salmos de lamentaÇÃo: a dura questÃo do … de-lamentação... · publicada pela edições...
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SALMOS DE LAMENTAÇÃO:
A DURA QUESTÃO DO SOFRIMENTO HUMANO
por
HIDEÍDE APARECIDA GOMES DE BRITO
Em cumprimento parcial
das exigências do Curso Básico de Teologia
Instituto Metodista Teológico João Ramos Júnior
Belo Horizonte, MG, Brasil
1996
2
Agradecimentos
Ao Pr. Western Clay Peixoto, pela dedicação e incentivo para o
aprimoramento deste trabalho;
Ao Pr. Rodrigo Pereira da Silva, pelas informações adicionais e valiosa
ajuda para o entendimento de alguns conceitos mais difíceis;
Aos meus familiares, pelo apoio recebido nessa primeira etapa da
realização de um sonho;
Aos amigos sempre presentes em todas as horas;
Aos colegas de curso, cuja amizade foi construída e fortalecida na sala de
aula, nos corredores e no convívio de todos os dias;
À Igreja Metodista, onde encontrei a Cristo e tenho caminhado com Ele;
A Deus, sem o qual não seria possível a ajuda de todos os citados acima.
Ao único capaz de responder a perguntas sem respostas surgidas no sofrimento, meus
agradecimentos e todo o meu amor, por sustentar a minha fé.
3
Índice
AGRADECIMENTOS 2
ÍNDICE 3
INTRODUÇÃO 5
1º CAPÍTULO - A FORMAÇÃO DOS SALMOS 8
1.1. ESTRUTURA DOS SALMOS E GÊNEROS LITERÁRIOS 8 1.1.1. HINOS 13
1.1.2. CANTOS DE AÇÃO DE GRAÇAS 13
1.1.3. CANTOS DE SIÃO 14
1.1.4. SALMOS RÉGIOS 14
1.1.5. HINOS DA REALEZA DE IAHWEH 14
1.1.6. LAMENTAÇÕES 15
1.2. DATAS, AUTORIA, AMBIENTES DE VIDA E USO DOS SALMOS 15
2º CAPÍTULO - OS SALMOS DE LAMENTAÇÃO E O SOFRIMENTO HUMANO 21
2.1. CAUSAS DO SOFRIMENTO NO LIVRO DOS SALMOS 23 2.1.1. PERDAS DIVERSAS E PERSEGUIÇÕES 23
2.1.1.1. Perda de Bens 23
2.1.1.2. Perda de Amigos e Parentes 26
2.1.1.3. Perda da Honra 27
2.1.1.4. Perda da Unidade e Convívio Familiares 30
2.1.1.5. Perseguições dos Inimigos 32
2.1.2. DOENÇAS E CALAMIDADES 34
2.1.2.1. Doenças e Morte 34
2.1.2.2. Calamidades 45
2.1.3. O PROBLEMA DA PROSPERIDADE DOS MAUS 51
4
2.2. REAÇÕES AO SOFRIMENTO 54 2.2.1. CONFISSÃO 55
2.2.2. PROTESTO DE INOCÊNCIA 56
2.2.3. DESESPERO, DEPRESSÃO E DOENÇAS 57
2.2.4. DESEJO DE FUGA 59
2.2.5. IMPRECAÇÕES CONTRA OS INIMIGOS 60
2.2.6. ESPERANÇA NO LIVRAMENTO 62
3º CAPÍTULO - O SOFRIMENTO ONTEM E HOJE 64
3.1. FÉ E SOFRIMENTO: CONVIVÊNCIA POSSÍVEL PARA OS SALMISTAS? 64 3.2. O SOFRIMENTO NA ATUALIDADE E AS LIÇÕES DOS SALMOS DE LAMENTAÇÃO 68
CONCLUSÃO 72
BIBLIOGRAFIA 74
5
Introdução
Este trabalho objetiva mostrar como os salmistas observavam a questão
do sofrimento, buscando resposta para seus conflitos. Longe de esgotar tão vasto
assunto, o propósito é dar pistas para uma reavaliação da forma atual de encarar esse
problema.
Para facilitar o entendimento dos leitores, estarão sendo fornecidas na
introdução algumas informações importantes.
Os textos bíblicos citados são da Tradução Ecumênica da Bíblia,
publicada pela Edições Loyola e também do Grande Comentário Bíblico dos Salmos,
de autoria de Arthur Weiser, salvo indicações em contrário.
O leitor provavelmente encontrará divergências ao comparar algumas
citações dos salmos empregadas aqui com a tradução de João Ferreira de Almeida. Tal
fato explica-se naturalmente. Segundo as notas da Tradução Ecumênica da Bíblia, "por
volta de meados do séc. II a.C., o texto hebraico dos Salmos foi traduzido para o grego,
para uso dos judeus da Diáspora — é a chamada versão dos Setenta ou Septuaginta.
(...) A numeração dos salmos não é totalmente idêntica à do texto hebraico
massorético. Com efeito, por duas vezes ocorre o caso de um salmo, único no texto
hebraico, estar dividido em dois na versão grega (Sl 116 e 147). Inversamente, e
6
também aqui por duas vezes, dois salmos da coletânea hebraica ( 9 e 10; 113 e 114)
correspondem a um único canto da Septuaginta. Daí uma defasagem na numeração."1
Mesmo nos manuscritos hebraicos, a numeração de versículos e capítulos
é algo bem posterior. Por isso, até entre os próprios textos massoréticos há variações
na numeração dos versículos. Alguns começam a numeração desde o título, outros
excluem o título da numeração dos versos. Tanto a Bíblia Ecumênica quanto o
Comentário de Weiser seguem a primeira opção, numerando desde o título. Daí a
diferença em relação a algumas das outras traduções, como a de João Ferreira de
Almeida.
Alguns dados aqui apresentados são visto como polêmicos por diversos
autores. Contudo, como o propósito é abordar diretamente o assunto do sofrimento,
alguns problemas em relação a autoria, data e usos não foram vistos em profundidade.
Se alguns dos leitores desejarem maiores informações sobre tais dados, podem
recorrer à própria bibliografia apresentada ao final deste, onde encontrarão melhores
subsídios para essas questões.
Esse pequeno tratado apresenta três divisões principais. Na primeira, uma
rápida abordagem da história dos salmos, sua estrutura, autoria e utilizações cúlticas.
No segundo capítulo, o tema do sofrimento nos salmos será visto na perspectiva dos
salmistas, apresentando diversas causas e reações e tendo como pano de fundo o
estilo de vida, a cultura, o pensamento vétero-testamentários, bem como a situação
histórica, quando for possível detectá-la com maior propriedade. E no último capítulo,
uma busca da conexão entre esses cânticos sobre o sofrimento e a realidade atual dos
cristãos.
O sofrimento é e sempre será um grande problema, especialmente para
aqueles que adotam uma postura unilateral quanto a ele. Na Bíblia, as opiniões sobre
suas causas, as reações a ele e as explicações apresentadas podem surpreender
leitores mais desatentos, chegando por vezes a posicionamentos que podem ser
1- TRADUÇÃO ECUMÊNICA DA BÍBLIA. São Paulo: Loyola, 1994. Pág. 1008
7
considerados até mesmo "inconvenientes" à fé. Contudo, o leitor da Bíblia não deve se
deixar enganar: a Bíblia é um livro feito por seres humanos que falam sobre e com
Deus. Seu objetivo é mostrar como Deus age na história dos homens, em seu propósito
supremo de levá-los a viver em comunhão com seu Criador, apesar das falhas, da
dúvida e até do descaso desses homens para com Ele.
Portanto, ainda mais quando se trata dos sentimentos, a Bíblia não
esconde, mas revela o que esses homens e mulheres pensaram, sentiram e
transmitiram através dos séculos. E assim como eles tiveram coragem de abrir-se
diante de Deus e confessar até mesmo sua insatisfação e incompreensão ante a
vontade divina, resta aos cristãos de hoje questionar a insustentável inviolabilidade da
fé que muitas vezes querem demonstrar. Para ser fiel a Deus não é preciso ser sempre
forte e intocável pelas contradições da vida.
Como se verá no decorrer dessa leitura, os salmos de lamentação
ensinam também que a fidelidade a Deus não depende apenas de sorrisos. Pode-se
enxergar essa fidelidade muito mais intensamente quando os olhos estão embaçados
pelas lágrimas.
8
1º Capítulo
A Formação dos salmos
A questão da formação dos salmos precisa ser analisada na totalidade do
Saltério e não apenas de um ou outro poema, pois é impossível avaliar cada salmo
isoladamente. Necessário se faz lembrar ainda que os salmos contidos no Saltério não
são os únicos encontrados na Bíblia. Por toda a Escritura encontram-se exemplos de
salmos, alguns bem antigos, como o cântico de Miriã ou o de Débora.
O surgimento dos salmos ocorreu dentro da caminhada da vida e da fé de
Israel, sempre com um caráter comunitário, produto de um povo mais que de um
indivíduo. Assim, os salmos puderam ser sempre criados e relidos ao longo da história,
sem nunca perderem seu brilho particular e inigualável.
1.1. Estrutura dos Salmos e Gêneros Literários
No original hebraico, o Saltério era denominado "tehillim", que significa
louvores. O termo salmo vem da tradução grega da Bíblia, denominada Septuaginta.
Também de origem hebraica, essa palavra tem o sentido de "cântico acompanhado de
instrumentos musicais"2 (mizmor).
A fórmula da poesia hebraica segue padrões diferentes daquelas
conhecidas atualmente, como rimas, estrofes e métrica. Isso não impede que se
2- SHILLING, Otimar. Os salmos, louvor de Israel a Deus. Palavra e mensagem - Introdução teológica e crítica aos
9
perceba, mesmo na tradução, a musicalidade peculiar que os salmos e outras
composições poéticas como Cantares e Jó possuem. O fato é que o ritmo existente nas
canções e poesias bíblicas sofreu algumas perdas nas traduções ou mesmo em erros
dos copistas ao longo dos tempos.
A poesia hebraica possui, ao invés da rima das palavras, uma rima de
pensamento, cujo nome técnico é Parallelismus Membrorum3. Esse estilo de poesia
consiste em repetir a mesma idéia em dois versos sucessivos, usando porém uma
forma diferente em cada verso. Por exemplo:
"cercavam-me os laços do Xeol,
as ciladas da Morte me envolviam." (Sl 18:6)
"vendes o teu povo por um nada,
e nada lucras com o seu preço". (Sl 44:13)
No paralelismo por correspondência de pensamentos, encontram-se
algumas variações: O paralelismo por identidade de significado (sinônimo):
"Lava-me inteiro da minha iniquidade,
e purifica-me do meu pecado" (Sl 51:4);
o paralelismo por contraste (antitético):
"Dá ouvido à minha prece, ó Deus,
não te furtes à minha súplica" (Sl 55:2);
o paralelismo por complementação (sintético):
"Salva-me, ó Deus, pois a água
está subindo ao meu pescoço.
Estou afundando em lodo profundo,
problemas do Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1978, pág. 382
10
sem nada que me firme;
estou entrando no mais fundo das águas,
e a correnteza me arrastando...". (Sl 69:2-3);
o paralelismo por intensificação (climático):
"Iahweh, ó Deus das vinganças,
aparece, ó Deus das vinganças!
Levanta-te, ó juiz da terra,
devolve o merecido aos soberbos!" (Sl 94: 1-2).
No caso do paralelismo sintético, tem-se ainda o caso das canções tipo
ladainha, que formam uma estrutura semelhante a uma cadeia. Não encontram-se
exemplos desse paralelismo nos salmos de lamentação, por razões óbvias. Não se
adaptam a lamentos, mas constituem uma série de louvores a Deus:
"Celebrai a Iahweh, porque ele é bom,
porque o seu amor é para sempre!
Celebrai ao Deus dos deuses,
porque o seu amor é para sempre!
Celebrai o Senhor dos Senhores,
porque o seu amor é para sempre!" (Sl 136: 1-3).
Os salmos de lamentação seguem uma certa estrutura que pode
apresentar-se incompleta em alguns poemas, mas constitui a base para todos. O
estudo dessa estrutura facilitará o entendimento do processo que se opera no interior
do orante à medida em que expõe sua prece diante de Deus.
A. Weiser afirma que, na estrutura formal, os salmos de lamentação
apresentam os seguintes elementos em sua composição: invocação, súplica,
3- SHILLING, Otimar. Op. cit., pág. 385
11
motivação, voto ou promessa de louvor.4 Marc Girard apresenta uma divisão
semelhante; todavia acrescenta a esperança, a teofania e a serenidade estável (ou
confiança de que os problemas futuros se resolvam).
A primeira palavra em muitos salmos de lamentação é o nome de Deus,
apresentado de diversas maneiras:
"Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?" (Sl 22:1)
"Senhor, a ti eu clamo!" (Sl 28: 1)
" Iahweh, a ti me elevo, ó meu Deus". ( Sl 25:1)
Deus é invocado na primeira frase, junto com a oração que ele ouvirá. A
partir daí o salmista apresenta seu sofrimento, que pode ser um imediato perigo:
"Piedade, ó Deus! Pois um homem me importuna,
todo dia ele me combate, ele me oprime.! (Sl 56:2)
ou o seu próprio pecado, entre outros:
"Tem piedade de mim, ó Deus, por teu amor.
Apaga minhas transgressões,
por tua grande compaixão!" (Sl 51: 3)
Depois de expor seu sofrimento, o salmista pede a intervenção de Deus a
seu favor:
"Toma a armadura e o escudo
e levanta-te em meu socorro!" (Sl 35:1)
"Livra-me das minhas transgressões todas,
não me tornes ultraje do insensato!" (Sl 39:9)
4- WEISER, Arthur. Os Salmos - Grande Comentário Bíblico. São Paulo: Paulus, 1994, pág. 44
12
Algumas vezes, tanto em lamentações individuais quanto coletivas, os
salmistas lembram a Deus suas promessas de favor, bênção, fidelidade e aliança, a fim
de comovê-lo a se posicionar como libertador do orante. Isso porque, mesmo
reconhecendo suas falhas e pecados, os salmistas vivem no contexto de uma nação
escolhida, guardiã da aliança e dos mandamentos de Deus e que, portanto, não pode
ser rejeitada por Deus para sempre. Daí o indagarem sobre a duração de seu
sofrimento:
"Até quando os ímpios, Iahweh,
até quando os ímpios irão triunfar?
É teu povo, Iahweh, que eles massacram,
é tua herança que eles humilham." (Sl 94: 3 e 5)
O elemento que geralmente termina um salmo de lamentação é a
promessa de louvor, um voto de testemunho pelo livramento a ser recebido. Por isso,
muitos salmos de lamentação mudam de tom em seu final, quando o salmista, aliviado
por ter exposto diante de Deus o seu lamento, já sente-se revigorado para confiar na
resposta divina:
"Por que te curvas, ó minha alma,
gemendo dentro de mim?
