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[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ 1964-2014: 50 ANOS DEPOIS, A CULTURA AUTORITÁRIA EM QUESTÃO]
Ano 4, n° 5 | 2014, vol.1 ISSN [2236-4846]
Reflexões sobre a representação da esquerda armada no cinema
brasileiro Wallace Andrioli Guedes
1
RESUMO:
O presente trabalho discute os caminhos seguidos pelo cinema brasileiro ao abordar o tema
da instalação e consolidação da ditadura civil-militar no país e, particularmente, da luta
armada de setores da esquerda contra esse regime. O texto está focado em como tal
esquerda apareceu no cinema em três momentos distintos da história recente do Brasil: o
imediato pós-golpe de 1964; os anos da abertura política que reconduziu o país à
democracia; e o período pós-redemocratização, especialmente o final da década de 1990.
Busca-se, assim, analisar as continuidade e rupturas na representação cinematográfica da
guerrilha de esquerda no Brasil.
PALAVRAS-CHAVE: Ditadura civil-militar brasileira, cinema, luta armada.
ABSTRACT:
The present article discusses the paths that the Brazilian cinema followed when
approaching the matter of the implementation and consolidation of the civilian and military
dictatorship in the country, and especially the gunfight that the left-wing invested against
the government. The text focuses on how this left-winged movement showed up on the
cinema in three different moments in the recent Brazilian history: immediately after the
1964 coup; during the years of political opening that led the country back to democracy;
and the period after the return of the democracy, especially in the end of the 1990s. The
aim of this article is, therefore, to analyze the continuity and the ruptures in the
cinematographic representation of the left-winged Brazilian guerrilla.
KEY-WORDS: Brazilian dictatorship, cinema, guerrilla.
1 Doutorando em História Social no Programa de Pós-Graduação em História/ Universidade Federal
Fluminense (PPGH/UFF)
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Ano 4, n° 5 | 2014, vol.1 ISSN [2236-4846]
O presente trabalho busca analisar as representações da esquerda armada pelo
cinema brasileiro, com destaque para três momentos específicos: os primeiros anos pós-
golpe de Estado de 1964; o início da década de 1980, período culminante da lenta, gradual
e segura abertura política promovida pela ditadura civil-militar; e o final da década de
1990, contexto da chamada retomada da produção cinematográfica brasileira (após o fim
da Embrafilme e a crise enfrentada durante o governo do presidente Fernando Collor de
Mello), quando o tema da guerrilha reapareceu em algumas obras.
Os filmes discutidos neste texto são: para o primeiro período, O desafio (1965), de
Paulo César Saraceni, Terra em transe (1967), de Glauber Rocha, e As armas (1969), de
Astolfo Araújo; para o segundo, Pra frente Brasil (1982), de Roberto Farias, e O bom
burguês (1983), de Oswaldo Caldeira; para o terceiro período, O que é isso, companheiro?
(1997), de Bruno Barreto.
Quando ocorreu o golpe de Estado que derrubou o governo constitucional de João
Goulart (1961-1964), o cinema brasileiro vivia um momento de esplendor criativo. Filmes
como O pagador de promessas (1962), de Anselmo Duarte, Vidas secas (1963), de Nelson
Pereira dos Santos, Os cafajestes (1962) e Os fuzis (1964), de Ruy Guerra, e Deus e o
diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha, eram exibidos e premiados em alguns dos
mais importantes festivais de cinema do mundo.2 Esse grupo de filmes, do qual ainda fez
parte Barravento (1962), também de Rocha, constituiu os primeiros passos do movimento
cinematográfico que ficaria conhecido como Cinema Novo.
Engajados no esforço de produzir um cinema moderno no Brasil – em diálogo com
correntes internacionais como o Neorrealismo italiano3 e a Nouvelle Vague francesa
4 – que
2 O pagador de promessas venceu o prêmio principal do Festival de cinema de Cannes, na França, em 1962,
a Palma de Ouro; Vidas secas ganhou o prêmio da crítica no Festival de Cannes de 1964 e foi indicado à
Palma de Ouro; Os fuzis ganhou o prêmio de melhor diretor no Festival de cinema de Berlim, na Alemanha,
em 1964, enquanto Os cafajestes foi indicado ao prêmio principal do mesmo festival em 1962; assim como
Vidas secas, Deus e o diabo na terra do sol foi indicado à Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1964. O
próprio Roberto Farias tivera, em 1960, um filme seu em competição no Festival de Cannes: Cidade
ameaçada. Fonte: www.imdb.com 3 O movimento denominado Neo-realismo italiano tem como marco inicial tradicional o lançamento do filme
Roma, cidade aberta, de Roberto Rossellini, em 1945 – no entanto, segundo um de seus principais expoentes,
Luchino Visconti, o cinema neo-realista teria iniciado-se em 1943, com seu primeiro longa-metragem,
Obsessão. Tendo como principal nome, além de Rossellini e Visconti, Vittorio De Sica, tal movimento
buscou, na Itália pós-fascismo e pós-Segunda Guerra Mundial, "levar a uma mudança nas relações entre
cinema e espectadores, inventando uma nova linguagem cinematográfica, que o grande público pudesse
compreender e, graças a ela, adquirir uma maior consciência cultural e social". Para os adeptos deste cinema,
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tratasse dos problemas sociais do país (miséria, desigualdades, relação do povo com a
religião e com o poder, o choque entre campo e cidade, o papel da classe média na
sociedade, entre outros), os diretores do Cinema Novo realizaram filmes de envolvimento
político com a realidade brasileira. Havia em obras como Deus e o diabo na terra do sol,
Barravento, Os fuzis e Vidas secas, por exemplo, certo desejo político de mudança, uma
esperança depositada na força transformadora dos grupos explorados e miseráveis. “O
sertão vai virar mar, o mar virar sertão”, cantavam os versos otimistas que encerravam
Deus e o diabo na terra do sol, enquanto os personagens de Yoná Magalhães e Geraldo
Del Rey corriam rumo ao mar.
