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Laura Sarti Côrtes
Nos Confins do Saber Jurídico: O Caso Raposa Serra do Sol no STF
Monografia apresentada à Escola de Formação da Sociedade Brasileira de
Direito Público – SBDP, sob a orientação de Rafael Scavom Belem de Lima
SÃO PAULO 2010
Índice
1. Introdução
Por que o Caso Raposa Serra do Sol .................................................. 1
2. Metodologia ................................................................................ 3
3. Raposa Serra do Sol – contexto fático e jurídico
3.1 Ocupação da região ........................................................... 6
3.2 O procedimento administrativo de demarcação - ente idas e vindas....................................................................................8 3.3 A Raposa Serra do Sol no STF.............................................13
4. A Ação Popular 3.388 ...................................................................15
4.1. Principais Temas Abordados 4.1.1. O Direito e os Povos Indígenas: da ausência à
inefetividade.................................................................20
4.1.2. Terras Indígenas - o habitat que não cabe em
títulos..........................................................................29
4.1.3. Fato Indígena versus Indigenato - uma nova
teoria?.........................................................................31
4.2. Os Alegados Vícios no Procedimento de
demarcação..........................................................................33
4.2.1. Nulidade do Procedimento Administrativo: com
quantas assinaturas se faz um laudo
antropológico?..............................................................35
4.2.2. Pacto Federativo e Desenvolvimento Econômico: quem
está realmente 'atrapalhando'?.......................................40
4.2.3. A Relação Entre os Povos Indígenas e o Estado........48
4.2.4. Meio Ambiente, Afetação de Bens Públicos, Modos de
Vida e a Força Persuasiva do Mito................................... 56
5.Conclusão - Nos Confins do Saber Jurídico: interdisciplinaridade em
respeito à Constituição....................................................................69
6. Fontes Consultadas ......................................................................72
7.Anexos.......................................................................................74
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1
1. Introdução:
Por que o caso Raposa Serra do Sol?
Como todo trabalho acadêmico, este estudo teve origem em uma curiosidade. Ao longo das discussões desenvolvidas na Escola de Formação da Sociedade Brasileira de Direito Público em 2010, constantemente chamou-me atenção a importância de argumentos que ultrapassavam a capacidade de compreensão de uma “ciência do direito”, remetendo a outras áreas do conhecimento.
Decidi que minha monografia trataria dessa questão: como os ministros
do STF lidam com casos em que o saber jurídico não é suficiente à
resolução da controvérsia apresentada? A que mecanismos recorrem para
resolver os impasses que se colocam? Como adaptam esses discursos não
jurídicos à sua argumentação? Conseguem fazê-lo mantendo a
racionalidade jurídica? Enfim, como dialogam com outras áreas do
conhecimento?
Confesso que não foi fácil encontrar um recorte que contemplasse essas
questões, e que, de alguma forma, trouxesse a possibilidade de traçar
algo como um “perfil” da atuação do tribunal nesse sentido. Selecionar
alguns casos, dentre tantos que se apresentam nesses parâmetros,
implicaria em correr o risco – subjetivo – de escolher o que mais me
tocasse. Corri tal risco, e optei (pois a escolha do objeto de pesquisa não
é subjetiva?) por analisar um único caso que se destacava como singular,
e trazia também matéria de meu interesse, a questão dos direitos dos
povos indígenas.
Trata-se da decisão da Ação Popular 3338-4, relativa à demarcação da
Terra Indígena Raposa Serra do Sol - caso que teve ampla veiculação
midiática, marcado por diversas informações incertas. Chamou-me
atenção o tanto que se falava sobre o assunto, e o tão pouco se relatava
sobre os principais sujeitos da questão: os povos indígenas que vivem na
região. Por que precisariam daquele território tão vasto?1 Poderiam, de
1 Ver mapa em Anexo 1.
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fato, ser caracterizados como povos diferenciados? Qual a razão para que
se questionasse o que se diziam ser suas necessidades?
O trabalho de descrever usos e costumes, narrativas e tradições,
academicamente, não costuma ser feito por juristas. Trata-se do campo
da etnologia, área circunscrita à antropologia - normalmente incógnita à
grande parte dos operadores do direito com uma formação tradicional.
Teria sido necessário que os ministros do STF enfrentassem esses
conhecimentos antropológicos? E de que forma eles apareceriam na
decisão?
Examinar esta decisão não é tarefa simples – e não se pode deixar de
tratar das diversas polêmicas nela envolvidas. Vôo de helicóptero e
condicionantes à decisão (lembrando que, para um pensamento jurídico
tradicional, espera-se que o judiciário mantenha postura 'neutra' e inerte)
causam perplexidade à academia. Argumentos de interesse público
levantados longe de um exame minucioso dos fatos apontam para
direções antagônicas: tanto podem justificar a demarcação em terras
contínuas, como podem também embasar o entendimento de que seria
mais adequada a chamada demarcação em ilhas.
A questão da Terra Indígena Raposa Serra do Sol constantemente é
colocada entre os chamados “casos difíceis”. Mas por que razão? Haveria
alguma relação dessa qualidade do caso com o fato de ele envolver
conhecimentos não jurídicos? Esses são os questionamentos que pretendo
enfrentar neste trabalho.
2. Metodologia
A caracterização de povos e etnias é tarefa tradicionalmente
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desempenhada na academia pela antropologia. Assim, o papel dos
profissionais com formação acadêmica nesta área do conhecimento na
confecção de laudos para demarcação de terras indígenas e quilombolas é
fundamental – uma vez que tais laudos envolvem a consideração de
aspectos identitários e dos costumes dessas populações. Assim, tal
temática se encontra em uma interface entre essas duas áreas distintas
do conhecimento, cada qual com suas particularidades.
Haveria possibilidade de apontar essa interdependência no julgamento do
caso Raposa Serra do Sol? Ela transpareceria em uma análise da decisão?
Seria explícita ou estaria nas entrelinhas?
A princípio, meu intento era analisar o laudo feito pela FUNAI e comparar
seu conteúdo às considerações postas pelos ministros – procurando
entender como teria ocorrido a adaptação de saberes antropológicos ao
discurso jurídico. Infelizmente, dado o curto tempo de duração dessa
pesquisa e a extensão do material disponível nos autos do processo,
percebi que minha insistência neste caminho metodológico inviabilizaria a
conclusão do trabalho no tempo estipulado.
Assim, fui dando andamento à pesquisa por muito tempo sem que tivesse
uma hipótese ou pergunta que lhe servisse de eixo, analisando a Ação
Popular 3.388 de maneira exploratória.
Percebi, então, que compreender esse como partia da premissa de que
conhecimentos antropológicos teriam, de fato, integrado a razão de
decidir do julgamento. No entanto, o que me parecia bastante claro (eu
mesma venho me dedicando ao estudo de temas relacionados à
antropologia paralelamente à graduação em direito) poderia ser uma
hipótese ainda a ser comprovada sob a perspectiva de quem pensa o
direito.
Assim, decidi proceder de maneira menos ambiciosa e modificar meu
problema de pesquisa, buscando responder fundamentadamente à
seguinte indagação: A decisão do caso Raposa Serra do Sol teria
realmente dependido da consideração de aspectos alheios ao
conhecimento jurídico? O recurso à antropologia seria de fato necessário à
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sua realização?
Para tanto, foi necessário proceder a uma análise minuciosa do acórdão,
buscando sintetizar o que foi dito a respeito de cada um dos pontos
questionados na ação. Dessa forma, foi possível compreender a relevância
dos argumentos colocados a favor ou contra a demarcação em terras
contínuas quando confrontados com aspectos que seriam, possivelmente,
considerados através de uma abordagem antropológica. Afinal, como
poderia dizer o que foi ou não relevante para a decisão esquivando-me de
examinar todos os aspectos envolvidos nela?
Atentando a esse questionamento, compreendi que, para demonstrar
minha hipótese da maneira satisfatória, seria necessário adicionar ao
trabalho um segundo eixo além daquele determinado pelo problema de
pesquisa. Trata-se do exame exaustivo desses questionamentos colocados
pelos autores da ação que impugnou a demarcação, procurando apontar
as respostas trazidas por cada ministro em seu voto.
Desse modo, construo a sequência dos capítulos apresentando-os de
forma que mantivessem uma coerência entre si. Desse modo, pretendi
possibilitar ao leitor a formação gradual de uma visão panorâmica da
decisão – até que, enfim, fosse possível confirmar ou afastar minha
hipótese.
Inicio o trabalho a partir do histórico da ocupação da Raposa Serra do Sol
Em seguida, faço uma exposição sobre o tratamento dos povos indígenas
pelo ordenamento jurídico brasileiro. Depois, passo à questão jurídica da
própria Raposa Serra do Sol, para, por fim, debruçar-me sobre a
discussão dessa questão na Ação Popular 3.388.
Paralelamente, vou apontando aquilo que no discurso dos ministros pode
ser identificado como conhecimento antropológico. Assim, os elementos
que tratam do problema de pesquisa do trabalho encontram-se diluídos na
análise dessas informações, para que sejam, enfim, reunidos na
conclusão.
