santa joana de hollywood: anÁlise dos elementos
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UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI
ABKEILA CRISTINA DOS SANTOS
SANTA JOANA DE HOLLYWOOD: ANÁLISE DOS
ELEMENTOS HAGIOGRÁFICOS NOS FILMES DE VICTOR FLEMING E LUC BESSON
SÃO PAULO 2014
ABKEILA CRISTINA DOS SANTOS
SANTA JOANA DE HOLLYWOOD: ANÁLISE DOS ELEMENTOS HAGIOGRÁFICOS NOS FILMES DE VICTOR
FLEMING E LUC BESSON
Dissertação de Mestrado apresentada à Banca Examinadora, como exigência para a obtenção do título de Mestre do Programa de Mestrado em Comunicação, área de concentração em Comunicação Contemporânea da Universidade Anhembi Morumbi, sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Antonio Vadico.
SÃO PAULO 2014
ABKEILA CRISTINA DOS SANTOS
SANTA JOANA DE HOLLYWOOD: ANÁLISE DOS ELEMENTOS HAGIOGRÁFICOS NOS FILMES DE VICTOR
FLEMING E LUC BESSON
Dissertação de Mestrado apresentado à Banca Examinadora, como exigência para a obtenção do título de Mestre do Programa de Mestrado em Comunicação, área de concentração em Comunicação Contemporânea da Universidade Anhembi Morumbi, sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Antonio Vadico.
Aprovado em 18/12/2014
Prof. Dr. Luiz Antonio Vadico
Prof. Dra. Laura Loguercio Cánepa
Prof. Dra. Regina Rossetti
DEDICATÓRIA
Dedico esta pesquisa a toda minha família, em especial a minha querida filha
Sophia por ser minha luz, minha musa inspiradora, minha joia! Meu coração batendo
fora do corpo que fortalece a cada minuto e me dá estímulos para seguir sempre em
frente sempre, não importando o tamanho dos meus desafios, dedico este trabalho a
você minha princesa!
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Universidade Anhembi Morumbi que me abriu as portas do
universo acadêmico, me incentivando nesta conquista tão valiosa.
Ao meu querido professor orientador Luiz Vadico, pelo incentivo, paciência e
a forma que me tranquilizou nos momentos de instabilidade durante o
desenvolvimento e construção da minha dissertação.
À professora Dra. Maria Ignês Carlos Magno e Dra. Laura Cánepa, ambas
arguidoras do meu exame de qualificação, pelas contribuições valiosas dispensadas
a este trabalho.
Aos professores Dra. Bernardette Lyra, Dra. Gelson Santana, Dra. Renato
Pucci e Dra. Sheila Schvarzman, pelas aulas ministradas e a possibilidade da
descoberta de novos caminhos que me conduziram na busca pelo saber da
Comunicação.
Agradeço a toda equipe do Programa de Mestrado em Comunicação por todo
apoio e incentivo desde o início do curso até minha conclusão.
Aos amigos que fizeram parte desses momentos, sempre me ajudando e
incentivando, em especial à querida Silvia Hito, pelos bate papos longos, troca de
ideias ou mesmo só para me ouvir. Você é uma pessoa incrível, sua ajuda foi um
acalanto nos dias mais difíceis. Amiga Debora Chabes, chegou de mansinho numa
amizade quase que tardia, mas não menos valiosa, você esteve comigo em dias que
somente uma boa amiga pode nos entender. E a querida Juliana Miranda, mesmo
longe do meu dia-a-dia, foi sempre uma amiga de palavras de incentivo e apoio
nesta jornada de desafios.
A minha família, Avós queridos (José Israel e Cecília Ana), que me criaram
dentro de valores que nunca deixarei de seguir e me possibilitaram a base para
chegar até aqui, a minha mãe (Carmelita), uma guerreira que amo e admiro muito,
meu irmão (Adailson, Júnior), minha sogra (Hélia), a meu querido esposo (Clayton) e
filha princesa (Sophia), agradeço pelo amor e compreensão por meus momentos de
ausência, cansaço e estresse, prometo que vou recompensá-los.
RESUMO
Esta dissertação tem por objetivo analisar a representação no cinema da
personagem histórica Joana d´Arc, através da análise fílmica levando em
consideração a Hagiografia Fílmica. O estudo terá como objeto duas obras de
mesmo título, Joana d´Arc, o primeiro de Victor Fleming (1948) e de Luc Besson
(1999). Eles foram escolhidos por serem de produção Hollywoodiana e por
representarem dentro da filmografia de Joana d´Arc marcos significativos no que se
refere ao seu contexto histórico e político. O filme de Fleming busca construir a
imagem de uma Santa, enquanto o filme de Besson realiza o processo inverso, dois
filmes paradigmáticos e escolhidos para comparação. Pretendemos observar como
se constrói a representação cinematográfica de Joana d´Arc e com que finalidade
ela ocorre.
Palavras-chave: Cinema. Análise. Hagiografia fílmica. Estética. Joana d´Arc.
ABSTRACT
This dissertation aims to examine the representation in the cinema of the
historical character Joan of Arc, through film analysis taking into account the
hagiography film. The study will object two works of the same title, Joan of Arc, the
first of Victor Fleming (1948) and Luc Besson (1999). They were chosen because of
Hollywood production and they represent within the filmography of Joan of Arc
significant milestones in relation to its historical and political context. Fleming's film
seeks to build the image of a saint, while the Besson film performs the reverse
process, two paradigmatic films and chosen for comparison. We intend to observe
how the film is constructed representation of Joan of Arc and for what purpose it
occurs.
Keywords: Cinema. Analysis film. Filmic hagiography. Aesthetics. Joan of Arc.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 09
1. Joana d´Arc direção Victor Fleming ............. ..................................................... 29
1.1. Ficha técnica ...................................................................................................... 29
1.2. Aceitação/Crítica ................................................................................................ 30
1.3. Análise Estética/Narrativa .................................................................................. 32
2. Joana d´Arc direção Luc Besson ................. ...................................................... 64
2.1. Ficha técnica ...................................................................................................... 64
2.2. Aceitação/Crítica ................................................................................................ 65
2.3. Análise Estética/Narrativa .................................................................................. 65
3. Análise das características hagiográficas em Joa na d´Arc de Victor Fleming
e Luc Besson ..................................... ..................................................................... 85
3.1. A protagonista .................................................................................................... 85
3.2. A família e sociedade ......................................................................................... 88
3.3. Identificação do espectador ................................................................................ 90
3.4. Conversão .......................................................................................................... 91
3.5. Discipulado ......................................................................................................... 93
3.6. Confronto ............................................................................................................ 93
3.7. Exemplaridade e o social ................................................................................... 99
3.8. Mortificação da carne ....................................................................................... 100
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................. ...................................................... 102
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................ ............................................... 104
ANEXO I.................................................................................................................. 109
9
INTRODUÇÃO
Esta dissertação tem por objetivo analisar a representação no cinema da
personagem Joana d´Arc, considerando a Hagiografia Fílmica para realização da
Análise Fílmica. A partir da filmografia disponível, o estudo se baseará em dois
filmes hollywoodianos de mesmo nome, Joana d´Arc, o primeiro sob a direção de
(Victor Fleming, 1948) e o segundo na direção de (Luc Besson, 1999), a escolha das
obras tem como referência o marco representativo de cada uma delas.
A linha de pesquisa para esse estudo tem como base a análise estética,
poética, histórica e narrativa dos filmes selecionados, as influências sofridas, estilo
do Diretor e os impactos destas obras na filmografia de Joana d´Arc, considerando a
Hagiografia Fílmica como elemento referencial para o desenvolvimento das análises
comparativas.
As produções são Hollywoodianas, possuem estética e narrativa homogênea
destinada para um público massivo. Ambos foram lançados em períodos
histórico/político de relevância, dados estes que serão aprofundados na análise
fílmica de cada filme. Outro ponto e convergência entre os filmes selecionados é a
similaridade na representação da história de Joana d´Arc de forma completa, do
momento do chamamento através das visões até a morte na fogueira.
No filme de Fleming a representação de Joana baseia-se na imagem de uma
Santa, enquanto o filme de Besson realiza o processo inverso, a representação em
crise da imagem de Joana, uma personagem num processo de desconstrução ou
reconstrução, o estudo pretende analisar como se constrói a representação
cinematográfica de Joana d´Arc, nas produções escolhidas e com que finalidade ela
ocorre.
O filme com direção de Victor Fleming foi escolhido por se tratar do primeiro
filme sobre a história da vida de Joana d´Arc produzido na era do cinema colorido, e
que se propõe a construção da imagem da Santa Joana, se apoderando de
elementos que fortalecem a imagem de uma Joana santificada. Outro dado
relevando é o período da produção, pois 1948 retrata um momento social/político
pós Segunda Guerra Mundial.
10
O filme de Luc Besson é a última grande produção para o grande público sobre
a história de Joana d´Arc. Este filme traz uma personagem em crise, desconstruída
e/ou num processo de reconstrução, desequilibrada emocionalmente, histérica,
traumatizada e perdida. Assim como o filme de Fleming marca um período
importante no contexto social/político, a produção de Besson em 1999 surge num
período de final da Guerra Fria. Essa semelhança é mais um dos pontos que chama
a atenção para os filmes escolhidos, pois o momento de lançamento dos mesmos
acontece num cenário social/político bastante relevante no que se refere a períodos
de pós-guerra significativos na história mundial. Uma particularidade que chama
atenção nos filmes escolhidos para análise é a semelhança no perfil físico das
atrizes escolhidas para interpretar Joana, loiras, belas e já conhecidas do grande
público por outros filmes no cinema1.
No processo da pesquisa dos filmes sobre Joana d´Arc foi possível observar a
construção da sua representação por vezes reafirmando sua santidade, ou
desconstruindo sua imagem de Santa e em outros filmes há ênfase na
representação da Santa guerreira, alguns filmes foram produzidos em momentos
social/político de pós-guerras e outros filmes abordam diferentes períodos da história
da vida de Joana e outros considerando sua história por completa na narrativa.
O cinema Hollywoodiano é responsável por várias produções sobre a Santa
guerreira da França e, diante deste contexto, a pesquisa seguiu para um caminho do
recorte de quais filmes seriam considerados para análise neste estudo. A primeira
similaridade considerada foi a origem da produção, o filme de (Victor Fleming, 1948)
é a primeira produção fora da França sobre Joana d´Arc, 20 anos depois do filme
produzido na França por Carl Theodor Dreyer, (1928), uma das produções mais
conhecidas sobre Joana d´Arc.
O filme de Luc Besson (1999) produção Americana, com participação da
França, que diferentemente da de 1948, tem por objetivo a
desconstrução/reconstrução da representação de Santa Guerreira. Nesta, o diretor
1 Ingrid Bergman (Filme de Direção de Victor Fleming) por Casablanca de 1942 e Quando fala o coração de 1945 e Milla Jovovich (Filme de Direção de Luc Besson) por De volta a lagoa azul de 1991.
11
insere episódios fictícios e traumáticos2 na história de Joana, como forma de
embasar sua narrativa, ou seja, uma Joana por vezes desequilibrada e insegura.
Antes de nos aprofundarmos na análise fílmica dos filmes, é fundamental
conhecer a história desta heroína francesa, uma das personagens feminina mais
conhecida da história da França e do catolicismo.
No ano de 1412, nasce à quarta criança de um casal de camponeses Jacques
d´Arc e Isabel, na aldeia de Domremy, na região de Órleans/França. Os pais a
chamaram de Joana como quase metade das meninas de sua geração. Seus pais
eram católicos praticantes e a criaram na fé cristã. Joana foi educada para ser uma
boa esposa. “Joana era uma moça boa, simples e afável. Ela frequentemente ia à
Igreja e aos lugares sagrados. [...] tinha “boa conduta, era devota e paciente.”
(PERNOUD, 1996, p.14).
Desde criança Joana, ouvia vozes3 lhe revelando a missão de libertar a França
dos invasores ingleses, no início Joana mantém segredo sobre suas revelações,
porém elas se tornam cada vez mais insistentes e permanentes. Joana torna-se
obstinada em sua missão de cumprir a vontade de Deus pelas mensagens recebidas
através de visões e vozes4.
A jovem Joana d´Arc, em cumprimento de sua missão, liderou exércitos,
possibilitou a coroação do seu rei Carlos VII e ao final teve um destino trágico sendo
acusada de heresia, e queimada viva no dia 30 de maio de 1431, na Inglaterra.
“Joana d´Arc é provavelmente, a figura de mulher mais documentada de toda a
História.”5. Segundo Mary Gordon: “Existem mais de vinte mil livros sobre Joana
d´Arc na Bibliotheque Nacional de Paris.”6 A história de Joana d´Arc desperta
interesse de muitos, podemos confirmar pelo número de obras escritas a seu
respeito, segundo Seller, Joana d´Arc tornou-se um mito.7
2 Fictícios: são informações inverossímeis, invenção. Traumáticos: Um evento que afetou a vida intima e pessoal do indivíduo. 3 BEAUNE, Colette. Joana d´Arc. trad. Marcos Flamínio Peres. São Paulo: Globo, 2006, p. 15. 4 São Miguel Arcanjo, Santa Catarina e Santa Margarida, segundo BEAUNE, Colette. Joana d´Arc. trad. Marcos Flamínio Peres. São Paulo: Globo, 2006, p. 15. 5 BEAUNE, Colette. Joana d´Arc. trad. Marcos Flamínio Peres. São Paulo: Globo, 2006, p. 15. 6 GORDON, Mary. Joana d´Arc. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p.9. 7 SELLER, Philippe. Heroísmo (o modelo – da imaginação), in BRUNEL, Pierre (org.). Dicionário de Mitos Literários. Rio de Janeiro: Ed. da UNB, 1997, p. 472.
12
Na literatura brasileira, encontramos a obra de Erico Verissimo “A vida de
Joana d´Arc8”, que no prefácio do livro fala sobre sua fascinação pela história de
Joana. No entanto, dentre as obras sobre ela, também encontramos obras que
questionam sua boa fé e conduta, uma delas é uma publicação de Beaune em o
Journal d´un Bourgeois de Paris à la fin de la Guerre de Cen Ans9, Diário de um
burguês de Paris, que na tradução do texto diz: Jeanne [...] tem enganado o povo, o
fez idolatrar as pessoas simples, pois, por sua falsa hipocrisia, seguiu-lhes como
santa virgem.
A partir dos séculos XVI a XVIII, a história de Joana d´Arc ganha muitas obras.
No entanto, o auge desta produção se dá no século XIX, tornando-a figura essencial
nas histórias sobre a França. É nesse século que surge a ideia de canonização
liderada pelo Monsenhor Dupanloup, Bispo de Órleans. Joana é declarada “Beata”
em 1909, “Santa” em 1920 e em 1922 ela é canonizada como a “Segunda Padroeira
da França”. A trajetória de Joana d´Arc desperta o interesse de diversas áreas não
só pela sua própria história dentro da História da França, como para Dramaturgia,
Psicologia e também dos chamados estudos Espirituais. Segundo Amaral10, a
dimensão que tomou a história de Joana d´Arc é surpreendente, atualmente contam-
se aproximadamente 20.000 estátuas públicas, 800 biografias históricas, mais de 30
produções para Cinema e TV11, diversas peças de teatro, romances, musicais,
inclusive uma ópera composta por Verdi “Giovana d´Arco”, além das obras
inacabadas de Tchaikovski e Ravel.
Dentro da extensa produção relativa à Joana d´Arc, o cinema também
contribuiu de maneira significativa para construção da sua representação,
reafirmando-o como uma santa guerreira, uma mulher comum escolhida para uma
grande missão.
8 VERÍSSIMO, Érico. A vida de Joana d´Arc. Porto Alegre: Globo, 1978. 9 “La dame Jeanne [...] a trompe le peuple, a fait idolâtrer le simple peuple, car par sa fausse hypocrisie, ils la suivaient comme sainte pucelle”. Journal d´un bourgeois de Paris. Editado por Colette Beaune, Paris, 1990, p.292. 10 Vide: AMARAL, Flavia Aparecida, “História e ressignificação: Joana d´Arc e a historiografia francesa da primeira metade do século XIX, Tese de Doutorado 2012, que pode ser acessado no site: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-14012013-105821/pt-br.php acessado em 23 de setembro de 2013. 11 O primeiro filme sobre Joana d´Arc foi feito em 1898 por Georges Hatot e se chama “Jeanne d´Arc. Cf. BOUZY, Olivier, CONTAMINE, Philippe. & HÉLARY, Xavier. Jeanne d´Arc: Histoire et dictionnaire. Bouquinis, 2012.
13
As imagens e discursos sobre as mulheres na Idade Média foram elaborados
por homens da Igreja, celibatários12 em sua maioria e instigados em seus ambientes
de formação e atuação social, a pensar a mulher como herdeira de Eva e agente de
Satã, condenada por Deus ao sofrimento e ao domínio masculino. Amparados nos
textos dos Gênesis, os doutores da Igreja procuraram explicar a propensão das
mulheres para o mal, para a infidelidade e para a astúcia e afirmaram a necessidade
de um controle masculino sobre a porção mais frágil da humanidade:
O relato da criação confortou os doutores que formavam os pregadores na
sua certeza: é muito mais oneroso na mulher o peso da sensualidade, isso
é do pecado, dessa ‘parte animal’ cujo controle incube a razão, a qual
predomina no macho. (DUBY, 1996, p. 59).
Produções que contribuíram sobremaneira na difusão do pensamento
misógino, que se desenvolveu a partir dos centros eclesiásticos de produção
intelectual e se difundiu na literatura doutrinária. Sobre essas ideias ou em
contraposição a elas foram construídas as imagens de inúmeras personagens
ficcionais ou históricas, cujas ações encontram-se ambientadas na Idade Média, que
o cinema contemporâneo contribuiu para difundir, como é o caso de Joana d’Arc.
A história de Joana D’Arc foi tomada como tema central de vários filmes, nos
quais ela foi à personagem central de uma trama que envolveu Estado e Instituições,
Joana oscila nas tramas cinematográficas entre a glória e a repulsa, entre a fogueira
e o altar, mas, em consonância com as formas de apreensão contemporâneas dos
papéis femininos, ela é frequentemente apresentada como uma mulher à frente de
seu tempo, que ousou agir no sentido contrário aos padrões de comportamento
esperados das mulheres nos últimos séculos da Idade Média.
A que podemos atribuir tamanha repercussão de uma história como de Joana
d´Arc? É possível estabelecer as razões para tal popularidade? Uma história
bastante peculiar, que circula de uma virgem donzela chegando a uma Santa, ao
longo de um caminho com rupturas e novas atribuições à heroína Joana d´Arc.
Importante destacar que o período de maior interesse e produção sobre a história de
Joana se deu durante o século XIX, período significativo na construção de uma nova
imagem atribuída à Joana d´Arc.
12 Celibário: Do latim caelibatus, estado daquele que não é casado ou que é célibe.
14
Na importante obra organizada por Philippe Contamine e Olivier Bouzy, Jeanne
d´Arc – Histoire et Dictionaire, foi destinado um capítulo acerca dos estudos sobre
Joana, que foram divididos de maneira temática e cronológica, reunindo de maneira
clara e concentrada informações fundamentais para estudos sobre a personagem
Joana d´Aarc, é possível identificar que na primeira metade do século XIX, foram
produzidos apenas quatro importantes trabalhos sobre Joana13, porém, ao
contabilizarmos os estudos que se dedicam à contemporaneidade de Joana – do
seu nascimento à fogueira – existem mais de 72 obras.14
Em suma, a história de Joana d´Arc despertou interesse no cinema do cult ao
hollywoodiano, na literatura com centenas de biografias escritas por autores
variados, dentre eles podemos citar de Marc Twain a Érico Veríssimo, foi portanto, a
representação de Joana d´Arc construída, disseminada e universalizada através das
obras que contribuíram na associação da história de Joana d´Arc a algo que poderia
responder a seus anseios e preocupações.
Importante aqui esclarecer a noção de representação com qual lidaremos. A
representação compreende a forma de objetivar uma história contada ou escrita,
uma atividade conhecida ou não, através da sua representação, reestabelecendo
uma nova representação do acontecimento e de como esta representação se dá no
imaginário do autor, portanto, podemos no estudo proposto aqui compreender por
representação o que o roteirista construiu e que será contato no cinema através da
visão de um Diretor de Cinema, que vai reproduzir seu roteiro, apresentando a visão
dele no contexto da narrativa, através de outros elementos como atuação do ator,
cenário, figurinos, luz, tomada da câmera entre outros, criando uma nova
representação da história para o espectador.
Como já mencionado, uma representação é sempre de alguém sobre alguma
coisa, incluindo um terceiro elemento o outro (o representado), assim as novas
13 CONTAMINE, Philippe. “Jules Quicherat historien de Jeanne d´Arc”. In: De Jeanne d´Arc aux guerres d´Italie. Figures, images et problems du XV e siècle. Orleáns: Paradigme, 1994. p. 179-191; GURY, Jacques. “L´historien et les mythes de Jeanne d´Arc des Lumières au Romantisme”. In: Jeanne d´Arc. Une époque, un rayonnement. Colloque d´histoire médiévale. Orleáns, 1979; MILLET, Claude. La Jeanne d´Arc de Michelet: histoire d´un seuil. In: Images de Jeanne d´Arc. Actes de colloque de Rouen. Presses Universitaires de France: Paris, 2000. p. 197-206. VIALLANEIX, Paul. “La Jeanne d´Arc de Jules Michelet, legende romantique.” In: Travaux de linguistique et de litérature, t. XVII, nº 2, Études littéraires. Strasbourg. 1979, p. 05-114. 14 Cf. BOUZY, Olivier, CONTAMINE, Philippe. & HÉLARY, Xavier. Jeanne d´Arc: Histoire et dictionnaire. Bouquinis, 2012.
