrito. Então podemos estar falando de fósforos, ou de pneus. De
sexo, discussões ou condutores elétricos. Assim: Mesa e cadeira são duas
palavras. Móveis é uma palavra só – coisas que se movem. Mas não há
palavra para dizer dois corpos encostados, ou uma mão segurando um
punhado de terra ou duas mãos dadas com um tanto de terra entre elas; como
há, por exemplo, a palavra jardim para designar o conjunto de terra e plantas;
ou a palavra planta para expressar a soma dessa parte do jardim que fica
acima e da parte que fica abaixo da terra. Com raiz bulbo folha talo ramo
galho tronco fruto flor pistilo pólen dentro. Mas se não quisermos dizer
planta podemos dizer pé. E a sola do pé chamaremos de planta. Sobre o solo.
Assim como dizemos planta para o pé diremos mão. Folha de palmeira. E se
não quisermos dizer planeta podemos dizer terra. Ou isso. Mas se ele não
estiver por perto não podemos chama-lo de isso. (ANTUNES 2006 p.103)
É interessante como a tentativa de associar palavras às coisas é baseada numa
distorção da definição dicionarizada pautando-se por definições que priorizam aspectos
sensíveis e aparentes aos essencialismos. Trata-se de uma aproximação com uma fase
infantil de designação linguística, onde os jogos parecem ainda mais vivos e as regras
mais flexíveis, especificamente por que as recorrências de jogos e a predominâncias
destas ou daquelas regras (que assentariam o fascismo da língua) não estão ainda
devidamente internalizados.
Cabe ressaltar ainda o quanto o processo de nomeação que aparece no poema é
análogo ao estágio pré-consolidação dos conceitos da linguagem, descrito por Vygostski
como a associação em cadeia. (VYGOTSKI 2008 p.80-88) De forma semelhante à
98
tentativa de definição de alguns dos jogos de linguagem de Wittgenstein, trata-se de um
estágio anterior à estabilização dos conceitos, onde a criança associa o nome a uma
característica específica de um objeto. Se a característica priorizada é compartilhada
entre diferentes objetos, a criança associa múltiplas possibilidades de referência para um
mesmo nome. Vygotski descreve ainda que o elemento priorizado pela criança é
dinâmico, podendo um nome se referir, em uma cadeia linear, a diversos elementos que
compartilhem características específicas com seus predecessores e antecessores, mas
não possuam uma adequação a um conceito único; num processo designado pelos dois
autores como “semelhança por família” (VYGOTSKI 2008, P.76-78;
WITTGENSTEIN, 1999 p.52).
Arnaldo utiliza, assim, diversos jogos diferentes para uma mesma palavra, como
“atrito”, mantendo uma semelhança entre as imagens encadeadas, mas partindo de uma
cena de atrito de unhas em um quadro e chegando a discussões e condutores elétricos;
dois jogos de linguagem completamente diferentes, aproximados pela associação em
cadeia de uma mesma palavra.
Há ainda uma certa zona de imprecisão entre as linguagens conotativas e
denotativas, evidenciando a arbitrariedade de certas catacreses que possuem em sua raiz
um caráter tão conotativo quanto as mais ousadas metáforas, mas que possuem, a seu
modo, status de linguagem corrente. Arnaldo amplia, nesse sentido, a zona de
indistinção entre jogos conservadores e inovadores, amplia a alçada da pergunta de
Wittgenstein “quem tem razão?” quando alguém muda os parâmetros e os jogos,
mostrando o quanto as regras do jogo são cristalizações arbitrárias, algumas delas
geradas, pela reincidência de um mesmo jogo conotativo.
Arnaldo não menospreza o sequestro de possibilidades das palavras, e a
dificuldade de escapar da previsibilidade da nomeação, mas enfatiza a natureza dessa
clausura como não sendo diferente da atividade cotidiana de nomeação, apenas mais
legitimada pelo uso corrente. Nesse sentido, em sua priorização de aspectos diferentes
de objetos já conhecidos, o poeta troca as etiquetas de lugar, tirando a linguagem de seu
estado de dicionário da mesma forma como Nicolas tira as siglas da organização
espacial.