Espera em Deus, eu ainda o louvarei,
a salvação da minha face e meu Deus!" (Sl 42:5)
"Vou cantar a Iahweh pelo bem que me fez,
vou tocar ao nome de Iahweh, o Altíssimo!" (Sl 13:6b)
O Saltério foi dividido em cinco partes, fazendo lembrar o Pentateuco.
Todavia, é formado por coleções menores, que foram agrupadas e reorganizadas para
formar o que hoje se conhece como o livro dos Salmos. Essas coleções menores foram
13
compostas às vezes para uso particular, mas preponderantemente para uso cúltico.
Não cabe ao propósito deste estudo detalhar tais coleções. Todavia, para efeito de
conhecimento, apresentam-se aqui as cinco grandes divisões do Saltério, segundo
Gottwald. Cada parte termina com uma pequena doxologia.
Livro 1: Salmos 1-41, cf. 41:13
Livro 2: Salmos 42-72, cf. 72: 18-20
Livro 3: Salmos 73-89, cf. 89: 52
Livro 4: Salmos 90-106, cf. 106:48
Livro 5: Salmos 107: 150, cf. 150
O Método da Crítica das Formas é uma das ferramentas que se possui na
atualidade para aprimorar o estudo da Bíblia. Esse método consiste em descobrir qual
o ambiente vital do texto, seu propósito, suas características, dividindo os textos de
acordo com os seus gêneros literários. Aplicado ao Livro dos Salmos, pois, o Método
da Crítica das Formas permite identificar os seguintes gêneros ou formas, dos quais se
traçará uma rápida abordagem:
1.1.1. Hinos Consistem basicamente de dois elementos principais: a exortação ao
louvor e os motivos para fazê-lo. Há um convite à participação da assembléia com
expressões do tipo: "Diga a Casa de Israel: Porque é eterno o seu amor!". A forma mais
sintética é a expressão Hallelujah, Louvai a Iahweh. A assembléia louva reunida ou o
indivíduo convida a si mesmo ao louvor, como: Bendiz ó minha alma a Iahweh! Os
motivos para o louvor são os atos de Deus do passado e do presente.
1.1.2. Cantos de Ação de Graças
"Os cantos de ações de graças se relacionam com uma experiência
salvífica de um indivíduo. Pertencem à vida da comunidade, mas neles um indivíduo
14
está celebrando, através de um oferecimento particular de graças"5. Sua estrutura
básica é: os perigos que ameaçavam o fiel, sua súplica a Deus e o livramento recebido,
pelo qual agradece.
1.1.3. Cantos de Sião
Tais cantos mostram que o santuário de Jerusalém era uma lembrança
permanente da presença de Deus no meio do povo. O monte era considerado a
habitação de Deus e uma proteção contra os inimigos. O nome de Jerusalém era
significado de paz (Salém - Shalom - Paz).
1.1.4. Salmos Régios
Apenas dez salmos apresentam esse gênero. Segundo Wolff, a cada
coroação esses cantos reanimavam a esperança messiânica do filho de Deus que teria
uma especial relação com as nações e os oprimidos do país (Sl 72). Esses salmos
apresentam também traços de lamentação (89: 46, 51 e 144: 1-11); ações de graças
(18: 4,6). O salmo 45 celebra o casamento real e o salmo 101 é uma promessa régia
de fidelidade a Deus e ao povo. Talvez se constituísse num juramento do rei ao tomar
posse.
1.1.5. Hinos da Realeza de Iahweh
Esses salmos distinguem-se dos salmos régios, por trazerem a típica
expressão: Iahweh é rei! Não se constituem em prova da existência de uma festa de
entronização de Iahweh, à semelhança dos deuses cananeus, pois há uma afirmação
teológica do reinado perene de Deus e de que os outros deuses são ídolos que devem
curvar-se a Ele. Anunciam sua vinda iminente para dominar sobre todos os povos com
equidade e justiça. Toda a criação espera e celebra essa chegada ( Sl 96: 11-12, 98: 7-
8).
5- WOLFF, H. W. Bíblia - Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1978, pág. 99
15
1.1.6. Lamentações
Por fim, o gênero literário das lamentações, que constituem a maior parte
de todos os salmos do Saltério. As lamentações podem ser individuais ou coletivas.
Não apresentam especificamente o motivo do sofrimento, para poderem ser usadas por
qualquer pessoa, em qualquer tempo. Ainda assim, algumas oferecem pistas para se
detectar sua origem. As lamentações constituem as mais belas poesias de Israel e
possuem características bem próprias, que as distinguem facilmente no conjunto do
livro dos Salmos. Nelas se percebem até mesmo algumas fases bem distintas do
pensamento vétero-testamentário sobre a vida, o sofrimento e a morte, entre outros
temas.
Dentre os gêneros apontados supra, encontram-se ainda subdivisões nos
diversos autores consultados, que não necessitam ser abordadas por não serem o
objetivo principal do presente trabalho.
1.2. Datas, Autoria, Ambientes de Vida e Uso dos Salmos
Uma grande dificuldade surge ao tentar datar os salmos. De forma geral,
esse problema ocorre com todas as obras poéticas de Israel. Apenas alguns salmos
têm sido considerados bem antigos, próximos dos fatos que narram (29, 68, 104). As
notas que precedem a maioria dos salmos "falam do autor, da ocasião em que foram
compostos, dos gêneros literários ou dão indicações musicais para seu uso".6 Mas não
podem ser tomadas sem ressalvas, haja visto serem posteriores.
O processo de formação do livro de salmos durou quase 1.000 anos. Os
primeiros vêm do tempo de Davi (1010 a 970 a.C.). Os últimos, provavelmente são da
época dos macabeus (170 a 160 a.C.). Alguns salmos não são possíveis de serem
datados.
Algumas pistas para se localizar os salmos no tempo são descobertas
dentro do próprio texto. Uns refletem o ambiente da cidade, outros o do campo, como o
6- SICRE, José Luiz. Introdução ao Antigo Testamento. Vozes: Petrópolis, 1995. Pág. 304
16
que compara o sofrimento do povo ao arado que passa pelas costas do torturado
(129:3). Alguns são da Palestina (122), outros da época do exílio na Babilônia (137)
entre outras situações que podem ser detectadas.
Na época anterior à reforma de Josias, havia santuários locais que eram
centros de peregrinação, onde os sacerdotes recebiam o povo. Havia até mesmo
famílias sacerdotais que realizavam diversas funções, como o oferecimento dos
sacrifícios, celebrações cúlticas, intercessões a favor de enfermos, entre outras
necessidades que lhes fossem apresentadas. No tempo de Eli, segundo o relato do
livro de Samuel, um desses locais era Silo, onde Ana orou pedindo a Deus um filho.
Outro era Gilgal, local de sacrifícios. Durante o reinado de Josias, propriamente, um
santuário importante era Betel. De modo geral, havia santuários nos locais onde Deus
aparecera a seu povo, bem como em locais (como os já citados), onde a Arca da
Aliança estivera. Essa é a opinião, dentre outros autores, de E. Gestenberger, que
afirma que "parte dos nossos salmos vétero-testamentários surgiu nas províncias, mais
precisamente em santuários locais, como Siquém, Betel, Nobe, Dan e Hebron"7. A
maioria deles de lamentação dos pobres, atribuídos a Davi.
Com maior influência após o exílio, o templo de Jerusalém tornou-se um
ambiente favorável à criação de novos salmos. As grandes festas (Ázimos,
Pentecostes, Tabernáculos) e as peregrinações constantes ao templo eram desejo de
todo o povo, criando condições para um espírito de louvor ou lamento, dependendo das
emoções do fiel.
Todas as situações da vida aparecem nos salmos. A família reunida (128);
o colo da mãe (131); uma roda de amigos (33, 81); o luar (08); saudades da terra (42);
construtores e vigias (127). As situações cotidianas aparecem como local da revelação
de Deus, sejam alegres ou tristes. Cantar os salmos era falar de um Deus que vive a
vida de seu povo.
7- GESTENBERGER, Erhard S. Os Gêneros dos Salmos no Antigo Testamento. Faculdade de Teologia, 1982, apostila
17
Os salmos de lamento, propriamente ditos, apresentam as situações
difíceis de forma concreta, mas não individualista e detalhista. Isso facilitava a relação
do salmo com os sofredores de outra época ou que estivessem vivendo uma situação
na qual desejassem relê-los em seu próprio contexto.
Não há como estabelecer as situações históricas de todos os salmos de
lamentação. Ainda que alguns tenham sua origem no uso particular, muitos salmos de
lamentação foram feitos para o uso no culto, onde o geral prevalece sobre o particular.
Assim sendo, nem todos dão detalhes suficientes para se fixar sua data ou a situação
que os gerou. Todavia, A. Weiser apresenta algumas pistas existentes em vários
salmos, que permitem o levantamento de algumas possíveis datas e circunstâncias.
No caso das lamentações coletivas, "as informações do Antigo
Testamento não permitem nenhuma dúvida quanto à relação das lamentações com o
culto no santuário (cf. Js 7:6; Jz 20: 23, 26ss; 1 Sm 7:6, 1 Rs 8:33s; Jr 14). Em Jl 1:1ss,
fala-se do culto especial de lamentação por ocasião da praga de gafanhotos e da seca.
É convocado todo o povo para, na observância de vários ritos (jejum, rasgar as vestes,
vestir-se com saco), entoar a lamentação na casa de Deus. Nos salmos 74 e 79, em
que o objeto da lamentação do povo é a destruição e profanação do templo por
inimigos gentios, pode-se supor igualmente este tipo especial de culto de lamentação
(talvez após a catástrofe de 587). No caso do Sl 80, em que são mencionadas as tribos
de José e é esperada a teofania de Iahweh sobre a arca (vv. 2s, 4, 8, 20), trata-se, sem
dúvida, da festa da Aliança no santuário central da confederação das tribos da época
anterior a 721. Também os salmos 44; 83 e 106, em que se pressupõe a recitação da
tradição da história salvífica no ato cúltico (Sl 44:2ss; 83:7ss; 106: 6ss; cf. a alusão à
esperada teofania em Sl 44:24), devem ser entendidos em conexão com a festa da
Aliança da época pré-exílica, cuja ideologia ainda perdura igualmente nos salmos 74 e
79, contra a tradição da datação tardia desses salmos".8 A Festa da Aliança era um
8- WEISER, Arthur. op. cit., pág. 44
18
momento propício às lamentações, pois era uma ocasião de renovar os votos de
fidelidade e confessar pecados.
Também as lamentações individuais colocam-se claramente em sintonia
com o momento do culto. Pressupõem, em alguns casos, a presença da assembléia:
"cumprirei os meus votos para com o Senhor,
na presença de todo o seu povo" (Sl 116:14)
Apresentam o orante diante de Deus no local de adoração:
"Ó Deus, tu és o meu Deus, eu te procuro.
Minha alma tem sede de ti,
minha carne te deseja com ardor,
como terra seca, esgotada, sem água.
Assim, eu te contemplava no santuário,
vendo o teu poder e a tua glória" (Sl 63:3)
No contexto de 1Sm 1s, também pode-se depreender que, desde os
tempos mais remotos, a festa anual de Iahweh no santuário da arca da confederação
das tribos era um dos momentos especiais de proclamar a oração de súplica no
contexto da celebração litúrgica. Segundo A. Weiser, essa circunstância explicaria o
fato de algumas súplicas individuais terminarem com uma intercessão por todo
"Israel"9. Isto é, a oração individual, ocorrendo na festa popular, terminava sempre por
envolver todo o povo. Esta seria mais uma prova da natureza comunitária da fé israelita
em Iahweh.
Como já foi mencionado, os pequenos santuários locais possibilitaram o
surgimento de muitos salmos atribuídos a Davi. De forma geral, há uma relação
bastante estreita entre os salmos e Davi a partir da própria tradição de Israel. A Bíblia
9 - idem, pág. 45
19
Hebraica atribui a Davi 73 salmos e a tradução grega do século III a.C., 82 salmos. No
tempo de Jesus, todos os salmos eram atribuídos a Davi (conforme Lucas 20:42).
Como muitos salmos eram anônimos ou cuja autoria perdera-se no
tempo, Davi tornou-se um modelo para o povo e um inspirador de canções, recebendo
por isso o mérito dos salmos sem autoria conhecida. Apesar da existência anterior
dessas artes no meio do povo, Davi ganhou a reputação de maior salmista, poeta,
músico, organizador do culto e do canto litúrgico em Israel.
Aparecem ainda como autores Moisés (90), Salomão (72, 127) e as
corporações musicais dos Filhos de Coré, Asafe, Etã, Hemã, Iedutum. "A autoria dos
salmos atribuídos a Davi, Asaf e outros não é questão de fé. Seria, sem dúvida, um
grande auxílio para a interpretação dos salmos se soubéssemos quem compôs cada
um deles. Na verdade, o nome dos autores devia ser recordado muito raramente. Na
maior parte dos casos caiu facilmente no esquecimento. Nos títulos foram aceitas
muitas vezes tradições não críticas, formadas no decurso da transmissão e do uso dos
textos".10
Os salmos, de forma geral, eram usados e recriados pelo povo na casa,
no campo, na cidade, no templo. As indicações nos títulos colocam informações de uso
litúrgico: altura da voz, melodia, instrumentos apropriados, contexto do salmo (origem)
para identificá-lo com o autor e com quem o canta no momento.
O uso de instrumentos no culto do templo era bem diversificado, como
atesta a doxologia final (salmo 150). O povo cantava de memória, às vezes repetindo
em forma antifônica os versos cantados pelo dirigente ou concluindo as estrofes com
"Amém, amém!". Havia danças (150: 4); romarias (122), procissões (68).
Expressões corporais são citadas: bater palmas (47); erguer as mãos
(63:5); inclinação e prostração (95:6; 22:30). Após o exílio, adotou-se ainda o hábito de
orar voltado para o local do templo, orientando o corpo, três vezes ao dia.
10- SHILLING, Otimar. op. cit., pág. 383
20
Segundo N. Gottwald, em seu livro Introdução Socioliterária à Bíblia
Hebraica, o livro de salmos é, com freqüência, denominado Hinário do Segundo
Templo, tendo em vista que a compilação e redação dos salmos estava completada
nesse período (aproximadamente 325-250 a.C.). Apesar de muitos salmos serem,
como já foi dito, do período pré-exílico, a maioria deles é de origem pós-exílica e o
Saltério apresenta-se também com um sentido mais completo dos usos pós-exílicos.