Essa produção cinematográfica politizada e colocada à esquerda no campo político
brasileiro da época sentiu os impactos do golpe de 1964. Os cinemanovistas logo trataram
de tematizar, com lamento e desilusão, a derrota sofrida, em filmes como O desafio (1965),
de Paulo César Saraceni, e Terra em transe (1967), de Glauber Rocha. Surgiram aí as
primeiras representações cinematográficas da ditadura civil-militar brasileira.
não cabia mais representar a realidade, mas mostrá-la. Segundo classificação feita por Raymond Borde e
André Bouissy, citada por Mariarosaria Fabris, as principais características do Neo-realismo seriam: 1) A
utilização freqüente dos planos de conjunto e dos planos médios e um enquadramento semelhante ao
utilizado nos filmes de atualidades: a câmera não sugere, não disseca, só registra; 2) A recusa dos efeitos
visuais (superimpressão, imagens inclinadas, reflexos, deformações, elipses), caros ao cinema mudo: o Neo-
realismo - se quisermos forçar um pouco as coisas - retoma o cinema lá onde os irmãos Lumière o tinham
deixado; 3) Uma imagem acinzentada, segundo a tradição do documentário; 4) Uma montagem sem efeitos
particulares, como convém a um cinema não tão acentuadamente polêmico ou revolucionário; 5) A filmagem
em cenários reais; 6) Uma certa flexibilidade na decupagem, que implica um recurso freqüente à
improvisação, como decorrência da utilização de cenários reais; 7) A utilização de atores eventualmente não-
profissionais, sem esquecer, no entanto, que o neo-realismo se valeu de intérpretes famosos como Lúcia
Bosè, Aldo Fabrizi, Vittorio Gassman, Massimo Girotti, Gina Lollobrigida, Sophia Loren, Folco Lulli, Anna
Magnani, Silvana Mangano, Giulietta Masina, Amedeo Nazzari, Alberto Sordi, Paolo Stoppa, Raf Vallone e
Elena Varzi, só para citarmos os italianos; 8) A simplicidade dos diálogos e a valorização dos dialetos, que
levou diretores como Visconti e Emmer a usá-los, na ilusão de transmitir ao público uma imagem verdadeira
da Itália, sem intermediários, sem tradução; 9) A filmagem de cenas sem gravação, com sincronização
realizada posteriormente, o que tornava possível uma maior liberdade de atuação; 10) A utilização de
orçamentos módicos: o cinema social de alto custo não existe, caso contrário, deixa de ser social.
(MASCARELLO, 2006, pp. 191-219) 4 A Nouvelle Vague foi um movimento cinematográfico francês, iniciado por volta de 1958-1959 – com o
lançamento dos filmes Nas Garras do Vício (1958), de Claude Chabrol, Os incompreendidos (1959), de
François Truffaut, Hiroshima, Mon Amour (1959), de Alain Resnais, e Acossado (1960), de Jean-Luc Godard
–, proveniente da prática do cineclubismo, da cinefilia e da experiência de alguns destes cineastas na crítica
cinematográfica (através da revista Cahiers du Cinéma), e que trouxe para o cinema francês – e mundial,
posteriormente – inovações narrativas (como a montagem abrupta, descontínua e fragmentada) e estéticas,
tirando as câmeras dos estúdios e levando-as às ruas (de Paris, principalmente). Estabeleceu um profícuo
diálogo com o cinema norte-americano, com as referências da cultura pop, com o neo-realismo italiano e com
a linguagem do documentário. (MASCARELLO, 2006, pp. 221-152)
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O desafio e Terra em transe exprimiam a perplexidade dos intelectuais de esquerda
diante do golpe e um esforço de compreensão daquele evento político. Obras amargas,
pessimistas, espécie de resposta ao próprio Cinema Novo pré-1964 que, ainda assim,
conforme destaca Maria do Socorro Carvalho, buscavam manter-se coerentes com a
estética do movimento – mas aprendendo a dura lição de que “não tinham nem força nem
poder para transformar a realidade” (MASCARELLO, 2006, p. 298).
O primeiro – que acompanha um jornalista de esquerda sofrendo com a recente
mudança política no país, enquanto se relaciona amorosamente com a esposa de um
industrial que apoia a ascensão dos militares ao poder – era, nas palavras de Carvalho, “o
grito sufocado na garganta dos que viram seus projetos artísticos e individuais abalados por
um regime militar” (MASCARELLO, 2006, p. 300), um filme feito no calor do golpe, uma
tentativa desesperada de expressar o horror diante do ocorrido.