99
III.3 Arquitetura da Ruína
brasília foi construída
para ser destruída
aos poucos
exatamente
como estamos fazendo
(BEHR, 2010 p.17)
Se a mobilidade da nomeação aparece como um valor por si na poesia de
Arnaldo, é necessário fazer uma distinção quanto à produção de Nicolas, pois, para este,
a dinamização da língua possui um alvo específico, uma configuração determinada de
discurso e usos da linguagem que o poeta propõe desestruturar. Novamente,
encontramos um quadro onde, apesar de operar por mecanismos muito semelhantes de
nossos demais poetas, o que diferencia Nicolas é (no polo oposto dos des-limites de
Caio) a polarização forçosa entre os discursos do poeta e da cidade.
Na poesia de Nicolas Behr trava-se uma espécie de guerrilha discursiva com
lados muito bem marcados entre o international style e a estética marginal. Enquanto
Caio e Adriano tendem a uma dispersão na rede linguística urbana, Nicolas incorpora os
mais diversos elementos que se opõem ao discurso oficial de Brasília, para assim,
ironizar e desgastar sua retórica.
O repúdio a arquitetura da cidade, o recorte urbano em pequenos quadros, a
incorporação do substrato auditivo, a obsessão pela rodoviária como signo de
resistência e mesmo a constante realimentação irônica da perfeição cristalina do projeto
de Lúcio Costa, são mecanismos combativos que se travam especificamente no plano
discursivo, jogando novos jogos com os termos já gastos do discurso da cidade.
Nicolas busca tomar Brasília pela palavra, evidenciar a arbitrariedade e a
caducidade da arquitetura modernista e a sua imposição de uma planificação discursiva.
Cabe ressaltar, nesse sentido, o conceito de ruína modernista, definido por Beatriz
Jaguaribe em Fins de século: cidade e cultura no Rio de Janeiro, a partir de uma
comparação do processo de modernização utópica forçada:
100
A ruína modernista condensa as contradições de como os objetos da
modernidade, ao se posicionarem como novos, inevitavelmente assinalam e
renegam seu próprio envelhecimento. Como emblematização do novo
moderno, o edifício modernista negociava a projeção de um futuro que agora
tornou-se datado. As representações do nacional, as experiências urbanas e a
encenação de diferentes noções de modernidade dialogam com a montagem
da figura da ruína modernista (JAGUARIBE, 1998 p.121)
A presença da noção de ruína modernista na poesia de Nicolas é perene: “A
capital voltou a ser / o Rio de Janeiro // temos as ruínas mais modernas / do mundo”
(BEHR, 2009 p.78); de forma que poderíamos ler a referida guerrilha discursiva como,
além de uma reapropriação da palavra, uma ressignificação da linguagem oficial,
transformando-a num discurso que é, desde sua fonte, ruína modernista.
Nicolas age diversas vezes através de uma profunda ironia, apontando a eficácia
da concretização do projeto, ressaltando a perfeição com que foram realizados alguns
dos pontos que eram precisamente os objetivos do plano piloto: setorização, morte da
rua e a padronização das moradias. Dessa forma, ao invés de ridicularizar a
materialização do projeto utópico, Nicolas zomba de seus próprios objetivos, da
incompatibilidade da magnitude, de suas pretensões com a existência comezinha,
cotidiana. Nesse sentido, o poeta aproveita-se largamente de um deslizamento entre o
inesperado e o óbvio, situando como surpreendente tudo que não se encaixa nas
grandiosas pretensões do macroprojeto organizacional, isto é, tudo que é o mais óbvio
de constar numa cidade assume uma cômica roupagem de quebra de expectativa:
Senhores turistas
eu gostaria de frisar
mais uma vez
que nestes blocos de apartamentos
moram inclusive pessoas normais
(BEHR, 2007 p.92)
A quebra de expectativa através da irrupção do banal num cenário do exótico e
grandioso arruína a perfeição do cartão postal de Brasília sem descaracterizar o
101
cumprimento do projeto modernista, ao contrário, endossando-o e revelando o que nele
mesmo é contraditório: o bem sucedido sufocamento do corriqueiro na arquitetura
soberba de Brasília.
A quebra de expectativa opera, assim, com uma dupla função na poesia de
Nicolas Behr: se, por um lado, evidencia a incompatibilidade entre a concretização do
projeto utópico de Brasília e a ocupação humana do espaço, por outro, problematiza a
própria impossibilidade do cumprimento da expectativa do extraordinário que recai
sobre o projeto.