Cabe esclarecer que as informações trazidas neste trabalho tiveram como
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fonte, predominantemente, peças processuais extraídas da própria Ação
Popular 3.388. Além dessas peças, também recorri a uma entrevista com
o professor Paulo José Brando Santilli, antropólogo responsável pelo
parecer que deu origem à demarcação em questão.
Infelizmente, não foi possível que essa entrevista fosse realizada de
maneira estruturada. Quando, em 30 de setembro de 2010, consegui
estabelecer contato com professor, visava somente obter o material
antropológico relativo a esse parecer. Ainda que não tenha sido possível
conseguir esse material, pude conversar de maneira informal com Paulo
Santilli e obtive informações de grande relevância, que não poderiam ser
omitidas. Não tendo sido possível, por questões de disponibilidade durante
o período dedicado à realização deste trabalho, retomar o contato com o
professor, optei por trazer tais informações, ainda que elas não tenham
sido colhidas da maneira ideal, através de um entrevista estruturada.
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3. Raposa Serra do Sol – contexto fático e jurídico
3.1. Ocupação da Região
A história da Raposa Serra do Sol e dos povos que residem em seu
perímetro, muito embora esteja coberta de perplexidades, possui registros
antigos. E, justamente, quando se faz menção a esses registros, surge a
referência a uma suposta dívida histórica para com essas populações. De
fato, não é necessário grande esforço para concluir que o Brasil possui
débito com os povos indígenas – raramente tratados como autônomos, e
frequentemente esquecidos ou ignorados em meio aos planos de
desenvolvimento do país. Mas, no caso dos habitantes da Raposa Serra do
Sol, há algo que, para os que apoiam sua causa, tornaria essa injustiça
ainda mais gritante. Qual seria essa particularidade?
Os primeiros registros sobre as populações da região datam do século
XVII, quando viajantes holandeses reclamavam não conseguir circular no
território em decorrência dos conflitos entre os índios Macuxi e
Wapichana. Em 1.774, a atuação macuxi teria ajudado os portugueses a
expulsar os espanhóis da área. Naquela época, teriam sido introduzidos os
primeiros rebanhos na região - o que explica porque ali se dá a criação de
gado pelos índios.2
Durante o século XIX, obras de viajantes e missionários também fizeram
referência à presença indígena na região. No início do século XX,
destacam-se os relatos dos etnólogos Krock-Grümberg e William Farabee.3
O primeiro redigiu obra com coletânea das narrativas dos índios da região,
em que se destacou o famoso mito de Macunaíma. Esta obra inspirou o
escritor Mário de Andrade a desenvolver sua obra homônima, onde se
encontram, misturadas à imaginação do autor, diversas das narrativas
2 Trata-se de informação que obtive através de entrevista informal que tive com o Professor Dr. Paulo José Brando Santilli em 30 de setembro de 2010. 3 STF: ADI 1.512, STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, voto do relator Maurício Correa, p. 05
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veiculadas por Grümberg.4
No governo Campos Salles, o Brasil envolveu-se em disputa com a
Inglaterra pela definição da fronteira com a Guiana Inglesa. Joaquim
Nabuco foi nomeado para chefiar a missão de defesa, elaborando extensa
obra em que estaria contida “a prova da existência na região de etnias
indígenas e sua convivência com o colonizador nacional, além de sua
presença consumada no contestado, cenário fático de que se valeu
Nabuco”.5
Assim, os povos da região teriam contribuído para a fixação da
colonização portuguesa na área. Anos mais tarde, sua presença e contato
com os portugueses serviu, através da obra de Nabuco, como argumento
para que o território permanecesse sob domínio do Brasil. E, não bastasse
isso, ainda forneceram ao imaginário nacional a figura de Macunaíma,
que, como reconheceram os ministros do STF durante o julgamento da
Ação Popular 3.388, teria contribuído para com o repertório do imaginário
nacional.
Quando, em 1927, a Comissão de Inspeção de Fronteiras, chefiada pelo
então General Cândido Rondon, percorreu “os rios Tacutu, Surumu,
Cotingo e Mau”, verificando “in loco a grossa concentração dos indígenas
às margens desses rios”,6 o garimpo já teria começado a se infiltrar na
região. Sua presença maciça, no entanto, deu-se apenas a partir da
década de 1990 - em decorrência da migração dos garimpeiros expulsos
da Terra Indígena Yanomami, durante operação conhecida como Serra
Livre.7 Assim, começaram a adentrar de maneira significativa na área
quando o procedimento administrativo de demarcação já se arrastava há
mais de dez anos – pois se iniciara em 1977.
Carlos Ayres Britto menciona que os rizicultores privados lá instalados
4 SANTILLI, 2001 5 STF: ADI 1.512, STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009Voto do Min. Maurício Correa, p. 06 6 Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.512, Voto do Min. Maurício Correa, p. 07. 7 Ver SANTILLI, 2001, p. 99 a 111 e STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Ayres Britto, p. 85.
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8
apenas iniciaram sua exploração a partir de 1992, e que suas posses
seriam “resultado de inescondível esbulho”.8
Não obstante, em 11 de setembro de 1998, poucos dias após a edição da
Portaria 820 de 1998 (a primeira a demarcar a terra indígena em questão)
o Estado de Roraima aprovou lei prevendo incentivos fiscais a produtores
agropecuários - o que viria a intensificar os interesses sobre a região.
Desse modo, essas populações, que teriam contribuído para a
consolidação da fronteira nacional naquela região, continuavam, até a
década de 1990, carentes de qualquer segurança quanto à sua
permanência na área onde sempre viveram. E isso mesmo após já se ter
iniciado a demarcação daquele território como terra indígena – o que faz
questionar a eficácia desse procedimento que, durante muito tempo, não
trouxe garantia alguma a quem dependeria dele.
3.2. O procedimento administrativo de demarcação: entre idas e vindas
Não é tarefa simples entender os pormenores da demarcação Raposa
Serra do Sol. Longe de ter sido um procedimento lógico e organizado,
esticou-se por mais de uma década – sem que fossem sanadas muitas das
perplexidades levantadas. Por que razão sua duração foi tão longa?
O procedimento administrativo de demarcação teve início em 1977, a
partir de determinação do Decreto 76.999 de 1976. Desde então, como
relata Carmen Lúcia, sucederam-se sete grupos destinados ao estudo da
área, formados, respectivamente, pelas portarias 11 de 1977; 550/P de
1977; 509 de 1979; 1845 de 1984; 171/MI de 1986; PP 347 de 1988 e,
finalmente, 1.141 de 1992.9
8 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Ayres Britto, p. 87. 9 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto da Min. Cármen Lúcia, p.23.
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A portaria de nº. 1.64510, datada de 29 de maio de 1984, formou o
primeiro grupo de trabalho, chefiado pela antropóloga Maria Guiomar de
Melo. Esta subscreveu um primeiro laudo relativo à demarcação da região,
que delimitava uma extensão de 1.577.850 hectares, divididos em cinco
áreas contíguas: Xununuetamu, Surumu, Raposa e Maturuca-Serra do Sol.
Diante da resistência dos índios macuxi, não foi implementada. 11
Novos estudos foram desenvolvidos na área a partir de 1991. A portaria
1.141 de 1992 da FUNAI determinou a formação de novo grupo de
trabalho interministerial, acrescido de mais componentes pela portaria
1.375 do mesmo ano.12 Esse grupo produziu estudo no qual se basearam
todos os demais atos da demarcação, tendo sido o mesmo assinado
apenas pela mencionada antropóloga Maria Guiomar Melo, funcionária da
Funai.13 Na mesma situação, o antropólogo Paulo Santilli responsabilizou-
se por apresentar um relatório etnográfico dando seu parecer sobre a
avaliação feita pelo laudo antropológico.
Segundo Menezes Direito, o laudo utilizado no processo 889 de 1993 da
FUNAI seria “praticamente idêntico” ao que instruiu o processo 3.233 de
1977, tendo sido complementado por parecer antropológico de Paulo
Santilli, e pelo Parecer 036/DID/DAF, publicado no Diário Oficial da União
em 21 de junho de 1993.14 Neste documento, opinava-se pela demarcação
contínua de uma única Terra Indígena, a Raposa-Serra do Sol, em
superfície de 1.678.800ha.
O parecer chegou à mesa do então Ministro da Justiça, Maurício Correa,
que logo o encaminhou ao Estado-Maior-das-Forças-Armadas - Emfa,
10 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Menezes Direito, p. 14. - Deve-se notar que a Ministra Carmen Lúcia fala em uma portaria 1845 de 1984, enquanto o ministro Menezes Direito menciona outra de nº. 1645 do mesmo ano. 11 SANTILLI, 2001, p. 119. 12 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Menezes Direito, p. 15. 13 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Gilmar Mendes, p. 13 14 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Menezes Direito, p. 28.
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buscando opiniões. 15 Nessa situação, teria sido levantado pela primeira
vez o argumento de que não poderia haver demarcação de terra indígena
em área de fronteira.