15
informações, inicialmente podem ser percebidas pelos sujeitos (indivíduo/grupo)
como dispersas e não relacionadas, e só depois serem ancoradas ao já sabido.
Segundo Morin15, o público desse conteúdo é o chamado homem médio16, possuidor
de uma visão de si mesma homogeneizada, Morin afirma que os produtores
procuram incutir gostos e desgostos e, assim, “a homogeneização procura tornar
assimiláveis ao homem médio os mais diferentes conteúdos” (MORIN, 1977, p. 36).
...um homem que em todas as partes responde às imagens pela
identificação ou projeção [...], o homem criança que se encontra em
todo homem, gostando do jogo, do divertimento, do mito do conto
[...], o homem que em toda parte dispõe de um tronco comum de
razão perceptiva, de possibilidades de decifração, de inteligência.
(MORIN, 1977, p. 44 e 45).
Enquanto que segundo Sirinelli17, de maneira sinérgica a história cultural é fruto
ao mesmo tempo como história das representações do mundo e como elas são
elaboradas pela mente humana, ou seja, nossa cultura é resultado de conjuntura
destes dois polos desde os sistemas de pensamento mais construídos até as
sensibilidades mais simples, eles delimitam um campo de estudo, tendo por objeto
tudo aquilo que é dotado de sentido em um grupo humano em determinado período.
Visando à maneira como os indivíduos e a sociedade concebem, representam
a realidade e de como essa concepção orienta suas práticas sociais onde o método
utilizado como referência é o mundo que serve como representação para compor
sua história, suas lendas, suas ficções e seu próprio imaginário, responsável em
transmitir através das gerações a continuidade de um fato histórico, no qual o estudo
aqui se propõe. Segundo Cruz18 o ato de representar está baseado na ideia de
como imagens mentais que se formam no cérebro e elas só são verificáveis por um
único ator, aquele que as imagina. A partir desta observação podemos, portanto
15 Edgar Morin, nasceu em Paris em 8 de julho de 1921. Crítico do ensino fragmentado. Precursor da teoria da complexidade, minuciosamente explicada nos quatro livros da série Método, no qual defende a interligação de todos os conhecimentos, combate o reducionismo instalado em nossa sociedade e valoriza o complexo. 16 O homem médio ou universal é um conceito antropológico do anthropos. 17 Jean-François Sirinelli, nasceu em Paris em 11 de junho de 1949. É um especialista da história francesa, e especialista da história política e cultural da França no século XX. Professor de universidades e do Instituto de Estudos Políticos de Paris e Diretor do Centro de História e de Ciências Políticas de Paris. SIRINELLI, J. F. Para uma história cultural. Lisboa: Estampa. 1998, p.335. 18 CRUZ, Joliane Olschowsky da. Mulher na Ciência: Representação ou Ficção. 2007. Tese de Doutorado – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.
16
compreender que as representações, são como um espelho de uma imagem, de
uma fala, de um fato, do real ou do imaginário.
Para Moscovici19, as representações são responsáveis por comportamentos e
atitudes dos indivíduos da coletividade, mas sofrem alterações a partir da vivência
na qual é forjada e para Pierre Bordieu20, ‘só triunfa se aquele (a) que sofre contribui
para a eficácia; ela só o submete na medida em que ele (ela) é predisposto por um
aprendizado anterior a reconhecê-la.
As representações são parte do processo da construção da coletividade, dentro
do cenário de análise da figura de Joana d´Arc, tal constatação nos remete a
percepção de que a ressignificação dada a Joana dentro do cinema, sofre as
influências do momento histórico, político, social das produções, dos produtores,
diretores, roteiristas e sobre a própria interpretação das atrizes no papel de Joana.
No que tange as obras escolhidas, duas características as diferenciam, uma é de
(Fleming) com a representação da figura de Joana como Santa, com elementos que
reforçam essa representação de maneira consistente, e, a obra de Luc Besson,
desconstrói a heroína santa, apresenta uma personagem, histérica e desequilibrada
o desenvolvimento da narrativa necessita da figura masculina protegendo-a.
A análise do contexto histórico, político, social da representação da história de
Joana dentro das produções cinematográficas são sine qua non no estudo proposto
aqui. As produções no cinema dispõem de um grande volume de obras a respeito da
personagem escolhida para este estudo, Joana ocupa um lugar de destaque dentro
dos filmes religiosos21, pois foi sobre ela que se fez o maior número de filmes nesse
gênero, especificamente sobre santos, neste caso Filmes Hagiográficos.
O que levou Joana d´Arc a ser assunto cinematográfico? Joana d´Arc viveu em
plena idade média, numa França desunida e em guerra. Período de grande
mortalidade trazida pelas chuvas, fome e peste negra, ampliada pela longa guerra
entre os reis de Inglaterra e França. O que entre combates e tréguas, disputavam
território e poder, pela região de Bordéus (domínio feudal do rei da Inglaterra, de
onde provinha grande parte dos vinhos que os ingleses bebiam) e pelas ambições
19 MOSCOVICI, Serge. A Representação Social da Psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1978. 20 BORDIEU, P. La noblesse d’ état. Gradnes écoles et espirit de corpo. 21 Filmes sobre Santos, ou Filmes hagiográficos.
17
da França e da Inglaterra em dominarem a região de Flandres (rica por seu
comércio e produção de tecidos). A Guerra dos Cem anos como foi chamado esse
período durou aproximadamente 32 anos, entre batalhas vencidas ora por ingleses
ora por franceses e períodos de trégua, a guerra aumentou as dificuldades da
nobreza e agravou a situação de miséria dos servos.22
Joana d´Arc surge como um alento na história de desolação que se encontrava
a França, período dominado pela Igreja que detinha o poder liderando a governança
com grande autoridade, a jovem Joana de 17 anos aproximadamente surge na
história, respaldada no poder das visões numa missão de salvação e sacrifício pela
França, quando o cinema lança mão da representação da história de Joana por
tantas vezes, podemos compreender como um recurso de representação desta
personagem salvadora ora santa ora guerreira, forte ou fragilizada, porém, sempre
como uma referência.
Para Winock, Michelet foi o grande responsável por transformar a imagem de
Joana d´Arc fazendo dela o paradigma do heroísmo e do bom senso popular e,
sobretudo, a iniciadora do sentimento de nação,23 contribuindo sobremaneira na
popularização extrema pela qual passou a figura de Joana posteriormente.
O grande referencial que devemos ter em mente são os filmes escolhidos para
análise, pois ambas apresentam a história completa de Joana e o processo da
personagem se dá destacando o poder de articulação que a literatura também fez
referências de maneira clara e baseada nos documentos datados de tal época.
Temos aqui um elemento importante para análise, como uma jovem, mulher em
plena idade média, analfabeta, criada no campo é capaz de articular e conversar
com um Rei e defender-se no julgamento com jogo de palavras, articulações muito
bem construídas durante sua defesa perante o tribunal. Um elemento interessante
nesta história tão peculiar é uma jovem mulher, em plena idade média capaz de
convencer Reis da sua missão e obter através do seu discurso de engajamento
religioso e de guerra o comando de um exército para comandá-los nas batalhas pela
libertação da França, conseguir a obediência de seus soldados para lutarem nas
22 FRANCO Jr, Hilário. Idade média. Nascimento do Ocidente. São Paulo, Brasiliense, 1998. 23 WINOCK, M. Jeanne d´Arc. In: NORA, Pierre. Les lieux de mémorie. Paris: Galimard, 1984. p. 4427-4544. v. 3.
18
batalhas, e todas essas ações, conquistas através do discurso, com uma narrativa
rica, envolvente e pautada na religiosidade através das suas visões.
Joana viveu em um período da história em que a mulher era subjugada, as
filhas eram totalmente excluídas de sucessão ou quaisquer outras atividades senão,
cuidar da casa, com afazeres domésticos e de servir aos homens da casa, cuidar do
seu bem estar, eram criadas para cuidar e servir, preparadas para o casamento
(arranjado) com fim único e exclusivo de procriação, ou seja, a mulher quando se
casava simplesmente trocava de homem ao qual tinha que se submeter, do pai para
o marido.
O contexto que Joana d´Arc viveu dentro da estrutura familiar, destaca-se por
características típicas ao heroísmo, piedade, simplicidade, honestidade e castidade,
e para corroborar com esta percepção o descritivo em notas do processo de
condenação e de anulação de condenação confirmam. “Casa hospitaleira, humilde e
casta, onde todas as virtudes habitavam”24. Um jovem comum como a maioria das
garotas camponesas da França, então temos um chamamento do comum, do
popular o que retoma a conceituação de identificação, lembrando que a condição de
humildade é exaltada não do ponto de vista social, mas moral, ou seja, um elemento
a mais que revela o caráter heroico de sua personalidade que não conhece
barreiras.
Boa moça, simples, casta, modesta, moderada, paciente, prudente, muito
doce, trabalhadora, temente a Deus, gostava de fazer caridade e servir os
doentes. (...) Tinha bons modos, uma fala honesta, nunca jurava, obedecia
aos pais e procurava a companhia das mulheres e moças virtuosas. Cedia
seu próprio leito, tinha pouco gosto pelo canto e pela dança, era tímida.25
Todos os adjetivos para descrever Joana, são virtudes consideradas essenciais
aos cristãos, praticantes e que buscam o caminho da perfeição e da salvação,
portanto, Joana d´Arc era a heroína perfeita para França porque possuía
características de uma heroína cristã.
Charmettes tenta a partir dos depoimentos do processo de anulação, ele tenta
traçar as características físicas de Joana, que aparentam que são frívolas, explicam
24 LEBRUN DES CHARMETTES. Epítres politiques sur nos extravagances. Paris, 1831. 25 Idem, p. 253.
19
a facilidade com que Joana teve para convencer os personagens do reino a ouvirem
uma simples jovem camponesa. “A candura, a inocência virginal, a pureza angelical,
com alguma coisa de sonhadora e uma ponta de tristeza formavam a característica
geral de sua fisionomia.”26, aqui podemos observar a construção de uma imagem
imaculada, pura, angelical, sagrada o que reforça a representação da personagem
como Santa o que refletem seu perfil mais moral do que físico.
O heroísmo surge no momento em que se descreve o elemento feminino e
suas características, no entanto, busca ainda mais o enquadramento no modelo de
herói.
Uma particularidade muito notável parecia manifestar os desejos de Deus
em relação a ela. Mulher pela doçura, o pudor e a modéstia, mas isenta da
maior parte das fraquezas associadas ao seu sexo, ela também não estava
sujeita a esse tributo regular e incômodo que, mais do que as leis e os
costumes, interdita em geral às mulheres as funções as quais são atribuídas
aos homens. (CHARMETTES, 1831, p. 320)
Joana é descrita com as características de pudor e modéstia, escolhida por
Deus e isenta das fraquezas associadas ao gênero, interessante como ao mesmo
tempo em que enaltece é desprezado o que se considera fraqueza.
Não menos importante é a questão da moral religiosa, existia uma aguada
desconfiança em relação ao prazer, e a mulher não era permitido o prazer de
nenhuma natureza, o que vemos na história de Joana, quando questionada acerca
da sua pureza. As mulheres não tinham permissão para o prazer, impedidas de se
elevar em direção a Deus. A inferioridade feminina provinha da fragilidade e da sua
fraqueza diante da carne. Quando a mulher se atrevia ao prazer era condenada e
desprezada pela sociedade. Tal histórico da idade média se manteve por séculos e
ainda hoje a sociedade luta por conquistas do espaço e reconhecimento para as
mulheres.
A escolha do filme Joana d´Arc de 1948, nos remete a outros dados de
pesquisa muito pertinentes, estamos diante de um período histórico/político que
sofre com as consequências do fim da 2º guerra mundial, um período de resgate de
identidade e esperança para sociedade. A guerra acaba em 1945 com a vitória dos
26 Idem, p. 369.
20
aliados, impactando significativamente na política e estruturação social mundial,
neste período acontece o estabelecimento da ONU – Organização das nações
unidas, com objetivo de estimular a cooperação global na tentativa de evitar futuros
conflitos, a União soviética e os Estados Unidos surgem como superpotências rivais,
promovendo o surgimento da Guerra fria que perdurou por mais de 40 anos27. O
filme dirigido por Fleming se originou numa peça de teatro, mas este constrói uma
imagem de forte apelo religioso, ou seja, da ênfase na Santa Joana.
O filme dirigido por Luc Besson, já em 1999 se estabelece num outro período
histórico político extremamente significativo, pois já em meados dos anos 90, o fim
do confronto político-ideológico entre capitalismo e socialismo criou um cenário
mundial com novas forças desestabilizadoras, substituindo a bipolarização pela
multipolarização. Crises econômicas, nacionais, separatistas e étnico-culturais em
todos os continentes confirmam que o século XX seria encerrado dentro de um
contexto tão tenso quanto começou. A revolução tecnológica, em especial na
informática e nas telecomunicações, continua causando mudanças nas formas de
trabalhar e de se relacionar, promovendo o advento da globalização que no final da
década de 90 se concretiza.
O jogo de forças muda, das questões político-ideológicas e militares da Guerra
Fria para as econômico-tecnológicas da Nova Ordem. Isso demostra que, mais do
que uma nova distribuição de forças, a última década do século XX alterou a própria
natureza do poder. Por outro lado, a globalização avança, ultrapassando as antigas
fronteiras territoriais.
Diferentemente da obra de 1948, Luc Besson traz na representação de Joana
d´arc em seu filme de 1999, uma personagem histérica, até certo ponto insegura e
carente de um homem para mantê-la nos eixos. Outros elementos são inseridos
nesta história que promovem uma desconstrução da figura de Joana a Santa, o
ponto focal da obra centra-se na desconstrução da personagem cinematográfica.
É importante para o estudo proposto que também sejam analisadas as demais
obras de Joana d´Arc no cinema, pois o contexto histórico e político no qual estão
inseridas refletem de maneira significativa na sua narrativa.
27 Guerra fria de 1945 a 1991.
21
Mediante o mapeamento realizado28, foi possível identificar que nos primórdios
do Cinema o primeiro filme sobre Joana que se tem notícia é a obra de Georges
Hatot (L’Exécution de Jeanne d’Arc / 1898/França); no ano seguinte de Georges
Méliès (Joana d’Arc / Jeanne d’Arc / 1899/França); Com intervalo maior, foram
produzidos os filmes de Albert Capellani (La Vie de Jeanne d’Arc / 1908/França); e
Mario Caserini (Vita de Giovanna d’Arco / 1909/Itália).
Neste período histórico das primeiras produções cinematográficas de Joana em
1898 e 1908 França e 1909 Itália, são filmes produzidos antes da Primeira Guerra
mundial que durou de 1914-1918, período de expansão do poderio da Europa,
especialmente Alemanha, França, Bélgica, momento de grande antissemitismo na
França, porém, num período de desenvolvimento econômico e social que seria
interrompido em 1914, com o início da Primeira Guerra Mundial29.
Um ano antes do início da primeira guerra mundial, em 1913, Ubaldo Maria Del
Colle produz (Joana d’Arc / Giovanna D’Arco/Itália), no qual uma das divas da Itália
Maria Jacobini representou Joana. Outra produção quatro anos depois, em 1917
uma produção que coincide com o fim da 1ª Guerra mundial (Joan the
Woman/França), de Cecil B. DeMille com a cantora de ópera Geraldine Farrar, esta
obra possui um diferencial, pois narra os momentos das visões de Joana d’Arc, com
as aparições de São Miguel, Santa Margarida e Santa Catarina, que lhe indicam o
êxito que terá na Guerra dos Cem Anos entre seu povo francês e os ingleses. Outro
ponto que podemos destacar nesta obra de DeMille, são as cenas de batalhas, as
filmagens foram realizadas com ajuda de sete câmeras, o que traz as cenas um
resultado excepcional, esta obra em especial representa um período de guerra e a
representação das batalhas no filme reflete esse momento da Europa, um jogo de
representação entre a Joana santa e guerreira e o período histórico no qual
apareceu. É importante considerar que está produção carrega algumas
peculiaridades interessantes, o título é o primeiro deles, Joana a mulher é a única
produção cinematográfica de Joana d´Arc que no título traz a definição de gênero
como um marco na história, outra particularidade é o roteiro de Jeanie MacPherson,
primeira roteirista mulher nas produções de Joana d´Arc.
28 Vide Sites: Histórias do cinema, acesso: http://www.historiasdecinema.com/2014/02/a-vida-dos-santos-no-cinema e Site Donzela de Domremy, acesso: http://donzeladedomremy.webs.com/mdia.htm 29 VICENTINO, Claudio. História geral. São Paulo: Scipiene, 2005.
22
O pós-Guerra é um período difícil e a estabilidade econômica consolida-se
apenas em 1928, apresentando bons índices de crescimento, essa estabilidade se
reflete na filmografia de Joana, pois é exatamente neste período, após 11 anos do
último filme produzido sobre Joana d´Arc, o dinamarquês Carl Theodor Dreyer, em
1928 produziu (O Martírio de Joana d’Arc / La Passion de Jeanne d’Arc/França),
importante destacar que nesta obra a atriz que interpreta Joana era uma grande atriz
do teatro, Renée Falconetti.
O filme é considerado por alguns críticos de cinema como uma das grandes
obras do cinema mudo, o consideram como um genuíno poema litúrgico que figura
entre um dos melhores filmes de todos os tempos.30
A revolução estética que a obra de Dreyer traz com a utilização sistemática e
eloquente do close-up, é um grande marco no cinema da época, com a abstração
dos cenários, abundância de primeiros planos, os enquadramentos imprevistos e a
montagem minuciosa, até hoje gera impacto com sua estética.
Dreyer radiografou literalmente as almas. Ele agiu sobre os atores com uma
tirania tal, que eles deixaram de serem eles mesmos, para se tornar os
juízes, as testemunhas, os carrascos, a própria Jeanne”… “Não resta mais
nada da face de Falconetti, de sua personalidade, ela não existe senão por
sua arte, que a faz através dos séculos uma evocação mágica de Jeanne
d’Arc.31
No mesmo ano Marco de Gastyne, produz (La Merveilleuse Vie de Jeanne
d’Arc/França), o filme levou dois anos de filmagem, e tem como destaque a
habilidade do diretor em produzir cenas espetaculares (a coroação de Charles VII
em Notre Dame, a captura de Joana em Compiègne e especialmente o seu sítio
bem sucedido de Órleans) tão boas como as do filme de DeMille.
Durante a década de 1930, a política externa francesa foi permeada por
conflitos diplomáticos com a Alemanha, ainda ressentida pelas humilhações
impostas pelo Tratado de Versalhes, a situação se agrava 1938, quando a
30 André Bazin, crítico de cinema. Artigo “Devemos-lhe esse sentimento irrecusável da tradução da alma.” André Bazin. Acesso em: http://cinemaeuropeu.blogspot.com.br/2008/04/o-rosto-no-cinema-v-joana-entre-dreyer.html acessado em 15 de julho 2014. 31 Trecho extraído da revista Cahiers du Cinéma sobre Carl Th. Dreyer (nº 207, décembre 1968), Henri Langlois, disponível Histórias do cinema, acesso: http://www.historiasdecinema.com/2014/02/a-vida-dos-santos-no-cinema.
23
Alemanha nazista anexou a Áustria e a Tchecoslováquia. Quando os exércitos
alemães penetraram na Polônia, França e Inglaterra declararam guerra ao Reich,
em 03 de Setembro de 1939, iniciando a Segunda Guerra Mundial32.
O período hitlerista, Gustav Ucicky filmou (Joana d‘Arc / Das Mädchen Johanna
/ 1935/Alemanha), o grande destaque para esta obra, foi a ideia de uma propaganda
anti-britânica (a Inglaterra era inimiga de Joana), o filme foi exportado
internacionalmente para mostrar a qualidade da produção alemã, porém a
mensagem política passou despercebida por muitos espectadores.
Segundo dados disponíveis no site “Histórias do cinema”, Victor Fleming uniu-
se a Walter Wanger e Ingrid Bergman (atriz que interpreta Joana), para fundarem a
Sierra Pictures, com o objetivo exclusivo de adaptar para a tela a peça “Joan of
Lorraine” de Maxwell Anderson. Importante destacar que esta produção teve uma
grande preocupação com a autenticidade, bem como contou com muitos recursos,
aproximadamente cinco milhões de dólares de investimentos.
O filme (Joan d´Arc/ 1948/EUA) tem sequências deslumbrantes em Technicolor
(Oscar para a fotografia de Joe Valentine, Winton Hoch e William V. Skall), entre
elas a magnífica recriação da catedral de Reims (direção de arte, Richard Day). A
escolha desta obra como um dos filmes sobre Joana d´Arc que será objeto de
estudos aqui se deu a partir de alguns elementos. Primeira produção hollywoodiana
de Joana d´Arc na era do cinema colorido, uma grande semelhança física entre as
atrizes Ingrid Bergman da obra de Fleming com a atriz Mila Jovovich do filme de Luc
Besson que será apresentado mais a frente.
Em 1954, (Joana d’Arc de Rosselini / Giovanna d’Arco al Rogo/Itália), direção
de Roberto Rosselini, enfocou o drama de La Pucelle sob o ponto de vista do neo-
realismo o que nos chama atenção nesta obra é a repetição da atriz Ingrid Bergman
novamente no papel de Joana, no entanto, para alguns críticos o filme é um ato de
pura contemplação e para outros a monotonia do filme é cansativa33 .
32 VICENTINO, Claudio. História geral. São Paulo: Scipione, 2005. 33 Vide Sites: Histórias do cinema, acesso: http://www.historiasdecinema.com/2014/02/a-vida-dos-santos-no-cinema/; Enciclopédia do Cinema, acesso: http://listadefilmes.no.comunidades.net/index.php?pagina=1478629605_92
24
Três anos mais tarde, Otto Preminger dirigiu (Santa Joana /Saint Joan/ 1957/
Britânico) com roteiro de Graham Greene baseado na peça “Saint Joan” de Bernard
Shaw. A história de Joana d ‘Arc forneceu ao célebre autor irlandês um drama por
vezes comovente, onde o humor que ele manipulava tão bem serviu, sobretudo
como pretexto para reflexões, principalmente com relação aos ingleses.