Não apenas enquanto projeto megalomaníaco, mas também enquanto priorização
vocabular, a cidade figura sempre a partir de sua artificialidade. Diversos lugares-
comuns e chavões da fala coloquial aparecem assim como incompatíveis com Brasília,
conforme analisado por Gilda Maria Queiroz Furiati em relação à presença residual de
expressões como “meninos de rua” em uma cidade que buscou banir definitivamente a
rua de seu planejamento (FURIATI, 2007 p. 46-47). Ressaltamos ainda a releitura
irônica do impossível clichê marítimo em “Amor às pampas”:
Amor às pampas
você voltou
pro seu rancho
no rio grande
enquanto eu
fiquei aqui
a ver ministérios...
pra Ângela
(BEHR, 2009 p.82)
Cabe ressaltar que o processo operado na subversão do chavão popular e da
cotidianidade traz algumas semelhanças com o feito por Arnaldo Antunes com relação a
linguagem denotativa. Se Arnaldo mostra a necessidade de dinamizar o processo da
nomeação, rompendo com o jogo de linguagem previsível e fundando a palavra poética
a partir do estranhamento; em Nicolas o estranhamento se dá justamente pela
102
incompatibilidade do vocabulário corriqueiro para dar conta de Brasília. Ao invés de
provocar o estranhamento inserindo um nome impróprio num cenário conhecido,
Nicolas insere o nome “correto” num contexto desconhecido, resultando numa inversão,
onde a poesia gera o estranhamento não pelo sentido conotativo, mas sim pelo
denotativo, isto é, a partir da justa adequação vocabular à ruína modernista.
Segundo Beatriz Jaguaribe, a artificialidade das ruínas modernistas decorre em
grande parte da negação de seu próprio aspecto histórico e datado. Cabe, portanto,
ressaltar ainda outro signo recorrente em Nicolas: a pretensa extemporaneidade de
Brasília, renegando os seus vestígios históricos e se afirmando a partir de uma fictícia
noção de marco zero. É interessante o quanto o poeta reafirma novamente a
concretização de um projeto, ironizando antes as suas pretensões do que a sua
falibilidade, em poemas como “aqui não havia nada / só um grande vazio / um deserto //
aí inauguraram a capital / e o cerrado apareceu logo depois” (BEHR, 2007 p. 93).
É claro que essa estratégia não é gratuita, pois conforme expõem Holston e
Furiati, Brasília se assenta sobre uma grande usurpação do seu próprio passado. A
noção utópica de um marco zero, simbolizada no cruzamento do eixão com o eixo
monumental, renega a concretização de um processo histórico, bem como a existência
de populações autóctones da região.
Com grande habilidade, Lúcio Costa consegue dar ao plano de uma
nova cidade a sugestão de uma fundação legendária, a aura dos símbolos
sagrados, investindo Brasília com uma mitologia universal de cidades e de
símbolos. Não pretendo contestar o caráter artístico de seu feito, mas mostrar
que, afirmando apresentar um tipo específico de origem para a cidade, Costa
deixa de enfatizar outro: provendo Brasília de antecedentes mitológicos, ele
disfarça seus precedentes históricos, eliminando a história do Brasil e da
arquitetura moderna das ideias expressas no plano. Como em uma história de
confusões em torno da identidade dos personagens, ele adultera os direitos de
nascença de sua cidade. (HOLSTON, 1993 p.81)
Ainda na ironia da usurpação do passado de Brasília, Nicolas projeta também
passados absurdos, onde o mesmo vocabulário oficial da cidade de clipes, ofícios,
ministérios é trazido à tona por escavações históricas, como se a extemporaneidade da
capital se reafirmasse retroativamente, encontrando no lugar onde deviam constar os
103
vestígios históricos, negados pelo discurso oficial, marcas de sua própria ordem irreal e
utópica:
Durante as escavações também
foram encontrados clips pré-históricos,
grampeadores de pedra lascada, crachás
em plaquinhas de ouro,
carimbos petrificados,
ministros embalsamados
e ofícios em escrita
ainda não decifrada
(BEHR, 2009 p.73)
Novamente, o que é reafirmado e ironizado pelas escavações é uma disputa
travada no campo da palavra; é o vocabulário dos ofícios, carimbos e plaquinhas que é
projetado para o passado pré-histórico. E é ele que constitui, em última análise, o mais
próximo de uma ruína propriamente dita na cidade de Brasília, como um vestígio que
subjaz à cidade construída. A reafirmação da mesma ordem numa escavação que
deveria encontrar apenas ruínas faz, dessa forma, um novo pareamento entre o discurso
oficial utópico da capital e a ruína modernista.
