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Revista Pandora Brasil - Nº 45 - Agosto de 2012 - ISSN 2175-3318
"Georges Bataille - Cinquentenário de sua morte"
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REFLEXÕES ACERCA DE HISTOIRE DE L’ŒIL:
IMAGENS E REFERÊNCIAS
Maria Cláudia Rodrigues Alves
Tout homme qui a l’œil ouvert sur la vie et qui la voit
palpiter sous l’épiderme des choses, tout homme qui voit les
substances et qui les aime, a dans le fond de son être un peintre
qui sommeille.
Odilon Redon1
Revisitar Bataille e sua obra Histoire de l’œil nos conduz inevitavelmente a uma
viagem por nossos próprios fantasmas, referências e uma série de imagens. Imagens que
foram precursoras da fotografia de Man Ray, que, por exemplo, ilustra sutil e
impecavelmente a recente edição de História do olho da editora Cosac Naify
(BATAILLE, 2012, capa), ou das fotos que serviram de estudo a Hans Bellmer para
ilustrar obras de Bataille. A releitura passa sempre pelos primeiros sobressaltos diante
da crueza do relato e pouco a pouco vai se remodelando no que o próprio Bataille
descreveu como o “essencial da narrativa”, em citação recuperada por Eliane Robert
Moraes e inserida em sua brilhante introdução “Um olho sem rosto”, na qual relembra-
nos ainda, entre outras, as considerações de Vargas Llosa sobre a dimensão
fantasmagórica dos escritos de Bataille (BATAILLE, 2012, p. 9-16). Nosso percurso é
inicialmente incerto, mas pleno de flashes que contemplam, sobretudo, nossa memória
visual, um pouco do erótico transgressor e também do fantástico. Nesse sentido, ao
revisitarmos, pois, Bataille, optamos dar livre curso à rede associativa que surgiu de
nossa releitura e motivou-nos a realizar este escrito, permitindo, assim, que nossas
referências visuais relacionadas ao erotismo aflorassem, nesse novo momento em que
reencontramos Bataille e sua História do olho e compartilhando um pouco de nossos
devaneios. Tratam-se, pois, essencialmente, de algumas reminiscências transgressoras
em pintura, alvo de nossas pesquisas atuais que, esperamos, possam provocar o
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interesse e a curiosidade do leitor, incitando-o a aprofundar posteriormente as
informações aqui colocadas. Pode parecer bizarro ao leitor que duas referências tão
distintas surjam a nós de imediato, porém, vale salientar que, em busca da “essência”
em pintura, tanto Gustave Courbet quanto Edouard Manet chocaram esteticamente seus
contemporâneos. Mais de uma vez Courbet havia surpreendido o público e os pintores
mais tradicionais com seus nus femininos sensuais e realistas (como com Le sommeil/O
sono), no entanto, o perturbador L’origine du monde/A origem do mundo, realizado sob
encomenda para figurar na coleção particular do diplomata Khalil-Bey, existiu na
clandestinidade, encoberto por outras pinturas, e passou de mão em mão até ser
apresentado ao público somente em 1988, em Nova Iorque. Não é à toa que o quadro
pertenceu ao psicanalista Jacques Lacan, antes de sua entrada no Musée d’Orsay, em
1995.
Já a tela L’asperge/O aspargo, nasce de um acontecimento que se tornou
anedota no meio artístico: Manet realiza para Charles Ephrussi uma natureza morta na
qual figura um maço de aspargos (La botte d’asperges/O maço de aspargos). Muito
satisfeito com o resultado, envia mil francos ao pintor em vez do combinado, oitocentos
francos. Com muito humor, Manet pinta um único aspargo sobre uma mesa de mármore
e envia a Ephrussi com o recado de que faltava um aspargo ao maço: Il manquait une
asperge à votre botte. Georges Bataille dirá a respeito desse único aspargo que não se
tratava de uma natureza morta como as outras, pois transbordava de vivacidade,
revelando a essência da pintura, sendo o objeto apenas pretexto à arte em si.
(BATAILLE, 1955).
