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REINALDO PIZOLIO JR.
COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA E CONCEITOS CONSTITUCIONAIS
MESTRADO EM DIREITO DO ESTADO
DIREITO TRIBUTÁRIO
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC/SP
SÃO PAULO 2005
REINALDO PIZOLIO JR.
COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA E CONCEITOS CONSTITUCIONAIS
MESTRADO EM DIREITO DO ESTADO
DIREITO TRIBUTÁRIO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito do Estado – Direito Tributário, sob a orientação do Professor Doutor José Artur Lima Gonçalves
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC/SP
SÃO PAULO 2005
REINALDO PIZOLIO JR.
COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA E CONCEITOS CONSTITUCIONAIS
Banca Examinadora
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC/SP
SÃO PAULO 2005
AGRADECIMENTOS
Trago comigo a convicção de que uma das atividades mais relevantes a que nos podemos dedicar é a de agradecer. O agradecimento é fundamental e reconfortante, não é preconceituoso, não faz distinções e cabe em todo lugar e em qualquer tempo. O agradecimento – não o meramente protocolar, mas o sincero – presta duas homenagens: primeiro às pessoas às quais agradecemos, porque põe em evidência o relevante papel que desempenharam em nossa vida e em nossos atos; e depois a nós mesmos, porque nos lembra a cada instante que não podemos fazer nada sozinhos. Exercito agora, pois, essa tarefa que tanto me agrada e agradeço –– à Catherine e à Beatriz, pelo amor que me dão e pelas horas que me concederam para realizar este estudo; –– ao Léon Bonaventure e à Jette Bonaventure, pelo apoio e estímulo constantes e incondicionais; –– à minha mãe, Alcione, pela confiança que sempre depositou em mim, e ao meu pai, Reinaldo, por tudo; e ainda –– ao Professor José Artur Lima Gonçalves, pela orientação constante, exigente e precisa; –– ao Professor Marco Aurelio Greco, pela generosidade em discutir comigo algumas das idéias defendidas no presente trabalho; –– à Professora Teresa Arruda Alvim Wambier, porque há momentos na vida em que tudo o que se precisa é um voto de confiança e –– à Professora Íris Gardino, pelo carinho imenso e pela inestimável colaboração.
... as nossas ideias quotidianas e tradicionais acerca da realidade são ilusões que procuramos fundamentar durante grande parte das nossas vidas, mesmo correndo o considerável risco de tentar encaixar os factos na nossa definição de realidade em vez de fazermos o contrário. E a ilusão mais perigosa de todas é a de que existe apenas uma realidade. Aquilo que de facto existe são várias perspectivas diferentes da realidade, algumas das quais contraditórias, mas todas resultantes da comunicação e não reflexos de verdades eternas e objetivas.
Paul Watzlawick A realidade é real?
Mudar de lugar as palavras representa, muitas vezes, mudar-lhes o sentido, mas elas, as palavras, ponderadas, uma por uma, continuam, fisicamente, se assim posso exprimir-me, a ser exactamente o que haviam sido, ...
José Saramago
Ensaio sobre a lucidez
RESUMO
O presente trabalho tem por objeto o estudo da competência
tributária e dos conceitos jurídicos utilizados pela Constituição Federal – tais como
renda, faturamento, receita e serviços de qualquer natureza, entre outros – para a
sua discriminação entre os entes federativos.
Para tanto, fixamos como premissas fundamentais que a existência
dos conceitos constitucionais – presentes no chamado critério da materialidade –
constitui exigência lógica de conhecimento e de aplicação da Constituição; que
possuem conteúdo semântico mínimo e máximo; que integram a própria regra de
outorga de competência tributária e que desempenham a função de limitações
constitucionais ao poder de tributar.
Após o delineamento do corte metodológico, iniciamos o estudo pela
análise do Sistema Tributário Nacional e de dois de seus princípios – capacidade
contributiva e vedação do efeito confiscatório – para depois discorrermos sobre os
denominados postulados normativos, que consideramos elementos de auxílio da
interpretação jurídica ou pautas interpretativas.
Em seguida concentramos nossa atenção na própria interpretação
jurídica e abordamos seu caráter construtivo; sua estreita ligação com o ato de
aplicação da norma; as influências sofridas pelo intérprete e os seus limites.
Finalmente, tratamos da construção do conteúdo significativo dos
conceitos constitucionais; do seu processo de jurisdicização e encerramos o
trabalho com a análise de cinco precedentes jurisprudenciais.
ABSTRACT
This work aims to study the power of taxing and the legal concepts
used in Federal Constitution – such as income, invoice and services of any kind,
among others – to distinguish them between federative entities.
In this way, reasoning is based on the premise that the existence of
constitutional concepts – included in the material criterion – is a logical demand for
Constitution knowledge and application; that they have minimum and maximum
semantic content; that they form the rule of granting tax competence itself and that
they set constitutional limits to the power of taxing.
After outlining the scope, we start this work dealing with the National
Tax System and two of its principles: tax paying ability and confiscatory effect
veto. In addition, we focus on the postulated rules, which are considered helpful
elements of legal interpretation or as interpretation criteria.
Besides, we concentrate on legal interpretation itself, exploring its
constructive characteristic and its straight attachment to rules application; the
influences the reader is subject to and their limits.
To sum up, we discuss the building of significant contents of the
constitutional concepts, as well as their process to be considered as a legal issue,
and we finish this study analyzing five precedent court decisions.
SUMÁRIO
Introdução
1. Objeto do estudo ......................................................................................... 1
2. Conceitos constitucionais e legislação ordinária ......................................... 4
3. Descompasso atual entre doutrina e jurisprudência ................................... 5
4. Jurisprudência e construção da normatividade do ordenamento .............. 10
5. Papel criativo da jurisprudência e sistema tributário rígido ....................... 13
Capítulo 1 – Postulado Científico da Explicitude das Premissas
1. Fixação de premissas e busca de coerência ............................................ 17
2. Ciência do Direito e uso rigoroso da linguagem ........................................ 22
3. Papel da Semiótica ou Teoria dos Signos ................................................. 24
4. Necessidade de adoção do método – corte metodológico ........................ 27
5. Delimitação do objeto de estudo ............................................................... 30
6. Algo distante – mas não muito – do positivismo metodológico ................. 31
7. Ciência do Direito e a questão da decidibilidade ....................................... 33
8. Ordenamento jurídico e perspectiva dinâmica .......................................... 35
9. Tópica jurídica ........................................................................................... 48
10. Jurisprudência dos valores ........................................................................ 60
Capítulo 2 – Sistema Tributário Nacional e Conceitos Constitucionais
1. Constituição rígida e Constituição Federal brasileira ................................ 67
2. Discriminação constitucional da competência tributária ............................ 71
3. Sistema Tributário Nacional e dupla função .............................................. 79
3.1 Tributo como instrumento de transformação social ........................ 82
3.2 Princípios de proteção ao contribuinte ............................................ 88
4. Conceitos e indeterminação dos conceitos ............................................... 90
5. Conceitos constitucionais como exigência lógica de conhecimento e
de aplicação da Constituição Federal ....................................................... 96
6. Conceitos constitucionais e exercício da competência tributária ............ 101
7. Conceitos constitucionais como limitação ao poder de tributar ............... 105
Capítulo 3 – Capacidade Contributiva e Vedação do Efeito Confiscatório
1. Parâmetros relevantes na construção dos conceitos constitucionais ..... 109
2. Princípio da capacidade contributiva ....................................................... 112
2.1 Capacidade financeira .................................................................. 113
2.2 Capacidade individual ................................................................... 114
2.3 Capacidade presumida ................................................................. 115
2.4 Capacidade vinculada ao pressuposto de fato do tributo ............. 115
2.5 Funções da capacidade contributiva ............................................ 116
2.6 Aplicabilidade da capacidade contributiva aos tributos ................ 123
2.7 Limites indicados pela capacidade contributiva ............................ 124
3. Princípio da vedação do efeito confiscatório ........................................... 125
3.1 Confisco e direito de propriedade ................................................. 127
3.2 Tributo com efeito confiscatório .................................................... 129
3.3 Verificação do efeito confiscatório e aplicabilidade a todos os
tributos .......................................................................................... 131
Capítulo 4 – Postulados Normativos
1. Definição de postulado normativo ........................................................... 135
2. Instrumento de auxílio na interpretação e na aplicação das normas
jurídicas ................................................................................................... 140
3. Espécies de postulados normativos ........................................................ 144
4. Postulados normativos inespecíficos ...................................................... 145
4.1 Ponderação ................................................................................... 145
4.2 Concordância prática .................................................................... 146
4.3 Proibição do excesso .................................................................... 148
5. Postulados normativos específicos ......................................................... 149
5.1 Igualdade ...................................................................................... 149
5.2 Razoabilidade ............................................................................... 153
5.3 Proporcionalidade ......................................................................... 160
5.3.1 Adequação ......................................................................... 163
5.3.2 Necessidade ....................................................................... 165
5.3.3 Proporcionalidade em sentido estrito ................................. 166
Capítulo 5 – Interpretação e Aplicação do Direito
1. Pensamento sistemático e sistema jurídico ............................................ 168
2. Pensamento problemático e modelo tópico ............................................ 174
3. Interpretação como atividade construtiva da norma jurídica ................... 178
4. Interpretação e aplicação do texto legal como atividade única ............... 187
5. Interpretação do texto legal e do fato ...................................................... 188
6. Constituição e interpretação constitucional ............................................. 192
6.1 Princípios de interpretação da Constituição ................................. 194
6.2 Regras e princípios jurídicos ......................................................... 197
7. Influência da ideologia na interpretação .................................................. 202
8. Limites da interpretação .......................................................................... 214
8.1 Sentido literal possível .................................................................. 220
8.2 Âmbito ou domínio da norma ........................................................ 221
8.3 Exigência de decidibilidade ........................................................... 223
8.4 Proibição do excesso .................................................................... 224
8.5 Efeitos concretos da decisão ........................................................ 226
Capítulo 6 – Construção do Conteúdo dos Conceitos Constitucionais
1. Imperativo lógico da existência do conceito pressuposto ....................... 229
2. Conceito constitucional como elemento integrante da regra de outorga
de competência tributária ........................................................................ 233
3. Conceito constitucional não exaustivo .................................................... 234
4. Conteúdo semântico mínimo e máximo .................................................. 237
5. Direito tributário como direito de sobreposição ....................................... 240
6. Texto normativo e contexto ..................................................................... 243
6.1 Contexto intranormativo ................................................................ 243
6.2 Contexto internormativo ................................................................ 245
6.3 Contexto interdisciplinar ................................................................ 247
6.4 Contexto do uso lingüístico ........................................................... 248
7. Processo de jurisdicização do conceito ................................................... 250
8. Conceito constitucional e a variável representada pelo tempo ............... 254
9. Papel do artigo 110 do Código Tributário Nacional ................................. 268
9.1 Dicotomia entre direito privado e direito público ........................... 270
9.2 Conceitos de direito positivo ......................................................... 273
Capítulo 7 – Análise Casuística de Precedentes Jurisprudenciais
1. Relevância dos precedentes jurisprudenciais ......................................... 277
2. Contribuição sobre pagamentos a administradores e autônomos .......... 278
3. Imunidade prevista no artigo 155, § 3º, da Constituição Federal ............ 284
4. Cofins e incidência sobre a venda de bens imóveis ................................ 293
5. Seguro de Acidentes do Trabalho ........................................................... 302
6. Lei Federal nº. 9.718/98 – faturamento e receita .................................... 312
Capítulo 8 – Síntese Conclusiva
1. Proposições metodológicas ..................................................................... 331
2. Proposições específicas .......................................................................... 334
Bibliografia ....................................................................................................... 346
INTRODUÇÃO
1. Objeto do estudo
O escritor JOSÉ SARAMAGO disse certa vez que “mal vai à obra se
lhe requerem prefácio que a explique, mal vai ao prefácio se presume de tanto” e
parece ter razão o mestre português condecorado com o Prêmio Nobel de
Literatura. Não obstante, as presentes linhas introdutórias parecem ser um bom
momento – inicial, como se pode notar – para que deixemos esboçadas algumas
poucas idéias referentes à nossa opção pelo tema do exercício da competência
tributária e os seus limites, e sua relação com a questão dos denominados
conceitos constitucionais, aqui entendidos como aqueles utilizados pela
Constituição Federal na discriminação da competência tributária de cada uma das
pessoas políticas tributantes.
A Carta Política de 1988, ao estabelecer a parte da competência
tributária que cabe a cada ente tributante, utiliza-se de conceitos que indicam a
parcela específica da realidade material que pode ser alcançada pela norma
jurídica impositiva; quando ela emprega os termos (conceitos) renda, operações
relativas à circulação de mercadorias e serviços de qualquer natureza, por
exemplo, outorga competência tributária à União Federal, aos Estados e aos
Municípios, respectivamente, e, ao mesmo tempo, delimita essa competência
tributária.
Outorga competência porque determina soberanamente que a União
Federal detém o poder de instituir imposto sobre aquela parcela da realidade
chamada renda; que o Estado pode tributar as operações relativas à circulação de
mercadorias e que o Município pode assim agir no que se refere aos serviços de
qualquer natureza. E delimita a competência porque estabelece evidentemente
que a União não pode tributar a prestação de serviços, o Estado não pode tributar
a renda e o Município não pode tributar as operações relativas à circulação de
mercadorias.
Ao utilizar conceitos como receita, faturamento, propriedade
territorial urbana, folha de salários, veículos automotores, entre tantos outros,
nada mais faz a Carta da República do que: efetuar cortes na realidade, no
chamado mundo fenomênico; separar parcelas do mundo real; discriminar certos
eventos que poderão servir de base para o exercício da atividade impositiva.
Ocorre que o conceito – a palavra utilizada para designar a realidade
– não é nem se confunde com a realidade, embora fosse desejável e conveniente
que aquele refletisse esta com a maior precisão possível. Nas palavras de JOSÉ
ARTUR LIMA GONÇALVES, embora “o símbolo, como signo que é, não se
confunda com o próprio objeto significado, estando ou atuando no lugar do objeto
– sem com ele confundir-se –, impõe-se que essa significação (conceito do fato)
seja a mais próxima possível da realidade (evento)”.1
Se é assim, surge desde logo a questão, que nos aproxima do
objeto de nosso estudo e constitui nossa preocupação central: saber qual o
conteúdo e o alcance dos conceitos utilizados pela Constituição Federal para
outorgar e delimitar a competência tributária nos mais diversos casos. Isso
porque, como se percebe, ampliar ou restringir o conteúdo dos conceitos
constitucionais implica igualmente ampliar ou restringir o próprio exercício da
competência tributária, à medida que, em se aumentando o alcance do conceito,
ou, em termos mais rigorosos, em se elevando a amplitude semântica do
conceito, estar-se-á permitindo que ele venha a atingir parcela maior da realidade
e, conseqüentemente, aumentar as possibilidades do exercício da competência
tributária, daí porque a questão não é meramente cerebrina ou decorrente de
inquietação ou exigência técnica ou lingüística, mas, muito além disso, refere-se
de perto ao próprio poder de tributar e seu regular exercício.
Embora haja entendimento contrário quanto a tal ponto, acreditamos
que não há dúvidas quanto à existência dos referidos conceitos constitucionais,
ou seja, o legislador constituinte, ao elaborar e promulgar a Constituição Federal,
valeu-se de certos conceitos que entendia próprios para figurar a realidade que
desejou retratar ou, em outros termos, o constituinte originário não se valeu de
palavras sem nenhum compromisso com o seu significado, porque, em termos 1 Lançamento – meditação preliminar, In: Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba – direito tributário, p. 162.
lógicos, não poderia mesmo fazê-lo, razão pela qual não temos receio de afirmar
que existe efetivamente um conceito constitucional de renda, um conceito
constitucional de produtos industrializados, um conceito constitucional de lucro e
assim por diante.
2. Conceitos constitucionais e legislação ordinária
Como decorrência direta de nosso entendimento havemos de
reconhecer que o legislador ordinário, ao editar a lei que institui o tributo, não
pode manipular esses conceitos a seu bel prazer, conformando-os livremente em
favor de seus interesses.
Se reconhecemos sem mais dificuldades que há conceitos
constitucionais, nos modos a que nos referimos, parece-nos, entretanto, que tais
conceitos não são absolutos, não são rigidamente fechados, isto é, não aparecem
na Constituição Federal prontos e acabados. Ao revés, seus respectivos
conteúdos revelam-se passíveis de preenchimento significativo pelo dito
legislador dentro de certos limites, ou seja, há uma certa margem de liberdade ao
legislador ordinário no preenchimento dos conteúdos dos conceitos
constitucionais para fins de exercício da competência tributária. Em outros termos,
os conceitos constitucionais, tais como plasmados na Constituição da República,
hospedam um limite mínimo e um limite máximo – um núcleo semântico mínimo
(aquilo que o conceito evidentemente significa) e uma borda semântica máxima
(aquilo que evidentemente o conceito não pode significar) – e está exatamente
nesse intervalo o campo no qual o legislador ordinário pode livremente trabalhar.
Descobrir qual é esse intervalo é o desafio que se impõe ao intérprete-aplicador
do direito, pois é por meio dele que o exercício do poder de tributar pode ser
regularmente controlado.
Cabe registrar que os limites mínimo e máximo de significação dos
conceitos devem ser hauridos, assim, da própria Constituição Federal e não da
legislação ordinária, e tal tarefa implica investigar quais elementos que podem ser
validamente utilizados no preenchimento do conteúdo dos conceitos.
3. Descompasso atual entre doutrina e jurisprudência
Neste momento podemos apontar outra questão principal que
constitui objeto de nossa preocupação, revelada pelo nítido – e por vezes
acentuado – descompasso atual existente entre a doutrina e a jurisprudência
pátrias na análise das questões tributárias, na compreensão dos limites
constitucionais do exercício da competência impositiva e nas possibilidades de
preenchimento dos conceitos constitucionais a ela ligados. Tal questão nos
preocupa porque pensamos que a doutrina em sua tarefa de explicar o
ordenamento jurídico, embora não esteja obrigada a sempre acompanhar a
jurisprudência, não pode desprezá-la, uma vez que esta desempenha papel de
acentuada relevância na construção do direito, na concreção do ordenamento.
Para ilustrar e tornar claro nosso pensamento, podemos permitir-nos
uma ligeira digressão para analisar, ainda que em passos rápidos, a questão do
Seguro de Acidentes do Trabalho – SAT, que parece ser exemplo do referido
descompasso. Essa contribuição foi instituída por lei que trouxe os elementos da
conformação jurídica desta figura tributária e remeteu, contudo, ao Poder
Executivo a tarefa de fixar suas alíquotas, que deveriam ser variáveis em função
do grau de risco de cada estabelecimento empresarial, providência levada a
termo por meio de Decreto do Poder Executivo. Ocorre que o Decreto em
questão, em vez de apurar qual o efetivo grau de risco de cada local de trabalho,
acabou por considerar como determinante para a fixação do grau de risco aquele
relativo ao estabelecimento empresarial que possuísse o maior número de
trabalhadores, critério que evidentemente gerou distorções na fixação das
alíquotas.
Os contribuintes, tomando por base a opinião praticamente unânime
da doutrina nacional, insurgiram-se contra a exigência da contribuição,
considerando-a claramente inconstitucional, por violação do princípio da
legalidade, um dos cânones do Sistema Tributário Nacional – e, de resto, do
próprio Estado Democrático de Direito – sob o argumento de que, consoante o
primado da legalidade, somente a lei poderia estabelecer todos os elementos da
hipótese de incidência dos tributos, inclusive suas alíquotas; mais do que isso, o
princípio não seria de singela legalidade, mas de legalidade estrita, pois traria
consigo a tipicidade cerrada. Não obstante, a questão foi decidida de forma
definitiva pelo Supremo Tribunal Federal, que não vislumbrou desvio ou excesso
no ato do Poder Executivo e rejeitou a tese da inconstitucionalidade.2
Retomando a linha de nosso raciocínio, sem adentrar o mérito da
decisão da Corte Suprema, encontramos neste exemplo o noticiado
desalinhamento entre a doutrina e a jurisprudência, uma vez que, pelo menos há
2 Recurso Extraordinário no. 343.446-2-SC, Relator Ministro Carlos Velloso.
mais de trinta anos, a doutrina afirma que a legalidade é estrita e a tipicidade é
cerrada, lição das mais comezinhas e presente em todos os manuais de direito
tributário de que se tem notícia. Assim, a pergunta é inevitável: como pôde a
Corte Máxima ignorar tal ensinamento? Como pôde recusar facilmente o
entendimento doutrinário exposto com foros de unanimidade por pelo menos três
décadas?
A decisão do Supremo Tribunal Federal, ao afirmar que, fixando a lei
os elementos básicos da hipótese de incidência tributária, esta pode validamente
delegar a tarefa de fixação de alíquotas ao Decreto, parece sugerir, com a devida
vênia, que o princípio constante da Constituição Federal não é o da legalidade
estrita mas o da legalidade suficiente, o que nos levaria a acreditar que o próprio
conceito de legalidade presente no Texto Constitucional também ele é passível de
preenchimento pelo intérprete-aplicador do direito e que, neste caso específico,
seu conteúdo e alcance foram alterados aos olhos da jurisprudência, sem que a
doutrina pudesse dar-se conta de tal possibilidade.
Revela-se conveniente que deixemos aqui registrado, desde logo e
de modo inequívoco, que não estamos a afirmar que o julgamento do Supremo
Tribunal Federal está correto ou incorreto, que prestigia ou viola a Carta Magna.
Por ora, limitamo-nos a apenas constatar a séria divergência de entendimento
entre doutrina e jurisprudência. Cabe notar que uma das tarefas que nos
impusemos, ao elaborar o presente estudo, é a de constatar a referida
divergência e apontar as causas possíveis de sua ocorrência, ainda que
minimamente, com o risco de constatar que tal tarefa não foi realizada a contento.
O referido descompasso leva-nos a destacar a questão do método
que iremos adotar na elaboração do presente estudo, uma vez que o denominado
positivismo metodológico, se adotado em sua forma pura, parece não poder ou
ser insuficiente, segundo pensamos, para explicar a comentada decisão da Corte
Máxima, assim como não nos auxilia na análise de outras questões e ocorrências
que tentaremos analisar no decorrer deste trabalho.
Não se trata, sublinhamos com ênfase, de rejeitar a doutrina
positivista ou o modelo teórico do positivismo metodológico, de inegáveis méritos,
mas de acreditar que ele, sozinho, não pode mais nos auxiliar na tarefa de
compreender a realidade jurídica atual. Trata-se de ir além dele, pois, não o
desconsiderando sumariamente, mas a ele agregando outras possibilidades
metodológicas; vale dizer, não pretendemos com tal opção metodológica,
prescindir de instrumentos de análise e compreensão, mas, antes, agregar outros
também relevantes. A esse respeito, JOSÉ ARTUR LIMA GONÇALVES ensina:
“Se, por um lado, convém adotar-se o modelo teórico do positivismo
metodológico para descrição da composição e funcionamento do
subsistema jurídico que disciplina a ação de tributar – posto que este
modelo parece-nos ser o que melhor se ajusta às exigências
restritivas desta ação estatal –, por outro lado, impõem-se
serenidade e resignação do intérprete quando chega a hora (e ela
chega) de concluir que esse modelo teórico não resolve todas as
questões que se colocam diante do estudioso. E, quando esse
momento é chegado, o estudioso deve simplesmente resignar-se
com a imprestabilidade do instrumental fornecido por seu modelo
teórico e encontrar as soluções de que necessita fora de seu
modelo, mantendo fidelidade, todavia, aos valores supremos
positivados pelo sistema que adota”.3
Podemos notar, portanto, pelas lúcidas palavras do Professor da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, que pode ocorrer – e efetivamente
ocorre, segundo entendemos – que a doutrina positivista não represente o
instrumento mais adequado para a compreensão de certas questões, momento
em que podemos sentir-nos autorizados a empregar também outros métodos de
análise e de interpretação.
Semelhante constatação foi observada também, com outras
palavras, por RICARDO GUIBOURG que, sobre o positivismo jurídico, aponta:
“Si se constituye en sistema ideal cerrado y finge no ver la realidad
circundante, encuentra a menudo que sus deducciones
intrasistemáticas no coincidem con la situación social que funda su
utilidad; y si trata de situarse en algún punto intermedio, su propria
dinámica la empuja hacia alguno de los extremos. (...) Y de este
modo el esquema formal mantiene durante cierto tiempo una
adequación aproximada a la realidad que permite utilizarlo en el
studio y en la argumentación. Cuando llega el momento – por haber
ocorrido una revolución o porque una multitud de pequeños cambios
ha hecho que la circunstancia social ya no pueda manejarse con los
criterios anteriores – convendrá abandonar el esquema en uso y
constituir otro nuevo, capaz de dar cuenta de la realidad presente
durante un determinado lapso”.4
Podemos reafirmar que não se trata de abandonar por completo o
modelo do positivismo ou de declarar sua ineficiência para a solução dos desafios
3 Lançamento – meditação preliminar. In: Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba – direito tributário, p. 159. 4 Derecho, sistema y realidad, p. 73 e 77.
gerados pelo fenômeno da imposição tributária, mas apenas e tão somente de
aceitar que tal proposta metodológica vai até certo ponto – a partir do qual não
pode mais responder, de forma satisfatória, às indagações que se apresentam.
Isso nos autoriza a buscar outro instrumental científico para continuar o estudo,
mas, evidentemente, como aponta com precisão LIMA GONÇALVES, sem
descuidar dos valores superiores positivados pelo sistema, porque o ordenamento
jurídico (direito positivo) é o ponto de partida de nossa análise e marco referencial
ao qual retornaremos constantemente ao longo de nosso trabalho.
Com a proposta de adoção de um outro modelo teórico não
pretendemos mera e ingenuamente referendar decisões judiciais, por assim dizer
inesperadas, mas tentar explicar aquilo que nos parece revelar-se uma outra
realidade – assentada em novos fundamentos – que se está a materializar diante
de nossos olhos e, diga-se, a passos largos.
4. Jurisprudência e construção da normatividade do ordenamento
Quanto à relevância do papel desempenhado pela jurisprudência,
pensamos que a ciência do direito não tem obrigação de concordar ou referendar
as decisões judiciais: pela própria dinâmica dos fatos, normalmente a doutrina se
debruça sobre as questões jurídicas quase sempre em momento anterior ao que
o faz o Poder Judiciário, sobretudo os tribunais superiores, que, em não raras
oportunidades, naquela vai apoiar-se para tomar suas decisões. Acreditamos,
entretanto, que a doutrina não se pode descuidar de analisar e constantemente
considerar aquilo que é decidido pelos tribunais – para concordar ou discordar,
não importa – sob pena de perder sua importante função, a de explicar o
ordenamento jurídico e sua aplicação à realidade. Se ela (doutrina) explicitar o
direito de um modo, mas tal explicitação deixar de encontrar ressonância nas
decisões judiciais, tal tarefa doutrinária alcançará o momento em que terá pouca
ou nenhuma valia.
Como é evidente, a jurisprudência exerce singular função na
construção da normatividade do ordenamento jurídico ou no denominado
processo de concreção do direito positivo. Considerado como o conjunto de
normas jurídicas válidas em determinado espaço e tempo, o ordenamento jurídico
tem por finalidade disciplinar as condutas humanas intersubjetivas, sempre na
busca da implantação dos valores prestigiados pela sociedade a que se destina.
Revela-se aí fundamental o papel dos juízes de direito para não só aplicarem as
normas jurídicas à solução dos casos concretos, mas também imprimirem
concretude ao sistema jurídico positivado. No ato de fazer incidir a norma jurídica
ao caso concreto (na decisão, enfim), procedimento que pressupõe e mesmo
coincide temporalmente com a interpretação do texto constitucional ou legal,
exteriorizam-se: os valores prestigiados pelo intérprete; as opções que adota em
tal tarefa; os interesses que busca atender na solução do litígio e as influências
que sofre o intérprete-aplicador do ordenamento jurídico. Por isso, é
imprescindível que a doutrina disto tudo tome conhecimento, em postura crítica e
séria, que recuse soluções fáceis e apressadas, para aplaudir ou rechaçar as
decisões e para manter ou rever suas posições.
Há um outro papel importante a ser desempenhado pela doutrina,
ligado à questão que mencionamos ligeiramente, relativa à análise antecipada
das questões jurídicas, sobretudo no campo do direito tributário. Se a
jurisprudência vem alterando-se na solução de tais questões, com a adoção de
pressupostos e fundamentos que não mais encontram apoio na doutrina e mesmo
dela afastando-se frontalmente, é sinal de que, pelo menos aos olhos dos
tribunais, os tempos atuais apresentam indagações e perplexidades cujas
respostas não estão – ou não estão mais – na doutrina até então construída. Essa
talvez não mais se preste a explicar a realidade presente e obrigue o aplicador da
lei ao caso concreto a construir – sozinho – a solução para o conflito. Decorre
dessa circunstância a necessidade de construir uma nova doutrina, com atenção
à tendência das decisões dos juízes, mas, refrise-se, não necessariamente com
elas concordando, mas para que possamos controlar a referida tendência, na
tentativa de estabelecermos um novo diálogo com a jurisprudência, portanto um
diálogo assentado em novas bases, uma vez que as antigas não mais se prestam
a tal desiderato, porque ignoradas.
Ainda que possamos discordar dos novos rumos adotados pela
jurisprudência, a busca de seu afastamento pode e deve ser feito pela doutrina,
mas agora não pela repetição das lições até então adotadas, pois um novo
paradigma parece impor-se, sob pena de não se estabelecer (ou não se
reestabelecer) o necessário diálogo, uma vez que um dos interlocutores se recusa
a conversar com base nas antigas fórmulas.
Podemos perfeitamente chegar à conclusão de que este ou aquele
precedente da jurisprudência não é o melhor; que acolher como legítimos certos
atos da administração pública significa aceitar a arbitrariedade; que tornar flexível
o princípio da legalidade (como ocorreu no exemplo apontado) significa
desprestigiar a Constituição Federal e propiciar a insegurança jurídica e assim por
diante, desde que tal entendimento seja fruto de reflexão desprovida de
preconceitos, quer contra o fisco, quer contra o contribuinte. Entretanto, segundo
nosso modesto ponto de vista, o que não podemos permitir-nos é ignorar os
novos rumos da jurisprudência formada sobre o tema tributário, fazendo de conta
que eles não existem ou, pior ainda, meramente considerar a jurisprudência
equivocada porque ela não mais corresponde às nossas crenças ou convicções,
apesar de ter correspondido ao longo das últimas décadas.
5. Papel criativo da jurisprudência e sistema tributário rígido
Se aquilo que afirmamos até aqui pode ser considerado, pelo menos
por ora, razoável, isto é, condizente com os fatos observados, parece claro que os
tempos atuais apresentam novas exigências na disciplina das relações jurídicas
havidas no seio da sociedade, em especial, para o que nos interessa, na do
relacionamento entre fisco e contribuintes, que reclama nova postura por parte
dos tribunais nas soluções dos inúmeros conflitos.
A necessidade de solução para novos e mais complexos conflitos de
interesse – cujo pano de fundo são os avanços tecnológicos, o advento da
internet, a globalização, o comércio eletrônico, o esvaziamento da noção de
fronteiras dos países e sobretudo, o papel do Estado no desenvolvimento de
políticas públicas como forma de implementação dos valores plasmados no Texto
Constitucional – exige da jurisprudência um papel criativo. Esse deve ser capaz
de construir soluções justas para os casos concretos, em situações por vezes
ainda precariamente reguladas pelo direito positivo, com respeito à função estatal
e com igual prestígio à imprescindível proteção dos contribuintes. Em outras
palavras, a jurisprudência precisa dar respostas às exigências dos tempos atuais,
numa sociedade que se altera com acentuada velocidade, sem esquecer-se de
resolver ainda um outro problema – este sim antigo e sempre presente: a
composição razoável do binômio segurança jurídica e justiça.
Como sabemos, tanto nos outros subsistemas do direito positivo,
como também no campo do direito tributário, comumente aparecem casos em que
a segurança jurídica e a certeza não caminham ao lado da justiça. Nem sempre
podemos aceitar o entendimento de que, com o prestígio à segurança e à certeza,
alcança-se a justiça, daí exigir-se da jurisprudência um papel não apenas criador
do direito, mas criativo na própria criação do direito. No direito tributário, não raro
constatamos casos concretos em que se encontram em contraposição valores
constitucionais, como no caso da contribuição sobre movimentação financeira –
CPMF, por exemplo. Aceitar como válida, perante o ordenamento, a instituição de
mais este tributo pode significar, em vista da destinação vinculada do produto de
sua arrecadação, prestígio à proteção da saúde, que sem dúvida é um valor
presente na Carta Magna; não obstante, pode significar também permitir ainda
mais a elevação da carga tributária total, já acentuadamente alta, aproximando-a,
talvez, da caracterização do efeito confiscatório e, com isso, desmerecer o
primado da não-abusividade da imposição tributária, que é inegavelmente outro
valor prestigiado pela Constituição Federal. Em situações como essa, em que se
exige a criatividade da jurisprudência para a justa composição dos valores
envolvidos no caso concreto, o desafio a ser transposto parece-nos que consiste
no desempenho desse papel criativo diante da rigidez do Sistema Constitucional
Tributário.
A Constituição Federal é rica em inúmeros obstáculos à atividade
estatal de instituir e arrecadar tributos, ali postos justamente para evitar – ou
tentar evitar – os interesses arrecadatórios que se revelam verdadeiramente
irrefreáveis. Como se não bastasse, há toda uma Seção explicitamente dedicada
às denominadas limitações constitucionais ao poder de tributar, de modo que o
Sistema Tributário Nacional, já necessariamente inflexível por decorrência da
rigidez da própria Constituição – e evidentemente por força de sua supremacia
normativa – cresce em inflexibilidade diante do modo pormenorizado com que a
matéria é disciplinada no corpo do Texto Republicano, parecendo-nos mesmo que
a própria discriminação constitucional da competência tributária é prova disso.
Se é assim, ou seja, se reconhecemos tal rigidez do sistema
tributário, e não poderíamos deixar de reconhecê-la, como conceber que a
jurisprudência poderia e deveria ter um papel criativo no trato do tema? Como
prestigiar a capacidade contributiva sem ofender o princípio da legalidade? Como
render homenagens à solidariedade social (questão ligada à imposição tributária)
sem dispensar maus tratos à proibição do confisco?
A resposta, evidentemente apenas uma das possíveis respostas,
parece-nos estar na transcedental relevância da interpretação da Constituição
Federal no momento mesmo de sua aplicação ao caso concreto. Devemos
considerar a interpretação e a aplicação da norma jurídica (em sentido amplo)
como uma só operação, coincidente temporalmente, e sempre com o devido
sopesamento dos valores envolvidos na solução do conflito específico, consoante
procuramos demonstrar no decorrer do presente estudo.
Alguém poderia objetar que a presente introdução, que já se estende
por demais, distancia-se do tema que nos propusemos enfrentar e
exageradamente antecipa questões. Pensamos, todavia, que isso não ocorre,
porque nos parece que tratar do preenchimento do conteúdo dos conceitos
constitucionais é cuidar do exercício da competência tributária e verificar onde
estão situados os seus limites, de modo que estas idéias iniciais apenas põem em
relevo as indagações que nos ocorrem e que justificam nosso interesse pelo
tema.
CAPÍTULO 1
POSTULADO CIENTÍFICO DA EXPLICITUDE DAS PREMISSAS
1. Fixação de premissas e busca de coerência
A atividade científica tem início com a escolha de um objeto sobre o
qual o sujeito cognoscente – o cientista – se debruçará, com o objetivo de
conhecê-lo, para depois acerca dele tecer considerações, emitir proposições
descritivas que possam expor suas características; seus elementos componentes;
suas regras estruturais; enfim, o modo de ser do objeto, sua fenomenologia. A
atividade de conhecimento encontra seu passo inicial na demarcação do objeto,
com a feitura de um corte abstrato na realidade material, a fim de isolar o campo
temático sobre qual se dará o estudo.
Seria desejável que a aproximação do sujeito cognoscente e do seu
objeto de estudo pudesse dar-se de forma neutra, isto é, que a coleta de dados e
as observações iniciais fossem puras, desprovidas de idéias preconcebidas por
parte do cientista, daquele que investiga a realidade para melhor conhecê-la.
Na atividade científica, como de resto nas atividades cotidianas, a
curiosidade e o raciocínio são estimulados a partir do momento em que algo não
ocorre conforme nossa expectativa, quando não conseguimos explicar o
acontecimento ou quando o instrumental teórico que possuímos não pode explicá-
lo de modo satisfatório, ou seja, quando aparece um problema. Como afirmam
ALDA JUDITH ALVES–MAZZOTTI e FERNANDO GEWANDSZNAJDER,
“qualquer observação pressupõe um critério para escolher, entre as observações
possíveis, aquelas que supostamente sejam relevantes para o problema em
questão. Isto quer dizer que a observação, a coleta de dados e as experiências
são feitas de acordo com determinados interesses e segundo certas expectativas
ou idéias preconcebidas”.5
Ora, se o próprio aparecimento do problema e a aproximação que
dele faz o sujeito são de alguma forma influenciados e mesmo predeterminados
por certos elementos, parece claro que a desejável neutralidade revela-se de
difícil alcance, praticamente impossível. Cabe notar que, se tal neutralidade
investigativa é de difícil consecução nas ciências em geral, no caso das ciências
sociais a questão é agravada pois, diante delas, como acentua EURICO
MARCOS DINIZ DE SANTI, “o homem encontra dificuldades para tomar a
distância adequada para o exame imparcial, pois compromete-se
demasiadamente com o objeto do estudo que empreende”.6
5 O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa, p. 4. 6 Lançamento tributário, p. 23.
Nesse sentido, LUÍS CESAR SOUZA DE QUEIROZ aponta que, nos
tempos atuais, “vem-se considerando que a exigência de uma absoluta
objetividade por parte do cientista, especialmente do cientista social, só se
justifica por uma certa dose de ingenuidade”,7 uma vez que ele, como qualquer
outro ser humano, está envolto num determinado ambiente social e sofre
influências de ordem política, econômica, religiosa, psicológica e outras.
Parece-nos, portanto, que a busca da verdade, sobretudo da
verdade científica, não está em encontrá-la pronta e acabada, em determinado
lugar ou objeto, como se acreditava na visão clássica, mas, antes, a verdade é
construída pelo sujeito cognoscente, de modo que a honestidade intelectual deste
não é mais aferida pela suposta neutralidade de seu pensar e de sua atividade
investigativa, mas pelo seu consentimento em discutir os critérios utilizados
naquele procedimento construtivo. A esse respeito, MARCO AURELIO GRECO,
mencionando a tese da legitimação pelo procedimento, ensina que “a verdade
não é mais ‘descoberta’, pois não está no objeto, mas é fundamentalmente uma
verdade ‘construída’ num processo do qual participa o intérprete. Nesse contexto,
a verdade não é demonstrada logicamente, mas legitima-se mediante um
processo de justificação”.8
Falar da objetividade da ciência não significa aceitarmos que suas
teorias sejam verdadeiras, pois, como acentuam ALDA JUDITH ALVES–
MAZZOTTI e FERNANDO GEWANDSZNAJDER, a
“objetividade da ciência não repousa na imparcialidade de cada
indivíduo, mas na disposição de formular e publicar hipóteses para 7 Imposto sobre a renda: requisitos para uma tributação constitucional, p. 19. 8 Contribuições: uma figura “sui generis”, p. 45.
serem submetidas a críticas por parte de outros cientistas; na
disposição de formulá-las de forma que possam ser testadas
experimentalmente; na exigência de que a experiência seja
controlada e de que outros cientistas possam repetir os testes, se
isto for necessário”.9
Se a neutralidade do cientista não é possível, pois sofre influências,
o mínimo que podemos exigir dele, na elaboração de um trabalho com pretensões
científicas, é que deixe claras no trabalho as premissas que adota, os pontos de
partida de sua investigação científica e as razões de escolha do objeto, além dos
instrumentos teóricos adotados na busca do conhecimento ou, em outros termos,
qual a teoria utilizada – qual é o método, enfim – para que também pela análise
das premissas possa ser-lhe cobrada a necessária coerência no desenvolvimento
do trabalho e nas conclusões alcançadas.
Isso pela razão evidente de que a teoria adotada fatalmente
influencia o conhecimento do objeto, impregna o próprio trabalho de investigação,
uma vez que, como afirmamos, se a verdade é construída pelo sujeito
cognoscente, é evidente que o objeto do conhecimento será marcado, na
exteriorização de sua fenomenologia, pela teoria utilizada. Como afirmam ALDA
JUDITH ALVES–MAZZOTTI e FERNANDO GEWANDSZNAJDER, a “tese, hoje
amplamente aceita em Filosofia da ciência, de que toda observação é
‘impregnada’ de teoria (theory-laden) foi defendida já no início do século pelo
filósofo Pierre Duhem. Dizia ele, que ‘um experimento em física não é
9 O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa, p. 9.
simplesmente a observação de um fenômeno; é também a interpretação teórica
desse fenômeno’”.10
Diante de tais considerações, a idéia de uma ciência objetiva,
marcada pela neutralidade do cientista, isenta de influências de tempo e espaço,
cujo rigor científico seria garantido pela precisão de adoção e de utilização do
método, não mais se sustenta, dada a constatação de que os valores do cientista
influenciam o produto de sua atividade.11 Dessa forma, a fixação de premissas e a
adoção da teoria prestam-se a três propósitos principais:
(i) servem de instrumento de guia ao próprio cientista, à medida que
a elaboração de qualquer trabalho desse jaez pressupõe a fixação
de hipóteses iniciais, de proposições preliminares sobre as quais o
cientista buscará desenvolver seu trabalho, tendo-as como
instrumentos estruturais e basilares de seu raciocínio;
(ii) respondem à necessidade do chamado teste de refutabilidade,
por meio do qual a teoria é posta à prova pela análise de outros
membros da comunidade científica, que somente poderão criticar ou
refutar a teoria na medida em que tenham conhecimento do sistema
de referência à frente do qual ela se desenvolve e
(iii) permitem vislumbrar as influências sofridas pelo sujeito
cognoscente em sua atividade, expressas pelas marcas deixadas no
estudo, que começam, inclusive, pela própria escolha da teoria, do
método adotado e do motivo de sua escolha.
Cabe notar que a fixação de premissas é relevante também porque
o sujeito cognoscente, quando se encaminha para certo campo da realidade
10 O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa, p. 13. 11 O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa, p. 109.
material, já o faz munido de uma certa carga de conhecimento – de pré-
conhecimento – ou, nas palavras de LOURIVAL VILANOVA, a pré-compreensão
ou conceito a piori é condição para o conhecimento.12 Acentua o autor que
“Em conseqüência, não é possível o conhecimento da realidade
social sem o conceito a priori do social. Por artifício sofístico, pode-
se argumentar que o sujeito vai ao objeto conhecer aquilo que,
previamente, já sabe. Mas no conceito a priori, o objeto não é
conhecido. É simplesmente indicado; o conceito fornece as
determinações mínimas e essenciais que servem de criterium para
encontrar o objeto onde ele se acha”.13
Finalmente, sublinhamos que o presente item, que cuida da
necessidade de fixação de premissas, outra coisa não faz do que ele mesmo
tratar de estabelecer algumas premissas de nosso trabalho, e se a frase atribuída
a ALBERT EINSTEIN for verdadeira, segundo o qual “É a teoria que decide aquilo
que podemos observar”,14 o presente capítulo presta-se a deixar expressos os
pressupostos epistemológicos de nosso estudo.
2. Ciência do Direito e uso rigoroso da linguagem
Segundo conhecida definição, o direito positivo pode ser entendido
como um conjunto de prescrições jurídicas, num determinado espaço territorial e
num certo intervalo de tempo, criado pelo homem com o objetivo de regular
comportamentos intersubjetivos, para canalizá-los em direção aos valores que a
12 Sobre o conceito de direito, In: Escritos jurídicos e filosóficos, vol. 1, p. 17. 13 Sobre o conceito de direito, In: Escritos jurídicos e filosóficos, vol. 1, p. 18. 14 Apud Paul Watzlawic, A realidade é real?, p. 49.
sociedade deseja ver realizados.15 A Ciência do Direito, por sua vez, tem por
objeto o estudo e a descrição desse enredo normativo, a fim de ordená-lo, exibir
sua hierarquia, demonstrar “as formas lógicas que governam o entrelaçamento
das várias unidades do sistema e oferecendo seus conteúdos de significação”.16
Como é cediço, são dois campos distintos, que não podem ser
confundidos, uma vez que apresentam características próprias, regras específicas
de organização e, como vimos, funções diversas. Possuem em comum o fato de
se apresentarem ambos sob a forma de linguagem. São dois discursos
lingüísticos, embora se distanciem por ser o direito positivo uma linguagem
prescritiva (porque prescreve comportamentos), ao passo que a Ciência do Direito
é uma linguagem descritiva (porque descreve o direito positivo, o conjunto de
normas jurídicas). Podemos notar, diante de tais características, que a Ciência do
Direito é uma linguagem que trata de outra linguagem, daí ser chamada de
metalinguagem, sobrelinguagem ou linguagem de sobrenível.
Outra característica relevante que as distingue está no fato de no
direito positivo poderem ser encontradas lacunas ou contradições entre as
unidades do conjunto, isto é, entre as normas jurídicas; embora o próprio direito
cuide de estabelecer regras que permitem a eliminação das deficiências no
momento da aplicação das referidas normas, como no caso das denominadas
antinomias, os critérios de hierarquia, cronológico e de especialidade.
Tais contradições, entretanto, não podem ser encontradas nos
quadrantes da Ciência do Direito, uma vez que o discurso científico há de se
15 Cf. Paulo de Barros Carvalho, IPI – Comentários sobre as regras gerais de interpretação da tabela NBM/SH (TIPI/TAB), In: Revista Dialética de Direito Tributário, vol. 12, p. 45. 16 Paulo de Barros Carvalho, Curso de direito tributário, p. 2.
materializar por meio de uma necessária congruência entre suas proposições
descritivas, sob pena de esvaziamento de seu conteúdo em virtude de
deficiências estruturais, com a conseqüente inobservância da função que lhe é
própria. Tal circunstância obriga o cientista – o sujeito cognoscente – a encadear
seu raciocínio do modo mais rígido possível, libertando-o de impropriedades
técnicas ou terminológicas, sob pena de, a propósito de se aproximar do objeto do
conhecimento, dele distanciar-se irremediavelmente.
Essa dificuldade é ainda reforçada pelo fato de a Ciência do Direito –
ela mesma uma linguagem – ter por objeto uma outra linguagem, ambas
materializadas por signos, por palavras, por elementos por excelência portadores
de vagueza e ambigüidade, sujeitos à ocorrência da polissemia ou multiplicidade
de significados. Resulta daí nossa preocupação, acentuada no item anterior,
quanto à necessária fixação de premissas e a correlata busca de coerência no
discurso que se pretende científico, que certamente pressupõe um mínimo de uso
rigoroso da linguagem. A preocupação com tal rigor no manuseio da linguagem é
muito pouco para isentá-la de imperfeições, embora a consciência desta questão
e a busca de rigidez no trato discursivo, por sua vez, constituam relevante
primeiro passo na direção da coerência do estudo.
3. Papel da Semiótica ou Teoria dos Signos
Diante de nossa afirmação de que o direito positivo e a Ciência do
Direito são fenômenos exteriorizados por meio de linguagem, revela-se de todo
conveniente que possamos contar com um instrumento que amplie as
possibilidades de compreensão daquele que pretende debruçar-se sobre tais
fenômenos, a fim de melhor conhecê-los, aí comparecendo a Semiótica ou Teoria
dos Signos.
Para uma idéia simplificada, tendo-se em vista a
complexidade que o termo apresenta, podemos basear-nos na lição de DIANA
LUZ PESSOA DE BARROS, para quem “a semiótica tem por objeto o texto, ou
melhor, procura descrever e explicar o que o texto diz e como ele faz para dizer o
que diz” e que “a semiótica deve ser assim entendida como a teoria que procura
explicar o ou os sentidos do texto pelo exame, em primeiro lugar, de seu plano do
conteúdo”. 17 Vê-se, assim, para aquilo que nos interessa de perto, que a
Semiótica pode potencializar as possibilidades cognitivas do intérprete do
ordenamento jurídico, por meio da análise lingüística de seus elementos
componentes e das regras de seu inter-relacionamento, podendo o estudo ser
desenvolvido pela consideração dos planos sintático, semântico e pragmático da
linguagem.
O plano sintático refere-se à relação existente entre os signos em si,
à ligação entre as palavras. O plano semântico cuida da relação existente entre
os signos e os objetos por eles representados, pois o signo não é a coisa, mas
representa-a, comparece no lugar dela. O plano pragmático, por sua vez, trata da
relação entre os signos e os usuários da linguagem, da forma com que as
palavras são manipuladas e as variações de conteúdo decorrentes do uso da
linguagem.
Cabe notar que, para os limitados fins de nosso estudo, interessa-
nos por ora e mais de perto os ângulos semântico e pragmático, uma vez que
17 Teoria semiótica do texto, p. 7/8.
nosso tema é aquele dos conceitos constitucionais e sua utilização no exercício
da competência tributária. Consiste a tarefa à qual nos obrigamos em averiguar
qual o conteúdo dos referidos conceitos (questão ligada à semântica, portanto),
qual a realidade que eles buscam representar, e bem assim o modo como, em
cada caso concreto, o intérprete-aplicador da norma jurídica pode preencher o
seu conteúdo (tema ligado à utilização dos signos pelos seus usuários e, portanto,
questão pragmática).
Acerca da relação existente entre o conceito – expresso por um
signo – e o objeto ao qual se refere, LUCIA SANTAELLA ensina que
“Um excelente sinônimo para ‘representa’ é a expressão ‘está para’,
ou melhor, ‘está no lugar lógico de’, ou conforme Peirce nos diz:
‘Representar: estar em lugar de, isto é, estar numa relação com um
outro que, para certos propósitos, é considerado por alguma mente
como se fosse esse outro’ e ainda que “Isso significa,
conseqüentemente, que o signo, na sua relação com o objeto, é
sempre apenas um signo, no sentido de que ele nunca é
completamente adequado ao objeto, não se confunde com ele e
nem pode prescindir dele. Em função disso, há sempre uma sobra
do objeto que o signo não pode recuperar, pelo simples fato de que
o objeto é um outro diferente dele”.18
A questão da relação do objeto material e sua representação pelo
conceito (ou pelo signo) é demasiadamente complexa, de modo que a ela
retornaremos, para analisá-la com maior vagar, em momento oportuno.
18 A teoria geral dos signos, p. 23. Para um estudo aprofundado da Semiótica, ver Charles Sanders Peirce, Semiótica; e Umberto Eco, Tratado geral de semiótica, ambas as obras da Coleção Estudos, Editora Perspectiva.
4. Necessidade de adoção do método – corte metodológico
Observamos no item 1 do presente capítulo que a comunidade
científica, nos tempos atuais, parece concordar com o fato de que a objetividade
de uma ciência não pode mais ser aferida com base na imparcialidade do
cientista – de difícil consecução em termos práticos – mas, antes, na disposição
de formular sua teoria e torná-la pública, a fim de que possa passar pelo
denominado teste da refutabilidade, consistente na sua análise por outros
integrantes do ambiente científico.
Se a imparcialidade objetiva do cientista não é possível, é
fundamental que ele deixe expressas em seu trabalho quais as premissas de que
parte para a análise investigativa e quais os instrumentos técnicos que utiliza em
tal tarefa; enfim, é necessário explicitar a forma pela qual pretende aproximar-se
de seu objeto de conhecimento, tema que nos conduz à questão da adoção da
teoria ou, enfim, do método adotado para o estudo.
Mais do que isso, se afirmamos que a observação vem sempre, em
maior ou menor grau, impregnada da teoria – o que equivale a afirmar que a
teoria altera o próprio objeto do conhecimento, modifica a forma de exteriorização
do evento da realidade material ou social observada – somos obrigados a
reconhecer que a própria escolha do método principia por indicar quais as
influências sofridas pelo cientista quando se aproxima do objeto, isto é, qual a
relação que se estabelece entre o sujeito cognoscente e o objeto cognoscível.
Dessas observações resulta a responsabilidade do sujeito
cognoscente sobre o método escolhido, como aponta com propriedade JOSÉ
ARTUR LIMA GONÇALVES, ao afirmar que “Estamos, aqui, diante de questão
das mais delicadas, respeitante à coerência das opções metodológicas para o
desenvolvimento de epistemologia do direito tributário”,19 condicionante que nos
remete ao momento de cuidar do nosso corte metodológico como passo
necessário à continuidade do estudo.
A esse respeito, apontam CARLOS E. ALCHOURRÓN e EUGENIO
BULYGIN que o método pode ser considerado como o caminho a ser percorrido
pelo cientista para a justificação de suas considerações, ou seja, são os
instrumentos utilizados pelo cientista para se aproximar do objeto.20 Ora, levando-
se em consideração a complexidade de qualquer objeto do mundo material ou
social merecedor de nosso interesse, ou seja, como todo objeto apresenta
múltiplas faces e inúmeras características em relação às quais poderia ser
explorado em termos cognitivos, o corte metodológico – que tem por escopo
justamente reduzir a complexidade do objeto – revela-se como um pressuposto
do saber que se pretenda científico, uma vez que não é possível ao cientista
conhecer o objeto em toda a sua inteireza ao mesmo tempo, sob pena de incorrer
num regresso ao infinito e acabar por empobrecer o processo de conhecimento.
O corte metodológico trata-se, portanto, de um imperativo
epistemológico do qual a Ciência do Direito não pode pretender fugir, aqui
entendido como elemento delineador da realidade; instrumento por meio do qual
se podem fazer sucessivas incisões ideais no objeto de estudo, para separar
determinadas partes do todo, a fim de melhor desenvolver o trabalho de
19 Lançamento – meditação preliminar, In: Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba – direito tributário, p. 159. 20 Cf. Introducción a la metodología de las ciencias jurídicas y sociales, p. 112.
conhecimento e de exposição de idéias. Em outros termos, cuida-se de se
estabelecerem pontos-limites na análise, dentro dos quais se circunscreverá a
investigação científica, circunstância que nos permite chegar a outra consideração
importante e que repousa no fato de o corte metodológico revelar-se providência
arbitrária do sujeito cognoscente e, como tal, em sua íntima relação com o
desenvolvimento do estudo, insuscetível de críticas por parte daqueles que
venham a tomar conhecimento do trabalho realizado.
Com tal afirmação, não pretendemos ignorar que o corte
metodológico pode ser objeto de censura pelos destinatários do trabalho
científico, sob o entendimento de que não seria o melhor ou o mais apropriado
para os fins perseguidos; que outro método poderia revelar-se mais apropriado e
que outros instrumentos seriam mais profícuos à análise do fenômeno estudado.
É evidente que críticas desse jaez podem ser feitas, de modo absolutamente
procedente, e contribuir para as reflexões posteriores do cientista. Análises desse
tipo situam-se em momento anterior ao da apreciação do conteúdo do estudo
propriamente dito, pela singela razão de se revelar o corte metodológico, pela sua
própria natureza, uma decisão pessoal e intransferível do autor do trabalho que,
ao efetuá-lo, obedece apenas aos ditames de sua consciência. Após o aludido
corte, o que pode e deve ser cobrado do estudioso é a coerência, ou seja, a
congruência necessária entre as premissas metodológicas fixadas e as
conclusões alcançadas no decorrer de seu labor investigativo.
Feitas essas considerações, podemos adiantar que o corte
epistemológico realizado no presente trabalho comporta seis etapas: o primeiro,
exposto de modo sintético, relativo à própria delimitação do objeto do estudo, e os
cinco seguintes, respeitantes ao método utilizado para o conhecimento do objeto,
isto é, aos ângulos pelos quais analisaremos a questão dos conceitos
constitucionais e sua relação com a competência tributária.
5. Delimitação do objeto de estudo
Consoante afirmamos nas linhas introdutórias, o eixo central de
nosso interesse repousa no exame da regra constitucional de outorga de
competência tributária e na análise dos limites do exercício de tal potestade
estatal, limites representados pelos conceitos utilizados pela Constituição Federal
na discriminação da competência tributária conferida aos entes políticos.
Evidentemente, há outros limites ao aludido exercício do poder de tributar,
expressos ou implícitos, mas aqueles de que por ora nos ocupamos são
representados pelos mencionados conceitos constitucionais.
Nosso objeto de estudo é, portanto, formado pelo direito positivo, em
especial pelo conjunto de normas jurídicas constitucionais – princípios e regras –
que disciplinam a atividade estatal de tributar e, mais especificamente, aquelas
normas presentes no subsistema constitucional tributário nas quais podemos
encontrar os ditos conceitos.
Tal delineamento conformador do tema não significa que, ao longo
de nossa tarefa analítica, pretendemos desprezar as demais normas
constitucionais e mesmo infraconstitucionais, porque não se pode ignorar a
necessidade de interpretação de todo o ordenamento jurídico.
Não tencionamos tratar dos conceitos constitucionais utilizados para
cada hipótese específica, como qual o conceito constitucional de renda, de
receita, de produtos industrializados, de serviços de qualquer natureza e assim
por diante, salvo no último capítulo de nosso estudo. Nele concentramos nossa
atenção justamente na análise de alguns casos específicos. Nosso objetivo,
assim, é o de tentar demonstrar como se pode dar o preenchimento do conteúdo
dos conceitos constitucionais e quais as influências que pode sofrer o intérprete-
aplicador do direito no instante da aplicação da norma jurídica.
Tal limitação (a de não tratar de todos os conceitos na Constituição
Federal) é decorrente em primeiro lugar do próprio corte metodológico, pois este é
o objeto de estudo que escolhemos; em segundo, porque pretendemos
demonstrar que o preenchimento do conteúdo significativo dos conceitos
constitucionais somente é possível em cada caso concreto a solucionar (de cada
problema), de forma que não faria sentido pretender fixar, em tese, o conteúdo de
cada conceito independentemente do problema apresentado.
6. Algo distante – mas não muito – do positivismo metodológico
A delimitação do objeto informa, por si só, que a análise a ser feita
volta-se para o direito positivo, pois é ali que procuramos respostas para os
problemas. Contudo, isso não nos faz adotar a doutrina positivista ou positivismo
metodológico como principal referencial; não porque ele não sirva ou não
ofereceça soluções, mas porque procuramos respostas que, segundo pensamos,
outros métodos revelam-se melhor instrumento para alcançá-las.
Com efeito, não se trata de rejeitar o positivismo metodológico e
muito menos suas conquistas, que são muitas e inegáveis, mas apenas de ir um
pouco além dele, abrir espaço para outras perspectivas. Trata-se de reconhecer
que vivemos uma nova realidade, sobretudo a partir da promulgação da
Constituição Federal de 1988, que impõe novos desafios ao cientista do direito,
uma vez que novos tempos exigem novas soluções (inclusive no campo do direito
tributário), alternativas que o positivismo jurídico, isoladamente considerado,
parece não poder oferecer.
Não se trata de dizer que um método é melhor que outro, que as
teorias que adotamos são melhores ou piores do que o positivismo metodológico,
mas apenas que podem responder melhor, segundo nosso ponto de vista, a
certas indagações. Como salientam ALDA JUDITH ALVES–MAZZOTTI e
FERNANDO GEWANDSZNAJDER,
“Conseqüentemente, durante uma revolução científica há ganhos
mas também há perdas na capacidade de explicação e previsão: a
teoria nova explica alguns fatos que a teoria antiga não explica, mas
esta continua a explicar fatos que a teoria nova não é capaz de
explicar. Nesta situação, torna-se problemático afirmar que uma das
teorias é superior a outra. Esta tese é conhecida como ‘a perda de
Kuhn’ (‘Khun-loss’) (.....) Os enunciados (leis e hipóteses) teriam
então de ser traduzidos de um paradigma para outro. Mas, na
ausência de uma linguagem neutra (independente de teorias ou
paradigmas) a tradução não pode ser feita sem perda de
significado”.21
21 O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa, p. 29.
O método que adotamos, explicitado nos itens seguintes, são
ângulos pelos quais vamos observar o objeto de estudo, e constituem singela
proposta – apenas uma proposta entre tantas outras possíveis – de abordarmos o
fenômeno analisado.22
7. Ciência do Direito e a questão da decidibilidade
Afirmamos há pouco que o direito positivo pode ser considerado o
conjunto de normas válidas em determinado espaço e certo tempo, que tem por
fim regular condutas humanas intersubjetivas. A Ciência do Direito pode ser
entendida como um discurso descritivo deste conjunto ou sistema de normas
jurídicas que revela sua estrutura, hierarquia e forma operacional.
Contudo tal descrição da fenomenologia do direito positivo não pode
ser limitada à providência meramente teórica, mas antes sempre referida à
solução de conflitos surgidos no seio da sociedade, tendo-se em vista que a
solução desses é que opera a mencionada regulação das condutas
intersubjetivas dos indivíduos, tema que nos remete à questão da denominada
decidibilidade. Ao tratar da questão da decidibilidade, TERCIO SAMPAIO
FERRAZ JUNIOR afirma que “Neste sentido, a validade da ciência independe de
sua transformação numa técnica utilizável (por exemplo, a validade das teorias de
Einstein independe da possibilidade de se construir a bomba atômica ou um
reator atômico). Ao contrário, os enunciados da ciência jurídica têm sua validade
dependente da sua relevância prática. Embora não seja possível deduzir deles as
22 Thomas Kuhn, em sua obra A estrutura das revoluções científicas, parece defender a idéia de que é impossível justificar racionalmente a preferência por uma entre várias teorias, aquilo que chamou de tese da incomensurabilidade (p. 244/251).
regras de decisão, é sempre possível encará-los como instrumentos mais ou
menos utilizáveis para a obtenção de uma decisão”.23
A Ciência do Direito não se pode desvincular de uma função
pragmática, de servir como instrumento de auxílio na construção de decisões que
tenham por objetivo colocar fim nos conflitos sociais; é certo que tem como objeto
a descrição do direito positivo, mas sempre com vistas à decidibilidade de
conflitos, à solução de problemas, de forma que o cientista do direito não busca
simplesmente conhecer e descrever o ordenamento jurídico, mas também
determinar – melhor dizendo, construir, como procuraremos demonstrar em
seguida – o sentido e o alcance das normas jurídicas, analisando-a diante das
características de um caso concreto.24
A esse respeito, TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR chega
mesmo a falar de uma Ciência do Direito normativa. Embora reconheça que a
possibilidade de uma ciência normativa é bastante discutida pela Filosofia da
Ciência, assim a considera porque entende que o jurista, ao criar teorias relativas
a uma questão jurídica, não se limita a apenas levantar hipóteses, mas, por
vezes, vê-se obrigado a efetuar certas opções decisórias. Por tal razão é que a
Ciência do Direito não se pode afastar de uma finalidade prática – que repousa na
decidibilidade – e, de certa forma, ela explica a realidade, tendo-se em vista que
interpreta o ordenamento jurídico a fim de criar condições possíveis para a
solução de conflitos concretos (problemas).25
23 A ciência do direito, p. 44. 24 Deste entendimento decorre, inclusive, nossa opção pelo modelo da tópica jurídica, de Theodor Viehweg, como se pode verificar no item 9 do presente capítulo. 25 A ciência do direito, p. 15 e 73.
Nosso corte metodológico, portanto, prende-se à idéia da Ciência do
Direito atrelada a uma finalidade prática específica, revelada pela decidibilidade,
que explica e justifica a adoção do modelo tópico de pensar (como veremos em
seguida) e também confirma nossa afirmação de que não rejeitamos a teoria
positivista, uma vez que, como é óbvio, as normas jurídicas a serem aplicadas ao
caso concreto estão dentro do ordenamento jurídico.26
8. Ordenamento jurídico e perspectiva dinâmica
Outro aspecto a ser mencionado decorre deste que acabamos de
tratar no item anterior pois, uma vez que adotamos que uma das carcterísticas do
direito positivo é a decidibilidade, somos obrigados a reconhecer, no passo
seguinte, que o direito positivo é marcado por sua função operativa, há de
desempenhar um papel operativo ou, em uma palavra, deve funcionar
efetivamente na tarefa de regular e solucionar conflitos dentro da sociedade.
Obviamente, funcionar dentro da sociedade significa não apenas solucionar os
conflitos de interesses, pondo-lhes um fim prático, mas procurar solucioná-los
com a busca concomitante da concretização dos valores superiores encampados
pela sociedade, estampados que estão na Constituição Federal e, de resto, em
todo o ordenamento jurídico.27
26 Teresa Arruda Alvim Wambier ensina que “Toda a técnica de pensamento em que consiste a tópica reside numa orientação que parte do problema para nele desembocar. Existem, é certo, ligações entre o problema e o sistema. O problema só é resolvido quando, reformulado, é trazido para dentro do sistema” (Controle das decisões judiciais por meio de recursos de estrito direito e de ação rescisória, p. 47). 27 Quanto à solução dos conflitos, Tercio Sampaio Ferraz Junior afirma que “Vimos, porém, que decisões não eliminam conflitos. Que significa, pois, a afirmação de que as decisões jurídicas terminam conflitos? Isto significa, simplesmente, que a decisão jurídica (a lei, a norma consuetudinária, a sentença do juiz etc.) impede a continuação de um conflito: ela não o termina através de uma solução, mas o soluciona pondo-lhe um fim. Pôr-lhe um fim não quer dizer eliminar
Se o direito positivo deve, na regulação das condutas humanas,
prestigiar os referidos valores, isso equivale a dizer que ele deve acompanhar a
sociedade e a evolução de seus interesses; deve acompanhar as transformações
e a elevação crescente da complexidade das relações sociais, o que implica
visualizar e compreender o ordenamento jurídico de uma perspectiva dinâmica,
superando o apelo excessivamente normativista, ou, ainda melhor, levando a
regra jurídica ao grau máximo de sua potencialidade normativa.
Essa idéia, de alcançar o máximo grau possível de potencialidade da
norma jurídica, com a busca de respostas às necessidades e aos interesses da
sociedade à qual ela é destinada – portanto, vista em perspectiva dinâmica, a
norma jurídica em ação, impregnada de movimento – parece corresponder à
afirmação de JOÃO JOSÉ SADY que, fazendo menção ao Código Civil de 2002,
destaca “o avanço no sentido de enfrentar a clássica dificuldade de construir
pontos entre a norma, enquanto enunciado frio e metálico, que gravita em
nebuloso universo metafísico e, do outro lado, a vida, cheia de nuances e
contradições. A contradição, que muitas vezes ocorre entre a letra da lei e as
necessidades de Justiça, perpassa perenemente pela tensão entre a vida e a
norma”.28
Essa consideração do dinamismo do direito positivo, que nos obriga
a constantemente averiguar em qual posição relativa entre si caminham a lei e a
sociedade é visualizada por TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER, ao afirmar
que, nos dia atuais, “tão-só e exclusivamente a velocidade com que caminham os
a incompatibilidade primitiva, mas trazê-la para uma situação, onde ela não pode mais ser retomada nem levada adiante (coisa julgada).” (A ciência do direito, p. 91). 28 A boa-fé objetiva no novo Código Civil e seus reflexos nas relações jurídicas trabalhistas, In: Revista do Advogado, n. 70, p. 43.
fatos sociais e o inevitável descompasso entre a lei escrita e a realidade já seriam
razão suficiente para que em muitos casos não possa o intérprete contentar-se
com a letra da lei, mas, ao contrário, seriam uma razão bastante para que a letra
da lei já não traduzisse a vontade geral”.29
O que procuramos ressaltar é que o mundo atual experimenta
sensíveis alterações em sua configuração, com significativas transformações
sociais, econômicas, políticas, empresariais, ambientais, tecnológicas,
biotecnológicas, e assim por diante, que provocam necessárias alterações no
papel desempenhado pelo Estado, quer na produção de leis, quer na sua função
de agente atuante no seio da sociedade, fatos que nos levam a acreditar na
necessidade de alteração do prisma pelo qual o Direito é analisado, uma vez que
a visão estritamente legalista pode não mais corresponder às exigências do
chamado mundo moderno, ou, como querem alguns, pós-moderno.
TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER salienta tal aspecto ao afirmar
que “A Constituição Federal brasileira vigente é sintoma evidente desta alteração
que vem sendo vivida pelo Estado brasileiro. Já no seu Preâmbulo há o
compromisso de que o Estado deve assegurar a igualdade e a justiça como
valores supremos de uma sociedade fraterna”,30 cabendo notar que seu artigo 3o.
traz como objetivos fundamentais da República a erradicação da pobreza e a
redução das desigualdades regionais, deixando claro que o Estado Brasileiro – a
ordem constitucional vigente – hospeda certos valores que almeja ver
materializados na sociedade.
29 Controle das decisões judiciais por meio de recursos de estrito direito e de ação rescisória, p. 17. 30 Controle das decisões judiciais por meio de recursos de estrito direito e de ação rescisória, p. 23.
O próprio Supremo Tribunal Federal reconhece tais circunstâncias
quando trata das denominadas normas constitucionais programáticas e afirma
que elas não podem se tornar uma promessa inconseqüente aos destinatários do
Texto Constitucional.31
Portanto, o momento atual vivido pela sociedade exige do legislador
e do intérprete–aplicador da norma jurídica uma postura diferenciada e com
renovada carga de responsabilidade – observando a vida e o ordenamento
jurídico em sua perspectiva dinâmica – com a alteração da perspectiva pela qual
se cuida do próprio primado da legalidade, como nos ensina JOSÉ JOAQUIM
GOMES CANOTILHO:
“O princípio da determinabilidade das leis reconduz-se, sob o ponto
de vista intrínseco, a duas idéias fundamentais. A primeira é a da
exigência de clareza das normas legais, pois de uma lei obscura ou
contraditória pode não ser possível, através da interpretação, obter
um sentido inequívoco capaz de alicerçar uma solução jurídica para
o problema concreto. A segunda aponta para a exigência de
densidade suficiente na regulamentação legal, pois um acto
legislativo (ou um acto normativo em geral) que não contém uma
disciplina suficientemente concreta (= densa, determinada) não
oferece uma medida jurídica capaz de: (1) alicerçar posições
juridicamente protegidas dos cidadãos; (2) constituir uma norma de
actuação para a administração; (3) possibilitar, como norma de
controle, a fiscalização da legalidade e a defesa dos direitos e
interesses dos cidadãos”.32
31 Agravo no Recurso Extraordinário no. 273.834-4-RS, Relator Ministro Celso de Mello. 32 Direito constitucional e teoria da constituição, p. 258.