Finalmente, cabe nos determos numa última estratégia de Nicolas, na qual o
poeta plasma uma espécie de imagem-síntese para todo o processo de arquitetura da
ruína do discurso oficial de Brasília: a fundação da cidade de Braxília.
Braxília é como uma concretização da ruína de Brasília, o resultado desse longo
embate discursivo de reapropriação do vocabulário e dos espaços. Ela se constrói como
uma espécie de reflexo oposto do plano piloto; ao invés de trazer uma adjetivação
voltada para suas superfícies captadas pelo código visual, Braxília é gestada em suas
entranhas “subterrânea, viva, noturna, alternativa, rebelde, roqueira” (BEHR, 2009
p.85).
Cabe ressaltar que Braxília é uma reapropriação prototípica do nome da capital,
numa quebra com o jogo usual da linguagem que busca uma nova palavra para
significar uma nova ordem. Nicolas rompe com o sequestro de possibilidades e com a
previsibilidade dos jogos usuais de linguagem, abolindo o uso dos signos viciados dos
104
carimbos e plaquinhas e como que inaugurando uma nova língua, onde os jogos ainda
não estão definidos ou estruturados “Braxília não / Braxília é sonho // Braxília foi
construída / com a língua // 2354 línguas polindo / as escadarias do palácio” (BEHR,
2007 p.75).
Por seu caráter contrapositivo, Braxília se assemelha ainda, diversas vezes, com
o recorte que Nicolas faz da plataforma rodoviária, em seu caráter de oposto simétrico à
ordem planejada. Ambos os espaços se estruturam como uma espécie de negativo dos
cartões postais da capital, negando todos os traços de artificialidade e planejamento da
cidade e projetando seus opostos:
Imagine Brasília
não-capital
não-poder
não-Brasília
assim é Braxilia
(BEHR, 2007 p.77)
Braxília é o acerto de contas com Brasília, a reinvenção sem planejamento que
subverte todos os ícones da artificialidade exaustivamente marcados na poesia de
Nicolas Behr: “Não ficará carimbo sobre carimbo// e carimbo sobre carimbo/
reconstruiremos a cidade// sem carimbos” (BEHR, 2009 p.90). Essa reurbanização, na
qual Brasília finalmente deixa seu status de não-cidade, atribuído pela poesia, para
afirmar-se enquanto cidade propriamente dita, será feita sobre as ruínas modernistas
devidamente reapropriadas pelo discurso.
É interessante que, ao contrario de sua correspondente oficial, Braxília não é
construída por um arquiteto demiurgo, que traça em seu projeto a organização do espaço
e o sentido das vidas que o ocupam. Não encontramos tampouco um personagem ícone
de fundação, mas sempre uma construção plural14
, como em: “foi assim que
construímos Braxília” (BEHR 2009, p.94), “edificaram uma cidade” (BEHR 2009
p.85), etc. Braxília, enquanto cidade real em oposição à capital artificial, se dá, dessa
14 Cabe fazer uma ressalva quanto ao título do livro Porque construí Braxília, no qual temos, ao invés da
construção plural uma conjugação em primeira pessoa. Trata-se, porém de uma paródia ao título da
autobiografia de Juscelino Kubitschek Porque construí Brasília.
105
forma, sempre em função dos seus habitantes e construtores, dissolvendo a oposição
inaugural já citada “assim nós queremos viver” vs. “assim nós queremos que vocês
vivam” (BEHR, 2009 p. 66), que contrapõe a construção da cidade à sua ocupação.
Braxília é a possibilidade de existência da cidade fora dos seus parâmetros
planejados, uma reapropriação pela própria população e/ou por grupos subversivos que
se contrapõem ao discurso imposto de ministérios e carimbos, plasmando uma espécie
de emblema linguístico ou imagem-síntese da promessa urbana que subjaz
humanamente na Brasília institucional e cristalina. Trata-se de uma espécie de redenção,
ou ainda, de “reinventar a cidade inventada” (BEHR, 2010 p.26):
quando reconstruírem meu bloco
quando o eixão virar um jardim
quando os anjos retornarem à catedral
quando jk for definitivamente reabilitado
quando Brasília voltar a ser patrimônio
cultural da humanidade
quando a poesia for necessária
quando se realizar a profecia
de dom bosco
quando os candangos forem bem-vindos
na cidade fortificada
quando derrubarem os tapumes da maquete
quando implodirem todos os ministérios
quando os burocratas forem expulsos
quando o massacre da geb for esclarecido
quando a catedral voltar a ser ecumênica
Quando brasília se chamar braxília
quando a cidade começar a existir
(BEHR, 2010 p.67)
106
Conclusão
Ao longo de nosso trabalho, encontramos mais rotas de fuga de um conceito
preciso de cidade do que possibilidades de delimitação de um. Tal resultado é, de certa
forma, esperado, dado que nossa proposta se estrutura sob uma metodologia
comparativa ou dialogal, comprometida mais com a diversidade de soluções para os
mesmos impasses do que com o reconhecimento de uma base comum às imagens e
formas sob as quais flagramos a cidade no nosso corpus. Seria incompatível com nossa
própria metodologia, nesse sentido, qualquer convergência conclusiva para com a
diversidade observada nas obras dos poetas abordados.