Terra em transe, por sua vez, almejava, com um pouco mais de distanciamento
temporal, entender o desenho político daquela sociedade que prometia a Revolução e
entregava um golpe de Estado conservador. Ao acompanhar as disputas políticas do
imaginário país Eldorado, vulgo Brasil, pelos olhos de um poeta/jornalista/intelectual de
esquerda, Glauber Rocha apontou seu devastador arsenal crítico não só para as elites
golpistas de direita, mas também para a própria esquerda, com seus intelectuais indecisos e
políticos demagógicos. Estava feita a crítica do dito populismo e da cultura nacional-
popular de esquerda na qual o próprio Cinema Novo se inserira no início da década de
1960. Conforme afirma, novamente, Carvalho,
Terra em transe é um filme político, que expressa uma determinada
reação da geração cinemanovista diante do triunfo da direita no país com
o golpe militar de 1964 (...). Com estética inovadora no cinema brasileiro,
o filme propõe uma análise daquele momento de perda de ilusões,
superação de certa ingenuidade política, questionamento das
potencialidades revolucionárias do povo, antecipando também o processo
que levaria ao fechamento completo do regime a partir de dezembro de
1968. (MASCARELLO, 2006, p. 301)
Terra em transe opta por representar a realidade política brasileira por vias
alegóricas. No filme de Glauber Rocha, como aponta Ismail Xavier, Eldorado serve como
“representação da cena brasileira, hierarquizando agentes, espaços, ações para figurar um
acontecimento: o golpe de 1964” (XAVIER, 2012, p. 106). Seus personagens passam a
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condensar, cada um, “atributos variados, encarnando numa unidade singular um conjunto
de segmentos da sociedade, uma convergência de posição política e inclinação
psicológica” (XAVIER, 2012, p. 106). Assim, continua Xavier, Porfírio Diaz (Paulo
Autran) representa “a tradição ascética, cristã, conservadora”; Fuentes (Paulo Gracindo),
“a burguesia progressista, a face moderna da classe dominante”; Vieira (José Lewgoy), “o
líder populista de origem rural, ‘coronel’ com verniz urbano que se alia ao progresso”;
Sara (Glauce Rocha), “a militante de partido, figura disciplinada que cumpre as tarefas
necessárias à preparação de um novo tempo” (XAVIER, 2006, pp. 106-108), e assim por
diante. “Cada uma das personificações tem lugar específico na geografia de Eldorado, no
desenvolvimento das ações e na ordem cósmica de Terra em transe”, completa Xavier
(XAVIER, 2012, p. 108).
Nesse ponto, o autor destaca que Rocha vai além dessa alegoria didática, não
permitindo “uma relação termo a termo com referentes encontrados, por exemplo, na
realidade brasileira, pois a galeria de tipos quer se referir a algo mais do que as
personagens da vida política da década de 60” (XAVIER, 2012, p. 110). O cineasta insere
no jogo alegórico de Terra em transe elementos mágicos/religiosos que se confundem com
a História brasileira recente personificada em Eldorado:
O filme se põe como franca expressão de um estado de espírito e destila
um sentimento globalizante da crise, que não hesita em imprimir um
sentido mítico fundamental à análise dos eventos políticos, em verdade,
assumidos como parte de uma totalidade maior só compreensível a partir
de uma peculiar representação da política. No topo dessa figuração que
quer totalizar, alcançar ordens que julga mais fundas, há a metáfora do
transe para caracterizar a crise nacional. Com essa tônica, a lógica dos
interesses materiais se vê articulada à força de um mundo de símbolos
que parece disputar a hegemonia pela condução dos gestos, resultando em
um conjunto de ambivalências que tornam mais opaca a textura do social,
e gerando o movimento de dupla determinação tão característico a Terra
em transe. Dados o esquema e a hierarquia, a ordem social vira ordem
cósmica, a ação assume uma dimensão ritual, cumprimento de um
programa; o filme, nos seus traços de estilo, vai sugerindo outras esferas
de determinação que apontam para o aspecto mágico-religioso, expresso
com maior ênfase na feição de ‘possesso’ de seus agentes. O progresso da
trama política apresenta informações suficientes para adquirir
consistência própria, mas resta o dado estranho dessa identidade de estilo
de conduta que, em verdade, impele todos os atores políticos de Eldorado
a cumprirem seu papel em tal programa, notadamente na hora do transe; a
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exibirem uma fé em sua ‘ideia fixa’, que vem a sabotar as ilusões de
liberação e mostrar a tentativa de ‘fazer história’, produzir o novo, como
montagem de um cenário de repetição. (XAVIER, 2012, p. 111)
Terra em transe, portanto, fala sim da política brasileira da década de 1960, sob
impacto direto dos fatos de 1964, mas apostando numa representação totalizante de
Eldorado (Brasil) que vai além dessa conjuntura, condenando o país imaginário (e o real) a
uma eterna repetição que, conforme analisa Xavier, remete ao seu mito de fundação,
também encenado no filme (XAVIER, 2012, pp. 116-117). Mesmo evitando uma
representação que mimetizasse a realidade,5 Rocha construiu aquela que tornou-se,
provavelmente, a obra-síntese de como a esquerda cultural absorveu o impacto do golpe de
1964.