Desse modo, afirmamos nós, se o legislador não levar a efeito a
tarefa de regular a vida em sociedade com densidade normativa suficiente, que o
leve o intérprete-aplicador da norma jurídica no momento de fazê-la incidir no
caso concreto, por meio de uma interpretação construtiva da norma jurídica –
sem, entretanto, ceder passo a subjetivismos de ordem variada – mas
prestigiando e concretizando os diversos valores hospedados pelo ordenamento
jurídico e, em especial, pela Constituição Federal. Essa tarefa somente pode ser
viabilizada por uma perspectiva dinâmica da ordem jurídica positiva, considerada
esta não como um sistema fechado, no qual o modelo codificado traria uma
disciplina legislativa exaustiva e completa, que se revela inviável no mundo atual,
mas tomada como sistema aberto, no qual ganham relevância as chamadas
cláusulas gerais, em que o intérprete-aplicador da norma tem maior liberdade de
atuação e possibilidade de adaptar o conteúdo das normas jurídicas às
necessidades da sociedade em transformação constante.33
Ora, se o denominado direito material, em seus vários quadrantes,
como, por exemplo, o direito civil, econômico, ambiental etc. não podem
prescindir da perspectiva dinâmica a que nos referimos, e bem assim o direito
processual, como demonstrado por TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER, 34
também nos parece que o direito tributário não pode fugir de tal condição (de ser
tomado sob perspectiva dinâmica) que, sobre ser uma postura metodológica,
revela-se uma verdadeira exigência da sociedade atual. Entretanto, referirmo-nos
ao direito tributário em perspectiva dinâmica e ao afastamento do normativismo
33 Cf. Renata Domingues Barbosa Balbino, O princípio da boa-fé objetiva no novo Código Civil, In: Revista do Advogado, n. 68, p. 111. 34 Controle das decisões judiciais por meio de recursos de estrito direito e de ação rescisória, p. 13/56.
extremado parece ser afirmação arriscada e que pode dar margem a um mal
entendido, coisa que nos obriga a efetuar uma ligeira digressão.
À primeira vista pode parecer que, ao mencionarmos cláusulas
relativamente abertas e liberdade de interpretação, estaríamos esquecendo que a
Constituição Federal é do tipo rígida; que o Sistema Tributário Nacional por ela
estabelecido é extremamente minucioso e praticamente exaustivo; que, segundo
a quase unanimidade da doutrina, o princípio da legalidade é de legalidade estrita
e traz em seu bojo a tipicidade cerrada, e que a conjugação de tais elementos
acrescenta relevo especial ao primado da segurança jurídica em matéria
tributária, de sorte que, neste campo do direito positivo, não haveria o menor
espaço para liberdade de interpretação e muito menos cláusulas abertas (ainda
que relativamente abertas), entendimento este que, se aceito, fatalmente
propiciaria abuso de poder, arbitrariedades variadas, exacerbação dos poderes
fiscalizatórios e outros desmandos, ficando assim desprotegido o contribuinte
diante dos irrefreáveis interesses arrecadatórios.
Por todas essas razões, de relevância evidente, é necessário que
declaremos, desde logo, que a proteção ao contribuinte é necessária, imperiosa e
imprescindível; que as limitações constitucionais ao poder de tributar não podem
de modo algum ser desprezadas, inclusive a limitação representada pelos
conceitos constitucionais, como procuramos demonstrar em seguida. A
experiência brasileira demonstra, de forma irrespondível e com exemplos diários,
que o fisco parece ter pouco apreço pela Constituição Federal e pelos limites por
ela impostos à atividade estatal de criar e arrecadar tributos. Em não raras vezes
os contribuintes sofrem de abuso de poder no que se refere aos procedimentos
fiscalizatórios, entre outros problemas que marcam indelevelmente a relação
fisco-contribuinte, de modo que, diante desse quadro, seria certamente
irresponsável ignorar a relevância da segurança jurídica em matéria tributária ou
esposar entendimento que viesse a desprestigiá-la, ainda que de forma indireta.
Portanto é de bom tom, para dizer o mínimo, que declaremos que
não é isso que estamos a defender; ao contrário, o que procuramos ressaltar é
que ambos os pontos de vista – o prestígio à segurança jurídica e às limitações
constitucionais ao poder de tributar e, ao mesmo tempo, a liberdade de
interpretação e alguma maleabilidade do sistema tributário – representam idéias
que podem conviver dentro de nosso ordenamento jurídico, porque a própria
Constituição Federal parece demonstrá-lo.
A mesma Constituição Federal que prevê o princípio da legalidade
(artigo 150, inciso I), contempla o princípio da capacidade contributiva (artigo 145,
parágrafo primeiro); o mesmo Texto Constitucional que estabelece o princípio do
não-confisco (artigo 150, inciso IV), firma como um dos objetivos da República a
busca da erradicação da pobreza (artigo 3o, inciso III); a Lei Maior que reconhece
e prestigia o princípio da livre iniciativa e da garantia da propriedade (artigo 170,
caput e inciso II, e artigo 5o, inciso XXII) é a mesma que objetiva a redução das
desigualdades sociais e determina que a propriedade deve atender à sua função
social (artigo 3o, inciso III, artigo 5o, inciso XXIII, e artigo 170, inciso III).
Não nos parece possível ignorar a função desempenhada pela
arrecadação de tributos na busca dos objetivos a serem alcançados pelo Estado
Brasileiro, por força de mandamento constitucional, fato que exige, segundo
nosso entendimento, que também o direito tributário seja visto pela perspectiva
dinâmica, buscando acompanhar e atender às exigências da sociedade atual, o
que não autoriza, entretanto e com o perdão da insistência, o desprezo à
fundamental proteção ao contribuinte, também em obséquio aos ditames
constitucionais.
Retomamos aqui a linha de nosso raciocínio para afirmar que, se a
Constituição Federal de 1988 determina que o Estado busque os objetivos nela
contemplados, de natureza social, relativos à educação, atinentes à saúde e
afetos à seguridade social, entre tantos outros que poderíamos citar, é natural
também que ela própria forneça ao Estado os meios e recursos financeiros para a
busca de tais desideratos constitucionais, daí decorrendo a importância da
competência tributária e de seu exercício pelos entes políticos, visto que
possibilita ao Estado passar de mero espectador a agente preocupado e atuante
nas diversas demandas sociais.35
Nesse sentido, leciona MARCO AURELIO GRECO que “o conceito
de Estado intervencionista supõe a concepção de que há necessidade de
mudança e, portanto, um passado (a ser mantido) não é mais o referencial básico.
Referencial é um futuro a ser construído. Assim, uma lógica voltada para o
passado não se compatibiliza adequadamente com esta nova postura do Estado
e, por conseqüência, do Direito”.36
Podemos notar assim que não se trata de desprezarmos as
conquistas do passado – levadas a termo pela doutrina e pela jurisprudência, no
35 Certamente não ignoramos que o Poder Executivo reiteradamente não aplica os recursos decorrentes da arrecadação de tributos da forma como o determina a Carta da República, para não falar dos casos em que simplesmente não aplica recurso algum. Entretanto, pensamos que os desvios de poder e as distorções causadas pelo mau uso do dinheiro público não podem servir de pretexto para não reconhecermos os desígnios constitucionais apontados na Carta. 36 Contribuições: uma figura “sui generis”, p. 36.
que atine aos limites da atividade estatal impositiva – mas de reconhecer que, ao
lado delas, é necessário considerarmos novas variáveis que ganham espaço na
discussão do fenômeno tributário, sobretudo após o advento da vigente
Constituição Federal, diante dos fins que ela ordena que o Estado Brasileiro
busque atingir.
E aqui desembocamos na questão da segurança jurídica como valor
fundamental – positivado expressamente pelo ordem constitucional – de todas as
subáreas do direito positivo e, com especial grau de relevância, da seara
tributária, porque, se é evidente que a todos os cidadãos é imperioso garantir o
conhecimento antecipado das conseqüências jurídicas dos atos praticados,
próprios e alheios, também ao contribuinte revela-se obrigatório garantir a
previsibilidade das conseqüências de sua conduta, que afetarão seu patrimônio.
A segurança jurídica experimenta alguma dose de alteração em seu
perfil, pois deixa de ser algo que garanta que tudo se passará da mesma forma
como tem passado nas últimas décadas, para ser instituto que garanta um grau
de previsibilidade das conseqüências possíveis quanto aos novos valores que
serão levados em consideração na solução dos conflitos sociais, momento em
que passam a comparecer com freqüência no cenário jurídico temas como
solidariedade social, direitos humanos, proporcionalidade e razoabilidade,
governabilidade, papel político do Supremo Tribunal Federal, ponderação de
princípios na interpretação a aplicação das normas jurídicas e outros elementos
de igual envergadura.
No que se refere à jurisprudência, a segurança jurídica parece não
mais garantir que o Poder Judiciário irá decidir as lides tributárias nas mesmas
bases em que foram decididas nos últimos vinte anos, mas, em vez disso, passa
a permitir que o contribuinte conheça antecipadamente quais os valores – que
agora – passarão a ser tomados em consideração no momento da decisão, qual a
flexibilização que se pretende adotar quanto a certas regras tributárias, qual o
conteúdo que se passa a conferir a este ou àquele princípio constitucional
tributário, quais as condutas cujo grau de reprovação pelos juízes aumenta e
assim por diante. Desse modo, a segurança jurídica – que também passa a ser
objeto de ponderação quando confrontada, por exemplo, com a justiça – não mais
permite antecipar o conteúdo da decisão judicial mas, antes, possibilita o
conhecimento dos critérios, dos novos critérios, que informam, a partir de então, o
ato de decidir.37
Considerar o ordenamento jurídico pela perspectiva dinâmica e
como elemento de transformação da realidade social significa entender a
Constituição como uma obra aberta, que, ao lado de um núcleo rígido que
encampa valores que ela deseja ver perpetrados perenemente (cláusulas
pétreas), também oferece uma outra série de valores que ainda estão por ser
implementados e que aponta para o modelo de sociedade que se deseja que
venha a existir. A implementação desses valores cabe aos legisladores e aos
intérpretes e aplicadores das normas jurídicas, em tarefa diária árdua e que
certamente se dará em meio a acirrados debates ideológicos a serem fatalmente
37 Neste particular, Maria Garcia salienta que “além de ser critério de avaliação, conjunto de critérios de avaliação ou conjunto de avaliações deônticas, como diz Amadeu Conte, é, ainda, um sistema de decisões. Isto é, o direito não é apenas um conjunto de normas, com sentido retrospectivo, nem apenas um conjunto de avaliações, com sentido prospectivo, mas ele é também um conjunto de decisões, no sentido atual, aquilo que está sendo usado aqui, agora. Isso também faz parte do sistema jurídico” (Desobediência civil: direito fundamental, p. 108).
travados pelos inúmeros grupos de interesses atuantes no cenário sócio-
econômico.
A concepção da ordem constitucional como ordem aberta é
mencionada por MARIA GARCIA, ao afirmar que “a ordem constitucional surge
em Canotilho como uma ordem aberta às alterações e mudanças temporalmente
adequadas” e, baseada no ensinamento de KONRAD HESSE, aponta que o
caráter incompleto da Constituição encontra-a na perspectiva de um sistema e
avança na problemática das lacunas, de modo que a Constituição confia ao resto
do ordenamento jurídico a conformação e a concretização de um sem-número de
temas, decorrendo daí que a própria Constituição não pode prescindir de certas
lacunas e não pode ser considerada como um sistema rigidamente fechado,
deixando determinadas questões, como, por exemplo, a constituição econômica,
pretendidamente abertas, para propiciar espaço para a discussão, decisão e
configuração.38
Reconhecer que o Texto Constitucional e, de resto, o próprio
ordenamento jurídico, em sua integralidade, pode ser considerado como algo
incompleto e inacabado é afirmar que, se ambos têm por objeto precípuo a
regulação da vida em sociedade, nada mais razoável que o ordenamento deixe
margem para alterações em virtude das modificações sofridas pela sociedade que
ele pretende regular. Tal indeterminação, entretanto, não pode ser de tal
magnitude, sujeita a uma dinâmica absoluta, que venha a impossibilitar o
regramento social, aí sim gerando insegurança jurídica e desprestígio à
supremacia normativa da Carta da República.
38 Cf. Desobediência civil: direito fundamental, p. 109/111.
Nesse sentido, é ainda MARIA GARCIA, desta feita valendo-se das
lições de MICHEL VAN DE KERCHOVE e de FRANÇOIS OST (Le système
juridique entre ordre e désordre), que aponta com precisão:
“É preciso cessar, a esse respeito, de considerar necessariamente
como deficiências ou inevitáveis ambigüidades, redundâncias,
lacunas, inefetividades e antinomias que afetam o sistema jurídico.
Quem não vê que as ambigüidades de certas ‘noções confusas’
favorece a adaptação dos textos às circunstâncias imprevistas, ao
mesmo tempo que facilita a realização do compromisso? Quem não
sabe que a função pedagógica do Direito, reclama algumas
repetições? Quem ignora a virtude de certas lacunas que,
procedendo da sabedoria de legislador – mais que da sua
imprevidência – deixam ao órgão de aplicação a indispensável
margem da manobra que a diversidade dos fatos reclama?”.39
Uma última palavra é necessária, ainda que breve, acerca do papel
da doutrina neste quadro que procuramos desenhar, pois, se no passado a
doutrina de direito tributário desempenhou papel de alta relevância na construção
de um modelo de controle do exercício do poder de tributar, atualmente sua
função revela-se ainda mais importante, pois é evidente que tal controle ainda
continua necessário, mas sua adequada formulação não pode desprezar a nova
realidade social que se materializa dia após dia, com a interferência de novos
valores sobre a interpretação e aplicação das normas jurídicas tributárias,
especialmente aquelas de caráter constitucional.40
39 Desobediência civil: direito fundamental, p. 112. 40 Marco Aurelio Greco acentua com lucidez que “hoje, cumpre aceitar a mudança como único elemento constante e, a partir desta constatação do reconhecimento da crise dualista, buscar novos critérios e parâmetros que assegurem tal controle, pois o próprio objeto de análise sofreu
A doutrina especializada pode concordar ou não com a flexibilização
dada ao princípio da legalidade (como no julgamento, pelo Supremo Tribunal
Federal, do caso do Seguro de Acidentes do Trabalho); certamente pode
entendê-la como violação ao Sistema Tributário Nacional ou como razoável
solução do caso concreto. Entretanto, o que a doutrina não pode fazer é ignorar
as decisões, fingir que não percebe que a jurisprudência parece adotar novos
rumos, pois, assim fazendo, a Ciência do Direito corre o risco de renunciar à
relevante posição que deve ocupar, uma vez que deixa de explicar a realidade
jurídico-tributária.
Diante de novos rumos que parece seguir a jurisprudência relativa à
matéria tributária, sobretudo aquela oriunda dos tribunais superiores, a doutrina
não pode abrir mão de sua função, mas talvez deva reavaliar alguns de seus
conceitos, rever algumas de suas posições, a fim de construir novos modelos de
análise do fenômeno impositivo, porque assim procedendo auxilia os órgãos
julgadores, que precisa e deve contar com as lições doutrinárias na tarefa de
construir e concretizar o ordenamento jurídico.
9. Tópica jurídica
A tópica ou modelo tópico de raciocinar é retomada por
alguns filósofos do Direito, a partir da segunda metade do século XX, como uma
tentativa de resposta à chamada crise do positivismo aflorada com o surgimento
de regimes totalitários que, não obstante perpetrassem barbáries no seio da
alterações. A doutrina não pode descurar do seu objeto de análise, formado pelas normas (que não se resumem apenas às constitucionais) e pela jurisprudência. Estudar o Direito é, também, conhecer o posicionamento dos Tribunais procurando identificar tendências, critérios, parâmetros em que se apóiam etc.” (Contribuições: uma figura “sui generis”, p. 48/49).
sociedade, faziam-no com base no direito positivo e, portanto, sob a proteção da
lei vigente.
O denominado modelo sistemático, caracterizado pelo hermetismo
decorrente da filosofia positivista, parecia então não mais poder responder às
perplexidades de uma sociedade mundial que começava a transformar-se e dar
importância a novos valores. Talvez o exemplo mais contundente seja o Tribunal
de Nuremberg, criado após o término da Segunda Guerra Mundial com o
propósito específico de julgar os crimes praticados pelo nazismo.
Afirma CHAÏM PERELMAN que “Os fatos que sucederam na
Alemanha, depois de 1933, demonstraram que é impossível identificar o direito
com a lei, pois há princípios que, mesmo não sendo objeto de uma legislação
expressa, impõem-se a todos aqueles para quem o direito é a expressão não só
da vontade do legislador, mas dos valores que este tem por missão promover,
dentre os quais figura em primeiro plano a justiça”.41
A tópica jurídica ressurge, assim, como proposta de construção de
um novo modelo que pudesse dar sustentação às decisões judiciais, direcionado
para a prática jurídica e que, segundo alguns autores, insurge-se contra o
raciocínio silogístico e a concepção legalista e estatizante do direito. Rejeita,
portanto, o formalismo sistemático e dedutivo assentado sobre o positivismo
jurídico. Pode-se considerar que a retomada de tal modelo dá-se em 1953 com a
publicação da obra Topik und Jurisprudenz, de THEODOR VIEHWEG, que
resgata o modelo utilizado pelos romanos e busca fundamentar sua teoria na
construção de uma justiça que parte da análise de casos concretos e das
41 Lógica jurídica, p. 95.
decisões específicas tomadas na solução de tais casos. A tópica surge como uma
técnica de raciocínio voltada para o caso concreto, para o problema apresentado,
é um estilo de pensar por problemas, que parte do problema e para ele é
orientado.
No prefácio à obra de THEODOR VIEHWEG, publicada no Brasil
com o título Tópica e Jurisprudência, TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR
salienta que
“A tópica não é propriamente um método, mas um estilo. Isto é, não
é um conjunto de princípios de avaliação da evidência, cânones para
julgar a adequação de explicações propostas, critérios para
solucionar hipóteses, mas um modelo de pensar por problemas, a
partir deles e em direção deles. Assim, num campo teórico como o
jurídico, pensar topicamente significa manter princípios, conceitos,
postulados, com um caráter problemático, na medida em que jamais
perdem sua qualidade de tentativa. Como tentativa, as figuras
doutrinárias do Direito são abertas, delimitadas sem maior rigor
lógico, assumindo significações em função dos problemas a
resolver, constituindo verdadeiras ‘fórmulas de procura’ de solução
de conflito”.42
Desse modo, adotamos neste trabalho a tópica como um estilo de
pensar, como um instrumento que nos permite buscar a interpretação da norma
jurídica na aplicação ao caso concreto (do problema), partindo-se do caso para a
norma, isto é, o marco inicial da tarefa exegética é a consideração e o análise do
problema e não da norma; revela-se, portanto, um raciocínio do tipo indutivo, que
se desloca do particular em direção ao geral. 42 Theodor Viehweg, Tópica e jurisprudência, p. 3.
Tal postura repousa em nossa crença de que o conteúdo de
significação da norma jurídica, pelo menos na maioria dos casos, somente pode
ser construído por meio da interpretação diante de um caso concreto, ou seja, a
interpretação do ordenamento jurídico não pode ser levada a termo de modo
desvinculado do problema que se pretende solucionar, afirmação que nos obriga
efetuar uma pequena digressão.
O direito positivo, como vimos, é um conjunto de normas jurídicas
válidas, em dado território e determinado espaço, que tem por objetivo regular
condutas humanas intersubjetivas. Uma de suas características principais é a de
garantir um certo grau de previsibilidade aos destinatários do aglomerado de
comandos normativos, no que concerne às conseqüências jurídicas dos atos
praticados. Em outros termos, para que o cidadão possa saber quais as
conseqüências jurídicas de sua conduta, é necessário garantir a ele que, antes de
sua prática, ele saiba qual a norma jurídica regente daquela conduta e qual o seu
conteúdo. Dessa forma, como coadunar tal necessidade imperiosa com nossa
afirmação de que o conteúdo da norma jurídica somente pode ser construído
diante do caso concreto? Como garantir a previsibilidade das conseqüências
jurídicas – a segurança jurídica, enfim – se o conteúdo da norma somente é
apurado diante do caso concreto?
A resposta está, segundo nos parece, no próprio temperamento que
devemos dar à nossa afirmação, uma vez que há casos e casos a serem
considerados, isto é, as próprias especificidades da hipótese considerada indica-
nos uma direção a seguir. Por exemplo, sabe-se que o ordenamento jurídico
hospeda uma norma que impõe o respeito à vida, de modo que quem quer que
alimente pretensões de tirar a vida de outrem sabe perfeitamente que sofrerá uma
sanção negativa prevista pelo ordenamento, por exemplo a pena de reclusão
(salvo nas exceções contempladas pelo próprio direito positivo, por exemplo,
legítima defesa). Em casos como esse, é fácil saber previamente o conteúdo da
norma jurídica e orientar a conduta para acatá-la (ou mesmo desobedecer a ela),
revelando-se esta uma hipótese simples, caricatural mesmo.
Não obstante, há uma longa série de hipóteses complexas, cuja
apuração das conseqüências jurídicas não acontece dessa forma singela e
damos como exemplo justamente aquilo que nos interessa de perto no presente
estudo, qual seja, o exercício da competência tributária.
O legislador, ao instituir determinado tributo, ao exercer a
competência tributária que lhe é conferida constitucionalmente, edita um ou vários
atos legislativos (leis, regulamentos etc.) para compor o regime jurídico-tributário
de certa exação. Formulando, com tal atividade, variada série de discriminações,
de qualificações jurídicas, de busca de certos objetivos, de estipulação de
sanções negativas e positivas, de escolha de classes e pessoas, deve, no
desempenho de tal comportamento legiferante, manter-se alinhado aos
superiores ditames constitucionais que informam a competência tributária ou, por
hipótese, pode deles desafortunadamente desviar-se.
Aqui chegamos ao nosso ponto, uma vez que, em casos como este,
somente se poderá saber se o legislador trabalhou bem ou mal, com respeito ou
sem ao ordenamento jurídico, diante de casos concretos, aqui considerados como
tais os próprios atos legislativos e suas peculiaridades e também as situações
fáticas dos contribuintes diante dos comandos prescritivos estabelecidos pelos
textos legais. Em outros termos, o conteúdo da norma jurídica será construído
diante de cada problema a resolver, com a solução que se deverá ofertar a cada
situação concreta e específica que a aplicação da norma jurídica suscitar, com
todas as complexidades que o mundo fenomênico oferece, em suas múltiplas e
variadas ocorrências. Portanto, e aqui finalizando a noticiada digressão, é neste
sentido, para os propósitos e limites de nosso trabalho, que deve ser tomada a
afirmação de que a interpretação-aplicação da norma jurídica é feita sempre
diante do caso concreto (ainda que hipotético, formulado como exemplo),
decorrendo daí a relevância, segundo nosso ponto de vista, do estilo tópico.
Há uma outra dificuldade que devemos desde logo enfrentar,
decorrente da afirmativa de que o estilo tópico, por deixar, no caso do campo
jurídico, os princípios, conceitos e postulados com um caráter problemático, vale
dizer, aberto às discussões, parece deixar ao intérprete demasiada liberdade ou
criatividade em sua tarefa exegética. Por partir do problema para a norma (e não
o contrário), poder-se-ia adotar todo e qualquer argumento na solução do caso
concreto – até mesmo argumentos contrários à lei – desde que estes, aos olhos
do intérprete, parecessem suficientes para solucioná-lo, o que viria em
desrespeito ao conceito formal de Constituição e à sua hegemonia normativa.
Tal objeção, séria por si mesma, ganha contornos de relevância
ainda mais acentuados quando aplicada à área de nosso estudo, dado que o
Sistema Tributário Nacional plasmado na Constituição Federal é rico em
princípios e regras restritivas ao exercício do poder de tributar – sem prejuízo da
própria rigidez da Constituição – considerada pela maioria da doutrina pátria como
exaustivo e inflexível, seara na qual, segundo a quase unanimidade dos autores,
vige o princípio da legalidade estrita e o da tipicidade cerrada, cenário, portanto,
que não permite deixar as referidas regras e princípios com uma natureza
problemática .
Tal crítica é formulada, por exemplo, por PAULO BONAVIDES, que
aponta as distorções que seriam impostas ao Texto Constitucional caso fosse
utilizado o estilo tópico na interpretação das normas constitucionais:
“Sendo a Constituição aberta, a interpretação também o é. Valem
para tanto todas as considerações e pontos de vista que concorram
ao esclarecimento do caso concreto, não havendo graus de
hierarquia entre os distintos loci ministrados pela tópica. A
Constituição com a metodologia perde até certo ponto aquele caráter
reverencial que o formalismo clássico lhe conferira. A tópica abre
tantas janelas para a realidade circunjacente que o aspecto material
da Constituição, tornando-se, quer se queira quer não, o elemento
predominante, tende a absorver por inteiro o aspecto formal. A
invasão da Constituição formal pelos topoi e a conversão dos
princípios constitucionais e das próprias bases da Constituição em
pontos de vista à livre disposição do intérprete, de certo modo
enfraquece o caráter normativo dos sobreditos princípios, ou seja, a
sua juridicidade. A Constituição, que já é parcialmente política, se
torna politizada ao máximo com a metodologia dos problemas
concretos, decorrentes da aplicação da hermenêutica tópica”.43
Com o evidente respeito que temos pelo entendimento do Professor
da Universidade Federal do Ceará, encontramos dificuldades para acompanhá-lo
na crítica transcrita, porque nos parece que ela peca pelo excesso. Em primeiro
lugar, porque certamente não são válidos “todas as considerações e pontos de 43 Curso de direito constitucional, p. 495/496.
vista que concorram ao esclarecimento do caso concreto” na interpretação da
Constituição (como decorrência da adoção do estilo tópico de pensar), mas
algumas considerações e alguns pontos de vista. Assim como não há direitos
ilimitados, também não há interpretação ilimitada.
Em segundo lugar, quanto à Constituição Federal ser aberta,
acreditamos que ela efetivamente o seja; idéia, aliás, que procuramos defender
no item precedente, e da qual decorre que também a interpretação o seja.
Todavia, tal característica não é ruim, como pode à primeira vista parece, mas é
boa, na medida em que permite que a Carta da República seja permanentemente
atualizada, pela interpretação, esteja em consonância com as exigências de seu
tempo e seja sensível às características presentes na sociedade à qual ela se
destina. Entretanto, como parece óbvio, afirmar que a interpretação é aberta não
significa dizer, como o afirmamos, que ela seja totalmente aberta, como se o
intérprete, apenas por se valer do estilo tópico e por se preocupar com o caso
concreto, pudesse tomar o texto da Constituição Federal como um mero pretexto
para, pela interpretação, ler em suas superiores normas aquilo que lhe convém ou
lhe prefere.
Em terceiro lugar, porque o fato de a tópica abrir “janelas para a
realidade circunjacente” certamente não autoriza “a conversão dos princípios
constitucionais e das próprias bases da Constituição em pontos de vista à livre
disposição do intérprete”, como nós não defendemos que autorizasse e como não
poderia mesmo autorizar, de modo que ficasse enfraquecido o caráter normativo
dos princípios ou mesmo sua juridicidade. Assim sendo, abrir as referidas janelas
para a realidade circunjacente representa apenas, segundo modestamente
pensamos, constatar o inapelável: a Constituição Federal não vige sozinha, não
paira no vácuo, alheia a tudo e a todos; pelo contrário, vigora justamente para a
realidade circunjacente e por esta é evidentemente influenciada, pois a sociedade
conforma e é conformada pela Constituição e tal afirmação nada implica ou se
confunde com desprezar sua juridicidade ou sua inafastável força normativa.
Finalmente, em quarto lugar, parece-nos que ninguém pode duvidar
que a Constituição é “parcialmente política”, mas a adoção da “metodologia dos
problemas concretos” não pretende transformá-la em “politizada ao máximo” –
pelo menos não na acepção em que ora adotamos o estilo tópico de raciocinar –
mas tenciona deixar assentada nossa convicção de que a interpretação das
normas jurídicas, aí inclusas obviamente as normas constitucionais, não pode ser
levada a termo sem a consideração do caso concreto, tal como afirmamos no item
dedicado à questão da decidibilidade, e isso não significa, refrise-se, com perdão
pela insistência, desprezar a força normativa da Constituição ou conceder
desmedida margem de liberdade ao seu intérprete-aplicador.
Portanto, e retornando à questão tributária, é fundamental que
deixemos claro que não estamos a defender a idéia de flexibilização do sistema
tributário pela interpretação e muito menos a desprestigiar os princípios
constitucionais, sobretudo nesta subárea do direito positivo, em que as
arbitrariedades e os desvios de poder são fartos, como bem o demonstra
volumosa jurisprudência; trata-se apenas de interpretarmos as normas
constitucionais tomando-se como ponto de partida o caso concreto e sempre
considerando a questão da decidibilidade.
Adotar o estilo tópico de pensar o direito positivo não significa, de
modo algum, abrir mão ou rejeitar o pensamento sistemático; implica apenas dar
ênfase ao pensamento problemático, porque pensamos que ambas as formas de
raciocinar podem e devem auxiliar-se mutuamente, caminhando uma ao lado da
outra e complementando-se. Assim como acreditamos que nos apegarmos
acirradamente ao modelo sistemático, com desprezo a outros métodos possíveis,
significa conduta extremada que pode render homenagens ao radicalismo – tanto
indesejável quanto infrutífero. Não pretendemos cometer o mesmo equívoco
caminhando pelo outro sentido, que seria o alinhamento incondicional ao modelo
tópico, com indesejável desprezo pelo sistemático. Pensamos, assim, ser possível
a utilização conjunta de ambos os métodos, sem preconceitos e sem que com
isso a necessária rigidez e coerência do estudo fiquem prejudicadas.44
Uma vez que partimos de uma visão pragmática do direito e
apoiados na questão da decidibilidade, o marco inicial do raciocínio é o problema,
o caso concreto, uma questão que aguarda solução (decisão), para a qual se tem
mais de uma possível resposta. Assim, parte-se do problema (e das possíveis
soluções, que são, por assim dizer, previamente dadas) e vai-se ao sistema do
direito positivo para verificar-se, entre aquelas possíveis, qual é a melhor solução,
44 Margarida Maria Lacombe Camargo, com base em outras lições, aponta que “Concordamos com José Lamego quando este reconhece na tópica não uma ameaça à dogmática, mas um elemento potencializador. Conforme escreve ‘O juiz não aplica automaticamente e na sua integralidade a pauta geral à situação concreta, ‘sacrifica’ algo daquela em virtude, precisamente, do caráter ‘concreto’ da situação. Mas este afastar-se da universalidade da norma não significa uma ‘imperfeição’, um déficit na realização do conteúdo da pauta de regulação, mas precisamente uma potenciação das possibilidades nela contidas, fazendo-a corresponder às exigências do caso.’ Por mais paradoxal que possa parecer, Lamego atribui à tópica uma maior capacidade de explorar o sistema, considerado como uma pauta de regulação previamente dada.” (Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito, p. 152).
a mais razoável para o caso concreto. Mas a solução é encontrada evidentemente
no ordenamento.
Nessa linha, TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER leciona que “Em
decorrência de tudo o que até agora se disse, é necessário que consignemos
expressamente nosso pensamento, no sentido de que não há incompatibilidade
entre conceber-se a existência de um sistema jurídico, composto de regras e
princípios, que aparecem na lei (que são as regras propriamente ditas), na
doutrina e na jurisprudência e, simultaneamente, entender-se que o raciocínio
para resolverem-se questões jurídicas parte do problema, remetendo a atenção
do sujeito ao sistema e, em seguida, ao problema e, em seguida, ao sistema até
que este assimile aquele, encaixando-o na solução normativa adequada”.45 46
Poderíamos dizer que falar em possíveis soluções previamente
dadas constitui falha ou inconsistência do raciocínio porque, a princípio, as
soluções somente poderiam surgir a partir e depois da análise do sistema jurídico,
do ordenamento positivo. Não obstante, acreditamos que, concomitantemente à
exposição do problema, surge na mente do operador do direito (juiz, advogado,
jurista etc.) um leque de possíveis soluções, daí porque ele vai ao ordenamento,
primeiro para saber se todas elas ali cabem e, depois, para verificar qual delas é a
melhor. Assim, como visto, vamos do problema ao sistema, do sistema ao
45 Controle das decisões judiciais por meio de recursos de estrito direito e de ação rescisória, p. 49. 46 Nesse sentido, Tercio Sampaio Ferraz Junior salienta que “De modo geral, as questões jurídicas são ‘dogmáticas’, sendo sempre restritivas (finitas) e, neste sentido, ‘positivistas’ (de positividade). As questões jurídicas não se reduzem, entretanto, às ‘dogmáticas’, à medida em que as opiniões postas fora de dúvida – os dogmas – podem ser submetidas a um processo de questionamento, mediante o qual se exige uma fundamentação e uma justificação delas, procurando-se, através do estabelecimento de novas conexões facilitar a orientação da ação. O jurista revela-se assim, não só como o especialista em questões ‘dogmáticas’, mas também em questões ‘zetéticas’. (A ciência do direito, p. 46).
problema, deste novamente ao sistema, até o ponto em que se encontra e
constrói-se a decisão, que vem a representar a solução do problema, o seu
término naquele caso concreto.
Portanto, segundo essa forma de pensar, não se analisa o
ordenamento jurídico em abstrato raciocínio, para extrair-se dele as respostas
possíveis, para, munido delas, ir enfrentar o problema; ao contrário, diante do
problema vamos buscar as respostas, como nos dois exemplos seguintes.
No mencionado caso do Seguro de Acidentes do Trabalho – SAT, no
qual a controvérsia central repousou na alegada ofensa ao princípio da
legalidade, uma vez que as alíquotas do tributo foram fixadas por meio de Decreto
que estabeleceu os respectivos graus de risco, não se partiu da análise abstrata
do aludido princípio para se extraírem as possibilidades e as não-possibilidades
do Decreto. Em vez disso, dada a fixação das alíquotas pelo Decreto como fato
consumado (este é o problema), buscou-se interpretar a Constituição Federal
para se saber se o Poder Executivo poderia ter feito o que efetivamente fez neste
caso concreto, ou seja, se exorbitou ou não os limites aos quais o Decreto está
subordinado.
Na hipótese da incidência da Contribuição para Financiamento da
Seguridade Social – COFINS sobre bens imóveis,47 não se analisou a questão
apenas partindo do ponto em que se reconhece que, a rigor, um imóvel não é
mercadoria e, portanto, a receita advinda de sua alienação não seria uma receita
decorrente da venda de mercadorias. Diante do problema de assim decidir e
47 Embargos de Divergência no Recurso Especial nº. 166.374-PE, Relatora para acórdão Ministra Eliana Calmon.
deixar uma classe de possíveis contribuintes exclusos da incidência da referida
contribuição, procedeu-se ao exame da Constituição Federal e ali se encontrou o
denominado princípio da universalidade da contribuição (artigo 195, caput) para,
em seguida, sopesando os valores envolvidos – proteção a uma classe de
contribuintes versus prestígio ao princípio da universalidade da contribuição –
optar-se (decidir-se) pelo prestígio segundo, como capaz de oferecer solução
mais razoável ao caso concreto.
Outros dois significativos exemplos são dados pela questão da
imunidade, relativa aos impostos, dos jornais e do papel para a sua impressão,
em que se debate se a imunidade alcança também o filme fotográfico ali utilizado
e a tinta de impressão, e se tal imunidade, concedida ao livro, alcança ou não o
chamado livro eletrônico. Em ambos os casos concretos (problemas), trata-se de
interpretar a Constituição Federal para se determinar qual o alcance da norma
jurídica imunizante e a interpretação parte do problema (tinta de impressão e livro
eletrônico), para ir ao sistema do direito positivo. Como afirmado, não se examina
a Constituição Federal, em abstrato, para se decidir, em tese, qual seria o alcance
ou o limite da norma imunizatória; note-se que a questão permanece aberta,
continua com seu caráter problemático, pois amanhã poderá surgir a necessidade
de se determinar (questão de decidibilidade) se a imunidade contempla também,
por exemplo, as peças da máquina impressora, no primeiro caso, e ainda quem
sabe um novo tipo de livro que a tecnologia insopitável dos tempos modernos
possa vir a inventar, na segunda hipótese.
De modo especial nestes dois últimos exemplos, é interessante
observar a razoabilidade e a pertinência das duas possíveis soluções (estender
ou limitar o alcance da norma constitucional imunizante); ambas cabem no
ordenamento jurídico e dele emanam, sem que se possa chamar a nenhuma
delas de teratológica, de forma que, sendo as duas razoáveis, pode-se optar
(interpretar e decidir) por aquela que se revela, aos olhos do julgador, naquele
caso concreto e naquele momento, como a mais razoável.
Podemos constatar, assim, que adotar o estilo tópico de pensar não
significa de modo algum pretender colocar o sistema jurídico em segundo plano –
e muito menos de desprezá-lo – pois a solução para o problema dele emana e,
como tal, é por ele autorizada.
10. Jurisprudência dos valores
Finalmente, a última etapa do nosso corte metodológico refere-se à
questão dos valores, sua relação com o Direito e a denominada jurisprudência
dos valores. O tema está intimamente ligado com o problema dos fins no mundo
jurídico. Ensina a respeito MIGUEL REALE que
“O fenômeno jurídico manifesta-se ou existe porque o homem se
propõe fins. Não é possível que se realize, por exemplo, um
contrato, sem que algo mova os homens à ação. Quem contrata é
impelido pela satisfação de um valor ou de um interesse, por um
objetivo a atingir, por um fim qualquer que constitui o ato, dando-lhe
vida e significado como razão de seu dever ser. (.....) Um fim outra
coisa não é senão um valor posto e reconhecido como motivo de
conduta. Quando reputamos algo valioso e nos orientamos em seu
sentido, o valioso apresenta-se como fim que determina como deve
ser o nosso comportamento”.48
48 Filosofia do direito, p. 544.
Acreditamos poder perceber que o Direito, pelo menos na maior
parte das oportunidades, deseja criar algo que ainda não existe, mas que deve
existir, cabendo tal tarefa ao legislador que, por meio de textos legais, impulsiona
as condutas humanas para essa realidade que ele quer ver materializada. Por tal
razão, podemos entender que a norma jurídica é marcada por um relevante vetor,
que repousa na possibilidade de indução de condutas, vale dizer, a norma jurídica
não apenas regula a vida em sociedade, prescrevendo a prática de certos
comportamentos e a abstenção de outros, mas, quando assim o faz, induz,
impulsiona, direciona a vontade daqueles que estão submetidos aos seus
comandos prescritivos. Isso porque entendemos que a capacidade de a norma
jurídica induzir determinadas condutas é justamente o fator que lhe permite
buscar o fim objetivado pelo Direito, ou seja, é precisamente o direcionamento
das condutas que pode propiciar o alcance das finalidades do direito.
Partindo-se da premissa que não pode haver compreensão do
fenômeno jurídico sem considerar a idéia de fim no Direito, alcançamos a questão
da relação existente entre valor e fim, considerando-se a necessidade do jurista
ou cientista do Direito de considerar os fatos, tomar posição diante deles na vida
social, mas sempre levando-se em conta a natureza humana quando referida a
valores. É nesse sentido a lição de JOHANNES HESSEN ao afirmar que
“Como teremos ocasião de ver mais adiante, o sentido da vida
humana reside, precisamente, na realização dos valores. Dizendo
isto, porém, tocamos aqui com o dedo o significado, desta vez
prático, da Teoria dos valores, na sua relação directa com a vida.
Se, de facto, o sentido da vida se acha dependente dos valores a
que está referida, através da qual estes alcançam a sua
objectivação, é evidente que a plena realização do sentido da nossa
existência dependerá também, em última análise, da concepção que
tivermos acerca dos valores”.49
Em outras palavras, a conduta humana materializa-se em função de
valores; o ser humano adota seu comportamento por meio da atenção a certos
valores, assumindo posição sobre eles, quer positiva, quer negativamente, 50
funcionando o valor como uma entidade vetorial, porque aponta para um sentido
e, por tal razão, porque possui um sentido e volta-se para ele, é que se revela em
determinada conduta.51
A definição de valor é questão por demais complexa. Afirma
MIGUEL REALE a impossibilidade de defini-lo segundo as regras de gênero
próximo e de diferença específica, e ainda salienta que do valor pode-se dizer que
ele vale, seu ser é o valer, de modo que vemos as coisas como elas são ou pelo
que elas valem e, porque valem, devem ser.52
Seja como for, uma das características do valor é a bipolaridade,
pois a um valor contrapõe-se um desvalor, ao bom o mau, ao belo o feio, ao
nobre o vil, sendo certo que a vida humana é permeada de valores, exigindo do
homem uma tomada de posição sobre eles na vida em sociedade. Daí porque
aponta MIGUEL REALE que “Toda sociedade obedece a uma tábua de valores,
de maneira que a fisionomia de uma época depende da forma como seus valores
se distribuem ou se ordenam. É aqui que encontramos outra característica do
49 Filosofia dos valores, p. 33. 50 Cf. Margarida Maria Lacombe Camargo, Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito, p. 122. 51 Cf. Miguel Reale, Filosofia do direito, p. 190. 52 Cf. Miguel Reale, Filosofia do direito, p. 187/188.
valor: sua possibilidade de ordenação ou graduação preferencial ou hierárquica,
embora seja, como já foi exposto, incomensurável”.53
Por isso afirmamos que o direito regula a vida em sociedade, por
meio do regramento das condutas humanas intersubjetivas, mas não somente
pela necessidade de solução de conflitos sociais, mas direcionando os
comportamentos para certos fins, em função da realização de certos valores ou,
no dizer de PAULO DE BARROS CARVALHO, “disciplinando os comportamentos
interpessoais com seus três (e somente três – lei do quarto excluído) operadores
deônticos (obrigatório, proibido e permitido), orientando as condutas em direção
aos valores que a sociedade quer ver implantados”.54 Daí porque os valores caros
a determinada sociedade, em certo tempo e lugar, estão presentes no
ordenamento jurídico, pertencem ao mundo do dever ser. É novamente MIGUEL
REALE que salienta: “O direito tutela determinados valores, que reputa positivos,
e impede determinados atos, considerados negativos de valores: até certo ponto,
poder-se-ia dizer que o direito existe porque há possibilidade de serem violados
os valores que a sociedade reconhece como essenciais à convivência”.55
Cabe notar que a consideração dos valores como entidades vetoriais
dá-se em dois momentos e planos distintos e com relação a dois sujeitos, quais
sejam, o legislador e o intérprete-aplicador da norma jurídica.
O legislador porque, ao elaborar o texto legal, efetua cortes na
realidade social, seleciona pessoas, atos, fatos, bens que deseja regular, efetua
discriminações e traz tais elementos para o mundo jurídico, mas sempre com 53 Filosofia do direito, p. 191. 54 IPI – Comentários sobre as regras gerais de interpretação da tabela NBM/SH (TIPI/TAB), In: Revista Dialética de Direito Tributário, vol. 12, p. 45. 55 Filosofia do direito, p. 189.
base nos valores que deseja prestigiar. Aponta PAULO DE BARROS CARVALHO
que “o legislador absorve as matérias novas, fazendo-as ingressar pela porta
aberta das hipóteses normativas (Lourival Vilanova). Eis o fato meramente social
adquirindo a dimensão de fato jurídico”.56
Essa circunstância havia sido afirmada com precisão por KARL
LARENZ, para quem
“O legislador que estatui uma norma, ou, mais precisamente, que
intenta regular um determinado sector da vida por meio de normas,
deixa-se nesse plano guiar por certas intenções de regulação e por
considerações de justiça ou de oportunidade, às quais subjazem em
última instância determinadas valorações. Estas valorações
manifestam-se no facto de que a lei confere protecção absoluta a
certos bens, deixa outros sem protecção ou protege-os em menor
escala; de que quando existe conflito entre os interesses envolvidos
na relação da vida a regular faz prevalecer um em detrimento de
outro ... (...) Nestes termos, ‘compreender’ uma norma jurídica
requer o desvendar da valoração nela imposta e o seu alcance. A
sua aplicação requer o valorar do caso a julgar em conformidade a
ela, ou, dito de outro modo, acolher de modo adequado a valoração
contida na norma ao julgar o ‘caso’”.57
Com relação ao outro sujeito, o intérprete-aplicador da norma,
porque, ao debruçar-se sobre o texto legal em atividade interpretativa, há de
construir a norma jurídica, atribuindo-lhe sentido e alcance, com o devido prestígio
aos valores por ela hospedados e mesmo com a ponderação dos diversos valores
56 IPI – Comentários sobre as regras gerais de interpretação da tabela NBM/SH (TIPI/TAB), In: Revista Dialética de Direito Tributário, vol. 12, p. 45. 57 Metodologia da ciência do direito, p. 297/298.
envolvidos – todos presentes no ordenamento jurídico – diante de cada caso
concreto. Consoante acentua RICARDO LOBO TORRES, “A interpretação
jurídica está inteiramente vinculada aos valores e aos princípios gerais do Direito
e, ao mesmo tempo, é um dos caminhos para a concretização desses valores”.58
Desse modo, a decisão que venha a legitimar um determinado
interesse, individual ou de grupo, em detrimento de outro ou de outros, passa
necessariamente pela consideração dos valores envolvidos; por um processo de
valoração ou de ponderação, o que nos remete à questão de se saber se o
prestígio a um determinado valor – em ato de opção, em ato de vontade do
intérprete-aplicador – pode ou não ser objeto de uma fundamentação racional,
pergunta que se nos apresenta como inafastável, uma vez que envolve o
relevante problema dos mecanismos de controle das decisões, tema ao qual
retornaremos no decorrer do presente estudo.
Para o tema que nos interessa mais de perto, ou seja, o exercício da
competência tributária e os conceitos constitucionais como limites postos a essa
atividade estatal, a importância da jurisprudência dos valores é evidente, dado
que a Constituição Federal está permeada de valores, ora atrelados à justiça
(também ela um valor) como capacidade contributiva, solidariedade social e
igualdade, ora ligados à segurança jurídica (novamente um valor) como
legalidade e tipicidade.
No dizer de MIGUEL REALE, se “Explicar é descobrir na realidade
aquilo que na realidade mesma se contém” e se “Compreender não é ver as
coisas segundo nexos causais, mas é ver as coisas na integridade de seus
58 Normas de interpretação e integração do direito tributário, p. 341.
sentidos ou de seus fins, segundo conexões vivenciadas valorativamente”, 59
parece-nos correto considerar que a compreensão do Direito e sua interpretação
passam necessariamente pela consideração dos valores que lhe informam, daí a
relevância da denominada jurisprudência dos valores.
59 Apud Margarida Maria Lacombe Camargo, Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito, p. 121.
CAPÍTULO 2
SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL E CONCEITOS CONSTITUCIONAIS
1. Constituição rígida e Constituição Federal brasileira
As denominadas constituições rígidas parecem encontrar sua idéia
inicial nas constituições escritas em corpo textual único, criadoras da estrutura de
Estado e limitativas de poderes e competências. Relacionam-se com o chamado
Estado de Direito, a partir do qual passa-se a conceber que não somente o povo
mas também o Estado deve submissão à Lei Máxima.
Essa concepção, “da qual resulta a diferenciação entre lei ordinária e
constitucional, implica na consideração da superioridade desta sobre aquela.
Nascem, assim, as constituições rígidas, isto é, constituições escritas em um
corpo único, determinando a competência dos vários ramos do governo e,
portanto, limitando os poderes de cada um”, consoante a lição de OSWALDO
ARANHA BANDEIRA DE MELLO.60
Embora não se possa desejar que a Constituição seja imutável, uma
vez que, na qualidade de documento normativo máximo de um Estado, deve
necessariamente acompanhar as mudanças sociais e políticas da comunidade
que regula, reconhece-se a propriedade da distinção entre a lei constitucional e os
demais diplomas legislativos. Essa distinção acarreta a concepção de que as
alterações do Texto Constitucional somente devam ser implementadas por um
processo legislativo mais solene e mais complexo, com a exigência de
atendimento a certos requisitos especiais, previstos pela própria Constituição.
Como já apontava o administrativista pátrio, “no sistema das
Constituições rígidas, a Constituição é a autoridade mais alta, e derivante de um
poder superior à legislatura, o qual é o único poder competente para alterá-Ia. O
poder legislativo, como os outros poderes, lhe são subalternos, tendo as suas
fronteiras demarcadas por ele, e, por isso, não podem agir senão dentro destas
normas”.61
A Constituição rígida, sobre restringir a ação do povo e do governo,
restringe a si própria e limita também a ação dos representantes do povo, que não
podem alterar suas disposições sem atender a pressupostos especiais, inclusive
os que tocam à exigência de maioria de representantes no Parlamento. É bem
verdade que o povo, que legitima seus representantes, pode estabelecer a estes
as regras que bem entender, inclusive aquelas relativas ao respeito que devem
60 A teoria das constituições rígidas, p. 39. 61 A teoria das constituições rígidas, p. 48.
ter, no exercício do poder que Ihes foi concedido, pelas normas superiores
constante da Constituição. Neste sentido, a rigidez da Lei Maior revela-se de
elevada importância para a manutenção de instituições fundamentais, de modo
que o poder legislativo recebe competência nos estreitos limites das regras
constitucionais e não pode alterá-Ias a seu bel prazer. Este é o ensinamento de
PONTES DE MIRANDA, ao afirmar que “O povo procede à repartição das
competências; os princípios que o inspiram não o obrigam a conceber o poder
legislativo ordinário como poder constituinte. Pelo contrário: se o poder legislativo
é um dos poderes, se da Constituição provém a competência de cada um deles,
óbvio é que se superponha aos poderes constituídos o poder que os constituiu”.62
JOSÉ AFONSO DA SILVA acentua que “A rigidez constitucional
decorre da maior dificuldade para sua modificação do que para a alteração das
demais normas jurídicas da ordenação estatal. Da rigidez emana, como primordial
conseqüência, o princípio da supremacia da constituição que, no dizer de Pinto
Ferreira, ‘é reputado como uma pedra angular, em que assenta o edifício do
moderno direito político'. Significa que a constituição se coloca no vértice do
sistema jurídico do país, a que confere validade, e que todos os poderes estatais
são legítimos na medida em que ela os reconheça e na proporção por ela
distribuídos”.63
No que concerne à Constituição Federal brasileira, não há dúvida de
que se reveste de natureza rígida, a ela aplicando-se o que afirmamos até aqui,
como bem o demonstra seu artigo 60, incisos I, II e III, quanto aos requisitos de
proposta de emenda constitucional e, em especial, o parágrafo 2°, ao determinar 62 Apud Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, A teoria das constituições rígidas, p. 68. 63 Curso de direito constitucional positivo, p. 47.
que a proposta de emenda será discutida e votada em cada Casa do Congresso
Nacional, em dois turnos. Considerar-se-á aprovada se obtiver, em ambos, três
quintos dos votos dos respetivos membros, podendo-se notar, portanto, pela só
análise do dispositivo, a exigência de processo legislativo e quorum especiais
para promover alteração na Constituição.
Sem prejuízo disso, cabe notar que nem seria necessário alcançar o
texto do referido artigo 60 para se constatar a rigidez constitucional, pois o próprio
artigo 1° da Constituição já fornece sinais desta sua característica, ao estabelecer
que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos
Estados e Municípios e do Distrito Federal, constituindo-se em Estado
Democrático de Direito.
Com efeito, o sistema constitucional brasileiro é erigido sobre dois
princípios fundamentais que, pela sua relevância, irradiam-se por todas as
normas do ordenamento e informam seus comandos, quais sejam, o republicano
e o federativo, de modo que todo o quadro de regras e princípios consagrados
pelo sistema constitucional, quer quanto aos preceitos gerais, quer quanto aos de
caráter mais específico, tem nos princípios republicano e federativo o fundamento
maior de suas manifestações.
Nesse sentido, o mestre GERALDO ATALIBA, em suas lições
sempre presentes, ensina que
“No que respeita porém, a esses dois princípios, pode-se dizer que
nossa Constituição é 'rigidíssima'. Não há possibilidade de ser ela
alterada quanto a essas matérias, nem mesmo por meio de
emendas. Nesse ponto ela é inalterável. Não pode o órgão de
reforma, o Congresso Nacional, sequer discutir qualquer projeto
tendente (que abrigue tendências; que leve; que conduza; que
encaminhe; que facilite; que possibilite, mesmo indiretamente) à
abolição dos dois princípios, reputados tão importantes, tão
fundamentais, tão decisivos, que tiveram um tratamento sacro,
proteção absoluta, erigidos que foram em tabus jurídicos”.64
Aponta ainda o mestre que a Constituição Federal brasileira
encontra seu lugar classificatório dentre as rígidas porque qualquer pretensão de
alteração em seu texto somente pode ser aprovada mediante um processo
especial e qualificado, previsto pela própria Constituição. Salienta, também,
fazendo menção aos princípios republicano e federativo, que, relativamente a
eles, tudo o mais é secundário; revelam-se eternos juridicamente e somente
podem ser alterados ou reduzidos por meio revolucionário, com quebra da ordem
jurídica, portanto; cabe apenas ao poder constituinte originário sua minimização
ou mesmo abolição.65
2. Discriminação constitucional da competência tributária
O sistema federativo contemplado pela Constituição Federal é
formado por três pessoas políticas: União, Estados e Municípios, dotados de
independência política e financeira. Implica tal característica a imediata e
conseqüente atribuição de direitos e deveres a essas três esferas de poder, ou
seja, a atribuição de competências próprias.66
64 República e constituição, p. 38. 65 República e constituição, p. 38. 66 Apenas para dar maior fluidez na redação e leitura, deixaremos de fazer menção, quando nos referirmos às pessoas jurídicas de direito público interno, ao ente Distrito Federal.
Eentre esses direitos e deveres, um dos aspectos de maior
relevância é a atribuição de renda própria, de recursos monetários específicos à
União Federal, aos Estados e aos Municípios pois, diante da atribuição de
competências e encargos, revela-se absolutamente necessária a garantia às três
pessoas políticas de uma fonte de renda suficiente para a assunção dos encargos
respectivamente conferidos. Como mencionamos em outra oportunidade, isso
decorre da mais singela lógica, pois de nada adiantaria transferir às entidades
políticas constituintes da Federação uma gama de obrigações, sem a
transferência da correspondente receita imprescindível para fazer frente a elas e,
ademais, os entes federativos possuem autonomia política e parece-nos difícil
conceber autonomia política que não se faça acompanhar da correspondente
autonomia financeira.67
Como é cediço, a principal fonte de renda dos entes federativos,
aquela que Ihes permite assumir os encargos que Ihes são próprios, não é outra
senão a arrecadação tributária, a percepção de recursos financeiros provenientes
da instituição e da cobrança de tributos.
Nesse sentido, a lição de GERALDO ATALIBA é a seguinte:
“Coerente, portanto, em matéria tributária, que também não crie a Constituição
qualquer tributo; efetivamente, ‘... da norma constitucional que regula a
competência decorre uma potencialidade, uma virtualidade – a possibilidade
mesma de criação do tributo, por lei, de determinada unidade federada’. O nosso
diploma constitucional, embora minucioso, extenso, abrangedor e quase
exaustivo, simplesmente limitou-se a conferir competências legislativas, para que 67 Cf. Reinaldo Pizolio, Considerações acerca da lei complementar em matéria tributária, In: Cadernos de direito tributário e finanças públicas, vol. 14, p. 176.
o Congresso Nacional, ou as Assembléias Legislativas dos Estados ou Câmaras
Municipais criem os diversos tributos”.68
Por força de tais características, tem-se atualmente, em matéria
tributária, um sistema constitucional rigidamente assentado, caracterizado pela
existência de fatias de competências impositivas, de tal sorte que a União, os
Estados e os Municípios têm, cada um, uma parcela do poder de tributar, que
confere parâmetros ao exercício desta competência tributária, para se evitarem
conflitos na atuação de cada ente federativo.69
Essa partilha da competência impositiva entre os entes tributantes
significa ela mesma – por si só – uma evidente limitação constitucional ao poder
de tributar pois, ao estabelecer o Texto Constitucional que determinada pessoa
política tem competência para tributar tal ou qual fato econômico, esta disposição
normativa tem evidentemente duplo sentido. Por um lado, um sentido positivo,
porque dispõe categoricamente que aquele determinado ente tributante tem
competência para instituir certo tributo e, por outro lado, um sentido negativo, já
que tal disposição implica a impossibilidade de outro ente vir a alcançar aquele
mesmo fato econômico por meio da criação de outro tributo.
A questão do sistema federativo e da repartição da competência
tributária apresenta relação com o assunto que tratamos no item anterior, relativo
à rigidez do sistema constitucional brasileiro, pois esta rigidez, como não poderia
68 Sistema constitucional tributário, p. 120. 69 Este é o ensinamento de José Artur Lima Gonçalves, ao acentuar “que a Constituição toma o espectro total das possibilidades de criação de tributos e o reparte em três compartimentos estanques e inconfundíveis, segundo critérios material e territorial, outorgando-os à União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Assim, cada uma das pessoas políticas recebe competência impositiva, podendo dela utilizar-se ou não, sem interferência das demais pessoas políticas” (Imposto sobre a renda: pressupostos constitucionais, p. 89).
deixar de ser, deixa marcas no subsistema constitucional tributário; vale dizer, a
noticiada rigidez da Constituição Federal irradia-se sobre o Capítulo do Sistema
Tributário Nacional, moldando-lhe a feição normativa e servindo de valioso
elemento de auxílio em sua intelecção.
JOSÉ ARTUR LIMA GONÇALVES ensina que “Essa repartição
constitucional de competências impositivas é rígida e exaustiva, outorgando a
cada pessoa política amplos poderes legislativos nos seus respectivos
compartimentos. Não pode haver distorção, alteração ou diminuição desses
compartimentos por meio de norma infraconstitucional, pois afetados estariam os
princípios da Federação e da autonomia municipal, estabelecidos na própria
Constituição”.70
O principal critério utilizado na discriminação da competência
tributária é o material, aquele relativo à materialidade constante da hipótese de
incidência dos tributos previstos constitucionalmente, cuja instituição efetiva cabe
a cada pessoa política tributante, ou, nas palavras de MARCO AURELIO GRECO,
a Constituição “Especifica as materialidades a partir das quais poderão ser
instituídas exações compulsórias, tendo por objeto o pagamento de valores
pecuniários. Ou seja, define o universo de hipóteses que poderão ser
contempladas, o que implica circunscrever a aptidão de o Poder Público instituir
tais exigências” e “Exerce a relevante função de atribuir, a cada pessoa política,
uma fração deste universo possível de incidências”.71
70 Imposto sobre a renda: pressupostos constitucionais, p. 90/91. 71 Contribuições: uma figura “sui generis”, p. 228.
JOSÉ ARTUR LIMA GONÇALVES também fornece um panorama
amplo do quadro da discriminação de competência tributária e ensina que
“Em matéria de impostos, todas as competências tributárias
impositivas estão expressamente previstas no texto constitucional.
Algumas delas perfeitamente identificadas por meio da menção das
materialidades das respectivas hipóteses de incidência, como, por
exemplo, nos arts. 153, 155 e 156 da Constituição. As demais
encontram-se albergadas pela chamada competência residual, a que
faz menção o art. 154, I, da Constituição, e que foi outorgada à
União. (...) No que se refere aos tributos vinculados, e por eles terem
sempre a materialidade da hipótese de incidência relacionada a uma
atuação pública, o critério material atua da seguinte maneira: é
competente para adotar como materialidade da hipótese de
incidência de tributos vinculados a pessoa política competente para
o exercício da atuação estatal a que se refere tal materialidade.
Assim, quem é titular da competência para prestação de
determinado serviço público, para exercício de certa parcela de
atividade de polícia, ou quem realiza determinada obra pública, é
competente para descrever legislativamente a hipótese de incidência
do tributo vinculado respectivo”.72
A forma minuciosa – tendente à exaustividade – com que a Carta
Magna de 1988 disciplina o Sistema Tributário Nacional, com inúmeros princípios
e regras e tratamento normativo detalhado, oferece rigidez à matéria tributária
constitucional, de sorte que resta pouca – mas ainda assim existente, como
veremos em seguida – margem de liberdade ao legislador ordinário na tarefa de
criar tributos. Com efeito, a rigidez constitucional, o princípio da separação dos
poderes, a repartição da competência tributária, o critério da materialidade e o
72 Imposto sobre a renda: pressupostos constitucionais, p. 90.
princípio da legalidade revelam-se inflexíveis vetores que orientam o
comportamento do legislador ordinário de cada ente tributante no desenvolver de
sua atividade legiferante de instituir exações compulsórias.73
Deste modo, no momento em que o legislador ordinário da União,
dos Estados e dos Municípios pretende criar a lei, cujo objeto seja a instituição de
tributo, deve obrigatoriamente voltar os olhos para a Constituição Federal,
interpretando-a sistematicamente e conjugando seus diversos princípios e regras,
em especial aqueles atinentes à matéria tributária, para ali verificar qual a
margem de liberdade que possui no desenvolvimento de tal tarefa, sob pena de
constatar, em momento seguinte, o produto de seu trabalho irremediavelmente
eivado do vício de inconstitucionalidade.
Neste ponto devemos voltar-nos para um aspecto de nosso
raciocínio que consideramos relevante. Embora reconheçamos, por um lado, e
não poderíamos mesmo deixar de reconhecer diante do tratamento normativo
dado pela Constituição Federal ao Sistema Tributário Nacional, que a
possibilidade de inovação em matéria tributária do legislador ordinário é muito
pequena, parece-nos, por outro, que nem por isso tal possibilidade deixe de
existir, uma vez que encontra fundamento de validade no ordenamento jurídico.
Com a devida vênia da parcela da doutrina pátria que hospeda entendimento
oposto, encontramos alguma dificuldade em acompanhar a tese segundo a qual,
diante das disposições constitucionais, todo o sistema tributário pátrio, em sua
73 Com relação a este aspecto, afirma Humberto Bergmann Ávila “A rigidez específica das normas tributárias é também direta e indiretamente instituída: algumas são denominadas ‘garantias’ (art. 150: legalidade, igualdade, irretroatividade, anterioridade, proibição de tributo com efeito de confisco, imunidade); outras normas mantêm relação com os princípios fundamentais (princípio federativo, democrático e da separação dos Poderes) ou com os direitos e garantias individuais cuja modificação é vedada” (Sistema constitucional tributário, p. 110).
integralidade, possa dali ser extraído, nada restando aos diplomas legais
infraconstitucionais. Pelo próprio fato de a Constituição Federal não criar tributos,
pois tal tarefa pertence ao legislador ordinário, não nos parece razoável supor que
o sistema tributário pudesse ser eficazmente implementado e desenvolvido sem
que se atribuísse ao referido legislador alguma dose de liberdade em seu agir
legiferante.
Dir-se-á – e isto é bem verdade – que as normas jurídicas fundantes
e fundamentais do processo de criação de tributos encontram-se insculpidas na
Carta da República e que, por estarem neste plano normativo superior,
constituem limites, formais e materiais, intransponíveis ao exercício da
competência tributária cabente a cada pessoa política. Se a rigidez do sistema
constitucional tributário fosse levado às últimas conseqüências, ele se revelaria a
tal ponto cristalizado, que viria a impedir o próprio exercício daquela competência
e a inviabilizar, no plano concreto, a materialização efetiva dos desígnios
constitucionais.
Isso porque, como salienta GERALDO ATALIBA ao referir-se aos
entes tributantes, “Não recebem – nem Ihes foram outorgados – impostos ou
entidades tributárias prontas e acabadas. Ao contrário, por ser a Constituição
mera carta repartidora de competências e definidora de princípios de atuação,
receberam as pessoas políticas competência para a instituição de impostos,
dentro de determinados limites, expressa ou implicitamente fixados no próprio
texto constitucional”.74
74 Sistema constitucional tributário, p. 110.
Dentro dos limites fixados expressa ou implicitamente pela Carta da
República, no intervalo compreendido entre o limite mínimo (outorga de
competência) e o limite máximo (violação da Constituição), é que se pode
encontrar o campo válido de atuação do legislador das pessoas políticas
detentoras da competência tributária. Isso significa reconhecer que há uma certa
margem de liberdade para o legislador na instituição das espécies tributárias,
cabendo-lhe dispor, com algum grau de detalhamento, sobre as características
específicas da figura exacional que pretende criar juridicamente pelo veículo
próprio para tanto – que é a lei e somente ela. Assim, como veremos em seguida
com maior vagar, no preenchimento do conteúdo significativo dos conceitos
constitucionais relativos às materialidades das hipóteses de incidência previstas
constitucionalmente, pensamos que o legislador pode atuar com alguma licença,
sem a qual o exercício da competência tributária seria frustrado.
Como afirmamos reiteradas vezes, a Constituição Federal é rígida e
ninguém em sã consciência pode duvidar (em virtude dessa supremacia
normativa) que, por evidente, o legislador ordinário não pode sequer pretender
desobedecer a ela ou desprezá-Ia, interpretando-a ao sabor de seus interesses
imediatos e meramente arrecadatórios. Entretanto, segundo pensamos, isso não
pode significar que o legislador não tenha certa margem de liberdade na efetiva
regulamentação dos dispositivos constitucionais, sob pena de engessamento
excessivo do sistema e de transformação da Constituição Federal, a despeito de
ser o documento normativo mais relevante da República, em algo que não
acompanha a realidade de seu tempo, no tempo em que a realidade reclama.
Significa, por outro lado, que a aludida margem de liberdade do legislador vai até
certo ponto e tal ponto é facilmente identificável: é aquele em que a rigidez e a
integridade da Constituição é ofendida, com o perdão da obviedade.
Falar em algum grau de liberdade do legislador ordinário, na
elaboração da lei tributária, não nos parece afrontar a supremacia normativa da
Constituição; antes enaltece-a, desde que tal afirmação seja tomada nos limites
em que a expusemos. Não se pretende assim, em nenhum momento,
desconsiderar a rigidez da Constituição Federal e a exaustividade do Sistema
Tributário Nacional; exatamente ao invés, o desafio consiste em identificar qual a
amplitude da licença que possui o legislador ordinário na criação do tributo ou, em
outros termos, o quê e como pode fazer para exercer a competência tributária,
atendendo aos interesses das pessoas políticas, com o inafastável e incondicional
respeito ao Texto Constitucional.
3. Sistema Tributário Nacional e dupla função
Apontando para a análise do sistema jurídico, JOSÉ ARTUR LIMA
GONÇALVES ensina que “Sistema é um conjunto harmônico, ordenado e unitário
de elementos reunidos em torno de um conceito fundamental ou aglutinante. Esse
conceito aglutinante serve de critério unificador, na linguagem de Geraldo Ataliba,
atraindo e harmonizando, em um só sistema, os vários elementos de que se
compõe”.75
Em trabalho mais recente, e já agora tratando diretamente da idéia
de sistema jurídico, o professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
75 Isonomia na norma tributária, p. 14.
salienta que “Não é possível proceder à análise de questão jurídica sem
considerar a circunstância de que o ordenamento jurídico é composto por normas
jurídicas, cuja organização em sistema é efetuada pelo jurista, visando a sua
compreensão global, a partir de sua coerência interna de sentido. A noção de
sistema admite várias acepções, adotando-se aqui a de que ele é conjunto
harmônico de elementos organizados a partir de um critério unificador. Os
sistemas possuem um repertório, composto pelos elementos que o integram, e
uma estrutura, representada pela peculiar forma de organização e relacionamento
de seus elementos. No sistema jurídico, o repertório é composto pelas normas
jurídicas válidas. As normas jurídicas são, por força da estrutura do sistema
jurídico, organizadas a partir de um critério de escalonamento hierárquico, donde
ser possível afirmar que as normas, consideradas em sistema, variam de
importância”.76
No sistema tributário constitucional ou, para utilizar o mesmo título
constante da Constituição Federal, no Sistema Tributário Nacional, pode-se
encontrar o conjunto de normas jurídicas – princípios e regras – cujo objeto é a
disciplina da atividade estatal de arrecadar recursos financeiros no seio da
sociedade, a título de tributo, para a consecução dos fins do Estado, fins estes,
aliás, também previstos na própria Constituição. Em última análise, trata o
Sistema Tributário Nacional do regime jurídico do exercício da competência
tributária.
Assim, no Sistema Tributário Nacional plasmado pela Constituição
Federal de 1988, podemos encontrar os mais relevantes parâmetros informadores
76 A imunidade tributária do livro, In: Imunidade tributária do livro eletrônico, p. 139.
do fenômeno da tributação como os dispositivos gerais (capacidade contributiva e
função da lei complementar) por exemplo; as chamadas limitações ao poder de
tributar (legalidade, igualdade, anterioridade); a discriminação da competência
tributária de cada pessoa política e assim por diante. Como duas das principais
características do referido Sistema, JOSÉ ARTUR LIMA GONÇALVES aponta: a
rigidez, que serve de premissa interpretativa para a sua compreensão, e a
exaustividade, que consiste no fato de o Sistema conter todos os princípios e
regras que lhe dão feição, não havendo espaço para que a legislação
infraconstitucional venha a contribuir para a sua configuração.77
Essa conceituação inicial e colação de ensinamentos doutrinários
justificam-se para que possamos introduzir a idéia daquilo que ora denominamos
dupla função do Sistema Tributário Nacional. Ela somente pode ser concebida se
tivermos em mente o fato óbvio de que o aludido Sistema encontra-se encartado
na Constituição Federal, e isto obriga-nos, a fim de que possamos compreendê-
Io, a efetuar sua interpretação em estrita relação com os demais dispositivos da
Carta da República. Tal questão é apontada com propriedade por TERCIO
SAMPAIO FERRAZ JUNIOR nos seguintes moldes:
“Partimos do princípio hermenêutico da unidade da Constituição.