Cabe, porém, ressaltar que essa mesma metodologia dialogal, quando organizada
em um encadeamento linear de instâncias opositivas, inventa uma estrutura específica,
híbrida entre cristal e chama, na qual os quatro autores se distribuem de maneira
irregular. Tal irregularidade não se deve a um valor de espaço ocupado - posto que nos
preocupamos em abordar as seis combinações possíveis entre os autores -, mas sim a
uma variação de concentração e afinidade entre as questões focalizadas no decorrer dos
capítulos. Nesta conclusão, vale a pena nos determos em um mapeamento dessa
distribuição, clareando os padrões de sua disposição, que revelam aspectos não das
obras estudadas, mas do próprio recorte que fizemos delas a partir de nossas
possibilidades contrastivas.
Trata-se de um levantamento final que resguarda algo de uma metalinguagem,
pois buscaremos destacar um dado de presença e ausência dos poetas dentro de nossa
própria estrutura de análise, o que permitirá uma palavra final sobre suas obras e a
possibilidade de nos determos numa espécie de dupla motivação de sua distribuição no
decorrer de nosso trabalho, decorrente tanto das especificidades inerentes a cada autor,
mas também das relações flagradas entre suas obras quanto tomadas dentro de nosso
trabalho.
É importante ressaltar, nesse sentido, que uma vez que tenhamos tomado a
estrutura de nosso trabalho como duplamente motivada, mesmo o que soaria como uma
idiossincrasia restrita a um poeta, precisa ser relida em seu contato com todos os
demais, já que sua própria especificidade só pode ser percebida a partir de um contraste
107
com todo o nosso corpus. Mesmo a priorização que fizemos da obra dos autores
também se deve às possibilidades de diálogos e contrastes, de forma que nossa estrutura
argumentativa interfere na leitura dos poetas desde antes da delimitação específica de
capítulos e instâncias opositivas.
Permaneceremos restritos, porém, frente às diversas possibilidades de análise da
relação entre a organização de nosso trabalho e a obra de cada poeta, à observação do
dado que nos parece mais simples: a presença ou ausência dos poetas ao longo dos
capítulos. Ressaltamos como, por conta do aspecto inter-relacional que citamos, a
ausência dos autores em determinados pontos de nossa estrutura constitui também um
ponto de interesse para nossa conclusão.
Se pensarmos nosso estudo como um eixo horizontal, onde a presença dos
poetas se distribui progressivamente como um valor vertical, flagramos três alternativas
gráficas (ou três funções) que podem ser reconhecidas no decorrer de nosso trabalho:
Adriano Espínola e Caio Meira aparecem em funções lineares, uma crescente e outra
decrescente, de tal forma que, na medida em que Adriano, que tem grande peso no
início de nosso trabalho, vai perdendo espaço, Caio vai ganhando, ocupando grande
destaque a partir do capítulo II. Trata-se de um comportamento espelhado, o qual
analisaremos como decorrente de um mesmo fenômeno.
Nicolas Behr, por outro lado, se mantém estável, aparecendo em todos os
capítulos de nosso estudo. Por não obedecer uma lógica de simples ascendência ou
descendência, cremos que temos na distribuição equalizada de Nicolas por nosso estudo
uma linearidade diferente da observável em Caio e Adriano.