Ainda sob o calor dos acontecimentos, da derrota sofrida pela esquerda, O desafio e
Terra em transe colocaram em pauta também a possibilidade de, diante de um inimigo
autoritário e muito mais poderoso, se optar pela luta armada. Em ambos os casos, essa
opção é apenas sugerida, apontada como um caminho possível a partir do reconhecimento
da vitória das forças da reação. Em O desafio, na verdade, a luta armada surge como
inferência permitida pela cena final, na qual o protagonista Marcelo (Oduvaldo Vianna
Filho) caminha, desiludido, em direção à cidade, ao som da canção-tema da peça teatral
Arena conta Zumbi.6 Conforme destaca Mônica Brincalepe Campo,
5 Terra em transe é filho direto dos pressupostos cinemanovistas: possui narrativa fragmentada, descontínua,
cheia de rupturas internas que materializam em imagem a agonia de seu protagonista. Como aponta
Carvalho: “O filme (...) seria mais uma expressão poética do que ficcional, pois sua narrativa rompe com a
linearidade, evitando a cronologia. Em sua estrutura livre, cada sequência é um bloco isolado, narrado em
estilos diversos, que procura analisar um aspecto desse tema complexo. Usando o delírio verbal de um poeta
que está morrendo, vítima da polícia/política, Terra em transe é a história do ápice de uma revolução
frustrada.” (XAVIER, 2012, pp. 116-117)
6 Arena conta Zumbi foi um musical escrito por Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal em 1965, com
música de Edu Lobo. O desafio é encerrado com a canção “Tempo de guerra”, cuja letra, na versão da peça,
diz: “Eu vivo num tempo de guerra/ Eu vivo num tempo sem sol/ Só quem não sabe das coisas/ É um homem
capaz de rir./ Ai triste tempo presente/ em que falar de amor e flor/ é esquecer que tanta gente/ tá sofrendo de
dor./ Todo mundo me diz/ que devo cume e bebê/ mas como é que eu posso comer/ mas como é que eu posso
beber/ se eu sei que estou tirando/ o que vou comer e beber/ de um irmão que está com fome/ de um irmão
que está com sede/ de um irmão./ Mas mesmo assim eu como e bebo./ Mas mesmo assim, essa é a verdade./
Dizem crenças antigas/ que viver não é lutar./ Que sábio é o que consegue/ ao mal com o bem pagar./ Quem
esquece a própria vontade,/ quem aceita não ter seu desejo/ é tido por todos um sábio./ É isso que eu sempre
vejo/ é a isso que eu digo Não!/ Eu sei que é preciso vencer/ Eu sei que é preciso brigar/ Eu sei que é preciso
morrer/ Eu sei que é preciso matar./ CORO: É um tempo de guerra, é um tempo sem sol./ Sem sol, sem sol,
sem dó./ E você que me prossegue/ e vai ver feliz a terra/ lembre bem do nosso tempo,/ deste tempo que é de
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Marcelo [protagonista de O desafio] talvez veio a pegar uma
metralhadora, como Paulo Martins o fez em Terra em transe, ou tornou-
se guerrilheiro, como o padre em Quarup ou o intelectual em Pessach,
mas essa opção veio em momento posterior ao deste filme. Alternativas
que estavam ainda sendo formuladas e discutidas, por isso não se pode
obter clareza de posição neste filme. (CAPELATO ET AL., 2011, p. 252)
Em Terra em transe, o caminho para a luta armada é trilhado de maneira mais
explícita pelo protagonista Paulo Martins, ainda que ele também se concretize plenamente
apenas na cena final do filme. Paulo (Jardel Filho), protagonista de Terra em transe,
defende ardorosamente o enfrentamento armado das forças do governante progressista
Vieira (José Lewgoy) contra os golpistas comandados por Diaz (Paulo Autran). Frustrado
seu projeto, por culpa da covardia de Vieira (ele não era, afinal, o líder popular esperado
por Paulo), o protagonista foge, é baleado num cerco policial e, abandonado por sua
companheira de luta Sara (Glauce Rocha), agoniza nas dunas de metralhadora em punho,
talvez sinalizando para a luta armada como única saída possível.
Para Ismail Xavier, não há na atitude de Paulo uma defesa racional do confronto
armado a partir da avaliação de que a vitória seria possível. O poeta/jornalista “quer a luta
como ritual, sacrifício de sangue necessário à evolução da comunidade” (XAVIER, 2012,
p. 114). O embate armado teria um valor em si e a violência seria “um fator de redenção,
um ato político de purificação” (XAVIER, 2012, p. 115). É interessante notar como essa
concepção se assemelha à noção de “violência revolucionária”, bastante disseminada entre
os grupos radicais da esquerda na década de 1960, conforme analisa a historiadora Maria
Paula Araújo. Trata-se de uma interpretação positiva da violência como instrumento
legítimo de ação política, adotada por diversos grupos guerrilheiros do período, como as
Brigadas Vermelhas italianas, o Baader-Meinhoff alemão e as organizações armadas
brasileiras. A frase de Oriol Sole, dirigente do grupo catalão MIL-CAC, escrita na prisão-
modelo de Barcelona, citada por Maria Paula Araújo, sintetiza bem esse ideal: “A
violência revolucionária é uma resposta global do proletariado à violência do capital. As
guerra./ É um tempo.../ Veja bem que preparando/ o caminho da amizade./ Não podemos ser amigos/ Ao mal
vamos dar maldade/ É um tempo.../ Se você chegar a ver/ essa terra da amizade,/ onde o homem ajuda o
homem,/ pense em nós só com bondade./ É um tempo../ Essa terra eu não vou ver!” (grifos meus) Disponível
em: http://pyndorama.com/2009/01/arena-conta-zumbi-audio-da-peca-para-download/
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manifestações de raiva, de cólera etc. são expressões da guerra civil revolucionária latente”
(ARAÚJO, 2008). Glauber já havia explicitado um olhar positivado para a violência como
ação política transformadora tanto em Deus e o Diabo na terra do sol – vale lembrar que a
libertação de Manuel e sua esposa das estruturas arcaicas do sertão, representadas pelo