Enquanto isso, passou-se a discutir a suposta inconstitucionalidade do
decreto 22 de 1991, que regulamentava o procedimento administrativo da
demarcação de terras indígenas: questionava-se se ele asseguraria o
contraditório e a ampla defesa dos não indígenas afetados pela
demarcação. Assim, em 08 de janeiro de 1996, o então presidente
Fernando Henrique Cardoso baixou o decreto 1.775, responsável pelo
novo regramento da matéria visando possibilitar as manifestações durante
o procedimento por parte daqueles que se julgassem prejudicados pela
demarcação.
Gilmar Mendes relata que, na época, participou, junto a Nelson Jobim
(então Ministro da Justiça), de debate relativo a este decreto no jornal
Folha de São Paulo. Nessa situação defendeu posição contrária à do jurista
Dalmo de Abreu Dallari, conhecido defensor da causa indígena, para quem
o decreto teria uso político - visaria retardar a concretização das
demarcações em curso, tornando prejudicados os mandados de segurança
já então em curso no STF.16 Aqui entendo ser possível notar que já havia
certa mobilização da opinião pública sobre a questão – que, de certa
forma, dividia-se entre os que defendiam a urgência das demarcações de
terras indígenas, e os que, verificando ser necessária cautela, justificavam
o alargamento desses procedimentos.
Nesse sentido é bastante ilustrativa a manifestação do próprio Dalmo
Dallari publicada no mesmo jornal em agosto de 2002, quando este se
manifestava sobre a indicação de Gilmar Mendes para o cargo de ministro
do STF:
“Já no governo Fernando Henrique, o mesmo Dr. Gilmar Mendes,
que pertence ao Ministério Público da União, aparece assessorando
o ministro da justiça, Nelson Jobim, na tentativa de anular a
15 SANTILLI, 2001, p. 119 16 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Gilmar Mendes, p. 06.
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11
demarcação das áreas indígenas. Alegando inconstitucionalidade,
duas vezes negada pelo STF, ‘inventaram’ uma tese jurídica, que
serviu de base para um decreto em que se baseavam as
demarcações.”17
Com o Decreto 1.775, venceu a posição de que deveria ser incluída nova
fase aos procedimentos de demarcação, abrindo-se espaço para
impugnações, as quais foram todas afastadas pelo próprio Nelson Jobim
no despacho de nº 80 de 20 de dezembro de 1996. Neste mesmo
despacho, Jobim, invocando o interesse público, estabeleceu algumas
restrições territoriais à proposta do parecer da FUNAI publicado em 1993 -
que acarretariam em uma diminuição de cerca de 20% da área da
reserva.
Assim, deveriam ser excluídas da demarcação propriedades privadas
intituladas pelo INCRA (dentre as quais se incluía a famosa Fazenda
Guanabara); as áreas relativas ao município de Uiramutã e às vilas
Surumu, Água Fria, Socó e Mutum; as vias públicas e faixas de domínio
público.18 O despacho 50 de 1998, por sua vez, julgou improcedentes as
contestações apresentadas à identificação e delimitação da área, então
com 1.678.800 ha.
Cinco anos após a conclusão dos estudos feitos pela FUNAI, finalmente foi
editada a Portaria 820 de 1998. E, como era de esperar, logo foram
ajuizadas diversas ações questionando-a. Em uma delas, proposta perante
a Justiça Federal de Roraima sob autos de nº 1999.42.000014-7, foi
realizada perícia judicial com resultado contrário à demarcação em terras
contínuas. Nessa ação, concedeu-se medida liminar aos autores, que foi
questionada pelo Ministério Público Federal, tendo chegado ao pleno do
STF em 2004 como agravo regimental SL 38 AgR/ RR. Tal recurso, sob
relatoria da Ministra Ellen Gracie, foi indeferido.19
Os obstáculos à demarcação da Raposa Serra do Sol passavam a ocupar 17 Idem,p. 06 e 07. 18 Ver http://www.cimi.org.br/?system=news&action=read&id=323&eid=263 – acessado pela última vez em 15 de novembro de 2010. 19 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Petição Inicial, p. 02.
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12
novo âmbito: o poder judiciário.
O Ministério Público Federal tomava, então, seu papel em cena, tendo
ajuizado a reclamação 2.833. Esta teve como relator o ministro Ayres
Britto, e foi decidida estabelecendo a competência do STF para julgar
qualquer questão relativa à demarcação da TIRSS, dada a existência de
conflito federativo.
Procurando por fim à questão – já em tempos de novo governo - Márcio
Thomas Bastos, na qualidade de Ministro da Justiça, baixou a portaria 534
de 1995. Rapidamente foi providenciada sua homologação – feita após
apenas dois dias. Este documento ratificou a portaria 820 de 1998,
ressalvando que os municípios de Uiramutã, Pacaraíma (cuja sede se
localiza na Terra Indígena de São Marcos) e Normandia deveriam ser
incluídos na demarcação e aumentando a área demarcada para 1.743.089
hectares.
O levantamento do montante a ser pago pelas benfeitorias realizadas por
não índios na região já teria se iniciado em 2001, época em que a FUNAI
começou a providenciar sua locomoção para assentamento do Incra.
Assim, em 2008, a maioria dos ocupantes já teria se retirado da Raposa
Serra do Sol, restando apenas, de acordo com o Conselho Indígena de
Roraima, o CIR, “um pequeno grupo de grande poder econômico” que tem
“resistido de maneira intransigente à suas saídas da área”.20
Em 26 de março de 2008, o Governo Federal iniciou a Operação Upatakon
3, que teria, segundo o relato do CIR, enfrentado resistência armada pela
ação de “verdadeira guerrilha” patrocinada pelo então Presidente da
Associação dos Arrozeiros do Estado de Roraima, Paulo César Quartieiro.21
Certamente, os opositores à demarcação da Raposa Serra do Sol foram
hábeis em colocar obstáculos à sua concretização. Paralelamente, entendo
que tenham encontrado na desorganização da implementação do
procedimento grande contribuição para tanto, assim como também na
20 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Memorial Apresentado pelo CIR, p. 02. 21 Idem, p.03
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13
judicialização do tema, que ia adquirindo visibilidade cada vez maior. A
despeito de toda a visibilidade da questão, pouco se sabe do que de fato
estaria acontecendo na região – de tal forma que, durante o julgamento
da Ação Popular 3.388, nada que desmentisse as violências relatadas pelo
CIR foi levantado.
3.3. A Raposa Serra do Sol no STF
O julgamento da Ação Popular 3.388 não foi a única situação em que a
questão da Terra Indígena Raposa Serra do Sol foi examinada pelo STF.
Mas foi aquela que se debateu de maneira mais aprofundada, alcançando
maior visibilidade e, talvez, surtindo efeitos concretos. Todavia, antes de
analisá-la creio ser importante fazer um breve apanhado sobre as
demandas que a antecederam no STF e que são citadas no julgamento da
Ação Popular 3.388.
A ADI 1.512, julgada em 07 de novembro de 1996, foi a primeira a levar o
debate da Raposa Serra do Sol ao STF. Seu relator foi o mesmo Maurício
Correa que, como Ministro da Justiça, recebeu a publicação relatório de
1993. Trata-se de ação movida pelo Procuradoria Geral da República
contra as leis 96 e 98 de 17 de outubro de 1995 - que criaram os
municípios de Uiramutã e Paracaraíma, a partir das vilas designadas por
esses respectivos nomes.
Esta ação (citada por Ayres Britto, Carmen Lúcia e Menezes Direito por ter
feito minucioso exame da ocupação histórica da região) foi julgada
improcedente. Na época, o STF, seguindo a posição do relator, julgou
improcedente a demanda por entender que uma Ação Declaratória de
Inconstitucionalidade não seria o meio adequado para averiguar a questão
de fato envolvida na controvérsia, qual seja, a presença de comunidades
indígenas na órbita desses municípios.
Em 2004, foi julgado procedente o agravo regimental mantendo a medida
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14
liminar concedida na demanda proposta na Justiça Federal de Roraima,
em que foi produzido o relatório pericial contrário à demarcação em terra
contínuas. No ano seguinte, foi julgada a também já referida reclamação
2.833, que fixou a competência do STF para julgar os casos relativos à
Raposa Serra do Sol. Tal entendimento foi reiterado na Reclamação 3.331,
em 18 de junho de 2006, também sob relatoria de Ayres Britto.
Um ano depois, em 04 de junho de 2007, Ayres Britto foi também relator
do Mandado de Segurança 25.483. O Ministro colocou pela primeira vez a
tese de que a Manifestação do Conselho de Defesa Nacional não seria
requisito de validade para a demarcação de terras indígenas, tendo seu
posicionamento sido acatado pelo plenário.
Nessa ocasião, Ayres Britto fez referência ao Mandado de Segurança
24.045, relatado por Joaquim Barbosa, em que se decidiu que a aplicação
do Decreto 1.775 de 1996 a procedimentos de demarcação anteriores à
sua vigência não obstaria os princípios do contraditório e da ampla defesa.
Assim, entendeu que tais garantias não teriam sido suprimidas no caso
em questão. Também considerou inadequada a via processual adotada,
por não haver direito líquido e certo dos impetrantes à posse e domínio
daqueles territórios. Desse modo, é possível entender que que o STF já
teria, então, adotando posicionamento no sentido de que não haveria
efeitos jurídicos para os títulos relativos a posse e domínio sobre a área
em litígio.