Robert Bresson, em 1963, apresenta (Procès de Jeanne d‘Arc/França),
imprimindo na obra o estilo bressoniano, uma produção despida, lisível, seguindo
rigorosamente os autos do processo do século XV, sendo, portanto uma obra que se
destaca pelo tom intimista e ascético do cineasta, segundo o próprio diretor sua
intenção nesta produção era confrontar a produção de Dreyer de anos antes. Um
grande marco nesta obra de Bresson é o foco absoluto no texto do processo judicial.
As obras de Dreyer e Bresson são extremamente significativas dentro da
filmografia de Joana d´Arc, pois promovem um confronto de representação, inclusive
com esta intenção por parte de Bresson que apresenta sua produção em 63 com o
objetivo de criticar a produção de Dreyer, tida por muitos críticos e até do grande
público com a obra mais emocionante e significativa. Ambos abordam apenas a fase
do julgamento de Joana, e por isso não serão abordados na análise proposta nesta
dissertação, que tem por objetivo a análise da representa de toda a história de
Joana e não apenas de um período.
Ocorre um intervalo significativo entre a produção de Bresson e a próxima
grande produção do conhecimento do grande público, somente em 1999, Luc
Besson apresenta (Joana d´Arc/França) a obra que conta com Mila Jovovich
encarnando Joana d´Arc. O que se evidencia nesta obra, é o interesse do diretor em
desconstruir o mito em torno da mártir Joana d´Arc, pois nos traz uma personagem
cheia de fé e coragem, porém por outro lado alguém com traumas e temores, e até
certa dose de vingança, este filme foi à segunda obra escolhida para
aprofundamento na análise, em grande parte pela característica citada acima uma
personagem diferente das demais interpretadas no cinema até esse período.
E por fim a última produção cinematográfica de grande escala, foi realizada por
Christian Duguay, (Joan of Arc/ Joana d´Arc/ 1999/Canadá), por se tratar de uma
produção para TV e posteriormente vídeo para mercado cinematográfico, a
produção teve um investimento alto de aproximadamente 25 milhões, porém de
25
forma geral não traz nenhum ponto diferenciado em relação às demais obras, o
diretor teve a preocupação de fazer um apanhado geral sobre os principais
episódios da vida de Joana e constrói uma obra bonita, dramática e sentimental,
porém, não há um elemento que se destaque ou surpreenda no decorrer da história.
A compreensão do feminino no estudo das obras cinematográficas de Joana
d´Arc é de fundamental importância, pois se trata de uma personagem que viveu
num período da história, no qual segundo Legoff34, a mulher era subjugada a
atividades domesticas e provedora do cuidado dos filhos, servir ao marido ou pai e
irmãos dependendo do contexto familiar no qual ela estava inserida. Na contramão
deste modelo surge Joana que estava predestinada a este papel, porém, as visões
de Joana a levaram no caminho diferente, de enfrentamento deste modelo a ela
imposto.
Para seu comportamento fora dos padrões, ela tinha como respaldo as visões
em sua defesa. Na época, a mulher era vista como um ser que foi feito para
obedecer, não era bom que uma mulher soubesse ler e escrever, a não ser que
entrasse para a vida religiosa, uma donzela deveria saber cuidar dos afazeres
domésticos, ser prendada sabendo bordar e fiar e se fosse pobre, teria necessidade
do trabalho para sobreviver e se fosse de família abastada, ainda assim deveria
conhecer o trabalho para administrar e supervisionar o serviço de seus domésticos e
dependentes. Entretanto, não devemos pensar na mulher como um grupo compacto
e oprimido pelos homens, as diferenças sociais foram sempre tão fortes como as
diferenças de sexo e muitas vezes a opressão era exercida pelas mulheres
poderosas sobre as suas dependentes35.
A história de Joana perpassa por uma diferença muito pertinente no desenrolar
da sua história, uma jovem corajosa e audaciosa que segue sua missão com fé em
suas visões e através do discurso muito bem articulado ela alcança seu objetivo de
convencimento. Então a questão é como uma jovem conseguir tal proeza num
contexto social e político tão opressor da mulher como a idade média? Meu
interesse de estudo surge exatamente deste ponto, como o cinema representa essa
personagem, como ela é contatada de que forma sua representação é influenciada
34 LEGOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. Lisboa: Editorial: Estampa, 1983. 35 MACEDO, José Rivair. A mulher na idade média. São Paulo. Editora: Contexto. 1990.
26
pelo momento histórico, político do qual é produzido e veiculado, são pertinentes a
observação e o questionamento do contexto narrativo da produção cinematográfica,
pois qual é o modelo de exemplaridade desta Joana de 1948, ou seja, para qual
público ela está sendo enviada como modelo? O que está se pedindo deste público
e por qual razão?
O filme de Joana d´Arc em 1948 traz uma representação do feminino belo e
santo, a representação do belo como santo, do feminino visualmente atrelado a uma
imagem imaculada e inocente. Hegel (2001), denomina “o belo se determina como
aparência sensível da ideia”36, o que nos leva a considerar, que beleza e verdade
são coincidentes, a ideia é a verdade e tudo que chamamos de verdadeiro o é na
medida em que existe. Para Aristóteles “O Belo consiste na ordem e na grandeza”.37
Essa representação imaculada e santa é o referencial da obra de Fleming, e a
narrativa da vida de Joana centra-se nestas cenas de maneira rebuscada e muito
bem produzida, a exemplo a cena das primeiras visões.
O filme de Fleming que será analise com maior profundidade no capítulo 1,
apresenta no momento da construção da imagem de Joana, a mensagem de
santidade e pureza, com contrapontos das representações das batalhas, em que
essa figura feminina se transforma, com armadura, corte dos cabelos e uma
intenção de se masculinizar e obter a atenção e respeito do exército sob seu
comando, ao mesmo tempo, permeada pelo caráter político que se tem da história
de Joana, em sua habilidade do discurso convincente e de sua capacidade de
articulação principalmente no momento do seu julgamento.
No contraponto da análise proposta neste estudo, temos a obra de 1999 com
direção de Luc Besson que apresenta uma representação diferente da obra de
Fleming. A primeira diferença observada é a representação da história de Joana
d´Arc descontruindo a imagem de santa, ou seja, a obra de Besson perpassa por
uma personagem desequilibrada e histérica que perde o controle com maior
facilidade e necessita de amparo para manter-se. Outro elemento que chama
36 HEGEL, George W. Cursos de estética. São Paulo: Edusp, 2001. 37 Vide: GAZONI, Fernando Maciel, “A poética de Aristóteles: tradução e comentários”, Dissertação de Mestrado 2006, que pode ser acessado no site: www.teses.usp.br/teses/.../TESE_FERNANDO_MACIEL_GAZONI.pdf acessado em 11 de outubro de 2014.
27
atenção para as cenas das visões de Joana são, rebuscadas e construídas quase
que como delírios.
Da mesma forma que Fleming abordou a história de Joana como um todo,
Besson também o fez, podemos comparar de maneira paralela à construção de
cada um dos filmes.
O filme de Besson surge no final do século XX, num contexto completamente
distinto da obra de Fleming. O destaque nesta produção está na crise da imagem da
personagem, que podemos observar nas cenas de batalhas uma Joana atrevida
quase que irresponsável e por vezes é chamada a realidade pelos seus soldados, a
todo o momento a figura de Joana é apoiada por outros personagens homens,
deixando por vezes no ar quase que uma mulher capaz de se entregar ao amor. A
representação do julgamento de Joana é sucinta e é dada pouca importância a ele,
o ápice do debate e sagacidade na defesa de seus ideais se dá no momento de
confronto com a personificação da consciência, o que nos leva também a uma
reflexão se não seria mais um momento de delírio da personagem, o que se
distingue da produção de Fleming, pois o filme de 1948 tem como ápice o processo
do julgamento e condenação de Joana.
A Hagiografia fílmica38 foi um conceito com o qual tive um primeiro contato
assistindo uma Mesa temática durante Socine, desde o primeiro momento tal
conceito fez todo sentido para análise proposta neste estudo, pois o termo
Hagiografia Fílmica refere-se à busca pela compreensão das obras cinematográficas
sobre a vida dos santos. Segundo infopedia39 “A hagiografia é um subgênero
narrativo composto com vista à promoção da santidade de um herói, o santo, pelo
relato das ações miraculosas da sua vida.”, portanto, dentro da análise fílmica fica
evidenciado que... “O importante numa hagiografia é construir um paralelismo da
vida do santo com a vida de Cristo. Preencher este paralelo com fatos miraculosos e
de exceção (quer sejam efeitos físicos evidentes ou morais e espirituais).”40
38 O tema Elementos estéticos e narrativos da Hagiografia como forma fílmica, foi abordado pelo Profº Luiz Antonio Vadico na 16ª Encontro SOCINE São Paulo, Cinema Brasileiro e novas cartografias do Cinema Mundial, ocorrido no SENAC – SP em 2012. Mesa temática: As Vidas de Santos no Cinema: a Hagiografia como forma fílmica. Disponível em: < http://socine.org.br/encontro2012/10.html>. 39 Site mantido pela importante editora portuguesa Porto Editora. Hagiografia. Infopedia. Porto: Porto Editora, 203-2014. Disponível em: <URL:http://www.infopedia.pt/$hagiografia>. 40 Profº Luiz Antonio Vadico, Mesa temática na Socine, 2012.
28
A literatura hagiográfica é tão antiga que já pertence ao imaginário popular, ou
seja, não existe a necessidade de oficialização para que surjam obras cuja
exemplaridade na fé lhes interessa, em muitos casos esses chamados santos
populares acabam se tornando santos consagrados, vivendo o processo da
canonização, como é o conhecido caso de Joana d´Arc, o mesmo pode ser
estendido também para outras produções midiáticas.41
O capítulo 3 desta dissertação será destinado à análise das características
hagiográficas nos filmes de Victor Fleming e Luc Besson. Serão reflexões e análises
com base em debates atuais do tema, tendo como referencia professores e
estudiosos do assunto42.
As características narrativas presentes no filme hagiográfico podem ser
observadas nos filmes de Joana d´Arc, uma das principais, como já dito, é a
exemplaridade. Observamos que na cinematografia tal elemento é ainda mais
pertinente, ou seja, as produções cinematográficas hagiográficas exploram de forma
direta a associação com a vida de Cristo, como um produto midiático naturalmente
desdobrado de outro, portanto, para compreensão destes elementos faz-se
necessário o estudo das principais características apontadas como essenciais nas
produções hagiográficas, o capítulo 3 desta dissertação terá este aprofundamento
das características da hagiografia fílmica.
41 Idem ao 35. 42 Luiz Antonio Vadico (Professor e Orientador – UAM), Angeluccia Bernardes Habert (PUC-Rio) e Miguel Serpa Pereira (PUC-Rio), integrantes da Mesa Temática: As Vidas de Santos no Cinema: a Hagiografia como forma fílmica na Socine, 2012. (Minhas anotações pessoais deste evento estarão disponíveis em Anexo I).
29
1. Joana d´Arc direção de Victor Fleming
Neste capítulo, o objetivo é realizar uma análise fílmica de Joan of Arc de 1948,
desenvolver um estudo sobre a estética do filme, as influências sofridas, o estilo do
diretor Victor Fleming e os impactos desta obra no seu lançamento e na filmografia
de Joana d´Arc.
Importante para o processo de análise é conhecer um pouco sobre a obra que
será analisada, e o filme Joana d´Arc se encaixa dentro da produção hagiográfica43,
pois há um diálogo com elementos comum ao esse gênero. No entanto, seria
imprudente afirmar que todos os filmes “religiosos ou de santos” são do Campo do
filme religioso, por se tratar de um vasto campo de estudo, é possível encontrarmos
obras que permeiam, ou seja, dialogam com o campo, por ter características
narrativas, de tipos de herói ou heroína como no caso de Joana d´Arc, porém, não
se pode afirmar que todas as produções serão enquadradas numa determinada
categoria, gênero ou qualquer outro sem uma análise mais aprofundada e particular
da obra, como será feito aqui neste capítulo.
1.1. Ficha técnica
Joan of Arc de Victor Fleming é a primeira grande produção sobre Joana d´Arc
realizada nos Estados Unidos pós-cinema mudo, seu lançamento ocorreu em 1948,
trata-se de um filme épico que retrata um drama histórico francês conhecido
mundialmente. Joana foi interpretada por Ingrid Bergman uma atriz de renome que
batalhou muito para estrelar a história de Joana d´Arc no cinema americano,
importante destacar que Ingrid vinha de uma sequência de onze bem sucedidos
filmes, que inclusive fazem parte da história do cinema de Hollywood44, no entanto,
alguns críticos avaliam que o filme Joana d´Arc foi o início da baixa na a carreira da
atriz que duraria até que ela fazer Anastasia, em 1956. Cinco meses após o
lançamento do filme Joana d´Arc, surge à revelação do relacionamento
extraconjugal de Bergman com o diretor italiano Roberto Rossellini, causando um
43 Hagiografia é o nome que se dá a um texto que contém a vida de um personagem considerado santo. Estendemos o termo para a produção cinematográfica, logo, filme hagiográfico, é aquele que narra os feitos e a vida de um santo. Vide: VADICO, Luiz, “O campo do filme religioso”, in: Compós – Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação, que pode ser acessado no site: <compos.com.puc-rio.br/media/gt10_luiz_vadico.pdf> acessado em 12 de novembro de 2012. 44 JULLIER Laurent e Michel MARIE, Lendo as imagens do cinema, São Paulo: Senac, 2009.
30
impacto devastador em sua vida pessoal, provocando uma parada na carreira em
telas americanas.
A obra de Fleming foi baseada numa peça da Broadway de grande sucesso na
época, intitulado Joan of Lorraine de Maxwell Anderson45, curiosamente também
estrelada por Ingrid Bergman, para o cinema foi necessária uma adaptação pelo
próprio autor Anderson46 em parceria com Andrew Solt, o peculiar nesta história foi a
que Fleming, Ingrid e Walter Wanger47 fundaram a Sierra Pictures, com objetivo
exclusivo de produzir o filme de Joana d´Arc. O filme tem sequências muito bem
feitas, inclusive ganhou Oscar de figurino e fotografia48. O filme recebeu destaque
pela cena da recriação da catedral de Reims.
1.2. Aceitação/Crítica
A aceitação do filme não atingiu toda a expectativa positiva que se esperava, a
obra recebeu críticas negativas e positivas, e uma bilheteria menor do que o
esperado. No entanto, em termos de bilheteria o filme se saiu bem, segundo Donald
Spoto49, na biografia de Ingrid Bergman, afirma que “mesmo com as denúncias dos
críticos, não obstante, o filme ganhou de volta o seu investimento com um lucro
robusto". (SPOTO, 2007, p. 73).
Por ocasião da estreia, o comentarista do Jornal Los Angeles Daily News
publicou: “... já a direção de Fleming é quase insensata.”50 Segundo a publicação do
colunista do desastre, salvaram-se ainda os desempenhos esforçados de Ingrid
Bergman e de José Ferrer, este marcando sua estreia diante das câmeras como
indeciso Delfim.
De modo geral esta produção não chamou tanta atenção da crítica, das
produções cinematográficas de Joana o filme de Dreyer sempre foi destaque e
45 Dramaturgo do século XX autor com certo destaque no meio foi premiado por algumas obras era reconhecido por seu interesse em abordar em suas obras a justiça e liberdade. 46É o único filme de Anderson para o qual o próprio autor participou da adaptação do roteiro par o filme. Vide site: < http://www.historiasdecinema.com/2014/02/a-vida-dos-santos-no-cinema/> 47 Produtor americano, uma das suas obras de produção de destaque foi Cleópatra em 1963. 48 No ano seguinte das quatro indicações recebidas para Oscar, saiu vencedor em duas. 49 Biografo americano, conhecido por seus Best-sellers biografias de grandes personalidades do teatro, cinema e celebridades, escreveu a Biografia de Ingrid Bergman. 50 Vide Site: Cinema clássico, acesso: < http://cinemaclassico.com/index.php?option=com_content&view=article&catid=40:eles&id=598:victor-fleming&Itemid=71>.
31
considerado uma obra prima. André Bazin acreditava que Dreyer teria um resultado
perfeito se pudesse utilizar o som em sua produção de 1928.51 Ele dedica um artigo
para análise da produção de Dreyer52 e a compara em determinado momento com a
produção de Fleming.
...Lá vemos o rosto de outro inquisitor, vigiando e esperando que Joana faça
alguma confissão. Um padre lê a suposta carta do rei para Joana. O foco
volta para o rosto dela, lá está novamente o reflexo da janela em seus
olhos. A partir daqui a ação segue, Dreyer não nos deixa saber se Joana
descobriu a farsa. Na versão de Victor Fleming, Joana percebe a mentira.
No blog de Inácio Araújo53, faz menção a produção cinematografia de Joana
d´Arc no artigo publicado na estreia de Django54 em 2013, no qual faz uma
comparação entre a cena da fogueira de Joana d´Arc com uma cena de fogo num
casarão do senhor dono de escravo dentro da história do filme, porém, sua crítica
não refere-se a nenhuma produção específica de Joana d´Arc.
No Cinusp Paulo Emílio55, foi produzida uma mostra sobre Diretor Robert
Bresson no qual a produção O processo de Joana d´Arc ganhou a atenção para
história de Joana d´Arc.
O diretor Victor Fleming56 nasceu em Pasadena, Califórnia/EUA, no dia
23/02/1883 e morreu em Cottonwood/EUA, de ataque cardíaco em 06/01/1949, o
início de sua carreira no cinema começou como dublê em 1910 em cenas de
corridas, destacava-se em tal função, pois já tinha sido piloto de corrida, o contato
com o universo do cinema despertou no diretor a vontade de trabalhar no outro lado
da câmera, logo conseguiu trabalho como cameraman em alguns dos filmes do
diretor Douglas Fairbanks e pouco tempo depois já estava dirigindo.
51 André Bazin, crítico de cinema e fundador da Cahiers du Cinema. Vide site: <www.cahiersducinema.com> 52 Artigo “Devemos-lhe esse sentimento irrecusável da tradução da alma.” André Bazin. Acesso em: http://cinemaeuropeu.blogspot.com.br/2008/04/o-rosto-no-cinema-v-joana-entre-dreyer.html acessado em 15 de julho 2014. 53Escritor, crítico de cinema do Jornal Folha de São Paulo. Vide site: < http://inacio-a.blogosfera.uol.com.br/2013/02/06/west-salad-by-quentin-tarantino/> 54 Filme do diretor Quentin Tarantino, lançado no início de 2013. 55 Paulo Emilio, foi um historiador e crítico de cinema, morreu em 1977. Vide site: <www.cinefrance.com.br> 56 Idem 8.
32
Seu primeiro sucesso foi "The Virginian" (1929), filme que transformou Gary
Cooper em um astro, durante a década de 30 produziu outros filmes de grande
importância para o cinema, destaques para os filmes como "Red Dust" (1932),
Bombshell (1933), e três dos maiores sucessos da história do cinema: "E o Vento
Levou"57 nesta obra inclusive foi premiado como melhor diretor e melhor filme, "O
Mágico de Oz", ambos de (1939) e O médico e o monstro (1941). Já na década
seguinte a esta intensa produção, diminui o ritmo de produção e coincidentemente
produção de filmes que acabaram não sendo tão bem sucedidos e por fim o filme
"Joana D'Arc" (1948) acabou sendo o último projeto, falecendo dois meses depois
do lançamento do filme.
Victor Fleming foi o primeiro diretor a provocar o Código Hays com o famoso “I
don’t give a damn58” de Clark Gable em …E o Vento Levou, hoje ele é considerado
por muitos um verdadeiro mestre do cinema dos Estados Unidos e é o único diretor
a possuir dois filmes na lista de Melhores da AFI59, com os filmes E o Vento Levou e
O Mágico de Oz (1939), há um detalhe bastante curioso a respeito do diretor e as
obras citadas acima, em ambas o diretor teve o desafio de substituir diretores
anteriores — no primeiro filme ele foi o contratado após as demissões de Sam
Wood e George Cuckor e no filme O mágico de Oz ele substituiu Norman Taurog,
Mervyn LeRoy e George Cuckor novamente e vale ressaltar que a troca de diretores
nas produções cinematográficas nesta época era até bem comum.
1.3. Análise Estética/Narrativa
Para se cumprir o objeto proposto aqui faz-se necessário retroceder aos
conceitos de estética para melhor compreensão da análise. Segundo Aumont:
A estética do cinema é, portanto, o estudo do cinema como arte, o estudo
dos filmes como mensagens artísticas. Ela subentende uma concepção do
“belo” e, portanto, do gosto e do prazer do espectador, assim como do
teórico. Ela depende da estética geral, disciplina filosófica que diz respeito
ao conjunto das artes. A estética do cinema apresenta dois aspectos: uma
vertente geral, que considera o efeito estético próprio do cinema, e uma
vertente específica, centrada na análise de obras particulares: é a análise
57 Recebeu Oscar de melhor diretor e melhor filme por esta obra. 58 Eu não dou à mínima. 59 Instituto Americano de Cinema.
33
de filmes ou a crítica no sentido pleno do termo, tal como é utilizado em
artes plásticas ou musicologia. (AUMONT, 2002, p. 15 e 16).
A conceituação de Aumont é muito interessante, pois permite uma
compreensão clara da estética no cinema, e a ideia de análise aqui proposta da obra
de Fleming, busca em termos estéticos compreender o estilo imprimido pelo diretor
na estética do filme, objetivando uma análise a princípio de reconhecimento da obra
de maneira particular, reconhecendo suas nuances, impactos e importância para o
cinema Americano, pois se trata da primeira produção sobre Joana d´Arc nos EUA,
bem como a relevância de tal obra para produção de Joana d´Arc no cinema de
maneira geral.