messianismo e pelo cangaço, se dão através do assassinato do líder messiânico Sebastião e
do cangaceiro Corisco pelo personagem Antônio das Mortes – quanto no manifesto
Estética da fome, de 1965:
Pelo Cinema Novo: o comportamento exato de uma faminto é a
violência, e a violência de um faminto não é primitivismo (...) somente
conscientizando sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode
compreender, pelo horror, a força da cultura que ele explora. Enquanto
não ergue as armas o colonizado é um escravo: foi preciso um primeiro
policial morto para que o francês percebesse um argelino
(...) essa violência, contudo, não está incorporada ao ódio, como também
não diríamos que está ligada ao velho humanismo colonizador. O amor
que esta violência encerra é tão brutal quanto a própria violência, porque
não é um amor de complacência ou de contemplação mas um amor de
ação e transformação. (ROCHA, 1981, pp. 31-32)
Terra em transe e O desafio, obras que acenam com bons olhos para a possibilidade
do combate armado à ditadura civil-militar instalada no Brasil em 1964 são sempre
lembrados quando se fala nas primeiras representações cinematográficas deste regime. Mas
vale citar aqui o caso do filme As armas, dirigido por Astolfo Araújo, que constrói um
discurso diverso sobre a guerrilha de esquerda no país. O longa-metragem de Araújo tem
como protagonista César, chofer que trabalha para uma organização de esquerda sobre a
qual ele pouco sabe. Ambicioso, o personagem se irrita com a pouca importância que lhe é
dada no interior da organização, passando paulatinamente ao enfrentamento com seus
superiores.
Ainda que o protagonista de As armas não seja um personagem de boa índole (ele é
apresentado pelo filme como egoísta, agindo violentamente com uma prostituta que recusa
beijar-lhe a boca e armando algumas artimanhas para conquistar as mulheres que deseja,
incluindo a filha do líder da organização para a qual trabalha), chama atenção a
representação claramente negativa da esquerda armada. Os membros de tal organização
são rudes no trato com o chofer e com outro funcionário mais velho – o que explicita seu
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elitismo e, no limite, justifica certas ações do protagonista. São também egoístas, imaturos
e hipócritas. Vale citar duas passagens do filme que confirmam essa visão construída por
Araújo.
Na primeira delas, que ocorre entre 22 minutos e 50 segundos e 24 minutos e 40
segundos de filme, César está em seu quarto assistindo ao noticiário, que fala da repressão
violenta da polícia a manifestações estudantis. Aparentemente preocupado, o personagem
se dirige ao líder da organização para relatar o ocorrido, mas a notícia é recebida com
indiferença por este, que orienta César a não se preocupar, já que não se tratava do seu
“pessoal”. A esquerda radical de As armas não só deixa de participar de manifestações de
rua, preferindo a conspiração inócua em ambientes privados, como se nega a solidarizar-se
com aqueles que, tendo feito a opção pelo enfrentamento aberto com a ditadura em espaços
públicos, sofrem com a repressão policial.
Na segunda passagem, César, já em total discordância com os outros membros da
organização – e sendo alvo da desconfiança destes –, decide espionar uma de suas
reuniões, na qual toma conhecimento da existência de grande quantia de armas e dinheiro
em posse dos militantes, que se preparam para uma revolução que nunca chega. Durante tal
reunião, o tema do constante adiamento das ações armadas é levantado e o personagem
Boris, braço direito do líder do grupo, argumenta que não há motivos para preocupação, já
que eles sempre brincaram de fazer revolução.7 Mais uma vez a luta armada surge
negativada no filme, representada como brincadeira de jovens imaturos ou manipulação de
adultos inescrupulosos e gananciosos.
É verdade que O desafio e Terra em transe eram críticos à atuação da esquerda no
pré-1964, particularmente à figura do intelectual, que atuava com paternalismo em sua
relação idealizada com o povo – não à toa, os protagonistas de ambos os filmes chegam ao
final das narrativas em estado de isolamento, consequência direta de sua incapacidade de
compreender os reais desejos dos explorados. No entanto, Saraceni e Glauber pareciam
ainda acreditar na saída, ainda que extrema, do combate armado contra a ditadura, capaz de
fazer o povo “sair de sua condição amorfa e atingir o status de coletividade orgânica capaz
de expressar coesão e identidade” (XAVIER, 2012, p. 114). Pelo menos Paulo Martins, o
7 A cena se desenrola entre 38 minutos e 30 segundos e 40 minutos e 05 segundos de filme.
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protagonista de Terra em transe, crê nesse caminho. As armas, por sua vez, é como uma
resposta ainda mais amargurada, e talvez reacionária, a essa crença. Para Araújo, a
esquerda é necessariamente imatura, elitista e egoísta e a opção pelas armas só ressalta
essas características. É como se tal postura da esquerda apresentada por Astolfo Araújo
fosse um prolongamento natural – ainda que extremado – das ações de Marcelo e Paulo em
O desafio e Terra em transe.8
Apontei para o possível posicionamento político reacionário do filme de Araújo por
conta não só da crítica veemente à esquerda, mas também pela presença de um diálogo,
logo na primeira cena, em que são contrapostas uma postura pessimista e uma otimista em
relação ao novo governo brasileiro. E os argumentos daquele (não sabemos quem são os
personagens, já que seus rostos não são mostrados em momento algum) que defende a
confiança nos que ocupam o poder parecem bem mais convincentes, baseados em fatos
concretos apresentados pelo governo. Segue a transcrição do diálogo:
Personagem 1 (o pessimista): Puxa, será que a gente vai melhorar num
curto esquema? Do jeito que tá não dá pé não!