Seguiram-se os Medida Cautelar 1.794 e a Ação Civil Pública 3.755,
ambas propostas pelo Estado de Roraima e extintas sem julgamento do
mérito pela inadequação da via processual adotada.
Em 09 de abril de 2008, foi então apreciada a Ação Popular 2.009, a qual
julgada procedente e interrompendo, então, a operação Upakaton 3.
Tendo Carlos Ayres Britto novamente como relator, considerou-se que o
antagonismo entre o alegado direito de propriedade e a proteção às terras
ocupadas pelo índios consistiria em conflito de contornos constitucionais,
assim como também a questão federativa envolvida. Por essa razão,
deferiu a medida cautelar até o julgamento de mérito da questão, quando
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15
esta acabou sendo suspensa.
Na mesma data, foi julgada a Ação Civil Originária 1.006 - remetida pelo
juízo de 1ª instância da Justiça Federal de Roraima ao STF. Seu relator,
Marco Aurélio Mello, entendeu não haver conflito federativo naquele caso
específico, por se tratar de um conflito entre particulares dentro de Terra
Indígena, mas não de questão relativa à sua demarcação. Ayres Britto
atentou, ainda, ao fato de que a controvérsia seria relativa à Terra
Indígena São Marcos, razão pela qual não seria aplicado o precedente da
Reclamação 2.833.
Por fim, a última demanda apreciada pelo STF antes do término
julgamento da Ação Popular 3.388 foi a Ação Cautelar 2014, julgada em
10 de abril de 2008, tendo sido ajuizada pela União contra o Estado de
Roraima. Nela, chamando-se atenção à ameaça de conflito armado entre
posseiros e índios, pedia-se a reversão da decisão que suspendeu a
operação Upakanon 3. Foi-lhe negado provimento.
4. A Ação Popular 3.388
Apenas cinco dias após a homologação da Portaria 534, em 20 de abril de
2005, foi ajuizada no STF a Ação Popular 3.388-4. Seu autor, Augusto
Affonso Botelho Neto, Senador pelo Estado de Roraima, alegou que o
procedimento administrativo de demarcação da Terra Indígena Raposa
Serra do Sol não teria seguido as determinações dos já mencionados
decretos 22 de 1991, e 1.775 de 1996 e padeceria de vícios insanáveis.
Como prova de suas alegações, juntou aos autos o laudo pericial
apresentado na já mencionada Ação Popular ajuizada perante a Justiça
Federal de Roraima, extinta sem apreciação de seu mérito, após o
julgamento da Reclamação 2.83322, bem como relatório da Comissão
Externa Temporária do Senado Federal sobre Demarcação de Terras
22 Ver item 3.3.
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16
Indígenas, elaborado em 2004.23
Para o Senador, a demarcação acarretaria em prejuízo à legalidade, à
segurança jurídica, ao devido processo legal, à livre iniciativa, à
proporcionalidade e ao princípio federativo. Assim, estaria eivada de
diversos vícios de origem, sendo o principal deles o feitio do próprio
relatório antropológico. Segundo Botelho Neto, não foi oferecida
oportunidade a todos os interessados para que se manifestassem. Apenas
parte dos índios teriam participado da elaboração desse documento, que
seria uma condensação de peças desconexas. Também teria
desconsiderado os efeitos que a demarcação em terras contínuas traria à
defesa da fronteira do país e à economia de Roraima.
O laudo apresentado pela FUNAI, “origem e justificação” da demarcação,
apresentaria também como irregularidade o fato de ter sido assinado
apenas por Maria Guiomar de Melo. A participação de indivíduos ligados à
Igreja Católica, sem que membros de outras religiões acompanhassem os
trabalhos, bem como a colaboração de membros do Conselho Indígena de
Roraima (CIR) também seriam indícios de irregularidade aos olhos do
autor. Haveria, ainda, membros no grupo interdisciplinar que sequer
teriam conhecimento de sua participação no procedimento.24 O laudo teria
também cometido o equívoco de designar como técnicos agrícolas dois
motoristas - o que, segundo o ministro Ayres Britto, teria sido corrigido
“logo nas páginas seguintes”.25
O pedido apresentado por Botelho Neto se restringia a pleitear a
declaração da nulidade da Portaria 534 de 2005. O Estado de Roraima, já
em 2008, tentando integrar pólo ativo da ação (assim como também
fizeram Lawrence Manly Harts e outros), requereu a adoção das seguintes
medidas:
(i) declaração de inconstitucionalidade do Decreto 22 de 1991;
23 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, relatório, p. 02 24 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Celso de Mello, p. 06. 25 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Ayres Britto, p. 80.
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17
(ii) declaração da nulidade da ampliação da área indígena - pois
para tanto seria necessária aprovação legislativa;
(iii) exclusão da área relativa ao Monte Roraima, por ser
juridicamente impossível a sobreposição de diferentes afetações a
um mesmo bem público;
(iv) declaração da impossibilidade de desconstituição dos municípios
e dos títulos das propriedades localizadas na área da terra indígena
através de decreto presidencial;
(v) exclusão de plantações de arroz;
(vi) exclusão da área de inundação da hidroelétrica de Cotingo.
Foram ainda pleiteadas ousadas intervenções relativas ao tratamento da
demarcação de qualquer terra indígena, buscando ampliar o objeto da
demanda, que se debruçava apenas sobre a portaria 534 de 2005 e seu
decreto de homologação. Tais medidas, de maneira resumida, consistiriam
em:
(i) adoção de demarcação em forma descontínua;
(ii) exclusão de sedes de municípios (e, no presente caso, das
sedes dos municípios de Uiramutã, Pacaraíma e Normandia);
(iii) exclusão de faixas de fronteira, com área de 150 quilômetros;
(iv) exclusão dos imóveis com posse ou propriedade anteriores a
1934, e daqueles com titulação pelo INCRA anterior a 1988;
(v) exclusão de rodovias estaduais e federais;
(vi) expedição de ordem à União para que se abstivesse “de
demarcar qualquer outra área no território do Estado de Roraima, a
qualquer título, ou seja, indígena, ambiental, etc.”26
Também a FUNAI e as comunidades indígenas Socó, Barro, Maturuca,
Jawari, Tamanduá, Jacarezinho e Manali, buscaram ingressar na ação,
26 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, relatório, p. 09.
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18
juntando extensa documentação aos autos. Ainda que a instrução da
demanda já estivesse encerrada, Ayres Britto permitiu a juntada de tais
documentos (o que fez com que os autos passassem de dois a cinqüenta e
um volumes!), abrindo prazo para que as partes se manifestassem.
A Procuradoria Geral da República, que já havia opinado pela
improcedência da ação, foi favorável ao ingresso da FUNAI e das
comunidades indígenas na qualidade de assistentes da União, ré da
demanda, e ao ingresso do Estado de Roraima como litisconsorte ativo
necessário. Não obstante, o autor e a Advocacia Geral da União
permaneceram silentes a esse respeito, sendo que apenas a última
apresentou suas alegações finais.27
A ação, cujo pedido liminar foi rejeitado em Agravo Regimental em 06 de
abril de 2006, teve sua apreciação iniciada em 27 de agosto de 2008. Seu
julgamento foi interrompido por dois pedidos de vista, tendo se realizado
em quatro sessões.
Na primeira, os ministros decidiram pelo ingresso do Estado de Roraima,
dos posseiros, da FUNAI e das comunidades indígenas na qualidade de
assistentes processuais. Isso deu emblemática oportunidade para que a
advogada Joenia de Batista Carvalho28, membro da etnia wapichana e
nascida na Raposa Serra do Sol, fosse a primeira índia a apresentar uma
sustentação oral no STF. Nesta data, após ter sido proferido o voto do
relator Carlos Ayres Britto, foi apresentado pedido de vista por Menezes
Direito.
A segunda sessão ocorreu em 12 de dezembro de 2009, quando Direito
propôs que a demarcação em terras contínuas fosse submetida a
dezenove condicionantes. Logo em seguida,Marco Aurélio de Mello
também fez seu pedido de vista. Sob seus protestos, Carmen Lúcia,
27 Informação disponível em http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=3388&classe=Pet&codigoClasse=0&origem=JUR&recurso=0&tipoJulgamento=M, consultado em 07 de novembro de 2010. 28 Vídeo disponível em http://www.youtube.com/watch?v=aEcR0gWHjmk&feature=channel, consultado em 07 de novembro de 2010.
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Ricardo Lewandovski, Eros Grau, Joaquim Barbosa, Cesar Peluso e Ellen
Gracie adiantaram seus pronunciamentos, contando com a anuência de
Gilmar Mendes, então presidente da casa, para tanto.
Assim, na terceira sessão, realizada em 18 de março de 2009, o ministro
Marco Aurélio Mello apresentou seu voto vista - quando já havia sido
formada uma maioria favorável à demarcação em terras contínuas. Todos
os ministros, à exceção de Joaquim Barbosa (para quem a ação seria
totalmente improcedente), aceitaram a sugestão de Menezes Direito
entendendo que a ação seria parcialmente procedente, devendo a
demarcação ser submetida às tais condicionantes, que seriam discutidas
quando do final do julgamento.