Encontramos em Santaella que para “Aristóteles a arte é, antes de tudo,
resultado de uma habilidade especial para o fazer, não o fazer maquinal, repetitivo,
mas aquele capaz e transfigurar os materiais a ponto de alcançar um poder
revelatório”. (SANTAELLA, 2000, p. 29).
Em se tratando da estética no cinema, temos como premissa reconhecer a
habilidade em fazer a obra, através do trabalho de direção, o estilo que o diretor
imprimiu em suas produções, quão habilidoso ele é em tratar o tema, recriar a
história em termos estéticos para apreciação do espectador.
“O belo, portanto, é o fruto ou resultado do domínio que o artista tem da
téchne60, de quão habilmente ele é capaz de utilizar os meios da composição, tendo
em vista a simetria, harmonia e completude.61” Esses elementos fundamentais
apresentados por Santaella e Aumont, dá referência para partirmos aos estudos dos
recursos que um diretor de cinema dispõe para realização do seu trabalho, recursos
técnicos e financeiros, ou seja, equipamentos que possibilitam a realização do
trabalho dentro dos conceitos definidos pelo diretor, um elenco em harmonia com a
história e toda caracterização dos personagens para realização do trabalho, uma
equipe de trabalho envolvida com o projeto e respondendo cada qual ao seu nicho
de conhecimento, são elementos fundamentais para o resultado final que veremos
na tela. O trabalho do diretor vai além da cena em si, é a gestão do processo como
60 Do grego, saber fazer, saber construir. 61 (SANTAELLA, 2002, p. 29)
34
um todo, é a habilidade em liderar as pessoas, gerenciar o projeto e executar a parte
técnica com máxima habilidade.
Segundo Augusto (2004), o encontro do cinema com a narração é
determinante para evolução do plano. “O movimento se libertou das pessoas e das
coisas” (DELEUZE, 1990, p.12). Podemos considerar como fato determinante para
essa evolução e movimento o avanço tecnológico que possibilitou a mobilidade da
câmera e, por conseguinte o aprimoramento da técnica cinematográfica na
montagem do filme.
“O ponto de vista talvez seja o parâmetro mais importante no nível do plano.”
(JULLIER e MARIE, 2009, p. 22). A história de Joana é pautada num chamamento
divino através de visões, e na narrativa deste filme ter como primeira cena um sino
tocando e depois vários sinos simultaneamente tocando é uma representação do
chamamento de Joana, pertinente e muito alinhado ao objetivo do diretor de
construir uma personagem Santa.
Na cena de abertura do filme da Joana d´arc podemos observar esta
importância, logo após os letreiros no início do filme, na cena seguinte surge um sino
batendo no alto de uma capela, em seguida a imagem se modifica para vários sinos
tocando ao mesmo tempo dentro do enquadramento, conforme figuras abaixo.
Figura 1: Cena de abertura do filme
35
Figura 2: Cena de transformação um sino para divers os sinos
Figura 3: Vários sinos, tocando ao mesmo tempo.
Essa cena chama a atenção pelo ponto de vista que o plano se desenvolve em
plano de detalhe62 trata-se do isolamento de uma parte, aqui na cena obedece ao
desejo de isolar um detalhe que importa na história. Partindo da premissa que o
interesse no close up é destaque e intimidade com um elemento o sino,
compreendemos que na estética do filme este elemento como abertura da história 62 Segundo (JULLIER e MARIE, 2009, p. 24 e 34) Plano de detalhe é o isolamento de suas partes, a câmera enquadra uma parte do rosto ou do corpo, ou usado para objetos pequenos, como uma caneta, um sino, entre outros. O objetivo dentro da cena é apresentar uma “aproximação” no sentido próprio e figurado – que obedece a um desejo de entrar em intimidade maior com um personagem ou com elemento da história. “...e não só são utilizadas para os acompanhamentos, quando o movimento é imposto pelo deslocamento do sujeito, mas também para as descrições, quando é ditado por necessidades estéticas e narrativas.”
36
nos remete ao símbolo que o sino representa na cultura, religiosidade, chamado,
despertar, e a cena se transforma de um sino para vários sinos badalando é a
insistência do chamado, do despertar para esse chamado religioso, elemento
essencial para história da nossa personagem Joana, que através de suas visões
recebe o chamado para cumprir uma missão de lutar pela libertação da França e
Coroação do rei, portanto são elementos que se relacionam de maneira intima e
simbólica com a história de Joana.
Na cena seguinte revela-se um corredor de velas em castiçais, criando a ideia
de um corredor infinito que segundo Aumont (2002), a impressão de realidade se
manifesta pela ilusão de movimento e na ilusão de profundidade. Em seguida a
cena abre para uma capela com uma tomada da câmera em movimento de subida
finalizando a cena num afresco do teto da capela.
Figuras 4 e 5: Cena de transição dos castiçais para capela
Figuras 6 e 7: Corredor da capela para ascensão ao teto da capela.
Outro elemento importante para se destacar nesta cena é a passagem da
imagem do corredor de velas para a cena final do teto da capela. O diretor faz a
37
passagem utilizando um travelling63, proporcionando ao espectador uma sensação
de movimento de ascensão aos céus.
O diretor utiliza este recurso para reforçar a história que será contada a partir
da cena, pois Joana vive uma jornada em busca da realização de suas visões, que
podemos correlacionar com a imagem do corredor infinito de castiçais de velas, a
sequência da cena é o movimento da câmera até a capela, no entanto, ela se eleva
ao afresco no teto, que compreendo como o fim da jornada de Joana, sua
beatificação. A percepção sobre a cena descrita aqui, tem um elemento de
corroboração muito importante, pois durante a cena, uma voz narra durante a cena o
seguinte texto: “Por disposição da misericórdia divina foi designado oportunamente
que Joana filha de Deus, filha da França, seja colocada entre números santos”64.
Na cena seguinte surge na tela um livro contendo na capa uma cruz, mãos
abrem o livro65 surgindo à primeira página escrita e neste momento a voz narra o
título visível na página, “Santa Joana d´Arc” e segue com a narração do texto:
Cuja história está gravada aqui, que morreu com dezenove anos, nasceu
em 1412 em Domrémy em Lorraine, numa época em que a França
perdendo a guerra dos Cem anos foi tomada por seus inimigos, suas
cidades arruinadas suas fazendas devastadas seu povo sem esperança,
mas os inimigos da França não sabiam da pequena Joana rezando na
pequena Igreja da vila, ela ouvia as vozes dos Santos falando sempre,
clamando que ela se torna um soldado para comandar os exércitos da
França para vitória para coroar o Delfim dos seus sonhos, sonhos
impossíveis pediam a ela e pedia de novo.
No decorrer da narração são mostradas imagens das vilas destruídas, e da
precariedade em que se encontra a França, ou seja, as imagens acompanham a
narração do texto, no momento em que menciona Joana, surge (Ingrid Bergman)
interpretando Joana, ajoelhada diante do altar de mãos postas, a câmera parte de
cima do telhado destruído e vai se aproximando do alto para baixo, até chegar ao
recorte apenas do rosto de Joana (fotos abaixo), permanecendo um tempo na
imagem do seu rosto, quando se encerra a voz narrativa e então ela inicia sua cena
63 Segundo (JULLIER e MARIE, 2009, p. 33), “travellings (que tem por objetivo o deslocamento do corpo inteiro
no modo retilíneo). 64 Filme disponível em site Youtube acesso em <http://www.youtube.com/watch?v=ExsUvbm5PuU> 65 Em close-up, pois o objetivo é isolar um detalhe da história.
38
dizendo: “Uma pena, uma pena para o reino da França” e é interrompida por um
chamado “Joana, Joana”, de fora da igreja.
Figura 8: Primeira aparição de Joana diante de um a ltar destruído.
Figura 9: Close-up rosto de Joana d´Arc, imagem de pureza.
A escolha desta cena para análise do filme é essencial, pois é o início de tudo
é o momento em que nos é revelado a Joana de Fleming, uma jovem simples, de
trejeitos tímidos bem como submissa à família, porém, a persistência das visões
acaba levando Joana a agir em prol do cumprimento de sua missão, neste momento
é perceptível uma mudança no comportamento da personagem que se mostra mais
corajosa e destemida, diferente da Joana da primeira cena.
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Um ponto que chama a atenção nesta produção de Fleming é justamente a
escolha da atriz Ingrid Bergman quando da produção desta obra, pois a história trata
de uma jovem donzela de aproximadamente 17 anos, e a atriz que a interpreta tem
bem mais idade, o figuro, e a interpretação são determinantes na construção do
personagem, e aqui no caso de Joana é de fundamental importância o processo de
transformação pelo qual a personagem irá passar de jovem donzela, para santa,
heroína e mártir.
As cenas escolhidas para análise aqui, abordam o primeiro processo de
mudança pelo qual Joana, passa de jovem donzela tímida, insegura e cabisbaixa
para uma jovem articulada e segura em suas convicções e chamamento para
cumprimento de sua missão, nesta cena que podemos observar essa mudança
refere-se ao momento em que Joana revela sua missão ao Delfim, então
representante da França, que convencido pelas palavras de Joana lhe concede a
liderança do exército da França para que ela siga com seu propósito de luta.
Figuras 10 e 11: A mudança na postura de Joana
Outra observação importante desta cena é a mudança de atitude da
personagem, quando ela finalmente chega diante de Delfim para transmitir a
mensagem recebida através de suas visões. Existe entre os nobres em torno de
Delfim que desacreditam na mensageira Joana e acabam por convencê-lo a
enganar Joana colocando outro em seu lugar, assim, provariam que ela não
passaria de uma louca que não mereceria nenhuma atenção, porém, Joana
surpreende a todos, reconhecendo de imediato que a pessoa apresentada como
Delfim era um engodo, ela caminha pelo salão procurando o verdadeiro Delfim,
encontra-o no meio dos demais e ajoelha-se aos seus pés e lhe transmite a
mensagem. O episódio causa espanto a todos os presentes e Joana é desafiada por
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Delfim a provar que realmente é quem diz ser, ela propõe então que fiquem a sós
para que ela lhe revele segredos que somente ele poderia saber.
Abaixo a transcrição do diálogo para melhor compreensão e análise:
- (Nobre da corte, faz recepção a Joana, a pedido do impostor no lugar de
Carlos Delfim). Ah são em três, qual é a donzela de Lorraine? (Joana curva
levemente a cabeça em resposta a pergunta).
- Eu sou a donzela de Lorraine. (responde Joana)
- Quem são as outras donzelas com você (referindo-se a dois guardas que
acompanham Joana).
- (Joana responde), Charles e Bercan que vieram me proteger.
- Uma família de três?.
- (Bercan responde). Se quer dizer alguma contra a donzela ou a nosso
respeito por ela aconselho que se cuide com o que diz.
- Minhas desculpas (nobre - curvando-se diante de Joana).
- Preferiria que ninguém se ajoelhasse para mim (responde Joana).
- Então ninguém vai se ajoelhar. Asseguro-lhe que não é posição que se
escolhe para conforto. Venha aqui está nosso grande Delfim (responde o nobre).
Então Joana caminha até o trono onde se encontra o impostor. (Joana caminha
diante dos olhares de reprovação das mulheres da corte, pois ela já está
caracterizada como homem nas roupas e no corte de cabelo).
- Aqui estou eu com a coroa que me prometeu donzela de Lorraine, providencie
que eu seja coroado, providencie que eu seja coroado já. (diz impostor de Delfim).
- (Joana curva-se diante dele, mas ao final da sua fala ela olha-o e levanta-se
vagarosamente).
- Tome, seu Delfim oferece lhe sua mão donzela. (diz impostor Delfim).
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- (Sem dizer uma palavra, Joana desvia o olhar e vai se afastando lentamente,
demonstrando que não o reconhece como Delfim), e segue pelo salão a procura do
verdadeiro Delfim. Quando o encontra, ela ajoelha-se aos seus pés e diz:
- Meu gentil Delfim, vim de longe para achá-lo e nenhum outro pode tomar seu
lugar. Deus falou para mim através de seus mensageiros e é sua vontade que eu o
ajude e o torne Rei da França. (Diz Joana).
Figura 12: Câmera em close-up para destacar o momen to de Joana diante de Delfim.
- Como me conheceu? (responde o verdadeiro Delfim).
- Eu lhe direi isso quando estivermos a sós. (Diz Joana).
- (Delfim vai até seus nobres conselheiros e pergunta). O que você acha?
- Essa garota é perigosa, deve haver um terceiro grupo. Posso jurar que foi
mandada por seus inimigos. (respondem os nobres).
- Meu Delfim eu lhe digo, que agora a guerra vai mudar e a sua vida vai mudar.
(responde Joana).
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Figura 13: Postura de Joana levando sua mensagem ao Delfim.
- Eu não sou o tipo de pessoa pela qual Deus se interessaria, eu não sou
mesmo. Eu não sou pior do que os outros, mas Deus se importa muito pouco com
qualquer um de nós. Agora, eu já fui honesto com você, seja honesta comigo, o que
você quer? Dinheiro? Terras? Presentes? Eu sou um homem muito pobre, apesar...
(responde Delfim).
- Não é verdade que Deus não se interessa pelo senhor, diz isso para se
esconder de mim, como se escondeu no meio das mulheres, mas Deus vai achá-lo e
torná-lo rei. (diz Joana). E o diálogo continua...
Importante ressaltar que em especial a partir deste momento na história,
destaca-se a capacidade de articulação e argumentação que Joana utiliza para
alcançar seus objetivos, por mais que seus recursos argumentativos tenham um
forte apelo religioso, seus discursos, diálogos e argumentos são fortes e articulados,
evidenciando uma habilidade de liderança importante.
A representação, o figurino, a posição da câmera, o texto e a interpretação dos
atores fazem o conjunto da cena importante para a transformação da personagem
de donzela tímida, para uma jovem segura em suas colocações e convicta do seu
chamamento para missão de salvar a França e coroar o Rei, elementar destacar que
neste conjunto a texto é carregado de articulações políticas, pois Joana tem como
missão um ato político, de libertação de uma nação e a articulação é construída a
partir de visões dadas a Joana que sua vitória é certa, ora então, a jovem Joana
passou pelo processo da conversão, conforme uma das características identificadas
numa produção hagiográfica, ou seja, trata do momento em que lhe é revelado sua
43
missão, mesmo sendo uma cristã devota conversão é o justo momento em que dá
conta, que é o escolhido para esta tarefa.
O Discipulado outra característica dada ao filme hagiográfico, refere-se ao
momento de angariar seguidores, apoiadores ao propósito da missão que neste
momento é de fundamental importância para missão de Joana, pois ela não dispõe
dos recursos necessários para executar este trabalho, então o processo de
discipulado que observamos na produção de Fleming, é construída com forte apelo
religioso, pois a representação de Joana é reforçada na imagem da Joana santa, no
tom das palavras, na postura, nas atitudes e no discurso, político religioso, ou seja,
político na libertação da França, no poder ao Rei, no resgate da fé e da
independência de um povo, e no religioso, pois só será possível tal façanha porque
foi revelado através de visões dos Santos66 que a vitória estava garantida.
Por fim Joana conquista a confiança de Delfim, que recebe a mensagem e dá a
ela os recursos para seguir sua missão de salvar a França e coroá-lo rei.
Delfim é retratado como um rei influenciável pelos nobres ao seu redor,
inseguro e temeroso em tomar decisões e agir por conta própria, uma das cenas que
retrata essa característica do personagem e Joana interage com ele, agindo como
líder, transmitindo palavras de incentivo e construindo um discurso visionário e
vitorioso para Delfim sentir-se forte e capaz. Está cena é o momento em que
antecede a partida de Joana para guerra, os homens já estão reunidos em exército e
Joana está ansiosa para seguir na batalha. Segue o diálogo desta cena:
- Meu Delfim perdoe-me meus maus modos, há dias que tento vê-lo e todos os
guardas disseram que estava em conselho. (Joana).
- Minha querida Joana está radiante. (Delfim).
- Eu lhe agradeço, todos os preparativos estão feitos, deixe-nos ir à ação,
homens sem ação não são homens são palavras, mande-me para Órleans e o sinal
de batalha será dado, agora é a hora. (Joana).
- Sempre há hora Joana. (Delfim).
66 São Miguel Arcanjo, Santa Catarina e Santa Margarida.
44
- Não, não é sempre a hora, meu Delfim, use-me bem e durarei um ano ou um
pouco mais ou um pouco mais, venha conosco para Órleans. (Joana).
- Se deseja que eu diga sim não me peça coisas não razoáveis, não pode pedir
que eu comande um exército. (Delfim).
- Eu lhe aviso de novo majestade não é senso comum confiar nesta garota, se
Deus quisesse que tivesse Órleans pra que precisaria de soldados. (Nobre
conselheiro).
- Os soldados vão lutar e Deus lhe dará a vitória. (Joana).
- Seu eu pudesse ter certeza. De uma coisa eu não tenho certeza, se daria um
bom rei. (Delfim)
- Precisa ter fé em Deus, quando tiver isso terá fé em si mesmo. (Joana).
- Eu não sei Se Deus quer que eu seja rei, porque Deus me mandaria ajuda,
sendo eu como sou. (Delfim).
A primeira imagem abaixo é o exato momento da frase acima de Delfim, que
retrata um rei cabisbaixo, ombros caídos, olhando para baixo demonstrando toda
insegura que o discurso do mesmo retrata. Entretanto, Joana está com uma postura,
segura, retratando o que suas palavras dentro do diálogo representam a liderança,
segurança, força e autoconfiança.
Figura 14: Delfim inseguro.
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Outro detalhe importante a ser considerado neste enquadramento, é o Duque
Hans ao fundo da cena, ele atua como uma figura masculina a reforçar a voz de
Joana, dentro da análise proposta aqui é um elemento utilizado pelo diretor, para
validar a palavra de Joana.
Figura 15: Delfim cabisbaixo e Joana segura e artic ulada.
- Ponha de lado suas dúvidas e medos meu Delfim, seja nobre quanto eu
sonhei que seria, seja como Deus quer que seja, seja o que a França precisa, a sua
França, sua nação e seu povo, tão indefeso sem senhor, mas inconquistável se
confiar em Deus. (Joana).
Neste momento a postura de Delfim vai se modificando à medida que Joana
vai discursando sua fala descrita acima, é perceptível que a cena tem com elemento
chave a postura dos atores durante a encenação, Joana está prostrada diante de
Delfim, e a postura do mesmo vai mudando a medida que visualiza a fala de Joana,
ele ergue os ombros, olha para horizonte e enche o peio de ar, é através da postura
corporal que podemos observar essa mudança, conforme figura abaixo.
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Figura 16: Postura de Delfim mudando, ganhando conf iança através das palavras de Joana.
Figura 17: Delfim mudado e dando a Joana o exército .
- Pode olhar para o rosto dela e duvidar? (Duque Hans).
- Não, eu não duvido agora, eu vou levá-la aos capitães, Deus está com esta
garota e estará com ela na batalha. (Delfim).
Delfim levanta-se ao mesmo tempo em que põe as mãos nos braços de Joana
para levantá-la também, como podemos observar na segunda figura, esse
movimento acontece durante a fala de Delfim ao final deste diálogo descrito acima.
O término da cena acontece com um corte para o estandarte, e Joana já de
armadura pronta para seguir aos campos de batalha, conforme figuras abaixo.
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Figura 18: Estandarte.
Figura 19: Primeira cena de Joana com armadura.
Figura 20: Joana de armadura, levando o estandarte no comando do exército.
48
A figura de Joana toma outra dimensão, a de guerreira de armadura e cavalo,
seguindo para a luta pela França, porém, a história de Victor Fleming, Joana
enfrenta a resistência dos capitães, pois ela solicita mudanças nas atitudes dos
mesmos bem como dos soldados e encontra resistência em obediência aos seus
comandos, Joana observa uma desordem nos acampamentos, pois os soldados
estão acompanhados pelas esposas e o foco está disperso.
Figura 21: Acampamento do exército, bebidas, festas e bagunça cena que se assemelha bastante com o momento de Jesus Cristo no templo ex pulsando os vendedores e baderneiros.
Então, Joana, mais uma vez demonstrando sua capacidade de liderança,
percebe a dificuldade em dar ordens ao exército, e de maneira despretensiosa
caminha entre os soldados e, de maneira direta, começa a discursar sobre a
mudança de atitudes que Deus espera deles, para dar-lhes a vitória sobre a
Inglaterra, as ordens são que não poderá mais haver jogos, que as mulheres devem
regressar aos seus lares e que todos devem se confessar antes de seguirem para
batalhas, e então de maneira clássica Joana inicia um discurso:
- Por favor, ouçam-me, tantos quantos puderem, não há força em mim, nem em
minhas mãos, não há força suficiente em nossas mãos grandes o bastante para
vencer os ingleses, nossa força está em nossa fé, e se nossa fé for devorada por
pequenas coisas que Deus odeia então, ainda que sejamos em milhões seremos
vencidos e morreremos.
Sim se aproximem, vocês homens também e aos que não podem ouvir lhes
deem este recado, podemos vencer só se nos tornarmos o exército de Deus, não é
fácil ficar a sua frente e pedir isto de vocês, talvez não seja fácil fazer isso, mas eu
49
sei, que se isso for feito, ainda que os ingleses surjam das nuvens e cavalguem em
furacões nós os venceremos, ainda que as flechas caiam como granizo dos céus e
os campos sejam um ringue de aço, e que os canhões ataquem como trovões do
céus ainda sim, serão nossos, isto Deus prometeu, pois pai no céu é nosso líder, ele
estará conosco enquanto louvamos seu nome, ele vai nos dar tudo o que
precisarmos, o pão nosso de cada dia nossa vitória e uma terra que será livre para
sempre.