Finalmente Arnaldo Antunes, como uma ironia metonímica de sua obra, rompe
com o principio de linearidade na distribuição; o poeta aparece no nosso primeiro
capítulo, desaparece durante o segundo, e reaparece no terceiro. Novamente, Arnaldo se
afasta de qualquer reconhecimento de um padrão inequívoco, gerando um problema de
multiplicidade de possíveis interpretações para suas duas aparições, impasse semelhante
ao que encontramos em diversos momentos da análise de seus poemas, sempre abrindo
mais sentidos possíveis do que os encerrando em uma resolução definitiva.
Ao nos voltarmos para o primeiro comportamento que discriminamos, a
linearidade crescente e a decrescente observada respectivamente em Caio Meira e
Adriano Espínola, cremos que este espelhamento se deve a uma polarização implícita
108
em nossa própria estrutura de análise. Nosso esforço para construir uma linearidade
argumentativa parece se desenvolver de modo a dividir a poética dos dois autores em
dois polos antagônicos, de forma que quanto mais se desloca em uma direção
específica, nosso estudo encontra um poeta como negativo do outro.
Seria difícil definir tal direção sem incorrer em uma simplificação condenável,
mas podemos situá-la inicialmente partindo de categorias historicamente mais estáveis
para concebermos o urbano, como tempo, espaço sujeito e objeto, e deslocando-se rumo
a uma gradual indefinição, onde todas as contraposições passam a se tornar indistintas,
como cristalizações possíveis de uma mesma corrente discursiva.
A cidade de Adriano articula vários signos historicamente mais estáveis; a
velocidade apresenta-se como resultado de uma equação entre tempo e espaço que
aponta sempre para o vertiginoso, e por mais que possamos flagrar vários mecanismos
de dispersão do sujeito na cidade, esta ainda está ligada a uma experiência que remonta
ao futurismo do início do século, onde a enxurrada sensorial é o que dá o caráter
dispersivo como resultado de uma multiplicação do homem pela máquina. Adriano
conserva as marcas da experiência da qual busca se afastar, de forma que podemos ler
tal permanência em sua poesia a partir de sua metáfora estrutural: trata-se de uma
experiência de indistinção que não oculta sua mediação prévia pela moldura de uma
janela.
A polarização interna de nosso estudo é ainda mais clara se tentarmos fazer uma
leitura da obra de um dos dois poetas a partir de seu polo oposto: é evidentemente
incompatível com a poética de Caio Meira em Romance tentarmos situá-la em termos
de cristal e chama, assim como seria impossível qualquer tentativa de reconhecimento
de um espaço e de um tempo que contivessem a obra. Da mesma forma, a concepção da
cidade enquanto linguagem que desautoriza todas as oposições estáticas parece
incompatível com a poesia inicial de Adriano Espínola, dada a sua aberta opção pelo
espaço urbano como tema central e o conflito que isso geraria na noção do urbano como
discurso inescapável.
Tal qual em nossa analogia musical, assim que a cidade vai se tornando mais
indistinta, dispersando as possibilidades antitéticas de sujeito e objeto, dentro e fora e
tempo e espaço, a tendência resolutiva (ou o tonalismo) de Adriano vai se tornando
inadequada. Nesse momento o atonalismo (ou polifonia, se nos voltarmos à analogia de
Bakhtin) de Caio parece tomar cada vez mais espaço, absorvendo as alternativas
109
tensivas numa mesma flutuação inconclusiva. Podemos ainda identificar no interior da
própria trajetória poética de Caio Meira uma semelhante linha progressiva, partindo de
uma polaridade ainda observável em No ôco da mão e Corpo solo rumo à flutuação
atonal de Romance, o que explicaria o porquê da sua participação respeitar (com raras
exceções) a ordem cronológica de seus livros.
A direção tomada por nosso trabalho pode finalmente ser situada à luz de nossa
analogia musical, partindo de imagens da cidade como um sistema tensivo que antecipa
uma resolução final, até a flutuação atonal a partir do nosso terceiro capítulo. A inclusão
de ecos diversos e vozes destacadas de sua função usual acaba por romper com a
necessidade resolutiva do sistema, momento em que a indistinção não pode mais ser um
alvo, como parece ser em Adriano e na poesia inicial de Caio, mas um ponto de partida
para o poema.
Não é à toa, portanto, que a oposição direta entre os dois poetas ocupe a região
central do trabalho, na metade do segundo capítulo, onde observamos uma guinada,
antes da qual as oposições são estruturais (cristal x chama, corpo x cidade, visual x tátil)
e a partir da qual elas não são mais possíveis, pois passa a ocupar o centro de nossa
atenção antes a mobilidade do que a pertinência dos dualismos. Cabe ainda ressaltar que
é precisamente nesse momento que abordamos a questão da necessidade resolutiva, e o
contraste entre os poetas traz à tona a nossa analogia musical como uma oposição
central entre suas obras.
