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RESIDENCIA ARTÍSTICA: UM ESTAR EM TRÂNSITO NO PROYECTO ACE
ARTISTIC RESIDENCY: ONE TO BE IN TRANSIT IN THE ACE PROJECT
Helena A R Kanaan / UFRGS
RESUMO Relato pessoal de uma Residência Artística realizada no Proyecto ACE, na cidade de Buenos Aires, Argentina. O que é e onde podemos inserir o estopim desse modo de atrair artistas para uma vivência coletiva. Uma prática em trânsito; diferentes idiomas, estilos, expressões, materiais. Modos de fazer e pensar em diálogo colaborativo. Como encontrar o foco? Produzir no provisório, um processo sem fronteiras, organizando a si mesmo. Tangenciamos o lugar, a experiência e o fazer repetitivo com Marc Augé, John Dewey e Gilles Deleuze respectivamente. PALAVRAS-CHAVE: Residência artística; Deslocamento; Diálogo; Gravura expandida. ABSTRACT Personal report of an Artistic Residence held at ACE Project, Buenos Aires, Argentina. What is it and where can we insert the fuse of this way of attracting artists to a collective experience. A practice in transit; different languages, styles, expressions, materials. Ways of doing and thinking about collaborative dialogue. How to find the focus? To produce in the provisional, a process without frontiers, organizing itself. We reflect the place, the experience and the repetitive doing with Marc Augé, John Dewey and Gilles Deleuze respectively. KEYWORDS: Artistic residency; Displacement; Dialogue; Expanded engraving.
KANAAN, Helena A R. Residência artística: um estar em trânsito no Proyecto Ace, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 847-859.
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Introdução
Discorre-se aqui as impressões de uma experiência pessoal em um ateliê1, fundado
e dirigido pela artista e arquiteta Alicia Candiani2, o qual promove anualmente,
diferentes tipos de chamada para residências artísticas. Além da imersão no espaço
de trabalho, fez-se também uma adentramento na cidade, visitando museus, galerias,
centros culturais, que ali são abundantes e, vivenciou-se os parques, as vitrines, os
sabores. Fazer uma residência é pensar desviadamente. É estar em uma conjuntura
para pesquisar, praticar, refletir e desenvolver ideias em um ambiente provisório, e em
tempo impetuoso. Temos que focar, mas estamos em um âmbito coletivo e queremos
apreender o outro. Tudo tem influencia nesse espaço colaborativo.
As residências artísticas visam estimular o encontro, a troca de fazeres e saberes por
meio de práticas e reflexões entre pessoas de diferentes origens. Na atualidade, tal
modo de produção acontece em inúmeros países, através de colaborações entre
artistas, espaços de arte, instituições governamentais e produtores locais,
promovendo jornadas criativas e intercâmbios culturais. Vem a ideia do lugar
antropológico representando um tempo passado, um não lugar, talvez um futuro,
pensar a relação temporal e de certo modo, pensar uma realidade que se coloca no
entre. O que somos e aquilo em que poderemos nos tornar, aquilo em que estamos
nos tornando. Refletimos aqui com Marc Augé, que analisa a relação entre lugar
antropológico e nos alerta que os “processos de simbolização colocados em prática
pelos grupos sociais compreendem e controlam o espaço vislumbrando organizarem
a si mesmos” (AUGÉ, 1994, p.158).
Os programas de residência para práticas artísticas têm na mobilidade algo
fundamental. Mesmo que no momento de produzir estejamos em um ambiente
fechado, nos envolvemos numa relação com o entorno maior que nos cerca,
considerando o espaço simbólico que se apresenta. Uma residência nos faz produzir
um trabalho que está contaminado pelas trocas, transformações, embates,
argumentações.
KANAAN, Helena A R. Residência artística: um estar em trânsito no Proyecto Ace, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 847-859.