Abaixo as figuras do discurso, na primeira em plano geral e na segunda em
primeiro plano.
Figura 22: Discurso em Plano Geral.
Figura 23: Discurso em Plano Médio.
50
No discurso de Joana, encontramos elementos característicos de liderança,
pois as estratégias utilizadas são fundamentais para convencer os soldados a seguir
seus comandos, e Joana, utiliza a fé como elemento chave para envolvê-los e
convencê-los a engajar-se na luta pela libertação da França, criando uma
perspectiva de vitória sobre os inimigos, pois a vitória era certa, tinha sido anunciada
em suas visões.
A liderança de Joana perpassa por um processo de construção em si mesma,
ou seja, a representação da liderança é composta por vários elementos, visual,
através do figurino e da armadura, que surgem num determinado momento da
narrativa representando o auge do processo de discipulado, utilizando o discurso
bem elaborado, baseado na fé, porém, articulado politicamente, pois é enriquecido
de argumentos visionários, de libertação, de salvação da França da volta da
prosperidade e da paz para os franceses, promovendo através do discurso o
engajamento cada vez maior dos franceses. A liderança estrategista que Joana
possui também é observada no decorrer da história nos momentos de batalha, com
ações de enfrentamento ousadas e dirigidas pela estratégia, ou seja, liderando os
soldados de maneira focada no objetivo da vitória, inspirada por suas visões.
A estratégia também é percebida no discurso de Joana, sua fala é articulada e
baseada em seus objetivos, no momento do julgamento, que veremos mais adiante
é possível perceber com maior clareza tal habilidade.
O diretor explora a fotografia de maneira clara nas cenas de batalhas como
podemos observar nas figuras abaixo, sempre construída com elementos que
reforçam a visão do espectador em observar uma heroína em seu cavalo imponente
a frente do estandarte da França, ao centro da fotografia.
51
Figura 24: Joana sobre o cavalo no comando do exérc ito.
Figura 25: Joana no comando do exército.
Nas cenas de batalhas, no entanto, quando Joana encontra-se em cima de
cavalos mais uma vez repete-se a figura de homens ao seu lado para salvaguardar
sua segurança, bem como para auxiliá-la no comando das tropas, é assim que
Fleming a retrata. Como nas figuras acima, quando Joana segue para primeira e
importante batalha para iniciar a conquista da liberdade da França.
Joana obtém sucesso em sua jornada, segue vencendo batalhas após batalhas
e Delfim finalmente é coroado Rei da França, por advento das vitórias alcançadas
por Joana e seu exército, porém, depois de alcançado o objetivo que para Delfim era
52
o principal ele deixa de apoiar Joana em sua luta para conquistar finalmente a
liberdade da França por completo.
Durante todo esse percurso de batalhas e mais batalhas, Joana não procurou
receber a gloria para si, atribuindo os resultados ao soberano Deus à fé e visões
recebidas dos santos. Desprovida de vaidade e glória pelos seus feitos, não há
interesse próprio nas conquistas, mas o cumprimento da sua missão.
Porém, como descrito nas características dos filmes hagiográficos, a
exemplaridade e o social, se estabelece quando Joana é colocada à prova, sendo
abandonada em todo apoio que recebia para lutar pela França. Como a situação
está em boas condições à França com seu Rei devidamente coroado, retomando o
poder sobre seu território, Joana já não tem mais o mesmo apoio e enfrenta as
adversidades e abandono.
Figura 26: Joana abandonada e traída por seu Rei, f otografia muito bem feita com iluminação para ambientação de desolamento e abando no.
Figura 27: Joana capturada.
53
Antes de sua captura, Joana está prostrada diante de Deus (conforme figura
26), falando sobre o abandono em que se encontra do castigo que está enfrentando
por algo que tenha feito errado, e durante seu texto uma parte em especial que
chama a atenção:
- ...ainda não há resposta, então devo ir, lutar contra o inimigo, rei do céu devo
achar outra armadura não como a que lutei como sua mensageira e escura e
humildade como cabe a um soldado comum, a tempos minhas vozes me disseram
que eu seria feita prisioneira, quando isso chegar ao menos eu terei armas em
minhas mãos, tenho coragem de morrer mas não de modo pequeno e doente a cada
dia.
Essa prece de Joana, nos aproxima ainda mais da imagem da Joana santa,
capaz de sacrificar sua vida em nome da causa, ou seja, de certo modo almeja um
fim mais nobre do que um derradeiro e pacato fim. Joana foi traída pelo rei coroado
Carlos VI da França, ao qual deu a ela no início de sua história crédito por suas
visões. Ela é vendida para Inglaterra que deseja dar um fim a Joana e suas ideias e
liderança, portanto, ao perceber que foi traída Joana sabe que seu fim já está
definido.
Na entrada ao cenário do seu julgamento, a câmera faz uma tomada com
ponto de vista da personagem, ou seja, acompanha o movimento do andar de Joana
na altura dos seus olhos finalizando o olhar na figura do seu juiz algoz, a um corte e
a tomada acontece do lado oposto da sala a tomada parte da perspectiva dos
espectadores olhando Joana. Outro ponto de destaque nesta cena são os sons das
correntes aos pés de Joana cadenciados conforme seu andar.
Os diálogos entre Juiz e Joana são como joguetes de palavras, a todo instante
ela é posta a prova, seus algozes ficam na expectativa de que ela caia em
contradição, que assuma suas visões para confirmar a acusação recebida de
heresia e bruxaria. Mais uma vez o elemento da argumentação e capacidade de
articulação das palavras destaca-se na personagem, que consegue sair-se bem nos
questionamentos enfrentados durante o julgamento.
É surpreendente observarmos uma moça jovem, analfabeta diante de juízes,
aristocratas, bispos e clero de um modo geral, com uma capacidade surpreendente
54
de defender-se de maneira estratégica, esquivando-se de maneira criativa das
armadilhas que lhe eram lançadas, e nesta articulação de defesa, a liderança
política e fortemente representada, pois Joana tenta em sua estratégia demonstrar
que o objetivo maior era a libertação da França e a coroação do Rei, algo benéfico a
todos os franceses que estavam oprimidos num cenário de devastação, fome, peste
e miséria. Portanto, a articulação política que Joana adota é surpreendente,
pensando numa jovem sem nenhuma instrução, e convicta dos seus valores e
missão ela se mantém firme durante o longo julgamento que enfrenta.
O objetivo do julgamento ao qual Joana foi submetida teve por único fim
condená-la exemplarmente por heresia e feitiçaria. Os juízes, bispos e clero no
comando desse julgamento acreditaram que se tratava de uma tarefa fácil, pois uma
camponesa analfabeta, abandonada por seu Rei, iria ceder facilmente às artimanhas
que lhe planejavam. No entanto, a habilidade de Joana em defender-se de maneira
estratégica, nesse jogo político estabelecido com seus juízes, dificultou de
sobremaneira a tarefa de transformá-la bruxa. A seguir, o descritivo do primeiro
diálogo embate, do julgamento conduzido pela Inglaterra de Joana d´Arc67, apesar
de extenso ela o conteúdo é de extrema importância para que possamos
compreender a capacidade estratégica que Joana d´Arc possui, segue:
- Pode sentar-se se desejar. (Juíz)
- Obrigada vou ficar de pé, pelo menos de início. (Joana)
- Agindo de acordo com o relato, rumores públicos e várias informações obtidas
por nós, nós a convocamos, como suspeita de heresia e feitiçaria. Jura dizer a
verdade, quanto a que nós perguntaremos? (Juíz)
- Não sei quais serão suas perguntas, talvez me pergunte coisas que eu não
deverei responder, vamos ver, por exemplo, o que fiz aos meus pais antes de ir a
guerra contaria de boa vontade, mas certas revelações que me vieram de Deus não
falarei para ninguém a não ser para Carlos meu rei. (Joana)
- Porque Deus faria revelações para você? (Juíz)
- Deus faz revelações para quem ele deseja. (Joana)
67 Diálogo baseado nos documentos originais do julgamento de Joana d´Arc.
55
- Jura dizer a verdade em questões ligadas a fé? (Juíz)
- Sim. Juro dizer a verdade em questões ligadas à fé (Juramento sobre o
bíblia). (Joana)
- Qual é o seu nome? (Juíz)
- Meu nome é Joana, em casa era chamada de Janete. (Joana senta-se).
- Quantos anos? (Juíz)
- Eu acho que tenho 19. (Joana)
- Diz que teve revelações de Deus? Quando isso aconteceu pela primeira vez?
(Juíz)
- Quando eu tinha treze anos. Ouvi uma voz no jardim de meu pai era meio dia
no verão a voz vinha da direita em direção a igreja falou a mim no meio de uma
grande luz, quando a ouvi pela primeira vez, fiquei assustada. (Joana)
- E o que a voz dizia? (Juíz)
- Antes falava de coisas simples e como viver minha vida. (Joana levanta-se),
depois mais tarde me disse: vá, vá, levante o cerco de Órleans faça o Delfim ser
coroado em Remmy e tire os ingleses do solo Francês. (Joana)
- E respondeu a esta voz? (Juíz)
- Eu disse que era apenas uma garota da fazenda e não entendia nada de
corte e nem de guerra, mas ainda assim a voz me disse: vá, vá, filha de Deus, filha
da França, vá. (Joana)
- Esta voz que lhe falou era a voz de quem? (Juíz)
- Antes achava que fosse um anjo, depois eu soube que era a voz de São
Miguel, algumas vezes Santa Catarina aparecia e Santa Margarida. (Joana)
- Via esses santos ou apenas falava com eles? (Juíz)
- Eu os via claramente quanto os vejo agora. (Joana)
- Seu rei viu seus Santos? (Juíz)
56
- Passo por isso, isso não diz respeito ao seu julgamento. (Joana).
- Ela não tem o direito. (Corte)
- Prossiga. (Juíz)
- Os santos tinham cabelos, me diga? (Corte)
- É bom saber que tinham. (Joana)
Joana é sarcástica com esta resposta a corte, provoca risos na plateia
presente. É até certo ponto ingenuamente provocativa, uma habilidade estratégica
muito interessante a de promover o descrédito ao tipo de questionamento que lhe
era dirigido.
- Usavam roupas? (Juíz)
- Deus é tão pobre que não pode vestir esses Santos? (Joana)
Mais uma vez o sarcasmo na resposta, causando desconforto ao Juiz e risos
na plateia.
- Santa Margarida falava em que língua com você? (Juíz)
- Ela falava no meu idioma é do nosso lado que ela está. (Joana)
- Seus santos odeiam os ingleses? (Juíz)
- Odeiam o que Deus odeia, e amam o que Deus ama. (Joana)
Aqui observamos que a pergunta possuiu um viés para pegar Joana numa
resposta equivocada, ela sabiamente responde ao Juiz com uma articulação
religiosa muito forte, vale ressaltar que trata-se de um julgamento conduzido por
ingleses.
- E Deus odeia os ingleses? (Juíz)
- Quanto ao amor ou ódio aos ingleses eu não sei nada, só sei que os ingleses
seriam expulsos do solo francês com exceção dos que estão enterrados aqui. Deus
dará ao meu rei uma grande vitória e Carlos VII será rei de toda a França. (Joana)
57
Como não satisfeitos com a resposta a pergunta torna-se mais específica,
cercando Joana, e sua resposta mais uma vez é estratégica e política, ela responde
sem se comprometer, ela utiliza a mensagem de suas visões para responder, porém,
não afirma as visões em si, resposta muito bem construída e estratégica.
- Silêncio, silêncio. (Juíz)
(Joana senta-se).
- A donzela acredita estar em estado de graça? (Corte)
- Se não estou que Deus me ponha nele, se estiver que me mantenha nele.
(Joana)
- (Boa resposta Joana)
- Podemos ficar seus comentários Mestre Joan. (Juíz)
- Quem a mandou tirar as roupas de mulher e se vestir como homem? Algo
indecente e contrário às escrituras sagradas. (Corte)
- Por isso não culpo ninguém, convivendo com soldados achei mais adequado
usar roupas de homem, mas me de roupas de mulher que irei usá-las se me
permitirem assistir a missa, se não, não às porei desde que agrade a Deus que use
estas, tudo o que fiz, fiz sobre o comando de meu senhor, foi o que fiz bem. (Joana)
Outro exemplo de resposta muito bem construída por Joana, ela justifica sua
atitude de algo considerado indecente e contrário às escrituras sagradas das quais
ela acredita, portanto, nesta pergunta mais uma vez está embutida a intenção de
desacreditá-la, ou seja, uma jovem escolhida por Deus para uma missão tão
importante, descumprindo as escrituras sagradas. A resposta de Joana é mais uma
vez estratégica, ela argumenta que tal decisão foi tomada por ela mesma em
detrimento ao ambiente que se encontrava e que as usou no comando do senhor.
- Como é que sabe que suas vozes veem de Deus? (Corte)
- Sabia que vinham de Deus porque me mandavam fazer era só o bem. (Joana
se levanta).
58
- Senhores, já respondi estas mesmas perguntas em Portie, meu rei ordenou
ao arcebismo de Remmys e aos leais padres para me examinarem antes de me
permitirem comandar o exército, peçam os registros de Portie e terão todas as
minhas respostas. (Joana)
Nesta resposta Joana mostra-se até certo ponto entediada, por passar pelos
mesmos questionamentos outra vez.
- O interrogatório do arcebisco de Remmys não tem a menor relevância. Nós
somos os seus juízes agora, e deve responder a nós. (Juíz)
- Não servem para serem meus juízes, são meus inimigos mortais, ingleses e
borgonheses, todos vocês e o senhor não é a igreja (apontando para Juiz) é
comprado pelos inimigos do rei cujas ordens obedecem, se estou sendo julgada pela
igreja porque não estou numa prisão da igreja entre as mulheres, estou numa prisão
inglesa vigiada por soldados ingleses, acorrentada a uma cama, se preciso me
levantar devo pedir aos soldados para destravarem os botões. (Joana)
O momento do máximo confronto de Joana dentro do julgamento, ela
escancara a situação de julgamento incoerente ao qual ela está submetida, sem
receio do que sua atitude poderia causar, ela mostra sabedoria e capacidade de
compreender a situação de injustiça ao qual se encontrava.
- Somos juízes e a manteremos acorrentada porque tentou fugir. (Juíz)
- Não é um direito de todos os prisioneiros de guerra, tentar fugir? Dizem que
são meus juízes, não sei se são mais digo isto, cuidado para não me julgarem
erroneamente, pois em verdade fui enviada por Deus e se colocam em grande
perigo. (Joana).
Joana confronta a autoridade dos juízes, a idoneidade dos mesmos, ela não
tem medo se apresenta tal como foi em toda sua trajetória de luta, não se
amedronta, ela luta bravamente por sua fé e missão. É interessante observar que
estamos diante de uma situação muito peculiar na história da sociedade na época68
e quando retratamos que a produção de Fleming pós Guerra, num momento de
resgate de autoestima de um povo, de construção da identidade, de construção de
68 Idade média.
59
modelos de comportamento social, é interessante perceber que a escolha de tal
história para representação no cinema contribuí de sobremaneira neste processo.
- Levem-na de volta a sua cela. (Juíz)
- Bom dia meus senhores. (Joana)
Encerra-se a sessão do julgamento e vem até o juiz um nobre inglês que diz:
- Você com seu julgamento impecável, ela é inteligente demais pra você, ela o
ridiculariza, ela o ameaça em público.
- Eu posso lhe assegurar, isso não voltará acontecer. (Juíz)
- Não porque não haverá mais sessões públicas, vai continuar sob portas
fechadas, sob minhas ordens.
E por fim, a nobreza e a igreja percebem a exposição que enfrentam com os
julgamentos públicos e a incapacidade de condená-la permitindo que ela
habilidosamente se defenda como maestria das acusações que enfrenta.
Os planos escolhidos por Fleming para as cenas do julgamento são os planos
médios69 e planos americanos durante os questionamentos em que Joana é mais
articulada em suas respostas, porém, nas cenas em que a emoção a domina, por
exemplo, nos relatos de suas visões a opção é pelo primeiríssimo plano, objetivando
destacar as expressões da personagem, sua beleza, sua emoção ao falar de suas
experiências espirituais, portanto, mais uma vez corroborando com a construção da
figura da santa.
Foram utilizadas diversas manobras para desvalorizar Joana durante o
julgamento, como podemos observar no translado do diálogo do julgamento, porém,
ela habilmente conseguiu levar suas respostas de maneira a isentá-la da culpa
imposta.
No entanto, a fim de cumprir o objetivo do julgamento Joana é posta a prova e
pressionada a assinar sua abjuração com a manobra de que seria libertada, iriam
69 Segundo (JULLIER e MARIE, 2009, p. 24) “Plano médio apresenta o sujeito em sua unidade (seja ela humana, animal, vaso de flores, automóvel...) com um mínimo de “ar” (gíria de operador de câmera) em cima e embaixo. Planos americanos o recorde da personagem dos joelhos para cima e primeiríssimo plano, rosto no detalhe.”
60
“libertá-la para que pudesse ir a igreja rezar e confessar” ela assina sua abjuração,
porém, ao perceber que foi enganada Joana volta atrás e não cumpre sua parte do
acordo, assim ela concretiza sua condenação, sua fala é: “Ouvi minhas vozes de
novo, disseram que fiz uma coisa má negando-os mais me perdoaram eu tenho fé
nelas e nenhuma nos senhores.” “Viver sem fé é mais terrível que o fogo é mais
terrível que morrer jovem não tenho mais nada a fazer aqui mande-me de volta a
Deus por quem eu vim.” Destacando que a cena foi realizada em primeiríssimo
plano, e a interpretação de Bergman serena e tranquila.
E por fim a grande cena final, Joana é preparada para seguir ao cumprimento
de sua condenação, dentro da cela ela fala com padre, quando repentinamente
levanta-se da cama, olhando para um canto da cela, parecendo falar com alguém
que o padre não consegue ver, Joana ajoelha-se e fecha os olhos e como numa
prece ela diz: “Vejo tão claramente agora, minha vitória é meu martírio, minha
escapatória minha morte.” E então adentram a cela coroinhas com castiçais de velas
e se aproximam de Joana um de cada lado conforme foto abaixo, o que nos remete
a cena no início do filme do corredor infinito de castiçais com velas, podemos
compreender que aqui o diretor apresenta o fechamento santo para história.
Figura 28: Joana presa, pronta para ser levada a fo gueira.
O corte nos leva à cena do caminho de Joana para fogueira. A interpretação de
Bergman traz nesse fechamento certo temor na expressão de Joana. As pessoas
gritam por sua morte, a acusam de bruxa e herege. As tomadas das cenas mostram
a multidão acusatória a Joana. Seu algoz a amarrando na fogueira, a corrente cai
dos seus ombros e ela as ajeita novamente, colaborando com seu algoz, os
soldados precisam conter os presentes que querem se aproximar de Joana, ela
61
pede uma cruz para segurar e suas últimas palavras após a sentença são: “eu sou
uma boa cristã”, o carrasco então ateia fogo nos feixes em torno de Joana.
Os juízes de Joana vão saindo de cena, a câmera é colocada de maneira que
no plano seja possível visualizar Joana ao fundo na fogueira, proporcionando
profundidade de campo. E então o padre Francês que acompanhou Joana durante o
julgamento surge em cena de mãos a postos e como se fizesse uma prece diz:
“Oh! Homens enganados, traidores de si mesmos e de seu país, confiam na
grandeza e nome imortal do seu maior inimigo, agora o carrasco acendeu os feixes e
mandou seu espírito pelo fogo e jogou seu corpo ao vento e você nunca ouvirá o fim
do trabalho deste dia, o sucesso de poucas vitórias que pode ser deixadas de lado
como um milagre de poucos dias, mas tornaram símbolo e suas cinzas e suas
palavras vão crescer como sementes e criar raízes em deserto e pavimentos
floresceram como escudo para espalhar sua fama esta será sua era seu século e
todos nós padres e reis seremos figuras menores em sua tragédia...vá filha de Deus,
filha da França vá,vá.”
Figuras 29 e 30: Saída dos Juízes e Discurso do Pad re Francês.
E então Joana responde: “Doce Deus esteve sempre comigo esteja comigo
agora na escuridão não quis magoar ninguém e ninguém se magoe comigo.”
As chamas crescem em torno de Joana, a fumaça já está sob seu rosto.
62
Figura 31: Joana na fogueira.
Padre responde: “Venham a ela santos assistentes de Deus, venham encontrá-
la anjos do Senhor, recebendo sua alma oferecendo-as as vistas do maior guia que
cristo a recebe e os anjos a levem ao paraíso.”
E por fim as últimas palavras de Joana antes da morte: “E na hora de nossa
morte amém, Jesus, Jesus!”
A cena se finaliza no crucifixo, e as nuvens no céu se abrem formando uma
imagem e aparecem na tela The end.
Figuras 32 e 33: Cruz no fogo e Nuvens no céu com u ma imagem santa.
Final do filme carrega no dramático com discursos fortes e carregados de
mensagem da imagem de Santa Joana, o que de forma geral podemos considerar
como o objetivo central do diretor nesta produção. Os planos médios e americanos
utilizados nos momentos clímax da personagem e nos momentos de fé e discurso
sobre sua crença e visões a aproximação em primeiríssimo plano como forma de
intensificar a emoção do filme e comover o espectador sobre a fé de Joana.
63
Neste filme de Fleming, podemos observar que Joana d´Arc é representada de
maneira angelical em alguns momentos em outros numa personagem cheia de
elementos que reforçam sua autoridade e liderança, com armadura, discursos
rebuscado de engajamento, como por exemplo, na cena em que Joana discursa
para o exército, após expulsar os familiares e proibir as festas nos campos, com uma
atitude diferente ao que os soldados estavam acostumados, Joana faz o discurso
angariando apoio a causa e apoio a sua missão. A ambientação do contexto é
fundamental para compreensão, como já dito a produção é realizada um período
histórico/político que sofre com as consequências do fim da 2º guerra mundial, um
período de resgate de identidade e esperança para sociedade.