Personagem 2 (o otimista): É claro! Não tá vendo os planos do governo?
É só ter um pouco de paz para trabalhar que você vai ver.
Personagem 1: Olha, do jeito que a minha vida tá, meu velho, só tenho
paz na hora que eu durmo. Sabe que eu estou sendo despejado? O cara lá
tá querendo a casa.
Personagem 2: Ah, mas você não viu no jornal? O problema da casa
própria é o primeiro que vai ser resolvido. Bom, o plano habitacional tá aí
pra um fim, só falta ser aplicado.
Personagem 1: No duro?
Personagem 2: Espera um pouco, deixa eu ver se eu pego aquele maço de
cigarro.
Personagem 1: Olha, eu não acredito nisso não, viu? Eu acho que vou
acabar dormindo embaixo de uma ponte, isso sim.
8 O olhar crítico para a atuação da esquerda também apareceu no filme Estranho triângulo (1970), de Pedro
Camargo, no qual a militância política na década de 1960 aparece como um subtema que, vez ou outra,
interfere na trajetória do protagonista Durval, jovem que se envolve num inusitado triângulo amoroso com
um homem mais velho e sua esposa. Está presente em tal longa-metragem uma crítica à fragilidade dos ideias
defendidos pelos jovens esquerdistas, manifesta, por exemplo, na afirmação do personagem Werner de que
“toda ideologia morre quando se ganha o primeiro milhão” – o que seria confirmado pela mudança no
comportamento de Durval, que de simpático aos protestos dos estudantes, mesmo participando de alguns
deles, passa ao total desinteresse pelas atividades políticas ao experimentar uma vida de conforto sob a
proteção de Werner – e na sequência em que um grupo de jovens, dentre eles o protagonista, agride
verbalmente um casal de holandeses, confundidos com americanos, e Walter, amigo de Durval, repreende os
demais colegas, dizendo ter pena de sua Revolução. Como o destaque dado à questão da militância de
esquerda é muito pequeno em Estranho triângulo, optei por não analisa-lo de maneira detalhada neste artigo.
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Personagem 2: Ah, não seja pessimista, precisa acreditar em alguma
coisa! Se todo mundo pensar como você, nada vai pra frente.
Personagem 1: Olha, desde que eu nasci estou ouvindo essa conversa.
Entra governo, sai governo, o país vai pra frente e a gente só vai pra trás.
Personagem 2: Ah, também não é tanto assim!
Da postura minimamente esperançosa na opção pelas armas em O desafio e Terra
em transe à crítica veemente às organizações de esquerda em As armas. Se os dois
primeiros filmes ocupam papel de destaque nos estudos acadêmicos sobre o cinema do
período e nas antologias acerca da produção cinematográfica acerca da ditadura, enquanto
o terceiro foi quase completamente esquecido em ambos os espaços, não deixa de ser
curioso observar que o olhar negativo para os guerrilheiros se prolongou no tempo,
reaparecendo em momentos posteriores no cinema brasileiro. No contexto da abertura
política (segunda metade da década de 1970 e primeira metade da década de 1980), os anos
mais duros da ditadura civil-militar se tornaram tema recorrente para um cinema de viés
naturalista, bem diverso esteticamente de obras como Terra em transe e O desafio –
trazendo, como se esperaria, o subtema da guerrilha em seu bojo. São os casos de Pra
frente Brasil (1982), de Roberto Farias, e O bom burguês (1983), de Oswaldo Caldeira.
Pra frente Brasil narra a história de Jofre (Reginaldo Faria), cidadão de classe
média que, tido por “terrorista”, é sequestrado por um grupo de extrema-direita que passa a
torturá-lo barbaramente enquanto sua família busca notícias de seu paradeiro. O pano de
fundo é a Copa do Mundo de futebol de 1970, com a população embalada e envolvida
pelas sucessivas vitórias da Seleção. Há no filme de Roberto Farias personagens ligados à
guerrilha: Mariana (Elizabeth Savalla), namorada de Miguel (Antônio Fagundes), irmão de
Jofre; e dois outros membros da organização da qual esta personagem faz parte, Ivan e Zé
Roberto (Luiz Mário Farias). Apresentados como jovens sonhadores, mas vazios de
conteúdo, os guerrilheiros têm importância na trama de Pra frente Brasil por contribuírem
para a vingança de Miguel contra os algozes de seu irmão. No entanto, eles representam o
outro extremo das torturas bárbaras cometidas pelos vilões do filme (liderados pelo temível
Dr. Barreto), um extremo também violento e que, por isso, deve ser igualmente extirpado.