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Um lugar de passagem e produção
Estar em uma residência artística é estar em um estado de busca, ser um andarilho,
ao mesmo tempo que é recolher-se. É um estar em si para construir algo mais
extensivo. Germinar, brotar e crescer. Um sair do estado latente, quando a troca de
ambiente pode ser o espaço necessário para enfrentar o novo que estava em ti, e que
então, se faz a atmosfera adequada para deixar fluir. É desenvolver o processo de
criação em deslocamento, uma forma de produção, na qual conceitos como
participação, troca e vida coletiva se tornam peças fundamentais.
Penso aqui com o autor John Dewey (2010) sobre a experiência processual na arte.
Novos modos de perceber as coisas fazem o conjunto de sensações na atualidade.
Para o autor, deve-se dar atenção aos desvios, inserindo-os diretamente à
experiência, campo relacional, de onde as obras provêm. O ambiente é fundamental,
é parte geradora dos acontecimentos que nos guiam, Para Dewey, os "lugares-
comuns biológicos são as raízes da estética na experiência". Tudo que carrego
comigo estará se desviando pelos novos acontecimentos, ganhando forças e modos
de reagir para apreender e retornar ao fora em experiência estética. Um processo de
expansão, um enfrentamento que se bem dirigido amplia e compõe novos horizontes.
A residência é um instrumento de transformação e a percebo ao estabelecer relações
mais abrangentes do que aquelas que eu, por exemplo, costumo vivenciar em salas
de aula ou em meu ateliê. Para mim, que além de artista sou professora universitária,
chegar em um ateliê que não é o meu, e testar livremente o que os materiais e
equipamentos ofertados me consentem, é um exercício que viabiliza, ademais de
produzir modos de imprimir até então não averiguados, constatar contradições que o
ambiente de ensino acadêmico acaba por instituir, articulando questionamentos
vinculados entre arte e seus espaços de produção e difusão. Em sala de aula tenho
que seguir algumas regras por menos que eu as persiga, tenho que manter um grupo
de pessoas criando e, ao mesmo tempo cumprir um conteúdo programático, num
encaminhamento para atingir um fim proposto. Mesmo em meu ateliê, invisto em
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pesquisas limitadas a materiais previamente pensados para aquele momento. Mas
entrar em um ateliê preparado para receber residentes, é entrar em uma caixa mágica,
onde vamos descobrindo efeitos especiais de cada matéria ali ofertada, estimulada
por surpresas e sensações, no diálogo com assistentes técnicos, direção e artistas
residentes.
Artistas da cidade e ex-residentes são convidados, ao longo do mês, a compartilhar
cafés e um almoço em que, enquanto degustamos, explanamos nossos projetos do
dia e contamos um pouco do que trazemos na bagagem. Profissionais como o
iluminador dos espaços expositivos, o fotógrafo especialista em reprodução de obras
de arte, os impressores voluntários e os permanentes, equipe da web, manutenção,
todos estiveram em algum momento trocando seus conhecimentos diretamente
comigo e com o outro residente, um jovem artista belga. Esse foi outro ponto
interessante, pois outrossim a diferença de idade, a diferença de cultura, dificuldade
na comunicação, língua, produção _ele trabalhou com pintura_ os pontos de
convergência se formaram, instalando-se até produzirmos uma obra em conjunto,
celebrando compreensão do potencial dessas inter-relações.