21
2º Capítulo
Os Salmos de Lamentação e o Sofrimento Humano
Os salmos de lamentação são os mais numerosos do Saltério. Pode-se
encontrar duas classes de lamentações: as individuais (3; 5; 7; 13; 17; 22; 25; 26; 31;
35; 38; 39; 42s; 51;55; 57; 59; 77; 88; 123; 140; 141; 142; 143) e as coletivas (44; 74;
79; 80; 83 [90]; 137). Nos outros gêneros literários também encontram-se motivos de
lamentação coletiva (21: 2ss; 33:20ss; 123: 3ss; 126:4ss; 129:4s); nas intercessões
pelo rei (20:2ss; 28:8s; 61:7s; 63:12; 72; 84:9s). Também encontram-se lamentações
individuais misturadas aos cantos de ação de graças (Sl 6; 13; 22; 28; 30; 31; 41; 54;
56; 61; 63; 64; 69; 71; 86; 94; 102; 120; 130); aos hinos (Sl 9:13; 104:31ss; 139:23s) e
com liturgias (Sl 36:2ss; 77:2ss; 118:25, etc).
Pelo fato de haver mistura de gêneros literários, as listas dos salmos de
lamentação variam muito entre os diversos autores que trabalham o Saltério. Todavia,
uma certeza é a de que o número de lamentações individuais é maior do que o de
lamentações coletivas. M. Girard, em seu livro Como ler o Livro dos Salmos - Espelho
da Vida do Povo, apresenta como salmos de lamentação (aos quais ele chama salmos
de libertação) os seguintes poemas: 3, 4, 5, 6, 7, 9-10, 11, 12, 13, 16, 17, 18, 20, 21,
22, 23, 25, 26, 27, 28, 30, 31, 32, 34, 35, 36, 38, 39, 40, 41, 42-43, 44, 51, 54, 55, 56,
22
57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 66, 68, 69, 70, 71, 73, 74, 76, 77, 79, 80, 83, 85, 86, 88,
89, 90, 94, 102, 106, 107, 108, 109, 115, 116, 118, 119, 120, 123, 124, 125, 126, 129,
130, 131, 137, 138, 139, 140, 141, 142, 143, 144. Isso totaliza 89 salmos. Apesar de
haver outras listas, essa serve como base para que se perceba como o tema do
sofrimento é presente na vida e na oração do povo da Bíblia no Antigo Testamento.
As causas do sofrimento são tão variadas no mundo do Antigo
Testamento quanto o são em nossos dias. Talvez até mesmo sejam em menor número
do que se encontra na atualidade. Contudo, as reações das pessoas ontem e hoje são
bastante semelhantes.
Nos salmos, os sofredores buscam a solução para sua dor de várias
maneiras. Uma delas é a procura da causa de tantas angústias. Entendendo a causa, o
sofredor pode encontrar a solução para o problema que o aflige. Algumas vezes,
reconhecendo em si mesmo o cerne do seu sofrer, o salmista apresenta-se a Deus
penitente, pedindo perdão:
"pequei contra ti, contra ti somente,
pratiquei o que é mau aos teus olhos,
para que tenhas razão com tua palavra
e permaneças puro no teu julgamento. (Sl 51:6)
Outras vezes, contudo, acusa os inimigos pelas suas tragédias e pede
vingança a Deus:
"Ouve, ó Deus, a minha prece,
dá ouvidos às palavras da minha boca!
Pois estranhos se levantam contra mim
e os violentos perseguem a minha vida. " (Sl 54:4-5)
"Iahweh, acusa meus acusadores,
combate os que me combatem!" (Sl 35:1)
23
Para se entender melhor as nuances presentes nos salmos de
lamentação, serão apresentadas as causas mais importantes do sofrimento que se
pode apreender em sua leitura. Nesse caso, todo o contexto histórico do Antigo
Testamento será analisado como o pano de fundo das orações dos salmistas,
procurando paralelos nos salmos de lamentação para as diversas situações
encontradas, a fim de exemplificá-las. Isso porque os salmos de lamentação não são
isolados da vida e da trajetória da fé e da teologia em Israel, como até aqui já se pôde
notar. Conforme a sociedade caminha ao longo dos anos, mudam-se perspectivas e
também as formas de encarar a vida, a fé e a questão do sofrimento.
Após serem apresentadas as causas do sofrimento, serão analisadas
também as reações dos salmistas a essa questão, procurando a prática da fé por meio
da forma das orações em Israel.
2.1. Causas do sofrimento no Livro dos Salmos
São muitas as causas do sofrimento nos salmos. De modo geral, tudo o
que ocorre na vida cotidiana reflete-se, positiva ou negativamente, na vida espiritual
das pessoas, pois não há em Israel a distinção que hoje normalmente se faz entre o
que é secular e o que é sagrado. A vida, em toda sua extensão e aspectos, é religião, é
fé.
2.1.1. Perdas Diversas e Perseguições
2.1.1.1 Perda de Bens
No início do desenvolvimento do Antigo Testamento, as riquezas tinham
profunda relevância na vida do povo. Eram sinal da bênção de Deus sobre a vida do
homem. Perder bens significava, assim, a ausência da proteção divina e uma ameaça à
vida. Por isso, o homem do Antigo Testamento entende que deve lutar por preservar e
24
adquirir bens, que vão desde o gado até aos escravos. Esses bens eram familiares,
pois a organização inicialmente era patriarcal.
A posse dos bens era fator de relevância social. Note-se que os amigos e
conhecidos de Jó o abandonaram ante sua decadência. Essa perda foi tão profunda
que ele afirma sua nudez perante a sociedade, dizendo que nu iria morrer. Nesse
contexto, a pobreza era o maior dos males, pois significava total ausência da fidelidade
e bênção divinas.
As mudanças sociais ocasionaram transformações do pensamento vétero-
testamentário e, consequentemente, na forma de os autores perceberem a questão do
sofrimento. Inicialmente, as riquezas eram especialmente os rebanhos e as disputas se
davam por pastagens, água e gado. Quando Israel foi se estabelecendo em Canaã, as
terras e casas foram acrescidas à lista de propriedades. Temia-se calamidades que
prejudicassem a colheita ou devastassem as povoações.
Lado a lado com o desenvolvimento da monarquia, que ocasionou a
concentração de riquezas e o desmantelamento da sociedade patriarcal e tribal, as
invasões estrangeiras (assírios e babilônios) e a transformação da fé e do pensamento
de Israel trouxeram profundas e radicais modificações em relação ao conceito de
riqueza e bênção de Deus. Começou a surgir certa desconfiança em relação à riqueza.
A pobreza revelou certas virtudes. Os agricultores empobrecidos do reino e a
comunidade do exílio descobriram um Deus que se compadece dos pobres,
injustiçados e desprezados:
"Ele ergue do pó o desvalido
e do monturo o necessitado;
para o assentar ao lado ao lado dos príncipes,
sim, com os príncipes do seu povo." (Sl 113: 78)
"Eu sou pobre e necessitado;
porém o Senhor cuida de mim". (Sl 40:17)
25
O acúmulo de riquezas passa a assumir um caráter negativo para os
salmistas, que criticam os poderosos que apenas ajuntam mais e mais, fomentando a
corrupção e o afastamento de Deus. Ao mesmo tempo, os orantes sentem-se divididos
com a aparente bênção que percebem na vida dos impiedosos e da dificuldade que
notam em sua própria existência. Esse conflito os leva a refletir e orar a Deus:
"Eis que os ímpios são assim,
e, sempre tranqüilos, ajuntam riquezas.
De fato, inutilmente conservei o coração puro,
lavando na inocência as minhas mãos.
Sim, sou molestado o dia inteiro,
e castigado a cada manhã...
Se eu dissesse: 'Vou falar como eles',
já teria traído a geração dos teus filhos." (Sl 73:12-15)
Para entender-se melhor, contudo, o valor dos bens para a mentalidade
israelita e os efeitos de sua perda, outras considerações devem ser feitas. O israelita
entendia que poderia ser privado de seus bens por manobras dos poderosos, invasões
estrangeiras, catástrofes naturais e até mesmo por sua própria inabilidade e descuido.
Apesar da vasta abordagem da importância das riquezas para os autores
e a sociedade vétero-testamentária, o estado de alma dos que as perderam não é
descrito em pormenores em nenhum texto bíblico. Mesmo no relato de Jó, as reações
de atirar pó ao ar, sentar no chão em silêncio, rasgar as roupas, raspar a cabeça são
manifestações de dor e sofrimento convencionadas pela sociedade, a exemplo do
jejum e das vestes de luto.
Todavia, um fator relevante no caso de Jó e que transparece em alguns
salmos como pensamento generalizado é que a perda das posses também relaciona-
se com Deus: "O Senhor deu, o Senhor tomou". Entendendo que Deus é o criador e
sustentador da vida, que dele vêm as riquezas e as condições vitais à sobrevivência, se
26
a calamidade vem é porque Deus se retirou. A pobreza torna-se, por isso, sinal visível
do abandono de Deus. Daí, em alguns textos, o pobre ser desprezado e odiado. A
perda dos valores torna-se, primordialmente, uma questão de fé: o que aconteceu na
relação entre a pessoa e Deus para que ela fosse castigada? Esse é, inclusive, um
questionamento que o orante faz a Deus.
Tanto isso é verdade que o culto torna-se o local preferido para expressar-
se a dor de qualquer natureza. Toda ameaça, sofrimento, insegurança encontram lugar
na oração. O lamento é dirigido a Deus ou a seu representante (o sacerdote ou o
profeta):
"Inclina o teu ouvido, Iahweh, responde-me,
pois eu sou pobre e indigente!" (Sl 86:1)
"Iahweh, meu Deus salvador, de dia grito a ti,
de noite fico diante de ti:
que a minha prece chegue à tua presença,
inclina teu ouvido ao meu clamor." (Sl 88: 2,3)
Portanto, qualquer tipo de perda, até mesmo econômica, leva o israelita a
buscar a Deus. Nada na vida existe para esse povo, que não tenha ligação direta com
sua fé.
2.1.1.2. Perda de Amigos e Parentes
Mas as perdas não se limitam apenas a propriedades. Quando alguém
perdia um parente ou amigo querido, lamentos eram entoados. O mais conhecido deles
é o de Davi, por Jônatas (cf. 2 Sm 1:12ss). Havia o costume de contratar pranteadores
e adotavam-se práticas rituais como rasgar as vestes, gritar, colocar cinza sobre a
cabeça, etc. A lamentação, dependendo do morto, poderia ter alcance nacional, como
no caso da morte dos reis.
27
Importante notar que, no início, Iahweh é o Deus apenas dos vivos. Os
mortos estavam fora de seus domínios e não podiam louvá-lo. Assim, as lamentações
tinham um fim nos enlutados. Segundo o entendimento do salmista, a morte não tinha
nenhum valor para Deus, pois dos mortos Ele não pode receber nenhum louvor ou
honra:
"Sou visto como os que baixam à cova,
tornei-me um homem sem forças:
entre os mortos está o meu leito,
como as vítimas que jazem no sepulcro,
das quais já não te lembras,
porque foram separadas de tua mão" (Sl 88: 5,6)
"Os mortos já não louvam a Iahweh,
nem os que descem ao lugar do silêncio.
Nós, os vivos, nós bendizemos a Iahweh,
desde agora e para sempre!" (Sl 115:17-18)
2.1.1.3. Perda da Honra
A perda de valores não tangíveis também tem lugar no Israel antigo. A
honra, por exemplo, é de vital importância. Relaciona-se à virilidade e à autoridade
familiar do homem israelita. Abundância de posses dá-lhe fama e respeito e confirma
sua fidelidade a Deus. Para a mulher, a honra consiste em ter muitos filhos, governar
bem o lar, ser fiel ao marido e manter-se em bom estado de ânimo.
A questão da honra é fundamental, pois sua perda ocasionava grandes
ruínas. Há casos no Antigo Testamento, como a sedução de Tamar por Amnon ou o
ato vil de raspar a metade das barbas e rasgar as roupas dos mensageiros de Davi,
28
praticado pelo rei amonita Hanum. Tais casos de desonra trouxeram morte e guerra,
respectivamente.
Humilhações como ter a barba raspada ou as roupas cortadas eram muito
grandes naquele contexto. A barba era sinal de autoridade e respeito. Outros atos
considerados humilhantes eram cuspir ou bater no rosto de alguém, tirar-lhe os
sapatos, fazer uma imprecação ou calúnia. E mesmo a perda de bens poderia assumir
um caráter de perda de honra, pois poderia simbolizar a incompetência do israelita em
manter a herança dos pais. Da mesma forma, perder a guerra, família ou pátria para
os inimigos equivalia a um insulto verbal e eram fatos absolutamente vergonhosos. A
maior de todas as humilhações seria, sem dúvida, a negação de sepultamento a um
morto. Exemplos desse tipo de perda são abundantes nos salmos de lamentação:
"Ó Deus, as nações invadiram a tua herança,
profanaram o teu sagrado templo,
fizeram de Jerusalém um monte de ruínas (...)
Tornamo-nos ultrajes para nossos vizinhos,
divertimento e zombaria para aqueles que nos cercam. " (Sl 79: 1, 4)
"Iahweh, teus inimigos ultrajaram,
ultrajaram as pegadas do teu ungido". (Sl 89:52)
"Lá, os que nos exilaram pediam canções,
nossos raptores queriam alegria:
'Cantai-nos um dos cânticos de Sião."
Como poderíamos cantar um canto de Iahweh
numa terra estrangeira?" (Sl 137: 3,4)
Esses salmos mostram as humilhações sofridas por Israel por causa das
invasões estrangeiras. Derrotados, sofriam abusos dos que desejavam até mesmo que
29
eles se alegrassem e cantassem músicas relacionadas à sua vida anterior, de liberdade
e culto. Era-lhes uma grande vergonha perante as demais nações.
Outra grave questão relacionada à honra e que encontra grande respaldo
nos salmos de lamentação refere-se aos relacionamentos interpessoais. Nos dias
atuais, não são raros os casos de pessoas que, desiludidas por causa de uma relação
mal resolvida, dão cabo da própria existência. Esse sentimento pode ser percebido em
diversos salmos de lamentação. Ser desprezado, rejeitado, enganado, traído,
perseguido e odiado são termos largamente utilizados pelos salmistas.
Os salmistas percebem no homem um insidioso desejo de sobrepujar,
dominar, constranger e cercar por todos os lados o seu semelhante. Tanto maior o seu
poder, maior sua necessidade interior de impor-se arbitrariamente. É o desejo de
dominar, de ser mais poderoso que os demais, a causa da opressão imposta pelos
ímpios aos humildes do povo. Os salmistas repetem a Deus as palavras com que os
soberbos se gabam de sua posição e pedem a justiça divina a favor do povo:
"Até quando os ímpios, Iahweh,
até quando os ímpios irão triunfar?