A construção da figura de Joana como heroína e líder do exército que segue
em batalhas pela França é construída a partir dos elementos visuais para tal
representação, uma personagem que luta por uma causa, que tem uma postura
firme em seu propósito, vestida de armadura, com estandarte em punho e com um
discurso político forte e extremamente articulado. Constrói-se a imagem da heroína
líder, capaz de convencer os demais a segui-la em sua missão, a grande maioria
acredita em suas palavras. A construção da liderança também se estabelece pela
imagem, através da beleza de Joana70, com uma armadura reluzente, sobre um
cavalo imponente, cercada por outros soldados e comandantes de exército e a todo
tempo ela é assistida por eles, cabelos cortados e despida de toda vaidade feminina
e essencialmente no discurso muito bem construído e engajado.
O discurso de Joana é um resgate da dignidade dos franceses, oferecendo a
certeza da vitória através das visões de Deus dadas a ela. Ao mesmo tempo, é
emocionalmente gratificante, a vitória sobre a Inglaterra e libertação do povo.
Portanto, podemos considerar que, por meio do discurso e da ação, a liderança de
Joana transforma uma situação complexa e ambígua em um objetivo concreto,
criando pontos de referência e esquemas interpretativos, como as visões e fé, por
exemplo, com objetivo de definir as ações e de promover a ação.
70 Representada pela Atriz Ingrid Bergman.
64
2. Joana d´Arc direção de Luc Besson
A análise da produção de Luc Besson lançada em 1999 será desenvolvida
tendo como base o momento político histórico que a produção acontece, todas as
influências observadas na produção, à estética construída nesta produção, o estilo
do diretor bem como as influências que tal obra provocou dentro da filmografia de
Joana d´Arc.
2.1. Ficha técnica
Ocorre um intervalo significativo entre a última produção cinematográfica de
Robert Bresson em 1963, para a seguinte grande produção ao grande público da
história de Joana d´Arc, Luc Besson, francês emigrado nos EUA é o responsável
pela direção desta produção cinematográfica parceria EUA/França e lançada em
1999, um intervalo de mais de 36 anos entre as duas produções. Alguns particulares
são interessantes nesta produção, à escolha da atriz que interpretará Joana é
permeada por questões pessoais, pois o diretor é casado com Mila Jovovich que é
escolhida para estrelar a produção, outro destaque é o estilo do diretor com histórico
de produções cinematográficas de ação71, esta produção destoa de todo seu perfil
cinematográfico.
O que se evidencia nesta obra é o interesse do diretor em desconstruir o mito
em torno da mártir Joana d´Arc, pois nos traz uma personagem cheia de fé e
coragem, porém, por outro lado, alguém com traumas e temores, e até certa dose de
vingança, este filme foi a segunda obra escolhida para aprofundamento na análise,
em grande parte pela característica citada acima uma personagem diferente das
demais interpretadas no cinema até esse período.
Uma produção que se destaca pela belíssima fotografia e os figurinos também
são diferenciados, tecnicamente o filme também chama atenção pela boa produção,
que vai da direção de arte reconstruindo a França do período da idade média e a
trilha sonora muito bem construída são alicerces para boa qualidade da produção.
No ano seguinte ao seu lançamento, a produção recebeu indicações em seis
categorias do Prêmio Cesar Francês e saiu vencedor em duas delas figurino e som.
71 Nikita criada para matar (1990), Atlantis (1991), Léon o profissional (1994), O quinto elemento (1997), Taxi (1998) e outros.
65
2.2. Aceitação/Crítica
Um filme que ganhou visibilidade para o grande público, com custo de
aproximadamente 111 milhões de reais, segundo o próprio Besson72, o retorno
financeiro do investimento atendeu as expectativas dos financistas, e o público de
modo geral identificou-se com a produção principalmente nas cenas de batalhas,
assemelhando-se inclusive com outras produções em que grandes batalhas foram
representadas, outro destaque para o grande público foi à escolha de um elenco
conhecido e com um histórico de grandes interpretações, no entanto, alguns atores
apresentaram uma interpretação aquém do seu potencial, como por exemplo, John
Malkovich que interpreta Carlos VI. O destaque em termos de interpretação fica par
Dustin Hoffman (Personificação da consciência de Joana), Faye Dunaway (Sogra de
Carlos VI) e Milla Jovovich (Joana), o destaque fica por conta da segunda parte da
produção na interação dentre Dustin e Milla a interpretação é muito bem dirigida e os
atores estão afinados e com grandes interpretações.
A crítica ao filme foi modesta ao filme, em termos de produções
cinematografias todas as atenções centram-se na produção de Dreyer que é
considerada por muitos a melhor produção de Joana no cinema. Bazin afirma que:
“Luc Besson nos mostra uma Joana sem a aura de Santidade da Joana de Fleming.
Nesse caso, ela é confusa, hesitante, comete erros e tem um comportamento
neurótico e obsessivo, tudo que a santa Ingrid Bergman não é.73”
2.3. Análise Estética/Narrativa
Ao recontar a história da maior heroína francesa, o filme constrói no decorrer
da narrativa uma dualidade sobre a vida, a trajetória e os sentimentos em detrimento
as dúvidas da personagem, o diretor em entrevista74 corroboram com esta
percepção, pois ele afirma que de fato era está sua percepção sobre Joana.
72 Entrevista ao jornalista Jean-Michel Frodon, do Jornal Liberátion e publicada no Brasil pela Folha de São Paulo em 17 de Dezembro de 1999. Acesso em <www1.folha.uol.com.br> acessado em 12 de julho 2014. 73 André Bazin, crítico de cinema e fundador da Cahiers du Cinema. Artigo “Devemos-lhe esse sentimento irrecusável da tradução da alma.” André Bazin. Acesso em: http://cinemaeuropeu.blogspot.com.br/2008/04/o-rosto-no-cinema-v-joana-entre-dreyer.html acessado em 15 de julho 2014. 74 Idem ao 2.
66
Bastaram três frases de um dos primeiros livros que li sobre Joana. Foram
suficientes para que eu captasse o coração da história que queria contar.
Trata-se de um momento em que, logo após a batalha diante de Orleans,
Joana chora ao ver os cadáveres das vítimas. Ela é uma heroína que acaba
de conquistar uma vitória, ela exulta, mas ao mesmo tempo duvida dela
mesma e se pergunta se terá compreendido bem o que as vozes lhe
disseram. Então comecei a imaginar a última parte do filme, com esse
processo duplo: o inferior, diante de seus juízes, e o superior, diante de sua
própria consciência.
A proximidade com o espectador é proporcionada pela intensa utilização do
plano médio75. A produção centra-se de maneira intensa nesse recurso para
promover a proximidade, elemento que se torna facilmente percebido. O captar a
imagem em plano médio, à medida que aproximamos a câmera do personagem,
diminuímos o espaço de fundo e aumentamos a proporção do personagem no
campo visual, chamando a atenção para o personagem em destaque na cena.
Interessante observar que o objetivo de Besson era de alguma forma
desconstruir ou até mesmo reconstruir outra imagem em torno do mito da mártir
Joana d´Arc, e o recurso do plano médio é favorável a este processo principalmente
nas cenas de forte emoção, de conflitos emocionais do qual a personagem Joana
enfrenta nesta narrativa.
Joana d’Arc do filme é uma jovem de cabelos curtos e fala ligeira, cheia de fé e
coragem, mas é também alguém que tem temores e traumas, que a tornam por
vezes cruel e vingativa. O roteiro desta produção deixa em aberto às questões
acerca do direcionamento divino e as visões que ela afirmava ter recebido, e
constrói uma personagem com traumas significativos vividos na infância, pois no
mesmo dia em que teve sua primeira visão ela presenciar o estupro e morte da irmã
por um invasor inglês e a morte de toda a família. O filme de Besson traz novos
elementos na história de Joana construindo uma personagem com influência destas
experiências vividas na infância.
Essa tomada é interessante de ser discutida, pois corrobora justamente com
esse viés que o diretor toma para construção desta narrativa, aqui é o justo
75 Capta o personagem da cintura para cima, tomada da câmara que aproxima a imagem num enquadramento menor, mais aproximado.
67
momento em que Joana é levada por seus parentes mais próximos, depois que a
vila em que morava é dizimada e sua família morta, ela está desolada pelo ocorrido
bem como contrariada, pois não quer ir embora do vilarejo em que vive. Joana é
representada como uma garota que não sairia impune a toda aquela experiência
vivida, que havia sido afetada de alguma maneira por toda atrocidade que se
abatera sobre sua família.
Figura 1: Joana criança, após a trágica morte da ir mã seguindo com os tios para outro vilarejo.
Na produção de Besson, a experiência que Joana viveu a afeta de sobre
maneira, pois é um episódio da infância que irá refletir na sua juventude.
Na cena que segue ao enterro dos seus entes queridos, Joana é levada por
seus tios para viver em outro vilarejo, ela procura um padre para se confessar e o
senti de culpa toma conta de Joana e o desejo de morrer é muito forte, conforme
trechos do diálogo abaixo.
- Porque ela teve que morrer? (Joana)
- Só Deus pode responder isso. (Padre)
- Jesus mandou amarmos os inimigos, mas não posso. Quero que os ingleses
queimem no inferno para sempre! (Joana)
- Entendo a sua raiva, mas temos de aprender a perdoar. É difícil, mas a
vingança nunca levará à paz. (Padre)
68
- O que levará? O que a tratá de volta? Porque ela teve de morrer, e não eu?
Porque Ele não tomou a minha vida em vez da dela? A culpa foi minha! Eu que me
atrasei! Ela me escondeu! Porque ela me salvou? (Joana)
- Calma Joana, calma Joana. Não finjo conhecer a vontade de Deus...mas sei
de uma coisa: O senhor sempre tem um bom motivo. Talvez Ele a tenha escolhido
porque precise de você para...algo superior. Então...se atender esse chamado, sua
irmã não terá morrido em vão. (Padre).
- Não quero esperar o chamado. (Joana)
- Joana seja paciente. (Padre)
- Quero ficar com Ele para sempre. (Joana)
- Logo você poderá participar da Santa Missa. Quando beber sua carne e
beber o seu sangue...você se unirá a ele. (Padre)
- Quero me unir a Ele agora. (Joana).
Joana não consegue mesmo após essa confissão em forma de desabafo,
aliviar sua dor e sofrimento, e temos neste diálogo a primeira menção na história
sobre um possível chamamento para algo superior. Mesmo assim Joana não se
mostra muito convencida, o sentimento de culpa e o desejo de vingança são fortes
em Joana. A tomada que a câmera faz no encerramento da confissão é
extremamente semelhante à tomada feita quando Joana sai do vilarejo após o
enterro de sua família, a mensagem reforça a ideia de uma criança solitária e
sofrida.
Figura 2: Joana após cena de confissão na igreja.
69
Diferentemente da produção de Fleming, que não encena as visões de Joana,
na produção de Besson elas ocorrem, mas para o espectador não fica claro que se
trata de visões divina ou delírios. Segundo Besson:
Ela descreveu suas visões durante seu julgamento. Um filme sobre ela
precisa mostrá-las. Mas eu mostro apenas elementos naturais, que ela
interpretou de maneira sobrenatural. A história de Joana é uma história de
sinais, de fé, diante de situações que não possuem nada de extraordinário.
O único elemento acrescentado é a representação física da consciência de
Joana. Eu mostrei como me pareceu que ela pode representá-la para ela
mesma, quando criança, adolescente e depois jovem amadurecida por tudo
que viveu. Mas a consciência de Joana não passa de invenção, enquanto
tal. Para mim, ela existe, é a soma de todas as suas dúvidas.76
As experiências sofridas na infância perseguem Joana, pois na cena em que
ela após um ferimento durante a batalha, enquanto se recupera, tem um pesadelo
em que se mistura o trono de madeira das visões com a visão do homem
violentando sua irmã e ela impotente presa num armário sem poder fazer nada.
Há um evidente processo de crise na figura idealizada da heroína, afinal o
desejo de vingança que passa a mover Joana não é nem um pouco nobre ou
condizente com a teologia cristã. O filme dá diversas outras interpretações para as
visões tidas por Joana, elas poderiam ser simplesmente frutos de uma loucura ou de
seu ardente desejo de vingança contra os ingleses, poderiam ser também situações
banais que ganharam ares sobrenaturais ao serem percebidas por um olhar
previamente condicionado.
Besson constrói uma história que flutua entre a religiosidade, loucura e a
coragem, e assim Joana consegue se fazer ouvir e convencer autoridades e o clero
de sua missão, recebendo assim o apoio e comando do exército francês. As
batalhas são produções muito bem elaboradas, com figurino e fotografia de uma
grande produção, as cenas de ação são bem trabalhadas e a condução dos atores,
mudando com maestria a carga dramática deles no decorrer do filme.
76 Artigo “Devemos-lhe esse sentimento irrecusável da tradução da alma.” André Bazin. Acesso em: http://cinemaeuropeu.blogspot.com.br/2008/04/o-rosto-no-cinema-v-joana-entre-dreyer.html acessado em 15 de julho 2014.
70
Em trajes de guerra, portando uma espada e um estandarte, Joana mostra-se
dotada de coragem e força, qualidades ressaltadas nos guerreiros da Idade Média.
O vestuário de Joana e o corte no cabelo eram por si só, uma transgressão.
Na Idade Média, o vestuário, como afirma Le Goff (1983), designava categorias
sociais, uma mulher vestida com um uniforme de guerreiro, como o fez Joana, era
cometer o pecado da ambição ou da degradação, bem como o cabelo curto em
mulheres indicava uma propensão à infidelidade às normas, poderia ser também,
tomado como um sinal de arrependimento ou conversão cortá-los poderia ser
tomado como penitência, mas, ainda assim, indica um passado de pecado, do qual a
mulher buscava dissociar-se.
Não existiam leis durante a Idade Média que proibissem as mulheres de portar
armas e guerrear, no entanto, a participação de Joana na guerra constituía-se em
um problema, como destaca Beaune (2006, p. 169), pois Joana não tinha sido criada
para guerra, muito menos recebido treinamento militar e predominava o pensamento
de que as mulheres, frágeis de corpo e de espírito, não haviam sido feitas para a
guerra.
A projeção de Joana à frente do exército francês confrontava o pensamento
eclesiástico, marcado pela aversão e medo da mulher. Confrontava, também, os
interesses da Inglaterra e afrontava a moral e a honra do exército inglês, obrigado a
combater com um exército conduzido por uma mulher.
Figura 3: Joana cabelos cortados de maneira irregul ar e descuidados, ela está a frente ao exército.
71
Figura 4: Joana com exército, posicionamento difere nte do filme de Victor Fleming.
Os momentos de reflexão e de questionamento vividos por Joana são bem
elaborados dentro do roteiro, e verificamos aqui um ponto muito interessante dentro
das produções hagiográficas, no que se refere às características apontadas como
elementares neste tipo de produção77; a exemplaridade e o enfrentamento das
adversidades. Nesta produção, observamos que a exposição da angústia
existencial, dos sentimentos de raiva e desejo de vingança e raramente são tratados
nas produções de filmes hagiográficos, então temos na produção de Besson essa
exposição, o que valida à intenção do diretor, desconstruir a figura de Santa em
torno de Joana, mostrá-la como uma pessoa comum, reconstruindo outra imagem.
A Inquisição, criada no século XII para combater as heresias, se estendeu por
toda a Europa Ocidental e, amparada nas previsões catastróficas anunciadas pela
Igreja, investiu na identificação, perseguição e erradicação dos supostos inimigos
em forma de hereges, bruxos, pecadores, é esse o contexto no qual Joana acaba
captura pelos ingleses e submetida a julgamento pelo Tribunal da Inquisição
acusada de heresia, no entanto, é sabido que a acusação impugida a Joana é pano
de fundo para o real motivo da sua captura, dizimar um figura que na interpretação
de Michelet, Joana D’Arc, a donzela de Orleans, por suas palavras e ações, fez
surgir entre os franceses o espírito que faltava de união e amor:
77 Conforme discorrido na introdução.
72
Esta palavra que vai direita ao coração, é a primeira vez que se pronuncia.
Pela primeira vez, sente-se, a França é amada como uma pessoa, E ela
torna-se tal desde o dia em que a amam. Até ali era uma reunião de
províncias, um vasto caos feudal, um pais imenso, de ideia vaga. Mas
desde esse dia, pela força do coração é uma pátria. (Michelet, 1964, p. 16).
Joana promoveu a disseminação da fé de uma nação, tornando-se figura de
referência, influenciando os demais, e através das conquistas nas batalhas Joana
cada vez era reconhecida como um milagre. Abaixo a figura do Rei da Inglaterra
quando recebe a notícia que Joana conquistou Orleans, ao fundo o Bispo juiz que
conduzirá o julgamento de Joana.
Figura 5: Rei da Inglaterra dando o comando para ma tar Joana.
Com a conquista de Orleans, a próxima e definitiva conquista é chegar a Paris.
Joana é ovacionada pelo povo Francês, sendo considerada a grande salvadora da
França, dando ao povo esperança de vitória e dias melhores, nesta cena de
conquista de Orleans a mais importante cidade antes de chegar a capital, a
exploração da fotografia ocorre em plano médio, com Joana vestida em sua
armadura, regozijando com o povo mais essa vitória do exército da França. Joana é
retratada como a grande Guerreira.
Nesta cena o Rei da Inglaterra teme o apoio do povo a causa da Joana, a
crença do povo na possibilidade de libertação da França, através da Santa guerreira
estava se solidificando entre os franceses que sofriam na mão dos ingleses.
73
Figura 6: Joana conquistando Orleans.
A conquista de Orleans é um marco importante para a França, pois a próxima
conquista seria a retomada da capital Paris e solidificando a vitória do povo Francês,
e neste momento que Joana é traída e abandonada por seu então recém-coroado
Rei, que em acordo com a Inglaterra vendeu Joana para o julgamento dos ingleses,
ela é traída de todas as maneiras.
Figura 7: Momento em que Joana percebe que foi traí da pelo seu rei.
Joana enfrenta no Tribunal da Fé. Os juízes que não mediam esforços físicos e
intelectuais para confundi-la, seu comportamento, atitudes e respostas são
registrados e seu julgamento baseia-se na inquisição sobre as provas coletadas e
lhes atribuem o crédito que julgavam convenientes. A tortura estava já
regulamentada como parte do processo inquisitorial. Como salienta Lopez (1993, p.
38), “ela não poderia mutilar e nem matar e nem ser aplicada mais de uma vez,
embora sempre houvesse meios de burlar esta norma”.
74
Joana já está condenada antes mesmo de seu julgamento se iniciar. Ao
término da primeira sessão do julgamento, os juízes discutem a necessidade de
continuar o julgamento em sessões reservadas para não haver a interferência do
público presente, quando o Padre Vicente, representante do Santo Papa e o padre
mais venerável entre os juízes se manifesta.
- Acho este julgamento é uma farsa, e não vou mais participar disso. Estou
disposto a ser o juiz dela, mas não o carrasco. O veredito surge no fim do
julgamento, não no começo. Vou voltar para Roma para dar meu relatório ao Santo
Padre, o Papa.78
Diferentemente da produção de Fleming, que constrói a cena do julgamento de
maneira mais detalhada, em Besson o processo no tribunal torna-se mais
simplificada e a representação do confinamento é que ganha espaço nesta narrativa.
No confinamento, Joana é privada de contatos com o mundo externo e seu
clamor constante é pela possibilidade de confissão, além do mais o tempo de
solidão deveria levar o suposto herege a rever suas faltas e se reconciliar com a
Igreja. Para Joana, a conciliação significaria abrir mão da própria história e renegar a
fé na missão que afirmava ter recebido de Deus, após abjurar, Joana voltar atrás do
que havia assinado, e é novamente encontrada com vestes masculinas79, o discurso
dos clérigos enfatizam que a jovem não havia obedecido a Igreja, não havia mais
chance de conciliação e Joana seria queimada na Praça do Mercado velho.
A sequência em que Joana percebe que tinha se tornado aquilo contra o que
vinha lutando é muito bem construída, câmera em close-up, com um trabalho de
direção muito bem elaborado e os atores em sincronia, considero uma das melhores
cenas desta obra.
Joana é posta à prova quanto de maneira perturbadora, percebe que vinha
prestando culto mais a si mesma, do que a Deus. Nesta cena Joana interage com
um personagem vivido por Dustin Hoffman, que pode representar ao mesmo tempo
uma figura demoníaca, divina, delírios ou a sua própria consciência. É ele quem a
leva a questionamentos profundos acerca da legitimidade e da barbárie do conflito
78 É preso pelo comandante do exército Inglês. 79 Numa trama do Rei da Inglaterra e o comandante do exército inglês.
75
no qual lutou e acerca de sua própria fé e personalidade. A ausência da luz,
combinada com a construção sonora, tomada em close-up, colaboram para criação
da expressividade e dramaticidade.
Ainda que não seja uma unanimidade a escolha da atriz Milla Jovovich para
interpretação deste papel, ela quase torna palpável a dor e angústia interior vivida
pela personagem, sua atuação em Joana d´Arc é considera uma das suas melhores
performances, cenas abaixo.
Figuras 8 e 9: Joana presa na cela estabelece um di álogo com a personificação da sua
consciência.