L’origine du monde (1866) L’asperge (1880)
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À parte esses devaneios iniciais, nossas referências nos conduziram a um artista
contemporâneo de Courbet e Manet, aficionado por literatura e para quem o OLHO é
elemento essencial na composição e seus primeiros trabalhos, sobretudo nos que
consagrou a Edgar Allan Poe e, em seguida, a Baudelaire: estamos falando de Odilon
Redon, cuja obra, em sua fase dos noirs, foi onírica e fantasmagórica, tendo inspirado as
vanguardas do século XX.
Vision (1883) Une vision première essayée
dans les fleurs (1883)
L’œil au pavot (1892)
O pintor simbolista foi um grande leitor e homenageou Edgar Allan Poe em
1882, realizando seis litografias (mais o verso da capa), nas quais o OLHO se destaca
desde a primeira e torna-se obsessão, leitmotiv de sua obra. Assim, o olho é para Redon
“espelho do universo, testemunha, silenciosa e portador da criação” (NOCE, 2011, p.
77). Na segunda metade do século XIX, o olho está diretamente ligado tanto à evolução
cientificista, pois através dele e de novas versões de equipamentos nos é possível
melhor observar o macro e o micro, quanto à ideia de perfeição do criador defendida
pela Igreja Católica em contraponto aos darwinistas. O olho é, pois, em sua
complexidade e perfeição, um órgão essencial ao progresso científico, ao
evolucionismo, ao mesmo tempo que serve de pretexto às teorias criacionistas. Redon
explora essa tensão em seus desenhos. As figuras híbridas que muitas vezes resultavam
de teorias de cientistas como as de Lamark, tornam-se gentis ciclopes para Redon.
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Le polype (1883) Polyphème et Galatée (circa 1914)
O olho, como podemos ver tão bem nas pranchas dedicadas a Poe, pode ser “o
do pesadelo, da loucura, do suicídio ou assassinato primitivo, versificado por Victor
Hugo ou ainda aquele que fica espreitando atrás da porta de Poe” (NOCE, 2011, p. 77).
L'oeil, comme un ballon bizarre se dirige vers
l'infini
Devant le noir soleil de la mélancolie, Lenor apparaît
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Un masque sonne le glas funèbre A l'horizon, l'ange des certitudes, et, dans le ciel
sombre un regard interrogateur
Le souffle qui conduit les êtres est aussi dans
les sphères
La folie
Verso da capa
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Já em as nove águas-fortes realizadas para As flores do mal, em 1890, o olho,
quando presente, mal aparece aberto (apenas um rosto na sexta imagem apresenta os
olhos abertos), torna-se discreto, prevalecendo a sensualidade e o aspecto onírico, além
de uma certa melancolia. Na última estampa, Cul-de-lampe, título que indica o
procedimento utilizado para finalizar o conjunto, vemos literalmente o movimento de
uma pena na estranha composição que parece ser uma flor, com olhos negros sem
pupilas cujo caule termina no “R” de Redon. Cul-de-lampe, última prancha dedicada a
Baudelaire, apesar da grande diferença em ter os dois conjuntos, dialoga com a primeira
prancha dedicada a Poe devido à construção de formas bizarras inventadas pelo pintor,
órgãos separados do corpo e inseridos em outro contexto. A fragmentação do corpo
mostra a incompletude dos seres, e são túneis de passagem para outras dimensões, para
os sonhos talvez, para o cosmos, em busca de uma unidade perdida. Para Redon, tudo
está no olhar, mas, em geral, os olhos são solitários, únicos ou num perfil.
Capa - frontispício Je t'adore à l'égal de la voûte nocturne, ô vase de
tristesse, ô grande taciturne!
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Parfois on trouve un vieux flacon qui se souvient,
d'où jaillit toute vive une âme qui revient
Si par une nuit lourde et sombre, un bon
chrétien, par charité, derrière quelque vieux
décombre, enterre votre corps vanté
Volupté, fantôme élastique! Sur le fond de mes nuits, Dieu, de son doigt
savant, dessine un cauchemar multiforme et sans
trêve
Sans cesse à mes côtés s'agite le démon Gloire et louange à toi, Satan, dans les hauteurs
du ciel où tu régnas, et dans les profondeurs de
l'enfer, où vaincu, tu rêves en silence!