Influências históricas
Temos no início do século XX um aumento relevante de grupos artísticos, os quais se
reúnem em busca de lugares afastados dos fazeres em grande massa, estes, mais
propícios para desenvolver seus pensamentos. Na América do Norte, em especial nos
Estados Unidos, surgem agregações de artistas plásticos e de escritores, em número
bastante significativo. Advém ali a Black Mountain College3, uma escola de arte
experimental transdisciplinar que nos remete diretamente a pensar as residências
atuais. A história do Black Mountain College começa em 1933 e compreende um
capítulo vigoroso da história da educação e das artes. John A. Rice, um pujante
estudioso, ao sair do Rollins College após muitas dissensões, cria o Black Mountain
College na avidez de estabelecer um outro tipo de ensino superior, fundamentado nos
conceitos do professor e filósofo americano John Dewey4. Nesse mesmo ano ocorre
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o fechamento da Bauhaus na Alemanha e, muita perseguição a artistas e intelectuais
em mais países da Europa. O caminho encontrado por diversos desses dissidentes,
tanto docentes quanto discentes, foi a Black Mountain. O cenário norte americano
mergulhava na Grande Depressão. Assim se fortalecia a ideia de que a prática
reflexiva nas artes era fundamental. Josef Albers, artista nascido na Alemanha,
atravessou o Oceano Atlântico e foi o primeiro a proferir aulas na recém criada
faculdade da Carolina do Norte, onde os professores ensinavam, operavam e
administravam o B.M.C., acreditando na democracia e na decentralidade da arte para
formação de um indivíduo. Uma atitude realizada por artistas atuantes que dali
difundiram um espírito significativo de encarar o ensino das artes: Cy Twombly, John
Cage, Robert Rauschenberg, Merce Cunningham, os Kooning e os Albers, entre
outros que reverberaram esse modo de considerar a arte como pesquisa prático
reflexiva. Em 1957 Black Mountain College fecha suas portas.
Em Nova York, o bairro Soho dos anos 1960, encontrava-se como uma área
denegada. Os artistas constatam ali um local para ser ocupado, e instalam-se nos
imóveis vazios que foram anteriormente utilizados pela indústria têxtil e por antigos
depósitos de diversas fábricas. Edificações utilizando o ferro fundido ofereciam
espaços amplos, com ótima iluminação e pés-direitos altos, perfeitos para abrigarem
ateliês e galerias de arte.
Chegam os artistas com seus pertences, tintas, argilas, pincéis, prensas, apoderando-
se de prédios inteiros. Fazem desses imóveis suas moradas provisórias, em um
esquema de cooperativa, homologadas com o ‘Certificate of Occupancy’. A única
imposição acordada com a municipalidade era que colocassem na porta as letras
A.i.R. - Artist In Residence5, a fim de anunciar que havia alguém habitando a área,
protegendo-se de expulsões e garantindo serviços públicos como lixo e bombeiros.
(KOSTELANETZ, 2014).
Seguindo o contexto, no curso da história que atinge o ocidente, temos já no final dos
anos 1980 a queda do muro de Berlim, a abertura da cortina de ferro e, outros
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acontecimentos que instauram uma locomobilidade inédita. Além da facilidade física
que se abre, o acesso à informação pelo virtual cresce vertiginosamente. Em muitos
países, a residência artística se consolida pelos anos 1990, mas no Brasil ainda
estávamos longe de ter programas na área. Hoje dispomos de um vai e vem mais
ativo, tanto no exterior quanto em muitos estados do Brasil. Sabe-se, porém, que além
da questão financeira, existem ainda dificuldades diplomáticas, problemas com o visto
por exemplo, pois tal deslocamento não caracteriza o cidadão como um turista, nem
como um estudante e, também não pode ser considerado como um trabalhador. Essas
questões políticas persistem, mas já temos um grande trânsito entre instituições no
mundo todo, ocupando um lugar de destaque dentro da cadeia produtiva da arte.
Fundação ACE para a Arte Contemporânea
Em 2005 em Buenos Aires, ACE abre o Programa Internacional de Residências
Artísticas (PIRAR). A ideia central é o trabalhar colaborativo, com assistência
profissional na lida com equipamentos e materiais.
A Fundación ACE é uma organização sem fins lucrativos que aceita artistas de países
com os quais Argentina mantém diplomacia. No intuito de incentivar ações ligadas à
arte contemporânea, impulsiona o intercâmbio cultural, despertando valores
comunitários, ligados a programas sociais na cidade. O programa inclui nesses
fazeres a performance e a curadoria, sempre com ênfase na Arte Impressa.