No decorrer de toda narrativa do filme, os significados atribuídos á vida e morte
de Joana são, um a um desconstruídos. Colocados à prova a cerca da veracidade
ou se não eram apenas delírios. Ela deixa de ser uma mártir – santa heroína - para
se tornar a vítima de um contexto que ela parecia não compreender. A angústia que
corroeu a personagem perpassa pela questão se ela era motivada tão somente pela
vingança da morte da irmã, (e neste caso ela falhou), pois se tornou tão cruel quanto
os homens que invadiram sua casa quando ela ainda era criança. E se de fato ela
agia com direcionamento divino, também falhou. E, sua missão não foi concluída, ao
menos da forma que ela esperava. O diálogo que Joana e sua personificação da
consciência vivenciam, quando a mesma encontra-se reclusa na cela, é
extremamente revelador. Este processo de catarse é vivenciado por Joana de
maneira crucial. A interpretação dos atores Dustin e Milla é primorosa.
76
Figura 10: Joana dentro da cela.
Figura 11: Personificação da consciência.
- Pai nosso que estais nos Céu, seja feita a Vossa vontade...na terra como no
Céu. Perdoai-nos as nossas ofensas...Perdoai-nos. Perdoai e não...Perdoai-nos e
perdoai-os. Perdoai-os e perdoai-nos. Perdoai -os. (Joana)
- Por que estava gritando? (Personificação da consciência)
- O que está fazendo aqui? Não pode ficar aqui. Vá embora! (Joana)
- Por quê? Está esperando alguém? (Personificação)
- Sim. (Joana)
- Quem? (Personificação)
77
Neste momento a tomada da cena se modifica para tomada geral, pois até
então o diálogo estava em close-up, é então que percebemos que Joana fala com
ela mesma a personificação é perceptível apenas a Joana, ela está sozinha dentro
da cela.
- Minhas visões (Joana).
- Suas visões? Elas vêm visitá-la aqui? (Personificação)
- Sim. Estou rezando para isso. (Joana)
- Quero ver isso. Posso ficar aqui? Não vou incomodá-la. (Personificação)
- Não, não pode! Se ficar, elas não virão. (Joana)
- Por que não? (Personificação)
- Porque preciso estar só. (Joana)
- Elas não virão mesmo. (Personificação)
- Como assim? (Joana)
- Por que viriam? (Personificação)
- Porque sempre fui fiel a Deus, segui tudo o que Ele me disse...e fiz tudo o que
Ele me pediu. (Joana)
- Deus lhe pediu para fazer algo? (Personificação)
- Muitas coisas. (Joana)
- Então Deus disse: “Preciso de você, Joana”? (Personificação)
- Não, mas ele me mandou sinais. (Joana)
- Sinais. Que sinais? (Personificação)
- O vento. (Joana)
- Vento. (Personificação)
- E as nuvens. Zumbindo. (Joana)
78
- Nuvens zumbindo. (Personificação)
- A dança...a dança. A dança. A dança? (Joana)
- A dança. (Personificação)
- A espada. A espada no campo. Era um sinal (Joana)
- Não, era uma espada num campo. (Personificação).
- Não, era um sinal. (Joana)
- Não, era uma espada num campo. (Personificação)
- Não poderia chegar lá sozinha. Não poderia. Uma espada não chegaria lá
sozinha. (Joana)
- Verdade. Um fato pode ter várias causas. Por que escolher uma? Há muitos
modos de uma espada ir parar num campo. (Personificação)
(Neste momento aparece uma cena de cavaleiros cavalgando num campo e
um deles deixa cair uma espada sem perceber.)
- Parece uma explicação válida, mas que tal esta? (Personificação)
(Dois homens lutando com suas espadas e um deles perde a luta e sua espada
voa longe)
- Mas há outras possibilidades. (Personificação)
(Um jovem fugindo de outros homens e joga sua espada para trás)
- Ou mesmo mais rápido. (Personificação)
(Um arqueiro acerta uma flecha e acerta um homem e cai morto e solta sua
espada no chão).
79
Figura 12: Joana assustada tomando a consciência de que talvez suas visões, eram
apenas interpretações de episódios do cotidiano.
- E isso sem contar o inexplicável. (Personificação).
(Um homem andando e simplesmente joga sua espada ao chão)
- Dentre infinitas possibilidades, você tinha de escolher esta. (Personificação)
(Céu com nuvens surge uma luz e a espada desce do céu ao chão).
Figura 13: Joana chorosa tomando a consciência.
Figura 14: Personificação dialogando com Joana.
80
- Você não viu o que aconteceu. Você viu o que quis ver. (Personificação)
Figuras 15, 16 e 17: Sequência em close-up da tomad a de consciência de Joana sobre
suas supostas visões.
Nesta sequência de imagem em close-up de Joana, observamos a
concretização da tomada de consciência da interpretação que ela mesma construiu
de suas “visões”. Durante o julgamento de Joana o diálogo com a personificação da
consciência se repete, é quase como um processo de sublimação da experiência
vivida, ou seja, Joana vai construindo uma elaboração de tudo que viveu a partir
destes diálogos, questionamentos e elaborações aos quais alcança dentro deste
processo, que fica a critério do espectador interpretar, se são visões, delírios ou
apenas um exercício reflexivo da personagem e até mesmo que a personificação da
consciência não seria mais um delírio de Joana.
81
A representação da Joana condenada à fogueira representa a imagem de
alguém derrotado, entregue e sem forças, uma diferença significativa da produção
de Fleming, conforme figura abaixo.
.
Figura 18: Joana dentro da cela aguardando sua cond enação na fogueira.
Joana foi sentenciada a queimar nas chamas de uma fogueira, mesmo diante
de sua condenação não consegue o direito de se confessar, lhe é negado, pois é
considerada uma bruxa, herege e, portanto, desprezada pela Igreja, então numa
última interação com sua personificação ela inicia um processo de autoconfissão.
- Quer se confessar? (Personificação)
(Joana balança a cabeça num sinal afirmativo)
- Estou ouvindo (Personificação)
- Cometi pecados, Senhor. Tantos pecados. Vi tantos sinais. (Joana)
- Muitos sinais. (Personificação)
- Os que eu queria ver. Eu lutei por vingança e desespero. Fui todas as coisas
que as pessoas creem poder ser quando lutam por uma causa. (Joana)
- Por uma causa. (Personificação)
- Fui orgulhosa e teimosa. (Joana)
- Egoísta. (Personificação)
- Egoísta. (Joana)
82
- Sim...cruel. (Personificação)
- Sim...cruel. (Joana)
- Acha que está pronta agora. (Personificação)
- Sim (Joana)
- Ótimo (Personificação)
(Num gesto de absolvição, a personificação da consciência se levanta, impõe
as mãos sobre a cabeça de Joana e faz um discurso de absolvição dos pecados).
- Eu te absolvo, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.
Figuras 19, 20 e 21: Sequência de cenas da absolviç ão de Joana pela personificação da
consciência.
83
O corte da cena é direto para Joana queimando na fogueira, o diretor é objetivo
na condução da etapa final da história de vida da personagem, além da simplificação
do processo de condenação, a condução até a fogueira também é deixado de lado,
diferentemente do que a obra de Fleming o faz.
A agonia da morte é um momento fulcral do filme. O fogo, ateado na Praça do
Mercado Velho, queimando seu jovem corpo, ainda vivo, à frente de uma plateia de
ilustres homens e de pessoas comuns. O procedimento evitava que os restos
mortais do condenado pudessem vir a se tornar objeto de veneração, a imagem de
Joana queimando é de representação de dor e desespero.
A representação da morte de Joana expressa toda dor e desespero que um ser
humano pode sentir numa condição de morte tão cruel como esta, o diretor mais
uma vez confirma sua intenção desmistificar a figura de mártir e de santa construída
em torno da imagem de Joana. O diretor segue pelo caminho do fechamento desta
narrativa com uma mulher em desespero pelo fogo ardendo em sua pele,
consumindo seu corpo, sentindo as dores desta terrível morte, sofrendo como
qualquer indivíduo comum, despindo sua imagem de qualquer santidade.
Figuras 22 a 25: Sequência de cenas de Joana queima ndo na fogueira.
84
Diferentemente da produção de Fleming, a morte na fogueira do filme de
Besson, tem grande dramaticidade, a interpretação da atriz é carregada de
expressões de desespero e olhar de súplica por socorro, o diretor constrói a
narrativa do filme pela imagem, diferente do filme de Fleming e faz a junção da
imagem com um belo discurso narrando o fim de Joana, o que corrobora com o
objetivo de cada uma das obras, no filme de Besson é a completa desmistificação da
personagem Santa, o contrário do objetivo do filme de Fleming.
Por outro lado temos um ponto de semelhança nos filmes analisados, ambos
utilizam os elementos de armadura, postura física e discurso na construção da
imagem da heroína e líder capaz de comandar a França na empreitada de batalha
pela libertação, a semelhança fica apenas na utilização dos recursos estéticos para
construção da imagem de liderança, pois para Besson o objetivo é a desconstrução
do mito de santidade, e a construção de uma personagem comum e permeada pelas
angustias, dúvidas e desequilíbrio. Já o filme de Fleming o objetivo é a
representação da Santa angelical e equilibrada.
85
3. Análise das características hagiográficas em Joa na d´Arc de
Victor Fleming e Luc Besson
Após a análise das produções de Victor Fleming e Luc Besson, tenho por
objetivo neste terceiro capítulo, discorrer a respeito das características da
hagiografia fílmica presentes nestas produções.
Uma das principais características na literatura hagiográfica, como já dito, é a
exemplaridade. Observamos que as produções hagiográficas exploram de forma
direta a associação da vida dos Santos com a vida de Cristo, como um produto
desdobrado de outro. Portanto, para compreensão desses elementos, faz-se
necessário o estudo das principais características apontadas como essenciais nas
produções hagiográficas80.
3.1. A Protagonista
A primeira característica que pode ser destacada nos filmes hagiográficos,
como ponto de partida, é O protagonista 81. No caso de Joana d´Arc ela é
representada nos filmes do ano de 1948 e 1999 a Santa e Heroína religiosa. O
protagonista do filme religioso, ou seja, o herói religioso dentro da compreensão da
hagiografia fílmica é o Santo ou Santa representada. Elementar destacar que os
filmes escolhidos para esta análise se encaixam de maneira pertinente nessa
característica, pois abordam a história da personagem Joana Santa, ela é o ponto
central da história, tudo gira em torno dela, sua saga é representada com riqueza de
detalhes.
O santo é reconhecido por suas benfeitorias, virtudes e milagres, que são
atribuídos a ele para o processo de canonização. Eles são reconhecidos pela
entidade máxima do Catolicismo. Esse processo é realizado em etapas, sendo a
principal a autenticidade de ao menos quatro milagres, para garantir a beatificação,
80 O tema Elementos estéticos e narrativos da Hagiografia como forma fílmica, foi abordado pelo Profº Luiz Antonio Vadico na 16ª Encontro SOCINE São Paulo, Cinema Brasileiro e novas cartografias do Cinema Mundial, ocorrido no SENAC – SP em 2012. Mesa temática: As Vidas de Santos no Cinema: a Hagiografia como forma fílmica. Disponível em: < http://socine.org.br/encontro2012/10.html>. 81 Luiz Antonio Vadico (Professor e Orientador – UAM), Angeluccia Bernardes Habert (PUC-Rio) e Miguel Serpa Pereira (PUC-Rio), integrantes da Mesa Temática: As Vidas de Santos no Cinema: a Hagiografia como forma fílmica na Socine, 2012. (Minhas anotações pessoais deste evento estarão disponíveis em Anexo I).
86
que responde pela primeira etapa, e para canonização mais dois milagres.82 No caso
de Joana d´Arc, a Igreja realizou o processo de canonização, durante o século XIX
e, inclusive, dispensou a autentificação de um dos milagres por considerar como
feito Joana ter salvado a França. Entre a Beatificação e Canonização são 11 anos e
finalmente é considerada Santa Joana pela Igreja Católica no ano de 1920 e hoje
Joana é reconhecida como Santa padroeira da França.83
Um fator importante para os filmes hagiográficos se pauta na escolha da atriz
para interpretar o papel de Protagonista, ela conduzirá à narrativa, terá por desafio
imprimir todas as características inerentes àquela personagem, e transmitir com
máxima fidedignidade a história ali representada.
Figura 1: Joana do filme Fleming no momento de oraç ão e recebendo as visões.
Figura 2: Joana do filme de Besson, no momento das visões que são mostradas no filme.
82 BEAUNE, Colette. Joana d´Arc. trad. Marcos Flamínio Peres. São Paulo: Globo, 2006. 83 AMARAL, Flavia Aparecida, “História e ressignificação: Joana d´Arc e a historiografia francesa da primeira metade do século XIX, Tese de Doutorado 2012, acesso: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-14012013-105821/pt-br.php> acessado em 23 de setembro de 2013.
87
As semelhanças na aparência física entre as atrizes Ingrid Bergman que
interpreta Joana d´Arc na produção de Victor Fleming e Milla Jovovich em Joana
d´Arc de Luc Besson, respectivamente, chamam a atenção. Atrizes jovens, com
idade inclusive acima da idade de Joana d´Arc, conhecidas do grande público, loiras
de olhos claros, magras e cabelos longos. Personificação do belo e do bem, dentro
da Etnia branca Europeia.
A diferença entre as obras está justamente nesta escolha da representação
das idades de Joana, na produção de Besson ela conduz de maneira diferente de
Fleming, inicia a história de Joana na infância na qual é representada por outra atriz
criança, e Milla Jovovich assume o papel apenas quando a narrativa da infância de
Joana se encerra, numa cena dramática, num altar, após beber vinho no cálice
sagrado com as palavras “Quero me unir a ti agora.”, em close up, conforme figura
abaixo.
Figura 3: Joana criança no filme de Besson.
Retomando que na narrativa de Besson, a infância de Joana foi traumática,
com acréscimo de eventos fictícios à história relatada na literatura de Joana d´Arc,
como o estupro e morte da irmã, destruição da aldeia que vivia e um desejo de
vingança contra os ingleses que trará impactos na fase adulta de Joana.
Na construção da história da protagonista Joana, outra diferença importante é
no que se refere à representação da condenação e morte, ambas são abordadas de
formas diferentes, no entanto, mantendo-se na característica de Protagonista, que
requer uma produção hagiográfica.
88
3.2. A Família e sociedade
A segunda característica está voltada a situação, ou seja, A família e a
sociedade 84, dentro da estrutura narrativa filme hagiográfico o protagonista é
colocado juntamente com a família, sendo esta responsável pela origem da sua fé
ou os seus problemas. Esta família está inserida num contexto coletivo, que pode ir
desde um pequeno vilarejo a um país inteiro, o que no caso de Joana percorre estes
extremos sua história.85 O santo na maioria das vezes estará entre os oprimidos,
lutando a favor de seus direitos sua luta é em prol da sociedade, lutando contra
grandes adversidades, sejam elas materiais ou políticas sendo na grande maioria
das vezes uma batalha conjunta entre social, riqueza e pobreza que é governada
por autoridades constituídas que exploram os menos favorecidos, enriquecendo e
conduzindo-os a batalhas para morte em prol de seus interesses políticos, e por
outro lado uma luta interna, pessoal contra as suas falhas interiores, suas dúvidas e
incertezas.
A Santa Joana possuía uma capacidade de mobilizar forças de massas através
da fé e dos poderes de Deus, sejam por mensagens através de visões ou milagres,
sendo exemplo ao viver e contar as verdades espirituais as quais ela vem proclamar.
Sendo a morte do Santo sempre algo positivo, uma vez que decorre da necessidade
da exemplaridade, mesmo esta morte sendo dolorosa como foi o caso de Joana, ou
seja, é observada como um sacrifício um martírio, assemelhando-se a história da
vida de Cristo.
Na história de Joana d´Arc, sua missão é a luta pela libertação da França que
está oprimida pela Inglaterra, falida em termos materiais, restando aos franceses à
esperança e fé de algum milagre, outro ponto de destaque na história de Joana é a
batalha entre o material e o político, importante frisar que uma história em plena
Idade Média o político é dominado pelo religioso através da Igreja Católica que
detém autoridade sobre todas as decisões políticas, observamos que no julgamento
de Joana a condução é tomada pela Igreja usando como argumento os “crimes
84 Luiz Antonio Vadico (Professor e Orientador – UAM), Angeluccia Bernardes Habert (PUC-Rio) e Miguel Serpa Pereira (PUC-Rio), integrantes da Mesa Temática: As Vidas de Santos no Cinema: a Hagiografia como forma fílmica na Socine, 2012. (Minhas anotações pessoais deste evento estarão disponíveis em Anexo I). 85 Idem ao 5.
89
religiosos” praticados por Joana. E finalmente sua morte dolorosa como sacrifício de
sua fé.
Na produção de 1948, a família de Joana é pouco retratada, sua fé já está
consolidada, tanto é que a cena de abertura do filme já reforça tal característica,
Joana está dentro de uma igreja totalmente dizimada pela guerra, prostrada diante
de um altar totalmente destruído, rezando, pedindo direcionamento divino para suas
visões.
Figura 4: Primeira aparição de Joana no filme de Fl eming.
No filme de Besson foram acrescentados ao roteiro novos episódios na infância
de Joana que irão impactar de sobre maneira na sua idade adulta, como já
mencionado a violência sexual que Joana presencia sua irmã sofrer e sua morte
brutal por um soldado inglês. Joana viveu já na infância traumas e rupturas
familiares muito significativas, sua fé é retratada de maneira intensa e repassada
pela família.
A primeira cena de Joana é na infância também no ambiente religioso
confessando-se.
Figura 5: Primeira aparição de Joana no filme de Be sson.
90
Nas duas produções temos o início com forte apelo religioso tal qual a história
da Santa Joana vivida na Idade Média. Cada um dos diretores, no entanto, abordam
a fé e família de maneiras distintas, enquanto que em 1948 temos um contexto pós-
guerra e a produção de Fleming irá de encontro a um espectador ávido por
renovação, temos na produção de Besson em 1999 um cenário de mudanças
globais significativas e um movimento de desconstrução de mitos, valores e
paradigmas muito fortes e a produção de certa forma participa deste movimento.
3.3. Identificação do espectador
O elemento de Identificação 86 também é representado dentro da lista de
características de um filme hagiográfico. Ele se estabelece a partir da identificação
por um indivíduo comum, como todas as pessoas, com defeitos, dificuldades,
temores, portanto, nos identificamos com suas dúvidas e temores, a proximidade se
estabelece pela identificação, um ponto interessante é o fato de que diferentemente
da literatura o cinema não aborda os defeitos que destoam do religioso, como por
exemplo, seus vícios, eles costumam não aparecer.87 A história de Joana é
perpassada por este processo de identificação: uma jovem, comum, analfabeta, de
família camponesa, sem nenhum requinte ou conhecimento é escolhida para uma
missão tão importante.
Portanto, um dos pontos principais de diferença entre as duas produções, pois
em Besson um dos pontos de destaque é justamente abordar os conflitos pessoais
que a personagem enfrenta: fragilidade, desequilíbrio emocional diante de uma
missão tão importante, insegurança, traumas, sentimentos de vingança. Eles são
escancarados sem nenhuma timidez, expressados nos diálogos, nas interpretações
e até mesmo no figurino. Já em Fleming, as emoções são controladas, comedidas, a
interpretação de Joana é construída numa aura de santidade e pureza. No entanto,
ambas são jovens de origem comum, camponesas, analfabetas, sem nenhum
requinte ou conhecimento e são escolhidas para uma missão importante, dando a
ideia de que qualquer um pode ser o escolhido, todos merecemos de tal atenção.
86 Idem ao 5. 87 Profº Luiz Antonio Vadico, na mesa temática com artigo tema. “Elementos estéticos e narrativos da Hagiografia fílmica”, Socine, 2012. (Minhas anotações pessoais deste evento estarão disponíveis em Anexo I).
91
É válido destacar que a Identificação apontada como uma das características
da hagiografia fílmica pode ser observada de maneira distinta entre as produções. O
filme de Besson surge num momento político/social importante, principalmente na
Europa com o fim da Guerra Fria, abertura de mercado com a globalização e um
processo de mudança importante com o avanço tecnológico e a solidificação da
internet, uma produção que participa de um momento de grandes mudanças, e o
objetivo do diretor Besson, que também participou do roteiro do filme é consolidar a
desconstrução da imagem de Santa Joana, ou seja, revelar nesta personagem
elementos dramáticos, comportamentos de descontrole e desequilíbrio e
principalmente embutir experiências e traumas na infância que irão influenciar a vida
adulta.
No filme de Fleming o momento social/político é também muito significativo,
pois ocorre no final da Segunda Guerra Mundial, num cenário de reconstrução em
todos os sentidos: estrutural, social, cultural e político. Sua produção participa de
alguma maneira desse processo, pois tem por objetivo a construção de uma imagem
de uma santa guerreira, que foi à luta e que, de maneira equilibrada, articulada e até
certo ponto angelical, segue para uma missão de salvamento. É perceptível no
figurino, na fotografia e na interpretação o conjunto de elementos para construção da
imagem da Santa Joana, a identificação se estabelece pela necessidade de um
momento social, ou seja, a identificação para trazer esperança e modelo de
comportamento.
3.4. Conversão
A conversão 88 diz respeito ao momento em que lhe é revelada sua missão,
mesmo sendo um cristão este processo da conversão remete-se ao momento em
que o escolhido se dá conta das necessidades que esta condição lhe exige, é o
exato momento em que percebe o que terá que abdicar em sua vida, e os
obstáculos e desafios que irá enfrentar para cumprir sua missão por escolha pessoal
ou outorgada por Deus. Sua fé em Deus, e sua escolha pessoal a partir de sua
crença, ganham força tornando-se quase que inabalável. Joana era uma jovem
extremamente fervorosa praticante de sua fé, as visões dão início ao seu processo
de conversão, elas vão tornando-se contínuas até o momento que Joana decide
88 Idem ao 8.
92
colocar em prática as ações que suas visões lhe davam, com uma fé inabalável de
que estava cumprindo sua missão.
Joana d´Arc representada no filme de 1948 é fiel a esta característica, pois a
construção da personagem se pauta justamente na áurea de pureza e santidade. A
conversão de Joana é clara e construída em suas visões, que não são reproduzidas
no filme, elas são mencionadas em seu discurso e ação.