Assim, ao final da narrativa de Farias, tanto torturadores cruéis quanto militantes radicais
de esquerda são mortos, restabelecendo o equilíbrio perdido, e pedido, de acordo com o
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discurso do filme, pelo país. Nesse sentido, o discurso político de Pra frente Brasil se afina
com o texto do letreiro – escrito por Farias a pedido da censura, como condição para
liberação da obra – que abre o filme:
Este filme se passa durante o mês de junho de 1970, num dos momentos
mais difíceis da vida brasileira. Nessa época, os índices de crescimento
apontavam um desempenho extraordinário no setor econômico. No
político, no entanto, o governo empenhava-se na luta contra o
extremismo armado. De um lado, a subversão da extrema esquerda, de
outro, a repressão clandestina. Sequestros, mortes, excessos. Momentos
de dor e aflição. Hoje, uma página virada na história de um país que não
pode perder a perspectiva do futuro. Pra frente Brasil é um libelo contra
a violência.
Já o personagem Miguel, que pega em armas para enfrentar não só o grupo de
Barreto, mas também seu ex-patrão Geraldo Braulen – empresário que financia o combate
clandestino à “subversão” –, é visto com bons olhos pelo roteiro de Farias, já que suas
motivações são puramente passionais, não estando contaminadas por quaisquer
pressupostos ideológicos. Miguel empreende uma busca por justiça e, posteriormente,
vingança, tema clássico no cinema hollywoodiano, que conduz o personagem a um duelo
típico do gênero western no epílogo de Pra frente Brasil.9
O bom burguês, por sua vez, acompanha a inusitada trajetória de Lucas (José
Wilker), bancário que desvia dinheiro de seu emprego para financiar a guerrilha enquanto
constrói uma fachada de empresário bem-sucedido – o que o leva a envolver-se também
com a repressão clandestina aos mesmos guerrilheiros que financia. Como Pra frente
Brasil, O bom burguês pinta um retrato dúbio da luta armada. Seus membros parecem
dotados de boas intenções, seja no caso de figuras mais jovens e inocentes como Joana e
Lauro (Anselmo Vasconcelos), seja no de líderes como Joel (Ivan de Almeida) e Raul
(Nelson Xavier). No entanto, o filme também destaca o caráter autoritário da organização
guerrilheira retratada, que acaba por sufocar a individualidade do casal Joana/Lauro (sopro
de vida em meio a um mundo sem graça e triste) e determinar a morte da primeira. Joana
tem suprimidas suas relações familiares (é duramente criticada por seus companheiros de
luta por ter fraquejado durante ação em um banco, ao ter se deparado com seu irmão
Lucas) e alegria da juventude (ela tem um raro momento de leveza quando retorna ao
9 Conforme ressaltam David Bordwell e Kristin Thompson, narrativas de vingança são comuns em westerns.
(BORDWELL & THOMPSON, 2008, p. 320)
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apartamento no qual morava com uma amiga universitária); Lauro tem de se contentar a
lembrar de sua infância através das frestas do sótão do esconderijo utilizado pela
organização, por onde observa algumas crianças soltando pipa. Num diálogo, ainda no
início do filme, o casal comenta sobre o autoritarismo do grupo do qual participam:
Lauro e Joana enquadrados em plano médio, em frente à linha do trem
próxima ao esconderijo de seu grupo.
Lauro: O Partido Comunista já era uma coisa velha, caquética. Mas isso
parece um jardim de infância. O caso não é um, dois ou três caras, mas a
engrenagem da organização. De boca só se fala em liberdade, mas por
dentro, por baixo, o que vai te devorando é um esquema de dominação.
Dá para você entender isso?
Joana: Dá. Você sabe que dá? Eu acho que é exatamente isso que eu
sinto, de vez em quando, assim, eu quero falar alguma coisa, assim,
contra aquilo que eles tão falando, contra aquilo que eles tão propondo...
mas eu não consigo! Eles fazem me sentir como uma criança, Lauro! Tá
entendendo?10
Também como em Pra frente Brasil, os guerrilheiros de O bom burguês, ao menos
os que ganham mais destaque, acabam punidos com a morte: Joana comete suicídio para
não entregar o próprio irmão à repressão; Lauro é preso e brutalmente torturado,
entregando a identidade da namorada e depois sumindo de cena (Thomas chega a prometer
a Joana que ele ainda está vivo, mas não sabemos, ao término do filme, se o vilão fora
sincero em sua fala); Raul é assassinado.
No mesmo depoimento presente no DVD de O bom burguês, Oswaldo Caldeira
explicitou o olhar crítico de seu filme para a esquerda armada:
O filme mostra que alguns revolucionários, algumas pessoas que estão
engajadas em organizações de esquerda pretensamente revolucionárias,
eram ou são muito parecidas com seus antagonistas de direita. (...) O
filme questionava certas atitudes, certos comportamentos e certas ações
da esquerda. Questionava através, claramente, de alguns personagens.
Isso é uma coisa também que causou estranhamento. Uma coisa que
depois voltou, virou café pequeno, todo mundo passou a criticar,
inclusive aí com tons de direita. O nosso filme, na época, em plena
ditadura, criticava não só a ditadura militar, como a própria ação de
esquerda.