“Proporcionamos tempo, espaço e orientação para explorar a gráfica expandida
assim como a tradicional, enquanto os artistas se vinculam com a cena artística de
Buenos Aires” (http://www.proyectoace.org). Ali são ofertados quatro tipos de
residência: Produção, Exploração Sub30, Residência de pintura mural/Palimpsesto
ou, micro residência. É uma chamada aberta com seleção processada através de
envio de portfólio “Ace prioriza propostas que questionam o objeto singular de arte e
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experimentam a capacidade de produção múltipla, investigando suas interferências e
diluindo suas fronteiras.” (http://www.proyectoace.org/home)
Esse espaço disponibiliza inúmeros equipamentos relacionados à arte impressa,
motivo pelo qual me interessei e fui selecionada para uma bolsa chancelada pela
Embaixada Brasileira na Argentina, podendo assim dar continuidade e, aprofundar
minhas pesquisas na área do impresso.
No primeiro encontro, faz-se uma explanação para a equipe6 da fundação,
apresentando um projeto piloto a ser desenvolvido durante as quatro semanas de
investigação. Na biblioteca que se encontra no espaço central, entre as galerias e os
ateliês, estão disponíveis um grande número de livros e catálogos raros, escolhidos e
levados em mãos pela diretora, fruto de suas viagens de aperfeiçoamento, pesquisas
e ensinamentos em centros culturais, universidades e locais onde ocorrem
congressos, mostras e grandes feiras gráficas. Chamou-me atenção a possibilidade
de folhear tantos volumes referentes a arte da Ásia Oriental contemporânea. Dei início
à residência com uma imersão nessa biblioteca. Como mencionado acima, entre a
bibliografia encontrada, estão livros e catálogos da arte chinesa, coreana e países
asiáticos. Tal exercício visual me foi muito estimulante e após muitas inserções entre
desvendar materiais e técnicas, utilizando-me desde a frottage, até o uso das
instalações para fotolitografia com mesas de grande porte, dei seguimento a imagens
que vinha trabalhando anteriormente, adicionando-as às singularidades oferecidas no
ambiente. Cria-se então uma atmosfera de trabalho em tempo produtivo x criativo
alcançando a produção de repertório suficiente para montar uma mostra individual.
Aos auspícios curatoriais da diretora Alicia Candiani, realizo na sala Políglota, a
exposição ‘Espacios Provisórios’ a qual esteve por quatro meses montada, recebendo
visitação de artistas, curadores e críticos que apreciam e analisam nossos fazeres
abrindo o trabalho para olhares influentes na área.
“Durante su residencia en ACE la artista deambuló en una búsqueda creativa con muchas entradas y desiguales salidas. Al final, y
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paradójicamente, el círculo -que sin principio ni fin representa el universo, la eternidad, el todo, la encarnación de unicidad- sirvió como leitmotiv para discurrir sobre lo que no está determinado ni terminado y se configura durante el transcurrir. Acumulación, encubrimiento, descubrimiento. Las cosas que no tienen forma fija. El pliegue, el cuerpo vacío, la fugacidad, los desviamientos de la técnica… la obra de Kanaan bebe tanto en Deleuze como en Bataille, mirando a Kiki Smith y Rivane Neuenschwander simultaneamente”. (CANDIANI, 2017.)7
Produzi novas obras mantendo referencias que já persigo. Além dos citados acima
vejo muito a obra de M.C. Escher8, potencializando os conceitos de repetição,
incompletude, substância. Junto à prática, aprofundei ainda mais em reflexões
conceituais da diferença, do suporte, do não lugar e do informe respectivamente com
os autores Gilles Deleuze (1986)9, Jacques Derrida (1998)10, Marc Augé (2015)11 e
Georges Bataille (1936)12.
Movimentos e transferências. A residência como (des)locamento
A casa onde funciona o Proyecto ACE está situada em uma rua tranquila do bairro
Colegiales, na capital argentina, Buenos Aires. Uma edificação histórica toda
restaurada, dividida entre a Sala Políglota e mezanino, áreas para exibição, o ateliê
de gráfica e laboratório, a biblioteca, a sala de meios digitais, e um estúdio privado
chamado Torre. Há ainda o espaço cafeteria, áreas abertas com plantas e um terraço
onde ocorre o projeto Palimpsesto mais voltado a ações pictóricas.