Eles transbordam em palavras insolentes,
todos os malfeitores se gabam!" (Sl 94: 3,4)
"Eles tramam um plano contra o teu povo,
conspiram contra os teus protegidos,
e dizem: 'Vinde, vamos removê-los do meio das nações,
e o nome de Israel nunca mais será lembrado!'" (Sl 83:4,5)
As relações sociais no Israel Antigo eram rígidas e, em muitos níveis, até
inquestionáveis. O homem que possuísse um escravo poderia fazer dele o que bem
entendesse. A mulher, moral e socialmente subjugada, deveria calar-se perante o
homem. Na visão do Antigo Testamento, a mulher queixa-se principalmente dos
30
problemas da gravidez. Raramente acontecia uma rebelião clara contra o cônjuge, mas
a mulher estava exposta a todos os riscos. Um ataque de ciúmes bastava para
confrontá-la perante o sacerdote; atitude ostensivamente humilhante. A lei era dura e
radical: a mulher adúltera precisava ser apedrejada; o divórcio poderia ser um
expediente utilizável a qualquer momento.
Outra razão para grande sofrimento era a esterilidade, sempre atribuída à
mulher. Era considerado um castigo divino o fato de não gerar filhos, como se Deus
fechasse seu ventre. Aliás, essa expressão aparece em diversos relatos. Consistia real
maldição para um matrimônio não ter rebentos.
Todavia, como bem lembra E. Gestenberger, a vida da mulher vétero-
testamentária não se constituía num grande e interminável tormento. Há várias
referências a mulheres que tomavam decisões importantes, cantavam e dançavam em
agradecimento por vitórias nas guerras e dificuldades, como Débora, Miriã, a filha de
Jefté e outras.
2.1.1.4. Perda da Unidade e Convívio Familiares
Outro fator que poderia gerar o sofrimento no círculo das relações sociais
e familiares era a violência entre irmãos. A perda da unidade familiar era um grande
desgosto para uma sociedade baseada na família, como a sociedade patriarcal e tribal
de Israel. Não raro, encontram-se nos textos do Antigo Testamento narrativas de
disputas por herança, prestígio, poder, preferências. A relação pai-filhos bem poderia
ser outra fonte de angústias. Mesmo a rigidez da instituição familiar não pôde evitar
conflitos como os de Davi/Absalão, Davi/Adonias, que abalaram toda a nação. Embora
a Bíblia não trate com pormenores essa situação, esses exemplos atestam a existência
do problema e a dor gerada por ele. Comovente é o relato do lamento de Davi por
Absalão, mesmo que a morte do filho significasse paz para seu reinado.
De modo geral, pode-se perceber que a sociedade familiar protegia os
seus membros mais fracos. Há várias ordenanças de apoio e compaixão pelos
31
mesmos. Ainda assim, alguns doentes eram retirados do convívio em sociedade.
Determinados defeitos impediam o acesso à vida cúltica do povo. Diversos salmos
relatam a aflição dos abandonados e rejeitados:
"Afastaste de mim meus conhecidos,
tornaste-me repugnante a eles (...)
Tu afastas de mim meus próximos e amigos,
a treva é a minha companhia." (Sl 88:9,19)
"Até meu amigo, em quem eu confiava,
que comia do meu pão, vangloria-se de mim." (Sl 41: 10)
Mesmo a posição de chefe do clã não isolava o pai do sofrimento. A
rebelião dos filhos ou disputas entre si poderiam atingí-lo gravemente. Esses fatores
tomam-se de relevância quando se percebe a força da família na história israelita. Sua
desestruturação era prenúncio de grandes calamidades.
A nível de relações entre clãs e entre as tribos, havia também questões de
conflito e sofrimento. Alianças mal-estruturadas, políticas internas, posses de territórios,
divergências cultuais, tudo isso poderia gerar problemas e até guerras.
Mesmo com a monarquia fazendo diminuir a intensidade desses
problemas internos, por centralizar o poder e eliminar em parte os conflitos internos, em
si mesma ela encerrava também motivos de funestas preocupações, atestadas pelos
profetas. É que essa centralização, em muitos casos, trouxe tirania e opressão ao invés
de representar os anseios de igualdade da população, especialmente a do campo.
Muitos agricultores perderam tudo o que tinham. O próprio templo tornou-se fonte de
opressão nas mãos de sacerdotes descomprometidos com a aliança de Deus.
Por causa dessas tensões internas, o clamor dos profetas vai acentuando
a observância da lei. Esse fato pode ser percebido até mesmo nos salmos, como o
32
119, uma exaltação acróstica da lei, cujo fio condutor é o pensamento de que a
obediência à lei produz bênção divina e felicidade suprema.
2.1.1.5. Perseguições dos Inimigos
Um tipo de sofrimento que deixou paradoxalmente algumas das mais
lindas poesias de Israel é a perseguição dos inimigos, sejam eles internos ou externos,
pessoais ou coletivos. Os salmistas falam do risco de vida que correm:
"Fraude e astúcia lhe enchem a boca,
sob sua língua há opressão e maldade.
Põe-se em emboscada entre os juncos
e às escondidas massacra o inocente". (Sl 10: 7-8)
Assim, o salmista narra a forma com que o pobre é oprimido: o inimigo o
engana com palavras ou tece contra ele falsas acusações. Arma-lhe tocaias e ameaça
sua vida.
Algumas vezes, o ataque dos inimigos é tão forte e incisivo que o orante
precisa usar imagens, metáforas, para expor a Deus o sentimento de que foi tomado:
"Cercam-me touros numerosos,
touros fortes de Basã me rodeiam;
um leão escancarou a boca contra mim,
um leão que dilacera e ruge". (Sl 22: 13,14)
A. Weiser entende que é duvidoso pensar nessas imagens como sendo
referências a demônios. Também para ele, "as imagens dos fortes touros de Basã, a
fértil região de pastagens a leste do Jordão, conhecida pela raça forte de seu gado, e
do leão que ruge feroz, não devem ser interpretadas como palavras ofensivas aos
33
adversários, mas expressão do angustiante temor que o acomete [o orante] ao pensar
neles"11.
Arma perigosa que angustia o sofredor vétero-testamentário é o falso
testemunho, tão perigoso quando a espada. Era um expediente que poderia tornar-se
mortal contra o indivíduo se seus inimigos desfrutassem de uma posição de autoridade
ou respeito ante a comunidade. Por isso, verdadeiro terror domina os orantes quando
se vêem vítimas do falso testemunho:
"contra mim se levantam falsas testemunhas,
respiram violência contra mim". (Sl 27: 12)
"afiam a língua como serpentes,
sob seus lábios há veneno de víboras". (Sl 140: 4)
O falso testemunho é grave ameaça à vida do homem no Antigo
Testamento. Relatos como o de Nabote, morto por causa das falsas testemunhas
contratadas pela perversa rainha Jezabel, não faltam para dar razão ao agoniado
clamor do salmista perseguido por caluniadores. Algumas vezes, para defender-se
perante Deus, o salmista pede para si a morte, se forem verdadeiras as acusações:
"Iahweh, se fiz algo...
se em minhas mãos há injustiça,
se fiz mal àquele que (agora) se vinga de mim,
se oprimi aquele que me aflige sem razão,
que o inimigo me persiga e me alcance!
Que me pisoteie vivo por terra
e pise minha honra na poeira!" (Sl 7:4-6)
Esse protesto de inocência não se refere à natureza do orante como um
todo, mas apenas às acusações específicas de que este é vítima. Ele, assim, se
11- WEISER, Arthur. op. cit., pág. 160
34
submete ao julgamento de Deus. Nesse salmo, não é tanto o perigo de vida que
atormenta o salmista quanto a calúnia que abala sua honra.
Há ainda no Saltério outros salmos que pedem a Deus que julgue as
ações de quem ora, como forma de protestar inocência perante os adversários:
"Examina-me, Iahweh, coloca-me à prova,
perscruta meus rins e meu coração." (Sl 26:2)
"Podes sondar-me o coração, visitar-me pela noite
e me testar: nada encontrarás em mim." (Sl 17:3)
2.1.2. Doenças e Calamidades A doença é um tema constante em toda a Bíblia. Naqueles tempos
longínquos, havia uma medicina elementar, mas muitas doenças proliferavam, devido à
pobreza causada por calamidades ou pesados tributos cobrados pelos reis. Um
agravante para o caso das doenças é que muitas delas impediam o acesso ao culto (cf.
Lv 13:45ss) e a vida em família, conforme já mencionado.
2.1.2.1. Doenças e Morte
Nos salmos, transparece a forma como a doença afeta a relação com
Deus e a maneira de viver a fé nesses tempos de crise. A doença poderia ser vista
como um castigo de Deus, visão esta muito comum. No caso de Jó, Satanás apresenta
a Deus o argumento de que o homem é capaz de suportar tudo, desde que não seja
atingido na própria carne:
"Um homem dá tudo para salvar um pouquinho de sua vida. Aposto que
se lhe arruinares a saúde, ele te amaldiçoará". (Jó 2:4)
Algumas doenças eram especialmente temidas: lepra, tumores,
tuberculose e doenças mentais. A lepra e alguns distúrbios mentais levavam ao
isolamento total do indivíduo. Outras doenças como paralisias e defeitos congênitos
35
poderiam levar à mendicância, no caso de ocorrerem em famílias não abastadas.
Diversas enfermidades também ocasionavam a desqualificação cúltica de seus
portadores.
As causas das doenças para o homem vétero-testamentário estavam em
diversos níveis. Ao ler-se o Sl 38, pode-se observar que uma delas era o pecado:
"Iahweh, não me castigues em tua cólera,
não me corrijas em teu furor.
Tuas flechas penetraram em mim,
sobre mim abateu-se tua mão:
nada está ileso em minha carne, em tua ira,
nada de são em meus ossos, em meu pecado." (Sl 38: 2-4)
O sentimento do salmista é bem descrito por A. Weiser, quando afirma:
"Percebeu claramente a sua situação desesperadora entre a ira de Deus e a opressão
do seu pecado. Assim, vê na doença um castigo merecido. A tremenda seriedade de
sua situação transparece do fato de o orante ter a impressão de estar ameaçado de
morrer, afogado no mar da culpa ou de sucumbir sob o enorme peso do pecado".12
Outro exemplo desse sentimento aparece no Sl 6:
"Iahweh, não me castigues com tua ira,
não me corrijas com teu furor!
Tem piedade de mim, Iahweh, que eu desfaleço!
Cura-me, pois meus ossos tremem,
todo o meu ser estremece,
e tu, Iahweh, até quando?" (v. 2-4)
e ainda no salmo 31:11:
"Eis que a minha vida se consome em tristeza,
e meus anos em gemidos,
36
meu vigor se enfraqueceu por culpa,
e meus ossos se consumiram".
A existência da doença é prenúncio de morte. E o temor da morte é algo
patente nos salmos. A morte significa o fim de toda relação com Deus, o fim de todos
os projetos e planos, como afirma Eclesiastes:
"Tudo o que tua mão encontra para fazer,
faze-o com tuas próprias forças,
pois não há obra, nem avaliação, nem saber, nem sabedoria
no Sheol, para onde irás." (Ec 9:10)
A esperança do salmista era a de receber de Deus a resposta a seu
pedido enquanto ainda vivesse, ou seria tarde demais:
"Eu creio que verei a bondade de Iahweh
na terra dos vivos". (Sl 27:13)
Assim, o homem do Antigo Testamento esforça-se por preservar a vida e
acabar com as ameaças a ela. Há indícios de atividade terapêutica em diversos relatos
vétero-testamentários. Os próprios sacerdotes eram diagnosticadores de doenças e até
mesmo profetas, como Elias e Eliseu, realizaram atividades semelhantes e indicaram
remédios. Mesmo assim, as doenças cuja natureza indicavam a ausência de cura ou a
presença de forças malignas eram motivos de grande angústia.
Um dado importante é que, no mundo dos salmistas, a atuação das forças
malignas depende de Iahweh. Um exemplo é o relato da doença mental de Saul,
quando o escritor diz que da parte de Deus é que vinha o espírito maligno. Por isso,
nesses casos, o clamor é insistente para que Deus elimine a doença (ou qualquer outro
fator de sofrimento), haja visto ser Ele o causador dela, como o salmista confessa:
12- WEISER, Arthur. op. cit., pág. 238
37
"Afasta a tua praga de mim,
eu sucumbo ao ataque de tua mão" (Sl 39:11)
ou o exemplo ainda mais claro em duas citações de Jó:
"O Senhor deu, o Senhor o tirou." (Jó 1:21)
"Sempre aceitamos a felicidade como um dom de Deus.
E a desgraça? Por que não a aceitaríamos? (Jó 2:10)
Não se percebe referências diretas a demônios como causadores de
doenças nos salmos. Esse conceito só aparecerá mais tarde.
O conceito da doença como castigo de Deus pelo pecado encontra
também respaldo em várias listas de bênçãos e maldições encontradas na Lei, que
condicionavam o recebimento da graça de Deus a uma vida de acordo com seus
princípios. Caso contrário, o castigo certamente viria, sob a forma de doenças ou de
calamidades nacionais.
O conceito de morte vétero-testamentário é por demais diferente do
conceito do cristianismo atual; por isso, este tema merece um pouco mais de atenção,
a fim de se reverem algumas das interpretações correntes sobre muitos salmos que se
referem à morte.
Os mortos, no pensar do homem hebraico, são impuros. Tanto é fato isto
que diversas purificações deveriam ser feitas pela pessoa que tocasse um cadáver ou
o lugar onde o cadáver estivera. Um sacerdote não poderia de forma alguma
contaminar-se por um morto que não fosse seu parente direto. Nem por uma irmã
casada poderia contaminar-se, mas apenas se esta fosse virgem. A ordem expressa de
Iahweh era a de não ferir o corpo nem marcar-se por causa dos mortos.
Feiticeiros e necromantes eram condenados à morte, pois os mortos não
deveriam ser invocados, sob nenhum argumento. Um único caso relatado na Bíblia
38
sobre isso é o do rei Saul, quando procurou falar com Samuel ante o abandono que
sofrera da parte de Deus. A resposta do fantasma foi a mesma que ele já conhecia.