Este princípio nos obriga a vê-Ia como um articulado de sentido. Tal
articulado, na sua dimensão analítica, é dominado por uma lógica
interna que se projeta na forma de uma organização hierárquica. Ou
seja, uma Constituição, da mesma forma que o ordenamento jurídico
de modo geral, também conhece a estrutura da ordem escalonada,
não estando todas as suas normas postas horizontalmente uma ao
lado da outra mas, verticalmente, uma sobre outra. Concebê-Ia sem
77 Cf. Isonomia na norma tributária, p. 16.
escalonamento é implodir aquele articulado, tornando-a destituída de
unidade. Perdendo-se a unidade, perde-se a dimensão da
segurança e da certeza, o que faria da Constituição um instrumento
de arbítrio”.78
Por isso, é fundamental compreender o Sistema Tributário Nacional
como um subsistema encartado na Constituição Federal, com as várias
exigências interpretativas daí advindas,79 e em sua dupla face: ostenta, de um
lado, os poderes do Estado, os instrumentos e as prerrogativas de que este se
pode valer na atividade de criação e arrecadação de tributos e, de outro, as
garantias e os dispositivos de proteção ao contribuinte contra tal poder estatal, daí
falarmos em dupla função.
3.1 Tributo como instrumento de transformação social
Afirmamos no item anterior que a Constituição atribui às pessoas
políticas componentes da Federação determinadas competências e certos
encargos (prerrogativas e obrigações). Encontram-se, entre eles, os objetivos
fundamentais que o Estado brasileiro busca atingir, daí decorrendo a necessidade
de dotá-Ias de recursos financeiros para tanto. Levando-se em conta que a
tributação é, por excelência, o instrumento utilizado pela economia capitalista para
sobreviver e, sem ela, o Estado não poderia realizar os seus fins sociais, HUGO
78 Interpretação e estudos da Constituição de 1988, p. 59/60. 79 Humberto Bergmann Ávila acentua que “Apesar de esse ordenamento constitucional formulado especificamente para um âmbito material (VOGEL: ‘sachbereichsspezifisch formulierte Steuerrechtsordnung’) ser qualificado pela extensão e intensidade com que trata a relação tributária, ele é caracterizado pela sua abertura. Aberto não apenas no sentido de um sistema capaz de desenvolvimento, como o são os sistemas vertidos em linguagem, mas no sentido de um sistema que expressamente reenvia a outras normas não expressamente previstas no Sistema Tributário Nacional, mas em outras partes da Constituição” (Sistema constitucional tributário, p. 107/108).
DE BRITO MACHADO afirma que “Qualquer que seja a concepção de Estado que
se venha a adotar, é inegável que ele desenvolve atividade financeira. Para
alcançar seus objetivos, precisa de recursos financeiros e desenvolve atividade
para obter, gerir e aplicar tais recursos”.80 Este também é o ensinamento de
KLAUS TIPKE, para quem “EI Estado, fundado en Ia propriedad privada de los
medios de producción, está obligado a sostener principalmente mediante
impuestos Ias cargas financieras exigidas para el cumplimiento de sus funciones.
Sin impuestos y contribuyentes ‘no puede construirse ningún Estado’, ni el Estado
de Derecho ni, desde luego, el Estado Social”.81
Os objetivos do Estado brasileiro decorrem da concepção adotada
pela Constituição Federal, logo em seu artigo 1º, isto é, Estado Democrático de
Direito, o que implica passar da idéia de Estado de Direito ou Estado Liberal, em
que se postula uma intervenção estatal mínima e a liberdade como valor supremo
dos cidadãos, para a idéia de Estado Democrático ou Estado Social, em que o
interesse da coletividade e a solidariedade passam a ser os valores fundamentais.
Fazendo referência ao fato de que a Espanha é um Estado Social e Democrático
de Direito, condição prevista no artigo primeiro da Constituição Espanhola, JUAN
MANUEL BARQUERO ESTEVAN aponta que “Esa fórmula de Estado social y
democrático de Derecho, en fin, pese a su carácter controvertido, tiene un
indudable carácter de compromiso constitucional sobre Ia base de unos valores
básicos, siendo justamente esos valores (libertad, igualdad, justicia y participación
democrática en Ia formación del orden social y económico), entendidos en sentido
80 Curso de direito tributário, p. 21/22. 81 Moral tributaria del estado y de los contribuyentes, p. 27.
material y no solamente formal, los que constituyen el contenido mínimo de esa
fórmula”82
O denominado Estado Democrático de Direito acolhe as duas
concepções, que não são contrapostas, por meio do prestígio a direitos e
garantias individuais e também pela proteção de direitos coletivos da sociedade,
de modo que atua não só limitando as investidas estatais contra a liberdade e o
patrimônio dos indivíduos, mas também efetivando medidas que busquem a
construção de uma sociedade pluralista, justa e solidária. Assim, a Constituição
que protege a propriedade (artigos 5º, inciso XXII, e 170, inciso II) é a mesma que
subordina a propriedade à sua função social (artigos 5º, inciso XXIII, e 170, inciso
III). Nesse sentido, MARCO AURELIO GRECO, apontando a diferença entre a
dita sociedade moderna e a anterior, afirma que temos hoje um Estado pluriclasse
e que tal circunstância “vai gerar a primeira diferença prática, qual seja, a de que
não temos mais interesses segregados. A realidade com a qual temos de
trabalhar é a realidade de intersecção de interesses”.83
Com efeito, a sociedade brasileira plasmada pelo Texto
Constitucional por óbvio não é a sociedade que temos, mas a sociedade que
desejamos ter, fruto da escolha e da decisão do povo, por meio de seus
representantes no Parlamento. Cabe ao Direito positivo buscar transformar a
realidade social atual, levando a modificar-se, com base nos valores
superiormente hospedados pela Carta Política, que fornece o sentido a ser
seguido pelos legisladores e nos remete à questão da função da norma jurídica,
entendendo MARCO AURELIO GRECO que ela passa a ser “um meio para o 82 La función del tributo en el estado social y democrático de derecho, p. 52. 83 Planejamento fiscal e interpretação da lei tributária, p. 17.
atingimento de determinado fim de caráter social. Ou seja, com a norma se quer
alguma coisa por algum motivo, e para atingir algum resultado”.84
A Constituição Federal, entre outros objetivos, determina
expressamente que cabe ao Estado promover a seguridade social (artigos 194 e
195); a saúde (artigo 196); a assistência social, com proteção à família e à
infância (artigo 203, inciso I); a educação (artigo 205) e a cultura (artigo 215).
Revela-se por demais evidente que a própria Constituição deva garantir os meios
e os recursos financeiros imprescindíveis para a consecução de tais fins, o que
nos leva de volta à questão da concepção que se deve ter do tributo. Neste
sentido, altera-se tal concepção, por força da compreensão dos mandamentos
constitucionais, que deixa então de ser considerado mera manifestação de poder
estatal e agressão ao patrimônio dos particulares. Em primeiro lugar, porque a
atividade exacional é autorizada pela Constituição e, em segundo, porque o
tributo revela-se a fonte de recursos financeiros que pode possibilitar ao Estado a
consecução de seus fins, considerado que é, neste quadro normativo, como a
participação dos indivíduos no rateio dos encargos públicos.
Essa é a razão pela qual pensamos que podemos compreender o
Sistema Tributário Nacional, numa de suas funções, como agente de
transformação da realidade social, pois, para tal alteração da sociedade atual
84 Planejamento fiscal e interpretação da lei tributária, p. 21. No mesmo sentido, Juan Manuel
Barquero Estevan aponta que “El Estado y los poderes públicos en general aparecen en nuestra Constitución comprometidos en la consecución de un orden social más igualitario y más justo, y esto afecta de manera muy especial a su actividad financiera, a la Hacienda pública, que se convierte, en su doble dimensión – ingressos y gastos públicos –, en un instrumento fundamental para la consecución de esos objetivos, a través de la función redistributiva que en ese contexto le asigna indudablemente la Constitución” (La función del tributo en el estado social y democrático de derecho, p. 53/54).
para aquela desejada pela Constituição, não há como desprezar a relevância da
arrecadação tributária.85
De certo modo, portanto, com toda a cautela que se deve ter em tal
afirmação, a dimensão da carga tributária corresponde ao perfil do Estado
brasileiro, tal como plasmado pela Constituição Federal de 1988. Isso
corresponde ao quanto afirma KLAUS TIPKE: “Afirmar que ‘Ios impuestos son el
precio de Ia libertad’ no constituye mera palabrería. Sigue siendo cierto el que
afirmara Robert Wagner, antiguo alcalde de Nueva York: ‘Ios impuestos son el
precio de Ia civilización. No existen en Ia selva’. Naturalmente con ello no se está
prejuzgando en qué medida puede limitarse Ia libertad mediante los impuestos”.86
Tal afirmação, entretanto, que pode dar margem a interpretações desavisadas,
obriga-nos, em homenagem à clareza, a efetuar uma ligeira digressão.
É certo que se pode pensar até que ponto tal entendimento merece
ser amparado – e o tributo considerado em tal acepção – porque pode ceder
espaço a arbitrariedades do poder público, com base em difundido argumento,
segundo o qual se o Poder Executivo não aplica os recursos provenientes da
arrecadação tributária da forma como é seu dever, pelas mais variadas razões, o
contribuinte estaria, de certo modo, autorizado a fugir da tributação, isto é, a
buscar a economia tributária por qualquer meio que estivesse a seu alcance. Tal
argumento é explicado por KLAUS TIPKE, ao tratar das denominadas “actitudes
85 Como acentua Juan Manuel Barquero Estevan, “EI Estado social y democrático de Derecho de nuestra Constitución supone, pues, una ampliación del ámbito funcional de ese Estado, en tres aspectos o direcciones fundamentales: en el de Ia asistencia social, en el de Ia intervención y tutela de Ia economía, y en el de Ia remodelación social. Y, como ha destacado Rodriguez Bereijo, Ia Hacienda pública está lIamada a ocupar un lugar crucial al servicio de esa función transformadora o de remodelación social” (La función del tributo en el estado social y democrático de derecho, p. 53). 86 Moral tributaria del estado y de los contribuyentes, p. 57.
frente al deber de contribuir”, referindo-se a vários tipos de contribuintes, dentre
eles este: “EI chalanero o partidario de compensar también sabe que depende de
Ias prestaciones del Estado y de los municipios y que no puede construir por si
mismo carreteras, escuelas, hospitales, etc. Pero está convencido de que el
sector público es um grande derrochador y que ofrece unas prestaciones
mínimas, Io que autoriza al contribuyente a hacer Io mismo. Muchos
contribuyentes consideran que el impuesto só es justo si existe uma
contraprestación equivalente, y esto apenas sucederá, em especial si se trata de
grandes contribuyentes”.87
Este aspecto também é salientado por IVES GANDRA DA SILVA
MARTINS, que afirma: “O fato de que a imposição tributária representa
apropriação de bens dos cidadãos para duplo atendimento das necessidades
legítimas do Estado, enquanto representante do povo de uma nação, e aquelas
menos legítimas – ou sem nenhuma legitimidade – dos detentores do poder, traz
elemento de relevo indiscutível para a concepção de uma adequada teoria
tributária”. 88
Embora possamos concordar parcialmente com tais argumentos,
queremos acreditar que não podem ser levados às últimas conseqüências, dando
amparo à conduta daquele contribuinte apontado por KLAUS TIPKE, porque nos
parece que tal entendimento não pode ser aceito, sob pena de aceitarmos
também, singelamente, que um erro justifique o outro, como se diz comumente.
Assim como pensamos que a conduta do mau contribuinte não pode servir de
pretexto para medidas arbitrárias tomadas pelo Fisco, que acabam repercutindo 87 Moral tributaria del estado y de los contribuyentes, p. 113. 88 Comentários à Constituição do Brasil, vol. 6, tomo I, p. 6.
também sobre o bom contribuinte, também entendemos que os desvios
praticados pelo Estado – que, sem dúvida, são muitos – não devem constituir
razão suficiente para que esqueça do papel desempenhado pelo tributo no Estado
Democrático de Direito.
Em outras palavras, as distorções ocorridas na sociedade,
provenientes de ambos os lados, não podem servir de parâmetro de interpretação
da Constituição Federal e do Sistema Tributário Nacional.
3.2 Princípios de proteção ao contribuinte
Aquilo que chamamos de segunda função do Sistema Tributário
Nacional consiste na proteção ao contribuinte. Se o tributo consiste na
participação dos cidadãos no rateio da despesa pública, nem por isso os fins
almejados pelo Estado podem justificar todos os meios. Prova disso é o fato de a
Constituição Federal ser rica em limitações ao poder de tributar e algumas delas
aparecerem sob a forma de princípios. No dizer de ROQUE ANTONIO
CARRAZZA, “princípio jurídico é um enunciado lógico, implícito ou explícito, que,
por sua grande generalidade, ocupa posição de preeminência nos vastos
quadrantes do Direito e, por isso mesmo, vincula, de modo inexorável, o
entendimento e a aplicação das normas jurídicas que com ele se conectam”.89
Com relação aos princípios constitucionais tributários e sua relação
com as denominadas limitações constitucionais ao poder de tributar, cabe notar o
entendimento de MARCO AURELIO GRECO, no seguinte sentido:
89 Curso de direito constitucional tributário, p. 33.
“Mais do que uma simples distinção de taxionomia, existe uma
diferença substancial entre princípios e limitações. Ambos têm por
objeto o poder de tributar e ambos dispõem sobre o seu exercício.
Embora o objeto de ambos seja o mesmo (= poder de tributar)
dispõem sobre ele de modo diametralmente oposto. Os princípios
veiculam diretrizes positivas a serem atendidas no seu exercício,
indicando um caminho a ser seguido pelo legislador ou pelo
aplicador do Direito. Como diretrizes positivas, apontam algo
desejado pelo ordenamento e que o Constituinte quer ver alcançado.
As limitações (como seu próprio nome diz) têm função negativa,
condicionando o exercício do poder de tributar, e correspondem a
barreiras que não podem ser ultrapassadas pelo legislador
infraconstitucional; ou seja, apontam para algo que o constituinte
quer ver não-atingido ou protegido. Em suma, enquanto os princípios
indicam um caminho a seguir, as limitações nos dizem por onde não
seguir”.90 91
Seja como for, o que desejamos destacar é que o Sistema Tributário
Nacional, ao lado da outorga da competência tributária e de certos instrumentos
conferidos ao Estado para o seu exercício (como, por exemplo, o previsto na
última parte do parágrafo 1° do artigo 145), contempla também inúmeros
princípios ou regras de proteção ao contribuinte, como bem o demonstram a
legalidade, tipicidade, irretroatividade e tantos outros.
O tema dos princípios constitucionais tributários e de sua relevante
função na proteção do contribuinte é por demais explorado na doutrina pátria,
90 Planejamento fiscal e interpretação da lei tributária, p. 144. 91 Tal entendimento é também esposado por Humberto Bergmann Ávila: “Os princípios são normas imediatamente finalísticas. Estas estabelecem um estado ideal de coisas a ser buscado e, por isso, exigem a adoção de comportamentos cujos efeitos contribuam para a promoção gradual daquele fim” (Sistema constitucional tributário, p. 38).
razão pela qual não pretendemos estender sua análise, cabendo apenas duas
últimas observações.
A primeira consistente na observação de JOSÉ ARTUR LIMA
GONÇALVES, que afirma que princípios como legalidade e tipicidade, que
desempenham o papel de limitadores da ação de tributar, encontram seu
fundamento, em última análise, no denominado princípio do consentimento.
Ensina o professor que
“Esse princípio – do consentimento – é aquele que exige que o
particular consinta (i) em concorrer para os gastos públicos e (ii) em
que medida o fará. E esse consentimento é expressado por
intermédio dos representantes do povo no Legislativo. Ao aprovar a
lei que institui ou majora o tributo, o parlamentar está expressando o
consentimento do eleitor em contribuir, nos termos da lei aprovada,
para o custeio dos gastos públicos”.92
E a segunda é que esta dupla função do Sistema Tributário Nacional
exsurge da análise conjugada e sistemática de dispositivos constitucionais, de
modo que a interpretação da lei tributária deve levar em conta os valores
protegidos pela Carta Constitucional, quais sejam, de um lado, dentre outros,
liberdade, propriedade, legalidade e tipicidade e, de outro, solidariedade,
capacidade contributiva e participação no rateio das despesas públicas.93
4. Conceitos e indeterminação dos conceitos
92 Imposto sobre a renda: pressupostos constitucionais, p. 86. 93 Cf. Marco Aurelio Greco, Planejamento fiscal e interpretação da lei tributária, p. 30.
Não parece difícil aceitar que praticamente todas as palavras,
mesmo aquelas que aparentemente não ensejam dúvidas quanto ao seu
significado, podem, em oportunidades não raras, revelar-se ambíguas; das
palavras diz-se comumente que possuem textura aberta, que são equívocas ou
plurívocas; polissêmicas, que apresentam vagueza, indeterminação ou
ambigüidade.
Com efeito, a mesma palavra pode exprimir um certo sentido no
momento em que é utilizada e um outro no instante em que a mensagem é
recebida e interpretada; isto sem mencionar que o seu significado pode variar
dependendo das características do ouvinte ou do intérprete. Qual o significado
correto: o do tempo um ou do tempo dois? Do primeiro ou do segundo intérprete?
A Constituição Federal, por exemplo, ao utilizar determinada palavra
num de seus dispositivos; qual o significado dessa palavra: aquele da data em
que a Constituição foi promulgada; aquele em que ocorreu certo evento que a
palavra designa ou aquele em que o intérprete-aplicador do Texto Constitucional
irá proferir a decisão, aplicando a norma jurídica que contém a referida palavra?
Todas essas são questões de difícil resposta.
As palavras podem ser ainda atualizadas – e constantemente o são
– experimentando ao longo do tempo variações em seu significado, ou, se
preferirmos, alterações processadas no campo da linguagem nos níveis
semântico e pragmático. As palavras são funcionais, servem para dar nomes aos
objetos, designam coisas existentes no mundo, referem-se a fatos, atos,
situações, ocorrências, sensações; elas indicam o objeto a que se referem, ficam
no lugar dele, representam-no.
Pela denominada liberdade de estipulação, determina-se um nome
para cada coisa, designa-se uma palavra para indicar ou representar um certo
objeto. Assim, por exemplo, o objeto que se utiliza para escrever não seria – em si
mesmo – um lápis; ele é um lápis porque estipulamos tal palavra para dele tratar,
escolhemos essa palavra para dar nome a esse objeto usado para escrever ou
desenhar, de forma que, uma vez feita tal estipulação, os membros de uma certa
sociedade ou de um grupo passam a corriqueiramente utilizar a palavra para fazer
referência àquele objeto e aquela passa a identificar-se com este.94
Há ainda a considerar a gama de possibilidades em que a palavra
pode ser utilizada, como bem o demonstra ALF ROSS, ao afirmar que há um
“campo de referência correspondente à palavra, que pode ser
comparado com um alvo. Em torno do centro, haverá uma
densidade de pontos, cada um dos quais marcando um impacto na
referência. Rumo à periferia a densidade decrescerá gradualmente.
A referência semântica da palavra tem, por assim dizer, uma zona
central sólida em que sua aplicação é predominante e certa, e um
nebuloso círculo exterior de incerteza, no qual sua aplicação é
menos usual e no qual se torna mais duvidoso saber se a palavra
pode ser aplicada ou não”.95
Tudo quanto afirmamos até aqui para as palavras vale também para
os conceitos que, na lição de EROS ROBERTO GRAU, “é produto da reflexão,
94 Paulo de Barros Carvalho afirma que “Quando aprendemos o nome de um objeto, não aprendemos algo acerca da coisa, senão sobre os costumes lingüisticos de certo grupo ou povo que fala o idioma em que este nome corresponde a este objeto. É corriqueiro afirmar-se que uma coisa tem nome, contudo é mais rigoroso dizer que nós é que temos um nome para essa coisa. Conclusão necessária: não há falar-se de nomes verdadeiros ou falsos. Há, tão somente, nomes aceitos ou não aceitos. E esta possibilidade de inventar nomes, por sua vez, também leva um nome: liberdade de estipulação (Guibourg)” (IPI – Comentários sobre as regras gerais de interpretação da tabela NBM/SH (TIPI/TAB), In: Revista Dialética de Direito Tributário, vol. 12, p. 43). 95 Direito e justiça, p. 141/142.
entendida esta como uma suma de idéias (...) é a representação de uma idéia
universal que, quando intencionada, conduz à formulação de uma imagem, no
pensamento do intérprete”.96 Segundo NICOLA ABBAGNANO, conceito é “em
geral, todo processo que torne possível a descrição, a classificação e a previsão
dos objetos cognoscíveis. Assim entendido, esse termo tem significado
generalíssimo e pode incluir qualquer espécie de sinal ou procedimento
semântico, seja qual for o objeto a que se refere, abstrato ou concreto, próximo ou
distante, universal ou individual”.97
Com base nas palavras transcritas de NICOLA ABBAGNANO, de
que os conceitos indicam, apontam, descrevem, referem-se aos objetos
cognoscíveis, para aquilo que nos toca mais de perto – a questão dos conceitos e
as normas jurídicas, mais especificamente, as normas jurídicas constitucionais –
interessa-nos saber a qual o objeto o conceito utilizado na norma refere-se; qual a
parcela da realidade ele representa; qual campo delimitado do mundo fenomênico
ele indica. Enfim, cabe-nos averiguar qual o conteúdo do conceitos utilizados
pelas normas constitucionais ou, nas palavras de PAULO DE BARROS
CARVALHO, cumpre-nos saber quais os “limites de seu campo de irradiação
significativa”.98
Tal tarefa não se pode desvencilhar da tormentosa questão do grau
de indeterminação que os variados conceitos podem experimentar – e
96 Direito, conceitos e normas jurídicas, p. 62/63. 97 Dicionário de filosofia, p. 164. 98 IPI – Comentários sobre as regras gerais de interpretação da tabela NBM/SH (TIPI/TAB), In: Revista Dialética de Direito Tributário, vol. 12, p. 53.
efetivamente experimentam – sobretudo no campo do Direito.99 Ao mencionarmos
o grau de indeterminação dos conceitos ou os termos indeterminados de conceito,
no dizer de EROS ROBERTO GRAU, referimo-nos à área de penumbra (ou zona
cinzenta) existente em todo conceito, delimitada, por um lado, pelo seu conteúdo
semântico mínimo (aquilo que o conceito evidentemente significa) e, de outro,
pelo seu conteúdo semântico máximo (aquilo que o conceito pode significar no
seu limite, e nada mais para além dele), cuja significação, portanto, não é dada
desde logo, não é exata: pode variar no caso concreto dentro do qual o conceito é
utilizado.
Em outros termos, interessa-nos saber qual conteúdo desses
conceitos utilizados pela norma jurídica que, indeterminados a princípio, são
determináveis em cada caso concreto pela interpretação, justamente no momento
da aplicação da norma.100 Em resumo, buscamos saber qual a dimensão da
parcela da realidade que cabe no conceito indeterminado utilizado pelo texto da
lei, especificamente, o da lei constitucional.
Cumpre-nos aqui fazer desde logo a ressalva que, ao falarmos em
conceitos indeterminados utilizados pela Constituição, conceitos jurídicos,
99 Eros Roberto Grau efetua crítica à expressão “conceitos indeterminados” nos seguintes termos: “Os administrativistas – sobretudo os administrativistas brasileiros – insistem e reinsistem em afirmar a existência de ‘conceitos indeterminados’. Em inúmeros textos afirmei ser isso de todo insustentável, dado que – assim argumentava eu – a indeterminação apontada em relação a eles não é dos conceitos (idéias universais), mas de suas expressões (termos). Daí minha insistência em aludir a termos indeterminados de conceitos, e não a conceitos indeterminados. Este ponto era e continua a ser, para mim, de importância extremada: não existem conceitos indeterminados. Se é indeterminado o conceito, não é conceito. O mínimo que se exige de uma suma de idéias, abstrata, para que seja um conceito é que seja determinada. Insisto: todo conceito é uma suma de idéias que, para ser conceito, tem de ser, no mínimo, determinada; o mínimo que se exige de um conceito é que seja determinado. Se o conceito não for, em si, uma suma determinada de idéias, não chega a ser conceito” (Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, p. 211/212). 100 Ainda segundo Eros Roberto Grau, “Afirmar que as palavras e expressões jurídicas são, em regra ambíguas e imprecisas não quer porém dizer que não tenham elas significação determinável” (Direito, conceitos e normas jurídicas, p. 60).
portanto, não estamos nos referindo aos conceitos jurídicos indeterminados
comumente assim designados pela doutrina e pela jurisprudência (presentes em
várias áreas do direito), como interesse público, função social, verossimilhança
das alegações, interesse do menor e outros tantos, por exemplo, nos quais os
termos são efetiva e propositadamente amplos, abertos, imprecisos. Em vez
disso, temos em mente termos outros, que aparentemente não seriam
indeterminados, mas que realmente o são, em virtude de a Constituição não
fornecer o seu significado, e pela possibilidade de o legislador ordinário trabalhar
o seu conteúdo por ocasião da regulamentação do dispositivo constitucional,
como ocorre na área do direito tributário, com os conceitos de renda, produtos
industrializados, serviços de qualquer natureza, lucro, receita, faturamento e
outros tantos, todos esses que experimentam diversas alterações de significado
no exercício da outorga constitucional da competência tributária.
A questão do conteúdo indeterminado desses conceitos surge
porque há quem defenda, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, que não
existem conceitos constitucionais, entendimento segundo o qual o legislador pode
livremente deles tratar no momento da edição da lei, como se nota, por exemplo,
na tese de que “renda, para fins de tributação, é aquilo que a lei disser que é”.
Não obstante, e com a devida vênia, procuraremos demonstrar que, embora
possuam algum grau de indeterminação, existem sim conceitos constitucionais,
por sérias e variadas razões.
Entretanto, registramos que, como não são expressos, como a Carta
Constitucional não fornece claramente o seu conteúdo, não se trata de descobrir
o conceito, mas de construir em cada caso concreto, pela interpretação-aplicação
da norma, o conteúdo dos conceitos constitucionais.
5. Conceitos constitucionais como exigência lógica de conhecimento e
de aplicação da Constituição Federal
Se não existissem conceitos constitucionais, sobretudo para fins do
exercício da competência tributária, então seríamos obrigados a aceitar que o
legislador ordinário, na regulamentação do dispositivo constante da Carta Política,
poderia atribuir aos conceitos o conteúdo que desejasse, raciocínio que
encontramos grandes dificuldades para acompanhar.
Em primeiro lugar porque, como vimos, o fato incontestável de as
palavras, ou os conceitos, se revelarem imprecisos, vagos ou ambíguos não
significa – e não pode significar – que não tenham um sentido. O fato de o sentido
(ou da significação) não estar expresso na Constituição não significa que não
exista. Se não há um significado intrínseco a cada conceito, se tal significado
intrínseco não existe, há certamente, pelo menos, um mínimo de significado
consagrado pelo uso do conceito ou do termo; há indubitavelmente, um conteúdo
semântico mínimo.101 Desse modo, se a Constituição Federal utiliza o conceito, é
certo que o faz, quando menos, com seu conteúdo semântico mínimo, ou, em
outros termos, a tão-só utilização do conceito, a mera presença dele no texto da
Constituição implica a aceitação de seu mínimo teor de significação.
101 Humberto Ávila enfatiza que “Isso porque há traços de significados mínimos incorporados ao uso ordinário ou técnico da linguagem. Wittgenstein refere-se aos jogos de linguagem: há sentidos que preexistem ao processo particular de interpretação, na medida em que resultam de estereótipos de conteúdos já existentes na comunicação lingüistica em geral” (Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 24).
Se não fosse assim, seríamos obrigados a aceitar que os conceitos,
as palavras usadas no Texto Constitucional para nada – absolutamente nada –
servem, uma vez que nada significam. Nesta trilha, também nos veríamos
forçados a concordar com a idéia de que o legislador constituinte ao empregar um
conceito – em operação de demarcação de uma parcela da realidade que deseja
regular normativamente – na verdade trabalhou em vão, operou inutilmente, pois
o conceito que utilizou nada significa, não se refere a realidade alguma.
Necessitará, pois, que o legislador ordinário, este assim dotado de razão e
raciocínio capazes, venha a dizer ao legislador constituinte aquilo que ele desejou
fazer ou pensava ter feito, subtraindo das trevas em que se encontrava o
legislador soberano. Com o devido respeito, encontramos sérias dificuldades para
compreender semelhante fenômeno.
Em segundo lugar, os conceitos são necessariamente
constitucionais – devem ser constitucionais – porque não nos parece possível
conceber a idéia de que caberia à lei dizer aquilo que a Constituição Federal é.
Estando a lei subordinada à Constituição, ou, sendo a Constituição mais
importante do que a Lei – e disto parece que ninguém duvida, pelo menos por
enquanto – não é possível que o veículo legislativo subordinado venha a
determinar o significado do veículo legislativo subordinante. Segundo enviesado
raciocínio, pouco adiantaria, por exemplo, o artigo 1º. da Constituição dispor que a
República Federativa do Brasil tem como fundamentos básicos a cidadania, os
valores sociais do trabalho e o pluralismo político porque, como não há conceitos
constitucionais, o legislador constituinte desconheceria os significados de
República, Federação, cidadania, trabalho e política, e ver-se-ia obrigado a
aguardar que o legislador ordinário viesse a editar uma lei, verdadeiramente
elucidativa, para explicar qual o significado, qual o conteúdo semântico de tais
conceitos.
Também não passaria de acentuado diletantismo a discriminação de
competência tributária das pessoas políticas porque a Constituição Federal não
sabe o que é renda ou propriedade urbana, pois não há conceitos constitucionais
para tais termos. Necessitar-se-ia que a lei federal e municipal viesse a
determinar, da forma como desejasse, qual o significado de renda, de propriedade
e de urbano, podendo com isso inclusive delimitar qual a competência da outra
pessoa política, uma vez que ela – lei – determina o conteúdo destes conceitos,
podendo mesmo chamar de propriedade urbana a rural e de receita um dispêndio
de recursos financeiros. Se não há conceitos constitucionais, o que impediria tal
disposição legislativa ou, por outra, se a Constituição não serve como parâmetro,
pois nela não existem conceitos de envergadura superior, qual barreira poderia
ser colocada validamente à ação do legislador infraconstitucional?
Assim sendo, numa só afirmação, não se pode negar a existência
dos conceitos constitucionais pela singela razão de que não se pode interpretar a
Constituição Federal com base na lei.
Por isso é que afirmamos que os conceitos constitucionais – a
existência deles – constituem, no mínimo, uma exigência lógica do conhecimento
e da aplicação da Constituição Federal. Trata-se de um verdadeiro imperativo do
ato de conhecimento e do ato de interpretação, pois como poderíamos aplicar a
Constituição se não a conhecemos e como poderíamos conhecê-la senão por
meio do significado das palavras, dos conceitos por ela empregados? Como
poderíamos adentrar o mundo jurídico constitucional, como conhecer a realidade
regulada normativamente pela Constituição Federal se os conceitos ali presentes
não têm conteúdo definido, ainda que minimamente, porque tal conteúdo somente
seria determinado pelo legislador ordinário?
O próprio legislador ordinário, como haveria de pautar seu
comportamento na elaboração da lei? Se o conceito não é constitucional, porque
ele, legislador, irá determinar seu conteúdo, como saber qual parcela da realidade
corresponde ao termo renda e qual parte da realidade é designada por receita,
para fazer incidir sobre a primeira um imposto e sobre a segunda uma
contribuição social? Poderia livremente, atento aos seus próprios interesses,
estabelecer os limites das duas coisas? Poderia fazer com que se
sobrepusessem parcialmente uma e outra? Poderia, então, tratar as duas como
se fossem apenas uma realidade? Parece-nos que as respostas são
necessariamente negativas.
Parece-nos que as normas jurídicas são veículos por excelência
discriminadores, porque selecionam parcelas da realidade que ficarão dentro da
norma (serão reguladas pela norma) e deixam outras partes fora da norma (não
serão alcançadas pela disciplina normativa). Ora, o legislador constituinte
somente poderia selecionar propriedades de determinados fatos, atos, estados e
situações valendo-se dos conceitos que os designam, daí porque tais conceitos
são evidentemente trazidos para o seio da Constituição Federal, sob pena de não
haver sentido possível nos dispositivos constitucionais – ou não se poder
identificar o sentido – e os respectivos comandos normativos, de grau superior, se
revelarem inócuos de significação e frustrados quanto à sua aplicabilidade.102
Nota-se, portanto, que os conceitos são elementos descritivos da
realidade, referentes à realidade, daí sua relevante função de permitir que se a
conheça por meio deles, característica fundamental quando aplicada às normas
jurídicas que, por regularem o mundo fenomênico, não podem deles prescindir,
revelando-se verdadeiros pressupostos para o conhecimento e a aplicação dos
comandos normativos. Neste ponto, EROS ROBERTO GRAU aponta que
“os conceitos jurídicos têm por finalidade ensejar a aplicação de
normas jurídicas. Expressados, são signos de signos (significações)
cuja finalidade é a de possibilitar aquela aplicação. Prestam-se a
permitir (assegurar) a realização de certeza e segurança jurídicas.
Por isso existem – isto é, devem existir – ‘para nós’ e não apenas
‘para mim’”. Mais adiante, quanto à aplicabilidade das normas
jurídicas, aponta que “Atribuída à coisa, estado ou situação uma
determinada significação (conceito jurídico), quanto a ela aplicar-se-
ão umas – e não outras, ou nenhuma – determinadas normas
jurídicas. Esta, de resto, a finalidade dos conceitos jurídicos: não o
conhecimento ou uma descrição da essência das coisas, estados e
situações, mas a viabilização da aplicação, a uma coisa, estados ou
102 De acordo com Nicola Abbagnano “... o alegado caráter de universalidade subjetiva ou validade intersubjetiva do conceito na realidade é simplesmente a sua comunicabilidade de signo lingüistico: a função primeira e fundamental do conceito é a mesma da linguagem, isto é, a comunicação. (...) na segunda interpretação, o conceito é um signo do objeto (qualquer que seja) e se acha em relação de significação com ele. Por essa interpretação, encontrada pela primeira vez nos estóicos, a doutrina do conceito é uma teoria dos signos. (...) a primeira função atribuída ao conceito é a de descrever os objetos da experiência para permitir o seu reconhecimento. Era essa a função principal que epicuristas e estóicos atribuíam às antecipações (ou prolepse) (...) a terceira função do conceito é organizar os dados da experiência de modo que se estabeleçam entre eles conexões de natureza lógica. Um conceito, sobretudo científico, via de regra não se limita a descrever e classificar os dados empíricos, mas possibilita a sua inferência dedutiva” (Dicionário de filosofia, p. 164/168).
situações, de uma determinada ou de um determinado conjunto de
normas jurídicas”.103
6. Conceitos constitucionais e exercício da competência tributária
Vimos, então, que conceitos jurídicos têm por finalidade viabilizar a
aplicação da norma, de modo que os denominados conceitos constitucionais
viabilizam a aplicabilidade das normas constitucionais. Sobre serem pressuposto
lógico de seu conhecimento, são também pressuposto de sua aplicação.
Por tal razão, esta é a ligação existente entre os conceitos
constitucionais e a outorga constitucional de competência tributária, pois o
legislador, para o exercício deste poder, vê-se inapelavelmente obrigado a olhar
para a Constituição Federal para ali descobrir aquilo que pode validamente fazer
neste campo. Com efeito, na Carta da República ele encontra em primeiro lugar a
discriminação da competência, que é exclusiva de cada pessoa política com base
no critério territorial, e depois, pelo critério da materialidade, encontra qual a
matéria, qual a porção da realidade que pode tributar, se assim o desejar, de
modo que comprovamos novamente que a existência dos conceitos
constitucionais é exigência lógica do Sistema Tributário Nacional. Vale dizer, é
obrigatório que haja um conceito constitucional de renda, de receita, de veículos
automotores e de serviços de qualquer natureza para que o ente detentor da
competência tributária saiba o que tributar. Em outros termos, com perdão da
insistência, somente se houver – trata-se de condição – um conceito
103 Direito, conceitos e normas jurídicas, p. 66/67.
constitucional o legislador pode saber qual porção da realidade pode tributar, qual
parte do mundo real pode separar para ser alvo da norma impositiva.
Com tais considerações pretendemos fixar de uma vez por todas
nossa premissa: para cada materialidade prevista na Constituição Federal, há o
conceito constitucional dela. Tal conceito não é dado pronto, acabado, expresso,
absoluto pela Carta Republicana, mas deve ser construído pelo legislador, que
possui certa margem de liberdade na tarefa de construir o conteúdo do conceito,
que, todavia, ainda permanece constitucional, como um limite a esta atividade
construtiva. A Constituição fornece os limites, os parâmetros fronteiriços dentro
dos quais a aludida construção do conteúdo pode ser feita validamente. Em
outros termos, da interpretação do Texto Constitucional deve-se extrair –
construtivamente – os limites mínimo e máximo do conteúdo semântico do
conceito.
O limite mínimo é representado pelo conteúdo semântico mínimo do
conceito utilizado, aquele com o qual o conceito é incorporado pela Constituição,
porque quando ela usa o conceito, incorpora-o, o traz para dentro de seu corpo e
com ele traz também o conteúdo semântico mínimo, impregnado ao conceito e
que não pode dele ser separado, ou seja, a Constituição incorpora o conceito e
seu conteúdo mínimo de significação. Por exemplo, o mínimo que se pode exigir
do conceito de receita é que seja um ingresso de recursos no patrimônio; o
conteúdo mínimo de significação de veículo automotor é tratar-se de algo movido
por uma máquina, uma engenhoca, um motor, enfim. Portanto, quanto ao limite
mínimo, o desafio do intérprete (e do legislador) está em saber qual o conteúdo
mínimo que acompanha o conceito, isto é, com qual conteúdo mínimo semântico
o conceito foi incorporado pela Constituição Federal; como e em que medida ele
foi constitucionalizado.
O limite máximo, por sua vez, é marcado por aquilo que o conceito
evidentemente não pode representar, pois está situado além do círculo externo de
dois círculos concêntricos, para nos utilizarmos de uma representação gráfica.
Encontra-se além do limite mínimo de significado (círculo interno), passou pela
zona existente entre os dois círculos, e também superou o círculo externo. No
exemplo do vocábulo receita, a questão está em sabermos se todas as receitas
cabem no conceito constitucional de receita e podem ser tributadas, receitas de
terceiros, receitas apenas da própria atividade ou também eventuais (receitas
financeiras, aluguéis, indenizações), de modo que um desembolso evidentemente
não pode ser tomado como receita, pois está além do limite máximo. No exemplo
do veículo automotor, são apenas automóveis, ou também aviões, navios,
lanchas ou mesmo uma carroça puxada por um animal? E o animal sozinho?
Desse modo, quanto ao limite máximo, o problema está em
descobrirmos onde ele está situado e quais os parâmetros, medidas,
instrumentos, que podem ser utilizados na análise e na interpretação da norma
para reconhecê-lo.
Note-se que aqui deparamos com algo que explica e justifica uma de
nossas premissas metodológicas, qual seja, a relevância de cada caso concreto,
pois a atividade regular do legislador, o exercício constitucional da competência
tributária somente pode ser aferida em cada caso concreto, no momento da
interpretação-aplicação da norma jurídica, diante do qual, considerando-se uma
série de fatores influentes, poderemos verificar se o legislador exorbitou ou não
suas possibilidades, se adentrou ou não o campo da arbitrariedade, que se traduz
em inconstitucionalidade.
Daí porque entendemos que existem conceitos constitucionais para
fins de competência tributária, pois estes repousam na própria estrutura orgânica
do Sistema Tributário Nacional, uma vez que, além do critério da territorialidade,
ele está assentado no critério da materialidade, pois a Constituição Federal
adotou a técnica de se referir ao elemento material da regra-matriz de incidência
para proceder à repartição da competência tributária entre as pessoas políticas.
Decorre daí que o tema delimitação da competência tributária ou discriminação da
competência tributária é matéria de direito constitucional, reservada com
exclusividade ao legislador constituinte.
Isto é o que JOSÉ ARTUR LIMA GONÇALVES, com extrema
precisão, designa de imperativo lógico da existência do conceito pressuposto, nos
seguintes termos: “Não há outra solução lógico-sistemática para essa questão.
Admitindo-se que é a Constituição que confere ao legislador infraconstitucional as
competências tributárias impositivas, o âmbito semântico dos veículos lingüísticos
por ela adotados para traduzir o conteúdo dessas regras de competência não
pode ficar à disposição de quem recebe a outorga de competência. A questão de
direito colocada, portanto, só pode ser compreendida e analisada em face das
normas constitucionais que regem a matéria.”104
7. Conceitos constitucionais como limitação ao poder de tributar
104 Imposto sobre a renda: pressupostos constitucionais, p. 171.
Além de constituírem pressuposto de conhecimento e aplicação,
acreditamos que os conceitos constitucionais revelam-se também como
limitações do poder de tributar, tema ao qual a Carta Constitucional dedica a
Seção II do Capítulo do Sistema Tributário Nacional, estabelecendo os mais
relevantes limites das pessoas políticas na atividade de exercício da competência
tributária.
Sem prejuízo das limitações expressas, acreditamos que há outras
duas espécies específicas de limitações constitucionais ao poder de tributar –
lógica e cronologicamente anteriores àquelas – materializadas (i) pela
discriminação da competência tributária entre as pessoas políticas e (ii) pelos
conceitos constitucionais utilizados para tanto.
A primeira constitui limitação porque a repartição da competência
tributária, em seus aspectos positivo e negativo, implica, ao mesmo tempo,
atribuição expressa da competência a certa pessoa política, e recusa da
competência idêntica às outras unidades da Federação. Portanto, ao tempo em
que confere poder de tributar a um, nega tal poder a outros, daí revelar-se uma
limitação.105 Quanto à segunda espécie, os conceitos constitucionais constituem
uma clara limitação ao poder de tributar, pois, por meio deles, a Constituição
prescreve ao legislador ordinário qual a parcela da realidade que ele pode atingir
com a norma jurídica exacional e, em consequência, quais as partes outras que
105 Conforme explica Amílcar de Araújo Falcão, “Em primeiro lugar, a atribuição de competência privativa tem um sentido positivo ou afirmativo: importa em reconhecer a uma determinada unidade federada a competência para decretar certo e determinado imposto. Em segundo lugar, da atribuição da competência privativa decorre um efeito negativo ou inibitório, pois importa em recusar competência idêntica às unidades outras não indicadas no dispositivo constitucional de habilitação ...” (apud Luís Cesar Souza de Queiroz, Imposto sobre a renda: requisitos para uma tributação constitucional, p. 202).
não podem ser tributadas, daí afirmarmos que a norma jurídica discrimina, uma
vez que determina o que está dentro e o que está fora de seu alcance normativo.
Tal circunstância é revelada até mesmo intuitivamente, pois parece
claro que ao outorgar, por exemplo, competência à União para instituir imposto
sobre a renda, está concomitantemente determinando a essa pessoa política que
o imposto previsto no artigo 153, inciso III, somente pode recair sobre esta
entidade do mundo fenomênico, e não sobre outra; estas outras, como o
faturamento e o lucro, podem também sofrer tributação, mas não com base na
outorga de competência constante do referido artigo. Pela mesma razão, a
contribuição social sobre o lucro, do artigo 195, inciso I, alínea c, não poderá
incidir sobre outra coisa senão sobre o lucro, pois tal conceito – o de lucro – está
na Constituição Federal justamente a limitar a regra de outorga de competência
tributária.
Ampliar ou restringir o conteúdo dos conceitos em cada caso
concreto significa nitida e diretamente ampliar ou restringir o próprio exercício da
competência tributária, isto é, implica a expansão ou a compressão do alcance da
norma jurídica exacional, razão pela qual os conceitos são necessariamente
matéria constitucional – e não legal – uma vez que a densidade normativa da
regra de outorga da competência não pode ficar à disposição do ente político que
irá exercê-la em seu próprio interesse.
Desse modo, pela própria necessidade de se distinguirem as
diferentes situações de fato que podem servir de base à tributação – para não
confundi-las ou ampliá-las indevidamente – é que surgem os conceitos, de índole
constitucional, com o fim de delimitar, com a marca indelével da supremacia
normativa, a competência tributária.106 Em outros termos, se a regra constitucional
de outorga de competência utiliza-se, por exemplo, do conceito renda, isso
pressupõe a consideração dos conteúdos mínimo e máximo a que nos referimos,
caso contrário a competência ficaria vazia; a outorga não seria baseada – como o
é – no critério da materialidade, mas em critério subjetivo, e poderia variar ao
sabor dos interesses de cada pessoa política, raciocínio que não encontra
fundamento na Carta Republicana. Se assim fosse, o que se admite apenas a
título de argumento, a Constituição não teria estabelecido que a União pode
instituir imposto sobre a renda, mas, antes, que poderia instituir imposto sobre
qualquer coisa, pois o critério já não seria o da materialidade.
Desde que se aceite a premissa de que os critérios adotados pela
Constituição são o da territorialidade e o da materialidade – e, com a devida
vênia, não há meios de negá-la – a conclusão evidente é a de que a outorga de
competência não é uma cláusula aberta a ser preenchida livremente pelo
legislador; ao contrário, ela pressupõe a existência dos conceitos constitucionais
(um mínimo e um máximo de significado para cada vocábulo) que limitam a
atividade legiferante de cada ente político.107
106 Luís Cesar Souza de Queiroz confirma: “Parece evidente que, ao descrever ‘situações de fato’ que conformam a competência ordinária discriminada, a Constituição efetivamente assume que elas possuem um conceito que apresenta limites máximos, especialmente para fins de repartição da competência tributária” (Imposto sobre a renda: requisitos para uma tributação constitucional, p. 207). 107 Ainda Luís Cesar Souza de Queiroz: “Contudo, se existe um conceito, há características definitórias que informam seus limites, que permitem identificá-lo e diferençá-lo de outros conceitos. Assim, o fato de se poder considerar que a expressão ‘renda e proventos de qualquer natureza’ como base tributável representa um conceito indeterminado não importa em reconhecer que se trata de um conceito vazio, sem sentido, sem limites máximos, nem permite deduzir que o legislador infraconstitucional possui total liberdade para definir tal conceito” (Imposto sobre a renda: requisitos para uma tributação constitucional, p. 208).
Ainda que exista certa margem de liberdade conferida ao legislador
no preenchimento do conteúdo do conceito, isso não implica, em nenhuma
hipótese, a aceitação da chamada teoria legalista, defendida por parcela da
doutrina, segundo a qual renda, receita ou faturamento, por exemplo, seriam
aquilo que a lei determinasse.
CAPÍTULO 3
CAPACIDADE CONTRIBUTIVA E VEDAÇÃO DO EFEITO CONFISCATÓRIO
1. Parâmetros relevantes na construção dos conceitos constitucionais
Nas páginas antecedentes deixamos claro que o conteúdo dos
conceitos constitucionais, para fins do exercício da outorga de competência
tributária, é construído primeiramente pelo legislador da pessoa política detentora
da referida competência, no momento da edição da lei criadora do tributo, quando
está obrigado a analisar as disposições constantes da Constituição Federal,
atento às regras e princípios presentes no Sistema Tributário Nacional, para
verificar quais limites lhe são impostos nesta atividade legiferante.
Esse conteúdo significativo dos conceitos pode ser construído,
também, pelo Poder Judiciário, desde que provocado para tanto, situação na qual
o magistrado – intérprete da Constituição e do ordenamento jurídico, intérprete
autêntico, na expressão de HANS KELSEN – é chamado para avaliar o produto
da atividade do legislador, a fim de verificar se este atuou dentro dos limites
constitucionais, e decidir pela confirmação, rejeição ou mesmo reconstrução do
conteúdo do conceito, objeto da análise.108
Vimos, ainda, que tal atividade interpretativo-construtiva, sem
prejuízo da extensão, da intensidade e da rigidez do tratamento
constitucionalmente conferido à matéria tributária, não pode desprezar o exame
sistemático da Carta da República. Isso porque o próprio Sistema Tributário
Nacional exige o reenvio, a busca, a complementação do sentido de suas normas
em outras normas presentes em diversas outras partes da Constituição, como nos
capítulos da Seguridade Social, da Ordem Econômica e Financeira e dos Direitos
e Garantias Fundamentais, por exemplo, entre outros.
Casos diversos há no Direito Tributário nos quais a questão dos
conceitos constitucionais exerce pouca ou nenhuma relevância, hipóteses em que
a eventual desobediência à Carta Magna é, por assim dizer, mais facilmente
percebida, como ocorre, por exemplo, nas violações às regras da anterioridade e
da irretroatividade. A dificuldade está, assim, em situações outras, que envolvem
justamente o conteúdo de significado dos termos utilizados pela Constituição,
diante da possibilidade de aumento ou diminuição do âmbito material da
competência tributária, o que pode ser feito pela extensão ou restrição do
conceito constitucional.
108 Pensamos que o Poder Judiciário – em especial o Supremo Tribunal Federal – pode efetuar a reconstrução do conteúdo significativo do conceito constitucional, por exemplo, restringindo parcialmente a extensão significativa que inicialmente foi-lhe dada pela lei (em caso de interpretação conforme à Constituição), sem que isto implique na atuação da Corte Suprema como legislador positivo.
Veja-se, a título de exemplo valioso, a discussão travada em torno
da incidência da Contribuição para Financiamento da Seguridade Social –
COFINS sobre as operações de venda de imóveis, 109 pois estes não são
considerados mercadorias, no sentido rigoroso dessa palavra e, portanto, o
faturamento decorrente de sua venda não deveria, a princípio, sofrer a incidência
da referida contribuição. Neste caso, a discussão não envolvia a violação direta
de alguma regra ou de algum princípio constitucional mas, antes, revelava-se
mais complexa. Tratava-se de saber qual o conteúdo de vocábulo mercadoria,
tendo-se em vista que o Supremo Tribunal Federal já havia fixado o entendimento
de que faturamento, para fins de incidência da COFINS, é o produto decorrente
da venda de mercadorias e de serviços e da prestação de serviços. Portanto
importava averiguar se, no caso concreto, imóvel cabia ou não no conceito
jurídico de mercadoria.
Assim, uma vez que procuramos demonstrar que o conteúdo dos
conceitos constitucionais não se encontra à livre disposição do legislador ordinário
– porque tais conceitos são limitações ao poder de tributar – surge a necessidade
de se saber, como o afirmamos, até que ponto ele pode chegar na construção do
conceito, isto é, até onde a Constituição Federal o autoriza ampliar o conceito de
modo válido.
No presente capítulo, nosso objetivo é o de procurar demonstrar
que, em meio às diversas regras e princípios a serem obedecidos, são de
especial relevância os da capacidade contributiva e da vedação do efeito
confiscatório. As dificuldades, entretanto, não são poucas, uma vez que ambos os
109 Embargos de Divergência no Recurso Especial nº. 166.374, Relatora Ministra Eliana Calmon.
dispositivos constitucionais revelam-se, eles mesmos, conceitos de textura aberta,
vazados em termos amplos, que comportam também algum grau de
indeterminação semântica, uma vez que a Constituição não define – nem seria
próprio que o fizesse – o que é capacidade contributiva e efeito confiscatório.
O objeto representado pela capacidade contributiva e pelo efeito
confiscatório não surge definido; seu conteúdo e extensão não são delimitados de
modo preciso, de forma que também aqui se torna necessário descobrir o
significado desses conceitos como pressuposto necessário para sabermos, em
cada caso concreto, se tais dispositivos constitucionais foram ou não obedecidos.
Não obstante, tais dificuldades de intelecção dos aludidos
dispositivos não podem servir de obstáculo para sua aplicação, pois são normas
constitucionais perfeitamente aplicáveis e de respeito obrigatório tanto pelo
legislador ordinário ou complementar, quanto pelo intérprete-aplicador da lei, em
especial pelo Poder Judiciário.
2. Princípio da capacidade contributiva
O conceito de capacidade contributiva comporta diversos
entendimentos. Na lição de RUBENS GOMES DE SOUSA, é a “soma de riqueza
disponível depois de satisfeitas as necessidades elementares de existência,
riqueza essa que pode ser absorvida pelo Estado sem reduzir o padrão de vida do
contribuinte e sem prejudicar as suas atividades econômicas”.110 Para REGINA
HELENA COSTA, “Se os fatos a serem escolhidos pelo legislador como hipóteses
de incidência tributária devem espelhar situações reveladoras de tal capacidade,
110 Compêndio de legislação tributária, p. 95.
forçoso, refiram, portanto, índices ou indicadores de capacidade contributiva, que
nada mais são do que signos que representam manifestações de riqueza”.111
Em virtude das limitações de nosso estudo, este não é o local
próprio para analisarmos os entendimentos na doutrina e na jurisprudência sobre
o conceito ou a definição de capacidade contributiva, de forma que, por ora,
limitar-nos-emos a mencionar, em apertada síntese, quatro correntes relativas ao
significado de capacidade contributiva, tomando de empréstimo a visão
panorâmica fornecida por MARCO AURELIO GRECO em seu livro sobre a
substituição tributária.112
2.1 Capacidade financeira
Uma primeira possibilidade de interpretação está em considerarmos
a capacidade contributiva como a disponibilidade financeira de alguém para
recolher o tributo, sendo, portanto, índice relacionado diretamente com as
condições materiais da pessoa obrigada ao adimplemento da obrigação tributária.
O exemplo comum deste caso é o da viúva que, por força de herança, adquire a
propriedade de uma mansão, mas não dispõe de recursos financeiros suficientes
para recolher o Imposto Predial e Territorial Urbano – IPTU, de tal modo que, se
capacidade contributiva for equivalente a capacidade financeira, nesta hipótese
ela não está presente.
Segundo aponta MARCO AURELIO GRECO, “Essa idéia de
capacidade contributiva comporta críticas, afirmando alguns que a disponibilidade
111 Princípio da capacidade contributiva, p. 28. 112 Substituição tributária: antecipação do fato gerador, p. 78/82.
financeira é meramente circunstancial para fins da incidência; relevante, para fins
de tributação, é o patrimônio que a pessoa possui, pois este configura
manifestação para pagar tributos. Onde há patrimônio há uma renda poupada que
nele se materializou; e, portanto, ser proprietário daquele bem indica que a
pessoa pode, em alguma medida, participar do rateio das despesas públicas. Daí
a exigência do IPTU feita à viúva não violar a cláusula constitucional da
capacidade contributiva”.113
Ademais, também se poderia argumentar que dispor ou não de
recursos financeiros para recolher o tributo é circunstância relativa à liquidação do
débito tributário e questão temporal posterior à manifestação da capacidade
contributiva, ligada à incidência da norma tributária, e, portanto, ao nascimento da
obrigação.
2.2 Capacidade individual
Outra corrente doutrinária entende que a capacidade contributiva é a
capacidade individual de uma pessoa determinada. Deve-se verificar, em cada
caso específico, qual o patrimônio possuído e qual a carga tributária
concretamente suportada; qualidade, portanto, acentuadamente subjetiva.
A crítica feita a tal entendimento é a de que ele pode levar ao
comprometimento da própria aplicação da lei tributária, uma vez que avaliar as
condições subjetivas de cada contribuinte, em cada momento específico, é tarefa
inviável, pois “tentar definir a capacidade contributiva como característica
113 Substituição tributária: antecipação do fato gerador, p. 79.
individual é querer que exista uma lei para cada cidadão”, coisa que inviabiliza a
discussão sobre o tema, conforme afirma o referido professor.114
2.3 Capacidade presumida
A terceira formulação consiste em considerar que, diante da
impossibilidade prática de se apurarem as condições e características de cada
indivíduo, a capacidade contributiva é, na verdade, uma capacidade presumida,
de modo que caberia à lei definir, para cada imposto e dentro de certos
parâmetros, qual a capacidade que se presume. Nessa perspectiva, a lei do
imposto sobre a renda, por exemplo, fixaria qual o valor do mínimo necessário
para a subsistência do contribuinte, o valor das deduções possíveis e assim por
diante, para presumir qual a capacidade contributiva dele.
A crítica a tal entendimento repousa no próprio mecanismo da
presunção, com os perigos daí decorrentes, porque desconsidera os dados
verdadeiros e porque o legislador ordinário pode revelar-se tendencioso na
determinação dos valores, uma vez que o mínimo essencial à subsistência e à
manutenção do contribuinte é algo acentuadamente subjetivo.
2.4 Capacidade vinculada ao pressuposto de fato do tributo
A quarta acepção consiste em considerar a capacidade contributiva
como ligada ao denominado pressuposto de fato do tributo, isto é, se aquele
determinado fato é ou não indicativo da aptidão de recolher o tributo. Altera-se,
assim, eixo do tema: de subjetivo, como considerado nas três correntes de
114 Substituição tributária: antecipação do fato gerador, p. 80.
pensamento apontadas, para objetivo, na medida em que se deixa de considerar
se alguém tem capacidade contributiva, para se verificar se algo indica, se o fato
revela a referida capacidade. Segundo ensina MARCO AURELIO GRECO,
pressuposto de fato “é basicamente um dado da realidade econômica ou jurídica
– como, por exemplo, o ciclo de produção, a renda enquanto acréscimo
patrimonial, a propriedade enquanto fato, a celebração de determinado contrato
típico etc”.115
Nessa concepção doutrinária, embora o conceito de capacidade
contributiva não perca o seu grau de indeterminação, por aparecer vinculada ao
pressuposto de fato dos tributos, ela deixa de ser um índice subjetivo para
revelar-se um dado objetivo, se levarmos em consideração que os fatos ocorridos
no mundo fenomênico, por serem reveladores de manifestação de riqueza,
indicam que as pessoas a eles ligadas revelam aquela aptidão de concorrerem
para o rateio das despesas públicas, por meio do recolhimento dos tributos.
2.5 Funções da capacidade contributiva
A análise, ainda que superficial, das várias possibilidades
conceituais da capacidade contributiva, permite-nos colocar em destaque sua
relevância e alguns dos possíveis papéis que ela pode desempenhar, aqui
chamados de funções da capacidade contributiva.
É bem verdade que há muitas críticas ao aludido princípio, em
virtude principalmente do alto grau de indeterminação do conceito, como, por
115 Substituição tributária: antecipação do fato gerador, p. 81.
exemplo, aquela formulada por ALFREDO AUGUSTO BECKER.116 Todavia, com
a devida vênia, não podemos concordar com o autor, porque tentar desqualificar a
relevância do princípio por se tratar “de locução ambígua que se presta às mais
variadas interpretações”, parece-nos crítica demasiadamente fácil, uma vez que
poderia ser feita também a um imenso número de institutos jurídicos, também
ambíguos ou vagos, que nem por isso deixam de ser aplicados, como o provam a
doutrina e a jurisprudência. Uma vez que o dispositivo é expressamente previsto
na Constituição Federal, parece-nos mais útil buscar sua interpretação possível e
criar alternativas para sua concretização, em vez de meramente fugir do tema em
virtude das dificuldades que ele apresenta.
A idéia do pressuposto de fato como indicador da capacidade
contributiva parece ser interessante porque possibilita, em certa medida, tornar o
princípio menos fluido, menos subjetivo, por permitir a identificação de certas
ocorrências do mundo fenomênico como reveladoras de riqueza e, portanto, de
capacidade contributiva, razão pela qual podem ser alvo da norma de tributação,
se assim o desejar o legislador. Podemos considerar, desse modo, que: auferir
renda; produzir produtos industrializados; possuir certo patrimônio; realizar
importações ou auferir receitas são pressupostos de fato que, em tese,
demonstram a possibilidade de certas pessoas, a eles ligadas, de contribuir para
o rateio das despesas públicas.
Não obstante, cremos também que isso não autoriza o desprezo
pelo caso concreto e suas peculiaridades, uma vez que, por um variado leque de
razões, aquela capacidade contributiva inicialmente indicada pelo pressuposto de
116 Teoria geral do direito tributário, p. 439.
fato pode revelar-se inexistente. O contribuinte pode ver-se autorizado a bater às
portas do Poder Judiciário, ou mesmo às da esfera administrativa, para que seja
reconhecida a inviabilidade da tributação pela inexistência daquela capacidade.
Isto porque, segundo nos parece, há uma capacidade potencial (em
estado latente) e uma capacidade contributiva concreta (efetiva, real), a ser
confirmada em cada caso concreto. A instituição do tributo pode dar-se com base
na capacidade contributiva potencial – em princípio ela basta ao legislador – mas,
em cada hipótese específica, o tributo poderá deixar de ser recolhido ou
eventualmente restituído ao contribuinte, pela ausência de capacidade
contributiva concreta. Haveria, por assim dizer, hipótese de desconfirmação da
capacidade contributiva.
O que procuramos afirmar é que a capacidade contributiva pode
assim ser avaliada em dois momentos: no primeiro, cabe ao legislador verificar a
capacidade potencial, espelhada por determinado pressuposto de fato que, por
revelá-la, ostenta dignidade suficiente para ser colhida por determinada hipótese
de incidência legal; no segundo, cumpre ao intérprete-aplicador da lei apurar, no
caso específico, a capacidade concreta que, se presente, confirma a propriedade
do pressuposto de fato como elemento ensejador da criação daquela hipótese de
incidência.
Tal raciocínio parece corresponder ao ensinamento de REGINA
HELENA COSTA ao assim tratar da capacidade absoluta e relativa:
“Fala-se em capacidade contributiva absoluta ou objetiva quando se
está diante de um fato que se constitua numa manifestação de
riqueza; refere-se o termo, nessa acepção, à atividade de eleição,
pelo legislador, de eventos que demonstrem aptidão para concorrer
às despesas públicas. Tais eventos, assim escolhidos, apontam para
a existência de um sujeito passivo em potencial. Diversamente, a
capacidade contributiva relativa ou subjetiva – como a própria
designação indica – reporta-se a um sujeito individualmente
considerado. Expressa aquela aptidão de contribuir na medida das
possibilidades econômicas de determinada pessoa. Nesse plano,
presente a capacidade contributiva in concreto, aquele potencial
sujeito passivo torna-se efetivo – apto, pois, a absorver o impacto
tributário”.117
Neste ponto surge a questão, formulada por MARCO AURELIO
GRECO, de se saber “se a capacidade contributiva, no sistema brasileiro, é
fundamento (ou causa) da tributação, ou não. Caso ela corresponda apenas a um
critério de dimensionamento da carga tributária, seria o caso, então de indagar
qual o fundamento da tributação. Esta definição é relevantíssima, pois se for um
fundamento da cobrança e houver violação à capacidade contributiva toda
tributação estará comprometida; mas se for apenas um critério de
dimensionamento a cobrança pode, eventualmente, subsistir sob outro critério”.118
Segundo nosso modesto ponto de vista, a capacidade contributiva
não é fundamento da tributação ou, se preferirmos, não é causa suficiente para o
surgimento do fenômeno impositivo. Pensamos que o fundamento primeiro da
tributação é a necessidade de participação da sociedade no rateio das despesas
públicas. A própria existência do Estado, sua manutenção e as atividades que lhe
cabe desempenhar por força de mandamentos constitucionais trazem consigo a
inafastável necessidade de buscar recursos financeiros no seio da sociedade e tal
117 Princípio da capacidade contributiva, p.27. 118 Substituição tributária: antecipação do fato gerador, p. 75.
imperiosa circunstância oferece fundamento à tributação. Vale dizer, por causa do
rateio das despesas públicas, há imposição tributária e não em razão da
existência de capacidade contributiva por si só.
Parece-nos que a capacidade contributiva, por ser um princípio
constitucional, revela-se como um pressuposto a ser atendido pelo legislador
ordinário e complementar para o exercício de sua atividade legiferante; trata-se de
algo que deve ser obedecido quando há eleição de hipóteses de incidência. Estas
só podem ser criadas pela lei se tiverem como base pressupostos de fato que
necessariamente indiquem manifestação de capacidade contributiva. Mais do que
um parâmetro a ser respeitado pelo legislador, revela-se um elemento
condicionante (porque o obriga a seu atendimento) e restritivo de sua atividade
(porque lhe impõe obstáculos à livre escolha dos pressupostos de fato). Nas
palavras de REGINA HELENA COSTA, “Representa sensível restrição à discrição
legislativa, na medida em que não autoriza, como pressuposto de impostos, a
escolha de fatos que não sejam reveladores de alguma riqueza”.119
Apesar de não a considerarmos fundamento da tributação, na
hipótese de violação à capacidade contributiva aquela estará, sim, comprometida,
por ofensa ao parágrafo primeiro do artigo 145 da Constituição Federal, salvo se
não for possível o prestígio à mencionada figura, para utilizar a expressão
constante deste dispositivo constitucional. Em outros termos, justamente por ser a
capacidade contributiva um princípio constitucional informador da atividade
legislativa tributária, sua observância é inafastável, porque o legislador não tem
119 Princípio da capacidade contributiva, p. 28.
autorização constitucional para instituir tributos sobre eventos da realidade em
que a capacidade contributiva esteja ausente.
Com base em tal raciocínio, pensamos ser possível visualizar três
funções principais da capacidade contributiva, quais sejam: (i) a de elemento
limitador da atividade legislativa na eleição de hipóteses de incidência, somente
se permitindo a imposição tributária em que a referida capacidade estiver; (ii) a de
instrumento de dimensionamento do tributo, pois, uma vez criada a hipótese de
incidência, a lei pode dimensionar o grau da exigência fiscal mediante a utilização
de alíquotas diferenciadas e/ou progressivas; (iii) a de índice informador da
interpretação e aplicação da lei tributária, dado que o respeito à capacidade
contributiva deve prevalecer também na aplicação da norma jurídica exacional,
para conformá-la ao mandamento constitucional.
Ademais, no desempenho dessas três funções, a capacidade
contributiva pode prestar-se à busca da realização de justiça fiscal, desde que
distribua razoavelmente a participação de cada indivíduo no rateio das despesas
públicas; pode permitir a concretização do princípio da igualdade, conferindo
tratamento desigual aos desiguais e pode ainda permitir o controle de
constitucionalidade da lei tributária, com a verificação da obediência ou do
desrespeito ao aludido comando constitucional.
Por essas razões é que conferimos relevância ao papel da
capacidade contributiva no tema central de nosso estudo, ou seja, no
preenchimento do conteúdo significativo dos conceitos constitucionais e na sua
íntima relação com o exercício da competência tributária, uma vez que a
interpretação construtiva dos conceitos constitucionais há de sempre levar em
consideração a necessidade de observância do referido princípio, de modo que,
entre duas ou mais interpretações possíveis da lei tributária, a opção do aplicador
deverá repousar naquela que preste homenagens à capacidade contributiva.
Nessa linha de raciocínio, seja pela localização topográfica do
instituto no corpo da Carta Política, seja pela amplitude semântica que parece
comportar, seja ainda pela função que desempenha no Sistema Tributário
Nacional, parece não haver dúvida de que a capacidade contributiva é um
verdadeiro princípio jurídico constitucional, de forma que “Tratando-se de um
princípio, corresponde a um vetor axiológico do ordenamento positivo e um
critério positivo informador da estrutura do sistema tributário e da legislação
infraconstitucional que vier a ser editada”, como acentua MARCO AURELIO
GRECO.120
Como decorrência de tal entendimento, a expressão sempre que
possível há de ser compreendida não como singelo conselho ao legislador
ordinário, como se o dispositivo constitucional dissesse simplesmente “se for
possível, obedeça à capacidade contributiva”. Ao invés, a norma é imperativa e
parece dizer “obedeça à capacidade contributiva sempre, com exceção daqueles
casos em que isto não seja realmente possível”.121
Por isso, a capacidade contributiva, na qualidade de princípio,
apresenta:
120 Substituição tributária: antecipação do fato gerador, p. 74. 121 Para a análise do termo “sempre que possível”, consultem-se Marco Aurelio Greco, Contribuições: uma figura “sui generis”, p. 186/190; Roque Antonio Carrazza, Curso de direito constitucional tributário, p. 90/94; e Klaus Tipke e Douglas Yamashita, Justiça fiscal e capacidade contributiva, p. 52/53.
– um aspecto positivo, como algo que a Constituição Federal
determina que seja concretizado; direciona, portanto, a atividade do
legislador e
– um aspecto negativo, no que concerne ao controle da
constitucionalidade das leis instituidoras de tributos, de forma tal que
se houver tributação onde não houver capacidade contributiva, a
respectiva lei padecerá de inconstitucionalidade, por violação ao
parágrafo primeiro do artigo 145, como havíamos afirmado.
2.6 Aplicabilidade da capacidade contributiva aos tributos
Embora o dispositivo constitucional utilize a palavra impostos, a
defesa da capacidade contributiva da forma e na extensão como vimos
estruturando obriga-nos a considerá-la aplicável a todos os tributos e não apenas
aos impostos. Ora, se o parágrafo primeiro do artigo 145 é um princípio e se há ali
um valor prestigiado pelo Sistema, que a Constituição obriga ser concretizado
pelo legislador, acreditamos que o comando normativo dali emanado deva
irradiar-se por sobre todo o Sistema Tributário Nacional, em suas várias dobras e
diversas possibilidades, inclusive sobre as demais espécies tributárias.
Ainda que este não seja o momento adequado para o
aprofundamento do tema, julgamos que a própria natureza da capacidade
contributiva – aliada ao fato de se exteriorizar no sistema como um princípio –
leva à sua aplicabilidade às várias espécies tributárias, salvo se isto não for
materialmente possível,122 de modo que a busca pela distribuição razoável da
122 José Marcos Domingues de Oliveira afirma que “Quer se pense, portanto, no princípio como pressuposto da tributação quer enquanto critério de graduação do tributo, não se poderá conceber um sistema tributário apenas ‘parcialmente’ adequado à capacidade contributiva, ou seja, com somente certo tipo de tributo respeitando a Ordem Constitucional e outros não...” (Direito tributário: capacidade contributiva, p. 78).
carga tributária e a efetivação da justiça fiscal exigem que o dito princípio possa
referir-se ao Sistema Tributário Nacional em sua inteira unidade estrutural.
Da própria Constituição Federal podemos extrair hipóteses que
parecem amparar nosso raciocínio, como, por exemplo, quando o artigo 195,
inciso I, alíneas b e c, elege como materialidade das contribuições sociais ali
previstas a receita ou o faturamento e o lucro, elementos claramente indicadores
de capacidade contributiva. Também o parágrafo 9º. do referido artigo 195,
quando determina que “As contribuições sociais previstas no inciso I deste artigo
poderão ter alíquotas ou bases de cálculo diferenciadas, em razão da atividade
econômica ou da utilização intensiva de mão-de-obra”, revela a possibilidade de
dimensionamento da imposição tributária, em inequívoca aplicação da capacidade
contributiva.