10 O diálogo ocorre entre 22 minutos e 23 minutos e 7 segundos de filme.
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Apesar desse empenho de Caldeira em destacar o caráter inovador de seu filme, as
críticas de O bom burguês à esquerda armada não parecem se diferir muito daquelas
apresentadas por Roberto Farias em Pra frente Brasil. Ambos os longas-metragens, no fim
das contas, condenam a opção pelas armas, aproximando a extrema-esquerda da extrema-
direita em suas práticas violentas – ainda que se referindo aos primeiros como ingênuos,
vazios e dotados de boas intenções, enquanto os segundos são vilanizados. Já a fala de
Caldeira sobre a recorrência posterior da crítica às esquerdas no cinema brasileiro parece
remeter diretamente a uma tradição representativa dos jovens guerrilheiros como sinceros
sonhadores que fizeram escolhas equivocadas, tradição iniciada nesse contexto e que
também marcou presença em obras mais recentes, como O que é isso, companheiro?.
Baseado no livro homônimo de memórias do ex-guerrilheiro Fernando Gabeira, O
que é isso, companheiro?, dirigido por Bruno Barreto, se propõe a falar do sequestro do
embaixador norte-americano Charles Elbrick (Alan Arkin), em 1969, por organizações da
esquerda armada brasileira. O filme causou polêmica quando de seu lançamento nos
cinemas, particularmente por sua representação da luta armada e dos torturadores. No
primeiro caso, o longa-metragem de Barreto aposta em apresentar a guerrilha de esquerda
como um empreendimento de velhos militantes inescrupulosos – particularmente o
personagem Jonas (Matheus Naschtergaele), responsável pelo comando do sequestro, que
manipula outros personagens, mantém postura antipática ao protagonista do filme (com o
qual o público deve se identificar) e parece sedento pela chance de assassinar o sequestrado
– que manipulam jovens rebeldes ingênuos e sonhadores. Já Elbrick, no cativeiro em meio
a esses jovens, aparece como voz da razão, homem experiente e sábio que se contrapõe,
enquanto tal, à loucura comandada pelos militantes mais velhos.
Para complicar um pouco mais as coisas, O que é isso, companheiro? ainda traz a
figura de um torturador (Marco Ricca) que passa longe da crueldade per se que
caracterizava esse tipo de personagem em outros filmes sobre o período. O torturador de
Barreto sofre com crises de consciência por suas ações, parecendo, assim, mais humano
que o guerrilheiro Jonas, por exemplo. Ismail Xavier caminhou também nesse sentido em
sua análise do filme:
O Gabeira imaginário do filme e o embaixador definem uma relação que
consolida a imagem diferenciada de ambos diante dos outros,
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confirmando a vítima como a figura mais serena do episódio, espécie de
voz da razão que aconselha, dá palpites certos e compreende melhor o
que se passa, em contraste com a insegurança e a falta de formulação
mais lúcida por parte dos jovens rebeldes bem-intencionados, que acabam
por obedecer a um comandante dogmático e vingativo, que anula as
individualidades, qualquer que seja o lado em que estejam. (XAVIER,
2000, p. 118)
É importante destacar, no entanto, que parte desse olhar para o embate entre
guerrilheiros e repressão já estava presente no livro O que é isso, companheiro?, de
Gabeira. Para o autor, o embaixador Charles Elbrick era totalmente sincero em seus
comentários críticos à ditadura brasileira, uma figura imponente que remetia a um herói de
histórias em quadrinhos; os torturadores e demais policiais aparecem no livro com sua
brutalidade matizada, com Gabeira destacando as conversas amistosas que teve com eles e
o fato de a maioria ser composta não por homens sádicos, mas por trabalhadores comuns
que voltavam para casa ao final do expediente; por fim, ele também ressalta o
comportamento autoritário das organizações de esquerda, prevendo uma forte repressão
contra os intelectuais, caso elas chegassem ao poder (GABEIRA, 1996, pp. 128-148).
As críticas feitas pelo filme de Bruno Barreto à esquerda, portanto, não são novas:
além de presentes na obra memorialística de Gabeira, remetem a uma tradição iniciada no
cinema brasileiro ainda na década de 1960, com As armas (1969), e continuada nos anos
da abertura política, em obras como Pra frente Brasil (1982) e O bom burguês (1983). Tal
tradição começou, portanto, num filme de pouco apelo comercial e raramente lembrado
quando se fala em cinema e ditadura brasileira, mas foi apropriada e desenvolvida dentro
de outro tipo de cinema, caracterizado pela aproximação com gêneros de maior inserção
entre o grande público. O que é isso, companheiro? confirma essa apropriação. Ainda que
um olhar estritamente positivo sobre a luta armada apareça em filmes brasileiros recentes –
como em Cabra-cega (2005), de Toni Venturi, e no documentário Hércules 56 (2007), de
Sílvio Da-Rin, espécie de resposta da esquerda ao longa-metragem de Barreto –, a
disposição para criticar os guerrilheiros, apresentando-os ou como manipuladores ou como
ingênuos sonhadores, ainda parece sobreviver no cinema de caráter comercial produzido
no país.
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BIBLIOGRAFIA
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edition. New
York: McGraw-Hill, 2008.
CAPELATO, Maria Helena et al. História e cinema: dimensões históricas do audiovisual.
2ª ed. São Paulo: Alameda, 2011.
GABEIRA, Fernando. O que é isso, companheiro?. São Paulo: Companhia das Letras,
1996.
MASCARELLO, Fernando (org.). História do cinema mundial. Campinas, SP: Papirus,
2006.
ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Alhambra/Embrafilme,
1981.
XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento: Cinema Novo, tropicalismo, cinema
marginal. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro dos anos 90. In: Praga. Estudos marxistas. São
Paulo: Ed. Hucitec, junho de 2000.
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