Figura 1. Casa onde está instalada a Fundación ACE, 2018. (foto:http://www.proyectoace.org)
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Ao defrontar-me com o deslocamento, de meu ateliê para um espaço de trabalho que
abriga artistas de todo o mundo e oferece um aconchego entre conversas, embates e
entrosamentos, fui elaborando obras que, ao final das quatro semanas intitulei
Espaços Provisórios. Tomando foco na produção, elejo como ponto de partida o
círculo, expandindo-o em muitas formas, dividindo, repetindo em simetria,
multiplicando em subdivisões, sobreposições e interrupções. Encontro assim a
diversidade na unidade, em uma relação espacial que se faz por vazios e
delineamentos físicos e conceituais.
Figura 2. HKanaan. impressa durante a residência, carimbo, 50x70cm, 2018. (Foto Studio Z)
Os brancos espaços mudos potencializam para concentração e contemplação,
complementando áreas rendilhadas e de transparência, instigando-me a pensar que
atrás dos véus que construo, escondem-se enigmas e segredos que se sustentam em
uma experiência da realidade como espaço frágil e transitório.
Entre os impressos exercidos com tintas em tons claros, mesclei relevos secos. Tais
efeitos revelaram-me sutilezas entre o material e o espiritual, levando-me a aprofundar
o trabalho com foco no duplo e na transferência. Papéis de baixa gramatura e tecidos
com transparências variáveis, veiculam composições com gofrado, frottage, carimbos,
lito-offset, e outras técnicas da gráfica impressa. Através destes procedimentos
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desvelaram-se conceitos operacionais de acumulação e de perda, manifestadas em
imagens que me remetem a sensórios ancestrais.
Figura 3. HKanaan. Da serie Espacios Provisorios. Fotolitografia e gofrado 70cmx100cm, 2017. (Foto
Studio Z)
Tal projeto cumpriu-se como um trabalho que expressa algo que está em suspensão.
Múltiplas imagens, objetivando a variação do mesmo, contemplando a diversidade de
intervenções em um fazer ‘matricial’ num movimento de transição em busca de novas
composições. Memória e atualização, imersão e abertura.
Figura 4. Gravação da matriz de lito offset na mesa de insolação / Proyecto ACE, 2017. Foto:http://www.proyectoace.org
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A repetição que ativa a diferença permeou todo esse fazer, potencializada nos
encaixes de fundo figura, movimentos ascendentes e descentes e de intrigantes
modos possíveis de ocupação e circulação que o imaginário desafia. Ali se dão os
(des)encontros, as misturas, as passagens. Assim vou absorvendo modos de
construir meu espaço para vivenciar o momento, e para fundar os espaços tramados
nas imagens dos véus que protegem e desvelam.
Objetivo meu novo velho mundo refletido na subjetivação da matriz invertida, que fará
o duplo, adquirindo espessura plástica. Vejo as obras da mostra Espacios Provisorios
como série sistemática, pois muitas das matrizes são as mesmas, porém impressas
de modo a trazer a diferença em suas estruturas e composições. Gilles Deleuze
(1925/1995) filósofo na linha do racionalismo francês, descreveu sobre a obra Ninfeia
(1906), do pintor Claude Monet da qual comenta que essa correspondeu a um ato
inaugural, sendo todas as outras uma variação da primeira afirmando que o duplo
nunca é uma projeção do interior, mas uma interiorização do lado de fora. O autor traz
a ideia de que a Diferença se sobrepõe à mesmidade e à identidade e que a diferença
é de natureza (DELEUZE, 1986). Com reflexões oriundas desse princípio, penso que
a imagem que tem origem matricial, ao se multiplicar, sempre se transforma.
Considerações finais
Um tempo intenso quase irreal, que não é nosso cotidiano, mas que faz que nos
envolvamos emocionalmente e nos reconstruamos em uma conjunção pasmada. Cria-
se uma rotina; aprende-se a escutar mais do que falar, a andar no metrô, a comer
comidas leves e mais tarde, a esperar que o outro se acomode e que as tintas sejam
preparadas. Elaboramos um novo comportamento. Experiência que dá estrutura para
criar, levando a um estado mais focado de produção, num contexto que não faz parte
do que vivo em minha cidade.