Essa narrativa mostra que "dos espíritos dos mortos não se pode esperar nada que
ultrapasse aquilo que os mensageiros vivos [e a palavra deixada pela Lei e pelos
profetas] atestam".13
Nos livros da Lei, toda prática de invocação do poder ou da volta dos
mortos é proibida. O culto de Iahweh é totalmente contrário a todo culto aos mortos,
sendo mesmo intolerante a esse respeito. Essa oposição faz frente às religiões dos
povos em redor de Israel, onde os mortos eram venerados e os deuses também
possuíam certas festas onde se chorava sua morte ritual e celebrava-se seu novo
nascimento. Também como relato desse tipo de crença, pode-se lembrar o Fênix da
mitologia grega, o qual morria consumido em chamas, para nascer de novo das
próprias cinzas.
A morte, assim, era algo sagrado para os povos vizinhos de Israel.
Justifica-se, portanto, tanto empenho de Iahweh em combater tais práticas. Ele é "o
Deus dos vivos" e o "Deus que vive para sempre", o "Deus vivo". E também por esse
motivo, os mortos são considerados impuros, pois não têm, nem mesmo podem ter,
comunhão com Iahweh, estando desqualificados culticamente.
É importante, pois, verificar o que é estar morto, na concepção israelita. A
ameaça da morte, como já foi dito, era evitada a todo custo. A vida sempre era
defendida por estar em conexão com Deus.
No salmo 88, o orante dirige a Iahweh perguntas, confirmando a
necessidade de livramento da morte, pois Deus nada ganharia quando ele baixasse à
sepultura:
"Entre os mortos está o meu leito,
como as vítimas que jazem no sepulcro,
das quais já não te lembras,
13- WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 1975, pág. 144
39
porque foram separadas da tua mão. (...)
realizas maravilhas pelos mortos?
As sombras se levantam para te louvar?
Falam do teu amor nas sepulturas,
da tua fidelidade no lugar da perdição?
Conhecem as tuas maravilhas nas trevas,
e a tua justiça na terra do esquecimento?" ( SL 88:6,11-13)
A expressão utilizada pelo salmista: " foram separadas da tua mão"
mostra que os mortos, em sua concepção, estavam fora dos limites da atuação do
poder de Deus. No mundo dos mortos, não há lugar para realização alguma14, nenhum
anúncio de louvor a Deus ou esperança de livramento. Veja-se a oração de Ezequias,
em Is. 38:18:
"O mundo inferior não mais te confessa.
E a morte, ela ainda te exalta?
Os que desceram à cova não mais esperam
a tua união fiel.
Só quem vive, quem vive é que te louva,
assim como eu hoje ainda o estou fazendo."15
Assim, conclui H. Wolff, há uma oposição entre o homem vivo que pode
louvar a Deus e o homem morto, excluído do louvor a Deus. Abandono e solidão
também são formas de morte. Portanto, viver, no Antigo Testamento, significa ter
relacionamento. Especialmente, relacionamento com Deus. Esta visão da morte vai
alterar-se quando do advento do cristianismo, especialmente quando a influência do
pensamento grego acentuar-se ao longo da história.
14 - vide citação supra do texto de Eclesiastes 15- WOLFF, Hans Walter. op. cit., pág. 146
40
Apesar de afirmar que o morto é, por natureza, impuro e negar-se a
qualquer tentativa de aproximação entre o mundo dos vivos e dos mortos, o homem
vétero-testamentário tem a convicção de que a morte não é um poder autônomo. Para
ele, o mundo dos mortos não tem um senhor independente. Um vazio surge nessa
linha de pensamento, que os fiéis a Iahweh buscam responder através de sua fé. Seu
primeiro passo é, em face da morte, buscar o Deus que é a fonte da vida:
"pois a fonte da vida está em ti,
e na tua luz nós vemos a luz". (Sl 36:10)
"Responde-me depressa, Iahweh,
pois meu alento se extingue.
Não escondas tua face de mim,
eu ficaria como os que baixam à cova". (Sl 143:7)
E apesar da consciência de que a mão de Iahweh não alcançará os
mortos, os salmistas crêem que apenas Ele ordena a entrada de alguém à sepultura ou
coloca a pessoa em condição de morte (em situação de miséria, perseguição,
abandono, grave enfermidade, etc.):
"Puseste-me no fundo da cova
em meio a trevas nos abismos". (Sl 88:7)
"tu me colocas na poeira da morte" (Sl 22:16b)
É uma certeza básica dos fiéis que Deus determina quem vai ou não ao
reino dos mortos. Aliás, mesmo que esse reino não faça parte dos interesses de
Iahweh, no sentido de que de lá não recebe honra ou louvor, a morte não está imune
ao seu poder, pois Ele tem acesso a esse lugar, como o salmista declara:
"Se subo ao céu, lá estás,
41
se me deito no Sheol, aí te encontro". (Sl 139:8)
Já no livro de Amós, a mensagem profética afirma (Am 6:9 e 9:2) que
Deus é quem determina sobre a morte de uma pessoa e, se os rebeldes buscassem na
morte proteção contra a ação divina, no Sheol a mão de Deus os alcançaria. Isso
porque, "se apenas Javé é Deus, tem que surgir a compreensão de que também a
morte não pode garantir uma área de domínio, na qual Javé não possa entrar. Esta
compreensão totaliza não só a ameaça de que quanto a Javé não pode haver evasão,
mas também se torna a certeza da salvação cantada num hino (1 Sm 2:6):
"Javé faz estar morto e vivo,
lança ao mundo dos mortos e conduz de volta daí".16
Supera-se a aflição da morte pela certeza de que a comunidade de
Iahweh não seria destruída da face da terra por causa da fidelidade de Deus, baseada
no legado das promessas recebido dos antepassados e transmitido de geração em
geração. Ficar sem memória é verdadeira morte, pois para o homem vétero-
testamentário, "a tua graça [de Deus] é melhor que a vida" (Sl 63:4). Daí volta-se
também à necessidade de garantir uma grande posteridade através de muitos filhos.
Uma outra possibilidade além da vida terrena e do Sheol surgiu com as
reflexões sobre a questão do arrebatamento, a partir de casos como o de Elias e
Enoque. Essa união com Deus é tal que nem a morte física pode conter. O salmista
que elaborou o salmo 73 dá uma pista nesse sentido ao afirmar:
"Tu me conduzes segundo os teus desígnios,
tu me levarás atrás da Glória.
Quem se afasta de ti perecerá,
destróis quem te deixa e se prostitui.
Quanto a mim, minha felicidade é estar perto de Deus;
42
refugiei-me junto ao Senhor Deus,
para anunciar todas as suas ações." (Sl 73:24 , 27-28)
Sobre isso, A. Weiser comenta que "ele constrói sua esperança para todo
o futuro, inclusive para além da morte. Pois com as palavras 'e com tua glória me
atrairás' dificilmente se poderão interpretar, depois do que precede, com referência ao
término dos sofrimentos nessa vida; pelo contrário, parecem expressar a esperança do
estado consumado da comunhão com Deus depois da morte, o que se insere sem
dificuldades na sequência dos pensamentos. A fé sabe que a vida marcha rumo a uma
glória oculta e que os sofrimentos deste tempo não se podem comparar com a glória
que se revelará depois na eternidade. Até a morte não se constitui nenhum limite para
essa esperança. A partir do eterno presente de Deus a fé supera a morte."17
A. Weiser ainda afirma que não se pode saber com certeza se o salmista
se refere a arrebatamento, vida eterna ou ressurreição, como os cultos mistéricos de
seu tempo proclamavam; ele deixa essa questão continuar sendo um mistério de Deus.
E esse mistério também se torna parte integrante de sua fé.
O pensamento apocalíptico introduziu novos conceitos à questão da
morte. Sendo Deus a plenitude de todas as coisas, na literatura apocalíptica já não
pode haver morte. Para H. Wolff, Isaías 25:8 propõe a frase fundamental:
"Ele aniquila a morte para sempre.
E o Senhor Javé enxuga as lágrimas de todo o rosto
e tira o opróbrio do seu povo de todo o mundo".18
Sobre a ressurreição, poder-se-ia citar ainda Isaías 26:19 e Dn 12:3.
"Assim, o conhecimento de Javé, através de diversos esforços, superou o vácuo
teológico da morte, sem entretanto abandonar os dois princípios que o causaram: a
16- idem, pág. 149 17- WEISER, Arthur. op. cit., pág. 387 18- WOLFF, Hans Walter. op. cit., pág. 151
43
morte se encontra numa distância extrema de Deus e ela não forma um poder contrário
autônomo".19
Para dar uma visão ainda mais completa sobre a questão da morte no
pensamento do saltério e do indivíduo vétero-testamentário, algumas considerações
devem ser destacadas. A morte não significa necessariamente o cessar da vida
biológica como um todo, mas o estado no qual o louvor a Deus não mais acontece. No
Sl 88, um homem narra sua doença mortal, que o acompanha desde a juventude. Ele
já se sente entregue ao poder da morte, portanto, é como aqueles que descem à cova.
Apesar de estar com todos os órgãos em funcionamento, está envolvido pela morte.
Por este entendimento, todo homem afastado da possibilidade de louvar a
Deus está "na morte em estado real"20 e os horrores que narra ao se ver nessas
condições não são apenas imagens. São reais e, assim sendo, todos os adoecidos
gravemente, os acusados sem defesa, os perseguidos por inimigos já pertencem ao
Sheol.
Outro fator relevante é que a morte que ocorre quando já se está velho
recebe do pensamento vétero-testamentário uma avaliação positiva. Não são raras as
passagens em que se fala do morto como quem "morreu ditoso em dias". Essa morte é
feliz, pois, conforme afirma Jó 5:26:
"Entrarás na morte ainda com vigor,
qual colheita empilhada no tempo certo".
Estar saciado da vida não é estar cansado dela, nessas citações. Todavia,
podem acontecer casos em que a pessoa esteja saciada da vida (cansada, esgotada)
sem que esteja velha. Tal sentimento não é desejável, embora sejam raros no Antigo
Testamento os casos de suicídio.
19- idem, pág. 152 20- (V. Maag apud Wolff), ibidem, pág. 152
44
A morte prematura é que é vista sempre como contrária à ordem da vida e
deve-se lutar por preservar a existência da pessoa humana. Por isso, Deus é sempre
procurado nos limites da morte, nunca no reino dela, como exemplifica Davi:
"Ele respondeu: Quando a criança estava ainda viva, eu
jejuava e orava,porque dizia a mim mesmo: Quem sabe?
Talvez o Senhor tenha piedade de mim e a criança viva. Mas
agora, morreu. Por que haveria de jejuar? Acaso posso fazê-
la voltar ainda? Sou eu que vou ao encontro dela, mas ela
não voltará para mim". ( 2º Sm 12:22-23)
Tudo isso leva à conclusão da desmitização da morte pelo homem do
Antigo Testamento. Não há culto à memória dos mortos, nem se permite que os
sepulcros dos antepassados se tornem locais de peregrinação, como o sepulcro de
Moisés, ocultado por Deus. Não se dá valor ao processo da morte, nem ao local do
sepultamento das pessoas, mas às suas últimas palavras como sendo muito
importantes para os vivos. Assinalam-se as últimas palavras de Jacó e Davi, por
exemplo, onde são relembradas as promessas de Deus.
E ainda: o homem do Antigo Testamento não vê a morte em ditosa
velhice como fruto do pecado. Sua concepção é a de que o homem é criatura que
perece, como o narra Gênesis, Eclesiastes e alguns outros textos. A finitude da vida faz
parte do caráter de criatura que o homem possui. Por isso, a vida deve ser valorizada,
protegida, defendida contra toda a ameaça e respeitada. Ela é o local da revelação de
Deus, a oportunidade de render-lhe louvor.
2.1.2.2. Calamidades
Os salmos de lamentação individual falam acerca dos resultados do
pecado cometido, reclamam contra a perseguição dos agressores, pedem a
intervenção divina contra uma acusação falsa num tribunal. Os salmos de lamentação
45
coletiva mormente tratam de assuntos relativos a calamidades ou perseguições de
outras nações.
O povo de Israel situava-se numa região estratégica, tanto para o
comércio quanto para as incursões militares dos povos cananeus e de regiões
circunvizinhas. Desde a época da entrada em Canaã, surgiam grupos que atacavam
periodicamente: amalequitas, midianitas, filisteus, amonitas, assírios, sírios, babilônicos
são apenas alguns exemplos da multiplicidade de inimigos que Israel possuiu ao longo
de sua história.
Essas guerras eram necessárias para a conquista de novas terras ou a
manutenção de territórios conquistados, como até hoje se vê naquela região. Todavia,
com o tempo, pode-se observar um cansaço, um desânimo em relação a esses
constantes confrontos, quando se lê textos como o Sl 129:
"Quanto me oprimiram desde a juventude
— Israel que o diga! —
quanto me oprimiram desde a juventude
mas nunca puderam comigo!" (Sl 129: 1-2)
Ensinos para não se confiar em cavalos e carros também são constantes
nos salmos, quando se afirma que o certo é confiar unicamente em Iahweh para obter
livramento.
As guerras produziam a morte de crianças, velhos, mulheres e guerreiros;
destruíam cidades e plantações, traziam a fome e a miséria para todo o território
atingido. Por isso, as lamentações coletivas buscavam a restauração do povo através
da intervenção de Iahweh no momento da calamidade.
Não há dúvida quanto à ligação dessas lamentações coletivas com o
momento cúltico. Em Joel 1:1ss fala-se de um culto especial de lamentação por
ocasião de uma praga de gafanhotos. As pessoas seguem os ritos de rasgar as vestes,
jogar cinzas na cabeça, vestir-se com cilício e outros enquanto entoam a lamentação
46
diante de Deus. São salmos de lamentação coletiva: 10; 44; 60; 74; 77; 79; 80; 94; 106,
entre outros.
Ao se tratar da questão da perda da honra, alguns aspectos da
lamentação coletiva a respeito de calamidades foram tratadas. Todavia, observações
adicionais ainda há que fazer-se, para completar a visão a respeito dessas questões.
O Salmo 74 narra a situação do povo ante um grave desastre: a
destruição do templo pelos inimigos. Não se sabe com certeza se essa destruição é a
que ocorreu com o templo de Salomão, pelos babilônicos (587 a.C.), podendo ainda
tratar-se do obscuro período entre os séculos V e II a.C.
Esse salmo está em consonância com o Sl 79 e com os cânticos de
lamentação do profeta Jeremias. Há inclusive teses sobre a influência jeremiana sobre
alguns salmos do Saltério. Esses salmos ainda possuem paralelos formais nas
lamentações babilônicas e cananéias que também têm o templo como objeto da
lamentação.