Marco Aurélio defendeu que a ação não cumpriria com os requisitos de
admissibilidade, ainda que fosse procedente no mérito. Sua extensa
manifestação somou 130 laudas, motivo pelo qual, após o voto de Celso
de Mello e breves manifestações dos demais ministros, o julgamento foi
mais uma vez suspendido.
No dia seguinte, foi aberta a quarta e última sessão do julgamento.
Finalmente Gilmar Mendes apresentou seu voto, opinando também pela
procedência parcial da ação mediante a adoção das condicionantes
propostas por Menezes Direito. A seguir, os ministros debateram, enfim,
as condicionantes. Ayres Britto propôs algumas alterações pontuais de
redação, logo aceitas por seus colegas.
Discutiu-se especialmente a condicionante relativa à impossibilidade de
revisão do processo demarcatório, e sua aplicabilidade a outros
procedimentos de demarcação. O próprio Ayres Britto, Cármen Lúcia e
Joaquim Barbosa se opuseram a essa vedação. Assim, a ação foi julgada
(i) parcialmente procedente, vencidos os ministro Joaquim Barbosa
e Marco Aurélio de Melo;
(ii) devendo a demarcação em terras contínuas observar a adoção
das dezenove condicionantes, no que divergiram Carlos Ayres
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20
Britto, Cármen Lúcia e Joaquim Barbosa a respeito da manutenção
do item xvii.29
Parece-me estranho que uma ação entrecortada por dois pedidos de vista
tenha chegado a um placar desses – que dá a impressão de não ter
havido grande divergência entre os ministros.Marco Aurélio de Mello de
fato apresentou sua discordância. Menezes Direito pareceu-me, a
princípio, concordar com Ayres Britto. Seu voto, no entanto, trouxe certa
reviravolta ao julgamento, já que propôs a ampliação da decisão a ser
tomada através das condicionantes.
4.1. Principais temas abordados
4.1.1. O direito e os povos indígenas: da ausência à inefetividade.
Passo agora a analisar as reflexões feitas pelos ministros sobre o
tratamento dos povos indígenas pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Durante o julgamento da Ação Popular 3.388, exaltaram diversas vezes o
suposto papel do Brasil na vanguarda do reconhecimento dos direitos dos
povos indígenas. Nas palavras do Carlos Ayres Britto, “nenhum documento
jurídico alienígena supera a nossa Constituição em modernidade e
humanismo”.30
A despeito de tamanho pioneirismo, duas décadas após a promulgação da
Constituição de 1988, muito ainda se discute sobre a abrangência dos
direitos dos povos indígenas. Ora chama-se atenção à sua mitigação; ora,
à sua demasia. É como se, ao falar em um avanço, não se soubesse a
partir de qual perspectiva se constitui a vanguarda mencionada - afinal,
há quem defenda lucidamente que esses direitos estariam restritos a
29 A respeito das condicionantes, ver Anexo 02. 30 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Ayres Britto, p. 40.
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21
artigos, parágrafos e incisos, distantes da realidade de muitas
comunidades.
Talvez sem o exagero de Ayres Britto, e considerando a existência de
controvérsias sobre os direitos dos povos indígenas (que ainda se
encontram além de sua efetivação satisfatória), seja possível entender
que a Constituição de 1988 representa de fato significativo avanço. Se ela
não transformou o Brasil em exemplo a ser seguido, ao menos
estabeleceu premissas normativas, antes inexistentes, à efetivação desses
direitos.
Em parecer apresentado a pedido do Conselho Indígena de Roraima, o
jurista José Afonso da Silva, citado pelos ministros Ayres Britto, Menezes
Direito, Cármen Lúcia e Celso de Mello, remete ao relato de João Mendes
Júnior, apresentando o alvará de 1º de abril de 1680 como documento
pioneiro ao reconhecer o direito à posse permanente das terras ocupadas
pelos índios - o chamado indigenato. Ainda durante o período colonial, a
Lei de 06 de junho de 1775 também ressaltou o caráter dos índios como
senhores originários de suas terras, devendo seu direito ser respeitado
quando da concessão de sesmarias.31 Assim, havia já aparato legal
reconhecendo aos índios sua condição de sujeitos de direitos.
Carmen Lúcia, também citando João Mendes Júnior, relata que as terras
indígenas, já naquela época, não poderiam pertencer a não índios. No
entanto, era comum que nas demandas entre posseiros e indígenas, se
exigisse destes a exibição de registros de posse. 32 Logo, havia legislação
reconhecendo o direito dos índios à terra, ainda que a mesma não fosse
31 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Parecer de José Afonso da Silva. 32 A Ministra faz referência à obra “Os indígenas no Brazil, seus direitos individuais e políticos”. Pontua que, posteriormente à independência, a lei de 27 de outubro de 1831 revogou a carta régia de 1808, abolindo a servidão dos indígenas, e passou a tratá-los como órfãos até que a lei 601 de 18 de setembro de 1850 dispôs sobre as terras possuídas, devolutas e reservadas. Em 30 de janeiro de 1854, regulamento referente a esta lei determinou a destinação de terras para colonização de aldeamento dos indígenas “nos distritos que existirem hordas selvagens” – STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto da Min. Cármen Lúcia, p. 08 a 18.
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22
colocada em prática.
Já a Constituição do Império se manteve silente quanto às terra indígenas.
No entanto, um ato adicional à mesma teria reconhecido a competência
da Assembléia Geral, do Governo Geral e das Assembléias Provinciais para
“promover a catequese e civilização dos indígenas”.33 Ou seja, usos,
costumes e tradições próprios das etnias indígenas eram tratados pelo
ordenamento como indesejáveis. O índio, isoladamente, merecia integrar-
se, mas desde que catequizado.
A Constituição Republicana não modificou essa questão, e permaneceu
omissa quanto à posse indígena. Trouxe, contudo, certa confusão em
dispositivo estabelecendo que as terras e minas devolutas localizadas no
interior dos Estados seriam pertencentes aos mesmos. Assim, alguns
destes começaram a criar disposições sobre legitimação de posse, domínio
e discriminações, tomando como devolutas terras que na verdade eram
ocupadas por índios.34
A constituição de 1934 foi a primeira carta a tratar diretamente dos
direitos dos povos indígenas. Incorporou o indigenato, reconhecendo aos
índios o direito de posse sobre as terras ocupadas, desde que assumissem
compromisso em não aliená-las. Também conferiu à União competência
privativa para legislar sobre “a incorporação dos silvícolas à comunhão
nacional”. Essas disposições, tal como apresentadas, foram adotadas pela
Constituição de 1946.35
A Constituição de 1967 apresentou avanço ao determinar que as terras
ocupadas pelos índios seriam bens da União, definindo então sua natureza
enquanto terras públicas. Entretanto, como relata José Afonso da Silva,
permaneceu delimitando a competência daquela para legislar sobre a
“incorporação dos silvícolas à comunhão nacional”, perpetuando ainda
“aquela velha ideia de impor a eles [os índios] uma cultura não indígena”, 33 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Parecer de José Afonso da Silva. 34 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Parecer de José Afonso e Votos do Ministros Carmen Lúcia e Ricardo Lewandovski. 35 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Parecer de José Afonso da Silva e Voto da Min. Cármen Lúcia.
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23
vendo-os ainda como não merecedores de manterem identidades
próprias.36
A Constituição de 1969, por sua vez, incorporou as disposições de 1967,
incluindo, ainda, um parágrafo determinando a nulidade e extinção de
efeitos jurídicos de posse, ocupação ou domínio sobre terras indígenas,
sem a previsão de qualquer indenização.37
A questão da demarcação das terras indígenas foi posta como um objetivo
legalmente reconhecido a partir de 19 de dezembro de 1973, com a
edição do Estatuto do Índio estabeleceu. Seus artigos 19 e 65
determinaram que a demarcação das terras indígenas deveria ser
realizada administrativamente por iniciativa de órgão assistencial, no
prazo de cinco anos. Tal órgão seria a Fundação Nacional do Índio, a
FUNAI, criada pela Lei 5.371 de cinco de dezembro de 1967, substituindo
o antigo SPI - Serviço de Proteção ao Índio. 38
O Estatuto do Índio representa um avanço, mas, ainda assim, traz
alarmantes contradições. Muito embora reconheça o direito de posse
permanente dos índios sobre suas terras, faz menção a uma espécie de
respeito a seus usos e costumes ainda vinculada à já mencionada
perspectiva de “integração à comunhão nacional“. Também não inovou no
que diz respeito à autonomia dos índios, estabelecendo sua tutela por
órgão assistencial, a FUNAI.
Se a condição dos índios como tutelados por um lado correspondia à
legítima preocupação em proteger os povos isolados, por outro, ao tratá-
los como incapazes, corroborava com a preconceituosa visão que entende
o índio como criança – daí a sua condição de incapaz.
Portanto, não há como negar que a Constituição de 1988 é
verdadeiramente inovadora, pois não fala mais na “incorporação” dos
povos indígenas, mas no respeito e na proteção de sua “organização
36 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Parecer de José Afonso da Silva. 37 Idem. 38 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Gilmar Mendes, p. 05.