O direcionamento de nosso trabalho oferece uma explicação para o
espelhamento dos dois poetas, mas traz um novo impasse ao abordarmos a distribuição
de Nicolas Behr. Este compartilha com Caio e Adriano a linearidade, sem apresentar,
porém, nenhum grau de angulação, aparecendo em todos os capítulos de forma
razoavelmente equilibrada. Sua distribuição parece contradizer a nossa polarização, pois
nos lança o problema de lidar com uma poesia que se mostra pertinente em dois
ambientes antitéticos de nosso estudo: nos oferece imagens da perfeita diagramação
espacial de uma cidade cristalina, e, ao mesmo tempo, um panorama discursivo
dinamizado pela palavra poética.
Cremos que essa ambivalência, que conserva uma dupla possibilidade de
identificação entre cristal e chama, e deixa ainda espaço para a dinamização de um pelo
outro, se deve não apenas às características de nosso arranjo de diálogos entre os poetas,
mas também a um aspecto específico da poesia de Nicolas Behr. Há, em contraponto
110
com nosso direcionamento estrutural, uma polarização prévia de sua própria poesia
entre dois discursos específicos, um oficial e um subversivo. Estes dois discursos estão
sempre sobrepostos em sua obra, e é pela priorização que os ressalta de forma desigual
nos diferentes diálogos com os poetas de nosso corpus que acreditamos ser possível
essa ambivalência tão abrangente entre os polos mais afastados de nosso estudo.
Não é difícil observar o quanto, no primeiro capítulo, quando trazemos Brasília
enquanto espaço cristalino em oposição à vertigem de Adriano Espínola, acabamos por
priorizar o que, na poesia de Nicolas, é o discurso oficial, isto é, a presença da
organização lógica do espaço que caracteriza o plano piloto. Da mesma forma, quando
trazemos a mobilidade empreendida pela língua para com os símbolos oficiais, é o
discurso da subversão que está em primeiro plano, distorcendo o dialeto das
superquadras.
A polarização discursiva presente na poesia de Nicolas pode ainda ser lida a
partir da observação da sua forçosa ausência nos dois subcapítulos que focalizam
especificamente a dissolução de oposições antitéticas - no final do capítulo II e início do
III. Nicolas é incompatível com a projeção de múltiplas personas e com a polifonia que
são os temas centrais destes, de forma que sua contribuição no capítulo III se dá a partir
de uma priorização radical do discurso subversivo sobreposto ao oficial, porém, já
distante da abordagem polifônica.
Quanto à aparente contradição de ser justamente Nicolas o responsável pelo
desfecho de uma progressão que apresentamos como partindo da polarização rumo à
indistinção das oposições, é preciso fazer uma ressalva: o ápice de nossa linearidade que
aponta para o atonalismo, não coincide com o desfecho de nosso trabalho, mas sim com
o subcapítulo específico sobre cidade e polifonia. A partir deste voltamos a operar com
algumas oposições entre jogos consolidados e inovadores da língua, e possivelmente
pelo mesmo motivo, a partir daí, Caio praticamente desapareça de nosso trabalho.
É curioso observar como Arnaldo Antunes se afasta novamente (e de forma
quase que obsessiva) de qualquer possibilidade de identificação com um
comportamento padronizável. Arnaldo aparece em dois momentos isolados, no final do
primeiro capítulo e na maior parte do terceiro. Novamente a particularidade episódica
do poeta não nos parece possuir uma motivação que se ancore na estrutura polarizada de
nosso estudo, mas talvez se justifique por alguma característica transversal que apareça
de forma não linear.
111
De certa forma, é arriscado esboçar uma explicação conclusiva para a disposição
da obra de Arnaldo Antunes em nosso estudo justamente por seu caráter episódico; são
duas aparições pontuais, que não possuem a facilidade linear dos demais poetas, e
permitem, portanto, muito mais interpretações possíveis; dois pontos definem apenas
uma reta, mas infinitas parábolas. Novamente nos voltamos a um impasse recorrente no
trato com a poesia de Arnaldo: sua abertura para diversas significações possíveis nos
lança num impasse conclusivo.