O Sl 79 foi ainda usado para o lamento dos judeus pela destruição do
templo no ano 70 d.C., pelos romanos. "Assim como nos salmos afins 44 e 74, por falta
de alusões concretas, não se pode determinar com certeza se o salmo teve sua origem
por ocasião do desastre de 587 ou de uma catástrofe a nós desconhecida no período
de Esdras ou da perseguição religiosa sob o domínio dos Selêucidas ( 1 Mc 1: 30ss; 2
Mc 8:2 ss); em todo caso, parece que foi usado como oração pela comunidade
oprimida da época dos Macabeus ( cf. 1 Mc 7:17). Quanto à estrutura e à forma de
expressão, o salmo segue inteiramente o estilo da lamentação comunitária fixada pela
tradição."21
Um salmo de lamentação bem antigo é o Sl 80 que, por citar as tribos de
José (Efraim e Manassés), dá pistas para situá-lo no período antes da ruína do Reino
do Norte. É possível, segundo A. Weiser, que se refira ao núcleo do estado de Efraim
na época de Oséias, o último rei de Israel, no Norte.
47
Essas citações históricas de destruições demonstram a relação entre
esses salmos e o momento angustiante pelo qual todo o povo passava. Ainda que não
se saiba ao certo qual o evento que ocasionou cada salmo em particular, isso não tira
deles sua força nem conteúdo. Isso porque todas as tragédias relativas à destruição da
Cidade Santa e do Templo levariam ao clamor do povo oprimido, que afirma no Sl 122:
"Orai pela paz de Jerusalém
Que os que te amam vivam tranqüilos,
haja paz nos teus muros
e repouso em teus palácios!
Por meus irmãos e amigos,
eu desejo: Haja paz em ti.
Pela casa de Iahweh, nosso Deus
eu peço: Felicidade para ti". ( Sl 22: 6-9)
As orações referentes a calamidades coletivas mostram alguns
posicionamentos de fé do povo enlutado pela destruição. Em alguns textos, há um
reconhecimento da culpabilidade da nação, sendo esta a razão pela qual a calamidade
se abateu sobre eles:
"Nós pecamos como nossos pais,
nós nos desviamos e nos tornamos ímpios" (Sl 106:6)
Aliás, todo o Sl 106 detém-se em descrever os erros dos antepassados,
os quais muitas vezes eram agora repetidos pelos seus descendentes, que provocaram
a ira de Deus através do sacrifício de filhos e filhas aos deuses dos povos vizinhos de
Israel, prostituição, idolatria, esquecimento dos atos salvíficos de Deus, entre outros.
Essa descrição detalhada tem o objetivo de mostrar a Deus o reconhecimento da culpa.
21- WEISER, Arthur. op. cit., pág. 411
48
E reconhecer o pecado é posicionar-se novamente do lado de Iahweh, buscar dele o
perdão e o livramento.
Às vezes, contudo, é o próprio fato de ser povo de Deus que leva Israel a
ser vítima dos outros povos:
"É por tua causa que nos matam todo o dia
e nos tratam como ovelhas de corte" (Sl 44:23)
Alguns textos alegam que não havia motivo para Iahweh ter permitido a
calamidade. Nesses casos, as orações são até difíceis de serem interpretadas como
afirmações de fé, haja visto parecerem acusações a Iahweh:
"Aconteceu-nos tudo isso e não te esquecemos,
nem traímos a tua aliança;
nosso coração não voltou atrás
e nossos passos não se desviaram do teu caminho.
E tu nos esmagaste onde vivem os chacais,
e nos cobriste com a sombra da morte" (Sl 44:20)
"Iahweh [...] dos exércitos, até quando
te inflamarás, enquanto teu povo suplica?
Deste-lhe a comer um pão de lágrimas,
e tríplice medida de lágrimas a beber" (Sl 80:5,6)
"Até quando vai a tua ira, Iahweh? Até o fim?
Teu ciúme vai arder como fogo?" (Sl 79:5)
"Tu, porém, rejeitaste e desprezaste,
ficaste indignado com o teu ungido,
renegaste a coroa do teu servo,
49
até o chão profanaste a sua coroa" (Sl 89: 39-40)
Mas, apesar dessa acusação, surgida no clímax da dor e da rejeição
sofrida da parte de Deus, o povo recorre à memória para tentar comover Iahweh a agir
em seu favor. Lembra-lhe as promessas feitas e sua eleição como povo separado para
Deus:
"Onde estão as primícias do teu amor, ó Senhor?
Juraste a Davi pela tua verdade." (Sl 89:50)
"Recorda a tua assembléia que adquiriste desde a origem,
a tribo que redimiste como tua herança,
este monte Sião em que habitas." (Sl 74:2)
"É teu povo, Iahweh, que eles massacram,
é tua herança que eles humilham!" (Sl 94:5)
E lembra também a Iahweh que os povos que dominam sobre Israel na
verdade profanam seu Santo Nome. É a tentativa que provocar zelos no Senhor acerca
de seu poder e autoridade, representados por seu nome:
"Até quando, ó Deus, o opressor vai blasfemar?
O inimigo vai desprezar o teu nome até o fim?"
"Lembra-te, Iahweh, do inimigo que blasfema,
do povo insensato que ultraja o teu nome" (Sl 74: 10 e 18)
Por fim, vem o momento da súplica, quando o povo pede o livramento dos
seus inimigos, pois encontra-se me extrema penúria e sofrimento:
"Concede-nos socorro na opressão,
50
pois a salvação humana é inútil." (Sl 60:13)
"Levanta-te, socorre-nos!
Resgata-nos, por teu amor!" (Sl 44:27)
Há que se fazer menção ainda às imprecações e pedidos de vingança
feitos a Deus contra os inimigos. Alguns salmos, por conterem essas imprecações de
forma mais acentuada, são chamados salmos de vingança:
"Ó desvastadora filha de Babel,
feliz quem devolver a ti
o mal que nos fizeste!
Feliz quem agarrar e esmagar
teus nenês contra a rocha! " (Sl 137:8-9)
"Devolve aos nossos vizinhos sete vezes no seu peito
o ultraje com que te afrontaram, Senhor." (Sl 79: 12)
"Quebra o braço do ímpio e do mau
e procura sua maldade: não a encontras!" (Sl 10:15)
E, concluindo, a promessa de fidelidade a Iahweh quando a libertação
chegar:
"Nunca mais nos afastaremos de ti;
faze-nos viver e teu nome será invocado". (Sl 80:20)
As lamentações coletivas não incluíam apenas os casos das perseguições
contra os inimigos. Muitas vezes também se referiam a secas, pestes e pragas que
51
impedissem uma colheita próspera ou um grande rebanho. Elas também atestam,
profundamente, o conceito da religião israelita: uma religião comunitária, onde o que
acontece a um membro afeta a todos. Por isso, necessitam ser relidas pelo cristianismo
atual, para evitarem-se as influências do individualismo e os drásticos efeitos da
inexistência de comunhão.
2.1.3. O Problema da Prosperidade dos Maus
Uma das questões mais controvertidas dos salmos de lamentação refere-
se ao problema da prosperidade dos maus. Pois se até aqui consegue-se detectar no
próprio homem a causa de seu sofrimento, ou às vezes, até atribuir essa causa a Deus,
no caso da prosperidade dos maus o sofrimento possui outra natureza.
O salmista apresenta-se diante de Deus expondo sua própria justiça e seu
esforço em cumprir as ordenanças de Deus. Seu entendimento é o de que o servo fiel
prospera, mas o ímpio perece22. Contudo, sua observação dos fatos é contrária à sua
fé. Aí começa sua crise: como conciliar fé e fatos concretos de sua vida?
A primeira atitude do fiel é abrir seu coração perante Deus e confessar
que não entende a situação que o rodeia:
"Por pouco meus pés não tropeçaram,
um nada, e meus passos deslizavam,
porque invejei os arrogantes,
vendo a prosperidade dos ímpios" (Sl 73:3)
"Suas empresas têm sucesso em todo o tempo,
teus julgamentos estão além do seu alcance,
ele desafia seus adversários todos". (Sl 10:5)
22- O Salmo 1 é um grande exemplo dessa teologia clássica. Nele, o salmista afirma que, tudo o que o justo faz é bem sucedido, enquanto o ímpio sempre acaba mal, o que não coaduna com os sentimentos presentes nas lamentações sobre a prosperidade dos ímpios. Certamente que, segundo A. Weiser, esse é um otimismo da fé. E é
52
Quando o salmista passa a considerar seu sofrimento face à boa vida dos
ímpios, sente-se abalado e confessa que, por pouco, não desviou seus pés do caminho
de Iahweh (Sl 73). Nota com preocupação que os ímpios não temem o castigo de Deus
e, aparentemente, estão mesmo imunes a ele. Os perversos perguntam: Deus vê?,
como quem diz que Deus não se importa com o que eles fazem. Para o salmista, esse
é um problema grave, pois elimina a comunhão pessoal, o relacionamento com Deus,
que é a base da fé israelita.
No Sl 73, há um sentimento de tristeza do salmista que se vê castigado
por seus pecados, apesar de esforçar-se por manter-se íntegro. Não percebe
recompensa em seu esforço quando nota a grande maldade que impera na vida dos
ímpios e a tranquilidade de sua existência: riquezas, gordura, saúde...
Quando se examina os textos bíblicos que se referem ao sofrimento do
inocente em contraposição à prosperidade dos maus, observa-se que entre os diversos
estudiosos há variações de entendimento. Isso porque a ausência de uma causa para
o sofrimento é uma questão de difícil interpretação. Esse sentimento parte mesmo dos
escritores bíblicos. Se o salmista afirma sua inocência perante o castigo divino (lavei
minhas mãos na inocência), como o ímpio pode prosperar e o fiel ver-se em desgraça?
Essa também é uma das questões abordadas no livro de Jó. A saída é, novamente,
atribuir a Deus as causas do problema:
"O poderoso cravou em mim as suas flechas,
e meu sopro aspira seu veneno.
Os terrores de Deus se alinham contra mim. (...)
Restar-me-á ao menos um consolo,
um quê de alegria em meio à tortura implacável:
de nenhuma sentença do Santo descuidei." (Jó 6:4 e 10)
inteiramente válido, como atestam as lamentações, quando se pensa na esperança escatológica: um reino futuro, sem lugar para a injustiça, dominado por Deus.
53
O fato de Deus permitir o sofrimento do inocente leva o salmista e
também o autor de Jó a uma conclusão dura: isso só pode ocorrer porque Deus está
longe. Como já foi visto com relação à questão da morte, a ausência de relacionamento
com Iahweh é o fim da vida para o homem do Antigo Testamento. E a ausência de
Deus é prenúncio de sua destruição. Daí o elevar-se a Deus e indagar dele uma
resposta antes que seja tarde. É o que o salmista do Sl 73 faz:
"Então refleti para compreender,
e que fadiga era isso aos meus olhos!
Até que entrei no santuário de Deus". (Sl 73:16-17)
Essa também era a reflexão dos profetas. Condenavam as riquezas mal-
adquiridas, o acúmulo de terras e bens, a opressão que essa concentração dos ricos
causava sobre os pobres. Nesse posicionamento profético pode-se encontrar uma
resposta à questão do sofrimento do inocente enquanto o ímpio parece sempre safar-
se.
Na perspectiva profética, o grande mal que oprimia os pobres vinha de
uma estrutura desigual, que utilizava critérios contrários aos ensinos de Iahweh. O
interesse de um indivíduo ou de um grupo jamais poderia prevalecer sobre o interesse
do povo de Deus, muito menos sobre as leis de Iahweh. Assim, pode-se chegar à
conclusão de que o inocente sofre quando a estrutura na qual vive é tirana e opressora,
negando Iahweh. Nesse caso, pode-se dizer ainda que a própria justiça do orante é
causa de seu sofrimento, pois ele é perseguido justamente por estar do lado oposto ao
do sistema dominador.
Não é culpa do inocente, pois este esmera-se em servir fielmente a seu
Deus. Nem de Iahweh, pois o entendimento geral era de que este era o Deus
Libertador, incapaz de tolerar a injustiça. Essa esperança é que abria os olhos do
sofrido orante para uma realidade futura e mostrava-lhe caminhos para a expectativa
do livramento:
54
"Eu refletia, para compreender
o que me era penoso ver,
até o dia em que, entrando no santuário de Deus,
entendi qual o futuro deles:
Na verdade, tu os levas a um terreno escorregadio,
para precipitá-los na ruína." (Sl 73:16,17)
"Mas Deus atirou neles,
de repente, eis a flecha:
são seus próprios golpes,
a sua língua voltou-se contra eles." (Sl 63:8-9)
2.2. Reações ao Sofrimento
Até aqui foram expostas diversas causas do sofrimento. Ainda que
indiretamente já tenham sido colocadas algumas das reações dos salmistas a esse
sofrimento, é necessário um aprofundamento nessa questão. É o posicionamento do
orante envolvido pelo sofrimento diante de Deus que determinará os caminhos de sua
fé. E é aí que se torna fundamental o estudo dessas reações.
Não se pode esquecer em nenhum momento que os grandes homens e
mulheres da Bíblia nunca são vistos como super-heróis. As Sagradas Escrituras os
apresentam na dimensão exata de sua humanidade e nessa dimensão apenas é que
podem entender a vontade de Deus. Mesmo a revelação de Deus que se percebe ao
longo da história se desenvolve em função dessa limitação do entendimento humano. E
os salmistas, quando não entendem o que lhes acontece, aproximam-se de Deus em
busca de respostas. Por isso, o que se observa com mais freqüência nos salmos de
lamentação são expressões como: Por quê? Até quando? Como? De que maneira?
Com que objetivo?
55
A primeira e mais óbvia reação ao sofrimento que se percebe nos salmos
de lamentação é exatamente o que os caracteriza: o lamento. O orante se aproxima de
Deus e transmite a Deus os sentimentos que vão no seu coração.
O salmista não tem vergonha de sua humanidade. Diante da angústia, do
questionamento, sua vontade é expor a Deus tudo o que acontece em seu interior. Um
dos sinais que usa para isso são as lágrimas:
"Dia e noite,
minhas lágrimas são o meu pão..." (Sl 42: 4a)
"Ouve minha oração, Senhor, e meu grito;
presta ouvido às minhas lágrimas." (Sl 39:13a)
2.2.1. Confissão
Quando o salmista vivia uma situação que o levava ao sofrimento, e
percebia como causa desse sofrimento um problema em sua relação com Deus,
alguma atitude ou omissão pecaminosa, sua atitude era a de aproximar-se de Deus e
confessar esse pecado:
"Pois reconheço a minha culpa
tenho continuamente presente o meu pecado.
Pequei contra ti, e só contra ti
fiz o que é mau diante dos teus olhos." (Sl 51:5-6)
"Sim, eu proclamo a minha falta
e me assusto com meu pecado." (Sl 38:19)
"Eu dizia: "Senhor, piedade de mim,
cura-me, pequei contra ti." (Sl 41: 5)
56
A confissão constituía-se num meio de comover a Iahweh, para que Ele
aliviasse sua mão de sobre a vida do orante, haja visto que todo sofrimento resultante
do pecado era encarado como castigo divino.