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24
social, costumes, línguas, crenças e tradições.” Pela primeira vez, confere
tratamento preparado ao reconhecimento verdadeiro da autonomia desses
povos - estabelecendo as balizas normativas necessárias à concretização
de seus direitos.
Tanto é assim que seu artigo 232 rompe com a visão dos índios como
incapazes, conferindo a eles e às suas comunidades e organizações
“legitimidade para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e
interesses.” O mesmo artigo estabelece também a intervenção do
Ministério Público em todos os atos dos processos em que sejam parte os
índios - pois entre suas funções institucionais encontra-se a defesa judicial
dos direitos e interesses das populações indígenas (artigo 129, inciso V da
Constituição Federal).
A atuação do Ministério Público não é, de modo algum, equiparável à
tutela de órgão assistencial. Isso porque não obsta aos índios que tomem
a iniciativa de provocar o poder judiciário quando necessário. Assim, não
são mais dependentes da boa vontade de qualquer entidade e tem
garantida sua defesa caso venham a ser alvo de demanda judicial.
Significa, ainda, amparo aos índios que estiverem alheios a questões
jurídicas, possibilitando que se impeçam abusos sem interferir em sua
autonomia.
É importante observar que no julgamento da Ação Popular 3.388, ao fazer
essa retrospectiva sobre o tratamento da questão indígena pelo
ordenamento brasileiro, nenhum dos ministros se debruçou sobre uma
questão de grande importância para esse tema. Não há um consenso no
sentido de que a Constituição de 1988 tenha, de fato, revogado o estatuto
do índio em sua totalidade. Fica claro que ela encerra a condição dos
índios como incapazes. No entanto, não dispõe sobre sua situação no que
diz respeito à realização de negócios jurídicos com não índios. Isso é
especialmente problemático tendo em conta a situação dos chamados
índios isolados, que, em consequência de diferenças culturais e
linguísticas, por não partilharem dos códigos de nossa sociedade, podem
ser levados a realizar transações e aceitar situações que lhes prejudiciais.
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25
A solução recorrente entre os profissionais do direito que atuam em prol
da causa indígena é utilizar dispositivos do Código Civil relativos aos vícios
na declaração de vontade para invalidar tais negócios jurídicos. Essa
solução depende, no entanto, do reconhecimento judicial do vício, o que
faz com que sua aplicabilidade não seja tão rápida quanto se pode desejar
em certos casos. Sendo assim, faz-se necessária a promulgação de um
novo Estatuto do Índio, que enfrente diretamente esse aspecto, afastando
a incerteza quando à compatibilização da Constituição Federal com o
antigo estatuto.
Como colocado por José Afonso da Silva em passagem citada por Carmen
Lúcia e Celso de Mello39, na Carta de 1988 ”a questão da terra se
transforma no ponto central dos direitos constitucionais dos índios, pois,
para eles, ela tem um valor de sobrevivência física e cultural.” De fato,
não há como garantir esses direitos sem que se assegure a posse da terra
e o acesso às riquezas provenientes dela. Por essa razão, o tema foi
justamente um dos “mais difíceis e controvertidos da Constituição de
1988”.40
Como chama atenção Ayres Britto, foi dedicado um título inteiro à questão
do tratamento dos povos indígenas. O artigo 231, caput, se ocupa de
reconhecer seus usos e costumes, assim como os direitos originários
sobre as terras tradicionalmente ocupadas. Tais direitos são
imprescritíveis, tal como essas terras, bens da União (inciso XI do artigo
20) são indisponíveis e inalienáveis (§ 4º do artigo 231). É vedada a
remoção dos grupos indígenas, salvo em casos de catástrofe ou epidemia
que ameace suas populações, desde que sob referendo do Congresso
Nacional, devendo ocorrer o quanto antes seu retorno imediato (§ 5º). Os
índios possuem, ainda, direito de usufruto das riquezas encontradas
nessas terras (§ 2º) e participação na exploração de recursos naturais,
39 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Celso de Mello p. 20. 40 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Parecer José Afonso da Silva.
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26
dependendo esta de aprovação do congresso nacional para ocorrer (§ 3º).
O § 6º do Artigo 231 toma o cuidado de explicitar que quaisquer atos
visando a ocupação, o domínio ou a posse sobre terras indígenas, bem
como o aproveitamento de seus recursos, não produzem efeitos jurídicos,
sendo nulos e extintos. Esclarece ainda que apenas é possível pleitear
indenização pelas benfeitorias de boa fé. Confere, assim, ampla proteção
às terras indígenas - mas logo no mesmo parágrafo faz ressalva a
imprestabilidade de tais atos mediante situações de relevante interesse
público – expressão que abre aspaço à discricionariedade, comportando
múltiplas interpretações.
Para que não houvesse ambiguidade quanto ao conceito de terras
“tradicionalmente ocupadas“, o § 1º do Artigo 231 tomou o cuidado em
defini-las. Assim, essas terras devem ser ocupadas pelos índios: (i) a
“caráter permanente“; (ii) “utilizadas para suas atividades produtivas”;
(iii) “imprescindíveis à preservação dos recursos necessários a seu bem-
estar” e (iv) “necessárias à sua reprodução física e cultural”. Tudo isso sob
a perspectiva de “seus usos, costumes e tradições.”
Ayres Britto defende que a Constituição de 1988 tem o mérito de
reconhecer a participação indígena entre as demais contribuições étnicas
para conformação de algo que ele chama de “realidade da nação
brasileira”.41 Seguindo nessa linha, a demarcação de terras indígenas seria
um “capítulo avançado” daquilo que ele mesmo denomina como
“constitucionalismo fraternal”. Dessa forma, argumenta que os artigos
231 e 232 da Constituição Federal teriam finalidade fraternal ou solidária,
inserida na busca pela efetivação de uma igualdade civil-moral de
minorias, própria de uma era constitucional compensatória, alcançando “o
superior estádio (sic) da integração comunitária de todo o povo
brasileiro.”42
41 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Ayres Britto, pp 13 e 14 - cita §§ 1º e 2º do art 215, caput do art. 216, e § 1º do art. 242. Nesse mesmo sentido, o ministro Ricardo Lewandovski também cita o artigo 210 em seu voto. 42 Idem, p 30 a 33.
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27
De fato, ainda que não se concorde com os termos empregados por Ayres
Britto, não se pode negar que a Constituição de 1988 marcou uma
mudança de valor no ordenamento brasileiro. Como comentei logo acima,
os índios deixaram de ser as “crianças” que não podem cuidar de si
mesmas e passam a ser sujeitos de direitos aptos a apresentar suas
próprias demandas. Demandas essas que implicam na consideração de
sua diferença – que, pela primeira vez, não é tida como algo a ser
eliminado, mas como verdadeiro patrimônio, que exige respeito de todos.
Essa perspectiva avançada encontra, ainda, diversos obstáculos para ser
colocada em prática.
O Artigo 67 das Disposições Constitucionais Transitórias determinou que a
União deveria proceder a demarcação das terras indígenas no prazo de
cinco anos. No caso da Raposa Serra do Sol, após tantas idas e vindas
desde 1977, apenas houve homologação da demarcação em 2005! E esta
só pôde surtir efeitos em caráter definitivo a partir de março de 2009,
com o julgamento da Ação Popular 3.388-4.
Foram necessárias duas décadas para que os Macuxi, Wapichana,
Ingarikó, Tuarepang e Patamona dessa área assistissem ao desfecho
definitivo da discussão relativa à abrangência de seu direito à terra.
Outros povos ainda aguardam - e enfrentam forte resistência de variados
setores.
Nessas condições, mantendo-se a mínima coerência, de que forma é
possível tratar o Brasil como exemplo a ser seguido? Não seria, em
verdade, um exemplo de descaso com a própria Constituição? E de que
adianta ela enxergar o índio como sujeito de si mesmo, se ainda a
tratamos como uma carta de intenções?
4.1.2. Terras Indígenas: o habitat que não cabe em títulos
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28
O Código Civil estabelece uma série de requisitos para que se garanta a
manutenção da posse e de outros direitos reais sobre bens imóveis.
Diversas classificações implicam na observação de diferentes ônus que,
não sendo observados, impossibilitam que se faça uso desses direitos.
Deve-se, então, diferenciar a posse indígena da posse comum, cabendo
questionar: há compatibilidade entre o modelo de regulamentação dos
nossos direitos reais e a relação que os povos indígenas possuem com a
terra?
Essas colocações são enfrentadas durante o julgamento da Ação Popular
3.388. Tanto a advogada índia Joenia, quanto os ministros Ayres Britto,
Menezes Direito, Gilmar Mendes e Eros Grau fazem referência a Victor
Nunes Leal, antigo Ministro do STF, responsável por trazer à casa a ideia
de que a posse indígena não se confunde com a posse civil. É necessário
compreendê-la de outra forma – que compatibilize os usos e costumes
desses povos com sua efetividade enquanto direito. Afinal, não parece
razoável esperar que membros de populações tradicionais sejam
propensos a carregar escrituras e frequentar cartórios.