No que se refere às taxas, também elas submetem-se à observância
do princípio da capacidade contributiva, pois, em que pese o seu caráter
retributivo ou remuneratório, por força do qual o valor da taxa deva corresponder
razoavelmente ao custo da atividade estatal dirigida ao contribuinte, nem por isso
a fixação de seu valor encontra-se liberada da observância do aludido princípio,
quer em seu aspecto positivo (na fixação do valor da taxa), quer no negativo (pois
um valor demasiadamente alto, desatrelado do custo da atividade estatal, pode
fazer com que a taxa se revele inconstitucional).
2.7 Limites indicados pela capacidade contributiva
Numa espécie de representação gráfica da capacidade contributiva,
podemos localizá-la no intervalo compreendido entre duas linhas horizontais,
inferior e superior; a linha inferior a representar o limite mínimo, abaixo do qual
não há capacidade contributiva e, portanto, a norma de incidência não pode ali
chegar; acima dessa linha inferior começa a área onde há a mencionada
capacidade e ali estão presentes os fatos reveladores de riqueza (fatos-signos
presuntivos de riqueza), achando-se neste campo os pressupostos de fato que
podem ser alcançados pelo legislador para fins de instituição de tributos.
Neste espaço, inclusive, a capacidade contributiva também pode
atuar como elemento dimensionador do tributo, pela utilização de alíquotas
diferenciadas ou progressivas, e também como instrumento viabilizador da
concretização do primado da igualdade, tratando-se desigualmente os desiguais,
impondo maior ônus tributário a alguns e menor a outros.
A mencionada área estende-se até a linha superior, que representa
o limite máximo da capacidade contributiva, isto é, o ponto em que ela termina;
acima dessa linha ingressa-se no terreno do efeito confiscatório, no qual a lei
tributária sofre o repúdio do ordenamento jurídico, incidindo na espécie o
comando normativo do artigo 150, inciso IV, da Constituição Federal, afirmação
que nos leva ao próximo tema.
3. Princípio da vedação do efeito confiscatório
A afirmação do parágrafo anterior é conhecida na doutrina e
demonstra mesmo a estreita relação entre o princípio da capacidade contributiva
e o da vedação do efeito confiscatório, como o reconhece KLAUS TIPKE ao
afirmar que “a capacidade contributiva termina, de todo modo, onde começa o
confisco que leva à destruição da capacidade contributiva”. 123 Por sua vez,
ROQUE ANTONIO CARRAZZA menciona que “as leis que criam impostos, ao
levarem em conta a capacidade econômica dos contribuintes, não podem
compeli-los a colaborar com os gastos públicos além de suas possibilidades.
Estamos vendo que é confiscatório o imposto que, por assim dizer, ‘esgota’ a
riqueza tributável das pessoas, isto é, não leva em conta suas capacidades
contributivas”.124
Como é notório, o princípio ao qual agora nos referimos, previsto na
Constituição Federal, no artigo 150, inciso IV, também não escapa das
dificuldades quanto ao seu conteúdo conceitual, uma vez que a Carta Política não
o define, não determina o que seja um efeito de confisco nem qual o limite para
aferi-lo. Ademais, a presença de uma tal definição no próprio Texto Constitucional
implicaria muito provavelmente o amesquinhamento do alcance do comando
normativo para cada caso concreto. Também nesta matéria, podemos adiantar, a
constatação do efeito confiscatório somente é possível diante do caso concreto, o
que nos remete a uma de nossas premissas, consistentes na adoção da tópica
jurídica, segundo a qual partimos do fato (do problema) e vamos ao sistema
jurídico para interpretar a lei, no momento mesmo de sua aplicação.
No que se refere ao confisco, REGINA HELENA COSTA entende-o
como “a absorção total ou substancial da propriedade privada, pelo Poder
Público, sem a correspondente indenização”. 125 Por seu turno, ESTEVÃO
HORVATH leciona que “independentemente da presença expressa do princípio
123 Apud Estevão Horvath, O princípio do não-confisco no direito tributário, p. 76. 124 Curso de direito constitucional tributário, p. 89. 125 Princípio da capacidade contributiva, p. 79.
que veda o confisco, o tributo criado com violação ao direito de propriedade é
confiscatório pela simples ofensa a este último. Aqui, ambos os princípios
mencionados coincidem em efeitos”.126 Para IVES GANDRA DA SILVA MARTINS
“Não é fácil definir o que seja confisco, entendendo eu que, sempre que a
tributação agregada retire a capacidade de o contribuinte se sustentar e se
desenvolver (ganhos para suas necessidades essenciais e ganhos superiores ao
atendimento destas necessidades para reinvestimento ou desenvolvimento),
estar-se-á perante o confisco”.127
A vedação ao efeito confiscatório, em última análise, prestigia o
direito de propriedade garantido constitucionalmente, uma vez que, havendo
supressão parcial ou total da propriedade sem autorização constitucional,
materializado estará o confisco.
3.1 Confisco e direito de propriedade
O direito de propriedade é garantido pela Constituição Federal no
artigo 5º, inciso XXII, onde se lê “é garantido o direito de propriedade”, e também
no artigo 170, inciso II, de seguinte teor: “A ordem econômica, fundada na
valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos
existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes
princípios: ... propriedade privada”.
O confisco, por sua vez, como exceção à garantia do direito
propriedade, é admitido pela Carta Magna, a título de pena, no artigo 5º, inciso
126 O princípio do não-confisco no direito tributário, p. 44. 127 Comentários à Constituição do Brasil, vol. 6, tomo I, p. 161.
XLV, com a seguinte redação: “nenhuma pena passará da pessoa do condenado,
podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens
ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executados, até o
limite do valor do patrimônio transferido”, e ainda no inciso XLVI, alínea b, de
seguinte dicção: “a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras,
as seguintes: ... perda de bens”.
Ora, se o tributo, por sua própria natureza e também pela definição
legal ofertada pelo artigo 3º do Código Tributário Nacional, não pode constituir
sanção de ato ilícito, parece evidente que não poderá ser utilizado a título de
confisco, ainda que indiretamente, quando a tributação tiver o efeito de confisco,
tender ao confisco, de modo que este ficará caracterizado quando não houver
autorização constitucional para sua instituição; ou, mesmo havendo esta, vier a
recair sobre fatos não reveladores de riqueza; ou, ainda, quando houver
desmedido dimensionamento da carga tributária.
Sobre a questão, aponta ESTEVÃO HORVATH que “ainda que se
possa extrair a proibição do confisco de outros princípios mais tradicionais e
expressos, a sua formulação no direito positivo pode propiciar-lhe um alcance
maior, ou pelo menos diferenciado com relação àqueles dos quais derivaria” e
que “a Lei Maior, ao preceituar que é vedado utilizar tributo com efeito
confiscatório, atribui a esta idéia – ou ao menos propicia interpretação –
peculiaridades que não estariam presentes com a simples previsão genérica da
vedação ao confisco”,128 podendo-se notar nas palavras do autor a preocupação
em salientar que a expressa positivação do princípio propicia relevante vertente
128 O princípio do não-confisco no direito tributário, p. 40.
interpretativa, que pode direcionar a atividade do aplicador da lei tributária e,
sobretudo, da Constituição Federal. Mais adiante, traçando uma linha paralela
com o artigo 6º, parágrafo 4º, inciso I, da Carta Política, ao analisar confisco e
efeito confiscatório, afirma que “Algo igual se passa aqui: parece mais abrangente
dizer que se proíbe a tributação com efeito confiscatório do que simplesmente
dizer que está vedado o confisco. Tem-se a sensação que, com a dicção
constitucional, o intérprete se sente mais à vontade para extrair que qualquer
tentativa, por mais sub-reptíca que seja, de exacerbar a tributação, aproximando-
a do confisco, ainda que parcial, tenderá a enquadrar-se na vedação
constitucional”.129
Como nos parece, por conviverem ambos – tributo e direito de
propriedade – no corpo normativo da Constituição, o direito de propriedade cede
passo diante da necessidade de rateio das despesas públicas, mas nem por isso
este último é menos prestigiado, tendo-se em vista que o princípio hospedado
pelo artigo 150, inciso IV, determina que, além de outros princípios constitucionais
tributários (legalidade, irretroatividade etc.), a tributação não pode ser de tal nível
que tenda a submeter a propriedade aos mesmos efeitos que o confisco
produziria, ampliando assim a garantia do direito de propriedade.
3.2 Tributo com efeito confiscatório
Se a Constituição Federal garante o direito de propriedade e
somente admite o confisco em hipótese excepcional (a título de pena), e se o
tributo, ainda que atinja a propriedade, não pode jamais revelar-se como pena,
129 O princípio do não-confisco no direito tributário, p. 41.
parece claro que o tributo em nada se identifique com o confisco. Nesse sentido,
tributo confiscatório, em termos rigorosos, seria aquele que viesse a anular, a
suprimir o direito de propriedade. Por exemplo, o Imposto Predial e Territorial
Urbano se exigido à alíquota de 100% (cem por cento), seria situação que
certamente não encontraria amparo no ordenamento jurídico.
Assim, o comando normativo do artigo 150, inciso IV não veda
propriamente o tributo confiscatório, porque tal figura não seria possível dado que
se revelaria como pena, como afirmamos. Na verdade, o alcance do dispositivo é
maior, pois trata-se de evitar que o tributo venha a causar aquilo que o confisco
causaria (supressão da propriedade), daí falar-se em efeito confiscatório.
Acerca do tema, FÁBIO BRUN GOLDSCHMIDT afirma que “não se
trata de afastar tão-somente a tributação que toma para o Fisco, confisca,
literalmente, a propriedade; trata-se sim de afastar, por inconstitucional, toda a
tributação que gera ‘efeito de confisco’, o que, parece-nos, ocorre num momento
bem anterior”.130 O conceito de efeito confiscatório está ligado à idéia de se
verificar, em cada caso concreto (considerando-se suas especificidades, a
espécie tributária envolvida e o contribuinte), qual o nível, qual a dimensão do
tributo, a fim de se saber em que medida a propriedade é atingida, tratando-se da
questão com a intermediação aplicativa dos postulados normativos da
razoabilidade e da proporcionalidade, para descobrir-se como agiu o legislador
infraconstitucional no exercício da competência tributária, ou seja, como cuidou
legislativamente daquela determinada parcela da realidade (pressuposto de fato
130 O princípio do não-confisco no direito tributário, p.49.
do tributo) por meio da edição de texto legal veiculador da instituição ou
majoração do tributo.
Nessa linha de raciocínio, cabe notar que o efeito confiscatório pode
fazer-se presente independentemente da intenção do legislador – aliás esta
pouca importa – por meio de distorções e deficiências causadas ao longo do
tempo no sistema tributário. O efeito confiscatório parece estar ligado ao tema do
abuso de direito ou desvio de finalidade, situação na qual há regularidade no
início dos acontecimentos, mas pode ocorrer o desvio no transcurso do tempo, de
forma que, salvo nos casos extremados (por exemplo, edição de lei que majore a
alíquota do IPTU para 90% do valor do imóvel), o efeito confiscatório acaba por se
materializar, paulatinamente, no curso temporal dos acontecimentos, por meio de
sucessivas alterações promovidas no sistema tributário, que redundam na
violação substancial da propriedade.
3.3 Verificação do efeito confiscatório e aplicabilidade a todos os tributos
Questão verdadeiramente difícil é a de se saber como identificar o
efeito confiscatório, isto é, qual o momento em que ele se concretiza e qual a
razão efetiva de seu aparecimento. Bastante interessante é a distinção formulada
por FÁBIO BRUN GOLDSCHMIDT quanto ao efeito de confisco em sentido
estrito. Para o autor, é “aquele que se verifica no tributo qualitativamente imposto
de forma regular e inatacável. Trata-se do uso qualitativamente legítimo do Poder
do Estado de instituir e arrecadar tributos, porém quantitativamente destrutivo. A
inconstitucionalidade aqui decorre do exagero no montante do tributo”.131 No que
concerne ao efeito de confisco em sentido amplo, o autor aponta que nesse
“conceito estaria compreendida toda a tributação que, enquadrada nos
pressupostos traçados no parágrafo inicial para a caracterização do efeito de
confisco, apresente-se inconstitucional. O sentido amplo, evidentemente,
compreende o sentido estrito e ainda se estende para alcançar outras hipóteses
de ofensa ao art. 150, IV, da Constituição, que não aquelas decorrentes do
simples abuso do poder de tributar”.132
A segunda hipótese parece ser mais facilmente verificável, pois à
medida que se detecte a ofensa a algum dispositivo constitucional, por vício
formal ou material presente na lei, surge o efeito confiscatório pela simples falta
de autorização constitucional para a exigência do tributo. O primeiro caso revela-
se mais complexo, pois o montante do tributo, embora regularmente instituído,
apresenta-se como quantitativamente excessivo, daí decorrendo as dificuldades
quanto à caracterização do referido efeito.
Questão relevante é a de sabermos se de efeito confiscatório é o
sistema tributário ou cada tributo isoladamente considerado. Atento à questão,
ESTEVÃO HORVATH indaga
“A partir de quando o sistema pode ser considerado confiscatório?
Esta indagação não constituiria nenhuma novidade, porquanto é a
mesma que se põe com referência a cada tributo isoladamente
observado: é difícil saber-se a partir de quando um tributo passa a
ter efeito confiscatório da mesma forma que o é detectar a presença
da confiscatoriedade no ‘sistema’. Contudo, outra questão afigura- 131 O princípio do não-confisco no direito tributário, p. 100. 132 O princípio do não-confisco no direito tributário, p. 101.
se-nos especialmente difícil de responder, qual seja: a admitir-se a
confiscatoriedade do sistema, a instituição ou a majoração de qual
tributo torna aquele confiscatório?”.133
A idéia de analisar o efeito confiscatório considerados todos os
tributos incidentes sobre o contribuinte e verificar qual o efeito que o novo tributo
causa, ou sua majoração e, em se constatando o mencionado efeito, declarar o
último tributo inconstitucional, parece razoável à primeira vista, mas esbarra na
questão da forma federativa do Estado brasileiro. Se cada esfera de governo
possui sua parcela da competência tributária e, portanto, é livre para instituir os
tributos que lhe cabem, como saber qual tributo deva ser excluso do sistema?134
Caso seja o último tributo, talvez este não seja significativo, e o sistema
permaneceria confiscatório; caso seja o mais gravoso, talvez na época de sua
instituição o sistema ainda não fosse confiscatório e, portanto, o culpado é outro
tributo. Assim, como regularizar a situação sem ferir a regra constitucional de
competência?
Porém, caso se considere cada tributo de forma isolada, pode-se
esvaziar a eficácia do princípio, uma vez que cada um deles pode estar fixado em
patamares razoáveis (assim não-confiscatórios), mas a carga tributária total talvez
se revele excessiva. De qualquer modo, como nosso propósito não é tratar do
princípio do não-confisco em si, mas apenas sublinhar sua relevância no trato dos
conceitos constitucionais, somos obrigados a deixar sem respostas as questões
levantadas, porque outros autores já delas se ocuparam de modo mais apropriado
e com maior profundidade.
133 O princípio do não-confisco no direito tributário, p. 82. 134 Cf. Estevão Horvath, O princípio do não-confisco no direito tributário, p. 85.
Por fim, desejamos deixar registradas três idéias. A primeira é a de
que o efeito confiscatório deve ser verificado em cada tributo e também
considerado o sistema tributário em sua totalidade.135
A segunda é a de que o princípio pode ser aplicado às cinco
espécies tributárias, a saber: impostos, taxas, contribuições de melhoria,
contribuições especiais e empréstimos compulsórios (considerando-se o
entendimento do Supremo Tribunal Federal), seja pelo desvio de poder (falta de
autorização constitucional), seja pelo montante elevado.
A terceira é a de que, na construção do conteúdo dos conceitos
constitucionais pelo legislador e pelo intérprete-aplicador da lei, há de se ter em
conta a capacidade contributiva, levando-a à máxima eficácia normativa, mas sem
esquecer a limitação imposta pela vedação do efeito confiscatório.
135 Estevão Horvath salienta que “A nós parece que o controle da constitucionalidade do sistema tributário deve ser efetuado de ambas as formas: individualmente, com relação a cada tributo, de acordo com as respectivas particularidades, e do sistema em seu conjunto, embora reconheçamos a especial dificuldade que este último encerra” (O princípio do não-confisco no direito tributário, p. 86).
CAPÍTULO 4
POSTULADOS NORMATIVOS
1. Definição de postulado normativo
Denominados pela doutrina, ora como princípios, ora como pautas
interpretativas ora como deveres a serem obedecidos na aplicação das normas
jurídicas, os postulados normativos podem ser considerados como metanormas,
ou seja, como normas que cuidam de outras normas, como normas cujo obeto é a
aplicação de outras normas jurídicas.
Como ensina HUMBERTO ÁVILA, “Esses deveres situam-se num
segundo grau e estabelecem a estrutura de aplicação de outras normas,
princípios e regras. Como tais, eles permitem verificar os casos em que há
violação às normas cuja aplicação estruturam”,136 de modo que só indiretamente
se poderia dizer que os postulados normativos foram violados, porque, a rigor,
foram as normas que deixaram de ser devidamente aplicadas.
136 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 80.
Cabe notar, desde logo, que o teor das considerações sobre tal tema
poderá variar segundo a classificação dogmática que se adote sobre os referidos
postulados, uma vez que há várias divergências doutrinárias sobre eles; portanto,
considerá-los normas jurídicas (princípios), ou metanormas, implica visualizá-los
positivados no ordenamento, no primeiro caso, ou presentes no ordenamento,
embora não positivados, no segundo.
A jurisprudência pátria, em especial a do Supremo Tribunal Federal,
em não poucas oportunidades menciona o princípio da razoabilidade e o princípio
da proporcionalidade, apontando-os como violados, mas não se aprofundando na
análise deles. Em alguns casos, podemos notar sua aplicação na solução de
casos concretos, ainda que a decisão não os mencione expressamente, como
ocorre, por exemplo, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 18.331, relator o
Ministro OROZIMBO NONATO:
“O poder de taxar não pode chegar à desmedida do poder de
destruir, uma vez que aquele somente pode ser exercido dentro dos
limites que o tornem compatível com a liberdade de trabalho,
comércio e da indústria e com o direito de propriedade. É um poder,
cujo exercício não deve ir até o abuso, o excesso, o desvio, sendo
aplicável, ainda aqui, a doutrina fecunda do ‘détournement de
pouvoir’. Não há que estranhar a invocação dessa doutrina ao
propósito da inconstitucinalidade, quando os julgados têm
proclamado que o conflito entre a norma comum e o preceito da Lei
Maior pode se acender não somente considerando a letra do texto,
como também, e principalmente, o espírito do dispositivo
invocado”.137
137 Publicado na Revista Forense, vol. 145, p. 164 e seguintes.
Há quem sustente que a proporcionalidade encontra fundamento
constitucional no princípio do devido processo legal, previsto no artigo 5º, inciso
LIV, da Constituição Federal, em sua face do substantive due process of law
(devido processo legal material), atinente à própria elaboração do texto normativo
e não em seu aspecto formal (procedural due process of law), portanto menos
ligado aos requisitos do processo legislativo em si, e mais ao próprio tratamento
dado pela lei à situação que pretende regular, que, dessa forma, não pode vir
marcada pelos tons da irrazoabilidade ou da desproporcionalidade.
GILMAR FERREIRA MENDES, por exemplo, que considera a
proporcionalidade como um princípio, referindo-se a determinada decisão da
Corte Suprema sobre direito eleitoral, afirma que “Portanto, o Supremo Tribunal
Federal considerou que, ainda que fosse legítimo o estabelecimento de restrição
ao direito dos partidos políticos de participar do processo eleitoral, a adoção de
critério relacionado com fatos passados para limitar a atuação futura desses
partidos parecia manifestamente inadequada e, por conseguinte, desarrazoada.
Essa decisão parece consolidar o desenvolvimento do princípio da
proporcionalidade como postulado constitucional autônomo que tem a sua sede
material na disposição constitucional sobre o devido processo legal (art. 5º, inciso
LIV)”.138
No texto do então Advogado-Geral da União, encontra-se referência
a outro acórdão do Supremo Tribunal Federal, no qual era discutida a validade do
teor de norma regulamentar limitadora da quantidade de cigarros em um maço ou
138 O princípio da proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: novas leituras, In: Repertório IOB de Jurisprudência, vol. 14, cad. 1, p. 366.
pacote. Nele se destaca passagem do voto do Ministro CELSO DE MELLO, que,
tratando da razoabilidade e da proporcionalidade, deixou consignado que
“... especialmente se considerar a jurisprudência constitucional do
Supremo Tribunal Federal que já assentou o entendimento de que
transgride o princípio do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV) –
analisado este na perspectiva de sua projeção material (substantive
due process of law) – a regra material que veicula, em seu conteúdo,
prescrição normativa qualificada pela nota da irrazoabilidade”.139
Como podemos notar, os postulados normativos irradiam-se sobre
diversos aspectos da atuação do Estado, inclusive sobre a atividade estatal de
produção legislativa, e encontra, por assim dizer, sua justificação dogmática em
diversos dispositivos constitucionais, em especial na dimensão do devido
processo legal material (substantive due process of law).
Seja como for, não pretendemos ingressar na análise da questão, ou
seja, se os postulados são positivados ou não; se são princípios jurídicos ou não,
mas, antes, apenas deixaremos assentado que, para os limites do presente
estudo, adotaremos a posição de HUMBERTO ÁVILA porque esta nos parece ser
bastante apropriada, e consideraremos os postulados normativos como situados
em plano distinto daquele em que se situam as normas jurídicas, uma vez que,
não se confundindo com elas, ordenam e estruturam sua aplicação. São, pois,
deveres estruturantes (expressão do mencionado professor) de aplicação das
normas, intimamente relacionadas, em conseqüência, com o tema da
interpretação dos textos normativos, decorrendo daí nossa opção metodológica
139 Suspensão da Segurança nº. 1320, Diário da Justiça de 14/04/99.
de tratar deles em momento antecedente àquele em que cuidaremos da questão
da interpretação.
Cabe notar que a forma de atuação dos postulados normativos é
diferente da dos princípios jurídicos, dado que estes se revelam finalísticos, isto é,
apontam para algo que o ordenamento deseja ver concretizado, consagram
valores que tenciona ver implementados no seio da sociedade por ele regulada,
ao passo que, nas palavras de HUMBERTO ÁVILA, “os postulados, de um lado,
não impõem a promoção de um fim, mas, em vez disso, estruturam a aplicação
do dever de promover um fim; de outro, não prescrevem indiretamente
comportamento, mas modos de raciocínio e de argumentação relativamente a
normas que indiretamente prescrevem comportamentos. Rigorosamente, não se
podem confundir princípios com postulados”.140
Por tais razões, no que toca a uma possível definição de postulado
normativo, podemos entender que se trata de uma metanorma; de uma norma
que cuida da aplicação de outras normas; de um dever estruturante que
estabelece, como veremos, uma vinculação entre determinados elementos que
desempenham papel de critério de aferição da interpretação-aplicação das
normas jurídicas. Nas palavras mais precisas de HUMBERTO ÁVILA,
“Postulado, no sentido kantiano, significa uma condição de
possibilidade do conhecimento de determinado objeto, de tal sorte
que ele não pode ser apreendido sem que essas condições sejam
preenchidas no próprio processo de conhecimento. Os postulados
variam conforme o objeto cuja compreensão condicionam. Daí dizer-
se que há postulados normativos e ético-políticos. Os postulados
140 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 81.
normativos são entendidos como condições de possibilidade do
conhecimento do fenômeno jurídico. Eles, também por isso, não
oferecem argumentos substanciais para fundamentar uma decisão,
mas apenas explicam como pode ser obtido o conhecimento do
Direito”.141
2. Instrumento de auxílio na interpretação e na aplicação das normas
jurídicas
Em que pese o entendimento que considera os aludidos postulados
normativos – sobretudo os da razoabilidade e da proporcionalidade – como
princípios jurídicos, pensamos, com a devida vênia, revelar-se mais apropriado
não considerá-los como princípios, tampouco como regras jurídicas. Não os
tomamos como princípios porque não apontam para algo que se deseja ver
implantado na sociedade, não apontam para valores a serem materializados no
do processo de concretização do direito, como é próprio dos princípios; e também
não os consideramos regras porque não regulam direta e expressamente
condutas, não determinam comportamentos.
De nosso ponto de vista, são elementos que tratam da interpretação-
aplicação das normas jurídicas (princípios e regras), aplicáveis, portanto, no
momento da resolução do caso concreto, considerando a simultânea
interpretação do texto normativo e do fato, daí porque nos parece que os
postulados normativos são instrumentos de auxílio na interpretação e na
aplicação das normas jurídicas; são meios postos à disposição do intérprete para
141 Repensando o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular. Revista Trimestral de Direito Público, vol. 24, p. 161/162.
melhor efetivação do conhecimento e aplicação do ordenamento jurídico; enfim,
são pautas interpretativas.
Embora certamente não nos pareça desarrazoado buscar seu
fundamento positivo no devido processo legal material, queremos acreditar que,
rigorosamente falando, os postulados normativos não são, por assim dizer,
fisicamente encontráveis no ordenamento jurídico, mas dele defluem por uma
exigência lógico-cognitiva; exsurgem da própria condição estrutural do
ordenamento. Esta é a afirmação de HUMBERTO ÁVILA ao fazer menção
específica ao postulado da proporcionalidade, porque “ele não pode ser deduzido
ou induzido de um ou mais textos normativos, antes resulta, por implicação lógica,
da estrutura das próprias normas jurídicas estabelecidas pela Constituição
brasileira e da própria atributividade do Direito”;142 e também de LUÍS VIRGÍLIO
AFONSO DA SILVA, que entende que a busca de uma fundamentação jurídico-
positiva, referindo-se à proporcionalidade, revela-se infrutífera e que a exigência
de sua aplicação “para a solução de colisão entre direitos fundamentais não
decorre deste ou daquele dispositivo constitucional, mas da própria estrutura dos
direitos fundamentais”.143
Quando mencionamos que os postulados normativos decorrem da
condição estrutural do ordenamento jurídico, pensamos sobretudo em sua
unicidade e sistematicidade, vale dizer, estamos tomando por base a premissa
cognitiva e interpretativa de que o ordenamento é uno, incindível em sua
compostura (sem prejuízo da possibilidade de dividi-lo para fins didáticos),
142 A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade. Revista de Direito Administrativo, vol. 215, p. 153. 143 O proporcional e o razoável, Revista dos Tribunais, vol. 798, p. 43.
somada à sua consideração sistemática, como algo formado por um repertório
composto de elementos (no caso as normas jurídicas) e por regras estruturais que
fornecem a relação existente entre os referidos elementos, formando um conjunto
articulado de sentido, algo no qual se reconhece uma coerência interna. Ora,
desde que tal condição, que chamamos de premissa cognitiva e interpretativa,
seja aceita, não nos parece difícil visualizar o aparecimento lógico dos postulados
normativos como pautas interpretativas, como elementos regentes do processo
de interpretação do ordenamento, pois a razoabilidade, a proporcionalidade, a
proibição do excesso e ainda outros revelam-se verdadeiras condições de
possibilidade da interpretação e aplicação das normas jurídicas.
Em outras palavras, ao se atribuir ao ordenamento jurídico a
característica de sistema – e parece-nos difícil fugir de tal premissa – não há
como conceber qualquer interpretação que dele se faça sem um mínimo de
consideração pelas diretrizes fornecidas pelos postulados normativos, para se
evitarem incongruências, distorções de sentido das normas jurídicas ou mesmo
sua aplicação de forma desmedida em relação ao caso concreto.
O mínimo que se espera de uma interpretação-aplicação das
normas é que haja congruência entre o seu comando normativo e a situação
específica que a norma objetiva regular, portanto, uma vinculação apropriada com
a realidade regulada, o que não ocorre, por exemplo, quando se pretende que o
Estado pague adicional de férias de um-terço para servidores inativos, uma vez
que estes não têm direito a férias (postulados da razoabilidade);144 quando se
pretende fazer prevalecer uma elevação da taxa judiciária da ordem de oitocentos
144 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 98.
por cento, que não pode ser aceita porque impediria o acesso de parcela dos
cidadãos à prestação jurisdicional (postulado da proibição do excesso); 145 e,
ainda, quando se pretende a obrigatoriedade da pesagem de botijões de gás à
vista do consumidor que, embora possa ser medida apta à proteção deste,
poderia trazer excessivo ônus às empresas envolvidas e, ademais, a garantia dos
direitos dos consumidores poderia ser promovida por outro meio que se revelasse
menos restritivo de direitos (postulado da proporcionalidade).146 O que se nota
nesses exemplos é que os postulados normativos direcionam a interpretação dos
textos legais e conduzem a aplicação das normas jurídicas para contemplar as
especificidades de cada situação fática.
Para os limitados fins do presente estudo, portanto, interessa-nos
menos cuidar das diversas denominações atribuídas aos postulados normativos
pela doutrina e pela jurisprudência, e mais deixar fixada a idéia da necessidade
de sua aplicação como decorrência lógico-estrutural do ordenamento jurídico, e
realçar a função que desempenham como valiosos instrumentos de auxílio na
interpretação e na aplicação das normas jurídicas. Cabe notar que o estudo dos
postulados normativos não exige do intérprete-aplicador do direito uma atividade
de verificação de subsunção, mas “a ordenação e a relação entre vários
elementos (meio e fim, critério e medida, regra geral e caso individual) e não um
mero exame de correspondência entre a hipótese normativa e os elementos de
fato”, como afirma HUMBERTO ÁVILA.147
145 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 90. 146 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 115. 147 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 81/82.
3. Espécies de postulados normativos
Como foge ao escopo deste trabalho um rigoroso estudo sobre os
postulados normativos, mas apenas deles tomar conhecimento e utilizá-los como
subsídios para um melhor processo interpretativo do ordenamento, nós nos
ocuparemos agora em verificar, em breves linhas, quais as principais espécies de
postulados e suas características mais relevantes. Adotamos a classificação
proposta por HUMBERTO ÁVILA, que os divide em postulados inespecíficos e
postulados específicos, e aponta como exemplos da primeira espécie a
ponderação, a concordância prática e a proibição de excesso e, como da
segunda, a igualdade, a razoabilidade e a proporcionalidade.
Deve-se notar que tal classificação evidentemente não exclui a
possibilidade de se considerarem outros postulados normativos como elementos
do conhecimento jurídico. Mencionando o próprio autor, em trabalho anterior,148 o
postulado da coerência, segundo o qual o conhecimento da norma jurídica tem
como pressuposto o do sistema jurídico; o postulado da integridade, pelo qual só
é possível conhecer a norma pela análise simultânea do fato e a descrição dos
fatos dá-se com o apoio dos textos normativos; e o postulado da reflexão, pelo
que só é possível conhecer a norma jurídica tendo-se em vista uma pré-
compreensão do intérprete (uma expectativa sobre a solução do caso concreto),
uma vez que o texto normativo sem a hipótese fática não se revela problemático,
e a hipótese, por sua vez, somente aparece com o texto normativo.
148 Repensando o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular. Revista Trimestral de Direito Público, vol. 24, p.162.
4. Postulados normativos inespecíficos
Como adiantamos, os chamados postulados normativos
inespecíficos são a ponderação, a concordância prática e a proibição de excesso,
e são assim designados porque podem ser aplicados independentemente dos
elementos que são objeto de relacionamento, ou seja, os elementos e os critérios
não são específicos, não são indicados, revelando-se, pois, indeterminados.
Como aponta HUMBERTO ÁVILA, nesses casos “os postulados
normativos exigem o relacionamento entre elementos, sem especificar, porém,
quais são os elementos e os critérios que devem orientar a relação entre eles”,149
sendo, portanto, idéias gerais desprovidas de critérios orientadores da aplicação.
4.1 Ponderação
No dizer de HUMBERTO ÁVILA, a “ponderação de bens consiste
num método destinado a atribuir pesos a elementos que se entrelaçam, sem
referência a pontos de vista materiais que orientem esse sopesamento”, 150
podendo-se falar, assim, na ponderação de bens, de valores, de interesses,
devendo-se notar, entretanto, a necessidade de estruturação da ponderação em
critérios previamente determinados, sob pena de reduzida utilidade.
O autor menciona os bens jurídicos como situação, estados ou
propriedades fundamentais para a realização dos princípios jurídicos, como a
liberdade de escolha e a autonomia, como bens jurídicos protegidos pelo princípio
da livre iniciativa. Os interesses são os bens jurídicos quando relacionados a
149 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 85. 150 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 86.
algum sujeito que os pretenda obter, como a liberdade e a autonomia que, sob
certas circunstâncias fáticas, podem ser objeto de fruição por determinada
pessoa, passando assim a fazer parte de sua esfera de interesses. Por sua vez,
os valores, como informadores do conteúdo axiológico das normas jurídicas, são
algo que deva ser buscado, implementado ou protegido, como a liberdade, e
todos esses elementos que se revelam passíveis de constituir objeto de
ponderação em cada caso concreto.151
Para a fixação dos critérios da ponderação, o mencionado autor
aponta três etapas fundamentais, quais sejam, a preparação da ponderação, a
realização da ponderação (com ênfase na fundamentação da relação
estabelecida entre os elementos sopesados) e a reconstrução da ponderação e
confere especial atenção ao papel dos princípios constitucionais e às regras de
argumentação construídas com base neles.152
4.2 Concordância prática
Se a ponderação indica um dever estruturante que consiste na
atribuição de peso aos elementos envolvidos em cada caso (sopesamento de
bens, valores etc.), a concordância prática, por seu turno, sugere certo
direcionamento a ser seguido na tarefa de ponderação, qual seja, “o dever de
realização máxima de valores que se imbricam”.153
Naqueles casos concretos em que se pode observar a presença
simultânea de princípios constitucionais que apontam para sentidos contrários, 151 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 87. 152 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 87/88. 153 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 88.
vale dizer, de princípios que hospedam valores conflitantes entre si – e que, não
obstante tal conflito, são ao mesmo tempo aplicáveis à espécie – como, por
exemplo, princípios que protegem o contribuinte e princípios que informam os
poderes do Estado, o postulado da concordância prática sinaliza que a necessária
composição entre eles, a ser feita no caso concreto, deverá dar-se para protegê-
los ao máximo.
Em outros termos, a prevalência de um ou outro princípio no caso
concreto haverá de obedecer a um certo equilíbrio que não implique desprestígio
demasiado àquele que foi preterido, isto é, a concordância entre os
princípios/valores entrelaçados há de ser de tal ordem equilibrada e razoável, que
permita, até o limite das possibilidades fáticas, a proteção de ambos os elementos
que se revelam conflitantes.
Certamente não ignoramos o acentuado grau de abstração do
postulado, que não chega a apontar quais critérios formais ou materiais devem
ser utilizados para sua utilização, residindo aí a razão de sua designação como
inespecífico, mas devemos reconhecer que nem por isso ele perde possibilidade
de aplicação no caso concreto. Como exemplo, citamos o caso do planejamento
tributário baseado no princípio da livre iniciativa econômica e no direito de
propriedade, prestigiados pela Constituição Federal no artigo 170, em conflito com
a exigência da função social da propriedade, também constante do artigo 170,
que impõe limites ao planejamento tributário.
4.3 Proibição do excesso
A proibição do excesso, como o próprio termo antecipa, traz consigo
a idéia de limite e, como tal, por vezes pode confundir-se com uma das faces da
proporcionalidade ou mesmo com o postulado da concordância prática. Todavia
refere-se especificamente a uma restrição – que se revele excessiva – a algum
direito fundamental, e indica que a concretização dos princípios constitucionais
exigida pelo ordenamento não pode implicar a limitação excessiva dos direitos
fundamentais envolvidos.
Consoante afirmado por HUMBERTO ÁVILA, “A realização de uma
regra ou princípio constitucional não pode conduzir à restrição a um direito
fundamental que lhe retire um mínimo de eficácia. Por exemplo, o poder de
tributar não pode conduzir ao aniquilamento da livre iniciativa”,154 de modo que,
como dissemos, o prestígio a um dos valores envolvidos (o poder estatal de exigir
tributos – competência tributária) não pode resultar no desprestígio total ao outro
valor (proteção da propriedade privada). Como outro exemplo, tem-se o
afastamento da pretensão de se estabelecerem rigorosos critérios de fiscalização
e controle sobre as atividades dos contribuintes, impedindo-os de adquirirem
selos ou estampilhas, medida que resultaria no esvaziamento de um seu direito
fundamental, qual seja, a livre iniciativa econômica e empresarial.
Nestes exemplos e em outros que poderiam ser apontados não se
discute a necessidade de adequação das medidas adotadas pelo Poder Público e
de seus eventuais motivos justificados, mas que, qualquer que seja a medida
adotada, ela não poder causar restrição excessiva a nenhum direito fundamental
154 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 89.
envolvido, daí tratar-se do postulado em tela como limite a ser observado na
hipótese concreta.
5. Postulados normativos específicos
Os postulados normativos específicos são assim chamados em
virtude da presença de critérios determinados que permitem sua aplicação, quais
sejam, a igualdade (com os elementos sujeitos, critério de discrímen e finalidade);
a razoabilidade (geral e individual, norma e realidade, critério e medida) e
proporcionalidade (meio e fim).
Por tal razão, “Nessas hipóteses os postulados normativos exigem o
relacionamento entre elementos específicos, com critérios que devem orientar a
relação entre eles”.155
5.1 Igualdade
O preceito da isonomia também pode ser considerado um postulado
normativo aplicativo. Com efeito, a igualdade pode desempenhar a função de
regra jurídica, determinando a proibição de tratamento revelador de discriminação
indevida; pode ser tomada como princípio jurídico, na medida em que estabeleça,
por meio do fim a ser promovido, um estado igualitário; e ainda pode revestir-se
da qualidade de postulado normativo, propiciando a interpretação e aplicação de
normas jurídicas em função de certos elementos, do critério adotado para a
diferenciação e da finalidade justificadora da distinção, bem como da relação
155 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 86.
havida entre eles, isto é, a necessária congruência de critério em razão da
finalidade.156
Para tratar-se da questão da igualdade e de sua concretização, é
fundamental a indagação acerca do fim que fundamenta a diferenciação; qual o
tratamento diferenciado dado pelo texto normativo; qual o critério adotado para a
adoção da discriminação e, ainda, se existe relação lógica entre o critério e a
diferenciação.
Nas palavras de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, “Tem-
se que investigar, de um lado, aquilo que é adotado como critério discriminatório;
de outro lado, cumpre verificar se há justificativa racional, isto é, fundamento
lógico, para, à vista do traço desigualador acolhido, atribuir o específico
tratamento jurídico construído em função da desigualdade proclamada.
Finalmente, impende analisar se a correlação ou fundamento racional
abstratamente existente é ‘in concreto’, afinado com os valores prestigiados no
sistema normativo constitucional”.157
Embora se afirme constantemente que a igualdade pode desdobrar-
se em igualdade na lei, referente ao tratamento normativo das pessoas e
situações dados pelo legislador, e igualdade perante a lei, relativa ao momento de
aplicá-la ao caso concreto, é evidente que o princípio da igualdade não significa
tratar todos de maneira igual nem faria sentido tal pretensão, uma vez que é
característica das normas a discriminação, vale dizer, toda norma jurídica é
discriminatória na medida em que separa aquilo que fica sob seu alcance daquilo
156 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 93. 157 O conteúdo jurídico do princípio da igualdade, p. 27/28.
que permanece fora dele. Como acentua CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE
MELLO, “Como as leis nada mais fazem senão discriminar situações para
submetê-las à regência de tais ou quais regras – sendo esta mesma sua
característica funcional – é preciso indagar quais as discriminações juridicamente
intoleráveis”.158
Tal característica já fora vislumbrada por HANS KELSEN com as
seguintes palavras:
“A igualdade dos indivíduos sujeitos à ordem jurídica, garantida pela
Constituição, não significa que aqueles devam ser tratados por
forma igual nas normas legisladas com fundamento na Constituição,
especialmente nas leis. Não pode ser uma tal igualdade aquela que
se tem em vista, pois seria absurdo impor os mesmos deveres e
conferir os mesmos direitos a todos os indivíduos sem fazer
quaisquer distinções, por exemplo, entre crianças e adultos, sãos de
espírito e doentes mentais, homens e mulheres. Quando na lei se
vise a igualdade, a sua garantia apenas pode realizar-se estatuindo
a Constituição, com referência a diferenças completamente
determinadas, como talvez as diferenças de raça, de religião, de
classe ou de patrimônio, que as leis não podem fazer acepção das
mesmas, quer dizer: que as leis em que forem feitas tais distinções
poderão ser anuladas como inconstitucionais”.159
Portanto o ponto central para se tratar da igualdade repousa na
análise do critério diferenciador adotado e na sua necessária relação com a
finalidade que fundamenta o tratamento diferenciado, de forma que as pessoas ou
as situações podem ser tratadas de modo igual ou desigual em razão de um
determinado critério de discriminação. Como exemplo, duas pessoas podem ser
158 O conteúdo jurídico do princípio da igualdade, p. 16. 159 Teoria pura do direito, p. 158.
tratadas desigualmente em função do critério do sexo, na hipótese de um
concurso público que pretenda selecionar profissionais para efetuar revista
corporal em pessoas que venham a entrar em determinada repartição pública, de
sorte que não viola a isonomia a reserva de certo número de vagas para
mulheres, que serão encarregadas de revistar outras mulheres, tarefa que não
poderia ser delegada aos homens. Em outro caso, duas pessoas podem ser
tratadas desigualmente segundo critérios da idade para fins do exercício de direito
ao voto, se uma delas tiver alcançado a maioridade e a outra não.
Outro exemplo que nos chama a atenção é a regra legal que
determina a necessidade de depósito em dinheiro ou o arrolamento de bens como
condições de interposição de recurso para a segunda instância, em sede de
processo administrativo tributário (Decreto nº 70.235, de 06 de março de 1972,
artigo 33). Neste caso, a finalidade da regra desigualadora é decidir quem tem
direito a uma segunda decisão no processo administrativo e quem não o tem,
adotando-se como critério discriminatório a condição financeira de cada pessoa,
aos mais favorecidos, quanto ao poder econômico, o referido direito é
reconhecido e aos menos abastados tal direito é negado. Nesta hipótese,
queremos acreditar que há violação à igualdade, uma vez que, segundo nosso
entendimento, o critério de discriminação adotado – condição financeira das
pessoas – não guarda a necessária congruência lógico-racional com a finalidade
pretendida.
Podemos finalizar o presente item novamente com o ensinamento
de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, quando afirma o professor que “a
discriminação não pode ser gratuita ou fortuita. Impende que exista uma
adequação racional entre o tratamento diferençado construído e a razão
diferencial que lhe serviu de supedâneo. Segue-se que se o fator diferencial não
guardar conexão lógica com a disparidade de tratamento jurídicos dispensados a
distinção estabelecida afronta o princípio da isonomia”.160
5.2 Razoabilidade
Tal como ocorre com a aplicação dos demais postulados normativos,
a razoabilidade também encerra dificuldades, primeiro, porque se trata de
conceito fluido; depois porque há em torno dela inúmeras divergências
terminológicas, uma vez que a doutrina e a jurisprudência não utilizam o termo
com o mesmo significado: por muitos é tratada como princípio e por outros como
sinônimo de proporcionalidade e faltam critérios para que se possa saber como os
termos foram empregados. Mesmo aqueles que a tratam como postulado
reconhecem a possibilidade de seu enquadramento na proibição de excesso ou
mesmo na proporcionalidade em sentido estrito. Como depende do enfoque
adotado, certamente não há denominação certa ou errada, e nossa intenção não
é dirimir a controvérsia terminológica, uma vez que fugiria dos limites deste
trabalho.
Como afirma WEIDA ZANCANER, “A doutrina ao se pronunciar
sobre o princípio da razoabilidade ora enfoca a necessidade de sua observância
pelo Poder Legislativo, como critério para reconhecimento de eventual
inconstitucionalidade da lei, ora o apresenta como condição de legitimidade dos
160 O conteúdo jurídico do princípio da igualdade, p. 49.
atos administrativos, ora aponta sua importância para o Judiciário quando da
aplicação da norma ao caso concreto”.161
Também não nos preocupa em demasia buscar um fundamento
dogmático para ela, averiguar se é encontrada de forma expressa ou implícita no
ordenamento jurídico. Para certa doutrina, inspirada nos estudos de origem
alemã, a razoabilidade é inerente ao Estado de Direito e integra de modo implícito
o sistema normativo como um princípio constitucional não escrito. Para outra
parte, que recebe influência da doutrina norte-americana, ela pode ser extraída do
princípio do devido processo legal, de modo que a razoabilidade das leis é
exigível em virtude do aspecto material, isto é, do caráter substantivo do referido
princípio constitucional.162 Desejamos ressaltar, entretanto, que a razoabilidade
ou a necessidade de sua aplicação deflui do ordenamento jurídico e desempenha
o papel de pauta interpretativa, de critério de interpretação e aplicação do
sistema, devendo ser considerada em cada caso concreto.
Sua caracterização torna-se necessária, portanto, para evitar que o
postulado não resulte esvaziado de sentido, em virtude de seu alto grau de
abstração, e para que não seja tomado como mero recurso retórico. A noticiada
abstração ou indeterminação de seu significado não prejudica sua aplicação; ao
contrário, auxilia, pois permite considerar as especificidades de cada hipótese.
Começando pela fluidez de significação, podemos notar que são
usadas expressões como razoabilidade de uma alegação ou de uma
interpretação; razoabilidade da função legislativa; razoabilidade exigida como
161 Razoabilidade e moralidade: princípios concretizadores do perfil constitucional do estado social e democrático de direito, Revista Diálogo Jurídico, ano I, n. 9, p. 3. 162 Cf. Luís Roberto Barroso, Interpretação e aplicação da constituição, p.237.
forma de afastamento de condutas incoerentes, desprovidas de sensatez, ou
ainda que ela pressupõe equilíbrio, moderação, não-arbitrariedade, enfim. Com
isso, a razoabilidade certamente depende da premissa adotada e do ponto de
vista pelo qual é tratada. Ensina WEIDA ZANCANER que
“Em suma, um ato não é razoável quando não existiram os fatos em
que se embasou; quando os fatos, embora existentes, não guardam
relação lógica com a medida tomada; quando mesmo existente
alguma relação lógica, não há adequada proporção entre uns e
outros; quando se assentou em argumentos ou em premissas,
explícitas ou implícitas, que não autorizam do ponto de vista lógico,
a conclusão deles extraída.”163
Procuramos aqui ressaltar, sem prejuízo de outros passíveis de
consideração, dois de seus aspectos, quais sejam, a razoabilidade necessária na
própria elaboração dos textos normativos, ou seja, no modo de regular, em
abstrato, a conduta (na criação das leis, em sentido amplo); e a razoabilidade
necessária na interpretação e aplicação da norma jurídica, no processo mesmo
de concretização do direito.
Quanto ao primeiro aspecto, deve-se levar em consideração a
atuação do Estado na edição das leis, as circunstâncias concretas consideradas
como base, a fim de se verificar a propriedade com que foram tratadas pelo texto
legal. Trata-se de avaliar a qualidade da normalização produzida sobre aquela
parcela específica da realidade; quais os motivos ensejadores da norma jurídica;
quais os fins por ela almejados e quais os meios empregados para tanto,
conformando aquilo a que LUÍS ROBERTO BARROSO denomina razoabilidade
163 Razoabilidade e moralidade: princípios concretizadores do perfil constitucional do estado social e democrático de direito, Revista Diálogo Jurídico, ano I, n. 9, p. 4.
interna, ou seja, a “relação racional e proporcional entre seus motivos, meios e
fins” e de razoabilidade externa, como a “adequação aos meios e fins admitidos e
preconizados pelo Texto Constitucional”.164
Essa regulação da realidade com propriedade e pertinência, essa
aferição da razoabilidade certamente traz dificuldades sérias, uma vez que vai
além de um controle dito objetivo de constitucionalidade da lei, porque ingressa
na seara da comumente chamada discricionariedade do legislador ou liberdade
de conformação legislativa que, em princípio, não poderia ser objeto de controle
pelo Poder Judiciário. Aponta JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO que
“(i) Em primeiro lugar, a lei é tendencialmente uma função de
execução, desenvolvimento ou prossecução dos fins estabelecidos
na Constituição, pelo que sempre se poderá dizer que, em última
análise, a lei é vinculada ao fim constitucionalmente fixado; (ii) por
outro lado, a lei, embora tendencialmente livre no fim, não pode ser
contraditória, irrazoável, incongruente consigo mesma.
Nas duas hipóteses assinaladas, toparíamos com a vinculação do
fim da lei: no primeiro caso, a vinculação do fim da lei decorre da
Constituição, no segundo caso, o fim imanente à legislação imporia
os limites materiais da não contraditoriedade, razoabilidade e
congruência”.165
Este primeiro ponto que precisamos explicitar é tratado por
HUMBERTO ÁVILA de razoabilidade como congruência. Afirma ele que o
postulado “exige a harmonização das normas com suas condições externas de
aplicação”, isto é, em qualquer medida considerada, há de se verificar a
“recorrência a um suporte empírico existente”, de modo que há de se tomar a
164 Interpretação e aplicação da constituição, p. 226/227. 165 Apud Luís Roberto Barroso, Interpretação e aplicação da constituição, p. 231.
conduta regulada (ato, fato, situação, pessoa, etc.) para se verificar o modo como
foi normalizada, qual tratamento jurídico que lhe foi ofertado, a fim de se aferir a
razoabilidade – tendo-se em conta, como critério, os valores hospedados pelo
ordenamento, em especial pela Constituição Federal – e se apurar se, por acaso,
não foi eleita pelo legislador uma causa inexistente ou insuficiente para a atuação
estatal, isto é, se não foi violada a exigência de vinculação à realidade. Fala-se,
então, em dever de congruência e de fundamentação na natureza das coisas,
pois “desvincular-se da realidade é violar os princípios do Estado de Direito e do
devido processo legal”.166
No que concerne ao segundo aspecto, deve-se considerar a
razoabilidade necessária na aplicação da norma jurídica ao caso concreto,
tomando-se agora em conta o critério da decidibilidade, a fim de se saber se a
interpretação dada ao texto normativo obedece às exigências específicas do caso
concreto. Com tal afirmação, poder-se-ia notar que a razoabilidade poderia estar
presente no primeiro plano (na elaboração do texto legal), tendo a lei regulado de
modo coerente e razoável a realidade. Pode, entretanto, estar ausente no caso
concreto, em virtude de uma interpretação-aplicação menos autorizada do texto
legal, quer porque o caso pode revelar-se uma exceção à regra geral, quer
porque a interpretação construída desobedece aos princípios constitucionais
incidentes na hipótese e assim por diante.
Nesse sentido, HUMBERTO ÁVILA, naquilo que denomina de
razoabilidade como eqüidade, que exige a harmonização da norma geral com o
166 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 99.
caso individual, afirma que, em razão de eventuais especificidades, nem toda
norma incidente é aplicável e que
“Uma regra não é aplicável somente porque as condições previstas
em sua hipótese são satisfeitas. Uma regra é aplicável a um caso
se, e somente se, suas condições são satisfeitas e sua aplicação
não é excluída pela razão motivadora da própria regra ou pela
existência de um princípio que institua uma razão contrária”.167
Para deixar claro aquilo que procuramos demonstrar e como
aplicação prática de tais considerações, podemos mencionar três exemplos.
O primeiro refere-se a determinada lei estadual que criou adicional
de férias de um-terço para servidores inativos, cuja constitucionalidade foi levada
à apreciação do Supremo Tribunal Federal e este considerou indevido o aludido
adicional, uma vez que se tratava de vantagem pecuniária destituída de causa e,
por conseguinte, de razoabilidade, à medida que somente poderia auferir
adicional de férias aqueles que efetivamente gozam férias.168
O segundo, particularmente interessante, é o de uma fábrica de
sofás de pequeno porte, enquadrada como tal para fins de recolhimento conjunto
de tributos federais. Ela foi exclusa de tal regime jurídico por ter violado
determinada condição imposta pela lei, consistente em não efetuar a importação
de produtos estrangeiros. Ocorre que a empresa realizou uma operação de
importação: uma única importação e de apenas quatro pés de sofá. Tendo sido
exclusa do regime jurídico beneficiado, levou a questão a julgamento na esfera
administrativa, sede na qual a referida exclusão foi anulada, por violar a
167 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 97/98. 168 Ação Direta de Inconstitucionalidade, Relator Ministro Celso de Mello, decisão de medida liminar publicada no Diário da Justiça da União de 26.5.1995.
razoabilidade, em hipótese na qual se poderia considerar que a norma incidiu,
mas deixou-se de aplicar a conseqüência de sua incidência (exclusão do regime
tributário especial), porque a desobediência ao comportamento previsto como
obrigatório (não efetuar importação) não afetou a promoção do fim buscado pela
lei (estímulo da produção nacional).169
O terceiro exemplo é o de um concurso público que definiu como
critério de classificação dos candidatos a pontuação obtida em razão dos títulos
apresentados. Foi considerada válida neste particular, mas declarada não válida
no ponto em que estabeleceu a pontuação dos títulos também como critério de
aprovação ou reprovação, pela falta de razoabilidade de tal medida.170
Podemos notar que, no primeiro exemplo, a razoabilidade não é
observada no primeiro aspecto, isto é, no próprio tratamento normativo dado ao
fato, não havendo relação de congruência entre a lei e a realidade regulada, uma
vez que não há o menor sentido em se pretender pagar adicional de férias a
quem de férias não goza regularmente.
No segundo caso, o tratamento normativo parece razoável, uma vez
que lei proibiu a importação de produtos estrangeiros com o objetivo de privilegiar
a indústria nacional, estabelecendo tal proibição como condição necessária para o
gozo do benefício tributário. Não obstante, a aplicação da norma ao caso concreto
não se revestiu da mesma razoabilidade em virtude da exceção revelada pela
hipótese, dado que a importação levada a termo não foi significativa e, como tal,
não prejudicou o fim buscado pela norma jurídica.
169 Segundo Conselho de Contribuintes, Segunda Câmara, Processo nº. 13003.000021/99-14, Sessão de 18.10.2000. 170 Agravo de Instrumento nº. 194.188 (AgRg), Relator Ministro Marco Aurélio (RTJ 167:305).
No terceiro exemplo, ocorre o mesmo, considerando-se que a
pontuação obtida pela apresentação dos títulos, em concurso público, como
critério de classificação dos candidatos, pode coadunar-se com a razoabilidade,
mas dela distancia-se como critério de aprovação ou reprovação.
Dessa forma, embora conscientes das dificuldades de aplicação do
postulado da razoabilidade, em razão de sua abstração, acreditamos que buscar
a aplicação da razoabilidade não significa ceder passo ao subjetivismo, tampouco
pretender dar ao intérprete-aplicador da norma ampla liberdade de atuação,
porque este continua restrito aos limites do ordenamento. Trata-se de possibilitar
a sua melhor atuação no caso concreto e na construção da norma jurídica, como
salienta LUÍS ROBERTO BARROSO: “Inequivocamente, contudo, ele é uma
decorrência natural do Estado democrático de direito e do princípio do devido
processso legal. O princípio, naturalmente, não liberta o juiz dos limites e
possibilidades oferecidos pelo ordenamento. Não é de voluntarismo que se trata.
A razoabilidade, no entanto, oferece uma alternativa de atuação construtiva do
Judiciário para a produção do melhor resultado, ainda quando não seja o único
possível ou mesmo aquele que mais obviamente resultaria da aplicação acrítica
da lei”.171
5.3 Proporcionalidade
Finalmente, mas não menos relevante, o postulado normativo da
proporcionalidade, na qualidade de pauta interpretativa, pode desempenhar papel
de instrumento de controle dos atos emanados do Poder Público. Não escapa 171 Interpretação e aplicação da constituição, p. 245/246.
também, todavia, da variação terminológica, podendo por vezes assemelhar-se
ao postulado da razoabilidade uma vez que ambos evitam “a consumação do ato
socialmente iníquo e inaceitável, impõem a consideração de todas as nuances do
caso concreto submetido à regulação”, e podem ser considerados como
derivados da mesma raiz, embora não se confundam, como afirma HELENILSON
CUNHA PONTES.172
HUMBERTO ÁVILA ensina que a proporcionalidade é um “postulado
estruturador da aplicação de princípios que concretamente se imbricam em torno
de uma relação de causalidade entre um meio e um fim”,173 de tal modo que, sem
a presença de um quadro em que se possa visualizar um fim concreto a ser
atingido, um meio eleito para a sua consecução e uma relação de causalidade
entre eles, não é possível falar-se no exame da proporcionalidade. O fundamental
na análise da proporcionalidade é esta relação entre meio e fim, a medida
concreta para realizar determinada finalidade, considerando-se como fim um
resultado específico desejado pelo ato e como meio o instrumento eleito para
alcançá-lo; de forma que se possa buscar a realização do interesse público e
garantir, concomitantemente, a observância dos direitos fundamentais.
Aqui se pode notar novamente a questão da denominada liberdade
de conformação legislativa, mencionada no item antecedente, uma vez que se
trata de controlar nada menos que o próprio exercício da função normativa, tanto
do Poder Legislativo quanto do Poder Executivo, reconhecendo que esta, embora
comporte intrinsecamente um acentuado grau de liberdade, não é ilimitada, como
reconhece JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO 172 O princípio da proporcionalidade e o direito tributário, p. 87. 173 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 105.
“A Constituição, ao autorizar a lei a restringir direitos, liberdades e
garantias, de forma a permitir ao legislador a realização de uma
tarefa de concordância prática justificada pela defesa de outros bens
ou direitos constitucionalmente protegidos, impõe uma clara
vinculação ao exercício dos poderes discricionários do legislador.
Em primeiro lugar, entre o fim da autorização constitucional para
uma emanação de leis restritivas e o exercício do poder
discricionário por parte do legislador ao realizar esse fim deve existir
uma inequívoca conexão material de meios e fins”.174
Seja como for, a proporcionalidade, como pauta interpretativa a ser
aplicada sempre diante do caso concreto, permite, por um lado, a busca da
otimização da eficácia normativa dos princípios constitucionais (e dos valores
subjacentes) e, por outro, o respeito aos direitos fundamentais envolvidos na
hipótese, de modo que o prestígio àquela não leve à anulação destes.
O referido exame da relação entre meio e fim deve ser feito com
base em três aspectos, isto é, com base nos três elementos que compõem a
proporcionalidade, a saber: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade
em sentido estrito. Assim, devem ser analisadas “as possibilidades de a medida
levar à realização da finalidade (exame da adequação), de a medida ser a menos
restritiva aos direitos envolvidos dentre aquelas que poderiam ter sido utilizadas
para atingir a finalidade (exame da necessidade) e de a finalidade pública ser tão
valorosa que justifique tamanha restrição (exame da proporcionalidade em
sentido estrito)”, conforme acentua HUMBERTO ÁVILA.175
174 Direito constitucional e teoria da constituição, p. 453. 175 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 106.
5.3.1 Adequação
A adequação repousa na exigência de uma relação entre o meio e o
fim, consistente em que aquele deve ser apto a propiciar a realização deste, ou
seja, o legislador ou o administrador, ao editar determinado ato normativo, que,
por meio da regulação da conduta, busque alcançar determinado fim, encontra-se
obrigado a eleger um meio que se revele efetivamente apto para tanto. É
necessário considerar, portanto, se o meio eleito, se a medida normativa, se o
instrumento escolhido é capaz de realizar, pelo menos potencialmente, a
finalidade desejada; pode a análise ser feita em três aspectos: “Em termos
quantitativos, um meio pode promover menos, igualmente ou mais o fim do que
outro meio. Em termos qualitativos, um meio pode promover pior, igualmente ou
melhor o fim do que outro meio. E, em termos probabilísticos, um meio pode
promover com menos, igual ou mais certeza o fim do que outro meio”.176
Acerca da adequação, duas considerações parecem ser bastante
relevantes. A primeira é que seu exame envolve sempre um caso concreto e daí
as inúmeras variações e ocorrências que não podem ser previstas pelo legislador
e pelo administrador no momento da edição do ato normativo. Por isso, a aferição
da adequação do meio deve dar-se cercada de acentuados cuidados, sob pena
de subjetivismos intermináveis, diante dos quais praticamente todo e qualquer ato
poderia ser invalidado por inadequação, decorrendo de tal circunstância que o
Poder Legislativo e o Poder Executivo, dentro dos limites de liberdade que
176 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 109.
possuem, não estão obrigados a eleger sempre o melhor meio para promover o
fim, mas um meio apto para a promoção.177
A segunda é relativa ao tempo. Com efeito, as medidas normativas
podem revelar-se inadequadas desde o seu aparecimento no mundo jurídico,
desde o início, em razão de uma falha na previsão cometida pelo legislador ou
administrador, acerca da aptidão da medida para a realização do fim, hipótese na
qual a influência do tempo revela-se irrelevante.178 Não obstante, pode haver
casos nos quais o meio escolhido pode revelar-se inapto à promoção do fim no
futuro, embora se revestisse de tal aptidão no momento de sua edição normativa.
Abrem-se aqui duas hipóteses: a inaptidão do meio decorre de equívoco na
previsão do agente responsável pelo ato ou deriva de ocorrências posteriores à
referida edição e, como tais, imprevisíveis pelo agente.179
Em virtude de tais condicionantes, parece-nos mais apropriado, até
por medida de cautela e como forma de preservar a liberdade do legislador e do
administrador, que a análise da adequação seja feita considerando-se o
panorama circunstancial, as condições existentes no momento da edição do ato,
instante no qual o legislador pode pensar, averiguar, projetar razoavelmente a
aptidão do ato para gerar os efeitos pretendidos.
É de notar que essas duas características – a consideração do caso
concreto com suas especificidades e a influência do tempo – prestigiam a
separação dos poderes. Acentua HUMBERTO ÁVILA que “o princípio da
separação dos Poderes exige respeito à vontade objetiva do Poder Legislativo e 177 Cf. Humberto Ávila, Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 109. 178 Cf. Helenilson Cunha Pontes, O princípio da proporcionalidade e o direito tributário, p.66. 179 Cf. Helenilson Cunha Pontes, O princípio da proporcionalidade e o direito tributário, p. 66/67.
do Poder Executivo. A liberdade da Administração seria previamente reduzida se,
posteriormente à adoção da medida, o aplicador pudesse dizer que o meio
escolhido não era o mais adequado. Um mínimo de liberdade de escolha é
inerente ao sistema de divisão de funções”.180
5.3.2 Necessidade
O exame da necessidade supõe a consideração da existência de
meios alternativos ao escolhido e que possam igualmente promover o fim
almejado pelo ato normativo ou, em outros termos, “envolve duas etapas de
investigação: em primeiro lugar, o exame da igualdade de adequação dos meios,
para verificar se os meios alternativos promovem igualmente o fim; em segundo
lugar, o exame do meio menos restritivo, para examinar se os meios alternativos
restringem em menor medida os direitos fundamentais colateralmente
afetados”.181 Na mesma linha, HELENILSON CUNHA PONTES acentua, com
base na jurisprudência alemã, que “um meio é considerado necessário quando
nenhum outro, igualmente efetivo e que represente nenhuma ou menor limitação
a um direito fundamental, pudesse ter sido adotado pelo legislador”.182
A dificuldade neste caso está nos critérios de comparação dos meios
pois, entre dois ou mais meios, igualmente aptos à promoção do fim almejado, há
fatores como rapidez e lentidão, mais dispêndio e menos gastos, surgindo a
questão de se saber se a mencionada comparação deve ser feita entre todos os
180 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 109/110. 181 Cf. Humberto Ávila, Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 114. 182 O princípio da proporcionalidade e o direito tributário, p. 68.
aspectos ou somente entre alguns aspectos e, se entre alguns, quais devem ser
objeto de confronto.
Com efeito, são muitas as questões a considerarmos e a análise da
necessidade está longe de revelar-se tarefa simples mas, seja como for, o Poder
Judiciário não poderá formular um juízo sobre a oportunidade ou a conveniência
da medida legislativa ou administrativa, em virtude do grau de liberdade
(discricionariedade) de que gozam os agentes no exercício de suas funções, mas
sobre “a estrita necessidade da lesão ou limitação por ela geradas a bens
jurídicos constitucionalmente tutelados” quando houver outros meios aptos para o
alcance da finalidade desejada, com menor lesão aos referidos bens jurídicos.183
5.3.3 Proporcionalidade em sentido estrito
O terceiro elemento, a proporcionalidade em sentido estrito, pede a
comparação entre a relevância do fim pretendido e a intensidade da restrição aos
direitos fundamentais envolvidos no caso concreto. Segundo HUMBERTO ÁVILA,
a questão aqui é a seguinte: “o grau de importância da promoção do fim justifica o
grau de restrição causada aos direitos fundamentais? Ou, de outro modo: As
vantagens causadas pela promoção do fim são proporcionais às desvantagens
causadas pela adoção do meio? A valia da promoção do fim corresponde à
desvalia da restrição causada?”.184
A idéia de proporcionalidade em sentido estrito passa pela
comparação, pelo sopesamento entre a medida adotada (e o seu motivo, o
183 Cf. Helenilson Cunha Pontes, O princípio da proporcionalidade e o direito tributário, p. 69. 184 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 116.
interesse público, o fim buscado por ela) e o grau de atingimento do direito do
cidadão em virtude da adoção da aludida medida, devendo haver uma proporção
entre o fim almejado e a restrição ao direito envolvido.
Exemplo significativo de aplicação do postulado em tela é o caso em
que o Supremo Tribunal Federal decidiu pela inconstitucionalidade de certa lei
estadual que obrigava a utilização de balança especial para pesagem de botijões
de gás na presença do consumidor, hipótese na qual foram analisadas a
adequação do meio utilizado (obrigatoriedade da utilização de balança em cada
caminhão); o fim almejado pelo ato normativo (proteção dos consumidores) e o
grau de restrição ao direito envolvido (princípio da livre iniciativa). Embora o meio
eleito pudesse revelar-se capaz para a promoção do fim desejado (aspecto da
adequação), havia a possibilidade de utilização de outros instrumentos também
aptos ao alcance do fim e menos restritivos, como lacres ou selos (aspecto da
necessidade), e as desvantagens, como gastos com balanças e repasse dos
custos no preço, eram superiores às vantagens (maior controle do conteúdo dos
botijões). Nesse caso, considerou-se desatendido o postulado da
proporcionalidade.
CAPÍTULO 5
INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DO DIREITO
1. Pensamento sistemático e sistema jurídico
O denominado pensamento sistemático – decorrente da concepção
do ordenamento jurídico como sistema – ganha relevância com o surgimento do
chamado Estado Moderno. É usual no pensamento jurídico contemporâneo
associar o direito positivo à idéia de uma ordem sistemática.
TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR ensina que sobretudo a partir
do Renascimento, momento em que o direito perde progressivamente seu caráter
sagrado, ocorre, por assim dizer, o refinamento da interpretação dos textos legais,
com a adoção de um novo paradigma, pois a sociedade passa a exigir soluções
técnicas para seus conflitos.185
185 Afirma o autor: “É nesse momento que surge o temor que irá obrigar o pensador a indagar como proteger a vida contra a agressão dos outros, o que entreabre a exigência de uma organização racional da ordem social. Daí, conseqüentemente, o desenvolvimento de um pensamento jurídico capaz de certa neutralidade, como exigem as questões técnicas, conduzindo
O mencionado professor da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, ao mencionar a origem etimológica do termo, aponta que “A palavra
sistema, etimologicamente do grego systema, provém de syn-istemi e significa o
composto, o construído. Na sua significação mais extensa, o conceito aludia, de
modo geral, à idéia de uma totalidade construída, composta de várias partes. O
uso posterior configurou, porém, uma compreensão mais restrita. Conservando a
conotação originária de conglomerado, a ela agregou-se o sentido específico de
ordem, de organização”.186
Por sua vez, NORBERTO BOBBIO, ao estudar a coerência do
ordenamento jurídico, formula a seguinte idéia: “Entendemos por ‘sistema’ uma
totalidade ordenada, um conjunto de entes entre os quais existe uma certa ordem.
Para que se possa falar de uma ordem, é necessário que os entes que a
constituem não estejam somente em relacionamento com o todo, mas também
num relacionamento de coerência entre si. Quando nos perguntamos se um
ordenamento jurídico constitui um sistema, nos perguntamos se as normas que o
compõem estão num relacionamento de coerência entre si, e em que condições é
possível essa relação”.187
Considerado em uma de suas possíveis acepções, o ordenamento
jurídico pode ser visto como um conjunto de normas válidas dentro de certo
território e determinada época, que tem por objetivo regular condutas humanas.
Tal conjunto de normas válidas, se tomado sob o enfoque sistemático, é tratado
como algo dotado de coerência interna de sentido – idéia determinante de sua
a uma racionalidade e formalização do direito. Tal formalização é que vai ligar o pensamento jurídico ao chamado pensamento sistemático” (Introdução ao estudo do direito, p. 66). 186 Conceito de sistema no direito, p. 9. 187 Teoria do ordenamento jurídico, p. 71.
forma de ser e de sua operacionalização – e apresenta como elementos um
repertório e uma estrutura.
JOSÉ ARTUR LIMA GONÇALVES reconhece que “A noção de
sistema admite variadas acepções, adotando-se aqui a de que ele é um conjunto
harmônico de elementos organizados a partir de um critério unificador. Os
sistemas possuem um repertório, composto pelos elementos que o integram, e
uma estrutura, representada pela peculiar forma de organização e relacionamento
de seus elementos. No sistema jurídico, o repertório é composto pelas normas
jurídicas válidas”.188
A concepção do ordenamento como sistema – unidade composta de
elementos que se relacionam entre si segundo certas regras – ganha relevância
ao permitir considerá-lo como conjunto dotado de homogeneidade e harmonia e
ao determinar a forma de tratamento de supostas contradições existentes entre
seus elementos. Sublinhamos a expressão supostas contradições porque a idéia
de sistema repele a possibilidade de contradições internas, como o demonstram
as regras jurídicas da lex superior, da lex posterior e da lex specialis, critérios
aplicáveis, como é cediço, na resolução dos conflitos existentes entre as normas
do ordenamento, as chamadas antinomias jurídicas.