O salmista começa a experimentar o livramento a partir da confissão. Para
ele, a ausência dessa atitude também acarreta novos males:
"Enquanto eu me calava, meu corpo se consumia
resmungando o dia inteiro,
pois dia e noite a tua mão pesava sobre mim
minha seiva se alterava aos ardores do verão". (Sl 32:3-4)
2.2.2. Protesto de Inocência
Ao contrário, quando o sofrimento não encontra sua razão de ser no
pecado ou na transgressão da lei, o salmista evoca sua inocência diante de Deus e
apresenta sua defesa diante dos inimigos, apelando para a justiça divina:
"Ei-los em emboscada contra mim,
poderosos me atacam,
sem que eu tenha cometido falta ou pecado, Senhor!
Não tenho culpa, eles se apressam em seus postos.
Acorda! Vem ao meu encontro e vê! ( Sl 59: 4,5)
"Em paga da minha amizade acusaram-me,
e eu estou em oração.
Retribuíram-me o bem com o mal
e a amizade com ódio." (Sl 109:4-5)
O orante declara diante de Deus sua situação, confiante no poder
libertador da justiça divina. Mesmo que a justiça pareça distante no momento da
57
aflição, algo patente nos salmos de lamentação é teimosa esperança que não se abate
sob nenhuma circunstância.
Provavelmente, a maioria dos salmos de lamentação que contêm
protestos de inocência vêm do círculo dos piedosos, grupos de fiéis que se esmeravam
na fidelidade aos preceitos de Deus, a exemplo dos essênios. Segundo alguns autores,
esses grupos de fiéis eram levitas23, bem como indivíduos acusados de falhas cultuais.
2.2.3. Desespero, Depressão e Doenças
Vivendo a vida tão intensamente como faz o homem vétero-testamentário,
não é de se espantar com suas indagações e seu desespero diante de certas
situações. No Sl 13, por exemplo, a expressão "Até quando?" aparece quatro vezes em
apenas dois versículos (v. 1 e 2)!
Semelhantemente, algumas expressões utilizadas pelos salmistas
descrevem o estado de horror que se apodera deles diante de certos perigos e
ameaças:
"Todo o meu ser estremece
e tu, Iahweh, até quando?" (Sl 6:4)
O desespero é causado pelo sentimento de abandono do salmista em
relação a Deus:
"Iahweh, por que ficas longe,
e te escondes no tempo de angústia?" (Sl 10:1)
"Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? " (Sl 22:1)
58
Algumas vezes, a doença vai ser a causa do sofrimento; em outras,
consequência. Nesse sentido, também pode ser encarada como uma reação à
adversidade. Está muito ligada à depressão, quando o salmista parece perder sua
esperança no livramento. Percebe-se tal sentimento no uso de expressões tais como:
conturbado (Sl 77:5; perturbado (Sl 55:3); angustiado, aflito (Sl 31:10 ), queimado por
um fogo (Sl 39:4); estar nas profundezas (Sl 130:1).
O sentimento de angústia de que é tomado leva o salmista a experimentar
males físicos:
"O insulto rompeu-me o coração e estou doente por isso" (Sl 69:21a)
"Jejuei tanto que as minhas pernas vacilam;
privado de óleo, estou descarnado." (Sl 109: 24)
"Como a erva cortada
meu coração seca;
esqueço-me de comer o meu pão.
De tanto gemer,
só tenho a pele sobre os ossos!" (Sl 102: 5-6)
A depressão leva o salmista a perder, por vezes, qualquer expectativa que
não seja a morte. Sente-se sobrecarregado de desgraças e males:
"Enclausurado, não tenho saída." (Sl 88: 9b)
"(...) estamos saturados de desprezo
estamos saturados, empanturrados de desprezo". (Sl 123:3b-4)
23- Essa referência encontra-se, por exemplo, no estudo do Sl 16 feito por Pierre E. Bonnard em seu livro Os Salmos dos Pobres de Deus, Paulinas, 1975.
59
O ataque dos inimigos é violento e não há nenhuma possibilidade
perceptível de livramento. Essa é outra situação que leva o salmista a sentir-se
desesperado:
"Ouve ó Deus a voz do meu lamento.
Preserva-me a vida do terror do inimigo" (Sl 64:2)
Um exemplo tocante do que o desespero produz no salmista é o Sl 88.
Via de regra, os salmos terminam com a proclamação da esperança, a promessa de
agradecimento ou uma expressão que mostre a antecipação do recebimento da
libertação. Contudo, esse salmo termina com uma triste nota:
"Tu afastas de mim meus próximos e amigos,
a treva é a minha companhia" (Sl 88:19)
2.2.4. Desejo de Fuga
O autor do Sl 55 apresenta diante de Deus sua angústia: inimigos que o
perseguem, amigos que o traem, degeneração e perversidade na cidade onde habita.
Este também era provavelmente um piedoso, pois se atormenta profundamente com a
existência da injustiça. Chega mesmo a descrever seu estado físico deplorável diante
de tal situação, em termos carregados de dor e emoção:
"Meu coração se contorce dentro de mim
e sobre mim caem males mortais;
medo e tremor me penetram
e um calafrio me envolve" (Sl 55: 5-6)
Segundo P. Bonnard, o termo aí utilizado ( Houl ) significa "pular, torcer-
se, entrar nos espasmos de parto"24. Diante disso, a única saída que o salmista
24- BONNARD, Pierre E. Os Salmos dos Pobres de Deus. São Paulo: Paulinas, 1975, pág. 130
60
encontra para livrar-se é a fuga. Sente-se desejoso de estar longe da situação que o
atormenta, comparando-se a um pássaro que pode voar para montanhas distantes:
"E eu disse:
Quem me dera asas como pomba,
para eu sair voando e pousar...
Sim, eu fugiria para longe
e pernoitaria no deserto.
Encontraria logo um refúgio
contra o vento furioso e o furacão" (Sl 55: 7-9)
"Não é de admirar que este homem, que tão sensivelmente reage às
perturbações do equilíbrio do seu espírito, só desejasse, como Jeremias (cf. Jr 9:1ss),
fugir da agitação da cidade para a solidão do deserto, a fim de escapar das
repugnantes impressões que ali o assaltam como 'furacão'."25
Contudo, a fuga não lhe responde aos anseios, pois, quando o sofrimento
abate-se inesperadamente sobre o orante, não há tempo para fugir. Esse é um desejo
frustrado. Daí o grito pela ajuda e socorro divinos, como única oportunidade de
livramento.
Mas, havendo possibilidade de fuga diante do perigo iminente, o homem
vétero-testamentário não via vergonha nisso e aproveitava a oportunidade. Era preciso
preservar a vida (ex.: fuga de Davi diante de Saul e Absalão).
2.2.5. Imprecações contra os inimigos
Sentindo-se acuado diante das perseguições, reconhecendo a força do
inimigo, o salmista algumas vezes vai além do simples pedido de socorro a Deus.
Volta-se furioso contra os adversários e, não dispondo de recursos contra eles,
amaldiçoa-os em nome de Deus ou pede a Ele que os destrua. São as chamadas
25- WEISER, Arthur. op. cit., pág. 312
61
imprecações. É o desejo de vingança contra os inimigos. O salmista chega a dar a
Iahweh o título de vingador:
"Iahweh, ó Deus das vinganças,
aparece, ó Deus das vinganças!" (Sl 94:1)
Pede a intervenção divina a seu favor, para que o mal desejado por seus
inimigos se volte contra eles mesmos:
"Que o mal atinja meus inimigos!
Aniquila-os, Iahweh, por tua fidelidade!" (Sl 54:7)
Quando o salmo é de lamentação coletiva, a expressão de confiança
assume um caráter nacional. Não é apenas o Deus das vinganças, mas o Deus que
controla os exércitos de Israel e os guia à vitória contra os inimigos:
"Deus dos Exércitos faze-nos voltar!
Faze a tua face brilhar e seremos salvos! (Sl 80:20)
Alguns salmos trazem expressões bem duras de juízo contra os inimigos.
Aos nossos olhos, parecem extrema covardia:
"Ó devastadora filha de Babel,
feliz quem devolver a ti
o mal que nos fizeste!
Feliz quem agarrar e esmagar
os teus nenês contra a rocha!" (Sl 137:9)
De modo geral, os salmistas são pessoas zelosas pela lei de Deus, por
seus mandamentos, suas instituições e seu povo. Para eles, os inimigos são todos
aqueles que contrariam os propósitos de Iahweh. Por causa de seu zelo, os salmistas
não enxergam possibilidade de misericórdia para os "infiéis", que zombam de Deus. Tal
zombaria não pode ser aceita, pois fere a honra e a dignidade divinas. Daí essas
expressões de vingança. Mais do que desejo pessoal, refletem o cuidado e o apego
com que os salmistas tratam sua relação com Deus, que precisa ser mantida
62
incontaminável pela blasfêmia dos perversos. Também a tragicidade do ocorrido leva o
orante a desejar o aniquilamento do adversário. Essa é uma motivação intensamente
relevante para os perseguidos ou vencidos pelos inimigos.
Contudo, essa vingança nunca é executada pelo próprio salmista. Não se
trata de fazer justiça com as próprias mãos. Deus é o único que pode executar a
sentença contra os adversários.
2.2.6. Esperança no Livramento
Nenhum dos salmos de lamentação apresenta apenas uma das reações
ao sofrimento. Diversas delas se misturam num mesmo poema, fruto da luta interior
que se processa no orante e do desejo do mesmo em organizar-se psicológica e
emocionalmente, para chegar ao equilíbrio da fé. Contudo, uma palavra que não lhes
falta, direta ou indiretamente, é a esperança.
O próprio fato de lamentar-se constitui uma demonstração dessa
esperança, pois o lamento tem uma direção. Não se lamenta sem propósito. O objetivo
do choro é comover o Deus libertador a agir. Chorar diante d'Ele já significa esperar por
seu socorro.
Por isso, muitas vezes, o salmo que inicia-se com um ar de derrotismo ou
como "último suspiro", o fim das forças do orante, transforma-se numa lapidar
afirmação de fé. Algumas vezes, o salmo de lamentação à certa altura torna-se um
salmo de ação de graças. Reconfortado pela presença divina no santuário, o salmista
pode, enfim, substituir sentimentos de tristeza pelos de regozijo e alegria:
"O escudo que me cobre é Deus,
o salvador dos corações retos!" (Sl 7:11)
Como expressão de sua confiança, o salmista compromete-se a oferecer
um sacrifício quando o livramento chegar:
63
"Eu te oferecerei um sacrifício espontâneo,
e agradecerei o teu nome, porque ele é bom." (Sl 54:8)
Algumas vezes, seu voto é de contar na assembléia (culto ou reunião
solene), o livramento recebido da parte de Deus. Em outros salmos, o voto é a
promessa de louvor:
"Ó força minha, vou tocar para ti,
porque foste fortaleza para mim,
ó Deus, a quem eu amo!" (Sl 59:18)
64
3º Capítulo
O Sofrimento ontem e hoje
Ao estudarem-se os salmos de lamentação, o objetivo sempre deve ser o
de extrair desses textos uma mensagem para os dias de hoje. O sofrimento sempre
esteve e sempre estará presente na existência humana. Faz parte do cotidiano de
todas as pessoas e é impossível furtar-se a ele.
Contudo, os salmistas procuravam aprender dos sofrimentos formas
novas de exercitar a fé. Assim, ao chegar ao último capítulo desse trabalho, faz-se
necessário apor a fé ao sofrimento, buscando o modo dos salmistas encararem essa
difícil relação.
3.1. Fé e sofrimento: convivência possível para os salmistas?
Por tudo o que foi visto até aqui, pode-se afirmar com segurança que fé e
sofrimento não são mutuamente excludentes para os salmistas. Entre eles, a relação é
difícil e é necessário achar o ponto de equilíbrio. Mas os salmistas entendem que ter fé
não isenta o homem do sofrimento (como nos casos de sofrimento do inocente) e
sofrer não significa deixar de ter fé. A esperança que os salmistas depositam em Deus
65
bem poderia ser caracterizada como teimosa, pois eles procuram de todas as formas
não permitir que o sofrimento a abale.
Tem-se de levar ainda em conta que o lamento dos salmistas não tem um
fim em si mesmo. Não significa auto-piedade, pois eles sabem reconhecer quando
erram e sabem se defender quando são injustiçados. Não se limitam a ter pena de si
mesmos, pois sabem que isso nada resolve. Deus é quem precisa ter piedade deles,
pois Ele é único que pode produzir a libertação.
Algo característico da fé israelita e que parece estranho aos cristãos de
hoje: o sofrimento também provém de Deus. "Sendo que tudo procede da mão de Deus
(Sl 1:15), o sofrimento é estágio transitório para uma comunhão mais profunda com ele.
O mesmo atestam os cânticos de agradecimento que eram oferecidos, após o
salvamento, num culto de ações de graça específico. Em cores vivas, rememoram o
sofrimento superado, para demonstrar que momentos difíceis não são esquecidos, mas
reconhecidos como premissa para a doação da graça por parte de Deus".26
Uma observação pertinente: apesar do que foi dito acima, o homem
vétero-testamentário não procurava o sofrimento voluntário. Ele não desejava sofrer e
até fugia das situações de perigo. Ainda assim, quando impulsionados por uma
motivação adequada, os israelitas revelaram disposição para sofrer. É o que alguns
autores chamam de sentimento corporativo. Faziam tudo para proteger alguém amado,
mesmo com dano próprio:
"Quanto a mim, nas suas doenças eu me vestia de saco
e me humilhava com jejum,
e minha oração voltava ao meu peito;
eu ia e vinha como por um amigo, por um irmão;
como de luto pela mãe
eu me curvava, entristecido". (Sl 35::13,14)
66
Um exemplo dessa disposição para entregar-se em favor de alguém está
muito presente nos grandes líderes de Israel e nos profetas, quando pediam a Deus a
morte para si mesmos ao invés de aceitar que Deus destruísse o povo por sua rebeldia.
Esse aspecto revela que o sofrimento em Israel pôde assumir um caráter positivo,
quando era fruto da solidariedade.
Os salmistas buscavam a superação do sofrimento através da
restauração das condições anteriores, isentas desse sofrimento. O sofrimento individual
sempre levava à reflexão de que o sistema de vida poderia estar ameaçado. O
inocente, ao ver seu sofrimento em paradoxo com a tranquilidade do perverso, temia
pela segurança de todo o universo.