Por essa razão, também não faz sentido dividirem-se as terras indígenas
em ilhas, tal como se costuma fazer com terrenos em loteamentos. Nesse
sentido, é bastante elucidativo o seguinte trecho de Boris Fausto e Carlos
Fausto, publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 28 de abril de
2008, transcrito no voto de Eros Grau:
“O que está em jogo nessa polêmica não é apenas a Raposa Serra
do Sol. É um princípio constitucional que assegura a integridade
física e cultural dos índios. Transformar as áreas indígenas em
‘ilhas’ é uma velha idéia (e um velho sonho) conservadora. O
saudoso ministro do STF, Victor Nunes Leal, ao tratar de questão
similar, já alertava para os perigos, asseverando: ‘Aqui não se trata
do direito de propriedade comum (...) Não se está em jogo (...) um
conceito de posse, nem de domínio, no sentido civilista dos
vocábulos; trata-se do habitat de um povo. (...) Se (a área) foi
reduzida por lei posterior, se o Estado a diminuiu de dez mil
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hectares, amanhã a reduziria em outros dez, depois, mais dez, e
poderia acabar confinando os índios a um pequeno trato, até o
território da aldeia (...)’ (Recurso Extraordinário n. 44, Rel. Min.
Victor Nunes Leal, Referências da Súmula do STF, v. 25. Pp. 360-
361). Para evitar esse risco, a Constituição de 1988 reconheceu aos
índios o direito originário sobre suas terras.”
Boris e Carlos Fausto citam, justamente, o mesmo trecho de Victor Nunes
Leal que Joenia apresentou em sua sustentação oral. Esse trecho
reconhece com grande sensibilidade que a aplicação da nossa disciplina
jurídica dos direitos reais à posse indígena se apresenta como risco a
mitigação do direito dos índios às suas terras. A fim de tornar essa ideia
ainda mais clara, Eros Grau apresenta seguinte excerto, também de
autoria de Victor Nunes Leal:
“Não está envolvido, no caso, uma simples questão de direito
patrimonial, mas também um problema de ordem cultural, no
sentido antropológico, porque essas terras são o habitat dos
remanescentes das populações indígenas do país. A permanência
dessas terras em sua posse é condição de vida e sobrevivência
desses grupos, já tão dizimados pelo tratamento recebido dos
civilizados e pelo abandono em que ficaram.”43
Victor Nunes Leal chama atenção à necessidade de discutir a posse
indígena sob a perspectiva antropológica, mais próxima à realidade dos
povos indígenas que o regramento do direito civil. Assim, para os índios
essas terras não são ‘patrimônio’, mas sim habitat - local de que
dependem não apenas para sua sobrevivência física, mas principalmente,
os laços que os caracterizam como populações diferenciadas.
Penso que, ao fazer essa distinção, admite-se a relevância da antropologia
para que se pense o direito dos povos indígenas, sobrepondo-a ao próprio
direito civil, que não se aplica ao caso. Esse posicionamento, ao ser citado
43
STF: MS 16.443, citado em – STF: PET 3.388, REL. MIN. AYRES BRITTO, J. 19/03/2009, Voto do Min. Eros Grau, p. 03.
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por membros da Corte em momento posterior, acaba sendo corroborado.
Dessa forma, a mera citação da reflexão de Victor Nunes Leal já é, a meu
ver, suficiente para que se conclua, através de um raciocínio bastante
simples, que o STF compreende a importância dos saberes antropológicos
na temática da demarcação de terras indígenas, inclusive no âmbito do
judiciário.
Gilmar Mendes expõe que, a partir da Ação Civil Originária nº. 278, de
1987, teria havido mudança dessa orientação jurisprudencial, passando a
retrocedendo-se à observação dos pressupostos formais da posse civil
também para a posse indígena. Enxergando uma oportunidade, vários
advogados teriam então se animado a propor ações visando
desapropriações indiretas. Dentre essas ações, coube a Gilmar Mendes,
como procurador, contestar a Ação Civil Originária 362, relativa à
demarcação do Parque Indígena do Xingu. Nessa oportunidade o Ministro
diz ter inovado ao propor um conceito de posse indígena que abarcasse a
perspectiva de “um habitat de valores culturais” – ideia que foi concebida
por Victor Nunes Leal.44
Diante de acusações de fraude na elaboração de laudos antropológicos, a
mencionada ação ainda hoje não foi julgada. No entanto, o Ministro
sustenta que a tese ali apresentada teria sido adotada em 1993, no
julgamento da Ação Civil Originária 323 de Minas Gerais - afastando o
entendimento da mencionada ação Ação Civil Originária 278.45
Ainda de acordo com o relato de Mendes, essa tese (que ele parece
avocar para si) teria tido influência nos debates da constituinte, e seria
recorrentemente utilizada sem que lhe fossem atribuídos os devidos
créditos.46 Seja qual for autor dessa concepção, o fato é que ela realmente
é adotada pela Constituição de 1988 – para qual, como já mencionado, os
44 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Gilmar Mendes, p. 04. 45
Idem 46 Assim, citando Machado de Assis, Gilmar Mendes diz que tem “servido de agulha para linhas ordinárias” na questão então retomada no “debate belíssimo” da Ação Civil Pública 3388-4. – STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Gilmar Mendes, p. 04.
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direitos indígenas estão intimamente relacionados com a posse dessas
terras, que se caracterizam, justamente, pelo exercício dos usos,
costumes e tradições que fazem dos índios parte de povos diferenciados.
Assim, julgo ser possível dizer que a Constituição de 1988, ao tratar das
terras e dos direitos indígenas como essencialmente ligados a usos,
costumes e tradições, abre por si só um espaço de aproximação entre
direito e antropologia. E isso de tal maneira que, ignorar os
conhecimentos que academicamente cabem à etnologia (já que é ela,
como campo de estudo, que trata desses aspectos) acaba sendo incorrer
em desrespeito ao próprio texto constitucional.
4.1.3. Fato Indígena versus Indigenato – Uma nova teoria?
A Constituição de 1988 também determina que o direito dos povos
indígenas às terras tradicionalmente ocupadas é originário. Dessa forma,
de acordo com José Afonso da Silva, ela adotaria a teoria do indigenato.
Reconhece aos índios um direito anterior à sua própria vigência, pois
gerado a partir da posse segundo seus usos e costumes e reprodução
física e cultural – algo que não depende de um reconhecimento positivado
para existir.
Essa garantia de um direito originário causa certo desconforto a alguns.
Afinal, de certa forma, todo o país seria ‘originariamente’ posse indígena.
Nesse sentido, cabe esclarecer, como fazem José Afonso da Silva, Ayres
Britto e Menezes Direito, que o caráter desse direito nada tem a ver sua
antiguidade, mas com o desenvolvimento de um modo de vida tradicional.
Por essa razão, para afastar controvérsia, Ayres Britto determina em seu
voto que a ocupação tradicional deve ser verificada a partir de 05 de
outubro de 1988 – data da promulgação da atual Constituição.
Curiosamente, Menezes Direito, em seu voto vista, apresenta outra teoria.
Trata-se do então denominado “fato indígena” - logo aceito pelos demais
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ministros (à exceção de Marco Aurélio de Melo), sem grandes debates.
Pelo que pude depreender da leitura do acórdão da Ação Popular 3.388, o
termo parece ter sido criado por Menezes Direito em sua exposição, muito
embora o mesmo não tenha dito explicitamente que estaria delimitando
uma nova categoria jurídica.
Assim, tomei o cuidado de verificar se haveria qualquer referência
correspondente a essa expressão, tanto na doutrina quanto na
jurisprudência. Não encontrei quaisquer resultados - o que me leva a
concluir que o ministro em questão realmente exerceu uma certa
atividade doutrinária criativa.
Atividade essa, assim entendo, um tanto quanto confusa: em momento
algum tomou o cuidado de oferecer uma definição conceitualmente
fechada para o “fato indígena”. Simplesmente iniciou a abordagem desse
novo conceito após citar José Afonso da Silva, dizendo que a ocupação
indígena seria “um fato a ser verificado” 47, sendo que seu caráter
permanente nada teria a ver com o fato de esta ser imemorável ou não.
Cabe pontuar que a expressão “um fato a ser verificado” é atribuída pelo
Ministro a Pontes de Miranda. Não creio, entretanto, que seja possível
apontar o último como autor da teoria do fato indígena. O próprio José
Afonso da Silva cita-o em seu parecer, no qual defende que o
ordenamento jurídico brasileiro adota o indigenato, e não faz qualquer
menção a outra teoria.
Ora, se o que Menezes direito denomina como fato indígena se embasa
nas mesmas referências utilizadas para defender a adoção do indigenato
pelo ordenamento brasileiro, qual seria a importância em diferenciá-los?
Entendo que o fato indígena nada mais seria que a junção do marco
temporal proposto por Ayres Britto à noção já existente de ocupação
tradicional das terras indígenas. Não se trataria, portanto, de grande
novidade, muito embora os ministro do STF tenham tão inovadora a teoria
trazida por Menezes Direito.
47STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Menezes Direito, p. 21.