Já na produção de Besson, o processo da conversão de Joana fica nebuloso e
a mercê da interpretação do espectador, pois não há o momento de consciência da
conversão, o filme já aborda a ação de Joana pelo cumprimento da missão, mas o
processo de conscientização de fato, não ocorre, o que está completamente
alinhado ao objeto do diretor, uma desmistificação da santa/heroína Joana, tanto
que ao final, quando Joana já está em cárcere ela se dá conta que talvez sua
missão talvez de fato nunca tenha existido, que foram visões que sua imaginação
viu ou quis ver, bem como fica em aberto ao espectador se até mesmo o processo
da personificação da consciência, não seria mais um truque da mente de Joana,
sendo mais um delírio ou mecanismo de sua psique para interpretar os fatos, fica em
aberto para reflexão do espectador. Outro dado interessante é que as visões são
reproduzidas, mais um elemento de reforço para margem da interpretação do
espectador.
Outro ponto de distinção entre os filmes, temos de um lado uma produção de
1948, que foca na conversão e missão, sem aprofundar-se nas visões propriamente
ditas, deixando em segundo plano o que não é lisível e preservando a Santidade da
personagem. E Besson do contrário, tem como foco as visões de Joana, as reproduz
e a partir destas visões, desconstrói a sanidade de Joana, criando um cenário de
completo desequilíbrio e visões que na verdade eram alucinações ou até mesmo,
interpretações de uma jovem imatura carente de atenção e amor.
93
3.5. Discipulado
Em seguida a conversão inicia-se o momento do Discipulado 89, ou seja, é a
prática da missão, faz-se necessário ao engajamento da causa o afastamento
familiar por completo, abdicar de sua vida, rotina, acolhimento e segurança do lar,
para angariar seguidores de sua missão, um processo muito semelhante à jornada
de Cristo, pregando e convertendo, fazendo seguidores e discípulos para a causa,
compartilhando sua missão.
Na história de Joana o discipulado, se atém a causa principal a libertação da
França, então seu discipulado se estabelece por convencer as autoridades
constituídas que suas visões eram genuínas e que a missão seria alcançada com
êxito. Os soldados eram seu corpo de discípulos, obedecendo ao seu comando,
guerreando em nome desta causa.
Nas duas produções o processo do discipulado ocorre de maneira genuína e
baseada na história contata através da literatura e demais registros históricos da
história real de Joana d´Arc.
3.6. Confronto
O clímax dentro de um filme hagiográfico é o momento do Confronto com o
mundo, pois o processo de desenvolvimento da causa vai ganhando força e
chamando a atenção do poder instituído, chegando, portanto ao momento climático
que às vezes ocorre através de um julgamento, prisões, morte o que fatalmente irá
significar o martírio do santo. O importante é que este embate é esperado e é certo
que irá acontecer no decorrer da história, o momento de confronto na história de
Joana d´Arc de fato é o que mais ganha destaque, inclusive com produções
cinematográficas que abordam apenas este momento do processo, as produções
que me refiro são obra de Dreyer e Bresson.
O confronto muitas vezes ocorre contra as autoridades constituídas pela qual a
causa luta contra e este confronto pode ocorrer através de um julgamento, prisão ou
morte o que fatalmente irá significar o martírio do santo, na história de Joana, bem
89 Profº Luiz Antonio Vadico, na mesa temática com artigo tema. “Elementos estéticos e narrativos da Hagiografia fílmica”, Socine, 2012. (Minhas anotações pessoais deste evento estarão disponíveis em Anexo I).
94
como nas produções cinematográficas de Fleming e Besson tal fato se confirma em
todas as etapas, ou seja, a narrativa de Joana é de fato conduzida para este
confronto, é o momento mais significativo de sua história, embate este desleal,
manipulado e pautado numa traição, o que se assemelha ainda mais a história de
Cristo.
Mais uma vez os diretores não fugiram a este confronto ele foi abordado de
maneira intensa, no entanto, destacando pontos distintos, enquanto a produção de
Fleming trabalhou de maneira detalhada o julgamento, a produção de Besson utiliza
o confinamento da cela para conduzir o momento de confronto e climático com a
própria consciência de Joana, o que faz jus ao viés que o diretor deu a toda sua
narrativa.
Através de todo estudo realizado nesta dissertação considero este o momento
crucial de todo o processo, pois com base nos relatos históricos da Idade Média,
temos duas produções cinematográficas que utilizaram uma narrativa que se
assemelha em alguns pontos, mas por outro lado diverge em outros de maneira
muito pertinente ao objetivo de cada um.
No filme de Fleming o momento do confronto é alinhado a toda narrativa
estabelecida na produção, um confronto comedido, coerente no que se refere à
narrativa e ao discurso da personagem, uma construção de imagem coerente uma
personagem Santa, ou seja, controla suas angústias, abdica de seus anseios e
desejos em prol da sua missão, que controla os sentimentos negativos, não reage
de maneira descontrolada ou desequilibrada, consolida o mito da Santa Joana. O
confronto se estabelece com grande semelhança a história de Cristo, sofrido, porém
controlado evitando reagir de maneira contrária ao que se espera de um Santo.
Besson nos apresenta uma Joana distinta desde o início da história, com
episódios fictícios inseridos na infância que não tem nenhuma comprovação nos
relatos históricos, experiências que irão influenciar a vida da personagem e a
narrativa traz esta confirmação com os elementos de figurino, iluminação,
interpretação e posicionamento da câmera. O filme explora com grande intensidade
o espetáculo nas visões de Joana, contrário da produção de Fleming, deixa livre ao
espectador a interpretação das visões se reais ou não, reservando para o momento
95
do confronto com a personificação da consciência, a revelação sobre a veracidade
das visões da personagem, o que deixar em aberto para interpretação do
espectador se este momento de descoberta dentro do confinamento, não seriam
outros delírios de Joana.
O momento do confronto é revelado de maneira completamente distinta da
produção de Fleming, ele não deixa de reproduzir o momento do confronto com as
autoridades instituídas, o julgamento acontece de maneira reduzida e contendo
apenas o essencial, é reservado o momento do confronto para o encontro da
personagem com a sua personificação da consciência, são diálogos interessantes
com riqueza de argumentos, a interpretação dos atores é primorosa, a iluminação e
tomada de câmera são muito bem feitas, e o cenário é básico Joana sozinha dentro
da cela.
Enquanto na produção de Fleming o momento de Joana sozinha na cela é um
momento de solidão e serenidade para realizar as preces a Deus conforme
sequência de figuras abaixo.
Figuras 6 e 7: Joana rezando dentro da cela.
Figura 8: Câmera Close-up numa imagem belíssima ima gem de Santa Joana .
96
Figuras 9 e 10: Joana presa, pronta para ser levada a fogueira.
Na narrativa do filme a construção da imagem é fundamentada numa imagem
pura e imaculada. O momento de entrega da personagem se assemelha com a
história de Cristo, (um momento de prece entrega da vida a Deus, para que seja
feita a sua vontade), pode ser observado na sequencia das imagens nas figuras 6,7
e 8. De vestes brancas, cabelos penteados para traz deixando o rosto livre e sereno,
Joana aguarda o momento de ser levada a fogueira, com castiçais ao seu lado em
Close-up. Com este cena é possível observar o fechamento que o diretor faz com a
história, pois a primeira cena do longo foram imagens de castiçais e velas que
formavam um corredor infinito90 e aqui, os castiçais simbolizam o encerramento da
história da personagem momentos antes de sua morte.
90 Análise disponível no capítulo 1.
97
No filme de Besson é um momento de embate com a consciência numa
discussão se suas visões eram reais, se existiram de fato ou eram meras
interpretações do cotidiano, permeados pela vaidade, desejo de matar e vingança
pela morte de sua irmã pelos Ingleses. A direção de Luc Besson é pertinente no
exercício de questionamentos e abertura para reflexão do espector quanto a pensar
se as visões eram reais ou não, inclusive a próprio embate com a personificação da
consciência que se dá numa circunstância em aberto, ou seja, não revelada
claramente, pois o embate de Joana acontece com a personificação da consciência,
o que nos leva a uma reflexão ainda mais interessante, seria ela real?
As sequências de figuras abaixo representam este momento de confronto tão
peculiar no filme, são cenas de embate entre Joana e sua consciência, um momento
de luta interna, com seus sentimentos, angústias, medos e frustrações, revelando as
fraquezas da personagem.
Figura 41 a 13: Momento de confronto dentro da cela Joana e personificação da consciência.
98
A cena final de absolvição da consciência de Joana é diferente da produção de
Fleming, ela está exausta, sem forças para se manter firme, ela está vencida e não
acredita mais em suas visões. O figurino e a interpretação de Milla corroboram com
esta representação, conforme figuras abaixo.
Figura 14: Joana presa, pronta para ser levada a fo gueira.
Figura 15: A personificação da consciência faz a ab solvição de Joana.
O corte da cena segue para Joana já na fogueira com chamas, o diretor
cumpre seu objetivo de confronto dentro da cela, não há mais necessidade dentro
da narrativa proposta do filme, enfatizar o martírio de Joana, pois sua dor e angústia
retratada na fogueira são reais e não as do heroísmo de um Santo, conforme figura
abaixo.
99
Figuras 16 e 17: Joana na fogueira.
3.7. Exemplaridade e o social
É muito coerente quando se estabelece as essas características peculiares a
hagiografia fílmica, na minha visão quando é elencada a Exemplaridade e o
social 91, é pertinente na história de Joana tal processo, e a compreensão deste
elemento são essenciais. O santo, ou santa como é o caso desta dissertação é
constantemente colocado à prova, enfrenta adversidades, lutam contra inimigos
materializados na aristocracia, no poder e na igreja quando esta defende os seus
interesses profanos.
A santa Joana é constante colocada à prova, enfrentando adversidades com fé,
lutando contra os inimigos materializados na aristocracia, no poder e na igreja.
No entanto, a angústia existencial, ou seja, sua luta pessoal contra as
emoções, dúvidas, temores são controlados e não externalizados, pois o objetivo é
conter essas emoções, para manter o exemplo, ser um modelo para os demais.
Besson vai à contra mão desta característica; ela tem objetivo justamente
externalizar, amplificar e até mesmo questionar a dualidade entre conversão e
exemplaridade, na narrativa do filme o foco permeia exatamente nestas emoções
que raramente são mostradas.
Já Fleming, segue a exemplaridade de maneira fiel, ou seja, constrói uma
narrativa pautada numa conduta modelo da Santa Joana, reconhecidamente um
modelo a ser seguido, de fé, abdicação e sacrifício em nome de sua fé.
91 Idem ao 10.
100
3.8. Mortificação da carne
Nos filmes hagiográficos é perceptível a semelhança com Mortificação da
carne 92 cristã, ou seja, o abandono da carne em nome da vida espiritual, desde
tortura física e emocional que o santo sofre em sua trajetória de missão, bem como
o desprendimento da carne, com despreocupação com seu corpo e sua aparência,
despida de vaidade, seu corpo é sacrifício que pode chegar até a morte como foi o
caso de Joana. Tanto em Fleming como em Besson, Joana é completamente
despida de vaidade, bens materiais, enfim uma vida abdicação do eu para uma
causa maior, levando ao total sacrifício em nome da fé. Assim como já sinalizado
diferentemente da produção de Fleming, Besson conduz sua história para
representação de Joana em dúvida sobre sua missão, ou seja, uma insegurança e
dúvida sobre as reais visões, se de fato existiram ou se a causa não estava
disfarçada numa vingança pessoal pelo que aconteceu a sua família.
De maneira geral, as características que identificam uma produção hagiográfica
se concretizam nas produções apontadas aqui neste estudo, temos o processo da
construção da similaridade com a vida de Cristo de maneira, detalhada e construída
a partir dos desdobramentos dos fatos vividos na história.
Uma jovem comum como a maioria das jovens camponesas da França na
Idade Média, recebe um chamamento através de visões, temos aqui, portanto a
identificação a história de Cristo, uma pessoa comum de condição humilde não só
apenas do ponto de vista material, mas moral, com honestidade, justiça e luta pelo
bem maior e de benefícios a todos, com um caráter heroico, capaz de abdicar de
sua vida e morrer em nome de sua fé e missão. Suas virtudes são destacadas e
corroboram na personificação da imagem de Santa heroína que lutou e deu a vida
por este em nome da luta e da fé.
As características da hagiografia fílmica são observadas com muita clareza e
coerências nos filmes selecionados para análise possuem pertinência e riqueza de
detalhes para que seja possível analisar e comparar as produções, identificando as
92 Profº Luiz Antonio Vadico, na mesa temática com artigo tema. “Elementos estéticos e narrativos da Hagiografia fílmica”, Socine, 2012. (Minhas anotações pessoais deste evento estarão disponíveis em Anexo I).
101
semelhanças e abordagens diferentes adotadas por cada diretor, porém, não
deixando de aplicar as características fílmicas comum na hagiografia.
Os recursos técnicos foram fundamentais para afetar de maneira direta ou
indireta o espectador, assim como foi possível nesta análise identificar as
características da hagiografia fílmica, os recursos técnicos são sine qua non para
execução do processo narrativo. Dentro os recursos valem destacar os
posicionamentos da câmera com diversos enquadramentos, plano detalhe e close-
up principalmente nas cenas de forte impacto, onde cada um poderia influenciar
também a percepção do espectador, sendo que uma das ideias mais presentes é de
poder dar ao espectador a impressão de participar do filme, como por exemplo, estar
no olhar do personagem, em pé ou sentado ao lado do personagem, escondido
vigiando alguém, testemunhando algum acontecimento, entre outras situações.
Partindo da premissa que o interesse no plano de detalhe é “destaque e
intimidade” com um elemento, o sino e a cruz são elementos que na estética dos
filmes ganham uma representatividade simbólica muito pertinente, pois o sino
representa religiosidade, chamado, despertar, e a cruz como símbolo do sacrifício, e
fé, elementos essenciais para a narrativa de Joana, que através de suas visões
recebe o chamado para cumprir uma missão de lutar pela libertação da França e
Coroação do rei, e sua morte em nome da missão e fé.
Nas cenas de batalhas uma estruturação de um espaço cênico, indicando a
profundidade que determinado espaço tem, ou pode demonstrar ter, no filme
analisado. Esta função aparece com a intenção de dar maior dramaticidade ao filme.
A ausência da luz ou pouca luz nas cenas de confronto do filme de Besson são
fundamentais na construção da narrativa, combinada com a construção sonora em
determinadas cenas também colabora na criação da expressividade e
dramaticidade.
Elementar destacar que se trata de um conjunto de fatores presentes no
processo produtivo, e que é só possível a compreensão das características da
hagiografia fílmica, a partir de uma análise aprofundada de todos os elementos
presentes na produção.
102
CONSIDERAÇÕES FINAIS
De acordo com os dados aqui levantados, os filmes que narram à história de
Joana d´Arc são considerados produções da hagiografia fílmica, pois foram
identificadas as características que as configuram como tal. Quando adentramos nas
esferas da estética cinematográfica verificamos muitos elementos em comum dentre
diversos filmes, sejam no tocante aos enredos, elementos da narrativa, tais como
figurino, enquadramentos, planos, espaço cenográfico e outros apontados no
trabalho, tais como postura da personagem Joana e os diálogos estabelecidos na
narrativa. Neste mesmo sentido vimos também à existência de muitas similaridades
entre a história de Santo e a vida de Cristo, através das características da
hagiografia fílmica.
Como resultado de uma análise estética, verificamos ainda que os filmes de
mesmo título Joana d´Arc de Victor Fleming e Luc Besson, possuem características
importantes que se assemelham em alguns pontos e em outros se diferenciam por
completo, mesmo tendo como origem os registros históricos da Idade Média. A
história de Joana é fortemente representada na liderança política, o envolvimento da
personagem é justificado em visões, mas o objetivo das mesmas é político.
O filme de Victor Fleming abordou a história de Joana como um todo,
apresentando na construção da imagem de Joana, uma personagem pura e Santa,
com contrapontos das representações das batalhas, em que essa figura feminina se
transforma, com armadura, corte dos cabelos e uma intenção de se masculinizar e
obter a atenção e respeito do exército sob seu comando, ao mesmo tempo,
permeada pelo caráter político que se tem da história de Joana, em sua habilidade
do discurso convincente e de sua capacidade de articulação principalmente no
momento do seu julgamento.
Foi possível analisar o momento social e político da produção, pós Segunda
Guerra Mundial, um cenário de reconstrução de identidade sendo assim o filme mais
um objeto de influência cultural neste processo. A imagem de Santa guerreira
construída na narrativa do filme corrobora com o momento social. Os recursos
técnicos e a interpretação são fundamentais neste processo e por fim a análise das
características da hagiografia fílmica presentes no filme.
103
No filme de Luc Besson uma produção no final do século XX, dentro de um
contexto completamente distinto da obra de Fleming. Interessante perceber até certo
ponto um incentivo a desconstrução da personagem, nas cenas de batalhas Joana é
atrevida quase que irresponsável e por vezes é chamada a realidade pelos seus
soldados, a figura de Joana é apoiada por outros personagens homens, deixando
por vezes no ar quase que uma mulher capaz de se entregar ao amor. Já nas cenas
de julgamento o diretor constrói como parte elementar da história da personagem
tais fatos, porém, o ápice do debate e sagacidade na defesa de seus ideais se dá no
momento de confronto com a personificação da consciência sozinha dentro da cela,
o que se distingue por completo do filme de Fleming, quando o momento do
confronto, ou seja, o ápice da história se dá durante o processo do julgamento
judicial.
E a Hagiografia fílmica foi um tema que despertou ainda mais meu interesse no
estudo dos filmes sobre a vida da Santa Joana, sendo o importante numa
hagiografia a construção de um paralelismo da vida da Santa com a vida de Cristo,
esta análise foi realizada nas produções escolhidas para este estudo inicial, porém,
o aprofundamento da temática faz-se pertinente mediante uma extensão de
produções da filmografia de Joana d´Arc, porém, este é um tópico a ser tratado em
futuros trabalhos.
104
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John Malkovich,TchèkyKaryo, Pascal Greggory, Desmond Harrington,Timothy West,
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Produzido: Patrice Ledoux e Luc Besson. Produtora: Gaumont. EUA/FRANÇA: 1999.
(155 min), Título original: The Messenger: The story of Joan of Arc.
FLEMING, Victor. Joana d´Arc. Elenco: Ingrid Bergman, Francis L. Sullivan, J. Carrol
Naish, Ward Bond, Shepperd Strudwick, Gene Lockhart, John Emery, Leif Erickson,
Cecil Kellaway e José Ferrer. Fotografia:Thierry Arbogast Roteiro: Maswell Anderson
e Andrew Solt. Produzido: Victor Fleming, Ingrid Bergman e Walter Wanger.
Produtora: Sierra Pictures. EUA: 1948. (145 min), Título original: Joana of Arc.
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ANEXO I
16ª Encontro SOCINE São Paulo, Cinema Brasileiro e novas cartografias do
Cinema Mundial, ocorrido no SENAC – SP em 2012.
Mesa temática em 10/10/2012: As Vidas de Santos no Cinema: a Hagiografia
como forma fílmica.
Integrantes da Mesa:
Luiz Antonio Vadico (Professor e Orientador – UAM) com artigo: Elementos
estéticos e narrativos da Hagiografia como forma fílmica;
Angeluccia Bernardes Habert (PUC-Rio) com artigo: A paixão segundo Dreyer;
Miguel Serpa Pereira (PUC-Rio) com artigo: Uma vida com “graça” – A lenda
do santo beberrão.
Angeluccia:
- Joana d´Arc de Dreyer, uma das mais importantes produções do cinema
sobre Santa Joana;
- Base no registro do processo, através das Atas do Julgamento original;
- Assim como o fez Besson em contraponto a produção de Dreyer;
- “Ambientação, sem objeto e sem decoração”;
- Nos atores/processo – câmera em close-up;
- De baixo para cima;
- Recuperação em “sacrifício”;
- Acusação de 4 pecados;
- Francesa julgada por Ingleses.
- Dreyer não trata da questão religiosa;
- Joana enigma e vidente (Santa???).
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Miguel:
- Santo Beberrão;
- Conotação religiosa, sem alimento não ao corpo para espírito habitar;
- 1ª Graça;
- Outros santos?? Todos Santos???
Vadico:
- “Discordância ao estudo de Pamela Grace”, poucos escritores sobre o tema e
corajosos em arriscar-se por um campo desconhecido;
- Gênero Religioso – “Hagiografia fílmica”?
- Diferente de Produção Hagiográfica Hollywood;
- Gênero literário, porém ao cinema requer revisão.
- Protagonista é o Herói religioso;
- Gênero do Campo Religioso;
- “Santo” não só Igreja, mas Santo popular;
- Pouco para com estética;
- Exemplaridade do personagem com a vida de Cristo
(Chamamento/Conversão/Discipulado/Morte)
- Mas, Jesus Cristo não é Santo????
- Discípulos/ Maria Madalena???
- Narrativa básica: Família/Sociedade/Pessoa comum/O mundo.
- Biográfico é diferente de Hagiográfico (Atitude SOCIAL/ EXEMPLARIDADE/
SER SEGUIDO)
- HAGIOGRAFIA FÍLMICA: VIDA DE SANTO
- BIOGRÁFICO: Não necessariamente um modelo;
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- Porém, gêneros semelhantes;
“Para ser perfeito tem que imitar a Deus” – Hagiografia fílmica
- Exemplaridade;
- Imitação de Deus.
- Joana d´Arc não fez Milagres/ Santa??/ Santa popular que foi reconhecida
pela Igreja para encobrir um erro.
- Paixão não é Milagre (Paixão de Cristo = Sacrifício).
- Paixão Joana d´Arc = similaridade com Paixão de Cristo.
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