Pode-se concluir, assim, que os rituais para a superação do sofrimento
tinham uma dimensão coletiva em última instância. O sofrimento poderia ser individual,
mas a ação de graças era coletiva. Os salmos de lamentação individual nunca eram tão
exclusivistas, para poderem ser usados por outros sofredores que se identificassem
com tais orações. O sofrimento era visto muitas vezes em sua dimensão social,
nacional e universal, a partir de sua existência na vida do indivíduo.
O sofrimento também pôde assumir em Israel uma função educativa da
parte de Deus. Histórias como a de José e de Jó mostram essa compreensão, bem
como o salmo 73. A experiência do sofrimento torna-se necessária para uma
recompensa maior no tempo de Deus executar sua justiça. Essa visão poderia dar ao
sofrimento uma conotação positiva em determinadas circunstâncias e até mesmo pode
ter contribuído para a formação da mentalidade apocalíptica: Deus educa seu povo
através do sofrimento (o exílio, a destruição de Jerusalém e do templo, por exemplo)
para, no fim, eliminar o mal do mundo e com ele, todo o sofrimento.
Apesar de todas essas possibilidades de os salmistas encararem o
sofrimento como necessário e, em certa medida, colaborador para o crescimento da fé,
deve ficar claro que não há um sentido uniforme para o sofrimento no Antigo
26- GESTENBERGER, E. S. e SCHRAGE, Wolfgang. Por que sofrer? São Leopoldo: Sinodal, 1979, pág. 102
67
Testamento. As tentativas de compreender o sofrimento são, em última análise,
esforços humanos para obter distanciamento do sofrimento e clareza sobre ele. São
uma busca legítima e compreensível, haja visto serem um recurso até aos dias atuais.
E como o homem piedoso do Antigo Testamento quase não conhecia
uma fé na ressurreição que lhe desse o contrapeso de uma esperança além-túmulo,
precisou solidificar tremendamente sua confiança em Deus; e terminou assim por
adquirir uma imensa capacidade de suportar sofrimentos.
Apesar de toda a riqueza dos salmos de lamentação, algo deve ficar claro
para os que buscam neles a resposta para os sofrimentos de hoje. Tais textos são
apenas um retrato da realidade daquela época, não uma descrição completa daquele
distante período da história. Daí encontrarem-se limitações para se chegar ao pleno
entendimento do processo que se operava no coração do sofredor em oração diante de
Deus. Aliem-se a essa limitação a diferença de cultura, estilo de vida, prioridades
existenciais e vivência religiosa dos israelitas de ontem e dos cristãos de hoje.
Contudo, o fato das pessoas de hoje serem seres humanos como o foram
os salmistas, já se constitui um elemento de ligação com os sofredores do passado.
Nesse sentido, tornam-se extremamente preciosos seus conceitos de fé, vida,
sofrimento e relação com Deus ontem para os sofredores de hoje, pois, apesar das
diferenças já mencionadas, os salmistas continuam a falar de suas tribulações de
maneira compreensível pelas pessoas do século XX.
E da mesma forma com que eles puderem conciliar a fé e o sofrimento
através da entrega a Deus e da luta pela superação do sofrimento, os sofredores de
hoje são desafiados a vencer suas dificuldades.
68
3.2. O sofrimento na atualidade e as lições dos Salmos de
Lamentação
Para se entender a experiência do homem do Antigo Testamento, não
basta conhecer profundamente sua cultura, seu modo de pensar e agir, sua fé ou
qualquer outro elemento de sua vida. O sofrimento só pode ser entendido na realidade
do sofredor, isto é, é preciso viver ou conviver com ele para poder compreender sua
dimensão. Caso contrário, toda análise se revelará superficial e artificial.
Uma pergunta cabe aqui, para se estabelecer relações entre o sofredor de
ontem e de hoje a fim de descobrir lições dos salmos de lamentação para os dias
atuais. Onde e como sofre o homem de hoje?
Um dos fatores de mais fácil observação é que o homem de hoje sofre de
acordo com as condições definidas pela estrutura econômica e social. Nos países
subdesenvolvidos, uma grande massa sofre com a miséria, a fome, o desemprego, a
marginalização e várias outras consequências da má distribuição de renda.
A industrialização também traz suas formas de sofrimento: a
desestruturação da família, a insegurança quanto ao futuro; o ritmo frenético da
tecnologia elimina em muito o aprofundamento da convivência humana.
Nesse aspecto, parece impossível encontrar nos salmos de lamentação a
resposta para esse tipo de sofrimento. Essas questões não faziam parte de sua
cosmovisão, sua realidade era inteiramente distinta da realidade atual. Contudo, pode-
se encontrar aí analogias para os tipos principais do sofrimento moderno, comparações
que podem ajudar a encontrar respostas e conforto nas situações adversas da
atualidade.
O homem moderno sofre com a solidão ao mesmo tempo em que vive
cercado de pessoas. Daí os altos índices de stress, depressão, dependência de
drogas, suicídios e assassinatos decorrentes de uma estrutura que não responde aos
anseios desses sofredores.
69
O homem do Antigo Testamento faz questão de colocar às claras o seu
sofrimento. O homem moderno procura escondê-lo. Apesar de todas as suas
contribuições, o sistema atual apenas constrói estruturas de tratamento e
aconselhamento para o doente e o sofredor. Falta-lhe o primordial, latente no mundo
do Antigo Testamento: a humanidade, o relacionamento pessoal, a preocupação
verdadeira e profunda com o bem-estar do indivíduo. Mesmo que algumas doenças no
mundo do Antigo Testamento levassem ao isolamento, o homem sofredor nunca era
separado da convivência comunitária sem que antes se tentasse por todos os modos e
rituais salvá-lo. O mundo do Antigo Testamento reconhece uma dimensão social no
sofrimento que a sociedade industrial de hoje parece ter abandonado completamente.
Outro grave problema com relação ao sofrimento hoje está na própria
modificação do conceito de ser. O sofrimento hoje não pode ser simplesmente atribuído
a outras forças fora do ser humano. A doença não é mais fruto do pecado, mas simples
consequência de um vírus ou uma bactéria. Algumas vezes, não se consegue saber
quem é o inimigo ou se as situações adversas são realmente fruto da atuação desses
adversários.
Coloca-se em xeque até mesmo o conceito de um Deus individual. É
insuficiente a explicação do sofrimento como decisão de Deus. Ainda assim, o homem
sente a necessidade de uma relação pessoal. É óbvio que não se pode, hoje,
simplesmente adotar as idéias do Antigo Israel, mas sua atitude em relação ao ser
pessoal, especialmente no caso do sofrimento, é muito importante para o homem
moderno. É preciso recuperar a dimensão do Deus pessoal nessa sociedade, pois ela é
uma forte base para a superação do sofrimento. É reconfortantemente eficaz poder
dizer: Meu Deus! E realmente sentir essa presença particular de Deus em meio ao
sofrimento pessoal.
Outra questão importante em relação ao sofrimento hoje é quanto à
responsabilidade. Para o mundo do Antigo Testamento, as causas do sofrimento eram
mais ou menos igualmente divididas entre as forças sobrenaturais e a humanidade.
70
Hoje, as pessoas fazem questão de afirmar que são donas de seus próprios destinos.
Contudo, não se vive melhor simplesmente por isso. Até mesmo as catástrofes naturais
encontram grande parte de sua responsabilidade nos homens, que podem manipular
inclusive o clima e interferir no curso da natureza. Toda sociedade deve sentir-se mal
pelo erro de um indivíduo, imediatamente culpada por seus erros. É o pensamento de
que a pessoa é fruto do seu ambiente e tudo o que faz é influenciada por esse
ambiente. Em última instância, ninguém é diretamente responsável por seus atos
porque é condicionado pela sociedade a agir desta ou daquela forma. Essa dimensão
era desconhecida para o homem do Antigo Testamento. Apesar de reconhecer a
responsabilidade da comunidade sobre o indivíduo, cada um ainda era o responsável
por suas próprias atitudes.
E ainda: a contribuição do Antigo Testamento para as questões do
sofrimento hoje vai além de simplesmente descobrir as causas do sofrimento. Com sua
visão da vida e do sofrimento na dimensão da existência humana, o homem vétero-
testamentário pode oferecer respostas mais eficientes para solucionar o sofrimento a
curto prazo. A excessiva espiritualização que se percebe em alguns segmentos cristãos
joga para um futuro escatológico o livramento das dores e angústias existenciais que o
homem deseja resolver ainda nesta vida. Essa resposta pode parecer satisfatória a
quem não sofre, mas o sofredor não pode esperar até a parusia para receber o
conforto de que necessita agora. As palavras do salmista são para ele mais
reconfortadoras, quando esse afirma que verá a bondade do Senhor na terra dos vivos!
Precisa-se chegar ao equilíbrio quanto a essa questão do sofrimento. Os
cristãos de hoje não podem perder de vista a esperança de uma vida eterna com Deus,
longe de todas as aflições experimentadas na curta existência humana, que há de vir
com a parusia. Contudo, precisam também viver a fé que mantém Deus bem perto,
compartilhando os sofrimentos do ser humano à medida em que eles acontecem, como
o homem do Antigo Testamento entendia.
71
Essa é a dimensão correta do sofrimento, amadurecida no Novo
Testamento, que soma a experiência real do Deus que caminha com o povo no deserto
à experiência igualmente real do Deus que encarnou-se e "habitou entre nós" (Jo 1:14).
Quando se aprende essa real dimensão da presença de Deus, é possível,
como os fiéis do passado, passar sob as intempéries da vida e sair mais forte, mais
maduro e mais fiel ainda, pela certeza absoluta da presença e do cuidado de Deus.
Essa é a grande lição dos salmos de lamentação. O homem não deve
esconder-se do sofrimento, negar seus efeitos, esconder suas culpas, fazer-se de
inatingível. Ao contrário, deve aprender com o sofrimento, suportá-lo com um espírito
combatente e interrogativo, para poder entender o que Deus quiser falar-lhe por meio
disso. Deve lutar para exterminar as causas do sofrimento. Deve empenhar-se em
alcançar a felicidade. Mas nunca, de modo algum, deve negar a fé, pois sem ela jamais
triunfará sobre as adversidades. Para isso, torna-se fundamental o otimismo marcante
da fé judaico-cristã.
Como disse E. Jones, "o estóico suporta, o epicureu procura gozar, o
budista e o hindu retiram-se, desiludidos, o maometano submete-se; mas somente o
cristão exulta!"27
27- JONES, E. Stanley. Cristo e o sofrimento humano. São Paulo: Vida, 1991, pág. 154
72
Conclusão
A realidade do sofrimento é inegável. Ainda assim, os salmos de
lamentação nos ensinam que a vitória não depende tanto da situação em si como da
atitude de quem a enfrenta. É a fé, mais que as circunstâncias, que vence o sofrimento.
Essa é a diferença marcante entre os derrotistas e os otimistas, entre o fiel e o ímpio.
Os cristãos de hoje precisam aprender a exercitar formas atuais de
praticar a dependência de Deus, fator relevante para vencer o sofrimento. É essa
relação que garante o conforto da alma sofredora mesmo quando esta não entende as
razões de seus problemas. E a ajuda a superar as suas próprias limitações quando a
causa do sofrimento está patente e faz-se necessário enfrentá-la de frente para
eliminar a dor.
Os salmos de lamentação não trazem respostas prontas. Os salmistas
que os escreveram também queriam respostas às suas dores. Mas a experiência do
sofrimento é a mesma ontem e hoje, a dor é a mesma, apesar da diferença da postura
e da vivência do homem de ontem e de hoje.
Mesmo com as perguntas que se desenrolam na mente do ser humano,
muitas delas sem resposta imediata em sua vida, há uma virtude no sofrimento que, se
bem aproveitada, pode modificar radicalmente o conceito de vida das pessoas da
73
atualidade. O sofrimento pode aproximar um ser humano do outro e de Deus de uma
forma tão profunda quanto laços de sangue. A tendência, em alguns casos, é
aproximar-se do outro que sofre da mesma maneira, ajudá-lo e ser ajudado.
O sofrimento também pode aproximar as pessoas de Deus. Uma
observação superficial nas igrejas e grupos cristãos mostrará um grande número de
pessoas que encontraram a Deus no sofrimento e assim puderam vencer as
dificuldades.
A mensagem dos salmos de lamentação é a mensagem da esperança.
Deus nunca desiste do ser humano. E, por mais que este ser tão limitado não o possa
perceber em meio à própria dor, também não deve desistir de encontrar a Deus. Ou até
de se deixar encontrar por Ele.
Concluindo, segue aqui uma citação que resume muito do sentido dos
salmos de lamentação:
"As mais difíceis indagações da vida nunca são 'removidas' (nunca ficamos
sabendo por que Deus faz isto ou aquilo, por que um avião cai ou acontece um desastre
numa mina). Mas somos 'redimidos' do poder destrutivo dessas perguntas. O pânico não
pode mais nos surpreender quando não entendemos o sentido daquilo que Deus permite que
nos aconteça. O seu amor não mais nos confundirá; aprenderemos a crer naquele amor
mesmo quando não compreendemos os meios que aquele amor escolhe para se expressar".
(H. Thielicke apud P. Yancey)28
28- YANCEY, Phillip. Decepcionado com Deus. São Paulo: Mundo Cristão, 1994, 3ª ed., pág. 185
74
Bibliografia
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BONNARD, Pierre E. Os Salmos dos Pobres de Deus. São Paulo: Paulinas, 1975
GESTENBERGER, Erhard S. Os Gêneros dos Salmos no Antigo Testamento.
Faculdade de Teologia, 1982, apostila
GESTENBERGER, E. S. e SCHRAGE, Wolfgang. Por que sofrer? São Leopoldo:
Sinodal, 1979
GIRARD, Marc. Como ler o livro dos Salmos - Espelho da Vida do Povo. São Paulo:
Paulinas, 1992
GOTTWALD, Norman. Introdução Sócio-Literária à Bíblia Hebraica. São Paulo:
Paulinas, 1988
JONES, E. Stanley. Cristo e o sofrimento humano. São Paulo: Vida, 1991
SHILLING, Otimar. Os salmos, louvor de Israel a Deus. Palavra e Mensagem -
Introdução Teológica e crítica aos problemas do Antigo Testamento. São Paulo:
Paulinas, 1978
SICRE, José Luiz. Introdução ao Antigo Testamento. Vozes: Petrópolis, 1995
TEPE, Valfredo. Para que tanto sofrimento? Petrópolis: Vozes, 1996
TRADUÇÃO ECUMÊNICA DA BÍBLIA. São Paulo: Loyola, 1994
YANCEY, Phillip. Decepcionado com Deus. São Paulo: Mundo Cristão, 1994, 3ª ed.
WEISER, Arthur. Os Salmos - Grande Comentário Bíblico. São Paulo: Paulus, 1994
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