Essas considerações levam-nos à distinção entre dois tipos de
sistemas, formulada por HANS KELSEN, que os caracteriza com base na relação
entre as regras que o compõem, denominando-os então de sistemas estáticos e
sistemas dinâmicos, nos seguintes termos:
“Segundo a natureza do fundamento de validade, podemos distinguir
dois tipos diferentes de sistemas de normas: um tipo estático e um
188 A imunidade tributária do livro, In: Imunidade tributária do livro eletrônico, p. 139.
tipo dinâmico. As normas de um ordenamento do primeiro tipo, quer
dizer, a conduta dos indivíduos por elas determinada, é considerada
como devida (devendo ser) por força do seu conteúdo: porque a sua
validade pode ser reconduzida a uma norma a cujo conteúdo pode
ser subsumido o conteúdo das normas que formam o ordenamento,
como o particular ao geral. Assim, por exemplo, as normas: não
devemos mentir, não devemos fraudar, devemos respeitar os
compromissos tomados, não devemos prestar falsos testemunhos,
podem ser deduzidas de uma norma que prescreve a veracidade.
(..........)
Um sistema de normas cujo fundamento de validade e conteúdo de
validade são deduzidos de uma norma pressuposta como norma
fundamental é um sistema estático de normas. O princípio segundo
o qual se opera a fundamentação da validade das normas deste
sistema é um princípio estático.
(..........)
O tipo dinâmico é caracterizado pelo fato de a norma fundamental
pressuposta não ter por conteúdo senão a instituição de um fato
produtor de normas, a atribuição de poder a uma autoridade
legisladora ou – o que significa o mesmo – uma regra que determina
como devem ser criadas as normas gerais e individuais do
ordenamento fundado sobre esta norma fundamental.
(..........)
Com efeito, a norma fundamental limita-se a delegar uma autoridade
legisladora, quer dizer, a fixar uma regra em conformidade com a
qual devem ser criadas as normas deste sistema.
(..........)
O sistema de normas que se apresenta como uma ordem jurídica
tem essencialmente um caráter dinâmico. Uma norma jurídica não
vale porque tem um determinado conteúdo, quer dizer, porque o seu
conteúdo pode ser deduzido pela via de um raciocínio lógico do de
uma norma fundamental pressuposta, mas porque é criada por uma
forma determinada – em última análise, por uma forma fixada por
uma norma fundamental pressuposta. Por isso, e somente por isso,
pertence ela à ordem jurídica cujas normas são criadas de
conformidade com esta norma fundamental. Por isso, todo e
qualquer conteúdo pode ser Direito”.189
Essa distinção leva-nos a outro ponto que desejamos destacar: a
idéia da autopoiese, relativa a sistemas que produzem a si próprios. WILLIS
SANTIAGO GUERRA FILHO acentua que “Sistema autopoiético é aquele dotado
de organização autopoiética, em que há a (re)produção dos elementos de que se
compõe o sistema e que geram sua organização pela relação reiterativa
(‘recursiva’) entre eles. Esse sistema é autônomo porque o que nele se passa não
é determinado por nenhum componente do ambiente mas sim por sua própria
organização, isto é, pelo relacionamento entre seus elementos”.190
Como se pode notar, tal conceito é relevante para o ordenamento
jurídico em razão da auto-referência do direito positivo, isto é, não só pelo modo
como seus elementos ingressam e deixam o sistema, como também pela sua
relação com o ambiente externo e com outros sistemas.
Embora se reconheça a autonomia e a clausura do sistema, não se
pode negar a relatividade dessas características, na medida em que, sendo o
direito um conjunto de normas que regulam condutas humanas intersubjetivas,
assim oferecendo o regramento da vida em sociedade, não se pode desconhecer
189 Teoria pura do direito, p. 217/221. 190 Teoria da ciência jurídica, p. 182.
a inafastável necessidade de diálogo entre o sistema jurídico e outros sistemas,
como, por exemplo, a política e a economia.191
Essa interferência de diversos elementos oriundos de outros
sistemas é inafastável e pode ser reconhecida pela presença de bens, interesses
e valores prestigiados pela norma jurídica que, embora ingressem no sistema do
ordenamento jurídico por meio da positivação e segundo regras próprias (auto-
referência do sistema), encontram origem em outros sistemas.192
Entretanto cabe notar que, a rigor, o ordenamento jurídico não é um
sistema em si, como se isso fosse uma característica intrísenca sua. Em vez
disso, a “organização em sistema é efetuada pelo jurista”, como aponta com
precisão JOSÉ ARTUR LIMA GONÇALVES.193 Em outros termos, considerar o
direito positivo como um sistema é instrumento metodológico do cientista, que
assim o considera para conferir-lhe unidade e coerência interna, para bem
interpretá-lo e aplicá-lo. Com efeito, a necessidade de oferecer soluções a casos
concretos impõe à ciência do direito a tarefa de organizar o ordenamento como
sistema; de analisar os elementos constantes do repertório e as regras relativas à
sua estrutura, para atribuir-lhe coerência interna de sentido.
MARIA HELENA DINIZ afirma que “Percebe-se que ‘sistema’
significa nexo, uma reunião de coisas ou conjunto de elementos, e método, um
191 Cf. Willis Santiago Guerra Filho, Teoria da ciência jurídica, p. 191. 192 Este é o ensinamento de Willis Santiago Guerra Filho, ao afirmar que “O Direito, em uma sociedade com alta diferenciação funcional de seus sistemas internos, mantém-se autônomo em face dos demais sistemas, como aqueles da moral, da economia, da política, da ciência, na medida em que continua operando com seu próprio código, e não por critérios fornecidos por algum daqueles outros sistemas. Ao mesmo tempo, sem que seus componentes percam seu conteúdo especificamente jurídico, para adotar outros, de natureza moral, política, econômica etc., o sistema jurídico há de realizar o seu acoplamento estrutural com outros sistemas sociais, para o que desenvolve cada vez mais procedimentos de reprodução jurídica, procedimentos legislativos, administrativos, judiciais, contratuais” (Teoria da ciência jurídica, p. 193). 193 A imunidade tributária do livro eletrônico, In: Imunidade tributária do livro, p. 139.
instrumento de análise. De forma que o sistema não é uma realidade, é o
aparelho teórico mediante o qual se pode estudá-la. É, por outras palavras, o
modo de ver, de ordenar, logicamente, a realidade, que, por sua vez, não é
sistemática”.194
A reunião em conjunto unitário e coerente das normas jurídicas, com
a manipulação dos comandos normativos segundo determinadas regras
estruturais, é trabalho a ser feito pelo cientista do direito, por meio do modelo
sistemático, ou, em outras palavras, o direito positivo em si não é um sistema
jurídico, mas antes uma realidade que pode ser estudada de modo sistemático
pela ciência do direito. Na concepção do pensamento sistemático, estuda-se o
ordenamento jurídico, perscrutando o conteúdo de suas normas (princípios e
regras), para, de posse desses dados, buscar-se o enquadramento dos fatos ao
ordenamento.
Desse modo, no chamado pensamento sistemático, parte-se de
certas premissas tomadas como absolutas e busca-se a solução do conflito, do
problema, enquadrando-o nas premissas dadas pelo ordenamento, por meio de
raciocínio dedutivo, que parte do geral para o particular.
2. Pensamento problemático e modelo tópico
Ao lado do pensamento sistemático – e não em contraposição a ele
– pode-se encontrar o modelo teórico da denominada tópica jurídica, formulada
por THEODOR VIEHWEG, que mencionamos no início do presente trabalho e
que agora retomamos como pano de fundo para o tema da interpretação.
194 Compêndio de introdução à ciência do direito, p. 202.
A tópica jurídica é considerada como um estilo de pensar voltada
para problemas, que opera a partir deles e em direção a eles.195 Um dos aspectos
desse modelo repousa nos chamados lugares comuns da argumentação jurídica,
denominados topoi, que são noções-chave do direito, como, por exemplo,
interesse público, vontade contratual, autonomia da vontade, relevância,
verossimilhança das alegações, termos semelhantes aos denominados conceitos
vagos, cujos significados são apurados em cada caso concreto. Nas palavras de
THEODOR VIEHWEG, “Topoi são, portanto, para Aristóteles, pontos de vista
utilizáveis e aceitáveis em toda parte, que se empregam a favor ou contra o que é
conforme a opinião aceita e que podem conduzir à verdade”.196
O aspecto do modelo que mais nos interessa, porém, é justamente a
técnica de pensamento voltada para a solução de problemas; desenvolvida em
função deles e para resolvê-los. Como afirma o próprio THEODOR VIEHWEG, “O
ponto mais importante no exame da tópica constitui a afirmação de que se trata
de uma techne do pensamento que se orienta para o problema”, relacionando-a
com o termo aporia: “precisamente uma questão que é estimulante e iniludível,
designa a ‘falta de um caminho’, a situação problemática que não é possível
eliminar”.197 Por sua vez, problema é “toda questão que aparentemente permite
mais de uma resposta e que requer necessariamente um entendimento
preliminar, de acordo com o qual toma o aspecto de questão que há que levar a
sério e para a qual há que buscar uma resposta como solução”. 198
195 Tópica e jurisprudência, p. 3. 196 Tópica e jurisprudência, p. 26/27. 197 Tópica e jurisprudência, p. 33. 198 Tópica e jurisprudência, p. 34.
Por tal razão é que o raciocínio em tela é chamado de problemático,
justamente por ter ponto de partida um problema (no caso do direito, um conflito
de interesses); por privilegiar o lado do problema, da pergunta formulada, de
forma que, em ocorrendo alteração nos casos concretos, buscam-se novos dados
para a solução, mas sempre mantendo o caráter problemático do raciocínio
desenvolvido. Fazendo menção aos pensamentos tópico e lógico, MARGARIDA
MARIA LACOMBE CAMARGO afirma que a “diferença estaria no fato de que a
tópica parte do problema em busca de premissas, enquanto o raciocínio do tipo
sistemático apóia-se em premissas já dadas: ‘A tópica mostra como se acham as
premissas; a lógica recebe-as e as elabora’”.199
Embora alguns autores entendam que são inconciliáveis os métodos
sistemático e problemático, partindo aquele do geral para o particular, com a
adoção de certas premissas como marco inicial; e este, do individual para o geral,
partindo do problema, o próprio THEODOR VIEHWEG reconhece que entre
problema e sistema existem conexões essenciais: “Isto se desenvolve
abreviadamente do seguinte modo: o problema, através de uma reformulação
adequada, é trazido para dentro de um conjunto de deduções, previamente dado,
mais ou menos explícito e mais ou menos abrangente, a partir do qual se infere
uma resposta. Se a este conjunto de deduções chamamos sistema, então
podemos dizer, de um modo mais breve, que, para encontrar uma solução, o
problema se ordena dentro de um sistema”.200
Acreditamos que sistema e problema, ou pensamento sistemático e
pensamento problemático, não são idéias contrapostas, não são métodos de
199 Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito, p. 142. 200 Tópica e jurisprudência, p. 34.
análise do fenômeno jurídico que não se podem conciliar, mas, antes, podem ser
considerados como complementares, parecendo-nos que a tópica pode revelar
até mesmo, em determinados casos, maiores possibilidades de exploração do
sistema. Precisamente por essa razão é que optamos no presente trabalho por
privilegiar o modelo tópico ou problemático, não como excludente do modelo
sistemático, mas ao lado dele; trata-se apenas de acentuar o prisma pelo qual
trataremos da questão da interpretação, sem nenhum desprezo, entretanto, pelo
pensamento sistemático, do qual também nos auxiliaremos.
Assim o fazemos porque a interpretação, segundo pensamos,
sempre parte do problema; do caso concreto a ser solucionado; da necessidade
de se interpretarem as leis para justamente aplicá-las ao conflito de interesses
que aguarda solução, uma vez que o trabalho de interpretação não é
desenvolvido a esmo ou por mero interesse acadêmico, mas sempre “tendo em
vista uma finalidade prática. Esta finalidade prática domina a tarefa
interpretativa”.201
Não se trata, portanto, de determinar o sentido e o alcance do
comando normativo apenas em tese, mas “de determinar-lhe a força e o alcance,
pondo o texto normativo em presença dos dados atuais de um problema. Ou
seja, a intenção do jurista não é apenas conhecer, mas conhecer tendo em vista
as condições de aplicabilidade da norma enquanto modelo de comportamento
obrigatório (questão da decidibilidade)”.202
Por isso que, adotando exemplos da área tributária, não se
interpretam as normas de imunidade presentes na Constituição Federal (sistema)
201 Tercio Sampaio Ferraz Junior, A ciência do direito, p. 73. 202 Tercio Sampaio Ferraz Junior, A ciência do direito, p. 73/74.
para se saber qual o alcance da imunidade ali prevista (problema); ao contrário,
no momento em que determinado contribuinte alega o gozo da imunidade
(problema) é que, daí partindo a atividade interpretativa, recorre-se à Constituição
Federal (sistema) para se saber se a imunidade alcança ou não aquele
contribuinte. Pela mesma razão, não se estuda o princípio da legalidade para se
determinar, previamente, aquilo que um decreto pode ou não fazer; havendo a
edição de certo decreto, investiga-se o que ele estipula a fim de se descobrir se o
referido princípio é ou não respeitado (novamente, parte-se do problema e vai-se
ao sistema).
Portanto adotar o modelo de pensamento problemático, pelo menos
para os específicos fins de nosso estudo, significa partir do fato, do problema, e ir
ao ordenamento, isto é, o fato é o problema (questão séria que permite mais de
uma solução possível). Não se despreza em momento algum, por evidente, o
ordenamento jurídico (sistema), mas apenas percorre-se o caminho interpretativo,
tomando-se como ponto de partida o problema a ser resolvido.
Partir do problema significa analisar o fato (como veremos em
seguida, trata-se de interpretar o fato), seu conteúdo e sua fenomenologia, bem
como a pergunta que ele propõe (o desafio que é proposto ao intérprete –
questão da decidibilidade), para então ir ao ordenamento jurídico e, por meio da
interpretação, dele extrair a norma aplicável ao caso concreto.
3. Interpretação como atividade construtiva da norma jurídica
A razão fundamental da interpretação da norma jurídica é sua
aplicação ao caso concreto, de modo que se a interpreta para aplicá-la a um fato,
uma situação, um conflito de interesses. Para tal aplicação, é imperioso saber o
que determina a norma jurídica, qual o seu significado, enfim, qual o seu sentido e
alcance. A aplicação da norma tem como pressuposto sua interpretação e
qualquer norma deve ser interpretada, ainda que, em alguns casos excepcionais,
possa tratar-se de tarefa interpretativa singela.
TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR ensina “que não apenas
estamos obrigados a interpretar (não há norma sem sentido nem sentido sem
interpretação), como também deve haver uma interpretação e um sentido que
preponderem e ponham um fim (prático) à cadeia das múltiplas possibilidades
interpretativas. O critério para entender-se este fim prático é a própria questão
que anima a ciência jurídica: o problema da decidibilidade, isto é, criar-se
condições para uma decisão possível”.203
A propósito da interpretação, podemos notar que, a rigor, o seu
objeto não é propriamente a norma jurídica, pois esta é justamente o resultado da
interpretação, ou seja, o que se interpreta é o texto normativo, o enunciado
lingüístico que contém a norma. Este é o ensinamento de ANTONIO HENRIQUE
PÉREZ LUÑO, que acentua:
“Si se parte de la idea de que una norma sin significado es un
absurdo, hay que concluir que la norma no tiene un significado, sino
que es un significado. Este plenteamiento comporta admitir que no
cabe ninguna norma sin significado y que ese significado no es
previo, sino subsiguiente a la actividad interpretativa. De ello se
infiere que la norma jurídica no es el presupuesto, sino el resultado
del proceso interpretativo.
(..........)
203 A ciência do direito, p. 73.
Pero este planteamiento no equivale a concebir la norma jurídica
como el producto del arbitrio o la voluntad decisionista del jurista
intérprete; pretende básicamente ampliar el concepto de norma al
entenderla como un proceso que conjuga la ‘norma dato’ o la ‘norma
preexistente’ que constituye el prius de la interpretación, con la
‘norma producto’ o ‘norma resultado’ que supone el momento
completo y culminante de la elaboración normativa”.204
Dessa forma, talvez fosse mais rigoroso tecnicamente falar-se da
interpretação da lei ou do texto legal, para englobar nesta expressão os vários
enunciados lingüísticos possíveis, como a Constituição, a lei, o decreto, e assim
por diante. Seja como for, a interpretação consiste basicamente em se saber se
há ou não relação de correspondência entre uma dada formulação vazada em
linguagem e um determinado fato, porque, em havendo, há de se aplicar a norma
extraída do enunciado no regramento jurídico daquele fato.205
Ocorre que tal formulação lingüística, o enunciado (a frase, enfim)
utiliza-se de palavras, e estas, como se sabe, não possuem um significado exato.
O significado pode alterar-se em virtude de condicionantes de ordem sintática
(relação entre as palavras utilizadas); de ordem semântica (a mesma palavra
pode ser usada para designar mais de uma coisa, mais de um objeto); e ainda de
ordem pragmática (de acordo com a pessoa que utiliza a palavra, o contexto e os
costumes lingüísticos, pode haver variações quanto ao seu significado).
204 Derechos humanos, estado de derecho y constitución, p. 254/255. 205 Como aponta Alf Ross, “Toda interpretação do direito legislado principia com um texto, isto é, uma fórmula lingüistica escrita. Se as linhas e pontos pretos que constituem o aspecto físico do texto da lei são capazes de influenciar o juiz, assim é porque possuem um significado que nada tem a ver com a substância física real. Esse significado é conferido ao impresso pela pessoa que por meio da faculdade da visão experimenta esses caracteres. A função destes é a de certos símbolos, ou seja, eles designam (querem dizer) ou apontam para algo que é distinto deles mesmos” (Direito e justiça, p.139).
Em certo sentido, pode-se afirmar que as palavras são funcionais:
servem para designar algum objeto, apontam para algo, representam certa coisa
ou referem-se a determinada parcela da realidade (do mundo real) que desejam
representar. Não obstante, das palavras diz-se comumente – daí o desafio do
intérprete – que possuem textura aberta; que são equívocas ou plurívocas;
polissêmicas, que apresentam vagueza ou ambigüidade; enfim, apresentam
conteúdo semântico indefinido.206
Ademais, ainda que fosse possível definir com precisão o significado
das palavras do texto legal, o significado do próprio enunciado lingüístico não é a
mera soma do significado de cada palavra individualmente considerada, de forma
que, na tarefa interpretativa, não basta ao intérprete o texto, mas importa-lhe
também o contexto (local, pessoa, costumes e o próprio fato).
Segundo a lição de KARL LARENZ, o “Objecto da interpretação é o
texto legal como ‘portador’ do sentido nele vertido, de cuja compreensão se trata
na interpretação. ‘Interpretação’ (Auslegung) é, se nos ativermos ao sentido das
palavras, ‘desentranhamento’ (Auseinanderlegung), difusão e exposição do
sentido disposto no texto, mas, de certo modo, ainda oculto”.207
Para HANS KELSEN, por sua vez, a interpretação do direito
somente pode significar a fixação da moldura no ato de aplicação da lei, como se
pode observar em passagem clássica de sua obra:
“O Direito a aplicar forma, em todas estas hipóteses, uma moldura
dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que
206 Esta é a observação de Alf Ross: “A referência semântica da palavra tem, por assim dizer, uma zona central sólida em que sua aplicação é predominante e certa, e um nebuloso círculo exterior de incerteza, no qual sua aplicação é menos usual e no qual se torna mais duvidoso saber se a palavra pode ser aplicada ou não” (Direito e justiça, p. 142). 207 Metodologia da ciência do direito, p. 441.
é conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro deste quadro
ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido
possível.
Se por ‘interpretação’ se entende a fixação por via cognoscitiva do
sentido do objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação
jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o
Direito a interpretar e, conseqüentemente, o conhecimento das
várias possibilidades que dentro desta moldura existem. Sendo
assim, a interpretação de uma lei não deve necessariamente
conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas
possivelmente a várias soluções que – na medida em que apenas
sejam aferidas pela lei a aplicar – têm igual valor, se bem que
apenas uma delas se torne Direito positivo no ato do órgão aplicador
do Direito – no ato do tribunal, especialmente. Dizer que uma
sentença judicial é fundada na lei, não significa, na verdade, senão
que ela se contém dentro da moldura ou quadro que a lei representa
– não significa que ela é a norma individual, mas apenas que é uma
das normas individuais que podem ser produzidas dentro da moldura
da norma geral”. 208
Como se pode notar, para o jusfilósofo de Viena, o direito positivo
não fornece nenhum critério para a escolha da norma, decorrendo daí sua
afirmação de que, no caso da interpretação autêntica (aquela realizada pelo juiz
e, sobretudo, pelos tribunais), a interpretação é ato de conhecimento e de
vontade. Para identificar a moldura e as possibilidades dentro dela, há um ato de
conhecimento, e, para a decisão por uma das possibilidades, há um ato de
vontade, sendo certo que este segundo passo somente é possível na denominada
interpretação autêntica.
208 Teoria pura do direito, p. 390/391.
Durante muito tempo tomou lugar na jurisprudência e, sobretudo, na
doutrina, a discussão relativa ao escopo da interpretação, consistente em se
saber se esta tratava de descobrir qual a vontade do legislador, aquilo que ele
desejou expressar (voluntas legislatoris), ou a vontade da lei, o que efetivamente
foi expresso (voluntas legis), a primeira denominada teoria subjetivista e, a
segunda, teoria objetivista.209
Pessoalmente, e guardadas as devidas cautelas, encontramos certa
dificuldade para considerar a interpretação como o ato de se perquirir qual a
vontade do legislador, uma vez que sempre pode haver distância entre intenção e
gesto; podem ocorrer ruídos na elaboração da lei, somando-se a isso o fato de
que é praticamente impossível identificar “o legislador”, para não falar de diversos
outros participantes do processo de elaboração do texto legal, como assistentes,
comissões de pesquisa e de redação, que exercem influência no produto final.
Parece-nos, assim, importar menos aquilo que o legislador desejou expressar ou
pensou ter expressado e, mais, aquilo que efetivamente expressou.
Seja como for, embora se deva buscar o sentido normativo da lei,
não se deve deixar de reconhecer a relevância dos dados históricos que
influenciaram a edição do diploma legal.210 De qualquer modo, parece pacífico
que o objetivo da interpretação é verificar qual o significado da lei, qual o seu
âmbito de abrangência: o seu conteúdo normativo, enfim.
209 Alf Ross acentua que “É freqüente se fazer uma distinção entre as chamadas interpretação subjetiva e interpretação objetiva, no sentido de que a primeira visa a descobrir o significado que se buscou expressar, isto é, a idéia que inspirou o autor e que este quis comunicar, enquanto a segunda visa a estabelecer o significado comunicado, isto é, o significado contido na comunicação como tal, considerada como um fato objetivo” (Direito e justiça, p. 149). 210 Cf. Karl Larenz, Metodologia da ciência do direito, p. 448/449.
Com tais considerações, chegamos ao ponto que agora desejamos
destacar. Segundo uma visão clássica, durante muito tempo se acreditou que o
significado da lei estava pronto e acabado no texto legal, e cabia ao intérprete
apenas e tão-somente descobrir esse significado, desvendá-lo, desentranhá-lo do
texto legal. Como aponta MARCO AURELIO GRECO, “entendeu-se que o
intérprete (inclusive judicial) tinha apenas a função de ‘descrever’ o ordenamento
positivo e ‘dizer’ o que já se encontrava na lei”, em atitude neutra.211
Todavia pensamos que tal entendimento não mais se sustenta, pois
a interpretação da lei revela-se uma atividade construtiva; trata-se de construir o
significado do texto legal, atribuindo-lhe significado e determinando-lhe o sentido
e o alcance no caso concreto, tarefa a ser desenvolvida sempre com base no
texto legal, por óbvio, mas em atitude ativa e não passiva. Como ensina MARCO
AURELIO GRECO, “O intérprete não é mais alguém que apenas ‘diz o que já
está’ previsto na lei. O intérprete passa a ser o canal de ligação entre as
demandas sociais (a realidade a ser modificada na busca dos fins e resultados) e
as previsões estratificadas na lei. Ele passa a ter um papel ativo (e não mais
neutro), numa verdadeira ‘construção’ de uma solução jurídica, cuja adequação e
compatibilidade não estão mais na letra fria da lei, mas nas necessidades e
finalidades socialmente relevantes”.212
A prova de que a atividade interpretativa é construtiva encontramos
no fato de que o intérprete nunca está numa cabine hermeticamente fechada,
sem nada ver nem ouvir, apenas com o texto legal sobre sua mesa de trabalho.
211 Contribuições: uma figura “sui generis”, p. 96. 212 Contribuições: uma figura “sui generis”, p. 98.
Ao contrário, ele sofre a influência de diversos fatores, como veremos em
seguida, que desempenham papel relevante na interpretação.213
Essa abertura de diversas possibilidades interpretativas em função
do leitor do texto – seu intérprete – é apontada pelo filósofo PAUL RICOEUR:
“Enquanto o discurso falado se dirige a alguém que é previamente
determinado pela situação dialógica – é dirigido a ti, a segunda
pessoa –, um texto escrito dirige-se a um leitor desconhecido e,
potencialmente, a quem quer que saiba ler. Esta universalização do
auditório é um dos efeitos mais notáveis da escrita e pode
expressar-se em termos de um paradoxo. Porque o discurso está
agora ligado a um suporte material, torna-se mais espiritual, no
sentido de que é libertado da estreiteza da situação face a face.
(..........)
Faz parte da significação de um texto estar aberto a um número
indefinido de leitores e, por conseguinte, de interpretações. Esta
oportunidade de múltiplas leituras é a contrapartida dialéctica da
autonomia semântica do texto.
Segue-se que o problema da apropriação do sentido do texto se
torna tão paradoxal como o da autoria. O direito do leitor e o direito
do texto convergem numa importante luta, que gera a dinâmica total
da interpretação. A hermenêutica começa onde o diálogo acaba”.214
213 Acerca de tal circunstância, Alf Ross afirma que “Mas, esse quadro é falso ainda num outro aspecto, já que se baseia numa apreciação da atividade do juiz que é psicologicamente insustentável. O juiz é um ser humano. Por trás da decisão tomada encontra-se toda sua personalidade. Mesmo quando a obediência ao direito (a consciência jurídica formal) esteja profundamente enraizada na mente juiz como postura moral e profissional, ver nesta o único fator ou móvel é aceitar uma ficção. O juiz não é um autônomo que de forma mecânica transforma regras e fatos em decisões. É um ser humano que presta cuidadosa atenção em sua tarefa social, tomando decisões que sente ser corretas de acordo com o espírito da tradição jurídica e cultural. Seu respeito pela lei não é absoluto. A obediência a esta não constitui o único motivo” (Direito e justiça, p. 168). 214 Teoria da interpretação, p. 42/43.
Por isso, o significado não está atrás do texto, mas à sua frente, e,
portanto, no mesmo local em que se encontra o seu intérprete, que constrói o
sentido do texto e sofre as influências de seu mundo e de seu tempo.
Tal aspecto é ressaltado também por EROS ROBERTO GRAU,
quando afirma, ao tratar da concretização do direito, que “A realidade é tanto
parte da norma quanto o texto; na norma estão presentes inúmeros elementos do
mundo da vida. O ordenamento jurídico é formado e conformado pela
realidade”.215 São suas ainda as seguintes palavras: “O texto normativo – diz
Müller (1993:169) – não contém imediatamente a norma. A norma é construída,
pelo intérprete, no decorrer do processo de concretização do direito (o preceito
jurídico é uma matéria jurídica que precisa ser ‘trabalhada’)”.216
Com base nas lições transcritas, desejamos destacar que a questão
essencial da interpretação jurídica é que ela envolve uma tomada de decisão, isto
é, uma opção por uma das possibilidades – coisa que a diferencia sobremodo, por
exemplo, de uma interpretação histórica ou psicanalítica – e revela-se uma
atividade construtiva, pois, afinal, como é comum afirmar-se, a lei não surge
completa e perfeita do cérebro do seu elaborador, como um ato de vontade
independente de qualquer outra circunstância.
Interpretação é atribuição de sentido ao texto e não mera extração
de sentido do texto; trata-se de atividade acentuadamente ativa e não passiva; o
intérprete constrói um novo texto a partir do texto dado.217
215 Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, p. 66. 216 Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, p. 64. 217 Como acentua Eros Roberto Grau, “O intérprete autêntico completa o trabalho do autor do texto normativo; a finalização desse trabalho, pelo intérprete autêntico, é necessária em razão do próprio caráter da interpretação, que se expressa na produção de um novo texto sobre aquele primeiro texto” (Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, p. 54).
Parece-nos, portanto, que o ordenamento jurídico revela-se um texto
feito e refeito todos os dias, pela interpretação.
4. Interpretação e aplicação do texto legal como atividade única
Se afirmamos que a adoção do modelo tópico de raciocínio parte do
problema a ser solucionado e vai ao sistema para encontrar a resposta (solução),
podemos então conceber que a interpretação e a aplicação do texto normativo
não se encontram em momentos temporais distintos, mas, antes, são atividades
concomitantes. Sobretudo em se tratando da interpretação autêntica (do juiz ou
do tribunal), uma vez que o magistrado é instado a interpretar a lei precisamente
para aplicá-la ao caso concreto; a interpretação opera-se com vistas à aplicação e
segundo as peculiaridades de cada hipótese.
EROS ROBERTO GRAU ensina que “Interpretação e aplicação não
se realizam autonomamente. O intérprete discerne o sentido do texto a partir e em
virtude de um determinado caso dado. (...) Assim, existe uma equação entre
interpretação e aplicação: não estamos, aqui, diante de dois momentos distintos,
porém frente a uma só operação”.218
Partir do problema a ser resolvido (caso concreto) para efetuar a
interpretação do texto normativo não significa afirmar que se interpreta o
ordenamento jurídico com subordinação aos fatos ou segundo os fatos – como
se estes, por si só, determinassem a interpretação e o conteúdo do comando
normativo – mas, sim, em presença dos fatos, isto é, considerando-os em suas
peculiaridades e significações, e tal procedimento de modo algum ofende a
218 Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, p. 76.
dignidade do ordenamento, que tem por objeto justamente regular a realidade,
determinar como esta deve ser.219
Este é o ensinamento FRIEDRICH MÜLLER: “Normas jurídicas não
são dependentes do caso, mas referidas a ele, sendo que não constitui problema
prioritário se se trata de um caso efetivamente pendente ou de um caso fictício.
Uma norma não é (apenas) carente de interpretações porque e à medida que ela
não é ‘unívoca’, ‘evidente’, porque e à medida que ela é ‘destituída de clareza’ –
mas sobretudo porque ela deve ser aplicada a um caso (real ou fictício)”.220
A nosso ver, mesmo no caso da interpretação jurídica feita pela
ciência do direito (não autêntica), ela é formulada em termos de aplicação
concomitante da norma, sempre elaborada em relação a um caso específico,
ainda que presente apenas mentalmente, para fins de raciocínio. São assim,
interpretação e aplicação um processo marcado pela unidade.221
5. Interpretação do texto legal e do fato
219 Note-se que, com relação a este ponto, há uma ressalva a ser feita quanto ao controle concentrado de constitucionalidade feito pelo Supremo Tribunal Federal porque, nesta hipótese, interpreta-se a lei em tese, de modo desvinculado de sua eventual aplicação ao caso concreto, ao contrário do que ocorre no controle difuso, sempre relativo a uma situação específica, em que são considerados texto normativo e fatos. 220 Métodos de trabalho do direito constitucional, p. 61/63. 221 Na mesma linha de raciocínio, também afirma-o Konrad Hesse, tratando do tema da interpretação constitucional como concretização: “Interpretação constitucional é concretização. Exatamente aquilo que, como conteúdo da Constituição, ainda não é unívoco e deve ser determinado sob inclusão da ‘realidade’ a ser ordenada. (...) Concretização pressupõe um ‘entendimento’ do conteúdo da norma a ser concretizada. Esse não se deixa desatar da ‘(pré)-compreensão’ do intérprete e do problema concreto a ser resolvido, cada vez. (...) Só mentalmente, não no procedimento real, é distinguível dessa condição da interpretação constitucional a segunda: ‘entendimento’ e, com isso, concretização, somente é possível com vista a um problema concreto. O intérprete deve relacionar a norma, que ele quer entender, a esse problema, se ele quer determinar seu conteúdo decisivo hic et nunc. Essa determinação e a ‘aplicação’ da norma ao caso concreto são um procedimento uniforme, não aplicação posterior de algo dado, geral, que em primeiro lugar é entendido em si, a um fato. Não existe interpretação constitucional independente de problemas concretos” (Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha, p. 61/62)
Se vimos, ainda agora, que interpretar a lei – o direito – é concretizá-
la em cada caso concreto (aplicá-la, portanto), parece evidente que, no percurso
interpretativo, o exegeta esteja obrigado a observar o mundo do ordenamento
jurídico (do dever ser) e, concomitantemente, o mundo dos fatos (do ser).222
Mais ainda, se, para cada hipótese a ser considerada, há de se
averiguar a forma como o fato se apresenta, a interpretação deve dar-se sobre o
texto legal e também sobre o fato, e, para cada fato novo, uma nova interpretação
– e talvez uma nova solução – decorrendo daí a precisão do ensinamento de
HANS KELSEN quanto à moldura da lei, uma vez que não há soluções prontas.
Uma peculiaridade relevante quanto à interpretação do fato é aquela
designada por EROS ROBERTO GRAU como o vínculo epistemológico existente
entre o relato e o relatado. Importa notar “a circunstância de os fatos não serem o
que são fora de seu relato (isto é, fora do relato a que correspondem)”, uma vez
que, segundo esse jurista, jamais podemos descrever a realidade, mas apenas o
nosso modo de ver a realidade.223 Notamos aqui, mais uma vez, a relevância da
linguagem e a íntima relação entre direito e linguagem, embora não pretendamos
ingressar aqui na celeuma de se saber se a linguagem constitui ou não a
realidade, dado que esta é representada por aquela.
Em capítulo de sua obra, Conformação e Apreciação Jurídica da
Situação de Facto, KARL LARENZ principia por reconhecer que as proposições
jurídicas devem ser aplicadas a eventos fáticos, isto é, uma situação que de fato
222 Eros Roberto Grau afirma que “Isso significa – como linhas acima anotei – que a norma é produzida, pelo intérprete, não apenas a partir de elementos colhidos no texto normativo (mundo do dever-ser), mas também a partir de elementos do caso ao qual será ela aplicada – isto é, a partir de dados da realidade (mundo do ser)” (Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, p. 79.) 223 Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, p. 81.
se verificou e salienta que isso somente é possível na medida em que tal situação
de fato é enunciada. Desse modo, aponta que “A situação de facto enquanto
enunciado não está assim ‘dada’ de antemão ao julgador, mas tem que ser
primeiramente conformada por ele, tomando em consideração, por um lado, os
factos que lhe chegaram ao conhecimento e, por outro lado, a sua possível
significação jurídica”.224
Afirma o jurista alemão que todo aquele com a incumbência de julgar
um caso jurídico (e, portanto, dizemos nós, interpretar e aplicar a lei ao caso
concreto), parte de uma situação de facto em bruto, ou seja, da forma como esta
lhe é relatada, contendo tal relato circunstâncias relevantes e circunstâncias não-
relevantes para a apreciação jurídica, que ele cuidará de separar umas das
outras, no curso de suas ponderações, até chegar à situação de facto definitiva.225
Tal situação de facto definitiva, resultado de uma elaboração mental,
parece-nos corresponder ao que ora denominamos de interpretação dos fatos,
vale dizer, trata-se de surpreender os fatos em sua fenomenologia, levada ao
conhecimento do intérprete por meio de relatos (de enunciados lingüisticos), a fim
de se identificarem os seus elementos relevantes diante das normas jurídicas
eventualmente aplicáveis.
Essa é, segundo pensamos, a importância da interpretação dos
fatos, consistente na necessidade de considerá-los em sua exteriorização; seus
diversos elementos; suas circunstâncias; a influência exercida pelo transcorrer do
tempo; as diversas variáveis e condicionantes relativas ao caso, para depurá-los
224 Metodologia da ciência do direito, p. 391. 225 Metodologia da ciência do direito, p. 392.
substancialmente a fim de verificar aquilo que – neles, fatos – é juridicamente
relevante.
Mencionamos, a título de exemplo, a importância da interpretação
dos fatos na área do direito tributário, como nos casos de autos de infração cujo
objeto seja a exigência de tributo, situação na qual a aludida interpretação revela-
se fundamental (considerando-se como fato a situação de conflito instalada entre
fisco e contribuinte). Como vimos, a situação é levada ao conhecimento do
julgador judicial ou administrativo por meio do relato do fisco (auto de infração) e
do contra-relato do contribuinte (defesa), a fim de que aquele possa proceder à
interpretação da lei e, assim, extrair do ordenamento, em atividade construtiva, a
norma jurídica aplicável ao caso concreto.
Outro exemplo interessante diz respeito à hipótese de planejamento
tributário, no qual a consideração do negócio realizado, das pessoas envolvidas e
da forma jurídica utilizada – como no caso, entre outros, de operação de
incorporação seguida de cisão seletiva de pessoas jurídicas – é fundamental para
a aplicação da lei ao caso concreto. Todos esses elementos – fáticos –
encontram-se sujeitos à interpretação, tal como ocorre com o texto legal.
Refrisamos que, ao falarmos da interpretação dos fatos como etapa
a ser vencida no processo de interpretação da lei (ou como operação
concomitante a esta, ou como elemento subsidiário desta), não estamos
defendendo a supremacia do fato sobre o texto normativo, coisa que certamente
não é possível. Apenas desejamos salientar que a interpretação da lei reclama
conjuntamente a interpretação dos fatos, uma vez que as normas jurídicas,
embora não sejam dependentes dos fatos, referem-se a eles .
6. Constituição e interpretação constitucional
Existem várias razões que apontam para a necessidade de se
considerar a interpretação da Constituição como de ordem especial, marcada por
determinadas especificidades que reclamam, por assim dizer, tratamento
interpretativo diferenciado.
A primeira delas é a própria supremacia constitucional, tendo-se em
vista que a Constituição Federal é o documento normativo mais relevante da
Nação e fundante do ordenamento jurídico, sendo natural que sua interpretação
apresente feição distinta da de outros textos normativos.
A segunda é o fato de o Texto Constitucional, em virtude de sua
natureza, apresentar comandos normativos de conteúdo mais abertos quando
comparados aos dispositivos infraconstitucionais, sendo nítida a presença de
regramento de caráter geral; de disposições programáticas; de direções que o
legislador deve seguir; de políticas públicas a serem implementadas; de grande
número de normas de estrutura e assim por diante.
A terceira razão, por demais relevante, refere-se ao fato de a
Constituição hospedar regras e princípios, isto é, normas jurídicas exteriorizadas
em regras e normas jurídicas exteriorizadas em princípios; estes últimos, como se
sabe, são disposições normativas com alto grau de abstração e portadores de
valores consagrados pela Carta da República, cuja existência, por si só, reclama
um modelo hermenêutico diferenciado.
A interpretação constitucional por óbvio não dispensa o emprego dos
métodos ditos tradicionais de interpretação, como o histórico, o sistemático e o
teleológico, mas não se pode desprezar o fato de que, por ser portadora de um
sem-número de princípios, que hospedam os valores máximos consagrados pela
sociedade, a Constituição exige um modelo de interpretação de maior alcance e
eficácia na tarefa de concretização de suas normas, para se obter como resultado
da operação exegética uma interpretação “de acordo com as opções valorativas
básicas expressas no texto constitucional”.226
CARLOS AYRES BRITTO, que designa os princípios como “normas
interreferentes” e reconhece o potencial teórico da dualidade entre princípios e
regras, “que, de tão metodologicamente importante, se tornou a nova base da
hermenêutica da Constituição”,227 realça o papel dos princípios e aponta para a
relevância de uma interpretação constitucional própria:
“Realmente, o parâmetro de interação das normas constitucionais
originárias consigo mesmas reside é na dualidade temática
princípios/regras ou princípios/preceitos (regras comuns são
preceitos, e não princípios). Vale dizer, as normas que veiculam
princípios desfrutam de maior envergadura sistêmica. Elas enlaçam
a si outras normas e passam a cumprir um papel de imã e de norte,
a um só tempo, no interior da própria Constituição. Logo, os seus
comandos são interpontuais. Não apenas pontuais, como se dá,
agora sim, com as normas veiculadoras de simples preceitos.
Recolocando de forma ainda mais precisa a idéia, diríamos: as
normas principiológicas não consubstanciam meios ou providências
(estado-pontual-de-coisas), propriamente, para o alcance de valores.
Elas são esses valores mesmos. A tradução formal deles
(Federação, Desenvolvimento, Soberania Popular, Moralidade
Administrativa, Legalidade, etc.). Daí porque têm a particularidade
de irradiar o seu conteúdo exclusivamente axiológico para outras
normas gerais, sejam as que vimos chamando de preceituais, sejam
226 Willis Santiago Guerra Filho, Teoria da ciência jurídica, p. 149. 227 Teoria da constituição, p. 173.
mesmo aquelas veiculadoras de princípios menores ou
subprincípios. Em qualquer das duas suposições, são as normas-
princípio que fazem da Constituição uma densa rede axiológica de
vasos comunicantes.
A nova práxis ou fenomenologia constitucional-positiva que foi
tomando corpo, destarte, foi a da supereficácia das normas-
princípio, ao lado da crescente constitucionalização do Direito
infraconstitucional. Tudo resultando na supereficácia da própria
Constituição.
Em síntese, estava criado o clima constitucional propiciador da
dicotomia básica princípios/regras (ou princípios/preceitos) e o fato é
que, à sua dignidade formal a Constituição adicionou uma dignidade
material”.228
Como se pode notar, várias são as razões que apontam para a
conveniência de uma interpretação da Constituição Federal de modo peculiar,
certamente não com o desprezo pelos métodos interpretativos tradicionais, mas
justamente com o apoio de outros elementos hermenêuticos. Por ora, limitamo-
nos a apontar dois deles nos itens seguintes, quais sejam, os princípios de
interpretação da Constituição e a distinção entre regras e princípios jurídicos.
6.1 Princípios de interpretação da Constituição
Para JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, “Interpretar uma
norma constitucional consiste em atribuir um significado a um ou vários símbolos
lingüísticos escritos na constituição com o fim de se obter uma decisão de
problemas práticos normativo-constitucionalmente fundada”.229
228 Teoria da constituição, p. 166/180. 229 Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1185.
O professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
trata de um catálogo de princípios tópicos da interpretação constitucional;
menciona que seu desenvolvimento deu-se a partir da metódica hermenêutico-
concretizante de KONRAD HESSE e, ainda, que devem ser constitucionalmente
praticáveis, ou seja, passíveis de emprego na discussão de problemas dentro da
base de compromisso materializada nas normas constitucionais.230
O princípio da unidade da Constituição significa que esta deve ser
interpretada para se evitarem eventuais antinomias ou contradições entre seus
dispositivos, a fim de considerá-la como algo dotado de coerência interna,
buscando interpretá-la em sua integralidade e conferindo harmonia entre normas
que estejam em tensão entre si, sobretudo os diversos princípios (por exemplo,
princípio unitário e princípio da autonomia regional e local).
O princípio do efeito integrador, intimamente ligado ao anterior,
determina que, na tarefa interpretativa, sejam privilegiados elementos e critérios
que favoreçam a integração política e social e, bem assim, reforcem a unidade
política (evitando autoritarismos e fundamentalismos).
No princípio da máxima efetividade, a interpretação deve buscar
atribuir o sentido ao texto constitucional que confira à norma a maior eficácia
possível. Trata-se de diretiva que pode ser aplicada a qualquer norma
constitucional, mas muito invocado quanto aos dispositivos consagradores de
direitos e garantias fundamentais, prestando-se para afastar o entendimento da
inaplicabilidade das denominadas normas programáticas.
230 Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1207/1211.
O princípio da conformidade funcional objetiva o respeito à
repartição de funções, ou poderes, constitucionalmente estabelecida, de forma
que na interpretação e na aplicação da Constituição o órgão estatal a quem cabe
interpretá-la de modo definitivo não possa alcançar um produto interpretativo tal
que venha a violar a divisão das funções estatais contemplada pela Carta: em
última análise, a repartição de poderes.
O princípio da concordância prática estabelece a necessidade, na
solução do problema diante da Constituição, de ponderação entre os bens e
valores hospedados constitucionalmente, de modo que, mesmo em se
prestigiando um deles, deve-se evitar o sacrifício total dos outros que com aquele
conflitam no caso concreto. Salienta o autor lusitano que “Subjacente a este
princípio está a idéia do igual valor dos bens constitucionais (e não uma diferença
de hierarquia) que impede, como solução, o sacrifício de uns em relação aos
outros, e impõe o estabelecimento de limites e condicionamentos recíprocos de
forma a conseguir uma harmonização ou concordância prática entre estes
bens”.231
O princípio da força normativa da Constituição consiste em dever
dar-se, no exercício interpretativo, prevalência àquele entendimento que, atento
aos pressupostos da Constituição, respeite o elemento histórico das estruturas
constitucionais, mantendo a supremacia, a eficácia e a permanência da Carta,
mas que, ao mesmo tempo, possibilite sua atualização normativa, em
atendimento à evolução social, nem tanto pela alteração formal do texto
231 Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1209.
constitucional, mas, antes, pela modificação do modo de compreendê-lo e
interpretá-lo.
O princípio da interpretação das leis em conformidade com a
Constituição, intimamente ligado ao controle de constitucionalidade de textos
normativos infraconstitucionais, segundo o qual, entre duas interpretações
possíveis e razoáveis para um certo texto legal, deve dar-se preferência àquela
mediante a qual se possa compatibilizá-lo com os comandos da Constituição, isto
é, deve-se atribuir ao texto da lei o sentido que esteja em conformidade com o
Texto Constitucional.
6.2 Regras e princípios jurídicos
A distinção entre regras e princípios – ou entre normas jurídicas que
são regras e normas jurídicas que são princípios – exerce papel bastante
relevante na interpretação da Constituição, razão pela qual dela aqui salientamos
alguns aspectos importantes.
Para RONALD DWORKIN, em ensinamento muito prestigiado,
princípio é “um padrão que deve ser observado, não porque vá promover ou
assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas
porque é uma exigência de justiça ou equidade ou alguma outra dimensão da
moralidade”, sendo a diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas de
natureza lógica.232
As regras são aplicadas pela fórmula de um tudo-ou-nada, de modo
que, uma vez considerados os fatos previstos por ela, de duas uma: ou a regra é
232 Levando os direitos a sério, p. 36.
válida no sistema, deve ser aplicada e as conseqüências são aceitas, ou a regra
não é válida e, dessa forma, em nada contribui para a decisão do caso. Segundo
o autor, pode-se afirmar que as regras são funcionalmente importantes ou
desimportantes, ou, mesmo que uma regra possa ser considerada mais
importante do que a outra porque desempenha um papel de maior relevo, quando
comparada com outra, na regulação de determinado comportamento. Não
obstante, não é correto dizer que uma regra é mais importante do que a outra, na
qualidade de elementos integrantes do mesmo sistema jurídico, de tal forma que,
se duas regras estiverem em conflito, uma prevalecerá sobre a outra em razão de
sua maior relevância.233
O conflito entre regras é resolvido de outro modo. Se duas regras
estão em conflito ou em contrariedade, uma delas deve ser declarada não válida
e retirada do sistema. Cabe notar que a decisão de se saber qual das regras não
é válida é tomada com fundamento em critérios externos às regras envolvidas –
critérios que, por sua vez, podem estar em outras regras do ordenamento – como,
por exemplo, aquelas segundo as quais prevalece a regra hierarquicamente
superior; a que foi posta posteriormente; ou a considerada especial ou mais
específica.234
Para o autor norte-americano, os princípios possuem uma outra
característica, que as regras não têm, que é a dimensão do peso ou importância,
de forma que, quando dois princípios se entrecruzam, ou se encontram em
conflito ou colisão, o intérprete a quem caiba resolver o conflito deve levar em
consideração a dimensão do peso de cada um deles ou a força relativa de cada
233 Levando os direitos a sério, p. 39 e 43. 234 Levando os direitos a sério, p. 43.
um diante do caso concreto. Parece evidente que essa mensuração do peso de
cada princípio envolvido não é exata nem pode ser matematicamente calculada,
pois a decisão pela prevalência de um ou outro princípio envolvido pode
freqüentemente ser objeto de controvérsia. Salienta RONALD DWORKIN que
“essa dimensão é uma parte integrante do conceito de um princípio, de modo que
faz sentido perguntar que peso ele tem ou quão importante ele é”.235
Tal dimensão do peso de cada princípio envolvido no conflito não se
encontra em si mesma nos princípios – como se fora uma sua qualidade
intrínseca – mas, antes, será atribuída pelo próprio intérprete no ato de
interpretação e aplicação das normas, de forma que, conforme salientamos em
outra oportunidade,236 o conflito entre princípios não se resolve pela declaração
da não validade de um deles (o princípio não é retirado do sistema), mas pela
declaração de prevalência de um princípio sobre o outro, sempre com respeito às
peculiaridades do caso.
Portanto, na hipótese específica que se busca solucionar, um
princípio pode ceder passo a outro que com ele conflita, mas é perfeitamente
possível que, em outro caso, envolvendo os mesmos princípios jurídicos, aquele,
na situação anterior preterido, venha agora a prevalecer.
Para ROBERT ALEXY, tanto as regras como os princípios são
normas, porque ambos dizem o que deve ser, e podem ambos ser formulados
com ajuda das expressões básicas do mandamento, a permissão e a proibição,
de forma que a distinção entre regras e princípios é uma distinção entre dois tipos
de normas. Consoante a lição do autor, o ponto decisivo para a distinção entre
235 Levando os direitos a sério, p. 42/43. 236 Norma geral antielisão e possibilidades de aplicação, In: Planejamento tributário, p. 156.
regras e princípios é que os princípios são normas que determinam que algo seja
realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e
materiais existentes. Portanto os princípios são mandamentos de otimização e
estão caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferente grau e a
medida desse cumprimento depende não apenas das possibilidades materiais,
mas também das jurídicas.237
As regras, por sua vez, são normas que podem ser atendidas ou
não, de forma que, se determinada regra é válida, há de se fazer exatamente o
que ela determina, nem mais nem menos. As regras contêm determinações no
âmbito do fático e juridicamente possível, o que significa que a diferença entre
regras e princípios é de ordem qualitativa e não de grau.
Aponta ainda o autor que a distinção entre regras e princípios fica
clara nas hipóteses de colisão entre princípios e de conflitos entre regras,
havendo de comum nas duas situações o fato de que duas normas, aplicadas
independentemente, conduzem a resultados incompatíveis, ou seja, a dois juízos
jurídicos de dever ser contrários, de modo que se diferenciam na forma de
solucionar o conflito.238
No que se refere ao conflito entre regras, valemo-nos das palavras
do próprio autor: “Un conflicto entre reglas sólo puede ser solucionado o bien
introduciendo en una de las reglas una cláusula de excepción que elimina el
conflicto o declarando inválida, por lo menos, una de las reglas. (...) Si una
solución de este tipo no es posible, por lo menos una de las reglas tiene que ser
declarada inválida y, con ello, eliminada del ordenamiento jurídico”. E ainda
237 Teoría de los derechos fundamentales, p. 83 e 86. 238 Teoría de los derechos fundamentales, p. 87.
prossegue afirmando que “Si se constata la aplicabilidad de dos reglas con
consecuencias recíprocamente contradictorias en el caso concreto y esta
contradicción no puede ser eliminada mediante la introducción de una cláusula de
excepción, hay entonces que declarar inválida, por lo menos, a una de las
reglas”.239
No que concerne à colisão entre princípios, entende ROBERT
ALEXY que “Cuando dos principios entran en colisión – tal como es el caso
cuando según un princípio algo está prohibido y, según outro princípio, está
permitido – uno de los dos princípios tiene que ceder ante el otro. Pero, esto no
significa declarar inválido al principio desplazado no que en el principio
desplazado haya que introducir una clausula de excepción. Más bien lo que
sucede es que, bajo ciertas circunstancias uno de los principios precede al otro.
Bajo otras circunstancias, la cuestión de la precedencia puede ser solucionada de
manera inversa. Esto es lo que se quiere decir cuando se afirma que en los casos
concretos los principios tienem diferente peso y que prima el principio con mayor
peso. Los conflictos de reglas se llevan a cabo en la dimensión de la validez; la
colisión de principios – como sólo pueden entrar en colisión principios válidos –
tiene lugar más allá de la dimensión de la validez, en la dimensión del peso”.240
Por sua vez, JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, seguindo os
caminhos dos dois autores mencionados, afirma que distinguir, no âmbito do
superconceito norma, as regras e os princípios é tarefa complexa e, para tanto,
sugere cinco critérios:241
239 Teoría de los derechos fundamentales, p. 88. 240 Teoría de los derechos fundamentales, p. 89. 241 Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1144/1145.
(i) quanto ao grau de abstração, os princípios são normas jurídicas
com elevado grau de abstração, ao passo que as regras possuem um grau de
abstração relativamente reduzida;
(ii) quanto ao grau de determinabilidade na aplicação do caso
concreto, os princípios, justamente por se revelarem vagos e indeterminados,
necessitam de mediações concretizadoras (do legislador ou do juiz, por exemplo),
enquanto as regras são passíveis de aplicação direta;
(iii) em razão do caráter de fundamentalidade no sistema das fontes
do direito, uma vez que os princípios possuem natureza estruturante e
desempenham relevante papel no ordenamento jurídico, quer em razão de sua
posição hierárquica quanto às fontes (princípios constitucionais), quer em razão
de sua importância estrutural no sistema (princípio do Estado de Direito);
(iv) ainda quanto à proximidade da idéia de direito, porque os
princípios são standards juridicamente vinculantes apoiados nas exigências de
justiça ou na idéia de direito, podendo as regras ser normas vinculativas com
conteúdo simplesmente funcional;
(v) e também no que diz respeito à natureza normogenética, dado
que os princípios constituem fundamento das regras, são normas que estão na
base e que configuram a razão das regras jurídicas.
O mestre português ainda aponta que a existência das regras e dos
princípios, tal como formulada por RONALD DWORKIN e ROBERT ALEXY,
possibilita a descodificação, em termos de um constitucionalismo adequado,
proposto pelo segundo autor, de estrutura sistêmica, “isto é, possibilita a
compreensão da constituição como sistema aberto de regras e princípios”.242
7. Influência da ideologia na interpretação
As considerações que tecemos até aqui nos leva a um tema que não
podemos deixar de enfrentar, qual seja, o da influência exercida pela ideologia
sobre o processo interpretativo ou, mais precisamente, sobre o intérprete. Se o
direito para ser aplicado necessita de interpretação; se o texto normativo é vazado
em enunciados lingüísticos cujo sentido não é exato; se são empregadas palavras
que, por sua própria natureza, são polissêmicas, e se a interpretação é tarefa
construtiva (atribuição de sentido ao texto legal) para a obtenção da norma
jurídica, então é de todo relevante considerar qual o efetivo papel desempenhado
pelo intérprete – sobretudo o intérprete autêntico – e quais as influências por ele
sofridas no desempenho de tal mister.
O conhecimento jurídico dito tradicional, caracterizado por um
formalismo acentuado, entende que a aplicação do direito (aí inclusa a atividade
do intérprete) dá-se por meio de um raciocínio dedutivo, com a utilização do
conhecido silogismo segundo o qual a lei é a premissa maior, o caso concreto é a
premissa menor e a conclusão é a regra específica reguladora do fato. Como
aponta LUÍS ROBERTO BARROSO, neste quadro referencial, “O Estado é árbitro
imparcial dos conflitos que ocorrem na sociedade, e o juiz, como aplicador do
direito, se pauta pela objetividade e neutralidade”.243
242 Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1146. 243 Interpretação e aplicação da constituição, p. 278.
Ocorre que tal quadro não parece corresponder à realidade pois,
como aponta o referido constitucionalista, “Além de não ser neutro, o direito não
tem a objetividade proclamada pelo raciocínio lógico-formal de subsunção dos
fatos à norma. Ao revés, é a indeterminação dos conteúdos normativos uma
marca do direito”.244 245
É bem verdade que há um imenso número de casos nos quais a
questão da ideologia não está presente e o tema das eventuais opções
valorativas do juiz não entra em discussão. Nessas hipóteses, ele cumpre, por
assim dizer, burocraticamente sua função de decidir o conflito de interesses,
como no caso de uma ação de indenização decorrente de colisão de veículos; na
hipótese de uma ação revisional de aluguel ou mesmo num homicídio levado a
termo na frente de vinte testemunhas.
A situação, entretanto, é muito diferente quando os casos são mais
complexos e há o envolvimento de princípios jurídicos e de valores que subjazem
a eles, nos quais existem várias possibilidades de interpretação igualmente
dotadas de razoabilidade. Em especial, nas hipóteses que envolvem discussão de
temas constitucionais – nos denominados casos difíceis (hard cases) – é
freqüente o conflito entre valores hospedados pela Constituição e, aí, a
interpretação e a aplicação da norma jurídica não se operam mecanicamente.
Por mais que se interprete e se reinterprete a Constituição com o
emprego dos vários métodos disponíveis, chega o momento em que o magistrado
244 Interpretação e aplicação da constituição, p. 280. 245 Também Alf Ross, tratando da teoria positivista-mecanicista, rejeita tal postura, ao afirmar que “Segundo esse quadro da administração da justiça, o juiz não valora nem determina sua postura ante a possibilidade de interpretações diferentes. O juiz é um autômato. Tem-se como pacífico que é necessário que se ajuste à lei e sua função se limita a um ato puramente racional: compreender o significado da lei e comparar a descrição desta dos fatos jurídicos aos fatos do caso que ele tem diante de si. Esse quadro não se assemelha em nada com a realidade” (Direito e justiça, p. 167).
depara com uma, duas, três ou quatro possibilidades de interpretação, todas elas
razoáveis, nenhuma delas que conduza ao absurdo e, portanto, todas situadas
dentre da moldura normativa. Neste momento, parece-nos que o intérprete
autêntico é obrigado a optar por uma das possíveis interpretações e tal opção
sofre necessariamente a influência da ideologia. Daí porque, como vimos, a
interpretação é ato de conhecimento e de vontade: conhecimento para perscrutar
o ordenamento jurídico e identificar as possibilidades interpretativas, e vontade
para escolher, para decidir por uma delas.
Com efeito, para interpretar a lei, é necessário ir do texto ao
contexto; do texto do dispositivo que se interpreta até o texto integral do diploma
normativo; deste último ao contexto do ordenamento jurídico, sempre se levando
em consideração o contexto dos fatos, do ambiente, das circunstâncias do caso
concreto ao qual se pretende aplicar a norma jurídica.246
Nessas idas e vindas, nesse caminhar do texto ao contexto e deste
novamente para o texto legal é que, segundo nos parece, dá-se a influência da
ideologia sobre o trabalho do intérprete, pois este não permanece ileso, não fica a
salvo das interferências diversas nem se pode colocar em posição de
neutralidade. Consoante salienta LUÍS ROBERTO BARROSO, “esta pressupõe
algo impossível: que o intérprete seja indiferente ao produto do seu trabalho”, e
que, quando se trata de escolha de valores e alternativas possíveis “mesmo
246 Acerca do tema, são as seguintes as palavras de Alf Ross: “O contexto não é apreendido simultânea, mas sucessivamente. Quando leio um livro, não é verdade que não confiro nenhum significado à primeira frase enquanto não ler a obra inteira. Entretanto, de todo modo, o contexto é co-determinativo. Acontece com freqüência minha compreensão das primeiras páginas do livro terem mudado quando eu o termino e recomeço sua leitura. Ocorre uma curiosa vibração interpretativa. Minha compreensão das primeiras frases co-determina a compreensão das seguintes. Mas minha apreensão do livro na sua totalidade, que surge como resultado, pode ter um efeito retroativo modificador que influencia minha compreensão das frases individuais e isto, por sua vez, oferece a possibilidade de minha concepção do todo poder acabar alterada, e assim sucessivamente” (Direito e justiça, p. 146).
quando não atue em nome dos interesses de classe ou estamentais, ainda
quando não milite em favor do próprio interesse, o intérprete estará sempre
promovendo as suas próprias crenças, a sua visão de mundo, o seu senso de
justiça”.247
Tais afirmações parecem encontrar apoio nas palavras de PAUL
RICOEUR, quando cuida da relação existente entre texto e leitor:
“Se não podemos definir a hermenêutica pela procura de um outro e
de suas intenções psicológicas que se dissimulam por detrás do
texto; e se não pretendemos reduzir a interpretação à desmontagem
das estruturas, o que permanece para ser interpretado?
Responderei: interpretar é explicitar o tipo de ser-no-mundo
manifestado diante do texto.
(..........)
Sobretudo, porém, a apropriação possui por vis-à-vis aquilo que
Gadamer chama de ‘a coisa do texto’ e que chamo de ‘o mundo da
obra’. Aquilo de que finalmente me aproprio é uma proposição de
mundo. Esta proposição não se encontra atrás do texto, como uma
espécie de intenção oculta, mas diante dele, como aquilo que a obra
desvenda, descobre, revela. Por conseguinte, compreender é
compreender-se diante do texto”.248
Ora, se se trata de interpretar um mundo que não está atrás do
texto, nem propriamente no texto, mas um mundo que se revela diante do texto,
então este é o mesmo mundo em que se encontra o intérprete, que se debruça,
portanto, em sua atividade exegética, no mundo do texto e do contexto. Vale
dizer, texto e intérprete são envolvidos pelo mesmo ambiente e nele sofrem a
247 Interpretação e aplicação da constituição, p. 289. 248 Interpretação e ideologias, p. 56/58.
influência de diversas forças, crenças, preconceitos, informações, contra-
informações e assim por diante.
Com base nessas premissas, podemos tecer três considerações. A
primeira é a de que reconhecer que a ideologia exerce influência no intérprete não
significa defendê-la tampouco fustigá-la; não implica dizer que ela é boa nem má;
não se pretende glorificá-la, transformando tudo em subjetivo (dando margem ao
subjetivismo), tampouco reconhecê-la como elemento vil que vem conspurcar a
pureza do direito; significa apenas e tão-somente que ela existe e, assim, não
pode ser ignorada.249
A segunda consideração a de que afirmar que a neutralidade do
intérprete não é possível não significa prescindir de outros elementos que devem
condicionar sua conduta, como a imparcialidade (ausência de interesse na
questão) e a impessoalidade (atenção com o bem comum, e não o favorecimento
de alguém).
Por último, a terceira refere-se à idéia ou ao conceito em que aqui
tomamos a ideologia, pois certamente não empregamos a palavra como sinônimo
de ideologia político-partidária nem mesmo no sentido pejorativo de elemento de
defesa de tal ou qual interesse.250
249 Marco Aurelio Greco afirma que “Fundamental não é reconhecer que na atividade do intérprete existe uma intersecção ideológica. Fundamental é ter consciência de que isto tem de ficar às claras! Existir esta influência sempre existiu; e não é de hoje que a interpretação jurídica tem como um de seus ingredientes a ideologia do intérprete. Fundamental é ter consciência disso, para que a ideologia entre pela porta da frente e não pela porta dos fundos” (Planejamento fiscal e interpretação da lei tributária, p. 114). 250 Nicola Abbagnano, no extenso verbete sobre o conceito de ideologia, aponta que “Em geral, portanto, pode-se denominar ideologia toda crença usada para o controle dos comportamentos coletivos, entendendo-se o termo crença (v.) em seu significado mais amplo, como noção de compromisso da conduta, que pode ter ou não validade objetiva. Entendido nesse sentido, o conceito de ideologia é puramente formal, uma vez que pode ser vista como ideologia tanto uma crença fundada em elementos objetivos quanto uma crença totalmente infundada, tanto uma crença realizável quanto uma crença irrealizável. O que transforma uma crença em ideologia não
Interessa-nos, assim, para o presente estudo, a noção de ideologia
como conjunto de determinados valores relevantes para o intérprete, a ponto de
sobre ele exercerem influência ou, em outras palavras, consideramos a ideologia
como valoração dos valores, na feliz expressão de TERCIO SAMPAIO FERRAZ
JUNIOR.251 252
A idéia da influência da ideologia sobre a atividade do intérprete, em
contraposição a um método jurídico de aplicação da lei dotado de objetividade e
neutralidade daquele, é bem ilustrada por LUÍS ROBERTO BARROSO ao
mencionar um célebre ensaio de direito constitucional norte-americano, intitulado
Em busca de princípios neutros de direito constitucional, de autoria do professor
da Universidade de Columbia, HERBERT WECHSLER, publicado em 1959.253 O
trabalho veio à luz no seio de críticas formuladas às decisões da Suprema Corte,
entre as quais a considerada “revolucionária decisão de integração racial”
proferida no caso denominado Brown versus Board of Education, no qual se
discutiu basicamente o desejo dos negros de frenqüentarem a escola com os
brancos e o desejo destes de a frenqüentarem sem os negros. Numa das mais
contudentes páginas do referido ensaio, HERBERT WECHSLER assim se
manifesta:
“O que caracteriza as decisões judiciais, em contraste com os atos
dos outros Poderes, é a necessidade de que sejam fundadas em
princípios coerentes e constantes, e não em atos de mera vontade
é sua validade ou falta de validade, mas unicamente sua capacidade de controlar os comportamentos em determinada situação” (Dicionário de filosofia, p. 531/533). 251 Introdução ao estudo do direito, p. 272. 252 É neste sentido também o ensinamento de Ricardo Lobo Torres, para quem “A interpretação jurídica está inteiramente vinculada aos valores e aos princípios gerais do Direito e, ao mesmo tempo, é um dos caminhos para a concretização desses valores. Nesse sentido é ideológica, até mesmo quando pretende ser neutra” (Normas de interpretação e integração do direito tributário, p. 341). 253 Interpretação e aplicação da constituição, p. 284/287.
ou sentimento pessoal. Discordo, assim, com veemência, daqueles
que, aberta ou encobertamente, sujeitam a interpretação da
Constituição e das leis a um ‘teste de virtude’, para verificar se o
resultado imediato limita ou promove seus próprios valores e
crenças.
Quem julga com os olhos no resultado imediato, e em função das
próprias simpatias ou preconceitos, regride ao governo dos homens,
e não das leis. Se alguém toma decisões levando em conta o fato de
que a parte envolvida é um sindicalista ou um contribuinte, um negro
ou um separatista, uma empresa ou um comunista, terá de admitir
que pessoas de outras crenças ou simpatias possam, diante dos
mesmos fatos, julgar diferentemente. Nenhum problema é mais
profundo em nosso constitucionalismo do que este tipo de avaliação
e de julgamento ad hoc”.254
As idéias defendidas no texto acima são inegavelmente bem
construídas e podem perfeitamente encontrar aplicação, sem mais dificuldades.
Na maioria dos casos de atividade de interpretação judicial, inclusive na
interpretação constitucional, podem revelar-se importante contraponto ao
entendimento oposto se adotado de modo extremado, isto é, decisões judiciais
fundamentadas exclusivamente na consideração dos resultados. Não obstante, a
força dos argumentos diminui sensivelmente quando se observa que, pelo método
defendido pelo autor norte-americano, ele condenou a decisão proferida pela
Suprema Corte no caso Brown versus Board of Education – que permitiu o acesso
dos negros às escolas com os brancos – em razão da sua falta de neutralidade,
porque não se poderia objetivamente fundamentar a opção pela tese dos negros
em detrimento da dos brancos.
254 Interpretação e aplicação da constituição, p. 285.
O que procuramos demonstrar é que a neutralidade desejada por
alguns, se levada às últimas conseqüências aplicativas, pode simplesmente
desprezar a realidade existente – o mundo real regulado pelo direito – e levar a
resultados desastrosos quando estão em jogo valores sociais, políticos,
econômicos e outros relevantes para toda a sociedade. Desse modo, se não
pretendemos que o viés ideológico presente na interpretação venha a dominar a
atividade do intérprete, levando-o a decisões desarrazoadas, parciais ou mesmo
arbitrárias, não se pode desprezar o fato de que a ausência total de ideologia – se
isso fosse possível – e o apego excessivo ao formalismo poderiam igualmente
conduzir a resultados indesejáveis.255
Nesse sentido, é significativo o trecho do voto do Ministro MARCO
AURÉLIO, do Supremo Tribunal Federal, segundo o qual “Ao examinar a lide, o
magistrado deve idealizar a solução mais justa, considerada a respectiva
formação humanística. Somente após, cabe recorrer à dogmática para,
encontrado o indispensável apoio, formalizá-la”.256 257
Ademais, efetuando ligeiro regresso ao trecho do ensaio do
professor norte-americano que reproduzimos há pouco, a defesa da neutralidade
– ausência de ideologia e nenhuma preocupação com os resultados da decisão
judicial – tal como exposta, não deixa de representar ela mesma uma posição
255 Tercio Sampaio Ferraz Junior salienta que “Essa limitação teórica pode comportar posicionamentos cognitivos diversos que podem conduzir, por vezes, a exageros, havendo quem faça do estudo do direito um conhecimento demasiado restritivo, legalista, cego para a realidade, formalmente infenso à própria existência de fenômeno jurídico como um fenômeno social ...” (Introdução ao estudo do direito, p. 48). 256 Recurso Extraordinário nº. 111.787-7. 257 Tal passagem é semelhante a esta outra, de Alf Ross: “Uma vez os fatores de motivação combinados – as palavras da lei, as considerações pragmáticas, a avaliação dos fatos – tenham produzido seu efeito na mente do juiz e o influenciado a favor de uma determinada decisão, uma fachada de justificação é construída, amiúde discordante daquilo que, na realidade, o fez se decidir da maneira que decidiu” (Direito e justiça, p. 182).
ideológica, qual seja, a ideologia da indiferença, opção tão ideológica quanto
qualquer outra.