Essa residência proporciona casa e transporte e, só tinha que me preocupar em me
recriar a cada novo dia. Cada local tem uma dinâmica diferente, e temos que
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rapidamente entrar no espaço oferecido com muita vontade de apreender. A
experiência com a técnica matricial revelada em placas fotossensíveis por químicos,
foi o aprofundamento de uma reflexão sobre a multiplicidade, temporalidades e
espacialidades que constituem um lugar, levando em conta o modo de apresentação
que optamos para a montagem final, instalação, e a situação de estar em um país
estrangeiro.
A possibilidade da prática no Proyecto ACE, favorecida por instituição governamental,
reconhece e dá relevância à cultura e à mutualidade entre países com interesses na
transformação sócio cultural. Tal vivência gerou reflexão, com adoção de novos
paradigmas na minha produção criativa, salientando a atitude de agente participante
no processo de intercâmbio cultural. São exercícios para difundir nossas referencias
e cruzá-las, experimentando novas formas de se colocar no mundo, engendrando
diferentes contornos. Promovem-se assim conexões e permutas entre artista,
instituições e comunidades, enriquecendo nossas vivencias coexistentes numa
reciprocidade com novos interlocutores.
Notas
1 Proyecto ACE, na capital Buenos Aires/Argentina, Em 2005, Candiani fundou o Proyecto Ace, um programa para artistas residentes. O programa internacional promove intercâmbio artístico entre artistas visitantes e a comunidade artística local através de trabalhos colaborativos, discussões em estúdio e exposições. A gravura contemporânea e as praticas artísticas de campo expandido que explorem o múltiplo, especialmente projetos com o uso da fotografia, design e mídia digital são foco especial do centro. http://www.proyectoace.org/faq 2 Alicia Candiani formou-se na Universidade Nacional de Córdoba /Argentina, onde recebeu o título de mestre em Belas Artes e licenciatura em Arquitetura e Urbanismo. Pós-Graduação em Arte Latino-Americana e Crítica de Arte na Universidade de Buenos Aires/Argentina. Sua prática artística internacional consiste em trabalhos ampliados de mídia impressa e digital, intervenções arquitetônicas e projetos colaborativos de arte, bem como curadorias de importantes exposições. Em sua atividade profissional, inclui três estratégias conjuntas: produção-exibição, discurso crítico e trabalho de colaboração em educação, abrangendo artistas, estudantes e comunidades em todo o mundo. Ver: http://www.proyectoace.org/inst/en_aliciacandiani 3 O Black Mountain College foi um colégio experimental fundado em 1933 por John Andrew Rice, Theodore Dreier e vários outros. O Black Mountain College foi criado como um experimento de "educação em democracia", com a ideia de que as artes criativas e responsabilidades práticas são iguais em importância para o desenvolvimento do intelecto. A ênfase era que aprender e viver estão intimamente conectados. Dramática, música e artes plásticas eram consideradas parte integrante da vida do colégio. Nenhum estudante conseguiu um emprego na faculdade, mas todos, professores e alunos, participaram do trabalho na fazenda operada pela faculdade, construíram prédios, fizeram trabalhos de manutenção, serviram refeições, etc. Muitas aulas foram realizadas à noite e nenhuma foi marcada na escola. www. Black Mountain College 4 DEWEY, John. (Burlington,1859 / New York,1952) foi defensor da Escola Ativa, que propunha a aprendizagem através da atividade pessoal do aluno. A filosofia da educação de Dewey foi determinante para que a Escola Nova se propagasse por quase todo o mundo. Para Dewey, o conhecimento nasce das experiências oriundas de
KANAAN, Helena A R. Residência artística: um estar em trânsito no Proyecto Ace, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 847-859.