Há ainda a própria dificuldade de situar uma imagem para a cidade na poesia de
Arnaldo; cada poeta parece reconhecer o urbano em um cenário específico, de forma
que quase todos poderiam ter apontadas, sem grande dificuldade, suas cenas
recorrentes: Caio perambulando pelas ruas e recolhendo ecos de vozes diversas,
Adriano viajando velozmente pelo coração da cidade em um veículo alucinado, Nicolas
tentando vencer o isolamento decorrente da geometrização do espaço de Brasília.
Arnaldo, por sua vez, parece não eleger um cenário urbano específico, sempre
abordando a cidade a partir de suas imprecisas fronteiras: no capítulo um a partir da
vivência temporal e visual da urbe e no capítulo três, a partir do urbano tomado como
uma rede linguística viciada. Cremos que essa alternativa ao mesmo tempo radical e
tangencial de abordagem da cidade nos oferece uma alternativa para compreendermos
alguns dos motivos da especificidade da distribuição de Arnaldo em nosso trabalho.
Parece haver uma harmonização específica entre a forma pela qual a cidade
aparece na poesia de Arnaldo e pela qual Arnaldo aparece em nosso trabalho. Não se
trata de forma alguma de subtrair a urbanidade da obra do poeta (sugerimos inclusive,
que talvez seja a mais urbana de nosso corpus), mas de mostrar o quanto, por sua
radicalidade própria, Arnaldo não se ocupa de cenários onde se possa reconhecer
facilmente a cidade através de suas imagens clássicas.
É interessante observar que é precisamente no nosso capítulo central, quando a
cidade aparece em sua materialidade, a partir de percepções sensoriais que vão pouco a
pouco se dissolvendo em discursos diferentes, que Arnaldo não aparece. Da mesma
forma, quando nos desviamos do signo gasto, da cidade que poderíamos reconhecer
como inequivocamente urbana (e aqui a delimitação espacial do cap. I.1 pode ser
incluída), e nos voltamos para concepções alternativas, nas quais a cidade torna-se uma
apreensão temporal específica, ou ainda uma rede discursiva/semiótica, é em Arnaldo
que flagramos algumas das alternativas mais pertinentes, como a radicalização máxima
112
da polifonia de Palavra Desordem, da dinamização em “Nome não” ou da
verticalização de sentido das suas caligrafias.
De certa forma, Arnaldo traz mais presente a cidade quanto mais esta é algo
diferente de sua concepção clássica; quando é tempo (a partir do qual incluímos a
visualidade, novamente sem apelar para arranha-céus ou neons) ou discurso, o que
explica sua aparição sempre nos limites da cidade (e de nosso próprio trabalho). Se
reconhecemos a nossa polarização de categorias estáveis rumo à indistinção, Arnaldo
ocupa apenas as regiões onde há maior instabilidade no conceito do urbano, mostrando
o quanto a cidade, mesmo quando velada em aspectos aparentemente
descomprometidos com o ambiente urbano, é ainda um marco incontornável.
Arnaldo atua, de certa forma, numa espécie de linha de frente da poesia urbana,
dispensando os recortes já reconhecidos e elegendo novos fragmentos artísticos e
linguísticos (e aqui sua versatilidade em diversas vertentes poéticas e códigos contribui
para nossa leitura) ainda não urbanamente reconhecidos, em total sintonia com o
processo de reconhecimento da urbanidade a partir de discursos contemporâneos
dispersos, conforme sugerido por Giulio Carlo Argan.
Finalmente, em nossa fuga de um entrelaçamento conclusivo das obras dos
quatro poetas, a tessitura de uma abstrata cidade que embasasse suas múltiplas imagens
segue sem uma síntese possível ou desejável. Cabe-nos antes destacar a proliferação de
lacunas como elementos produtivos de nossa abordagem, pois multiplicam as
ressignificações possíveis ao urbano, e impedem qualquer convergência teleológica,
mantendo a cidade não apenas como uma questão em aberto, mas como algo que se
mantém em permanente abertura.
É ainda a partir dessa desautorização de uma teleologia para a multiplicidade de
recortes da cidade que cremos reafirmar a importância do contemporâneo para tal
estudo. Mais do que uma produção cronologicamente recente, trata-se antes de uma
produção que opera sua própria inconclusão; uma zona onde a descoberta e o
reconhecimento da urbanidade ainda são um processo de apropriação e reapropriação da
palavra que, por seu próprio dinamismo e multiplicidade, é avesso a qualquer
cristalização definitiva.
113
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