De qualquer modo, sem prejuízo de tudo quanto afirmamos, há uma
consideração a ser feita, que se revela tão óbvia quanto fundamental, consistente
em que, se a ideologia for tomada como valoração de valores, certamente não
será qualquer valor que poderá sustentar a decisão. Os valores que poderão ser
objeto de ponderação são aqueles que evidentemente forem prestigiados pelo
ordenamento jurídico, expressa ou implicitamente, e não os que eventualmente
contarem com a simpatia do aplicador do direito, mas sem nenhuma referência de
sustentação no direito positivo. Daí decorre a acentuada relevância da
fundamentação da decisão, para que a influência da ideologia na atividade do
intérprete – preferibilidade de valores – seja identificada no corpo da decisão, a
fim de que possa ser alvo de irresignação, por meio dos recursos previstos no
sistema, e para que se possa verificar se o valor prestigiado no caso concreto
encontra abrigo ordenamento e em que medida.
Em outros termos, quando mencionamos a influência da ideologia na
atividade do intérprete – em especial na do intérprete autêntico – parece ficar
claro que não é qualquer ideologia que pode exercer tal influência, mas somente
aquela autorizada pelo sistema do direito positivo.
Finalmente, a fim de explicitar o que procuramos demonstrar neste
item, vejamos, ainda que perfunctoriamente, três exemplos fornecidos por
precedentes jurisprudenciais.
O primeiro é do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação
Direta de Inconstitucionalidade nº. 319-DF, relator Ministro MOREIRA ALVES, em
que se discute a possibilidade de o Poder Executivo, por meio da Lei Federal nº.
8.039, de 30 de maio de 1990, dispor sobre critérios de reajuste das
mensalidades escolares. O conflito de valores nesta hipótese é estabelecido entre
o fundamento da livre iniciativa e do princípio da livre concorrência (previstos na
Constituição Federal, artigo 170, caput e inciso IV) com os da defesa do
consumidor e da redução das desigualdades sociais (artigo 170, inciso V e artigo
3º., inciso III).
O segundo é do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do
Recurso Especial nº. 197. 329 – SP, relator o Ministro EDUARDO RIBEIRO, cujo
tema repousa no exercício do direito de recesso de sócios minoritários, previsto
no artigo 137 da Lei Federal nº. 6.404/76, discutindo-se na ação judicial a
utilização pouco usual do instituto jurídico do direito de recesso por um grupo de
acionistas que, segundo consta do acórdão, ter-se-iam valido do referido direito
apenas para “auferir lucros injustificados”, caso em que se deu provimento ao
apelo especial da companhia, com fundamento na norma de interpretação
prevista no artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil. Aqui o conflito entre
princípios (e entre os valores que lhes são adjacentes) materializa-se, de um lado,
pelo direito de propriedade e percepção de seus frutos (Constituição Federal,
artigo 170, inciso II, e artigo 137 da Lei nº. 6.404/76) e, de outro, pela boa-fé (Lei
de Introdução ao Código Civil, artigo 5º) e mesmo pela ilicitude decorrente do uso
irregular de um direito (Código Civil de 1917, artigo 160).
O terceiro exemplo é oriundo do Tribunal Regional Federal da
Terceira Região, na Apelação Cível nº. 261.220 (95.03.052961-1), relator o Juiz
Federal (convocado) DAVID DINIZ DANTAS, no seio de ação civil pública na qual
se discute “de um lado a necessidade imediata de ações concretas do Estado
para proteção da saúde e vida de uma criança de um ano e dez meses, sendo
que do outro lado nos deparávamos com um momento ainda inicial de
implantação dessa rede de serviços de saúde, onde a distribuição de
competências; ações e principalmente a estruturação econômica do SUS não se
apresentavam adequadamente definidas, fatos esses que tornavam justificável a
dúvida de quem deveria figurar no pólo passivo da ação (União ou INSS)”. Da
análise do acórdão depreende-se que o recurso de apelação interposto pelo
Instituto Nacional do Seguro Social sustentava sua ilegitimidade ad causam, com
o argumento de que nenhum texto legal atribui ao INSS a responsabilidade pela
gestão da saúde pública do Brasil, com o requerimento de denunciação à lide da
União, do Governo Estadual e do Governo Municipal, e ainda, como argumento
contrário à concessão do referido direito social (fornecimento do medicamento), o
fato de que “a caracterização desses direitos como vinculantes para o Estado
levaria ao deslocamento da política social, passaria da competência do
Executivo/Legislativo, para o Poder Judiciário”. Nessa interessante hipótese, o
conflito de princípios exterioriza-se, como consta do próprio acórdão: de um lado,
“no âmbito dos direitos fundamentais, além do genérico princípio da dignidade
humana (art.1º, III, da CF), os seguintes princípios específicos da ordem social: de
proteção ao menor (art. 227 da CF), do direito à saúde (art. 196 e seguintes da
CF), da assistência social (art. 203 e 204 da CF) e da solidariedade (princípio
constitucional implícito). De outro lado, mostrando-se como obstáculo ao exercício
do direito à assistência médica concreta do Estado, o princípio democrático (art.
1º da CF) e o princípio da separação dos poderes (art. 2º da CF)”.
Independentemente das decisões proferidas nos casos concretos,
cabe notar que eles constituem relevantes exemplos de conflitos entre princípios,
sempre com o chamamento de valores prestigiados pelo ordenamento jurídico
(hospedados pelo sistema), em hipóteses de difícil solução (hard cases), nas
quais o intérprete-juiz vê-se obrigado, considerando as especificidades do caso
concreto, a ponderar os valores envolvidos e a optar por um deles, ou seja, fazer
com que um prevaleça sobre o outro no caso específico, em seara onde viceja a
influência da ideologia na atividade exegética.
Diga-se de passagem, no campo do direito tributário, não são raras
as oportunidades em que se constata o conflito entre valores, como, por exemplo,
capacidade contributiva e solidariedade social (ligados à justiça da tributação) e
legalidade e tipicidade (relacionados à segurança jurídica).258
8. Limites da interpretação
A última questão a que devemos procurar responder é a seguinte: se
interpretar é atribuir sentido ao texto normativo, onde está o limite ao significado
que se pode dar ao texto? Ou, em outras palavras, até que ponto pode caminhar
o intérprete no trilhar do caminho hermenêutico?
UMBERTO ECO afirma que “Poder-se-ia dizer que um texto, depois
de separado de seu autor (assim como da intenção do autor) e das circunstâncias
concretas de sua criação (e, conseqüentemente, de seu referente intencionado),
258 Para outros dois interessantes exemplos envolvendo metodologia interpretativa e conflitos entre princípios, consultem-se o artigo de doutrina “Regime constitucional do controle de preços no mercado” de Fábio Konder Comparato (Revista de Direito Público, vol. 97) e o parecer “Despesa pública. Conflito entre princípios e eficácia das regras jurídicas. O princípio da sujeição da administração às decisões do poder judiciário e o princípio da legalidade da despesa pública” de Eros Roberto Grau (Revista Trimestral de Direito Público, vol. 2).
flutua (por assim dizer) no vácuo de um leque potencialmente infinito de
interpretações possíveis”. 259 Tal afirmação, entretanto, evidentemente não
significa que a interpretação não tenha fim, sobretudo no caso da interpretação da
lei, em virtude de sua peculiaridade fundamental, que é o fato de ser interpretada
porque é necessário determinar seu sentido e alcance para aplicá-la a
determinado caso, de modo que afirmar que a interpretação comporta muitas
possibilidades não implica a viabilidade de todas elas.
O autor italiano não se refere especificamente à interpretação de
textos jurídicos, mas, com os devidos ajustes, muito de seu pensamento pode ser
aplicado à hermenêutica jurídica, uma vez que tanto nessa área do conhecimento,
como em outras, são muitas e variadas as possibilidades de interpretação dos
textos. O professor catedrático de Semiótica na Universidade de Bolonha
reconhece que o próprio texto interpretado impõe limites ao seu intérprete, de
modo que a mensagem do texto pode significar muitas coisas, mas não se
poderia dizer que ela pode significar qualquer coisa, porque há sentidos que seria
despropositado aceitar, quando afirma que “Se há algo a ser interpretado, a
interpretação deve falar de algo que deve ser encontrado em algum lugar, e de
certa forma respeitado”.260
Esta última afirmação parece-nos bastante sugestiva e, transpondo-
a para a área de nosso interesse, podemos afirmar que se há necessidade de
aplicar a norma jurídica e, para tanto, deve-se interpretar o texto normativo (para
deste extrair aquela), então falar dos limites da interpretação do texto significa, de
certo modo, respeitar o texto da norma e a própria norma, caso contrário a lei
259 Interpretação e superinterpretação, p. 48. 260 Interpretação e superinterpretação, p. 60/61.
deixaria de ser a pauta regulatória de comportamentos e negar-se-ia a sua própria
razão de ser, como elemento disciplinador de condutas humanas intersubjetivas.
HUMBERTO ÁVILA, que reconhece que a atividade do intérprete,
quer o julgador, quer o cientista do direito, não se limita a apenas descrever os
significados dos dispositivos, mas em constituir esses significados, de modo que o
intérprete não somente constrói, mas reconstrói sentidos, aponta a idéia do limite
nos seguintes termos “Daí se dizer que interpretar é construir a partir de algo, por
isso significa reconstruir: A uma, porque utiliza como ponto de partida os textos
normativos, que oferecem limites à construção de sentidos; a duas, porque
manipula a linguagem, à qual são incorporados núcleos de sentidos, que são, por
assim dizer, constituídos pelo uso, e preexistem ao processo interpretativo
individual”.261
No caso de nosso tema, ao analisarmos o texto da lei tributária para
verificar se o legislador, ordinário ou complementar, agiu dentro de suas
possibilidades – quanto aos conceitos constitucionais utilizados para a outorga da
competência tributária – o Poder Judiciário (intérprete autêntico) possui também
ele uma margem para a construção e a reconstrução do conteúdo significativo
dos conceitos, mas evidentemente encontra limites “cuja desconsideração cria um
descompasso entre a previsão constitucional e o direito constitucional
concretizado”.262
A constatação inevitável da existência de limites à interpretação do
texto normativo leva-nos à idéia daquilo que talvez pudéssemos denominar de
coeficiente de elasticidade da norma jurídica, isto é, a medida da maleabilidade da
261 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 24/25. 262 Humberto Ávila, Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 26.
norma que permite, por meio da interpretação, adaptá-la ao caso concreto; que
possibilita sua aplicação para atender às especificidades da hipótese fática
considerada, devendo-se notar a interreferibilidade existente entre norma e fato,
pois a norma que tem por objeto conformar o fato – oferecendo-lhe regramento
jurídico – é por ele, em certa medida, conformada.
Em outros termos, se considerássemos a norma jurídica – em
especial, a norma constitucional – como algo rígido, espesso, protegido contra a
manipulação de seus contornos (manipulação no bom sentido da palavra),
provavelmente, a pretexto de protegê-la e prestigiá-la, estaríamos negando seu
potencial de eficácia, sua possibilidade de aplicação aos mais variados e
complexos fatos da realidade social.
Os conceitos constitucionais, segundo pensamos, podem ser
trabalhados até determinado limite, representado, entre outros, pelo postulado da
proibição do excesso. Assim, por exemplo, o limite da construção do conceito
constitucional de receita refere-se imediatamente à ofensa ao direito de
propriedade, de forma que não são todas as receitas que podem ser objeto da
tributação, mas algumas delas, ou, em outro exemplo, o limite da constatação da
capacidade contributiva materializa-se no aparecimento do efeito confiscatório,
por mais fluido que este possa revelar-se.
A interpretação não é aleatória, não é um jogo de dados. O
dispositivo constitucional não pode ser tomado como pretexto para qualquer
interpretação, pois há atribuições de sentido que se revelam descabidas,
despropositadas, fora dos parâmetros das possibilidades razoáveis. Podemos,
portanto, interpretar e reinterpretar, preenchendo várias vezes o conteúdo
significativo do conceito constitucional até o ponto em que isso não mais seja
possível, porque a interpretação se desborda do razoável e do racional –
revelando-se, por assim dizer, uma superinterpretação – e ultrapassamos o
coeficiente de elasticidade da norma, rompendo-se o liame congruente entre o
texto da norma e a norma.
O mencionado coeficiente de elasticidade representa o grau
aceitável em que se pode esticá-la, estendê-la; o ponto até o qual podemos levar
o seu conteúdo normativo, isto é, o marco representado pelo limite da
interpretação, sem que ultrapassemos o referido coeficiente, momento no qual a
norma, por demasiadamente elastecida, rompe-se, e aí já não há interpretação,
mas superinterpretação, uma interpretação fora do limite.
Cabe notar que esse desrespeito ao dito coeficiente pode dar-se
quer pela estrita positividade, quer pelo desvio extremado da positividade, tanto
pelo apego demasiado à letra da lei, quanto pelo afastamento excessivo dela,
como podemos notar pelos dois exemplos seguintes.
No caso da imunidade relativa a impostos sobre livros, prevista no
artigo 150, inciso VI, alínea d, da Constituição Federal, discute-se na doutrina e
na jurisprudência qual o alcance efetivo da norma imunizante, para se saber se
ela contempla ou não o chamado livro eletrônico. Parece-nos que a interpretação
da referida norma imunizatória, considerando-se o valor prestigiado no dispositivo,
obriga-nos ao reconhecimento de que a imunidade aplica-se ao livro impresso em
papel, ao livro eletrônico e mesmo a qualquer outro tipo de livro que a tecnologia
ainda seja capaz de inventar, uma vez que, segundo nos parece, aquilo que se
deseja proteger da incidência dos impostos é a obra cultural contida no livro (o
conteúdo informativo) e não a forma, o veículo em que ela se encontra. Nesse
caso, segundo pensamos, o apego excessivo à letra do texto normativo
(positividade acentuada) vem a desrespeitar o coeficiente de elasticidade.
O segundo exemplo é também relativo à imunidade, desta feita
àquela prevista no artigo 149, parágrafo 2º, inciso I, segundo o qual as
contribuições sociais e as de intervenção no domínio econômico não incidem
sobre as receitas decorrentes de exportação. Aqui a controvérsia se instala
porque há entendimento doutrinário que afirma que a imunidade alcança não
somente as contribuições incidentes sobre as receitas, mas também aquela
incidente sobre o lucro, em razão de uma interpretação teleológica do dispositivo
constitucional, que tem por objetivo incentivar as exportações. É evidente que a
razão da imunidade é o apoio às atividades de exportação, entretanto, não
podemos entender que isso signifique que se deva estender a norma imunizante
para também alcançar o lucro decorrente daquelas atividades, tendo-se em vista
que receita e lucro são realidades distintas, são conceitos representativos de
parcelas diferentes da realidade, às quais a norma constitucional dispensa
tratamentos jurídicos diversos e concede imunidade apenas a uma delas. Podia o
legislador constitucional contemplar ambas com a imunidade, mas não o fez.
Optou por uma delas e excluiu da desoneração das contribuições a outra, razão
pela qual, com a devida vênia, a pretendida interpretação ampla do dispositivo
constitucional (pelo afastamento demasiado da letra do texto) também leva ao
desrespeito ao coeficiente de elasticidade da norma jurídica.
Com tais considerações esperamos ter deixado claro nosso
entendimento quanto ao reconhecimento de que existem limites à atividade de
interpretação dos textos normativos. Cabe-nos, agora, a parte mais difícil da
tarefa, consistente em averiguar onde estão os limites. O que procuramos fazer
em seguida é propor alguns critérios, elementos que podem servir de apoio para
identificar os limites da interpretação, sem evidentemente pretender esgotar o
tema, pois certamente estamos muito longe disso. Trata-se apenas de sugerir
cinco parâmetros iniciais de abordagem da questão, que constitui tão-somente um
trato provisório da matéria, que é de alta e notória complexidade.
8.1 Sentido literal possível
Embora consideremos que interpretar é atribuir sentido ao texto e
construir a norma jurídica, nem por isso pensamos que a interpretação é deixada
ao arbítrio do intérprete, pois, como já vimos, o objeto da interpretação é o texto
normativo e tal texto não pode transformar-se em pretexto para qualquer
interpretação que dele se pretenda fazer.
O texto normativo é o ponto de partida e de chegada da
interpretação; é o marco inicial de onde o intérprete começa o percurso
interpretativo, para atribuir-lhe sentido, e é também o ponto para o qual deve o
intérprete retornar, ao final, para verificar se o sentido atribuído cabe ou não no
texto normativo, uma vez que, como acentua KARL LARENZ, “Uma interpretação
que se não situe já no âmbito do sentido literal possível, já não é interpretação,
mas modificação de sentido”.263
Esse sentido literal lingüisticamente possível, na maioria dos casos
não é de tranqüila verificação, pela própria natureza polissêmica das palavras e
263 Metodologia da ciência do direito, p. 454.
porque depende do contexto em que a palavra (ou o conceito) é utilizada. Nem
por isso torna-se impossível constatar certas oportunidades nas quais a
interpretação desborda-se do limite razoável (superinterpretação), ao atribuir
sentido para a palavra (ou para o conceito) que ela evidentemente não pode
aceitar. Ainda que não possamos sempre afirmar, com acentuada precisão, aquilo
que a palavra significa, podemos dizer, entretanto (com acentuada margem de
segurança), aquilo que ela não significa.
Conforme afirma KARL LARENZ, “Por sentido literal possível
entendo tudo aquilo que nos termos do uso lingüístico que seja de considerar
como determinante em concreto – mesmo que, porventura, em circunstâncias
especiais – pode ainda ser entendido como o que com esse termo se quer dizer.
Pode certamente ser duvidoso em alguns casos, dado que os limites do sentido
literal linguisticamente possível tão-pouco se encontram sempre traçados com
exactidão, se trata ainda de interpretação muito ‘ampla’ ou já de integração de
lacunas por analogia. A impossibilidade de uma delimitação rigorosa não impede,
no entanto, uma distinção, entendida esta não tanto conceptualmente, mas
tipologicamente. Na grande maioria dos casos é bem possível dizer-se que um
evento a caracterizar de modo distinto se encontra de fora do campo de
significação deste termo, do seu sentido literal possível”.264
Desse modo, se, no processo interpretativo, compreende-se
provisória como permanente; trinta dias como mais de trinta dias; todos os
recursos como alguns recursos; ampla defesa como defesa restrita; manifestação
concreta de capacidade econômica como manifestação provável da capacidade
264 Metodologia da ciência do direito, p. 454.
econômica; lei como decreto; posse como propriedade e receita como despesa,
certamente tal interpretação extrapola os seus limites de possibilidade porque
ignora o sentido literal possível dos termos ou dos conceitos interpretados.
8.2 Âmbito ou domínio da norma
O segundo aspecto está relacionado com aquilo que KARL LARENZ
denomina interpretação materialmente adequada e que se deve levar em
consideração “na sua especificidade e na sua estrutura especial a coisa de cuja
regulação se trata na norma a interpretar”,265 ou seja, trata-se de averiguar qual o
campo da realidade que é objeto de regramento jurídico, como, por exemplo, as
sociedades limitadas, a concorrência, o meio ambiente, a política de exportação e
assim por diante.
É de FRIEDRICH MÜLLER a expressão domínio da norma (ou
âmbito da norma), com a qual designa esses setores da realidade para os quais
volta-se a norma jurídica com o objetivo de regramento ou regulação, entendendo
por este “o recorte da realidade social na sua estrutura básica, que o programa da
norma ‘escolheu’ para si ou em parte criou para si como seu âmbito de
regulamentação”.266
Com tal critério, portanto, que apontamos como elemento limitativo
da interpretação, há de se averiguar qual a finalidade da norma, isto é, qual a
razão pela qual a norma foi criada, diante daquela parcela do mundo real que ela
recortou com o propósito de conferir-lhe regime jurídico nesta ou naquela direção.
Mais do que isso, há de se analisar a medida respectiva do regramento jurídico,
265 Metodologia da ciência do direito, p. 470. 266 Métodos de trabalho do direito constitucional, p. 57.
vale dizer, como, de que modo, e em qual grau se deu a regulação normativa; há
de se apurar, por assim dizer, a relação de congruência entre norma e fato
regulado, entre a realidade normalizada e o efetivo tratamento normativo
dispensado a ela.
Dessa forma, julgamos que estes dois elementos – parcela da
realidade recortada pela norma (domínio normativo) e regramento jurídico
oferecido – constituem limite à interpretação do respectivo texto normativo,
porque devem ser respeitados como fronteira material à atribuição de sentido que
se pretenda dar ao texto.
Se determinada lei, que tenha por domínio normativo a proteção do
meio ambiente, por exemplo, vier a impor a obrigatoriedade de as empresas
químicas diminuírem o volume de gases expelidos para a atmosfera, a
interpretação do texto legal diante dos casos concretos não pode levar, em
nenhuma hipótese, à permissão da manutenção do volume de gases expelidos,
porque tal interpretação, ainda que pudesse ser tida como razoável (porque, afinal
de contas, não se elevaria o volume de gases expelidos), não atende às
peculiaridades do domínio normativo.
8.3 Exigência de decidibilidade
A decidibilidade, que abordamos no início do presente trabalho,
comparece aqui como limite da interpretação em virtude da finalidade prática da
atividade exegética, uma vez que aquele que interpreta o texto legal sempre o faz
com vistas à sua aplicação a um caso concreto que reclama solução.
Desse modo, diante da necessidade de se obter solução para o
problema apresentado, há de haver um limite na tarefa interpretativa que não
permita, por assim dizer, uma interpretação que tenda a não ter fim, pois este
impediria a obtenção da decisão.
Entre as várias possibilidades de interpretação (alternativas
localizadas dentro da moldura), chega o momento no qual o intérprete se vê
obrigado a optar por uma delas, que, no seu entendimento, é aquela que melhor
solução oferece para o caso, em virtude dos valores envolvidos ou dos bens
jurídicos tutelados, de modo que aqui o limite da interpretação é a necessidade de
oferecer solução ao caso concreto (decidibilidade).
Esse é o ensinamento de TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR:
“Ora, no Direito, segue-se, em vista desta tensão, que não apenas estamos
obrigados a interpretar (não há norma sem sentido nem sentido sem
interpretação), como também deve haver uma interpretação e um sentido que
preponderem e ponham um fim (prático) à cadeia das múltiplas possibilidades
interpretativas. O critério para entender-se este fim prático é a própria questão
que anima a ciência jurídica: o problema da decidibilidade, isto é, criar-se
condições para uma decisão possível”.267
A interpretação do texto legal encontra, assim, o seu limite diante
daquela hipótese determinada, com atribuição de sentido ao texto e obtenção da
norma jurídica aplicável, uma vez que, como o demonstra a jurisprudência, é
possível que se reinicie a interpretação do mesmo texto legal diante de novo
267 A ciência do direito, p. 73.
problema. De qualquer modo, a interpretação deve desenvolver-se até o ponto
em que possamos encontrar solução razoável para o caso concreto.
8.4 Proibição do excesso
O postulado da proibição do excesso tomado como limite da
interpretação significa que, entre as interpretações possíveis, deve prevalecer
aquela que, prestigiando um princípio, não implique a restrição demasiada de
outro princípio envolvido no caso concreto.
Como afirma HUMBERTO ÁVILA, “A realização de uma regra ou
princípio constitucional não pode conduzir à restrição a um direito fundamental
que lhe retire o mínimo de eficácia. Por exemplo, o poder de tributar não pode
conduzir ao aniquilamento da livre iniciativa”.268
Como exemplo, verifique-se o caso noticiado pelo referido autor
sobre a Representação nº. 1.077-5-RJ, na qual o Supremo Tribunal Federal
deferiu medida liminar suspendendo a aplicação de uma lei estadual que havia
elevado os valores da taxa judiciária em 827%, sob o entendimento de que tal
elevação viria a impedir o acesso à prestação jurisdicional de uma grande parcela
da população. Nesse caso, embora a elevação do valor da taxa judiciária seja
permitida pelo ordenamento jurídico – e talvez fosse mesmo necessária (porque
seu valor poderia estar muito defasado) –, a elevação concreta foi considerada
excessiva, porque poderia implicar na restrição a um direito fundamental.
Outro possível exemplo é aquele relativo ao poder de polícia fiscal e
à medida de seu exercício, nos casos de instauração de procedimentos especiais
268 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 89.
rigorosos de fiscalização sobre contribuintes suspeitos da prática de sonegação
fiscal, que são obrigados a obter autorização específica dos agentes
administrativos para cada operação realizada (carimbo na nota fiscal). Embora a
fiscalização mais rigorosa possa encontrar amparo no direito positivo, não se
poderia aceitar, por exemplo, a exigência de que o contribuinte comparecesse
diariamente ao posto fiscal para que pudesse realizar operações de saída de
mercadorias, porque tal medida, a propósito de prestigiar o interesse público,
restringiria em demasia o direito do contribuinte.
O postulado da proibição do excesso, assim, pode revelar-se como
elemento de limite na interpretação do texto normativo, pois exige do intérprete
atenção especial quanto ao resultado do processo interpretativo, no que se refere
ao mínimo de eficácia dos princípios envolvidos no caso concreto.
8.5 Efeitos concretos da decisão
O último elemento que mencionamos como possível agente limitador
da interpretação da lei materializa-se nos efeitos concretos da decisão, ou seja,
nas conseqüências geradas por esta ou aquela interpretação, critério
especialmente relevante no caso da interpretação realizada pelo intérprete-juiz,
uma vez que este, ao deparar com as possibilidades existentes dentro da
moldura, deve avaliar, deve ponderar quais os efeitos concretos da interpretação-
decisão que irá adotar.
Isso não significa, já o afirmamos desde logo, que o juiz deva ceder
a pressões sociais, políticas, econômicas, religiosas e outras tais, ou mesmo a
argumentos falaciosos de uma suposta supremacia pura e simples do interesse
público sobre o particular, de modo que, ao ponderar as conseqüências de sua
decisão (e de sua interpretação, em especial a do texto constitucional), ele fosse
obrigado a abandonar a imparcialidade e a impessoalidade no ato de julgar.
Em vez disso, afirmamos que, ao interpretar o texto normativo e
buscar a resposta para o problema que aguarda solução, o intérprete autêntico
não pode esquecer que sua decisão, em última análise, não responde a meros
interesses acadêmicos ou científicos e muito menos encontra razão de ser no
diletantismo, mas, muito diversamente, objetiva aplicar a norma jurídica ao caso
concreto, regulando a vida em sociedade e, desse modo, não pode desprezar os
efeitos de sua decisão sobre esta sociedade à qual sua decisão se direciona.
Um exemplo do que procuramos afirmar pode ser encontrado no
julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, da Ação Declaratória de
Constitucionalidade (Medida Cautelar) nº. 9-6-DF, cujo objeto é a Medida
Provisória nº. 2.152-2/01, que instituiu medidas restritivas à utilização de energia
elétrica. Da análise do voto da Ministra ELLEN GRACIE, por exemplo, pode-se
notar claramente a preocupação com os efeitos da decisão e a consideração da
situação fática, que ensejou a edição da Medida Provisória, chegando mesmo a
Ministra a mencionar a inapelabilidade dos fatos.
Outro notável exemplo é o voto do Ministro CÉSAR PELUSO, na
Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 3.105-8-DF, cujo objeto é a contribuição
previdenciária dos aposentados e pensionistas, no qual o Ministro, reconhecendo,
por um lado, que ao Poder Judiciário não cabe “substituir-se aos órgãos
republicanos competentes para legislar e para definir políticas públicas, nem
tampouco de se fazer de intérprete de aspirações populares que encontram, nas
urnas, o instrumento constitucional de expressão e decisão”, por outro ele não
deve deixar de considerar em sua decisão a “complexidade jurídica e as
repercussões sociais, econômicas e políticas do caso”.
Essa necessidade de atenção com os efeitos da decisão já fora
vislumbrada por KARL LARENZ, nos seguintes termos: “Decerto que se poderá,
por exemplo, resolver muitas vezes sobre recursos constitucionais de modo
rotineiro, com os meios normais da argumentação jurídica. Aqui tão-pouco faltam
casos comparáveis. Mas, nas resoluções de grande alcance político para o futuro
da comunidade, estes meios não são suficientes. Ao Tribunal Constitucional
incumbe uma responsabilidade política na manutenção da ordem jurídico-estadual
e da sua capacidade de funcionamento. Não pode proceder segundo a máxima:
fiat justitia, pereat res publica. Nenhum juiz constitucional procederá assim na
prática. Aqui a ponderação das conseqüências é, portanto, de todo
irrenunciável...”.269
269 Metodologia da ciência do direito, p. 517.
CAPÍTULO 6
CONSTRUÇÃO DO CONTEÚDO DOS CONCEITOS CONSTITUCIONAIS
1. Imperativo lógico da existência do conceito pressuposto
A expressão imperativo lógico da existência do conceito pressuposto
é da lavra do professor JOSÉ ARTUR LIMA GONÇALVES, que se utilizou dela
para tratar especificamente do conceito de renda, mas cujo ensinamento é
aplicável aos diversos conceitos: “Não há outra solução lógico-sistemática para
essa questão. Admitindo-se que é a Constituição que confere ao legislador
infraconstitucional as competências tributárias impositivas, o âmbito semântico
dos veículos lingüísticos por ela adotados para traduzir o conteúdo dessas regras
de competência não pode ficar à disposição de quem recebe a outorga de
competência”.270
270 Imposto sobre a renda: pressupostos constitucionais, p. 171.
A existência pressuposta dos conceitos constitucionais referentes à
outorga de competência deriva basicamente de três fatores: (i) da supremacia
normativa da Constituição Federal, (ii) da repartição da competência tributária
com base nos conceitos e (iii) da adoção do critério da materialidade para a
discriminação dessa competência.
Com relação ao primeiro aspecto, a supremacia normativa da
Constituição reveste-se da qualidade de verdadeiro princípio de interpretação,
tendo-se em vista que a Carta Política situa-se hierarquicamente no ápice do
ordenamento jurídico e, por tal razão, todas as normas jurídicas são a ela
reconduzidas e nela encontram seu fundamento de validade formal e material.
Daí porque os conceitos utilizados não estão à livre disposição do
legislador infraconstitucional, pois se a legislação ordinária pudesse estabelecer
qual o conteúdo dos conceitos, então a lei é que diria aquilo que a Constituição
significa, o que não é possível. Em função de sua supremacia normativa, a
Constituição que determina como a lei pode ser e – mais do que isso – como a lei
deve ser.
A supremacia normativa da Constituição é tratada por EDUARDO
GARCÍA DE ENTERRÍA com estas palavras:
“La supremacía de la Constitución sobre todas las normas y su
carácter central en la construcción y en la validez del ordenamiento
en su conjunto, obligan a interpretar éste en cualquier momento de
su aplicación – por operadores públicos o por operadores privados,
por Tribunales o por órganos legislativos o administrativos – en el
sentido que resulta de los principios y reglas constitucionales, tanto
los generales como los específicos referentes a la materia de que
se trate.
Este principio es una consequencia derivada del carácter normativo
de la Constitución y de su rango supremo y está reconocido en los
sistemas que hacen de esse carácter un postulado básico. Así, en
Estados Unidos, todas las Leyes y los actos de la Administración
han de interpretarse in harmony with the Constitution; en Alemania el
mismo principio impone die verfassungskonforme Auslegung von
Gesetzen, la interpretación de las Leyes conforme a la Constitución.
En ambos casos, como prácticamente en todos los paises com
justicia constitucional, el principio es de formulación
jurisprudencial.”271
Tal relevante circunstância é colocada em relevo pelo Ministro JOSÉ
CELSO DE MELLO FILHO ao afirmar que “É preciso respeitar, de modo
incondicional, os parâmetros de atuação delineados no texto constitucional. Uma
Constituição escrita não configura mera peça jurídica, nem é simples estrutura de
normatividade e nem pode caracterizar um irrelevante acidente histórico na vida
dos Povos e das Nações. (...) A Constituição não pode submeter-se à vontade
dos poderes constituídos e nem ao império dos fatos e das circunstâncias. A
supremacia de que ela se reveste – enquanto for respeitada – constituirá a
garantia mais efetiva de que os direitos e as liberdades não serão jamais
ofendidos”.272
Por essas razões acompanhamos JOSÉ ARTUR LIMA
GONÇALVES na irretocável lição do imperativo lógico da existência dos
conceitos, porque é justamente em virtude da supremacia da Constituição que os
conceitos determinam e direcionam a atuação do legislador, caso contrário, se ele
271 La constitución como norma y el tribunal constitucional, p. 95. 272 Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 293-7600-DF – medida liminar, julgamento de 06 de junho de 1990.
pudesse fixar amplamente o conteúdo dos conceitos, não haveria supremacia
constitucional e implodir-se-ia a lógica estrutural do ordenamento jurídico.
O segundo aspecto diz respeito à repartição constitucional da
competência tributária que, feita com base nos aludidos conceitos, constitui
reserva material da Constituição Federal. O exercício da competência cabe aos
entes federativos, que somente podem atuar dentro dos moldes fixados pela
Carta, mas sua discriminação é matéria exclusiva da Constituição, razão pela qual
os conceitos não podem ser manipulados pelo legislador, pois tratar dos conceitos
significa alterar a discriminação da competência e isso lhe é proibido.
Como acentua HUMBERTO ÁVILA, “A reserva material
constitucional é estabelecida diretamente nos casos em que a Constituição utiliza
expressões, como renda, rendimento, capital, faturamento ou salário, que já
possuem sentidos mínimos incorporados ao uso ordinário ou técnico da
linguagem”.273
O terceiro aspecto, decorrente dos dois primeiros, refere-se ao fato
de os conceitos estarem intimamente ligados ao critério da materialidade adotado
pela Constituição Federal na discriminação da competência tributária. Ao outorgar
tal competência, considerando toda a base tributável (todos os fatos econômicos
reveladores de riqueza), a Lei Maior determina quais poderão ser tributados pela
União, pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios, e tal divisão do
poder impositivo é levada a termo com base no critério da materialidade que,
como a própria expressão antecipa, informa a matéria fática sobre a qual pode ser
instituída a tributação.
273 O imposto sobre serviços e a Lei Complementar nº . 116/03, In: O ISS e a LC 116, p. 166.
É a materialidade que permite separar e identificar o que vêm a ser,
a título de exemplo, produtos industrializados, operações relativas à circulação de
mercadorias e prestações de serviço de qualquer natureza. É ela que indica que
faturamento é diferente de receita, que é diferente de lucro e que estes são
diferentes de renda, para fins de tributação. Por isso, a repartição da competência
tributária feita pela Constituição somente faz sentido – sendo esta uma condição
inafastável – se adotarmos como premissa a existência conceitos constitucionais,
isto é, um conceito mínimo de significado para cada matéria prevista na Carta,
que permita distinguir as parcelas da realidade ali designadas.
Em outros termos, como veremos em seguida, ainda que os
conceitos não se encontrem exaustivamente delimitados na Constituição, a sua
existência e o seu mínimo de conteúdo semântico constituem um pressuposto de
interpretação e de aplicação do texto constitucional; é uma condição estrutural
intrínseca à própria discriminação de competência tributária.
2. Conceito constitucional como elemento integrante da regra de
outorga de competência tributária
As idéias desenvolvidas até aqui nos permitem concluir que conceito
constitucional é um elemento integrante e indissociável da regra constitucional de
outorga de competência tributária.
Nessa regra de autorização para a instituição do tributo – que
determina o sujeito ativo da obrigação tributária e permite identificar o passivo e,
ainda, indica a base de cálculo possível – encontramos o conceito constitucional
que fixa a parcela da realidade que poderá ser alvo da lei impositiva e que,
justamente por fazer parte da norma de outorga de competência (que tem sede
exclusivamente constitucional), não pode estar à disposição dos interesses do
legislador infraconstitucional.
JOSÉ ARTUR LIMA GONÇALVES, referindo-se especificamente ao
conceito de renda e à rigidez do sistema tributário nacional, afirma que todas as
premissas estabelecidas em seu estudo “conduzem à firme e inexorável
conclusão de que o conceito de renda – tendo sido utilizado para implementação
de repartição constitucional de competência tributária impositiva – é
constitucionalmente pressuposto, não podendo ficar (por exigência lógico-
sistemática) à disposição do legislador infraconstitucional”.274
Considerando o conceito constitucional como elemento componente
da própria outorga de competência, podemos também afirmar sua natureza
jurídica que, segundo nosso ponto de vista, é de limitação constitucional ao poder
de tributar, porque estabelece – em posição hierárquica superior no ordenamento
jurídico – qual o limite do legislador, porque determina o que ele pode e não fazer
relativamente ao poder de tributar que recebeu. Em uma palavra, fornece a
medida da competência tributária.
Dessa forma, embora acreditemos que o legislador possua uma
certa margem de liberdade para trabalhar com os conceitos, esta área livre é
apurada com base na análise do conceito presente na Constituição, porque este –
ao lado da discriminação da competência relativa a cada pessoa política tributante
e sem prejuízo das limitações específicas previstas nos artigos 150 e seguintes
do Texto Constitucional – também representa uma limitação ao poder de tributar.
274 Imposto sobre a renda: pressupostos constitucionais, p. 196.
3. Conceito constitucional não-exaustivo
Afirmamos ainda há pouco que o conceito constitucional integra a
regra de outorga de competência e que não é encontrado na Constituição de
modo pronto e acabado (com os contornos semânticos claramente especificados),
de modo que existe uma certa margem de liberdade para o legislador na
construção de seu conteúdo significativo. E não poderia ser de outra forma
porque o próprio exercício da competência tributária pressupõe a liberdade do
legislador de cada ente tributante na tarefa de instituição do tributo, em vista de
sua conveniência e da necessidade de adaptação da lei impositiva à realidade de
cada esfera de poder.
Ademais, não seria conveniente que a própria Constituição Federal
viesse a descrever pormenorizadamente as características de cada tributo e a
conformar sua estrutura jurídica, porque, a pretexto de discriminar a competência,
acabaria por praticamente instituí-lo, ocorrência que não se ajustaria ao perfil da
República Federativa.
De qualquer modo, essa denominada não-exaustividade do conceito
constitucional decorre de imediato, entre outros fatores, do fato de as palavras
serem vagas, apresentando quase todas elas um núcleo de significado preciso e
uma área cinzenta em torno daquele, cujo significado não é claro.
É isso o quanto afirma GENARO R. CARRIÓ, para quem “Los
lenguajes naturales contienen palabras vagas. Com esto quiero referirme al
siguiente fenómeno: muchas veces el foco de significado es único, y no plural ni
parcelado, pero el uso de una palabra tal como de hecho se la emplea, hace que
sea incierta o dudosa la inclusión de un hecho o de un objeto concreto dentro del
campo de acción de ella. Hay casos típicos frente a los cuales nadie en su sano
juicio dudaría en aplicar la palabra en juego. Hay casos claramente excluidos del
campo de aplicación del vocablo. Pero hay otros que, a diferencia de los primeros
y de los segundos, no están claramente incluidos ni excluidos”.275
Também JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, ao tratar da
mediação do conteúdo semântico da norma, reconhece que o fato de o texto ser o
primeiro elemento do processo de interpretação e de concretização constitucional
não significa que o texto ou a letra da lei contenham a decisão do problema a ser
solucionado mediante a aplicação das normas constitucionais que buscamos
interpretar. Reconhecendo a existência de problemas lingüísticos, acentua que
“Os enunciados lingüísticos são, noutros casos, vagos (= conceitos vagos,
conceitos indeterminados), havendo, ao lado de “objectos” que cabem
inequivocadamente no âmbito conceitual (= candidatos positivos) e ao lado de
objectos que estão claramente excluídos do âmbito intencional do conceito (=
candidatos negativos), outros objectos em relação aos quais existem sérias
dúvidas quanto à sua caracterização (= candidatos neutrais)”.276
Parece não haver dúvida quanto ao fato de o legislador – também
ele um intérprete da Constituição – gozar de liberdade relativa para interpretar as
disposições constitucionais, em especial aquelas que lhe outorgam competência
tributária e, em conseqüência, desfrutar de certa margem de liberdade na
construção do conteúdo significativo dos conceitos constitucionais presentes na
referidas normas de competência.
275 Notas sobre derecho y lenguaje, p. 137. 276 Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1201.
Entretanto, reconhecer que as palavras, que os signos lingüísticos,
que as expressões e que os enunciados normativos são plurisignificativos, vagos
ou ambíguos, não significa dizer que não têm significado determinável.
Não estamos a defender, por assim dizer, uma concepção conceitual
da realidade – ou uma busca pela essência das coisas – com base na informação
que seria fornecida pela palavra empregada, como se ela, por si só, pudesse
indicar o objeto que representa pela essência deste, isto é, pela sua verdadeira
forma de ser. Não é disso que tratamos. Apenas procuramos reconhecer que,
embora o significado possa variar segundo o uso da palavra ou das
circunstâncias que o cercam, nem por isso tal significado pode variar em qualquer
medida.
4. Conteúdo semântico mínimo e máximo
Seguindo tal raciocínio, o que buscamos defender é a idéia segundo
a qual, por maior que seja a variação do âmbito semântico que um conceito possa
apresentar, ele sempre traz consigo um significado que lhe é indissociável, por
mais limitado que seja.
Nas palavras rigorosas de PAULO DE BARROS CARVALHO,
estabelecer o conteúdo do conceito implica a determinação dos “limites do seu
campo de irradiação significativa”, e que “definir é operação lógica demarcatória
dos limites, das fronteiras, dos lindes que isolam o campo de irradicação
semântica de uma idéia, noção ou conceito”.277
277 IPI – Comentários sobre as regras gerais de interpretação da tabela NBM/SH (TIPI/TAB), In: Revista Dialética de Direito Tributário, vol. 12, p. 53 e 56.
Em outros termos, por mais vaga ou ambígua que possa ser a
palavra, por mais que dependa do contexto em que é utilizada para se apurar o
seu significado, nem por isso ela deixa de possuir um significado intrínseco, uma
carga mínima de significação que não lhe pode ser separada. Este, aliás, é o
escólio de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, que ensina:
“Segue-se que, nada obstante existam as situações fronteiriças,
penumbrosas, onde proliferam as incertezas, há também áreas de
inquestionável certeza sobre o cabimento do conceito. Aliás, se não
existissem tais áreas, as palavras seriam meros ruídos sem qualquer
conteúdo. Não seriam signos, é dizer, significantes, e a comunicação
humana tornar-se-ia impossível.
Logo deflui disto, que a imprecisão ou fluidez das palavras
constitucionais não lhes retira a imediata aplicabilidade dentro do
campo induvidoso de sua significação. Supor a necessidade de lei
para delimitar este campo, implicaria outorgar à lei mais força que à
Constituição, pois deixaria sem resposta a seguinte pergunta: De
onde a lei sacou a base significativa para dispor do modo em que o
fez, ao regular o alcance do preceito constitucional?”.278
Portanto parece-nos que os conceitos constitucionais utilizados para
a outorga de competência tributária possuem um conteúdo semântico mínimo que
delimita a região material do mundo fenomênico ao qual se referem e limita o
exercício do poder de tributar, razões mais que suficientes para que o legislador
infraconstitucional não possa dele se afastar no desempenho de sua função
legiferante.279
278 Eficácia das normas constitucionais sobre justiça social, In: Revista de Direito Público, vol. 57/58, p. 245. 279 Outra não é a constatação de Humberto Ávila ao salientar que “Afirmar que o significado depende do uso não é o mesmo que sustentar que ele só surja com o uso específico e individual. Isso porque há traços de significado mínimos incorporados ao uso ordinário ou técnico da
Por um lado, o conteúdo semântico mínimo é dado por aquilo que o
conceito evidentemente significa, a “área de inquestionável certeza sobre o
cabimento do conceito” como, por exemplo, para fins de tributação, o conceito de
receita indica no mínimo uma entrada de recursos financeiros no patrimônio; o
conceito de lucro supõe minimamente um resultado positivo (e nunca negativo) de
determinada atividade empresarial, e o conceito de propriedade predial e territorial
urbana obriga, pelo menos, que o imóvel-objeto da lei impositiva não esteja
situado no meio da floresta.
Por outro lado, os conceitos possuem ainda um conteúdo semântico
máximo, que também poderá experimentar variações em virtude do uso e das
circunstâncias, e representa o limite da significação que podem suportar.
Esse conteúdo máximo de significação, no que concerne ao uso do
conceito no exercício da competência tributária, somente poderá ser apurado
diante do caso concreto, isto é, por meio da análise da lei instituidora do tributo e
de suas especificidades. Uma vez que o conteúdo do conceito pode ser, em certa
medida, trabalhado pelo legislador para fins de tributação, é necessário averiguar
no produto de seu trabalho qual a conformação legislativa dada ao conceito, ou
seja, cumpre avaliar se o legislador, partindo do conteúdo semântico mínimo,
ingressou na área de livre estipulação do conceito – ali oferecendo tratamento
normativo aos diversos fatos e situações abrangidos pela lei – para se verificar se,
ao final, manteve-se na aludida área ou extrapolou os limites de possibilidade.
linguagem. Wittgenstein refere-se aos jogos de linguagem: há sentidos que preexistem ao processo particular de interpretação, na medida em que resultam de estereótipos de conteúdos já existentes na comunicação lingüistica geral” (Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 24).
Diga-se de passagem, ultrapassar esses limites de possibilidade –
violar a significação máxima que o conceito pode razoavelmente suportar – pode
significar, no direito tributário, desbordar-se da capacidade contributiva e adentrar
o terreno do efeito confiscatório.
Dessa forma, o conteúdo semântico máximo indica aquilo que o
conceito não pode significar, como pretender tributar, por exemplo, a título de
faturamento, todas as receitas obtidas pelo contribuinte; desejar tributar, como
receita, valores recebidos por força de indenização, ou mesmo procurar exigir
imposto sobre a renda tomando por base um decréscimo patrimonial.
5. Direito tributário como direito de sobreposição
É comum encontrarmos na doutrina, e mesmo na jurisprudência, a
afirmação de que o direito tributário é um direito de sobreposição, referindo-se tal
aspecto à relação existente entre ele e as outras áreas do direito positivo. Como
se sabe, essa divisão do direito em áreas ou em campos distintos é meramente
didática e decorre da progressiva complexidade das relações sociais, o que exige
uma certa especialização no seu estudo, embora se revele lição das mais óbvias
a impossibilidade de se estudar qualquer área do direito positivo sem analisar
concomitantemente as outras. Assim, até mesmo a chamada autonomia didática
do direito tributário (assim como das outras subáreas) é sempre relativa em
virtude da inafastável unicidade do direito positivo.
Cabe notar que, quando afirmamos que o direito tributário é de
sobreposição, não fazemos referência a essa natural relação de interdependência
deste com as outras áreas do direito positivo, mas ao fato de que ele – em sua
específica forma de disciplina e de regulação da realidade, realizada
evidentemente para fins tributários – volta-se para atos, fatos, estados, situações
e bens que também constituem objeto de disciplina jurídica por outros quadrantes
do ordenamento.
Em outras palavras, a norma jurídica de direito tributário, na
qualidade de elemento que regula a instituição e a cobrança de tributos, bem
como a relação havida entre o Estado e o contribuinte (que gravita em torno da
obrigação tributária), dispõe prescritivamente sobre os mais variados fatos (em
sentido amplo) do mundo fenomênico que, por sua vez, também são regulados
por normas jurídicas dos outros campos do direito positivo.
Esse é o ensinamento de GIAN ANTONIO MICHELI ao afirmar que
“o caráter instrumental da norma tributária se manifesta exatamente na exigência
que lhe é co-natural de dever fazer freqüentemente referência a fatos ou atos, já
disciplinados pelo Direito, de forma que a regra de Direito Tributário deve ser
coordenada com aquela que é classificada em outros ramos do Direito”.280
No momento em que o direito tributário pretende apanhar em suas
malhas normativas determinados fatos signos presuntivos de riqueza, vale-se, no
mais das vezes, de conceitos e institutos já regulados por outras normas jurídicas
de outros quadrantes, como ocorre quando a lei tributa uma transmissão de
propriedade de um imóvel por ato oneroso (a compra é venda é regulada pelo
direito civil); quando estrutura uma relação tributária em torno de um ato de
transmissão de um bem em virtude de herança (a sucessão é regida pelo direito
civil); quando determina a incidência de determinada obrigação sobre o salário
280 Curso de direito tributário, p. 9.
(este é regulado pelo direito do trabalho), ou ainda quando cria exigência tributária
sobre o faturamento (conceito oriundo do direito comercial), daí porque se trata de
direito de sobreposição, porque atua normativamente sobre conceitos trabalhados
por outras áreas do direito positivo.281
Um dos aspectos de maior relevância do que apontamos
(sobreposição do direito tributário sobre as outras áreas do direito) repousa na
necessidade de saber se, ao fazer referência aos conceitos fornecidos pelas
outras áreas do direito – ao valer-se dos institutos regulados pelas normas dos
outros quadrantes normativos – o direito tributário obriga-se a obedecer o
regramento, as características e as propriedades conferidas a eles pelas normas
jurídicas não-tributárias. Com relação a tal ponto, reconhecendo a relação
existente entre as várias normas jurídicas (de direito civil, de direito administrativo,
de direito penal e outros, com o direito tributário), GIAN ANTONIO MICHELI
afirma que “Nem sempre, porém, a referência acarreta que o instituto, dirigido por
outras normas (por exemplo: do Direito Civil) seja acolhido pela norma de
imposição no mesmo sentido e com as mesmas características que lhe são
próprias num diverso ramo do Direito. Porém, em outros casos, ocorre o
contrário”.282
Pensamos que ambas as situações sejam possíveis, pois pode a
norma tributária, em determinados casos, alterar certas características presentes
nos conceitos dos outros ramos do direito, para fins e efeitos tributários, sendo-lhe
281 No dizer de Luciano Amaro: “Na busca de manifestação de riqueza, reveladoras de capacidade contributiva, a lei fiscal alcança atos, situações, negócios que, engendrados embora sob a ótica de outros códigos de normas legais, evidenciam um conteúdo econômico que os torna passíveis de incidência tributária” (Direito tributário brasileiro, p. 13). 282 Curso de direito tributário, p. 7.
vedado, entretanto, em outras específicas hipóteses, modificar os contornos dos
conceitos trazidos das outras áreas do direito para a esfera tributária.
Independentemente da variação das possibilidades, o tema, como
podemos notar, possui íntima relação com o preenchimento do conteúdo dos
conceitos constitucionais, razão pela qual salientamos alguns de seus outros
aspectos no próximo item.
6. Texto normativo e contexto
A idéia da relação do direito tributário com as outras áreas remete-
nos à questão do contexto, sintetizada em conhecida concepção, segundo a qual,
na interpretação do direito, é necessário ir do texto ao contexto. Portanto, na
construção do conteúdo significativo dos conceitos constitucionais, devemos ir do
texto normativo para o contexto que o envolve, e tal percurso interpretativo pode
ser feito com base em dois aspectos, a saber: o contexto é tomado em várias
acepções e sua consideração como elemento exegético não implica o desprezo
pela supremacia normativa da Constituição.
Interpretar o texto normativo com a consideração do contexto
significa aceitar, para aquilo que por ora nos interessa, que o conteúdo de
significação do conceito possa variar, dependendo do contexto em que é utilizado.
Assim, retomando nossa afirmação, o núcleo significativo do
conceito não se irá alterar (conteúdo semântico mínimo), assim como a borda
externa limitativa do significado também há de se manter (conteúdo semântico
máximo), sendo justamente a área existente entre um e outro que poderá
experimentar variação de significado em razão do contexto.
6.1 Contexto intranormativo
O contexto intranormativo é aquele presente no interior do próprio
texto normativo, no corpo do mesmo diploma legal, e relaciona o conceito
utilizado pelo texto e os elementos que lhe estão próximos.
Um primeiro exemplo a ser citado pode ser o artigo 195, inciso I,
alíneas a, b e c, da Constituição Federal, que determina que a seguridade social
será financiada por toda a sociedade e prevê cinco possíveis fontes de custeio, a
saber, a folha de salários, os demais rendimentos do trabalho, a receita, o
faturamento e o lucro. Coloca, dessa forma, à disposição do legislador
infraconstitucional cinco parcelas distintas da realidade, das quais ele poderá
valer-se, se assim o desejar, para sobre elas fazer incidir contribuições sociais,
deixando claro, pela análise do contexto imediato que envolve o termo receita,
que esta não poderá ser confundida com o lucro (texto e contexto circunscritos
pelo mesmo dispositivo constitucional).
Uma segundo exemplo pode dar-se com a análise do conceito
constitucional de faturamento, diante do contexto fornecido pela própria
Constituição Federal, desta feita no artigo 153, inciso III, que prevê o imposto
sobre a renda, de modo que é determinado ao legislador e aos demais intérpretes
da Carta da República que renda não pode ser considerada como faturamento.
Ainda que o legislador, como afirmamos reiteradas vezes, tenha uma certa
margem de liberdade no preenchimento de ambos os conceitos, não poderá
evidentemente aproximá-los excessivamente se criarem a contribuição social e o
imposto.
Parece certo que o faturamento pode até mesmo compor o conceito
de renda, vale dizer, aquele pode ser um dos elementos formadores desta, mas
não pode com ela equiparar-se ou confundir-se (neste caso, texto e contexto são
circunscritos entre dois diferentes capítulos da Constituição: o da Seguridade
Social e o do Sistema Tributário Nacional).
Um terceiro exemplo pode ser dado pela análise conjunta do artigo
155, inciso II e seu parágrafo 2°, inciso II, alíneas a e b, que, com relação ao
imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias, prescrevem que a
isenção ou a não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação, não
implicará crédito para compensação com o montante devido nas operações ou
prestações seguintes e acarretará a anulação do crédito relativo às operações
anteriores; com o artigo 153, inciso IV e seu parágrafo 3°, inciso II, que
estabelecem que o imposto sobre produtos industrializados será não-cumulativo,
compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado
nas anteriores. Silencia-se, entretanto, este último dispositivo, quanto ao não
aproveitamento do crédito nas hipóteses de isenção e de não-incidência.
Assim, na análise contextual de ambos os dispositivos (artigos 155 e
153) pode-se notar os diferentes contornos do conceito constitucional da não-
cumulatividade, quando aplicada ao ICMS e ao IPI (aqui, texto e contexto são
dados por diferentes dispositivos constitucionais, embora pertencentes ao mesmo
capítulo da Carta).283
6.2 Contexto internormativo 283 Sobre a análise contextual, verifique-se a excelente passagem dos ensinamentos de José Artur Lima Gonçalves, quando examina os conceitos próximos ao de renda (Imposto sobre a renda: pressupostos constitucionais, p. 177/179).
O contexto internormativo é dado pela consideração combinada de
dois ou mais diplomas legais (em sentido amplo), tomando-se, assim, o conceito
constitucional (texto) e outros elementos que lhe dizem respeito (contexto), como
a análise da Constituição Federal e a de determinada lei ou o exame de uma lei
com outra lei.284
Um primeiro exemplo possível é o do mencionando artigo 195, inciso
I, alínea a, da Constituição Federal, que prevê a contribuição social incidente
sobre a folha de salários. É certo que o conceito de salário encampado pela Carta
da República é o fornecido pelo direito do trabalho, especificamente pela
Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, havendo, inclusive, decisão do
Supremo Tribunal Federal acerca de tal circunstância (texto e contexto são dados
pela Constituição e por uma lei ordinária).
Outro exemplo é o artigo 156, inciso I, que prevê o imposto sobre a
propriedade predial e territorial urbana e o conceito constitucional de propriedade
utilizado pode ser haurido nas previsões normativas estabelecidas pelo direito civil
(aqui, novamente, texto e contexto são observados entre a Constituição Federal e
uma lei ordinária, o Código Civil).
Uma terceira hipótese é a da Lei Federal nº. 9.532, de 10 de
dezembro de 1997, que trata do regime jurídico tributário dos lucros auferidos por
empresas controladas, coligadas e sucursais de pessoas jurídicas brasileiras.
Tais conceitos, relativos às espécies de empresas, são previstos na Lei Federal
284 Parece-nos que adotar, como elemento de auxílio na interpretação, o contexto internormativo, e, deste modo, levar em consideração os dispositivos normativos infraconstitucionais, não significa negar a supremacia normativa da Carta Constitucional tampouco interpretá-la com base na lei. Em vez disso, sem perder de vista sua posição superior, procuramos não nos esquecer de que a Constituição – a par de inaugurar o ordenamento jurídico e de dar-lhe fundamento de validade – a ele também pertence, de modo que a consideração das normas jurídicas infraconstitucionais na interpretação da Lei Maior pode revelar-se (mais) um critério relevante na tarefa interpretativa.
nº. 6.404, de 15 de dezembro de 1976, e são trazidos para a legislação do
imposto sobre a renda (neste caso, texto e contexto são obtidos pela análise
combinada de duas leis ordinárias).
6.3 Contexto interdisciplinar
O contexto interdisciplinar pode ser visualizado na relação existente
entre os conceitos utilizados pelo direito positivo e aqueles trabalhados por outras
áreas do conhecimento humano, como a economia, a contabilidade, a
engenharia, a medicina e outras.
Embora também nesses campos do conhecimento exista a
regulação de comportamentos por meio de normas jurídicas, nem por isso deixam
de existir certos conceitos, institutos e elementos cujos contornos semânticos são
trabalhados e construídos pelas suas respectivas áreas, com maior densidade
significativa do que pela área jurídica. Todavia nada impede que o direito positivo
venha a utilizar-se de tais conceitos para o regramento jurídico de diversas
condutas no seio da sociedade, como ocorre, por exemplo, com os termos
superávit primário e atualização monetária (economia); receita e despesa
(contabilidade); planta topográfica e elemento químico (engenharia); e nascimento
com vida e morte cerebral (medicina).
É bem verdade que o direito pode construir o conteúdo semântico de
tais institutos por meio de um disciplinamento autônomo e dar-lhes novos
contornos de significação – distintos, pois, daqueles existentes nas outras áreas
do conhecimento – assim como pode optar por trazê-los para o universo jurídico
com as mesmas características e propriedades que lá possuem. Não obstante,
julgamos não ser conveniente desprezar as informações, os elementos e as
propriedades dos objetos apuradas nos outros campos do labor humano, em
virtude da relevância que podem apresentar para a operacionalização e para a
funcionalidade do direito positivo.
Diga-se de passagem, o direito positivo não fica atrelado aos
conceitos fornecidos pelas mencionadas áreas, ou seja, não lhes deve obediência
restrita quanto aos respectivos significados; entretanto parece-nos que este é um
contexto que não pode ser desprezado pelos intérpretes do ordenamento jurídico.
A questão relevante consiste em saber se, no momento em que o
direito traz para o universo normativo os conceitos oriundos de outras esferas de
conhecimento ou de investigação científica, ele o faz com os mesmos conteúdos
de significação original ou se lhes modifica os significados.
6.4 Contexto do uso lingüístico
O contexto do uso lingüistico diz respeito ao que mencionamos há
pouco, ou seja, à necessidade de se saber se a Constituição Federal, na regra de
outorga de competência tributária, utilizou-se dos conceitos com significado
comum (aquele usado vulgar e rotineiramente pelas pessoas, sem maior
preocupação com a precisão do sentido) ou com significado técnico (tal como
usado pelos especialistas, com precisão quanto ao significado e propriedades).
Tal indagação a ninguém causa surpresa, pois o estudioso que se
venha a debruçar sobre o ordenamento jurídico não encontrará dificuldades para
perceber que os textos legais ora utilizam-se das palavras ou dos conceitos com o
significado comum, ora emprega-os com o significado técnico, isto é, com o
conteúdo semântico que lhes é atribuído pelo próprio direito positivo, pelos
precedentes jurisprudenciais e mesmo pela ciência do direito.
O artigo 146, inciso I, da Constituição Federal, ao prescrever
normativamente que cabe à lei complementar dispor sobre conflitos de
competência, em matéria tributária, entre as pessoas políticas tributantes,
certamente não propicia dúvidas quanto ao fato de que competência encerra
evidentemente um conceito técnico, pois trata-se de competência tributária,
aquela aptidão possuída pelas referidas pessoas para instituir tributos.
De igual modo, o artigo 150, inciso III, alínea a, ao referir-se a fatos
geradores, parece não ensejar controvérsias quanto ao uso de tal expressão em
seu sentido técnico, tal como sedimentado ao longo dos anos pela jurisprudência
e, em especial neste caso, pela ciência do direito.
O mesmo artigo 150, caput, combinado com o inciso VI, alínea d, ao
prever que é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios
instituir impostos sobre periódicos, parece utilizar-se da palavra periódicos em seu
sentido comum, fazendo referência às publicações regulares, isto é, com alguma
periodicidade, sem que haja margem para maiores questionamentos quanto ao
significado do termo. É bem verdade que se poderá indagar se determinada
publicação feita a cada dez anos pode ou não ser considerada periódica para fins
do gozo da imunidade prevista no artigo 150 mas, de qualquer modo, trata-se de
hipótese que não encerra controvérsia quanto ao sentido do vocábulo periódico.
Da mesma forma, o artigo 150, parágrafo 7º, da Constituição, ao
disciplinar a responsabilidade pelo pagamento do imposto ou da contribuição, usa
a palavra pagamento em seu sentido comum. Embora seja certo que o
pagamento de tributos esteja submetido a regime jurídico próprio, que lhe confere
características peculiares quando comparado, por exemplo, com o pagamento de
dívida decorrente de obrigação contratual assumida entre particulares, parece
razoável supor que pagamento é sempre uma das formas possíveis pelas quais o
devedor satisfaz sua dívida perante o credor, daí sua utilização em sentido
comum no dispositivo constitucional apontado.
Seria desnecessário mencionar que a análise sobre o emprego dos
conceitos com sentido comum ou técnico depende evidentemente do modo como
são utilizados e do contexto no qual se encontram inseridos.
7. Processo de jurisdicização do conceito
Mencionamos ainda há pouco que o direito tributário, como direito de
sobreposição, pode lançar mão de subsídios fornecidos por outras áreas do
conhecimento humano e apropriar-se de conceitos ali trabalhados, para disciplinar
a outorga de competência tributária, quer tomando-os com o mesmo conteúdo
significativo, quer alterando sua significação originária, por meio da ampliação ou
da redução de características significativas.
Afirmamos também que, em princípio, nada impede que o direito
positivo e, em especial, a Constituição Federal venha a utilizar-se dos conceitos
sedimentados pela economia ou pelas ciências contábeis, por exemplo. De
qualquer modo, tanto no primeiro caso (adoção do significado original), quanto no
segundo (utilização com significado alterado), é relevante saber com qual
conteúdo semântico o conceito é trazido para o ordenamento, ou seja, com qual
conteúdo de significação o conceito foi jurisdicizado.
O legislador constituinte, ao empregar termos como renda, receita,
faturamento e folha de salários, entre outros, para discriminar a competência
tributária, tinha em mente parcelas da realidade (atos, fatos, situações) mais ou
menos definidas representadas pelos referidos conceitos, isto é, possuía uma
idéia relativamente determinada daquilo que tais termos representam, caso
contrário não poderia deles utilizar-se em tal tarefa e não faria mesmo sentido o
seu emprego para a discriminação da parcela do poder de tributar que cabe a
cada ente federativo. Neste momento, no instante em que são encampados pela
Constituição Federal, dá-se aquilo que denominamos processo de jurisdicização
dos conceitos, por meio do qual certos termos, vocábulos, expressões –
conceitos, enfim – oriundos de outras áreas do conhecimento humano são
incorporados pelo direito positivo, neste caso por sua utilização pela Constituição
Federal.
Portanto parece-nos que pouco importa que os conceitos usados
sejam oriundos da economia, das ciências das finanças ou de outras áreas
estranhas ao universo jurídico, pois o fundamental é averiguar o conteúdo
significativo com o qual eles foram incorporados pelo direito positivo, isto é, a
carga semântica com a qual eles foram jurisdicizados (como, de que modo, com
quais propriedades e características e com obediência a quais limites de
irradiação significativa).
Desse modo, na construção do conteúdo significativo dos conceitos
constitucionais por meio da interpretação – tal qual a temos considerado até aqui,
com todas as influências que pode sofrer e com todas as vicissitudes pelas quais
pode passar – é necessário averiguarmos, ao final, qual o conceito jurídico obtido,
ou, em outros termos, cumpre analisarmos se o conceito finalmente construído
cabe ou não na Carta da República.
Um bom exemplo da idéia que procuramos defender é dado por
JOSÉ LUIZ BULHÕES PEDREIRA, ao tratar do conceito jurídico de renda:
“Mas a lei ordinária, ao definir os rendimentos ou a renda sujeitos ao
tributo, não é livre para escolher qualquer base imponível, e há de
respeitar o conceito de ‘renda e proventos de qualquer natureza’
constante da Constituição: as definições adotadas pela lei ordinária
devem ser construídas e interpretadas tendo em vista a
discriminação constitucional de competências tributárias, e estão
sujeitas ao teste de constitucionalidade em função da sua
compatibilidade com essa discriminação.
(.....)
O conhecimento do conceito de renda é, portanto, indispensável
para o julgamento da constitucionalidade da lei federal que define a
base de cálculo do impôsto de ‘renda e proventos de qualquer
natureza’ que a Constituição atribui à União; ou das leis estaduais e
municipais que instituam impostos ou taxas que, sob outras
designações, incidam realmente sôbre a renda. E para êsse efeito,
nem o legislador nem o intérprete é livre para adotar o conceito de
renda de sua preferência: deve procurar aquêle que melhor se ajuste
ao sistema de distribuição de competências tributárias constante da
Constituição.
(.....)
A Constituição Federal autoriza a União a impor tributos sôbre a
‘renda e os proventos de qualquer natureza’. No exercício do Poder
Legislativo cabe ao Congresso Nacional definir, na legislação
ordinária, o que deve ser entendido por renda, para efeitos de
tributação. Mas ao definir a renda tributável o Congresso Nacional
tem o seu poder limitado pelo sistema constitucional de distribuição
do poder tributário, e fica sujeito à verificação, pelo Poder Judiciário,
da conformidade dos conceitos legais com os princípios da
Constituição. O Congresso pode restringir ou limitar o conceito de
renda e proventos de qualquer natureza constante da Constituição,
mas não ampliá-lo além dos limites compatíveis com a distribuição
constitucional de rendas.”285
Assim ocorre, por exemplo, com o conceito de faturamento,
trabalhado pelas ciências contábeis e pelo direito comercial e considerado, em
termos estritos, como o ato de faturar, como a atividade de emitir fatura (um
documento específico), daí porque faturamento pode ser tido como o produto em
dinheiro decorrente da emissão de faturas ou do respectivo recebimento, pelo
emitente, das importâncias ali constantes. Não obstante, no julgamento da
questão da constitucionalidade da contribuição social incidente sobre o
faturamento (na construção do conteúdo desse conceito constitucional, levado a
termo diante do caso concreto), considerou-se que faturamento, para esse
específico fim, corresponde à receita decorrente da venda de mercadorias, de
mercadorias e serviços e de serviços de qualquer natureza, ainda que, em
algumas hipóteses, o recebimento da respectiva receita pudesse ocorrer sem a
emissão daquele documento denominado fatura.
Nesse caso, independentemente do acerto ou não da decisão
proferida pelo Supremo Tribunal Federal, o fato é que o conceito constitucional de
faturamento foi construído, pela interpretação e no caso concreto, com sentido e
alcance diversos daquele que possuía originalmente em outro campo do
conhecimento (contabilidade) e em outro ramo do direito (direito comercial).
285 Imposto de renda, p. 2-3 – item 2.10 (02) e p. 2-21 – item 2.11 (20).
8. Conceito constitucional e a variável representada pelo tempo
Outro tema relevante na construção do conteúdo dos conceitos
constitucionais – e que, de resto, revela-se importante variável em toda a
atividade de interpretação e aplicação do direito – é o da influência do transcurso
do tempo, tendo-se em vista que, na maioria dos casos, o exame de pertinência
da lei de tributação com a Carta da República não se dá no momento da
promulgação desta nem daquela, mas normalmente muito tempo depois.
Tal idéia é sintetizada com precisão por MARCO AURELIO GRECO
com as seguintes palavras:
“Desta ótica, e tratando-se do Direito, o intérprete tem de enfrentar
sempre, pelo menos, quatro tempos diferentes: (1) o tempo da lei, no
sentido de compreender o sentido que as disposições tinham no
momento em que foram editadas, o que enseja certas correntes de
interpretação, como a que postula deverem as normas ser
interpretadas dando aos termos o alcance que tinham na data de
sua edição; (2) o tempo em que ocorreram os fatos que devem ser
interpretados, pois, neste segundo tempo, o sentido e alcance da lei
podem não coincidir com o que tinham no tempo da edição da lei; (3)
o tempo do próprio fato, no sentido de que, nos fatos complexos
formados por um conjunto de eventos ou operações, sequências que
podem ser admissíveis se estão distanciadas no tempo, podem, por
outro lado, configurar um uso distorcido, se muito próximas no
tempo; (4) o tempo do momento da aplicação, que não se confunde
com nenhum dos anteriores, e deles pode se distanciar
significativamente, seja quanto à data, seja quanto ao sentido e
alcance que a interpretação (particularmente a jurisprudencial) dá
àquela lei e àqueles fatos. Além destes quatro referenciais de tempo,
e olhando prospectivamente, pode ainda ser lembrado o tempo (5)
em que novas normas ou novos fatos vieram a surgir, ou serem
realizados, em função da interpretação dada no tempo”.286
Trazendo o tema para a perspectiva que ora nos interessa, o
problema que se põe é o de saber se, na interpretação construtiva dos conceitos
constitucionais, o intérprete deve buscar o conceito possível, razoável e
proporcional:
– no tempo da promulgação da Constituição Federal;
– no tempo da edição da lei impositiva;
– no tempo em que se dá a prática do ato considerado como fato
imponível ou, ainda,
– no tempo da aplicação da lei ao caso concreto (interpretação
autêntica), momento no qual o Poder Judiciário (sobretudo os
Tribunais Superiores) é chamado para verificar se o conceito
adotado pelo legislador obedece ou não aos limites fixados pela
Constituição, ocasião em que pode, então, e de forma definitiva,
consignar o sentido e o alcance do conceito objeto da análise.
Colocando em outros termos a mesma pergunta: no momento em
que o Texto Constitucional adota o conceito, utilizando-o para definir e discriminar
a competência tributária, ele é, por assim dizer, cristalizado, petrificado ou
paralisado nessa data com a significação que tem – ou poderia ter – nesse tempo,
ou o conceito pode ser alterado ou atualizado no momento da interpretação?