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problemas. Para ele, a educação tem como finalidade proporcionar ao aluno condições para que resolva por si próprio os seus dilemas. A educação não pode ter modelos prévios, isto é bastante enfático na teoria de Dewey. 5A. i. R. = Artits in Residence. Os artistas eram obrigados a identificar nas fachadas de seus lofts a inscrição A.I.R., Artist in Residence, anunciando o número do andar ocupado. A legislação, homologada em 1971, também delimitava as metragens de ocupação máxima por um único artista, não sendo permitido ocupar um espaço maior que 3.000 m2 (KOSTELANETZ, 2014). 6 Equipe: Direção: Alicia Candiani, Master printer: Adriana Moraccia (estava ausente nesse mes), Coordenadora do programa: Daniela Ruiz Moreno, Assistente executiva: Cecilia Candiani. 7 CANDIANI, Alicia. Proyecto ACE. Texto escrito para a mostra Espacios Provisorios (2017), descrito neste artigo.(http://www.proyectoace.org/en_helenakanaan_expo). 8 ESCHER, Maurits C. (1898-1972) Artista gráfico, ilustrador e matemático holandês. Era um artista de enigmas usando temas
da arquitetura, repetição, espelhamentos, simetrias, combinações. Perspectivas infinitas e gravidade são algumas ideias que
permeiam o repertório do artista. https://www.mcescher.com/ 9 DELEUZE, Gilles. Na sua tese Diferença e Repetição diz: toda a diversidade e toda a mudança remetem para uma diferença que é a sua razão suficiente. “Tudo o que se passa e aparece é correlativo de ordens de diferenças: diferença de nível, de temperatura, de pressão, de tensão, de potencial, diferença de intensidade”. São Paulo: Graal, 1986, p.361. 10DERRIDA, Jacques, nos fala sobre o suporte e a superfície, no livro Enlouquecer o Subjétil,1998. um pensamento que é acontecimento. Camadas sobre camadas, um fora de si, um duplo mas não dialético gesto, um exercício de pensamento ao mesmo tempo a respeito de e inscrever em – sobre a pele, superfície. 11 AUGÉ, Marc. Pensando que, o que está em jogo na construção dos espaços e na vivência que ali desfrutamos, permite acelerar ou diminuir a passagem do tempo e a virtualização do espaço, proporcionando uma espécie de transformação de nós mesmos no outro. 12 BATAILLE, Georges, publica em 1929, na Revista Documents, que incluía o Dictionnaire Crítico o verbete ‘Informe’: uma palavra que serve para desclassificar, contrariando exigências acadêmicas de que cada coisa tenha sua forma. Um processo de homogeinizaçao do heterogêneo.
Referências AUGÉ, Marc. Le sens des autres. Actualité de l’anthropologie. Paris, Fayard, 1994.
BATAILLE, Georges, Revista Documents, Paris,v.1, n.7.p.382, 1929.
DERRIDA, Jacques. Enlouquecer o Subjétil. São Paulo: Ateliê Editorial, Unesp,1998.
DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. São Paulo: Graal, 1986.
DEWEY, John. A Arte como experiência. São Paulo: Marins Fontes, 2010.
ESCHER, M.C. - https://www.mecescher.com em 29/04/2019
KOSTELANETZ, Richard. Artists' SoHo: 49 Episodes of Intimate History. Nova York: Fordham University Press, 2014.
KANAAN, Helena A. R.
Artista Visual. Pesquisadora e professora com ênfase em gravura contemporânea na Universidade Federal do Rio Grande do Sul Instituto de Artes Departamento de Artes Visuais. Coordenadora da Galeria Pinacoteca Barão de Santo Ângelo IA UFGRS. Co-líder no GT CNPq Expressões do Múltiplo. Coordena o Grupo de Extensão NAI – Núcleo de Arte Impressa e o grupo de pesquisa Práticas Críticas da Gravura à Arte Impressa. Mostras individuais e coletivas no Brasil e exterior. Autora do livro Impressões, acúmulos e rasgos, entre outros. harkanaan@gmail.com
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