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Cul-de-lampe
Redon chamava seus desenhos consagrados a obras literárias, mesmo os
encomendados (para os escritos de Émile Verhaeren, Huysmans, Flaubert...) de
“traduções”, “interpretações” e nunca de “ilustrações”. Após sua morte, um caderno
com textos de sua autoria foi encontrado e só recentemente foi publicado na França.
Nesses textos, de um amante da literatura que se aventurou a escrever, mas que manteve
suas modestas experiências escondidas, o OLHAR também é protagonista.
Dentre os artistas que ilustraram a obra de Georges Bataille, destacam-se André
Masson, Hans Bellmer e Jean Fautrier. Seja pela presença do olho, do ovo, do sol, seja
pela sutileza das linhas que percebemos em algumas das pranchas de Fleurs du mal,
seja pelo aspecto fantasmagórico, seja pelos membros fragmentados e pelos olhos
solitários em busca de uma unidade, ilustrações eróticas consagradas à obra de Bataille
nos remetem, inevitavelmente, à de Redon, um dos precursores das ousadias do século
XX.
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Hans Bellmer
Histoire de l’œil / Madame Edwarda
Hans Bellmer
Madame Edwarda
Hans Bellmer
Histoire de l’œil (1947)
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André Masson
Histoire de l’œil (1928)
Jean Fautrier
L’Alleluiah, catéchisme de Dianus
*
MARIA CLÁUDIA RODRIGUES ALVES
Professora Assistente Doutora em Língua e Literatura Francesa da UNESP-IBILCE,
Campus de São José do Rio Preto. Dedica-se à pesquisa de textos e paratextos, literatura
contemporânea e violência, recepção de literatura brasileira traduzida e relações Brasil-
França.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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1955.
______. Histoire de l’œil. Paris: Jean-Jacques Pauvert, 1967.
______. História do olho. Tradução de Eliane Robert Moraes. São Paulo: Cosac Naify,
2012.
NOCE, V. Odilon Redon dans l’œil de Darwin. Paris: Éditions de La RMN-Grand
Palais (L’Inattendu), 2011.
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REDON, O. À soi-même: journal 1867-1915. Paris: José Corti, 2011a.
______. Odilon Redon:Prince du Rêve – 1840/1916. Paris: Éditions de la RMN-Grand
Palais/ Musée d’Orsay/ADAGP (catalogue d’exposition), 2011b.
IMAGENS
MANET.
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COURBET.
http://www.musee-orsay.fr/fr/collections/oeuvres-.
commentees/recherche.html?no_cache=1&zoom=1&tx_damzoom_pi1%5BshowUid%5
D=2406. Acesso em 20 de julho de 2012.
REDON/CYCLOPE. http://luths.hautetfort.com/tag/cyclope. Acesso em 18 de julho de
2012.
http://2.bp.blogspot.com/-
97c8jOCPKuw/Tnk3r3VjYPI/AAAAAAAACWg/q2XRdPGJ6yE/s1600/redon_cyclops
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ODILON REDON/POE. http://lechantdupain-odilonredon.blogspot.fr/p/edgar-poe-
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ODILON REDON/BAUDELAIRE. http://www.maitres-des-arts-graphiques.com/-
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HANS BELLMER. http://edencash.forumactif.org/t682-georges-bataille-erotisme-et-
transgression. Acesso em 15 de julho de 2012.
http://annefrancoisekavauvea.blogspot.com.br/2010/09/sous-le-ciel-etoile-le-mal.html.
Acesso em 15 de julho de 2012.
JEAN FAUTRIER. http://www.communicart.fr/les-catalogues/un-catalogue-bjean-
fautrierb-pour-la-galerie-di-meo/. Acesso em 16 de julho de 2012.
1 Imagem : REDON, O. Vision.1879. www.wikipaintings.org. Acesso em 12 de janeiro de 2012.
Texto: REDON, O. À soi-même: journal 1867-1915. Paris: José Corti, 2011; p. 160.
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