Essa questão, segundo nos parece, está longe de ser cerebrina ou
meramente acadêmica, uma vez que apresenta nítidos reflexos no exercício da
competência tributária. Em se entendendo pela cristalização do conceito, estar-
286 Planejamento fiscal e interpretação da lei tributária, p. 161/162.
se-á, de certa forma, restringindo a competência, ao passo que o entendimento
pela possibilidade de sua atualização pode significar ampliar os limites desse
poder legiferante.
Como podemos notar, o tema, intimamente ligado aos princípios da
legalidade e da tipicidade da tributação, requer acentuado cuidado na procura da
resposta, uma vez que a hipótese da possibilidade de atualização do conceito por
meio da interpretação pode significar tanto soltar as amarras das leis impositivas
quanto o contrário disso, isto é, renovar os limites do alcance da norma de
tributação.
Para ilustrar nosso pensamento, tomemos como exemplo a celeuma
que envolve a imunidade do livro, relativa a impostos, prevista no artigo 150,
caput, inciso VI, alínea d, da Constituição Federal, e a questão de se saber se tal
regra imunizante alcança ou não o chamado livro eletrônico. A princípio, podemos
alegar que na época da promulgação da Carta Constitucional (outubro de 1988) o
termo livro ali empregado – o conceito constitucional de livro – alcançava somente
o livro feito de papel, o livro comum, por assim dizer, porque naquele tempo ainda
não existia o livro eletrônico ou porque sua industrialização e comercialização
eram incipientes.
Nessa hipótese, em se adotando o entendimento da cristalização ou
da perpetuação do conceito constitucional, estar-se-á justamente diminuindo o
alcance do comando normativo imunizatório e, conseqüentemente, ampliando o
raio de incidência da norma de tributação, permitindo-se a tributação do livro
eletrônico pelos impostos, interpretação esta que, diga-se de passagem e com a
devida vênia, parece-nos não ser a mais apropriada.287
Ao contrário, em se entendendo que o objeto protegido pela norma
de imunidade não é o objeto físico em si (o livro), mas o conteúdo dele, a obra
cultural nele contida, estar-se-á, de certa forma, atualizando o conceito
constitucional de livro (e considerando que também o livro eletrônico é livro).
Conseqüentemente, amplia-se a proteção imunizante, e restringe-se, no caso
concreto, o exercício da competência tributária, interpretação que, segundo nosso
ponto de vista, revela-se mais condizente com o valor constitucional prestigiado
pela mencionada norma.288
Podemos notar nesse exemplo a presença de algo que temos
destacado ao longo de várias passagens de nosso estudo, qual seja, a nossa
crença de que a maioria das questões jurídicas somente podem ser resolvidas
diante do caso concreto, diante do problema colocado em toda sua complexidade
e em suas várias perspectivas ou, pelo menos, de que as respostas às
indagações parecem poder ser mais bem elaboradas (construídas) mediante a
consideração dos casos concretos do que quando formuladas somente em tese,
em abstrato.
A fim de reunir outros subsídios para o debate, consideremos agora
o julgamento em andamento no Supremo Tribunal Federal do Recurso
Extraordinário nº. 346.084-6-PR, em que se discute a constitucionalidade da
287 Para a análise do entendimento do não alcance da imunidade ao livro eletrônico, consulte-se a lição de Eurico Marcos Diniz de Santi, no artigo “Imunidade tributária como limite objetivo e as diferenças entre ‘livro’ e ‘livro eletrônico’”, na obra Imunidade tributária do livro eletrônico, p. 55/67. 288 Para a análise a esse respeito, consultem-se os ensinamentos de José Artur Lima Gonçalves, no artigo “A imunidade tributária do livro”, p. 139/163, e de Marco Aurelio Greco, no artigo “Imunidade tributária do livro eletrônico”, p. 164/176, ambos na obra Imunidade tributária do livro eletrônico.
ampliação da base de cálculo da Contribuição para Financiamento da Seguridade
Social – COFINS, promovida pela Lei Federal nº. 9.718, de 27 de novembro de
1998 (tema ao qual retornaremos no item 6 do capítulo 7 do presente trabalho),289
concentrando-nos especificamente no voto do Ministro GILMAR MENDES que,
embora divulgado ao público, ainda não foi publicado, sendo passível, portanto,
de sofrer alterações.
Uma vez que efetuaremos em seguida a análise do voto com maior
vagar, abordaremos por ora apenas a seguinte passagem da decisão, que se
relaciona com a questão da variável do transcurso do tempo:
“Na tarefa de concretizar normas constitucionais abertas, a
vinculação de determinados conteúdos ao texto constitucional é
legítima. Todavia, pretender eternizar um específico conteúdo em
detrimento de todos os outros sentidos compatíveis com uma norma
aberta constitui, isto sim, uma violação à Constituição.
Representaria, ainda, significativo prejuízo à força normativa da
Constituição, haja vista as necessidades de atualização e adaptação
da Carta Política à realidade. Tal perspectiva é sobretudo
antidemocrática, uma vez que impõe às gerações futuras uma
decisão majoritária adotada em uma circunstância específica, que
pode não representar a melhor via de concretização do texto
constitucional”.
Logo de início, cabe-nos destacar a premissa fixada no voto, que,
com o devido respeito, parece-nos profundamente equivocada, qual seja, a de
que a norma atributiva de competência tributária seria uma “norma constitucional
289 Neste momento, deixamos de considerar, apenas para os fins da presente análise, a nova redação dada ao artigo 195 pela Emenda Constitucional nº. 20, de 15 de dezembro de 1998, questão da qual nos ocuparemos no capítulo 7.
aberta” e, por tal razão, encontrar-se-ia à disposição do legislador para a fixação
do conteúdo dos conceitos utilizados pela Constituição.
A premissa é equivocada pela singela razão de que a outorga de
competência tributária é matéria de direito constitucional – e não tema de
disciplina legal – e, assim, está muito longe de se encontrar à mercê dos
interesses dos legisladores de cada ente estatal tributante e jamais poderia ser
considerada como uma “norma constitucional aberta”. O exercício da competência
tributária, este sim, é tema destinado às opções políticas e juízos de conveniência
do legislador, que, entretanto, somente poderá efetivá-lo com obediência aos
limites impostos pela Constituição Federal. Aliás, se as regras de outorga e de
discriminação de competência tributária fossem “normas constitucionais abertas”,
elas simplesmente não precisariam estar na Carta da República, porque ali, em
tão nobre sede do ordenamento jurídico, seriam absolutamente desnecessárias,
inócuas, porque desprovidas de força vinculante.
Em outros termos, se as normas constitucionais de discriminação de
competência tributária – que obviamente não se confundem com as normas legais
do exercício dessa competência – fossem “normas abertas”, o legislador
constituinte simplesmente não precisaria ter desperdiçado seu tempo elaborando-
as e destacando as diversas materialidades que podem ensejar a criação de
tributos, uma vez que tal critério não encontraria a menor utilidade e não passaria
de mero diletantismo constitucional. Tal entendimento representaria um
“significativo prejuízo à força normativa da Constituição”, para tomarmos de
empréstimo as significativas palavras do Ministro.
Mas voltemos à questão da passagem do tempo. Ninguém duvida
das “necessidades de atualização e adaptação da Carta Política à realidade”
tampouco da exigência de se encontrar “a melhor via de concretização do texto
constitucional”, tarefas de notória relevância que são delegadas, de modo
especial, por determinação da própria Carta da República, ao Supremo Tribunal
Federal, seu intérprete máximo e definitivo. Entretanto a necessidade de atualizar
e adaptar a Carta Política à realidade não pode ser atendida por meio do sacrifício
dos valores hospedados pela própria Carta, que simplesmente não podem ser
ignorados.
Quanto à “perspectiva antidemocrática ... que impõe às gerações
futuras uma decisão majoritária adotada em uma circunstância específica”, tal
argumento, embora bem construído, efetivamente não nos impressiona, por pelo
menos três razões básicas.
A primeira é que esse fato representa a própria essência da
Constituição. A Carta Política, vista de tal ângulo, é exatamente isto: o fruto de
uma “decisão majoritária adotada em uma circunstância específica”, e essa
característica, decorrente de sua própria natureza, de certo modo amarra mesmo
as gerações futuras; impõe-lhes efetivamente não uma, mas várias decisões
majoritárias, e isso a ninguém impressiona, constituindo as cláusulas pétreas um
bom exemplo dessa ocorrência.
A segunda é que tal circunstância está muito longe de se revelar
uma “perspectiva antidemocrática”, mas exatamente o contrário: trata-se de uma
das mais democráticas perspectivas, porque a Constituição Federal é da forma
como é porque o povo brasileiro, reunido em assembléia constituinte por meio de
seus legítimos representantes, assim decidiu que ela seria e decidiu também que
determinadas decisões ali tomadas seriam mesmo impostas às gerações futuras
– impostas não pela força simplesmente, mas democraticamente, porque fruto de
decisão majoritária – tal como ocorre, aliás, nas melhores democracias dignas
desse nome, e isso também a ninguém causa surpresa.
E a terceira razão é que a mencionada “decisão majoritária adotada
em uma circunstância específica” não foi adotada em circunstância específica
qualquer, mas em circunstância específica especialíssima, tratando-se nada
menos do que a circunstância específica da promulgação da Constituição; nada
menos do que a jurídica aprovação, pelos representantes do povo brasileiro, do
documento normativo máximo do Estado Brasileiro, e isto, como desejamos
acreditar, não é um mero acidente histórico.
Desse modo, afirmávamos ainda há pouco, parece não haver dúvida
quanto à necessidade de atualização e adaptação da Carta Política à realidade,
mas isso não pode ser feito por meio da violação da própria Carta. Não se trata,
portanto, no caso específico da matéria-objeto de julgamento, de “pretender
eternizar um específico conteúdo em detrimento de todos os outros sentidos
compatíveis com a norma”, para novamente tomarmos emprestadas as palavras
constantes do voto em análise. Trata-se, na verdade, de tarefa muito mais
simples, consistente em apenas reconhecer que nem todos os sentidos, nem
todos os conteúdos de significação são compatíveis com a Constituição, ainda
que esta possa ser atualizada.
Seja como for, retornaremos à análise do voto do Ministro GILMAR
MENDES adiante; por ora, devemos notar que ele constitui relevante exemplo da
influência da variável tempo no tema da construção do conteúdo dos conceitos
constitucionais, uma vez que são envolvidos na questão pelo menos três tempos:
o da promulgação da Constituição Federal (1988), o da edição da Lei
Complementar n.º 70 (1991) e o da interpretação e da aplicação do próprio Texto
Constitucional e da Lei Complementar (2004), todos envolvendo a construção dos
conceitos de faturamento e receita.
Tivemos oportunidade de afirmar, com base nos ensinamentos de
MARIA GARCIA e de outros autores, que a Constituição, pela sua relevância e
por aquilo que representa, pode ser considerada uma obra aberta, como algo que
pode e deve ser refeito ao longo do tempo, por meio de sua interpretação, para
possibilitar, na concretização de suas soberanas normas, que se transforme em
realidade aquilo que nela está escrito, isto é, que a República Federativa do Brasil
alcance os seus objetivos fundamentais, tais como estabelecidos pelo artigo 3º.
do Texto Constitucional.
Não obstante, essa atualização, que, de certa forma, nada mais é do
que considerar a influência da passagem do tempo, deve estar cercada de
inúmeros cuidados. Um deles refere-se à necessidade de sabermos se todas as
normas constitucionais – ou apenas algumas – são passíveis de atualização por
meio da interpretação e em que medida deve dar-se essa atualização operada
pela atuação dos intérpretes-aplicadores do Texto Constitucional.
A resposta a tal questão nos parece muito difícil e o máximo que
podemos pretender é oferecer uma proposta de resposta, consistente em
reconhecer a distinção entre duas espécies de normas constitucionais e, pela sua
diferenciação, submetê-las a perspectivas interpretativas distintas relativamente
às possibilidades de atualização. Para essa específica finalidade, entendemos por
bem denominá-las normas constitucionais de eficácia positiva e normas
constitucionais de eficácia negativa.
As normas constitucionais de eficácia positiva são aquelas que
hospedam mandamentos ao Estado Brasileiro; que determinam ações; que
prescrevem providências a serem adotadas, políticas públicas e planejamentos,
atividades que o Estado está obrigado implementar no seio da sociedade, como
forma de concretização dos valores consagrados pela Carta da República.
Pertencem a esse grupo as normas destinadas ao reconhecimento
da dignidade da pessoa humana e à promoção do trabalho e da livre iniciativa
(artigo 1º); à construção de uma sociedade livre, justa e solidária e à erradicação
da pobreza e da marginalização social (artigo 3º); à prevalência dos direitos
humanos (artigo 4º); ao implemento da livre expressão da atividade intelectual,
artística e científica (artigo 5º, inciso IX); à promoção da função social da
propriedade (artigo 5º, inciso XXIII); à elaboração e execução de planos nacionais
e regionais de ordenação do território e do desenvolvimento econômico e social
(artigo 21, inciso IX); à garantia da segurança pública (artigo 144); à promoção,
proteção e recuperação da saúde, em suas diversas possibilidades (artigo 196); à
prestação da assistência social (artigo 203), entre tantas outras que poderiam ser
mencionadas.
As normas constitucionais de eficácia negativa, por sua vez, são as
que contemplam as limitações do Estado; que prescrevem aquilo que ele deve
respeitar; são fronteiras que determinam aonde o Estado e seus representantes
não podem chegar; estabelecem os direitos e as garantias em relação aos quais o
Estado está proibido de agir ou atuar, senão para respeitá-los. São normas,
enfim, que fixam os limites a serem obedecidos pelo Estado, devendo-se notar
que também aqui estão consagrados valores superiores do ordenamento jurídico
Fazem parte desse grupo de normas constitucionais todas aquelas
nas quais podemos identificar os referidos limites, tais como o princípio da
legalidade (artigo 5º, inciso II); a vedação da tortura ou tratamento desumano
(artigo 5º, inciso III); a casa como asilo inviolável do indivíduo (artigo 5º, inciso XI);
a garantia do direito de propriedade (artigo 5º, inciso XXII); o respeito ao voto
direto e secreto (artigo 14); o respeito ao sigilo profissional do advogado (artigo
133); o princípio da legalidade em matéria tributária (artigo 150, inciso I); a
vedação da utilização de tributo com efeito confiscatório (artigo 150, inciso IV); a
obrigatoriedade de gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais
(artigo 206, inciso IV), entre outros tantos limites.
Acreditamos que as normas da primeira espécie, as de eficácia
positiva, em virtude da natureza de seu comando prescritivo, revelem-se mais
sensíveis à possibilidade de atualização pela interpretação, de modo que a
Constituição permaneça alinhada às necessidades contemporâneas ao momento
de sua aplicação, que podem não ser necessariamente as mesmas da época de
sua promulgação, sobretudo em razão da complexidade da sociedade atual, que
se transforma em velocidade acentuada e não é acompanhada pela alteração
formal do ordenamento jurídico.
Daí porque não encontramos dificuldades em aceitar que, para se
saber o que significa sociedade solidária, marginalização social e qual o alcance
dos direitos humanos, certamente haverá de se apurar o momento em que a
norma é aplicada e qual a situação da sociedade à qual se aplica, pois a
marginalização social de ontem provavelmente foi causada por fatores distintos
daqueles que acarretam a marginalização de hoje. Do mesmo modo, a função
social da propriedade, a defesa dos necessitados e a proteção da saúde
envolvem necessariamente a comparação de momentos distintos no tempo e
critérios de apuração do que possam significar tais expressões à luz do
transcurso do tempo e à medida que a sociedade e as condições de vida
evoluem.
Não obstante, a principal razão que nos leva a crer que essas
normas comportam sempre uma atualização interpretativa é, como dissemos, a
sua própria natureza, a sua eficácia positiva, o mandamento para que o Estado
atue construtivamente, considerando-se que, por meio da atualização da norma, é
possível potencializar o comando constitucional – levá-lo à sua máxima eficácia
normativa – e impedir que o superior desígnio constitucional seja desobedecido
(ou apenas obedecido em menor grau) em virtude de sua corrosão pelos efeitos
da passagem do tempo.
Em outras palavras, para as normas constitucionais de eficácia
positiva, cremos que a atualização interpretativa seja sempre possível porque ela
mantém a densidade normativa do Texto Constitucional ao longo do tempo.
No que concerne às normas da segunda espécie, as de eficácia
negativa, ainda em virtude da natureza de seu comando, parece-nos que essas,
embora possam também, em tese, passar pela atualização por meio do processo
interpretativo, tal possibilidade seja reduzida quando comparada àquelas normas
do primeiro grupo, uma vez que, neste caso, a densidade da norma poderia ser
enfraquecida em virtude da mencionada atualização, o que levaria ao desrespeito
à Constituição, de modo que, segundo nosso modesto pensar, são normas menos
vocacionadas à atualização interpretativa, justamente em virtude da função que
desempenham de limitadoras da ação estatal.
É bem verdade que poderíamos conceber hipóteses de atualização
pela interpretação de conceitos constitucionais como tratamento desumano, para
nele incluir novas formas de ofensa ou violação à dignidade humana; como o
conceito de casa, para fazê-lo alcançar e proteger outros locais que não a
residência em sentido estrito; ou mesmo com o conceito de legalidade em matéria
tributária, para adaptá-lo a novas exigências sociais e jurídicas. Não obstante, nos
casos das normas de eficácia negativa, a atualização somente poderá dar-se para
intensificar e renovar o comando normativo e jamais para enfraquecê-lo, isto é, o
intérprete somente poderá atualizar o conceito constitucional se isso não implicar
o enfraquecimento da garantia dele.
De modo diverso do que ocorre com as do primeiro grupo, nas
normas de eficácia negativa, a potencialização do comando constitucional talvez
não permita a atualização dos conceitos utilizados e, no caso de o permitir,
somente o poderá ser para a revitalização dos limites representados pelo conceito
no que tange à atividade estatal.
Um bom exemplo do que afirmamos é o julgamento, pelo Supremo
Tribunal Federal, do Habeas Corpus n.° 82.424-RS, Relator Ministro MOREIRA
ALVES, Relator para acórdão Ministro MAURÍCIO CORRÊA, cujo objeto, em
apertada síntese, é a questão de se determinar se a publicação de livros com
conteúdo favorável ao anti-semitismo constitui ou não prática de racismo, nos
termos do inciso XLII, do artigo 5°, da Constituição Federal, uma vez que havia
dúvida quanto ao fato de ser o judaísmo uma raça, no sentido estrito da palavra,
envolvendo assim o enquadramento da conduta como crime imprescritível.
O tema, portanto, envolve a construção do conceito constitucional de
racismo, para fins de aplicação da lei penal, tendo a Corte Máxima decidido, por
maioria de votos, que, naquele caso, ocorreu crime de racismo, embora, em
termos rigorosos, o judaísmo não pudesse ser considerado raça.
Com tal decisão, realizou o Supremo Tribunal Federal, por meio da
interpretação dos fatos e da Constituição Federal, a atualização do conceito de
racismo, para fazer com que do comando constitucional envolvido pudesse
irradiar-se uma proteção ainda maior aos cidadãos. Revitalizou, assim, a
densidade normativa do dispositivo, ainda que a norma em tela esteja mais
próxima daquelas de eficácia negativa do que das de eficácia positiva.
Para encerrarmos a digressão e retornarmos à atualização dos
conceitos em matéria de direito tributário, parece-nos certo afirmar que as normas
constitucionais de outorga de competência tributária pertencem à segunda
espécie, revelando-se, portanto, normas de eficácia negativa, à medida que
representam nítidos limites à atividade estatal de instituição de tributos: por um
lado, indicam as parcelas da realidade que podem ser tributadas e, por outro,
prescrevem aquelas que não contam com semelhante autorização constitucional,
daí decorrendo sua eficácia negativa.
Se os mencionados conceitos presentes na Lei Maior são limites
constitucionais ao poder de tributar (encartados na classe das normas
constitucionais de eficácia negativa), somente podem sujeitar-se à atualização
interpretativa desde que de tal processo exegético não resulte a ampliação da
competência tributária originalmente outorgada, porque isso significaria, a
pretexto de atualizar a Constituição Federal, enfraquecer-lhe os comandos
prescritivos e negar-lhe supremacia normativa diante dos demais diplomas do
ordenamento.
De qualquer modo, é fundamental que não nos esqueçamos da
influência que o transcurso do tempo pode exercer sobre a interpretação e, em
especial, a interpretação constitucional, tampouco da advertência de KARL
LARENZ, segundo a qual “Toda a interpretação da lei está, até certo ponto,
condicionada pela época. Com isto não se pretende dizer que o intérprete deve
seguir a par e passo cada tendência da época ou da moda”.290
É bem verdade que, após a criação da lei (em sentido amplo), ela,
por assim dizer, adquire vida própria e pode mesmo afastar-se da vontade de seu
criador e ser aplicada, o que não é raro, a situações que o legislador não tinha em
mente e não pretendia abranger com o texto legal. Não obstante, é ainda KARL
LARENZ quem acentua, fazendo referência ao texto constitucional alemão, que
“Por detrás da lei está uma determinada intenção reguladora, estão valorações,
aspirações e reflexões substantivas, que nela acharam expressão mais ou menos
clara. ‘Vinculação à lei’, tal como é exigida pela Constituição (art. 20, parágrafo 3,
e 97, parágrafo 1), significa tanto o texto da lei, como as valorações do legislador
(histórico) que lhe estão subjacentes”.291
9. Papel do artigo 110 do Código Tributário Nacional
290 Metodologia da ciência do direito, p. 443. 291 Metodologia da ciência do direito, p. 446.
O raciocínio que procuramos expor até aqui acerca dos conceitos
constitucionais, de seu conteúdo semântico mínimo e máximo e da relativa
margem de liberdade que possui o legislador para sua manipulação, no momento
da edição da lei tributária, leva-nos agora à análise do artigo 110 do Código
Tributário Nacional, de seguinte teor:
“A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance
de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados,
expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas
Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito
Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências
tributárias.”
Em estudo sobre esse dispositivo legal, RICARDO LOBO TORRES
afirma que a norma dali decorrente é ambígua e contraditória e a primeira
indagação a ser feita é se “Estaria respeitado o princípio da supremacia da
Constituição se as normas da lei complementar pudessem dispor sobre sua
interpretação?”, ao que responde negativamente e afirma que tais normas seriam
válidas desde que constassem expressamente no Texto Constitucional.292
Cabe notar que, embora o artigo 110 pareça dispor sobre a
interpretação da Constituição, trata-se de comando normativo dirigido diretamente
ao legislador e que disciplina os limites da lei tributária; limites, entretanto, que,
como vimos, são estabelecidos pela própria Carta Magna, vale dizer, não são
criados pelo artigo 110, porque derivam diretamente da discriminação de
competência tributária plasmada soberanamente no Texto Constitucional.
292 Normas de interpretação e integração do direito tributário, p. 228.
Assim sendo, e até por dever de coerência com aquilo que temos
sustentado, somos obrigados a reconhecer que se o artigo 110 fosse revogado,
nem por isso a norma jurídica dele constante deixaria de habitar o ordenamento,
porque, como sublinhamos, ela estava presente na própria Constituição.293
De qualquer modo, o artigo está em plena vigência, razão pela qual
não nos podemos furtar de tecer algumas considerações sobre ele, até para
renovar sua relevância e função dentro do sistema tributário.
9.1 Dicotomia entre direito privado e direito público
A expressão direito privado presente no artigo 110, ao prescrever
que a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance dos
institutos, conceitos e formas de direito privado (quando usados pela Constituição
para definir e limitar competência tributária), aparenta deixar em aberto uma
possibilidade de interpretação – que seria literal – segundo a qual a mencionada
alteração poderia dar-se, caso os institutos, conceitos e formas fossem de direito
público.
Tal possibilidade interpretativa não nos parece possível, sobretudo
nos dias atuais, uma vez que a dicotomia tradicionalmente estabelecida entre
direito privado e direito público parece não mais fazer sentido (pelo menos para
um enorme número de questões), contribuindo muito pouco para a compreensão
e a aplicação do ordenamento jurídico.
293 Neste sentido, a norma do artigo em tela teria natureza meramente didática, como afirma Hugo de Brito Machado: “A norma do art. 110 na verdade não passa de simples explicitação do prestígio da supremacia constitucional. Pudesse a lei ordinária alterar os conceitos utilizados nas normas da Constituição, poderia o legislador ordinário, por essa via alterar a Constituição, modificando o sentido e o alcance de qualquer de suas normas” (A importância dos conceitos jurídicos na hierarquia normativa – natureza meramente didática do art. 110 do CTN, In: Revista Dialética de Direito Tributário, vol. 98, p. 72).
A crescente complexidade da sociedade e a exigência cada vez
maior de disciplinamento jurídico de novas relações humanas, com grau de
detalhamento normativo diverso daquele exigido no passado, causam aquilo que
poderíamos denominar publicização do direito privado, tendo-se em vista que são
acentuados o interesse e a participação do Estado nas relações jurídicas
consideradas como exclusiva entre particulares e nas quais as normas eram tidas
como pertencentes ao campo do direito privado.
MARCO AURELIO GRECO, que há bastante tempo estudou de
modo detalhado a questão dessa dicotomia, tratou da matéria denominando-a
crise da noção de direito público, nos seguintes termos:
“Destarte, concluímos que, a nosso ver, o direito vigente não nos
permite identificar diante de casos concretos interesses
exclusivamente públicos ou privados mas sim, encontramos um
complexo de regras que consagram expectativas as mais diversas e
multifacetadamente compostas entre si.
Ora, se o direito posto assim se apresenta, perde fundamento
científico a expressão ‘Direito Público’ por não se constituir em
descrição de uma realidade existente, perfeitamente identificável,
como visto. Trata-se de noção insuficiente por faltar-lhe a qualidade
de adequação.
(.....)
A propósito da afirmação de que o Direito Público reger-se-ia por
princípios próprios, típicos, cabe levantar a seguinte dúvida: como é
logicamente possível falar em princípios específicos do Direito
Público se o Direito como um todo é uno? Como é possível
identificar princípios, orientações, caminhos típicos do Direito Público
se ontologicamente o objeto do conhecimento jurídico não é
cindível? A esta questão não vemos resposta satisfatória”. 294
Mais recentemente, analisando essa mesma questão, MARCOS DE
CAMPOS LUDWIG expõe o tema do seguinte modo:
“De fato, o termo perspectiva pública parece delinear com precisão
como devemos compreender o fenômeno chamado de ‘publicização
do privado’: não há uma invasão de um campo no outro, mas – isto
sim – uma nova perspectiva a incidir sobre os institutos do direito
privado.
(.....)
Isto representa um dos pontos essenciais que nosso trabalho
pretende assentar: também o direito privado, atualmente, contempla
normas de ordem pública; também o direito privado contém
preceitos de interesse geral; também os institutos de direito privado
possuem marcada função social.
(.....)
A perspectiva dicotômica da distinção entre direito público e direito
privado encontra-se, enfim, superada. Não convém que se tomem os
fenômenos recíprocos de interpretação eventualmente verificados
como intromissões, porquanto tais processos não são constantes
nem absolutos; seguem, isto sim, o fluxo dos fatores sociais, as
modificações dos campos da vida humana, vistos, portanto, por um
prisma sociológico e histórico.”295
Com essas considerações, não pretendemos afirmar, entretanto,
que a dicotomia entre direito público e privado simplesmente não mais existe ou
que não tenha nenhuma utilidade. Em vez disso, o que procuramos demonstrar é
294 Dinâmica da tributação e procedimento, p. 51/52. 295 Direito público e direito privado: a superação da dicotomia, In: A reconstrução do direito privado, p. 99 e 112.
que, pelo menos para os fins de interpretação e aplicação do artigo 110 do
Código Tributário Nacional, a expressão direito privado não pode mais subsistir.
9.2 Conceitos de direito positivo
Em conformidade com aquilo que acabamos de afirmar, parece-nos
possível efetuar uma interpretação atualizada do artigo 110 do Código Tributário
Nacional, para entender que o comando prescritivo alcance não apenas os
conceitos de direito privado, mas também os de direito público – admitindo-se, a
título de argumento, que a dicotomia possa subsistir – de modo que a norma dali
emanada assume a seguinte conformação: nos casos em que a Constituição
Federal, as Constituições dos Estados ou as Leis Orgânicas se utilizarem de
institutos, conceitos e formas de direito positivo, para definir ou limitar
competências tributárias, a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e
o alcance dos termos empregados naqueles diplomas legais.
E havemos de refrisar este ponto, pela última vez, e com o perdão
da insistência: o legislador ordinário não pode ignorar o artigo 110 porque (i) o
mesmo comando normativo deflui da Constituição Federal; (ii) os institutos e os
conceitos de direito positivo são utilizados pela Carta Política na regra de outorga
de competência tributária, razão pela qual constituem limitações constitucionais
ao poder de tributar; (iii) esses conceitos não podem ser livremente alterados pelo
legislador porque, em se admitindo que o sejam, perde completamente o sentido
e a razão de ser do critério da materialidade adotado pela Constituição e (iv) a
discriminação de competência é matéria de direito constitucional, somente
alterável, portanto, por Emenda Constitucional, dentro, evidentemente, das
possibilidades previstas pela própria Constituição da República.
Nem se diga que, ao vincular-se a discriminação da competência
tributária aos conceitos fornecidos pelo direito positivo, estar-se-ia alimentando a
pretensão de “interpretar a Constituição com base na lei”, pois evidentemente não
é disso que se trata e acreditamos ter afastado tal falacioso argumento ao longo
de nosso trabalho.
Os conceitos são constitucionais – foram constitucionalizados
quando a Constituição foi promulgada, ainda que hauridos em outros campos do
direito positivo – de modo que a interpretação da Carta da República opera-se
com fundamento nela mesma e nas peculiaridades que ela – interpretação
constitucional – apresenta; nem por isso devem ser desprezados os subsídios
fornecidos pelas outras normas pertencentes ao mesmo ordenamento jurídico, do
qual a Constituição é evidentemente parte integrante.
Nesse sentido, RICARDO LOBO TORRES, mencionando lição de
WALTER LEISNER, afirma que este “escreveu interessante monografia intitulada
‘Da Constitucionalidade da Lei à Legalidade da Constituição’, na qual procura
expor que a Constituição é pobre de conceitos verdadeiramente constitucionais.
Segue-se daí que o princípio da ‘interpretação da lei conforme a Constituição’
pode ganhar as cores de uma ‘interpretação da Constituição conforme a Lei’”.
Afirma ainda o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro que, embora
não se identifique a interpretação do direito constitucional e a da lei ordinária, nem
por isso deve-se “interromper drasticamente a comunicação com as leis ordinárias
e com a vida social, sob pena de se conspurcar o próprio princípio da unidade do
Direito”.296
A prova do que afirmamos é dada pela própria Constituição Federal,
pois o legislador constituinte de 1988, para elaborar a Carta Política, não partiu do
nada, não iniciou seu caminho de um vácuo normativo e social. Embora
estivesse, em termos rigorosos, inaugurando juridicamente o Estado de Direito
Brasileiro – aliás, Estado Democrático de Direito – e rompendo, portanto, a ordem
jurídica então vigente, debruçou-se sobre a realidade social existente na época e
mesmo sobre ordenamento jurídico infraconstitucional, para ali recolher subsídios,
elementos, informações, institutos e conceitos, e utilizá-los na elaboração da
então nova Constituição Federal, inclusive com a recepção dos diplomas legais
vigentes que não contrariassem os comandos superiores daquela.
Parece natural que ele – legislador constituinte – tenha-se utilizado
de conceitos e institutos consagrados pelo direito positivo para formular a norma
constitucional de outorga de competência tributária – assim e nesse momento
constitucionalizando-os – e tal circunstância em nada desabona ou ofende a
supremacia normativa da Constituição Federal.
Em outros termos, a relativa liberdade de o legislador ordinário
construir o conteúdo significativo dos conceitos constitucionais (uma vez que
estes não aparecem prontos e acabados na Carta Política) e também a relativa
liberdade de o Poder Judiciário reconstruir o referido significado, caso seja
chamado para tanto, deve sempre dar-se (i) com a obrigatória consciência de que
os conceitos são constitucionais e (ii) com o inafastável conhecimento de que tais
296 Normas de interpretação e integração do direito tributário, p. 231/233.
conceitos, consagrados pelo direito positivo, devem ser respeitados em seu
conteúdo semântico mínimo e máximo.
Para finalizar, ainda que seja uma explicitação de norma
constitucional ou mesmo que tenha função meramente didática, o artigo 110 do
Código Tributário Nacional não deixa de ser dispositivo legal de proteção ao
contribuinte. À medida que se refere à definição de competência tributária e,
desse modo, delimita o campo material sobre o qual esta competência pode ser
exercida, os conceitos de direito positivo utilizados pela Constituição Federal para
tal mister são de observância obrigatória para o legislador ordinário, na forma
como procuramos demonstrar.
CAPÍTULO 7
ANÁLISE CASUÍSTICA DE PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS
1. Relevância dos precedentes jurisprudenciais
O último capítulo de nosso trabalho é dedicado à análise de algumas
questões de direito tributário que foram objeto de decisão pelo Supremo Tribunal
Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça.
Embora tenhamos procurado deixar claro nosso entendimento sobre os
casos, importa-nos menos neste momento concordar ou discordar das decisões (na
medida em que faça sentido concordar ou discordar das decisões tomadas pelos
tribunais superiores, em vista do trânsito em julgado), mas interessa-nos mais procurar
entender as razões do decidir das cortes superiores. Embora a doutrina não tenha a
obrigação de sempre concordar com o entendimento jurisprudencial, não podemos
deixar de reconhecer que os precedentes contribuem para a construção da
normatividade do ordenamento jurídico, de modo que a ciência do direito não pode
ignorá-los.
Pensamos também que tal análise nos permite visualizar, nesses
julgados, algumas das idéias esboçadas no decorrer de nosso estudo, como, por
exemplo, a utilidade do estilo tópico; a interpretação da Constituição e suas
peculiaridades; a aplicação dos postulados normativos e outros temas ligados aos
conceitos constitucionais e ao exercício da competência tributária.
Podemos notar nos casos analisados pelo menos duas
características em comum: a primeira, relativa à tópica jurídica, segundo a qual se
parte do caso concreto (problema) a resolver e vai-se ao direito positivo (sistema)
para encontrar a solução, o que demonstra que a interpretação e a aplicação da
lei (inclusive da Constituição) é uma operação concomitante; e a segunda,
atinente à possibilidade de o Poder Judiciário construir ou reconstruir o conteúdo
dos conceitos constitucionais utilizados para a outorga da competência tributária.
Até por dever de coerência com tudo o quanto escrevemos até aqui,
é importante lembrar que a análise – ou a interpretação – que efetuamos dos
julgados a seguir é apenas uma proposta em meio a outras possíveis, de modo
que nossa limitada pretensão é apenas a de suscitar algumas idéias para a
renovação do debate de certas questões do direito tributário.
2. Contribuição sobre pagamentos a administradores e autônomos
A questão da incidência da contribuição social prevista no artigo 195,
inciso I, da Constituição Federal foi levada ao conhecimento do Supremo Tribunal
Federal, no Recurso Extraordinário nº. 166.772-9-RS, Relator Ministro MARCO
AURÉLIO, que, em decisão de 12 de maio de 1994, por maioria dos votos,
decidiu pela inconstitucionalidade da expressão “autônomos e administradores”
contida no inciso I do artigo 3º, da Lei Federal n.º 7.787, de 30 de junho de 1989,
de cuja ementa destacamos os seguintes trechos:
“INTERPRETAÇÃO. CARGA CONSTRUTIVA. EXTENSÃO. Se é
certo que toda interpretação traz em si carga construtiva, não menos
correta exsurge a vinculação à ordem jurídico-constitucional. O
fenômeno ocorre a partir das normas em vigor, variando de acordo
com a formação profissional e humanística do intérprete. No
exercício gratificante da arte de interpretar, descabe ‘inserir na regra
de direito o próprio juízo – por mais sensato que seja – sobre a
finalidade que ‘conviria’ fosse por ela perseguida’ – Celso Antônio
Bandeira Mello – em parecer inédito. Sendo o Direito uma ciência, o
meio justifica o fim, mas não este àquele.
CONSTITUIÇÃO. ALCANCE POLÍTICO. SENTIDO DOS
VOCÁBULOS. INTERPRETAÇÃO.
O conteúdo político de uma Constituição não é conducente ao
desprezo do sentido vernacular das palavras, muito menos as do
técnico, considerados institutos consagrados pelo Direito. Toda
ciência pressupõe a adoção de escorreita linguagem, possuindo os
institutos, as expressões e os vocábulos que a revelam conceito
estabelecido com a passagem do tempo, quer por força de estudos
acadêmicos quer, no caso do Direito, pela atuação dos Pretórios.
(.....)
CONTRIBUIÇÃO SOCIAL. TOMADOR DE SERVIÇOS.
PAGAMENTOS A ADMINISTRADORES E AUTÔNOMOS.
REGÊNCIA. A relação jurídica mantida com administradores e
autônomos não resulta de contrato de trabalho e, portanto, de ajuste
formalizado à luz da Consolidação das Leis do Trabalho. Daí a
impossibilidade de se dizer que o tomador dos serviços qualifica-se
como empregador e que a satisfação do que devido ocorra via folha
de salários. Afastado o enquadramento no inciso I do artigo 195 da
Constituição Federal, exsurge a desvalia constitucional da norma
ordinária disciplinadora da matéria. A referência contida no § 4º do
artigo 195 da Constituição Federal ao inciso I do artigo 154 nela
insculpido, impõe a observância de veículo próprio – a lei
complementar. Inconstitucionalidade do inciso I, do artigo 3º da Lei
n.º 7.787/89, no que abrangido o que pago a administradores e
autônomos. Declaração de inconstitucionalidade limitada pela
controvérsia dos autos, no que não envolvidos pagamentos a
avulsos”.
O caso desse Recurso Extraordinário é por demais conhecido no
cenário jurídico pátrio e, como se sabe, a controvérsia repousava basicamente na
questão de se saber se os profissionais autônomos e os administradores das
empresas recebiam salários pelos serviços prestados e se as empresas que os
remuneravam o faziam na qualidade de empregadoras, tendo-se em vista que, na
época vigente, a redação do inciso I, do artigo 195, da Constituição Federal
determinava que a contribuição seria devida pelos empregadores e incidiria sobre
a folha de salários. Em outros termos, cuidava-se de averiguar o sentido e o
alcance dos conceitos constitucionais de empregadores e de folha de salários; se
tais expressões teriam sido utilizadas pelo Texto Constitucional no sentido técnico
(restrito) ou no comum (amplo).
Logo de início, destacamos afirmação constante do voto do Ministro
MARCO AURÉLIO, segundo o qual “o conteúdo político de uma Constituição não
pode levar quer ao desprezo do sentido vernacular das palavras utilizadas pelo
legislador constituinte, quer ao técnico, considerados institutos consagrados pelo
Direto”, assertiva que vem ao encontro daquela que fizemos no capítulo 6 de
nosso estudo, de que ambas as ocorrências são possíveis, isto é, a Constituição
Federal pode utilizar-se tanto de conceitos com sentido comum, quanto de
conceitos com sentido técnico, aí residindo o desafio posto ao seu intérprete, que
deve examinar, em cada caso concreto, qual das alternativas foi adotada pelo
Texto Constitucional. Cabe refrisar que, seja no sentido técnico, seja no comum, o
conceito sempre representa uma limitação ao poder de tributar.
É curioso notar que a mencionada afirmação do Ministro MARCO
AURÉLIO, cujo voto dá-se pela utilização dos conceitos de empregadores e folha
de salários no sentido técnico (fornecidos pelo direito do trabalho), encontra logo
em seguida objeção feita pelo Ministro FRANCISCO REZEK, para quem “o
legislador não destoa tanto da sociedade, das pessoas comuns, quando emprega
certas palavras do cotidiano e o faz com alguma ambigüidade. O legislador não
escapa a determinados vícios como a plasticidade com que o cidadão comum
pode empregar vocábulos que a doutrina utiliza de modo mais rigoroso”. O
Ministro MOREIRA ALVES, por sua vez, afirma que “Por outro lado, sempre
sustentei que, em matéria de interpretação constitucional, se deve dar prevalência
ao sentido técnico dos vocábulos utilizados pela Constituição, com mais razão do
que com referência à legislação ordinária”.
Das três afirmações transcritas surge um dado relevante, que é o
fato de a controvérsia instalar-se não somente quanto ao conteúdo dos conceitos
(técnico ou comum), mas também quanto ao próprio método a ser utilizado na
interpretação da Constituição, ou seja, deve ser o que privilegia sempre o sentido
técnico ou o sentido comum das palavras empregadas pela Lei Maior.
Outro trecho do voto do Ministro MARCO AURÉLIO que merece
destaque é aquele no qual afirma que “a flexibilidade dos conceitos, o câmbio do
sentido destes, conforme os interesses em jogo, implicam insegurança
incompatível com o objetivo da própria Carta”, que parece reconhecer que, se por
um lado as palavras, os termos e os conceitos não possuem um significado único,
inequívoco, por outro pelo menos portam um conteúdo semântico mínimo que não
pode ser desprezado, sobretudo em se tratando dos conceitos utilizados pela
Constituição, em virtude do papel que esta desempenha no ordenamento jurídico.
O Ministro CARLOS VELLOSO, baseando-se em ensinamentos
doutrinários e referindo-se à Constituição, afirma que “O sentido comum de suas
palavras deve prevalecer sobre o seu sentido técnico, a menos que haja razões
em contrário”. Vota pela constitucionalidade da incidência da contribuição social
sobre os referidos pagamentos e deixa estampado em seu voto que “o conceito
de ‘salário’, em direito previdenciário, não tem o mesmo sentido técnico do
conceito de salário em direito do trabalho”. Essa afirmação parece-nos um tanto
quanto delicada em razão do entendimento que traz implícita a possibilidade de o
ordenamento jurídico utilizar o mesmo conceito para indicar diferentes realidades
nos vários sub-ramos do direito positivo.
Ora, se levássemos um pouco adiante o entendimento do Ministro,
seríamos obrigados a reconhecer que poderia haver: (i) um conceito de salário
para o direito previdenciário; (ii) um outro conceito de salário para o direito do
trabalho; (iii) um terceiro conceito de salário para o direito tributário e até mesmo
(iv) um quarto conceito de salário para o direito constitucional, ou seja, quatro
parcelas distintas da realidade tratadas pelo ordenamento jurídico com o mesmo
vocábulo. Com o devido respeito, pensamos que semelhante fenômeno não
encontra lugar para manifestar-se no direito pátrio, no mínimo porque despreza o
caráter unitário e indivisível do direito positivo, que, como sabemos, somente
pode experimentar uma tal divisão para efeitos meramente didáticos e não pode
tolerar a existência de compartimentos estanques, como se determinada subárea
do universo jurídico não estivesse irremediavelmente ligada a outra.
Podemos até aceitar, para que não nos acusem de acentuada
simplicidade de raciocínio, que o mesmo vocábulo possa eventualmente
experimentar alguma variação de significado quando utilizado por um ou outro
quadrante do direito positivo, por um ou outro diploma legal, mas não com a
variação afirmada pelo Ministro, a ponto de haver um conceito de salário para o
direito previdenciário e outro para o direito de trabalho, ambos hospedados pela
mesma Constituição.
O caso examinado é um bom exemplo da controvérsia que pode
envolver a utilização dos conceitos constitucionais e de sua função de limitações
ao poder de tributar, pois os votos proferidos pelos Ministros da Corte Máxima
não deixam dúvidas quanto ao caráter construtivo da interpretação jurídica e
quanto à postura ativa do intérprete no momento de concretização da norma
constitucional, elementos que se fazem presentes na construção do conteúdo
significativo dos conceitos constitucionais.
Os mencionados votos também demonstram que a interpretação –
embora construtiva – evidentemente encontra limites que são fornecidos pelos
próprios métodos de interpretação, pelo instrumental desenvolvido pela ciência do
direito e, sobretudo, pelo próprio ordenamento jurídico, sendo um deles o
conteúdo mínimo semântico dos conceitos, fator que levou o Supremo Tribunal
Federal a decidir pela inconstitucionalidade da expressão “autônomos e
administradores” constante do inciso I, do artigo 3º, da Lei Federal n.º 7.787, de
30 de junho de 1989.
Nesse ponto, é bastante sugestiva a afirmação do Ministro SYDNEY
SANCHES: “Posso, é verdade, em certos casos, demonstrar a falta de técnica do
constituinte, ao se valer de certas expressões tradicionais no direito brasileiro,
como, por exemplo, ‘empregadores’, ‘folha de salários’. Mas não posso, nem
devo, presumi-la. E, no caso, em face das alterações operadas no sistema, tais
expressões foram usadas, segundo penso, em seu sentido técnico, exato, ou pelo
menos, tradicional”.
3. A imunidade prevista no artigo 155, § 3º, da Constituição Federal
O alcance da imunidade prevista pelo parágrafo 3º, do artigo 155 da
Constituição Federal foi objeto de julgamento pelo Supremo Tribunal Federal nos
autos do Agravo Regimental em Recurso Extraordinário n.º 205.355-4 – DF,
Relator Ministro CARLOS VELLOSO, na data de 10 de julho de 1999, por maioria
de votos, em acórdão de seguinte ementa:
“CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. FINSOCIAL. IMPOSTO ÚNICO
SOBRE MINERAIS. CF/67, art. 21, IX. INCIDÊNCIA DO FINSOCIAL
FRENTE AO DISPOSTO NO ART. 155, § 3º.
I – Legítima a incidência do FINSOCIAL, sob o pálio da CF/67, não
obstante o princípio do Imposto Único sobre Minerais (CF, 1967, art.
21, IX). Também é legítima a incidência do mencionado tributo sob a
CF/88, art. 155, § 3º.
II – Agravo não provido”.
Discutia-se basicamente, neste caso, qual o sentido a ser dado ao
parágrafo 3º. do artigo 155, a fim de se definir o alcance da imunidade ali prevista.
O dispositivo, em sua redação originária, trazia a seguinte redação:
“§ 3º. À exceção dos impostos de que tratam o inciso I, b, do caput
deste artigo e os arts. 153, I e II, e 156, III, nenhum outro tributo
incidirá sobre operações relativas a energia elétrica, combustíveis
líquidos e gasosos, lubrificante e minerais do País”.
A celeuma em torno da interpretação do dispositivo constitucional
fazia-se presente em virtude da alegação dos contribuintes de que a Contribuição
para Financiamento da Seguridade Social – Cofins não poderia incidir sobre seu
faturamento decorrente de operações realizadas com os bens mencionados no
parágrafo 3º, justamente em razão da imunidade ali prevista, o que nos obriga à
análise de quatro questões específicas.
A primeira e a segunda, que podem ser estudadas conjuntamente,
dizem respeito aos princípios constitucionais da igualdade e da capacidade
contributiva, que seriam violados caso prevalecesse o entendimento de que a
imunidade em tela impediria a exigência da mencionada contribuição incidente
sobre o faturamento.
A igualdade seria violada à medida que se estaria tratando
desigualmente contribuintes que estão em situação equivalente. Se, a princípio,
todas as empresas são obrigadas a contribuir para o custeio da seguridade social,
algumas deixariam de assim estar apenas porque suas operações envolveriam os
bens mencionados no parágrafo 3º, razão que não justificaria o tratamento
tributário mais benéfico.
A capacidade contributiva, por sua vez, seria ofendida porque ambas
as classes de contribuintes (os que realizassem operações com os bens
contemplados pelo artigo 3º e aqueles que as realizassem com outros bens)
aufeririam faturamento e, portanto, manifestariam a referida capacidade, de modo
que a exclusão da incidência da contribuição sobre a primeira classe ofenderia o
aludido princípio informador da tributação.
Com o devido respeito pelo entendimento contrário, pensamos que
tais argumentos não podem prevalecer, logo de início pela própria natureza
jurídica do instituto da imunidade, que é elemento conformador da outorga de
competência tributária, cujo papel fundamental é o de determinar aonde a norma
de incidência não pode chegar, isto é, quais fatos, atos, negócios, situações e
pessoas que a lei impositiva não pode alcançar. Segundo o ensinamento de
JOSÉ ARTUR LIMA GONÇALVES, “a competência é conferida e delimitada pela
própria Constituição Federal, pois a mesma norma de estrutura que confere o
poder do legislador, descrevendo a regra-matriz de incidência tributária, cuidará
de fornecer os limites, a perfeita indicação dos confins do poder assim conferido.
(...) A categoria denominada pela doutrina como imunidade não passa de uma
explicitação normativa de certas delimitações de competência tributária
impositiva”.297
Com base nessa lição, podemos concluir que a imunidade conferida
pelo parágrafo 3º do artigo 155, ao determinar que “nenhum outro tributo incidirá
sobre operações relativas a energia elétrica, combustíveis líquidos e gasosos,
lubrificantes e minerais” (com exceção dos impostos tratados pelo próprio
dispositivo), jamais poderia violar os princípios da igualdade e da capacidade
contributiva pois só faria sentido falar-se de eventual ofensa a tais princípios no
caso de existência de norma de tributação, que inexiste na espécie considerada.
Em outros termos, não podemos concordar com o entendimento da
ofensa à igualdade e à capacidade contributiva por, pelo menos, duas razões: a
primeira porque seríamos obrigados a concluir que estaríamos diante de uma
norma constitucional originária inconstitucional, fenômeno cuja existência não
podemos conceber, e a segunda, porque a regra de competência outorgada pela
Constituição Federal traz consigo inafastavelmente a sua própria delimitação,
representada pela imunidade conferida às operações mencionadas pelo parágrafo
3º do artigo 155 e não se pode falar de violação à igualdade e à capacidade
contributiva onde não há sequer competência tributária.
O Ministro MOREIRA ALVES, em seu voto, destaca que a finalidade
buscada pela Constituição com essa imunidade é a de evitar que haja excessiva
oneração fiscal dos bens envolvidos – energia elétrica, combustíveis líquidos e
gasosos, lubrificantes e minerais – e que a imunidade é de natureza objetiva,
297 A imunidade tributária do livro, In: Imunidade tributária do livro eletrônico, p. 142.
razão pela qual “não pode ofender a princípios constitucionais que só são
pertinentes à pessoa do contribuinte que, nessa espécie de imunidade, não é
tomada em consideração”.
A própria natureza jurídica da imunidade – sua razão de ser (valores
que a Constituição Federal deseja proteger da incidência tributária) e o seu
significado (delimitação da competência tributária conferida às pessoas políticas)
– por si só afasta a incidência dos aludidos princípios constitucionais que,
portanto, não podem ser considerados como violados.
A terceira questão é referente à denominada universalidade da
contribuição, prevista no caput do artigo 195 da Constituição da República,
segundo o qual “A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de
forma direta e indireta, nos termos da lei”, dispositivo que, na visão de vários
Ministros do Supremo Tribunal Federal, constitui obstáculo ao entendimento de
que a imunidade prevista no parágrafo 3º alcançaria as contribuições em geral, e
aquela incidente sobre o faturamento, em especial, interpretação que, diga-se de
passagem, acabou por prevalecer na decisão final da Corte Suprema.
Tal aspecto é salientado pelo Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE
nestas palavras: “... não estou alheio às considerações econômicas, ontem
desenvolvidas, em favor da interpretação abrangente da imunidade. Não me
comoveram o bastante, entretanto, para aceitar, em seu nome, o privilégio que a
imunidade constitucional representaria contra o princípio constitucional da
universalidade do custeio da seguridade social”; e também pelo Ministro
MAURÍCIO CORRÊA, nestes termos: “Desse modo, sem fugir dos fundamentos
que acima sinteticamente alinhavei e a teor do dogma constitucional do caput do
artigo 195, segundo o qual a seguridade social será financiada por toda a
sociedade, não posso conceber que fiquem de fora desse esforço as empresas
que exploram esses setores – gigantes da economia nacional – as quais não são
excepcionadas pela lei”.
Afirmamos desde logo nossa crença de que a interpretação do
dispositivo constitucional de que ora tratamos certamente não poderá ser feita
com base no fato de as empresas alcançadas pela imunidade serem ou não
“gigantes da economia nacional” uma vez que, como parece elementar e como já
afirmado, a imunidade prevista no parágrafo 3º do artigo 155 é de natureza
objetiva – alcança os bens ali previstos, independentemente das pessoas
jurídicas envolvidas – e, sendo assim, não pode ser interpretada em razão do
“tamanho” das empresas; seja como for, o entendimento do Ministro MAURÍCIO
CORRÊA não deixa de ser um bom exemplo da influência da ideologia na
interpretação, conforme demonstramos no capítulo 5 de nosso trabalho.
Não obstante, o comando normativo do caput do artigo 195
indubitavelmente deve ser levado em consideração em qualquer caso que
envolva as contribuições destinadas ao custeio e à manutenção da seguridade
social, tendo-se em vista que a universalidade da contribuição é norma
constitucional de alta relevância, e que, nesta qualidade, deve ter sua dimensão
de peso avaliada em cada caso concreto e pode mesmo fazer com que, em
certas circunstâncias, outros princípios constitucionais cedam espaço para sua
aplicação.
A rigor, o argumento de que a imunidade tributária concedida pelo
parágrafo 3º, como abrangente da contribuição sobre o faturamento, violaria o
caput do artigo 195 parece não se sustentar porque as contribuições previstas
nesse artigo, a cargo dos empregadores, são três: incidentes sobre a folha de
salários, sobre o lucro e sobre o faturamento (na redação original do dispositivo).
Como a noticiada imunidade envolve apenas esta última, caso viesse a
prevalecer tal imunidade, as empresas empregadoras ainda continuariam a
contribuir para o financiamento da seguridade social por meio das outras duas
contribuições: a da folha de salários e a do lucro.
Em seguida, deve-se considerar que o fato de a Constituição
Federal determinar a universalidade da contribuição não significa que não possa
haver exceções a esse comando constitucional feitas pela própria Lei Maior, como
ocorre com a previsão do parágrafo 7º do mesmo artigo 195, por exemplo, que
concede imunidade às entidades beneficentes de assistência social que atendam
às exigências estabelecidas em lei (imunidade subjetiva). Ora, da mesma forma
que a imunidade do parágrafo 7º do artigo 195 é uma exceção ao comando do
caput desse artigo, a imunidade do parágrafo 3º do artigo 155 também o é, de
modo que tais regras imunizatórias não violam a universalidade da contribuição à
seguridade social mas, antes, são exceções constitucionais estabelecidas em
relação a ela.
Em outras palavras, as referidas imunidades não entram em conflito
com a norma do caput do artigo 195, mas com ela convivem pacificamente, pois a
necessária interpretação sistemática da Carta Magna não permite que se examine
a norma do caput sem a consideração simultânea dos demais dispositivos
constitucionais.
Embora tenhamos afirmado no capítulo 5 que um dos possíveis
limites da interpretação é a consideração dos efeitos concretos da decisão, trata-
se de apenas um dos limites da interpretação, que além de não poder ser tomado
de forma isolada no processo interpretativo, certamente não autoriza a conclusão
de que a imunidade prevista no parágrafo 7º do artigo 195 conviveria em
harmonia com a universalidade do financiamento da seguridade social e a
imunidade do parágrafo 3º do artigo 155, se estendida à contribuição incidente
sobre o faturamento, violaria a mencionada cláusula da universalidade.
Desse modo, considerar os efeitos concretos da decisão não
significa estabelecer a diferença de tratamento apenas porque a primeira
contempla as entidades beneficentes de assistência social e a segunda pode
alcançar “gigantes da economia nacional”. Não é isso o que desejamos afirmar
quando apontamos o referido limite da interpretação, pois sua consideração não
se pode sobrepor, pelo menos não nesse caso, à interpretação sistemática e
teleológica dos dispositivos constitucionais, pois, se pessoas jurídicas de pequeno
porte viessem a desenvolver operações com os bens previstos no parágrafo 3º do
artigo 155, deveriam de igual modo gozar da imunidade tributária ali prevista.
Acreditamos que se revela fundamental na interpretação das normas
imunizantes a análise dos valores por ela protegidos: no primeiro caso, o
relevante papel desempenhado pelas entidades beneficentes que prestam
assistência social e, no segundo, o desígnio constitucional de evitar que os bens
previstos no dispositivo sejam demasiadamente onerados pela tributação, uma
vez que tais bens “são de vital importância para a economia nacional, e que,
assim, teriam seus preços de venda demasiadamente aumentados”, consoante
afirma o Ministro MOREIRA ALVES.
Não se trata de considerar que a imunidade representa um privilégio
a determinados contribuintes, mas sim de se considerar que esse “privilégio”
decorre de certos valores prestigiados pela Carta da República e que, só pelo fato
de o serem, não podem ser desprezados na atividade interpretativa. Ademais,
revelando-se ou não um privilégio, trata-se de imunidade tributária, instituto que
obriga a consideração de sua própria natureza jurídica.
A imunidade, como vimos, é elemento delimitador da competência
tributária outorgada pela Constituição, representa o limite dessa competência, de
modo que, concordemos ou não com ela, consideremos mais ou menos
apropriada, tenhamos como justa ou injusta, o fato é que a competência tributária
foi assim soberanamente outorgada pelo Texto Constitucional.
A quarta e última questão a ser enfrentada no caso diz respeito a
outro limite da interpretação: o sentido literal possível do texto normativo. Tal
limite, que não se confunde com a chamada interpretação literal, estabelece que o
texto normativo é o ponto de partida e de chegada da interpretação e obriga o
intérprete a verificar se a atribuição de sentido feita com relação ao texto, isto é,
se a norma jurídica cujo sentido foi construído, obedece ou não ao âmbito do
sentido literal possível do dispositivo, uma vez que, se ultrapassada tal fronteira,
já não se trata de interpretação mas de alteração de sentido.
Esse limite da interpretação é relevante para a hipótese do parágrafo
3º do artigo 155, pois tal dispositivo determina que, com exceção dos impostos ali
previstos, “nenhum outro tributo incidirá sobre operações relativas a energia
elétrica, combustíveis líquidos e gasosos, lubrificantes e minerais do País”, de
modo que, segundo nosso entendimento, o sentido literal possível desse texto
normativo é dado pela expressão “nenhum outro tributo incidirá”, que parece não
deixar dúvidas quanto à impossibilidade da existência de outras exceções além
daquelas previstas no próprio dispositivo constitucional, motivo pelo qual, com a
devida vênia, não visualizamos nenhuma razão suficiente para que a imunidade
ali presente não alcance a contribuição incidente sobre o faturamento decorrente
da realização das operações que envolvam os mencionados bens.
4. Cofins e incidência sobre a venda de bens imóveis
A incidência da Contribuição para Financiamento da Seguridade
Social – COFINS sobre operações de venda de imóveis foi objeto de decisão
definitiva pela Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento, em
23 de agosto de 2000, dos Embargos de Divergência no Recurso Especial nº.
166.374-PE, Relator Ministro JOSÉ DELGADO, Relatora para acórdão Ministra
ELIANA CALMON, no qual se decidiu, por maioria de votos, pela sujeição da
venda dos imóveis à referida contribuição, em acórdão de seguinte ementa:
“TRIBUTÁRIO. COFINS. VENDA DE IMÓVEIS: INCIDÊNCIA.
1. O fato gerador da COFINS é o faturamento mensal da empresa,
assim considerada a receita bruta de vendas de mercadorias e de
serviços (LC n. 70/91).
2. A empresa que comercializa imóveis é equiparada a empresa
comercial e, como tal, tem faturamento com base nos imóveis
vendidos, como resultado econômico da atividade empresarial
exercida.
3. A noção de mercadoria do Código Comercial não é um instituto, e
sim um conceito que não pode servir de fundamento para a não-
incidência de um segmento empresarial que exerce o comércio.
4. Embargos de divergência conhecidos e recebidos.”
No caso em tela, um dos conceitos constitucionais envolvidos seria,
a rigor, o de faturamento, previsto na redação original do artigo 195 da Lei Maior;
entretanto, como a Lei Complementar n.º 70/91 definiu faturamento como a
receita oriunda da venda de mercadorias e de serviços, essa definição legal
remete a discussão para os conceitos de mercadorias e de serviços de qualquer
natureza, interessando-nos, por ora, apenas o primeiro conceito.
A discussão passa a situar-se em torno da determinação do
significado de mercadorias, a fim de sabermos se tal conceito alcança ou não os
bens imóveis ou, em outras palavras, se imóveis são mercadorias para fins de
sujeição do faturamento decorrente de suas vendas à incidência da Cofins.
A primeira possibilidade de interpretação tem como fundamento
constitucional o princípio da legalidade estrita, previsto no artigo 150, inciso I, da
Carta Política, e também o artigo 110 do Código Tributário Nacional, que, como
se sabe, proíbe à lei tributária alterar a definição e o alcance dos conceitos de
direito privado utilizados para a delimitação da competência tributária. Assim
sendo, já que a Lei Complementar nº. 70/91 adotou faturamento como a receita
oriunda da venda de mercadorias, é necessário verificar qual o conceito de
mercadoria oferecido pelo direito positivo – e não pelo direito privado – como
tivemos oportunidade de demonstrar no capítulo 6.
O aludido conceito de mercadoria é dado inicialmente pelo Código
Comercial, em seu artigo 191, nos seguintes termos: “É unicamente considerada
mercantil a compra e venda de efeitos móveis ou semoventes, para os revender
por grosso ou a retalho, na mesma espécie ou manufaturados, ou para alugar o
seu uso, compreendendo-se na classe dos primeiros a moeda metálica e o papel-
moeda, títulos de fundos públicos, ações de companhias e papéis de crédito
comerciais, contanto que nas referidas transações o comprador ou vendedor seja
comerciante”, definição segundo a qual somente os bens móveis são legalmente
considerados mercadorias, em conceito que foi longamente trabalhado pela
jurisprudência e pela doutrina, e ficou consolidado com o transcurso do tempo.
Com base na análise dos conceitos utilizados nos mencionados
textos legais, podemos notar que a Lei Complementar nº. 70/91 definiu como
base de cálculo da Cofins a receita decorrente da prática de certas atividades
empresariais e, ainda que pudesse ter adotado a venda de bens (quaisquer
bens), não o fez e optou apenas pela receita oriunda da venda de uma espécie de
bem (e não da venda todas as espécies), especificamente das mercadorias, isto
é, dos bens móveis, segundo o conceito fornecido pelo Código Comercial e que
não pode ser estendido para alcançar aquela outra espécie de bem, justamente
os imóveis, porque o artigo 110 do Código Tributário Nacional não o permite.
Tal entendimento já havia sido adotado no acórdão anterior, e que
foi suscitado nos Embargos de Divergência que ora analisamos, de relatoria do
Ministro PEÇANHA MARTINS, de seguinte ementa:
“TRIBUTÁRIO. COFINS. NÃO INCIDÊNCIA. VENDA DE IMÓVEIS.
L.C. 70/91, ART. 2º.
A receita bruta das vendas de bens e prestações de serviços de
qualquer natureza, não se insere na definição legal da base de
cálculo para incidência da contribuição, limitada à venda de bens
móveis e serviços.
Não se pode ampliar a hipótese de incidência da COFINS,
contrariando os conceitos de bem imóvel e mercadoria,
estabelecidos pelo direito civil e comercial.
Recurso conhecido pela letra ‘c’ mas improvido”.
Essa interpretação levada a termo com base no comando normativo
do artigo 110 é também acolhida pelo Ministro PAULO GALLOTI que, fazendo
suas as palavras de um outro integrante do Superior Tribunal de Justiça, afirma
que “... se o legislador pretendesse ou pretendia fazer incidir a Cofins sobre a
venda de imóveis, que não são mercadorias à luz do velho conceito do Digesto
Comercial, deveria fazê-lo com precisão e competência, incluindo no rol do art. 2º
da LC a venda de bens imóveis. Se não o fez, a situação não tem como ser
‘contornada’ por interpretação de modo a afastar normas de Direito Tributário
contidas no CTN”.
Para MARCO AURELIO GRECO, que elaborou parecer sobre tal
tema, o legislador não está obrigado a esgotar a competência tributária da qual é
titular e instituir a exigência tributária sobre todas as possibilidades contidas na
norma de competência, e, buscando o conceito de “mercadoria no contexto do
ordenamento positivo”, salienta que “Com efeito, um exame do termo ‘mercadoria’
a) no âmbito constitucional, b) no âmbito legal e c) mesmo no contexto interno da
própria LC 70/91 indica que seu significado alcança apenas os bens móveis e não
os imóveis”.298
As considerações feitas nos julgados e nessa lição doutrinária são
um bom exemplo da aplicação do conceito utilizado pela norma de competência
como limitação ao poder de tributar, em aplicação direta do artigo 110 do Código
Tributário Nacional, consoante tivemos oportunidade de abordar no capítulo
antecedente de nosso estudo.
A segunda possibilidade interpretativa afasta-se da aplicação do
aludido artigo 110 e procura construir o conceito legal de mercadoria com maior
alcance significativo, para comportar também os bens imóveis.
Uma das questões a ser destacada refere-se ao fato de que o
Código Comercial – que, como vimos, somente considera como mercadorias os
bens móveis – é de 1850 e, portanto, a referida definição legal foi formulada com
base na realidade existente há mais de cento e cinqüenta anos, evidentemente
muito diferente da atual, circunstância que, segundo pensamos, indica, pelo
menos a princípio, a possibilidade de uma interpretação atualizada do aludido
conceito legal.
É de bom alvitre que afirmemos desde logo que mencionamos a
possibilidade de atualização do conceito não pelo simples e isolado fato de ele ter
sido elaborado há cento e cinqüenta anos, ou seja, não é a “idade” do conceito
que determina, por si só, se dele se deve ou não fazer uma interpretação
atualizada. O tempo de existência do conceito é um dos elementos da equação e
deve ser considerado:
298 Cofins na venda de imóveis, In: Revista Dialética de Direito Tributário, vol. 51, p. 130 e 134.
– no contexto em que é utilizado;
– quanto ao grau de alteração sofrida pela parcela da realidade
representada pelo conceito;
– dentro do alcance da atualização pretendida;
– respeitante a observância da interpretação dos postulados
normativos da razoabilidade e da proporcionalidade e, sobretudo,
como temos defendido desde o início;
– sempre em relação às especificidades do caso concreto que
aguarda solução.
Em vista disso, não é qualquer atualização do conceito que é
permitida, pois uma interpretação atualizadora por demais elástica, em vez de
trazer o conceito para o momento atual, acaba, na verdade, por criar outro
conceito ou, se preferirmos, por deformar o conceito primitivo. Ademais, em se
tratando de conceitos envolvidos na definição de competência tributária, o
cuidado na sua atualização deve ser ainda mais acentuado, uma vez que tais
conceitos, como vimos, não estão à disposição do legislador.
Não obstante o necessário cuidado, pensamos que o conceito de
mercadorias contemplado pelo artigo 191 do Código Comercial pode comportar
uma exegese que venha a atualizá-lo, de forma que englobe, ao lado dos bens
móveis, os imóveis, uma vez que essa distinção, que podia fazer sentido para a
sociedade e os costumes de 1850, já não mais guarda razão de ser no momento
atual.
A redação do artigo 191 permite visualizar, embora se utilize
expressamente das palavras móveis e semoventes, que o texto legal considera
como mercantil a compra e venda, desde que nas transações comerciais o
comprador ou vendedor seja comerciante, de bens capazes de figurar como
objeto dessas transações; de coisas passíveis de estarem no comércio; de
elementos patrimoniais que podem ser objeto das negociações comerciais, isto é,
a característica aglutinadora das mercadorias não é exatamente a qualidade de
serem móveis, mas, antes, a de poderem ser objeto de uma relação comercial.
Em outros termos, parece-nos que o dado relevante a ser
considerado, que subjaz nas entrelinhas do dispositivo legal, não é a eventual
mobilidade dos bens, mas a possibilidade de sua comercialização, daí sua
denominação de mercadorias: não porque são móveis, mas porque são objeto de
mercancia.
Nesse sentido, diga-se de passagem, a menção expressa do
dispositivo legal apenas aos móveis e semoventes provavelmente terá sido
motivada pela não comercialização habitual de bens imóveis que, justamente por
não serem corriqueiramente àquela época postos no comércio, não eram então
considerados mercadorias.
O quadro acima, pintado com as cores de 1850, em nada parece
corresponder à tela da sociedade atual, permeada por um variado número de
matizes que conferem configuração absolutamente distinta às práticas comerciais
e aos negócios realizados com o intuito de lucro. É absolutamente comum, nos
tempos atuais e já há muito tempo, a compra e venda de bens imóveis ou os atos
de comércio cujo objeto são os imóveis.
A interpretação atualizada do artigo 191 do Código Comercial pode
ser formulada nos termos apontados, não nos parecendo despropositado
considerar como mercadorias, para o específico fim de que ora tratamos, tanto os
bens móveis quanto os bens imóveis. Desse modo, em se adotando o conceito de
mercadorias na acepção que propusemos, temos que:
– mercadorias, à época do Código Comercial, correspondiam às
coisas postas no comércio, aos bens-objeto de transações
comerciais (que por razões circunstanciais daquele momento
histórico, eram somente bens móveis) e
– mercadorias, no momento atual, ainda correspondem às coisas
postas no comércio, aos bens-objeto de transações comerciais (mas
que, em razão das circunstâncias deste momento histórico, são
também os bens imóveis).
Portanto, parece-nos que a Lei Complementar nº. 70/91, ao definir
que a base de cálculo da Cofins é a receita decorrente da venda de mercadorias
e da prestação de serviços de qualquer natureza, pode ser interpretada com a
consideração de que mercadorias, para esse propósito, são os bens-objeto da
venda, isto é, são as coisas transacionadas comercialmente pelas empresas
contribuintes, sejam eles móveis ou imóveis.
Uma vez chegados a este ponto de nosso raciocínio, podemos
antecipar-nos a uma eventual crítica, pois alguém poderia objetar que com tais
argumentos estaríamos negando a nossa principal idéia, que é a função dos
conceitos como limitação ao poder de tributar. Na medida em que permitirmos
que a lei tributária altere o conteúdo e o alcance de um conceito do direito positivo
para fins de delimitação da competência tributária, outra coisa não estaríamos
fazendo senão negar vigência ao artigo 110 do Código Tributário Nacional e
esvaziar a função do conceito como limitador da referida competência. Entretanto
acreditamos que isso não ocorra e a menção a esta questão leva-nos às últimas
considerações que desejamos efetuar no presente item.
Afirmamos por diversas vezes que os conceitos constitucionais,
embora sejam limitações ao poder de tributar, não são dados pela Constituição
prontos e acabados, razão pela qual o legislador e o Poder Judiciário (no caso
deste último, desde que seja provocado para tanto) possuem alguma margem de
liberdade para a construção do conteúdo significativo dos aludidos conceitos, por
meio da interpretação e da aplicação da lei ao caso concreto.
Como complemento a essa afirmação, salientamos também que a
interpretação, na qualidade de atividade construtiva da norma jurídica – de
atribuição de sentido ao texto normativo – sofre inúmeras e variadas influências e
passa por diversas vicissitudes, em especial pela intersecção dos diversos
valores hospedados pelo ordenamento jurídico e pelo conflito entre princípios, isto
é, entre normas jurídicas exteriorizadas sob a forma de princípios.
Assim, acreditamos que na questão da incidência ou não da Cofins
sobre as operações de venda de imóveis deparamos justamente com um
problema desse tipo, ou seja, com um conflito entre dois princípios
constitucionais, com a decorrente intersecção dos valores que lhes são
subjacentes. Esse ponto de vista parece materializar-se na seguinte passagem do
voto da Ministra ELIANA CALMON: “Parece-me que seria quase que impossível
não considerar uma atividade econômica pelo só fato de essa atividade ter como
mercadoria um bem imóvel, (...) Não vejo sentido, inclusive de natureza
ontológica, para a exclusão de uma atividade absolutamente rentável, como é a
incorporação de imóveis”.
Ora, o pensamento da Ministra coloca em evidência justamente o
conflito entre o princípio da legalidade estrita, previsto no inciso I, do artigo 150 da
Constituição Federal, e o princípio da universalidade da contribuição à Seguridade
Social, contemplado no caput do seu artigo 195. O primeiro princípio hospeda os
valores da segurança e da previsibilidade da tributação e o segundo, os valores
da solidariedade social e da justiça da tributação.
Traduzindo o referido conflito para linguagem mais escorreita, a
questão pode ser posta da seguinte forma: se toda a sociedade deve contribuir
para o custeio da Seguridade Social nos termos da lei e se, dentro do universo de
contribuintes definido pela lei, estão inclusas as empresas que vendem
mercadorias (consideradas, a princípio, somente como bens móveis), há razão
para excluir-se desse universo uma classe de possíveis contribuintes, pela razão
de venderem bens imóveis, por que esses não seriam mercadorias?
Para aqueles intérpretes que entenderem que o princípio com maior
dimensão de peso, neste caso concreto, é o da legalidade estrita, a decisão é
pela não incidência da Cofins sobre as vendas de imóveis, ao passo que, para os
que acreditarem que a maior dimensão de peso, sempre no caso concreto, está
no princípio da universalidade da contribuição, a decisão é pela incidência da
aludida contribuição sobre as operações de vendas de imóveis.
No caso dos Embargos de Divergência que analisamos, a decisão
do Superior Tribunal de Justiça foi pela segunda hipótese, vale dizer, pela
incidência da Cofins. De qualquer modo, concorde-se ou não com ela, pelas
razões apontadas parece-nos que não poderíamos deixar de considerar que essa
possibilidade de interpretação está dentro da moldura do texto legal.
5. Seguro de Acidentes do Trabalho
A contribuição ao denominado Seguro de Acidentes do Trabalho –
SAT foi alvo de acentuada controvérsia na doutrina e na jurisprudência e acabou
por ser objeto de decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso
Extraordinário nº. 343.446-SC, Relator Ministro CARLOS VELLOSO, na qual a
Corte Máxima, por unanimidade de votos, em 20 de março de 2003 decidiu pelo
não conhecimento do referido recurso, interposto por determinado contribuinte,
em acórdão de seguinte ementa:
“CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÃO: SEGURO DE
ACIDENTE DO TRABALHO – SAT. Lei 7.787/89, arts. 3º e 4º; Lei
8.212/91, art. 22, II, redação da Lei 9.732/98. Decretos 612/92,
2.173/97 e 3.048/99. C.F., artigo 195, § 4º; art. 154, II; art. 5º, II, art.
150, I.
I – Contribuição para o custeio do Seguro de Acidente do Trabalho –
SAT: Lei 7.787/89, arts. 3º, II; Lei 8.212/91, art. 22, II; alegação no
sentido de que são ofensivos ao art. 195, § 4º c/c art. 154, I, da
Constituição Federal: improcedência. Desnecessidade de
observância da técnica da competência residual da União, C.F, art.
154, I. Desnecessidade de lei complementar para a instituição da
contribuição para o SAT.
II – O art. 3º, II, da Lei 7.787/89, não é ofensivo ao princípio da
igualdade, por isso que o art. 4º, da mencionada Lei 7.787/89 cuidou
de tratar desigualmente os desiguais.
III – As Leis 7.787/89, art. 3º, II, e 8.212/91, art.22, II, definem,
satisfatoriamente, todos os elementos capazes de fazer nascer a
obrigação tributária válida. O fato de a Lei deixar para o regulamento
a complementação dos conceitos de ‘atividade preponderante’ e
‘grau de risco leve, médio e grave’ não implica ofensa ao princípio da
legalidade genérica, C.F., art. 5º, II, e da legalidade tributária, C.F.,
art. 150, I.
IV – Se o regulamento vai além do conteúdo da lei, a questão não é
de inconstitucionalidade, mas de ilegalidade, matéria que não integra
o contencioso constitucional.
V – Recurso Extraordinário não conhecido”.
A questão mais relevante levada ao conhecimento do Supremo
Tribunal Federal no julgamento da contribuição em tela consiste no fato de as Leis
Federais nº. 7.787/89 e nº. 8.212/91 terem deixado para o regulamento a tarefa
de definir os conceitos de “atividade preponderante” e “graus de risco leve, médio
e grave” para efeito de enquadramento das empresas contribuintes nas alíquotas
de um, dois ou três por cento. Embora as referidas Leis tenham estabelecido tais
alíquotas para, respectivamente, os graus de risco leve, médio e grave, a
delegação ao regulamento no caso concreto fez com que este – e não a lei –
determinasse o percentual da contribuição de cada contribuinte.
Segundo a alegação dos contribuintes, essa delegação ao
regulamento fere o princípio da legalidade tributária, insculpido no artigo 150,
inciso I da Constituição Federal, segundo o qual cabe à lei definir todos os
elementos da obrigação tributária, argumento que não foi acolhido pela Corte
Suprema, o que causou acentuada surpresa, porque tal decisão contraria
frontalmente a construção doutrinária formulada ao longo dos últimos trinta anos.
A afirmação do Ministro Relator de que as mencionadas Leis
“definem, satisfatoriamente, todos os elementos capazes de fazer nascer a
obrigação tributária válida” parece sugerir que o princípio constitucional da
legalidade não seria de legalidade estrita, como o afirma a doutrina em uníssono,
mas de legalidade suficiente, uma vez que, embora não estabeleçam todos os
elementos da regra-matriz de incidência, as Leis prevêem alguns elementos de
modo satisfatório e deixa outros a cargo de regulamento, sem que com isso o
aludido princípio seja violado.299
A análise do voto do Ministro Relator parece sugerir que haveria no
Supremo Tribunal Federal uma alteração no entendimento do conceito de
legalidade, que poderia corresponder a uma interpretação atualizada da Carta
Constitucional, que teria deixado de ser tomada como estrita para ser considerada
suficiente. Esta nova concepção não teria lugar em todas as hipóteses, mas
apenas naqueles casos, valendo-nos das palavras do Relator, em que “a
aplicação da lei, no caso concreto, exige a aferição de dados e elementos.
Nesses casos, a lei, fixando parâmetros e padrões, comete ao regulamento essa
aferição”, de modo que não se trataria, assim, de delegação pura, esta sim,
ofensiva ao princípio da legalidade.
Segundo nosso modesto entendimento, com a devida vênia do
pensamento contrário, não seria despropositado conceber que o princípio da
legalidade, em alteração de entendimento jurisprudencial, pudesse agora, em
determinadas hipóteses, ser considerado de legalidade suficiente. Para tanto,
havemos de considerar que efetivamente podem surgir casos especiais em que o
legislador não dispõe previamente de todos os dados e elementos necessários
para a definição integral da regra-matriz de incidência do tributo –porque estes
somente podem ser obtidos com a análise das peculiaridades dos fatos, em
atividade que envolve levantamentos minuciosos, pesquisas de campo, relatórios
299 A expressão legalidade suficiente não aparece no acórdão mencionado, mas tem sido utilizada pela doutrina, por exemplo, por Marco Aurelio Greco, ao analisar os termos do julgado.
técnicos etc. – e que, portanto, podem ser apurados com mais propriedade pelas
autoridades administrativas encarregadas de elaborar o regulamento ou o
decreto, como é o caso da contribuição ao Seguro de Acidentes do Trabalho, que
reclama o levantamento de dados estatísticos sobre o número de ocorrências de
acidentes do trabalho em cada setor empresarial e qual a natureza e a gravidade
dos referidos acidentes, inclusive.
Em hipóteses como essa, não nos parece absurda a interpretação
do princípio da legalidade como legalidade suficiente, e não estrita, para deixar-se
para o regulamento a tarefa de estabelecer alguns dos elementos componentes
da obrigação tributária, desde que sejam atendidas duas condições básicas: a de
que a lei fixe os elementos principais da regra-matriz, isto é, o diploma legal
determine ele mesmo todos os elementos possíveis de determinação, e que o
regulamento se contenha nos parâmetros limitativos necessariamente impostos
pela própria lei.
Como consta do próprio voto do Ministro Relator, afirmar-se que “o
Congresso fixa standards ou padrões que limitam a ação do delegado”; que a lei
“fixa parâmetros e padrões”; e, ainda, que não se pode chegar “a violentar o
sentido emanado do texto legal”, para que seja considerado legítimo o exercício
do poder regulamentar, é, com o devido respeito, dizer o óbvio e dizer pouco, uma
vez que é evidente que o regulamento não pode dispor de modo contrário,
tampouco ultrapassar os limites delineados pela lei.
Esse é o ponto central da questão da contribuição que ora
examinamos, ou seja, o efetivo exercício do poder regulamentar contemplado
pelas Leis Federais nº. 7.787/89 e nº. 8.212/91.
Admitindo-se como possível o cometimento ao regulamento da
tarefa de definir o que sejam “atividade preponderante” e “graus de risco leve,
médio e grave” – como decorrência da interpretação da legalidade como
suficiente, e não estrita – cabia ao regulamento a séria e inafastável obrigação,
imposta pela própria natureza da delegação, de oferecer um regramento jurídico
apropriado, condizente e razoável com os diversos aspectos da realidade
normatizada (aquela objeto das normas contidas no regulamento), que são, no
caso, os riscos derivados do ambiente de trabalho e a ocorrência de acidentes em
cada setor empresarial considerado.
Em outras palavras, se o agente administrativo recebeu, por meio de
delegação feita pela lei, a tarefa de, por meio de regulamento, oferecer tratamento
jurídico a determinada parcela da realidade, para estabelecer qual o grau de risco
de acidentes do trabalho presente em cada setor empresarial das pessoas
jurídicas contribuintes e, com base nisso, fixar elemento essencial da regra-matriz
de incidência da contribuição ao Seguro de Acidentes do Trabalho, o mínimo que
poderíamos esperar de tal regulamento é que tratasse o referido campo da
realidade material com densidade normativa suficiente, ou seja, que suas regras
conferissem um regime jurídico apropriado àquela realidade. Isso significaria, no
caso concreto, que cada empresa, ou cada setor da empresa, estivesse sujeita ao
recolhimento da contribuição com base na alíquota que representasse o seu grau
de risco efetivo, verdadeiro, real, e não um grau de risco fictício, estimado ou
comodamente “calculado” diretamente das mesas de trabalho da burocracia
previdenciária.300
300 José Joaquim Gomes Canotilho ensina que “o princípio da determinabilidade das leis reconduz-se, sob o ponto de vista intrínseco, a duas idéias fundamentais. A primeira é a da exigência de
Essa relação de congruência entre fato e norma (entre realidade
material e regime jurídico) jamais existiu no caso da mencionada contribuição,
haja vista que o regramento oferecido pelos Regulamentos que trataram da
questão deu margem a inúmeros casos de distorção na sua aplicação e na das
Leis regentes da matéria, pois fez com que diversos contribuintes estivessem – e
ainda estejam – sujeitos ao recolhimento do tributo sob uma alíquota que não
correspondia ao verdadeiro grau de risco relativo ao seu respectivo ambiente de
trabalho. Diga-se de passagem, não temos notícia de que o Ministério do
Trabalho e da Previdência Social se tenha utilizado da prerrogativa constante do
parágrafo 3º, do artigo 22, da Lei Federal nº. 8.212/91, que lhe permite “alterar,
com base nas estatísticas de acidente do trabalho, apuradas em inspeção, o
enquadramento de empresas para efeito da contribuição a que se refere o inciso
II deste artigo, a fim de estimular investimentos em prevenção de acidentes”.
Isso é comprovado pela análise, por exemplo, do Decreto nº.
3.048/99 que, ao tratar da contribuição em seus artigos 202 e 203, e bem assim
em seu Anexo V, fixa os graus de risco correspondentes a cada setor
empresarial, mas não fornece os critérios utilizados para a referida fixação das
alíquotas, fazendo com que a norma infralegal se revele marcadamente
divorciada da realidade que regula – ou pretende regular.
clareza das normas legais, pois de uma lei obscura ou contraditória pode não ser possível, através da interpretação, obter um sentido inequívoco capaz de alicerçar uma solução jurídica para o problema. A segunda aponta para a exigência de densidade suficiente na regulamentação legal, pois um acto legislativo (ou um acto normativo em geral) que não contém uma disciplina suficientemente concreta (= densa, determinada) não oferece uma medida jurídica capaz de: (1) alicerçar posições juridicamente protegidas dos cidadãos; (2) constituir uma norma de actuação para a administração; (3) possibilitar, como norma de controle, a fiscalização da legalidade e a defesa dos direitos e interesses dos cidadãos” (Direito constitucional e teoria da constituição, p. 258).
Tais críticas são confirmadas por EDUARDO GONZAGA OLIVEIRA
DE NATAL que, ao referir-se ao mencionado Anexo V do Decreto nº. 3.048/99,
acentua que “... por mais que se esforce, o exegeta não conseguirá sacar do
plexo normativo infralegal vigente qualquer resposta do porquê se tributar à
alíquota de 2% (dois por cento) a atividade de ‘fiação de algodão’ e à alíquota de
3% (três por cento) o ‘beneficiamento de algodão’. Para isso faz-se necessária a
concretização, ainda que mínima, do ideal de motivação requerido pela mens
legis do SAT” e ainda assevera que “a incúria do Poder Executivo, que se limitou
a publicar uma lista anômala, que nada aduz ao disposto no inciso II, do art. 22 da
Lei nº. 8.212/91, fere de morte a validade do diploma normativo editado pelo
Poder Executivo, além de revelar ofensa a vários comandos legais e
constitucionais, como a motivação, a legalidade e a igualdade”.301
Diante de tais considerações, procurando aplicar as idéias que
esboçamos ao longo de nosso trabalho, parece-nos que a interpretação das
normas constitucionais feita pelo Supremo Tribunal Federal no caso da
contribuição ao Seguro de Acidentes do Trabalho esbarra em dois dos limites da
interpretação que apontamos no capítulo 5, quais sejam, o do domínio normativo
e o dos efeitos concretos da decisão.
O parâmetro limitativo do âmbito ou domínio da norma deve ser
levado em consideração, na interpretação sobre o princípio da legalidade e a
noticiada delegação normativa ao Decreto, diante da necessidade de se atentar
para as especificidades do campo material, objeto da regulação, que é a fixação
de alíquotas da contribuição segundo os graus de risco de acidentes do trabalho
301 Contribuição ao seguro de acidente do trabalho – análise da questão após o decisum proferido pelo Supremo Tribunal Federal, In: Revista Tributária e de Finanças Públicas, vol. 53, p. 182/183.
existentes em cada ambiente laborativo. Trata-se de examinar o setor da
realidade para o qual se direciona a norma jurídica (no caso, a norma contida no
Decreto regulamentar), a fim de se verificar, com base nas características e
elementos de fato, se há ou não a necessária relação de congruência entre fato e
norma, vale dizer, se o regramento jurídico estabelecido trata com propriedade,
de modo adequado, o fato ou a parcela da realidade, objeto da norma.
Quanto a esse ponto, pensamos que a resposta é necessariamente
negativa, uma vez que, como afirmamos há pouco, se o recolhimento da referida
contribuição deve dar-se em menor ou maior valor, segundo a aplicação de
alíquotas variáveis, mas sendo estas sempre fixadas de modo vinculado ao grau
de risco dos acidentes de trabalho, então parece evidente que o Decreto em
referência jamais poderia ter previsto tais alíquotas do modo aleatório como foi
feito, sem fundamento nos dados empíricos exigidos para o adequado tratamento
normativo dessa específica realidade, procedimento que poderia ter evitado a
ocorrência das flagrantes distorções de regime jurídico a que estão submetidos
diversos contribuintes.
Com relação a esse ponto devemos registrar, com a devida vênia,
nossa divergência quanto ao afirmado no voto do Ministro Relator: se o
regulamento foi além da lei, a questão não é de inconstitucionalidade, mas de
ilegalidade, matéria que não integra o contencioso constitucional.
Parece não haver dúvida de que, no caso concreto, o regulamento
desbordou-se dos contornos traçados pela lei, ensejando o conhecimento e o
julgamento da matéria pelo Superior Tribunal de Justiça, em razão de sua
competência. Não obstante, acreditamos que tal circunstância não impediria o
conhecimento da questão pelo próprio Supremo Tribunal Federal uma vez que, se
houve desvio de poder na edição do regulamento, como de fato houve, então foi
violado o próprio princípio da legalidade – ainda que considerada como legalidade
suficiente – porque a lei, dessa forma “não definiu, satisfatoriamente, todos os
elementos capazes de fazer nascer a obrigação tributária válida”.
O segundo limite da interpretação que foi desobedecido diz respeito
aos efeitos concretos da decisão, cuja consideração obrigaria a Suprema Corte a
indagar, no caso específico, quais conseqüências seriam geradas pela sua
interpretação da Lei Maior, inclusive levando em conta a relevância da questão e
o número de destinatários atingidos pela decisão.
Nesse caso, o Supremo Tribunal Federal, ciente de que a delegação
de poderes para o regulamento tinha sido mal exercida, que ele se havia afastado
de modo inadmissível dos propósitos da lei – enfim, tinha ocorrido desvio de
poder na regulamentação do tema – poderia, analisando o quadro normativo, ter
coarctado (ele mesmo, Supremo Tribunal) o mau exercício do poder
regulamentar.
Em outros termos, no caso específico da contribuição em análise, a
interpretação do princípio da legalidade como suficiente (e não estrita) outra coisa
não fez senão coonestar as arbitrariedades praticadas pelo Poder Executivo e
contribuir para o desprestígio da força normativa da Constituição Federal,
resultado que poderia ter sido evitado caso a Corte tivesse avaliado os efeitos
concretos de sua decisão.
Há uma última consideração a ser feita sobre a questão, consistente
no fato de não podermos afirmar categoricamente que o Supremo Tribunal
Federal deixou de considerar o princípio da legalidade como de legalidade estrita,
embora a leitura do voto do Ministro Relator possa dar margem a essa
interpretação.
Aquilo que ficou decidido foi que, neste caso, o referido princípio não
sofreu ofensa pela delegação dada ao regulamento para a fixação de alguns
elementos da obrigação tributária, porque a “aplicação da lei, no caso concreto,
exige a aferição de dados e elementos”.
Desse modo, a decisão tomada no Recurso Extraordinário não nos
permite saber até que ponto a Corte Constitucional considera poder ir, por assim
dizer, essa flexibilização do princípio da legalidade; qual a medida dessa
elasticidade; em quais casos ela poderia novamente fazer-se presente e sob
quais circunstâncias; e se semelhante delegação de poderes para fixação de
elementos da regra-matriz de incidência seria ou não novamente permitida. De
qualquer forma, a relevância da matéria impõe aos operadores do direito atenção
acentuada para eventuais novas ocorrências desse tipo.
6. Lei Federal nº. 9.718/98 – faturamento e receita
A controvérsia que envolve a Lei Federal nº. 9.718, de 27 de
novembro de 1998, repousa no fato de ela ter alterado a base de cálculo da
Contribuição para Financiamento da Seguridade Social – COFINS – alteração
que, na visão dos contribuintes e grande parcela da doutrina, não encontra
amparo na redação original do artigo 195 da Constituição Federal, que
posteriormente foi alterado pela Emenda Constitucional nº. 20, de 15 de
dezembro de 1998 – e está pendente de decisão do Supremo Tribunal Federal no
Recurso Extraordinário nº. 346.084-6, Relator Ministro ILMAR GALVÃO.
Tivemos oportunidade de efetuar alguns comentários sobre certos
aspectos da questão no item 9 do capítulo 6 de nosso estudo, onde analisamos
alguns trechos do voto do Ministro GILMAR MENDES. Retomamos agora a
matéria para tratar de outros pontos relevantes e, em especial, a discussão que
envolve os conceitos de faturamento e receita.
Para que possamos ter melhor visualização das questões a serem
enfrentadas, não parece despiciendo transcrever os dispositivos envolvidos.
A Lei Complementar nº. 70, de 30 de dezembro de 1991, dispõe
sobre a base de cálculo da Contribuição para Financiamento da Seguridade
Social – COFINS do seguinte modo:
“Art. 2º. A contribuição de que trata o artigo anterior será de 2% (dois
por cento) e incidirá sobre o faturamento mensal, assim considerado
a receita bruta das vendas de mercadorias, de mercadorias e
serviços e de serviço de qualquer natureza.
Parágrafo único. ..........”
A Lei Federal nº. 9.718, de 27 de novembro de 1998, efetua
alteração na base de cálculo da referida contribuição, nos termos seguintes:
“Art. 2º. As contribuições para o PIS/PASEP e a COFINS, devidas
pelas pessoas jurídicas de direito privado, serão calculadas com
base no seu faturamento, observadas a legislação vigente e as
alterações introduzidas por esta Lei.
Art. 3º. O faturamento a que se refere o artigo anterior corresponde à
receita bruta da pessoa jurídica.
§ 1º. Entende-se por receita bruta a totalidade das receitas auferidas
pela pessoa jurídica, sendo irrelevantes o tipo de atividade por ela
exercida e a classificação contábil adotada para as receitas.
..........”
A Constituição Federal, em sua redação original, assim previa a
contribuição social em tela:
“Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade,
de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos
provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:
I – dos empregadores, incidente sobre a folha de salários, o
faturamento e o lucro;
II – dos trabalhadores;
III – sobre a receita de concursos de prognósticos;
..........”
A Emenda Constitucional nº. 20, de 15 de dezembro de 1998, deu
nova redação ao artigo 195, que ficou assim configurado:
“Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade,
de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos
provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:
I – do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na
forma da lei, incidentes sobre:
a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou
creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço,
mesmo sem vínculo empregatício;
b) a receita ou o faturamento;
c) o lucro;
II – do trabalhador e dos demais segurados da previdência social,
não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas
pelo regime geral de previdência social de que trata o artigo 201;
III – sobre a receita de concursos de prognósticos;
..........”
Antes de entrar no mérito das alterações promovidas nos textos dos
dispositivos transcritos, cabe deixar registrado nosso ponto-de-vista quanto ao
fato de o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a constitucionalidade da Lei
Complementar nº. 70/91, na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº. 1, não
ter decidido que o conceito de faturamento corresponde ao de receita bruta. Em
vez disso, declarou a Suprema Corte que, para efeitos da incidência da Cofins, o
quanto disposto pela Lei Complementar encontrava apoio na Constituição
Federal, de forma que, para esse específico fim, o faturamento pode ser
considerado como a receita bruta decorrente da venda de mercadorias, de
mercadorias e serviços e de serviços de qualquer natureza.
Portanto não nos parece possível concluir que tenha decidido a
Corte Suprema que faturamento e receita são a mesma coisa, isto é, que ambos
os conceitos representam a mesma parcela da realidade, tampouco que a receita
bruta definida como base de cálculo corresponda a todas as receitas auferidas
pelas pessoas jurídicas, mas apenas àquelas decorrentes das vendas de
mercadorias e serviços.
Desse modo, não é necessário grande esforço interpretativo para se
visualizar que se a Lei Federal nº. 9.718/98 alterou a base de cálculo para – agora
sim – todas as receitas, aí inclusas as derivadas de aluguéis, as financeiras e as
de royalties, tal alteração implicou inegavelmente a ampliação da aludida base de
cálculo.
Ora, se nos termos da Lei Complementar nº. 70/91, com amparo na
decisão do Supremo Tribunal Federal, a base de cáculo da COFINS era o
faturamento = receita bruta = (i) venda de mercadorias + (ii) venda de
mercadorias e serviços + (iii) venda de serviços de qualquer natureza e se,
conforme prescreve a Lei Federal nº. 9.718/98, essa base de cáculo passou a ser
o faturamento = receita bruta = (i) venda de mercadorias + (ii) venda de
mercadorias e serviços + (iii) venda de serviços de qualquer natureza + (iv)
aluguéis + (v) ganhos financeiros + (vi) royalties, então a ampliação da base de
cálculo é evidente.
O faturamento previsto pela Lei Complementar não é o mesmo do
previsto pela Lei nº. 9.718/98, porque este é de maior dimensão do que aquele, o
que causa a falta de fundamento constitucional de validade a essa Lei ordinária,
razão pela qual se cuidou de editar a Emenda Constitucional nº. 20, como
indigitada tentativa de sanar o vício de inconstitucionalidade.
O quadro normativo descrito leva-nos a efetuar algumas
considerações sobre a aludida Emenda e, embora não pretendamos nos alongar
na análise do tema, não podemos furtar-nos de reconhecer que uma emenda
constitucional não tem o condão de constitucionalizar uma lei nascida
inconstitucional, pelo simples fato de que as leis devem obediência à Constituição
vigente no momento de sua edição e não à hipotética Constituição futura, caso
contrário a decantada supremacia normativa da Constituição não passa de frase
de efeito, de mero elemento retórico.
Esta é a lição de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO:
“Assim, na conformidade das considerações feitas, não há senão
concluir que, dentre as alternativas exegéticas em tese suscitáveis
perante o tema de leis originalmente desconformes com a
Constituição, mas comportadas por Emenda Constitucional
superveniente, a única merecedora de endosso é a que
apresentamos como a quarta delas, ou seja: aquela segundo a qual
a sobrevinda de Emenda não constitucionaliza a norma inicialmente
inválida. Dessarte, seus efeitos poderão ser impugnados e
desaplicada tal regra. Para que venham a irromper validamente no
universo jurídico efeitos correspondentes aos supostos na lei
originalmente inválida será necessário que, após a Emenda, seja
editada nova lei, se o legislador entender de fazê-lo e de atribuir-lhe
teor igual, pois, só então, será compatível com o enquadramento
constitucional vigente”.302
Diante do ensinamento do professor da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, podemos dispensar-nos de tecer mais considerações
quanto ao apontado vício de inconstitucionalidade, porque certamente nada
teríamos de relevante a acrescentar, com exceção de um último comentário
relativo ao entendimento de certa parcela da doutrina, consistente em que, ainda
que a Lei Federal nº. 9.718/98 fosse inconstitucional no momento de sua edição,
ela não teria trazido prejuízo algum aos contribuintes porque, quando entrou em
vigor o novo sistema de apuração da base de cálculo da COFINS, a Emenda
Constitucional já havia alterado a redação do artigo 195 do Texto Constitucional,
302 Leis originalmente inconstitucionais compatíveis com emenda constitucional superveniente, In: Repertório IOB de Jurisprudência, vol. 2, cad. 1, p. 62. No mesmo sentido é o ensinamento de José Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira, na obra Fundamentos da Constituição, p. 269 e 297.
de modo que nenhum direito dos contribuintes teria sido violado pela mencionada
Lei.
Com o devido respeito, não podemos concordar com tal argumento
porque o direito violado é aquele que garante o respeito à Constituição Federal,
isto é, os cidadãos em geral e os contribuintes, em particular, possuem todos o
direito de não ser obrigados a obedecer a uma lei que, no momento de sua
promulgação, não encontrava fundamento de validade na Constituição, mesmo
que depois venha a ser constitucionalizada por meio de emenda constitucional,
ainda que isso fosse possível, e acreditamos que não o seja.
A própria estrutura orgânica do ordenamento jurídico, os princípios
gerais de direito e, sobretudo, a Constituição Federal obrigam o legislador, antes
de editar determinada lei, a interpretar o Texto Constitucional para ali verificar
aquilo que não pode fazer e aquilo que pode fazer e, neste último caso, em que
medida pode fazer.
Encontramos sérios obstáculos para aceitar o raciocínio de que o
Estado Democrático de Direito inaugurado pela Constituição Federal de 1988
possa permitir que uma simples lei ordinária venha a alterar uma Constituição
rígida, como é a brasileira – uma vez que, pelo menos até agora, o Supremo
Tribunal Federal não decidiu que a Carta da República deixou de ser rígida – para
que, depois, ao sabor da formação de maioria qualificada no Parlamento obtida
de modo desenganadamente casuístico e por meio de acordos políticos de
diversas espécies, o legislador venha a providenciar a promulgação de uma
emenda constitucional.
E qual a razão de se providenciar a emenda constitucional? Ora,
porque a Constituição é rígida e não pode ser alterada por lei ordinária!
Em outros termos, com o perdão da afirmação caricatural: altera-se
a Constituição por meio da lei ordinária porque, se isto é possível, a Constituição
teria deixado de ser rígida (especialmente em matéria tributária) e, em seguida,
providencia-se uma oportuna emenda constitucional com a finalidade de restaurar
a rigidez da Constituição. Portanto, de duas, uma: ou bem a Constituição Federal
não era rígida e poderia mesmo ter sido alterada pela lei ordinária e, nessa
hipótese, a emenda constitucional seria absolutamente desnecessária, ou então a
Constituição sempre foi rígida e a lei ordinária era inconstitucional desde o seu
nascimento, uma vez que na Carta não encontrava amparo, e a emenda
constitucional continuaria sendo desnecessária – além de ineficaz – porque
jamais poderia atribuir validade constitucional a uma lei que já não a tinha no
momento de sua entrada no ordenamento jurídico.
Com a devida vênia àqueles que entendem de modo contrário ao
nosso, acreditamos que, em prevalecendo tal possibilidade de saneamento a
posteriori do vício constitucional, estaremos diante não “apenas” de
constitucionalização de lei nascida inconstitucional, mas de um pouco mais do
que isso, pois tratar-se-á de constitucionalizar o abuso de poder, de validar o
arbítrio, de prestigiar o descaso, de amparar o desrespeito e, finalmente, de
defender a anti-supremacia normativa da Constituição Federal.
Sem prejuízo de tudo quanto afirmamos, passamos à análise da
questão dos conceitos constitucionais envolvidos na controvérsia. Uma vez que o
caso aguarda julgamento final pelo Supremo Tribunal Federal e não conhecemos
o entendimento dos outros integrantes daquela Corte, tomamos como base o voto
do Ministro GILMAR MENDES, que nos dá a oportunidade de abordar diversos
pontos, embora ainda não tenha sido publicado e, portanto, possa sofrer
alterações até a decisão final.
O raciocínio do Ministro parte da premissa de que “a Emenda
Constitucional nº. 20 não restaurou a constitucionalidade do § 1º do art. 3º da Lei
nº. 9.718, de 27 de novembro de 1998. A Lei já era constitucional sob o regime do
texto original do art. 195” e ainda de que “percebe-se, desde logo, que já sob o
regime da Lei Complementar de 1991 a acepção de faturamento adotada pelo
legislador não correspondia àquela usualmente adotada nas relações comerciais”,
de modo que teria havido “o abandono do conceito tradicional de faturamento”.
Podemos concordar com essa afirmação uma vez que, diante do
texto da Lei Complementar nº. 70/91 e com base nas decisões do Supremo
Tribunal Federal que trataram da matéria, realmente ficou consolidado que
faturamento, para fins de incidência da COFINS, é considerado como a receita
bruta decorrente das vendas de mercadorias e de serviços – acompanhadas ou
não de fatura – de modo que, efetivamente, tal concepção não corresponde ao
conceito tradicional de faturamento.
Não obstante, tal constatação, presente no voto do Ministro, não
empresta validade à conclusão dela extraída, isto é, de que a Emenda
Constitucional não teria restaurado a constitucionalidade do dispositivo da Lei
Federal nº. 9.718/98, porque ele já seria constitucional sob o regime da redação
original do artigo 195 da Carta Política. Isso porque, embora tanto a Lei
Complementar nº. 70/91 quanto a Lei Federal nº. 9.718/98 se utilizem do vocábulo
faturamento como correspondente a receita bruta, a dimensão dessa receita bruta
não é a mesma nas duas hipóteses: na primeira Lei alcança apenas as receitas
oriundas das vendas de mercadorias e de serviços e, na segunda, as decorrentes
das vendas de mercadorias e de serviços e também as de aluguéis, as
financeiras e as dos royalties, como afirmamos há pouco.
Da decisão do Supremo Tribunal Federal pode-se depreender que
faturamento foi equiparado a receita bruta das vendas de mercadorias, de
mercadorias e de serviços e de prestação de serviços de qualquer natureza, e,
portanto, não se equiparou faturamento a toda e qualquer receita bruta (receita
total), mas apenas na medida em que essa receita bruta for o resultado da venda
de mercadorias e de serviços. TÉRCIO CHIAVASSA afirma que “O STF
realmente equiparou o conceito de faturamento ao de receita bruta, mas tão-
somente para definir faturamento como sendo ‘o produto de todas as vendas, e
não somente das vendas acompanhadas de fatura, formalidade exigida tão-
somente exigida nas vendas mercantis a prazo (...)’. Tal fato jamais permite
afirmar que o faturamento abrange todas as receitas da empresa,
independentemente da classificação contábil. Trata-se de verdadeiro sofisma
adotado como fundamento de diversos acórdãos que declararam a
constitucionalidade da Lei nº. 9.718/98”.303
A afirmação singela de que receita bruta e faturamento são termos
equivalentes – repetida, com raras exceções, exaustivamente em diversos
acórdãos dos Tribunais Regionais Federais – parece-nos decorrer de equívoco,
303 A interpretação jurisprudencial da Lei nº. 9.718/98, In: Contribuições, p. 209.
fruto de leitura apressada da decisão do Supremo Tribunal Federal, pois ignora o
âmbito dimensional ali fixado de receita bruta.
Não se trata de defender que o conceito de faturamento deva ser
aquele tradicionalmente adotado pelo direito comercial, pois isso de fato havia
sido afastado pela decisão da Corte Suprema; trata-se, em vez disso, de observar
com o qual amplitude os termos faturamento e receita bruta foram utilizados pelas
mencionadas Leis, a fim de que possamos averiguar sua compatibilidade com o
artigo 195 da Constituição Federal.
A segunda questão refere-se ao entendimento constante do voto
que ora analisamos de que o Supremo Tribunal não teria estabelecido essa
sinonímia entre faturamento e receita bruta, uma vez que “A Corte, ao admitir tal
equiparação, em verdade assentou a legitmidade constitucional da atuação do
legislador ordinário para densificar uma norma constitucional aberta”.
Como temos afirmado, o conceito constitucional comporta
preenchimento de conteúdo pelo legislador ordinário, mas afirmar que se trata de
uma “norma constitucional aberta” parece-nos equivocado. A questão relevante a
ser resolvida em cada caso consiste em se determinar o limite na possibilidade de
preenchimento do conceito.
Como temos insistido ao longo do presente estudo, e não podemos
deixar de refrisar tal aspecto, se se tratasse de “norma constitucional aberta”,
como afirmado no voto, então a utilização do conceito constitucional como
elemento de discriminação e de delimitação da regra de outorga de competência
tributária seria inócua, pois esta não seria conferida para tributar renda, produtos
industrializados e faturamento mas, sim, para tributar qualquer coisa que o
legislador ordinário desejasse, desde que este tomasse o cuidado de chamar esta
qualquer coisa de renda, de produtos industrializados e de faturamento.
Se o conceito utilizado pela Constituição Federal for uma cláusula
aberta, então a discriminação constitucional de competência tributária, neste
particular aspecto, para nada serve, uma vez que ele – conceito – não delimita
parcela alguma da realidade e, se não o faz, não há razão para sua presença na
Carta. Desejamos acreditar que o legislador constituinte de 1988, no momento em
que se valeu dos conceitos que deixou plasmados na Constituição para fins de
outorga de competência impositiva, fê-lo porque tinha em mente determinadas
parcelas da realidade (necessariamente reveladoras de manifestação de riqueza)
que então desejava deixar passíveis de tributação, ainda que tais conceitos
possam ser considerados, por assim dizer, iniciais ou relativamente indicativos,
uma vez que não são exaustivos e seu conteúdo pode ser preenchido pelo
legislador no momento da instituição do tributo.
Não é possível que a Constituição Federal deixe a cargo do
legislador ordinário a tarefa de conceituar livremente o que seja faturamento ou
receita, como consta de algumas decisões, porque a questão envolve delimitação
de competência tributária, matéria que não está à disposição do legislador
ordinário, isto é, a este cabe disciplinar a instituição do tributo, enquanto àquela
incumbe a discriminação da competência tributária, tarefas situadas em distintos
âmbitos de possibilidade normativa.
A existência de conceitos constitucionais para fins de outorga de
competência tributária, além de revelar-se necessidade lógica para o próprio
conhecimento da Constituição Federal, representa uma limitação ao poder de
tributar, pois delimita, circunscreve a parcela do mundo fenomênico que a
Constituição autoriza ser alvo da norma impositiva.
O conceito constitucional apresenta um conteúdo semântico mínimo
e máximo; mínimo porque todo conceito, toda palavra, enfim, por mais vaga ou
ambígua que seja, possui necessariamente um conteúdo mínimo de significação,
e máximo porque, por mais elástico que possa ser o contorno dessa significação,
nem por isso ele está à inteira disposição do legislador ordinário, uma vez que a
própria Constituição impõe limites ao exercício da competência tributária, sendo
um deles esse representado pelo conceito.
O conteúdo semântico mínimo é o que o conceito necessariamente
exprime, aquilo que a palavra evidentemente significa. Por sua vez, o conteúdo
semântico máximo é aquele que necessariamente o conceito não pode exprimir,
aquilo que evidentemente a palavra não pode significar (por exemplo, o conteúdo
mínimo do conceito de renda é, pelo menos, um ingresso, algo que se incorpora
ao patrimônio, e o máximo é uma saída, uma despesa, por ser diminuição do
patrimônio e, para fins de incidência do respectivo imposto, jamais poderia ser
considerada renda).
Ora, em nenhum dispositivo legal, em nenhum estudo doutrinário e
em nenhum manual de contabilidade, o faturamento equivale singelamente a
receita; não é razoável supor que o legislador constituinte (somente ele e mais
ninguém) conhecesse um tipo especial de faturamento, diretamente equivalente a
receita, sem que haja algum tipo de qualificação especial aos termos. Portanto
uma tal equiparação só é possível nos termos restritos do julgado do Supremo
Tribunal Federal, ou seja, faturamento como a receita bruta decorrente da venda
de mercadorias, de mercadorias e de serviços, e de serviços de qualquer
natureza – e não de todas as receitas.
O faturamento é espécie do gênero receita; não são realidades
equivalentes, pois a espécie nunca pode ser exatamente igual ao gênero –
embora tenha dele algumas propriedades, senão não estaria contida no gênero –
caso contrário a classificação não se sustenta e não tem nenhuma serventia.
Em outras palavras, a receita bruta é composta pela totalidade das
receitas (todas as entradas de recursos financeiros, todos os ingressos), aí
incluso o faturamento (ingresso de elementos resultantes da venda de
mercadorias e de serviços), de modo que receita bruta é gênero do qual
faturamento é espécie (um de seus possíveis elementos componentes).
A terceira questão que ora examinamos diz respeito ao
entendimento do Ministro GILMAR MENDES de que “o critério para tributação do
denominado faturamento, contido no art. 195, assume feição nitidamente
institucional. E isso não é novidade no Direito Constitucional, havendo uma
pletora de normas constitucionais garantidoras de realidade institucionais que não
encontram uma definição de seus limites no texto da Constituição (e.g.
propriedade, liberdade, família, consumidor, etc.) Tal fenômeno também ocorre no
âmbito das normas constitucionais tributárias, bastando lembrar dos conceitos de
renda, confisco, grande fortuna, etc.”.
Com a devida vênia, parece-nos que tal argumento não se sustenta.
Em primeiro lugar, porque não se pode afirmar, com a simplicidade e
a segurança com que o faz o Ministro, que os conceitos constitucionais usados
para a delimitação da competência tributária sejam instituições, com o significado
com que o termo é empregado no voto. Os próprios exemplos mencionados
prestam-se para demonstrar a impropriedade da equiparação das situações, uma
vez que se revelam nítidas as diferenças do papel que ocupam e da função que
desempenham instituições como propriedade, liberdade e família e conceitos
como renda, confisco e fortuna.
Em segundo lugar, porque ignora que o preenchimento de conteúdo
significativo dessas denominadas garantias institucionais geram conseqüências
bem distintas do preenchimento de conteúdo dos conceitos constitucionais, pois
aquelas não se situam no âmbito da matéria tributária e, por tal razão, um
alargamento de seu conteúdo de significação não vem a esbarrar em limites
representativos de direitos e garantias dos destinatários da normas jurídicas
envolvidas, como ocorre com o direito tributário. Esta razão por si só justifica o
entendimento de que a transposição singela da idéia das realidades institucionais
para a dos conceitos de direito tributário não pode ser feita sem os necessários
ajustes e sem levar em conta a natureza dos direitos individuais envolvidos, por
exemplo, no campo do direito civil e no do direito tributário.
Em terceiro lugar, porque o Ministro GILMAR MENDES, valendo-se
de lição de JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, afirma que “As garantias
institucionais, constitucionalmente protegidas, visam não tanto ‘firmar’, ‘manter’ ou
‘conservar’ certas ‘instituições naturais’, mas impedir a sua submissão à completa
discricionariedade dos órgãos estaduais, proteger a instituição e defender o
cidadão contra ingerências desproporcionadas ou coactivas”, entretanto, não
reconhece aos conceitos constitucionais usados para fins da competência
tributária esta função de garantia dos direitos dos cidadãos, uma vez que os deixa
à conformação do legislador ordinário.
Diante de tal raciocínio, cabem as seguintes indagações: se as ditas
garantias institucionais visam “impedir a discricionariedade dos órgãos estaduais,
proteger a instituição e defender o cidadão contra ingerências
desproporcionadas”, como pretender que os conceitos constitucionais – que na
visão do Ministro são instituições – possam ficar à mercê das conveniências e
interesses arrecadatórios do legislador que institui o tributo? Se as garantias
institucionais são tão relevantes e desempenham tão significativo papel no seio
da Constituição, como podem ficar à disposição do legislador ordinário, que
possui nítido interesse em fixar seu significado tão amplo quanto possível, porque
isso aumenta o alcance da norma de imposição tributária?
E, ainda mais, se as instituições são elementos tão fundamentais,
como parece sustentar o raciocínio presente no voto, como é possível que a
Constituição Federal se contente em livremente deixar a cargo do legislador
infraconstitucional dizer o que elas são ou representam, alterando-lhes o
significado, com a passagem do tempo, ao sabor de sua conveniência?
Em suma, embora não possamos concordar com a equiparação feita
– dos conceitos constitucionais tributários às instituições – parece-nos, em última
análise, que pouco importa que tais conceitos sejam ou não instituições, pois,
sendo-as ou não, o relevante a ser considerado é que seu conteúdo significativo
não pode ficar, e não fica, à livre disposição do legislador ordinário, que tem
apenas uma margem de atuação sobre eles, coisa que é muito diferente.
O inciso I do artigo 195 da Constituição Federal, com a redação
dada pela Emenda Constitucional nº. 20/98, estabelece que a COFINS pode
agora incidir sobre o faturamento ou a receita. Estabele, portanto, uma disjunção,
vale dizer, ou incide sobre o faturamento (base de cálculo restrita) ou sobre a
receita (base ampla).
Ora, se por um lado, a Lei Federal nº. 9.718/98 – promulgada antes
da Emenda Constitucional – tivesse buscado melhor adequar o conceito legal ao
conceito constitucional de faturamento, como desejam alguns, é porque o
conceito legal já não era adequado ao constitucional. Por outro lado, se fossem
sinônimos, qual a razão da alteração promovida? Seria a Emenda Constitucional
um veículo de cunho didático, editado apenas para esclarecer as coisas?
Ainda quanto a esse aspecto, se “A Emenda nº. 20, nesse ponto,
assumiu tão-somente um caráter expletivo”, como entende o Ministro GILMAR
MENDES, não seria o caso de se editarem também dezenas de outras emendas
constitucionais, todas de “caráter expletivo”, para que fossem explicitados os
conceitos de renda, de produtos industrializados, de serviços de qualquer
natureza, de lucro, de propriedade territorial urbana e de propriedade territorial
rural, de veículos automores, de doação e assim por diante?
Se a Lei Federal nº. 9.718/98 efetivamente alargou o conceito de
faturamento, porque receita bruta é mais amplo que faturamento, como não criou
nova fonte de custeio para a seguridade social? Se redimensionou a base de
cálculo, para maior, como se pode afirmar que não a teria alterado? Se a aludida
Emenda Constitucional possibilitou a inclusão de outras receitas na base de
cálculo (financeiras e decorrentes de recebimento de aluguéis, por exemplo), é
porque claramente alterou a base de cálculo, estendendo-a dimensionalmente e
portanto, os termos não eram nem são equivalentes.
Finalmente, cabe-nos mencionar, talvez apenas a título de
curiosidade, dois outros trechos do voto que ora analisamos. O Ministro GILMAR
MENDES afirma que
“O STF jamais disse que havia um específico conceito constitucional
de faturamento. Ao contrário, reconheceu que ao legislador caberia
fixar tal conceito. E também não disse que eventuais conceitos
vinculados a operações de venda seriam os únicos possíveis”
e, duas páginas adiante, confirmando seu entendimento quanto às possibilidades
do legislador infraconstitucional, acentua:
“Afasto, portanto, qualquer leitura da expressão faturamento que
implique negar ao legislador ordinário o poder conformação do
vocábulo ‘faturamento’, contido no inciso I do art. 195. Não estou a
dizer, obviamente, que tal poder legislativo é ilimitado, pois é certo
que deverá respeitar todas as demais normas da Constituição, assim
como não poderá ultrapassar os limites do marco fixado no referido
art. 195”.
Diante de tais assertivas, duas indagações devem ser formuladas:
– se o Supremo Tribunal Federal “jamais disse que havia um
específico conceito constitucional de faturamento” e se é afastada
“qualquer leitura da expressão faturamento que implique negar ao
legislador ordinário o poder conformação do vocábulo faturamento”,
por que o legislador não poderia “ultrapassar os limites do marco
fixado no referido art. 195”, ou seja, se não há conceito
constitucional de faturamento, por que o legislador estaria obrigado a
obedecer o inciso I do artigo 195 da Constituição? e
– qual é o marco fixado pelo artigo 195 e quais são todas as demais
normas da Constituição que o legislador deverá respeitar?
Na medida em que se busca alargar demais o conteúdo do conceito,
pode-se chegar o ponto em que se passa a alcançar outra parcela da realidade (e
não mais aquela delineada pelo conceito utilizado), momento a partir do qual o
uso do conceito – deste de receita, ou de qualquer outro – deixa de fazer sentido,
dada sua inutilidade prática; além do que já se estará diante de outro tributo ou
talvez de invasão de competência de outro ente tributante.
Podemos concluir nossa análise da questão da Lei Federal nº.
9.718/98 reafirmando que, segundo nos parece, entender que há um conceito
constitucional não significa dizer que a própria Constituição Federal estabelece a
base de cálculo do tributo de modo pronto e acabado, mas que o legislador
ordinário – ali, no conceito constitucional – encontra limites a serem respeitados
na oportunidade em que institui o tributo.
Não nos parece possível aceitar a denominada teoria legalista,
segundo a qual o conceito é aquilo que o legislador disser que é, pois esta se
revela incompatível com a estrutura plasmada no sistema constitucional tributário
e o critério da materialidade seria, assim, mera sugestão da Constituição, uma
vez que o legislador teria total liberdade para preencher o conteúdo do conceito e,
em conseqüência, alterar a materialidade fixada pelo Texto Constitucional.
1. Proposições metodológicas
1. A atividade científica tem como marco inicial a escolha de um
objeto e sua observação pressupõe a fixação de um método – que nada mais é
do que a forma de aproximação do tema escolhido – de modo que a absoluta
neutralidade por parte do cientista não é possível, pois a própria aproximação do
objeto já traz consigo a influência de diversos fatores.
2. A verdade científica não está pronta e acabada em determinado
objeto ou lugar, aguardando ser descoberta, como se acreditou por muito tempo.
Em vez disso, ela é construída pelo sujeito cognoscente em verdadeiro processo
de conhecimento, razão pela qual a integridade intelectual não pode mais ser
aferida pela suposta neutralidade do cientista, mas, sim, pela sua disposição em
discutir as premissas e os critérios adotados.
3. O corte metodológico é intrumento demarcador da realidade, por
meio do qual se fazem sucessivos cortes ideais no objeto de estudo, a fim de
diminuir-lhe a complexidade, tendo-se em vista a impossibilidade de conhecê-lo
em toda a sua extensão e profundidade, e pelo qual se estabelecem os limites da
análise, dentro dos quais se circunscreve a investigação científica.
4. O estudo da regra constitucional de outorga de competência
tributária e dos conceitos por ela utilizados comporta a análise do conjunto de
normas jurídicas válidas – constitucionais e infraconstitucionais – que disciplinam
a previsão e o exercício da competência tributária.
5. O positivismo metodológico é adotado como um dos instrumentos
de exame do fenômeno jurídico, embora não deva ser utilizado isoladamente, em
razão da relevância de outras ferramentas de estudo, em especial a tópica
jurídica e a jurisprudência dos valores.
6. O direito positivo é definido como o conjunto de normas jurídicas
válidas em determinados espaço e território com o fim de disciplinar condutas
humanas intersubjetivas e voltado para a concretização, no seio da sociedade,
dos valores superiores hospedados pelo ordenamento.
7. A ciência do direito exerce uma inegável função pragmática,
consistente em servir de instrumento de auxílio na construção de decisões
judiciais que venham a colocar fim nos conflitos sociais, denominando-se
decidibilidade esta sua finalidade prática.
8. O direito positivo tem por objeto o regramento de condutas
interpessoais ao longo do tempo, razão pela qual deve ser interpretado de uma
perspectiva dinâmica.
9. Interpretar o direito positivo de uma perspectiva dinâmica – que
possibilite a verificação da posição relativa existente entre o direito e a sociedade
por ele disciplinada – significa considerar o ordenamento jurídico como um
sistema relativamente fechado, em que a lei permanece como pauta regulatória
da conduta, mas no qual seu intérprete e aplicador tem possibilidades de construir
o conteúdo das normas com atenção às características e alterações da
sociedade.
10. A Constituição Federal pode ser considerada obra aberta às
mudanças temporalmente adequadas, como um documento normativo que
combina um núcleo rígido de mandamentos, representado, por um lado, por
valores que ela obriga serem sempre respeitados incondicionalmente e, por outro
lado, por uma série de outros valores que determina serem implantados no seio
da sociedade, cuja paulatina concretização se dá no momento de sua
interpretação e aplicação.
11. Essa perspectiva dinâmica pode ser adotada para o estudo do
direito tributário, com os devidos cuidados, em razão da incontroversa rigidez da
Constituição Federal e, conseqüentemente, do Sistema Tributário Nacional e da
relevância do princípio da legalidade. Nesta área do direito positivo, é necessário
compormos a relativa possibilidade de interpretação da Constituição como obra
aberta com o inafastável respeito pela segurança jurídica e pelas limitações
constitucionais ao poder de tributar.
12. A tópica jurídica é um modelo teórico voltado para o problema e
que realiza a interpretação da norma jurídica com base no caso concreto ao qual
se busca aplicar, tratando-se assim de raciocínio do tipo indutivo, que se desloca
do particular para o geral.
13. Interpretar o texto normativo para, com base nele, construir a
norma jurídica significa, de certa perspectiva, desvendar o valor nela existente,
razão pela qual a interpretação, considerada como processo de atribuição de
sentido e de alcance ao texto legal, deve dar-se para promover sua
concretização, daí a relevância da denominada jurisprudência dos valores.
2. Proposições específicas
14. A rigidez constitucional, decorrente dos específicos requisitos
exigidos pela Carta Magna para a sua própria alteração, desempenha importante
papel na preservação de certas instituições e determina que o Poder Legislativo
exerça a competência que recebe nos estreitos limites por ela estabelecidos.
15. O Sistema Tributário Nacional, dotado de rigidez e exaustividade
no que concerne à discriminação e à delimitação da competência tributária,
baseia-se na existência de fatias de competência impositiva distribuídas entre a
União Federal, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.
16. As normas jurídicas fundamentais relativas à possibilidade de
criação de tributos estão insculpidas na Constituição Federal e constituem os
superiores limites formais e materiais aos quais está subordinado o legislador de
cada pessoa política tributante, embora no exercício dessa atividade legiferante
não se possa deixar de reconhecer uma certa margem de liberdade, dentro da
qual ele pode dispor com algum grau de detalhamento sobre as diversas figuras
exacionais, sob pena de se impedir a implementação do sistema tributário e de se
propiciar violação indireta do pacto federativo.
17. O Sistema Tributário Nacional, tal como ocorre com qualquer das
partes integrantes da Constituição, deve ser interpretado em harmonia com os
demais capítulos do Texto Constitucional, o que leva o intérprete a considerá-lo
pelo menos em dois aspectos.
18. O primeiro relativo à própria razão de ser do tributo, como a
principal fonte de recursos financeiros do Estado e instrumento mediante o qual –
desde que os recursos arrecadados sejam efetivamente aplicados – ele deve
buscar os fins que lhe são determinados pela Constituição Federal, isto é, os
diversos objetivos a cuja implantação na sociedade está obrigada a República
Federativa do Brasil, tais como expressamente previstos na própria Carta
Constitucional.
19. O segundo aspecto, que corresponde a um contraponto ao
primeiro, diz respeito ao fato de o Sistema Tributário Nacional contemplar, ao lado
da outorga da competência impositiva, diversos princípios e regras limitadores
dessa competência, dispositivos de proteção ao contribuinte e que constituem
limites rígidos e intransponíveis à atividade estatal exacional, de modo que o
referido Sistema tributário somente pode ser apropriadamente interpretado se
considerados esses dois aspectos.
20. Os conceitos utilizados pelas normas jurídicas possuem, no
mais das vezes, conteúdo significativo indeterminado, embora determinável em
cada caso concreto pela interpretação e no momento de aplicação da norma, em
que se busca especificar qual a específica parcela da realidade que eles
representam.
21. A existência de conceitos constitucionais, com um mínimo de
conteúdo semântico, constitui exigência lógica de conhecimento e de aplicação da
Constituição Federal, porque somente é possível interpretá-la a partir dos
significados iniciais dos conceitos, que indicam atos, fatos e situações do mundo
fenomênico constitucionalmente normalizados.
22. A construção do conteúdo dos conceitos constitucionais é feita
primeiramente pelo legislador de cada pessoa política tributante, na criação da lei
tributária, momento em que se deverá voltar para a Constituição Federal para
verificar os vários limites dentro dos quais poderá agir nesse mister. Em meio a
tantos outros parâmetros limitativos, adquirem relevo especial os princípios da
capacidade contributiva e da vedação do efeito confiscatório.
23. Entre as várias possíveis concepções de capacidade contributiva
estudadas pela doutrina, parece relevante aquela que a vincula ao pressuposto
de fato do tributo, porque deixa de considerá-la como elemento subjetivo e passa
a visualizá-la como elemento objetivo, já que a considera presente em
determinados fatos do mundo fenomênico que, por serem reveladores de riqueza,
indicam, em tese, a possibilidade de sobre eles incidir a norma de tributação.
24. A capacidade contributiva desempenha três funções básicas: (i)
a de elemento limitador da atividade do legislador, pois este somente poderá fazer
incidir o tributo onde ela estiver presente; (ii) a de critério de dimensionamento do
tributo, uma vez que a lei deve graduar a incidência tributária por meio de
alíquotas diferenciadas e (iii) a de instrumento de auxílio na interpretação da lei
tributária, porque a capacidade contributiva deve ser respeitada não somente na
criação da lei mas também no momento de sua aplicação.
25. O princípio da vedação do efeito confiscatório é desdobramento
do direito de propriedade e indica que sua transferência parcial, do patrimônio dos
contribuintes para o do Estado, por meio da tributação, somente pode dar-se
dentro de certos parâmetros, fora dos quais tal atividade arrecadadora abandona
o terreno da legalidade para adentrar o do confisco, o que não é admitido pela
ordem constitucional.
26. Embora de difícil definição, o princípio da vedação do efeito
confiscatório também fornece relevante vertente interpretativa, pois direciona a
atividade do aplicador da lei tributária, que deve conciliar, no momento de
aplicação desta, o direito de propriedade com o poder de tributar.
27. Sem prejuízo das dificuldades encontradas na configuração do
mencionado princípio, parece certo que ele pode ser aplicado às cinco espécies
tributárias previstas na Constituição Federal.
28. Os postulados normativos podem ser considerados metanormas,
isto é, normas que têm por objeto outras normas, cuja interpretação e aplicação
buscam disciplinar. Nesse sentido, são elementos de auxílio na interpretação das
normas jurídicas – são pautas interpretativas – utilizados pelo intérprete no
momento da aplicação da norma ao caso concreto, para evitar incongruências,
distorções ou mesmo sua aplicação desmedida.
29. Segundo certa classificação feita pela doutrina, os postulados
normativos são divididos em postulados inespecíficos, assim designados porque
podem ser aplicados independentemente dos diversos elementos relacionados, e
são três: a ponderação, a concordância prática e a proibição do excesso. Por sua
vez, os postulados específicos são chamados assim porque exigem a relação
entre elementos e critérios determinados, e também são três: a igualdade, a
razoabilidade e a proporcionalidade.
30. A ponderação consiste num processo de atribuição de pesos a
diversos elementos que se entrelaçam, como bens, valores e interesses, que
podem assumir alternada relevância em cada caso considerado.
31. A concordância prática pode ser aplicada em hipóteses nas
quais sejam encontrados valores em conflito, para buscar-se a realização máxima
de cada um deles, isto é, o conflito deve ser composto em tal grau que, na
prevalência de um deles, o outro não seja demasiadamente desprestigiado.
32. A proibição do excesso, que por vezes pode confundir-se com o
postulado da proporcionalidade, indica um limite à restrição de algum direito
fundamental, de forma que a concretização de um princípio não leve à limitação
acentuada do direito fundamental envolvido no caso concreto.
33. A igualdade, também considerada princípio jurídico, atua como
postulado normativo na medida em que seja considerada como vetor
interpretativo das normas jurídicas em função da necessária apuração do
tratamento jurídico diferenciado e da razão justificadora da distinção estabelecida.
34. A razoabilidade, postulado de alto grau de abstração, pode ser
considerada em dois aspectos: razoabilidade na produção dos textos normativos,
para exigir-se que a regulação abstrata das condutas dê-se dentro de certos
parâmetros, tratando-se, portanto, de verificar a qualidade do regramento
produzido, e razoabilidade necessária na aplicação da lei, uma vez que a
interpretação da norma jurídica não pode levar a resultados absurdos ou
divorciados da finalidade por ela almejada.
35. A proporcionalidade é postulado aplicado em hipóteses de
normas jurídicas que se relacionam em torno de uma relação de causalidade
entre um meio e um fim, de modo que opera em torno de um fim concreto a ser
alcançado e um meio escolhido pela norma como apto para a consecução desse
fim. O exame da relação de congruência entre meio e fim deve ser feito com base
nos três elementos que compõem o postulado da proporcionalidade: adequação,
necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.
36. O pensamento sistemático considera o ordenamento jurídico
como algo dotado de coerência interna de sentido, formado por um repertório,
composto pelos elementos que o integram, e por uma estrutura, que encerra a
organização e as relações existentes entre os referidos elementos. No sistema
jurídico, os elementos são as normas válidas e a estrutura é dada pelas relações
de coordenação e de subordinação entre elas.
37. O ordenamento jurídico, visto pela perspectiva sistemática,
apresenta como uma de suas mais relevantes características a denominada auto-
referência, que é o fato de o direito positivo regular ele mesmo – autonomamente
– a forma como os elementos ingressam e deixam o ordenamento (o sistema).
38. O pensamento problemático corresponde à técnica de raciocínio
voltada para o problema – desenvolvida em torno dele – considerado uma
questão que comporta mais de uma solução. Essa técnica de pensamento não
ignora a existência do sistema nem despreza sua relevância. Apenas coloca a
ênfase da análise no problema, isto é, enquanto o modelo sistemático parte do
sistema e vai ao problema, o problemático adota o sentido inverso.
39. Sistema e problema – ou pensamento sistemático e pensamento
problemático – não são idéias inconciliáveis, mas complementares, uma vez que,
ainda que o ponto de partida da análise, para o segundo modelo, seja o problema,
ele somente pode ser resolvido pelas soluções oferecidas pelo sistema.
40. O objeto da interpretação jurídica é o texto legal, cujo sentido e
alcance devem ser determinados para fins de aplicação da norma jurídica que
nele se contém, vale dizer, o texto normativo não contempla diretamente a norma
jurídica porque esta é obtida por meio da atividade do intérprete.
41. Segundo a concepção kelseniana, a interpretação é tida como a
fixação de uma moldura normativa, dentro da qual existem várias possibilidades,
de modo que a interpretação da lei não deve necessariamente levar a uma única
solução possível, mas a várias soluções, embora apenas uma delas venha a se
tornar direito positivo no ato de sua aplicação, em especial o ato do tribunal
(intérprete autêntico).
42. A interpretação é ato de conhecimento e de vontade. Para
identificar a moldura normativa e as possibilidades que ela contém há um ato de
conhecimento e, para a opção (decisão) por uma delas, há ato de vontade.
43. A interpretação não consiste propriamente em extrair a norma
jurídica do texto legal e sim construí-la com base nele, atribuindo-lhe significado e
determinando-lhe sentido e alcance sempre com vistas à sua aplicação no caso
concreto ou, em outras palavras, o texto normativo não contém imediatamente a
norma; esta é construída pelo intérprete no processo de concretização do direito.
44. A interpretação e a aplicação da lei são atividades coincidentes
no tempo, de forma que não se realizam de forma independente uma da outra; o
intérprete constrói a norma jurídica no momento mesmo de sua aplicação, sempre
levando em consideração as especificidades apresentadas pelo caso concreto.
45. Quando a interpretação é levada a termo no momento de
aplicação da lei ao caso concreto, o intérprete está obrigado a interpretar a lei e
também os fatos, consistindo tal tarefa a análise da conformação jurídica destes
(na averiguação de como eles se apresentam) com a finalidade de separar,
dentre as suas características, aquilo que é juridicamente relevante.
46. A exegese da Constituição não dispensa o emprego dos
métodos ditos tradicionais de interpretação, embora em razão de sua supremacia
normativa, de possuir comandos normativos mais abertos do que os presentes
nos diplomas infraconstitucionais, e de albergar um sem-número de princípios
(que hospedam os valores superiores do ordenamento jurídico), sua interpretação
reclame alguns cuidados especiais, o que autoriza a utilização de outros
instrumentos hermenêuticos.
47. Para esse especial processo exegético devem ser considerados
os princípios de interpretação da Constituição, tais como denominados por certa
doutrina: o princípio da unidade da Constituição; o princípio do efeito integrador; o
princípio da máxima efetividade; o princípio da conformidade funcional; o princípio
da concordância prática; o princípio da força normativa da Constituição e o
princípio da interpretação das leis em conformidade com a Constituição.
48. Além disso, na interpretação constitucional, é de grande valia a
distinção metodológica feita entre princípios e regras, devendo-se considerar a
natureza jurídica de ambas as espécies de normas, sua forma de aplicação e o
modo como são resolvidos os eventuais conflitos existentes entre elas.
49. A interpretação jurídica não pode ser considerada mero
procedimento de subsunção dos fatos à norma (do conceito dos fatos ao conceito
da norma), uma vez que tal postura implica algo de difícil crença, isto é, que o
intérprete seja indiferente ao produto de seu trabalho.
50. Considerando-se que a atividade interpretativa não é passiva –
mas construtiva da norma jurídica – parece impossível conceber que no processo
de atribuição de sentido e alcance à norma o intérprete não venha a sofrer
influências de diversas naturezas, ou seja, que ele possa manter-se em posição
de absoluta neutralidade. Em suma, o intérprete sofre a influência da ideologia,
considerada valoração de valores.
51. Sobretudo nas hipóteses de interpretação da Constituição – em
que normalmente estão envolvidos diversos princípios constitucionais que se
podem revelar em conflito no caso concreto (com os respectivos valores que lhes
são subjacentes) e nas quais existem mais de uma possibilidade de interpretação,
igualmente dotadas de razoabilidade – há de se considerar a influência exercida
pela ideologia, tomada como o conjunto de valores que se revelam
suficientemente relevantes ao intérprete, a ponto de interferir na tomada de
decisão, na sua opção por um dos valores implicados na interpretação.
52. Considerar a influência da ideologia não significa defendê-la nem
fustigá-la; não implica afirmar que ela é boa ou má, mas apenas reconhecer que
ela existe e que não pode ser desprezada. Ademais, não é tolerável a influência
de quaisquer valores apenas porque contam com a simpatia do intérprete, mas
deve-se considerar somente aqueles prestigiados pelo ordenamento jurídico.
53. Afirmar que a atividade do intérprete é construtiva e que se trata
de atribuição de sentido e alcance à norma diante do caso concreto não implica
desconhecer os limites da interpretação, dados pelo próprio texto legal e, de
resto, por outros parâmetros fornecidos pelo ordenamento jurídico.
54. Os limites da interpretação levam-nos ao denominado coeficiente
de elasticidade da norma jurídica, que representa a medida de sua maleabilidade,
isto é, o ponto até o qual ela pode ser, pela interpretação, adaptada ao caso
concreto. Com o desrespeito aos limites de construção da norma jurídica, dá-se a
violação de seu coeficiente de elasticidade, hipótese na qual já não há
interpretação, mas superinterpretação – interpretação sem limites – que não é
autorizada pelo sistema do direito positivo.
55. A desobediência ao coeficiente de elasticidade da norma jurídica
pode dar-se tanto pela interpretação marcada pela estrita positividade, quanto
pela que se afasta de modo extremado dela.
56. Apontar os limites da interpretação é tarefa difícil porque eles
podem variar segundo as especificidades do caso concreto, razão pela qual são
mencionados parâmetros iniciais de abordagem do tema, denominados cinco
possíveis limites da interpretação: o sentido literal possível; o âmbito ou domínio
da norma; a exigência de decidibilidade; a proibição do excesso e os efeitos
concretos da decisão.
57. A existência dos conceitos constitucionais pressupostos é
imperativo lógico e sistemático pois não faria sentido que, utilizados para a
discriminação da competência tributária, pudessem ficar à livre disposição do
legislador, a quem cabe o seu exercício, em enviesada hipótese na qual a lei
infraconstitucional determinaria a dimensão da competência fixada pela Carta.
58. Os conceitos adotados pela Constituição Federal – como, por
exemplo, renda, receita, faturamento e veículos automotores – são elementos
integrantes e indissociáveis da regra constitucional de outorga de competência
tributária e representam os fatos signos presuntivos de riqueza que o legislador
está autorizado a tributar. Embora o seu conteúdo semântico possa ser
relativamente trabalhado pelo legislador no momento da edição da lei instituidora
do tributo, tais conceitos permanecem com dignidade constitucional e restringem
o âmbito de atuação do ente tributante, daí serem considerados limitações
constitucionais ao poder de tributar.
59. Estabelecer o conteúdo dos conceitos equivale a determinar os
limites do seu campo de irradiação significativa e, para essa delimitação de
significado, há de se considerar o seu conteúdo semântico mínimo (aquilo que os
conceitos evidentemente significam) e o seu conteúdo semântico máximo (aquilo
que não podem significar).
60. Para a construção do conteúdo dos conceitos deve-se, pela
interpretação dos dispositivos constitucionais, partir do texto normativo e ir ao seu
contexto, isto é, considerar as condições externas aos conceitos e o modo como
são utilizados, em pelo menos quatro situações: o contexto intranormativo, o
internormativo, o interdisciplinar e o do uso lingüistico.
61. O direito tributário, considerado direito de sobreposição, pode
valer-se de conceitos utilizados por outros campos do direito positivo e mesmo
por outras áreas do conhecimento humano. Tanto na primeira quanto na segunda
hipótese, importa examinar o conteúdo de significação (amplitude semântica) com
o qual os conceitos foram incorporados pela Constituição Federal, tendo-se em
vista que este deverá ser respeitado pelo legislador ordinário.
62. Na interpretação dos dispositivos constitucionais para fins de
construção do conteúdo semântico dos conceitos, não se pode desprezar a
variável representada pelo transcurso do tempo, que exerce influência sobre
praticamente todas as questões de interpretação jurídica. O intérprete, assim, vê-
se obrigado a considerar pelo menos quatro momentos distintos: o tempo da
promulgação da Constituição Federal, o da edição da lei de tributação, o da
ocorrência do fato jurídico tributário e o da aplicação da lei ao caso concreto.
63. O artigo 110 do Código Tributário Nacional contém norma
jurídica presente na Constituição Federal, de modo que, caso o artigo fosse
revogado, nem por isso a referida norma que dele deflui deixaria de estar
presente no ordenamento.
64. A interpretação atualizada do artigo 110 permite concluir que as
formas e os conceitos de direito privado, utilizados para definir ou limitar
competências tributárias, não podem ser alterados pela lei tributária. Da mesma
forma, os de direito público (em se aceitando a subsistência dessa dicotomia),
para entender que o dispositivo trate de conceitos de direito positivo.
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