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Nos memoriais apresentados pelas comunidades indígenas Barro,
Maturuca, Jawari, Tamanduá, Jacarezinho e Manalai, defendeu-se a ideia
de que a adoção do fato indígena, por estabelecer marco temporal,
privaria os índios da posse de áreas das quais teriam sido ilegitimamente
expulsos antes de 05 de outubro de 1988.
Menezes Direito justifica sua abordagem alegando que a aferição do fato
indígena nesta data “prestigiaria a segurança jurídica” e se esquivaria “das
dificuldades de uma investigação imemorial da ocupação”48 - o que, pelo
exposto por José Afonso da Silva, também não seria necessário ao
indigenato. Pontua também que a caracterização de terras indígenas
estaria condicionada a fatores econômicos, ecológicos e culturais. Para
Nelson Jobim (citado por Menezes Direito), os dois primeiro estariam no
“mundo da faticidade”, enquanto os dois últimos seriam “construídos
valorativamente, embora a partir de constatações objetivas”.49
Direito defende, porém, que mesmo esses aspectos culturais e
econômicos são fatos averiguáveis, cabendo à antropologia a tarefa de
verificá-los. Dessa maneira, na busca por maior segurança jurídica - ou
por um critério mais próximo a uma “certeza“ - o Ministro acaba
atribuindo à antropologia o papel de oferecer resposta definitiva à posse
indígena.
A partir desse posicionamento, é possível que se desenvolva uma
interessante reflexão: Consistiria essa constatação do Ministro em uma
demonstração de certa “humildade”, ao reconhecer que o direito é menos
capacitado a compreender uma dada realidade que outro campo de
saberes? Ou seria simplesmente livrar-se de incertezas, delegando-as a
outra área do conhecimento?
4.2. Os alegados vícios no procedimento de demarcação
48 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Menezes Direito, p. 23. 49 Idem.
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Até aqui, dediquei-me a colher nas informações trazidas pelos ministros o
contexto fático e jurídico a partir do qual a demarcação da Raposa Serra
do Sol se desenvolveu. Logo, neste ponto do trabalho encontram-se já
presentes os elementos necessários para discutir as questões enfrentadas
pelos ministros.
Cármen Lúcia sintetiza em seu voto os vícios fundamentais que, segundo
o autor da Ação Popular 3.388, recairiam sobre a Portaria 534 de 2005.
Na petição inicial, esta lista se encontra desdobrada em diversos pontos -
alegados com base nas considerações dos peritos da Justiça Federal de
Roraima e da Comissão do Senado. Creio que a esquematização feita pela
Ministra abrange de forma satisfatória todos esses pontos. Por essa razão,
adoto-a em minha análise, conforme os seguintes tópicos50:
a. Nulidade do procedimento administrativo, que não teria
contemplado a participação dos interessados no Grupo
Interinstitucional de Trabalho, contrariando os decretos 22 de
1991 e 1.775 de 1996;
b. Nulidade do estudo antropológico, assinado por um único
profissional;
c. A demarcação em terras contínuas traria eminente prejuízo
econômico ao Estado de Roraima;
d. A extensão da área representaria ofensa ao princípio
federativo;
e. Haveria comprometimento da segurança nacional, pela
localização da terra indígena em área de fronteira.
Além desses aspectos apontados pela Ministra, creio haver um outro de
50 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto da Min. Carmen Lúcia, p. 02 e 03.
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grande importância, que também será aqui analisado:
f. A localização do Parque Nacional do Monte Roraima dentro da
área demarcada, implicando em questão relativa à preservação
da área pelos índios e à dupla afetação de bem público.
Dedicarei as próximas etapas deste trabalho à análise empreendida por
cada ministro a esses aspectos, a fim de conferir uma visão panorâmica
sobre a decisão do STF a respeito de cada um deles. Como entendo que
alguns guardam maior afinidade entre si que outros - misturando-se,
inclusive, dentro das falas dos ministros - tratarei conjuntamente dos
itens a e b; depois dos itens c e d; e, separadamente, dos itens e e f.
4.2.1. Nulidade do Procedimento Administrativo: com quantas assinaturas se faz um laudo antropológico?
Neste ponto específico da discussão, os ministros do STF se deparam com
a seguinte questão: o que atribui credibilidade ao relatório antropológico
de demarcação da terra indígena? Sua forma? A qualificação dos
profissionais que o elaboram? Ou as informações substantivas contidas
nele?
Para Ayres Britto, o procedimento de demarcação de terras indígenas, de
acordo com o artigo 19, § 1º do Estatuto do índios, cabe, em seus
“cometimentos próprios, específicos, naturais”, ao Poder Executivo da
União, dividindo-se nas seguintes fases:
(i) identificação e delimitação antropológica da área;
(ii) declaração de sua posse permanente pelas populações
indígenas através de Portaria do Ministério da Justiça;
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(iii) colocação dos limites físicos da demarcação, através de
marcos geodésicos e placas de sinalização;
(iv) homologação da portaria através de decreto do Presidente da
República e
(v) registro no cartório de imóveis e na Secretaria do Patrimônio
da União.51
Como se nota, esse procedimento (regulamentado pelo Decreto 1.775 de
1996, que substituiu o Decreto 22 de 1991) tem como origem o trabalho
antropológico. Tal trabalho, longe de ser uma tarefa simples, não chega a
resultados matemáticos repetíveis - já que, como bem atentaram Menezes
Direito e Gilmar Mendes, a antropologia não é uma ciência exata. De que
forma então é possível garantir que os resultados de tal estudo sejam
confiáveis?
Para o autor da Ação Popular 3.388 e seus assistentes, não houve
qualquer garantia nesse sentido no caso da Raposa Serra do Sol. O grupo
de trabalhos formado pela FUNAI não teria, entre seus integrantes,
qualquer representação dos indivíduos interessados na demarcação da
área em ilhas - tanto no que diz respeito a agropecuaristas, comerciantes
e garimpeiros, quando de parte dos índios que se oporia à demarcação em
terras contínuas. Dessa forma, estariam representados somente os índios
ligados ao Conselho Indígena de Roraima - que, segundoMarco Aurélio de
Mello, seriam apenas da etnia macuxi.
A formação do grupo também pecaria por conter membros ligados ao
CIMI (Conselho Indigenista Missionário), organização vinculada à Igreja
Católica, o que daria privilégio a esta com relação a outras religiões. O
próprio advogado que assinou a parte jurídica do relatório teria sido
indicado pelo CIMI - o que, na visão do autor, seria um indício de
parcialidade.
51 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Ayres Britto, p. 02. Nesse sentido, ver também REINACH, 2008.
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Por outro lado, o laudo antropológico e o relatório etnográfico que
propuseram a demarcação seriam partes desconexas e desprovidas de
uma lógica. Como já mencionei anteriormente, o primeiro estudo
realizado por Maria Guiomar de Mello determinava que no lugar de uma
única terra indígena, fossem criadas cinco terras contíguas. O fato de esse
mesmo estudo ter embasado o parecer apresentado por Paulo Santilli -
sendo que, neste, determinava-se a demarcação em terras contínuas -
também é apontado como irregularidade. Ademais, cada peça teria sido
assinada por apenas um antropólogo e a Portaria 534 de 2005
apresentaria aumento da superfície demarcada.
Diante dessas supostas irregularidades, os estudos que levaram à
determinação da demarcação em terras contínuas padeceriam de
parcialidade, razão pela qual todo o procedimento seria nulo. Dentre os
ministros do STF, o único a corroborar com tal tese foiMarco Aurélio de
Mello. Este não só entendeu haver vícios na demarcação, como na própria
Ação Popular 3.388 - razão pela qual defendeu que a mesma não contaria
com seus requisitos de admissibilidade.
A intervenção do Ministério Público deveria ter ocorrido desde a
proposição da ação, e o mesmo apenas teria sido intimado quando já se
encerrara a instrução do processo. Instrução essa que teria sido falha, por
não ter produzido provas. Também não teriam sido intimados os
detentores de títulos de propriedade na região, tendo havido a declaração
de nulidade dos mesmos sem que os interessados fossem ouvidos.
No que dizia respeito ao procedimento administrativo, Marco Aurélio não
poupou fôlego ao frisar que o laudo elaborado pelos peritos da Justiça
Federal de Roraima, bem como os relatórios apresentados pelo Senado e
pela Câmara dos Deputados, seriam todos contrários à demarcação tal
como feita. O relatório da Câmara, inclusive, faria menção a sentença
transitada em julgado que teria assegurado o domínio sobre fazendas na
região.
Talvez por ter sido Marco Aurélio um dos últimos a apresentar seu voto,
essas críticas não receberam atenção alguma de seus colegas. No
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entanto, todos os pontos apresentados pelo Ministro já tinham antes sido
afastados por seus pares, e viriam novamente a sê-lo nos votos de Celso
de Mello e Gilmar Mendes.
Ayres Britto esclarece que os interessados na demarcação teriam, sim,
participado do procedimento administrativo - pois teriam apresentado
suas contestações, conforme passou a permitir o Decreto 1.775 de 1996.
Afasta a crítica de que só os Macuxi teriam sido ouvidos, colocando que os
demais grupos, à exceção dos Ingarikó, teriam atuado na ação através de
cartas e petições - tendo demonstrado serem favoráveis à manutenção da
demarcação tal como feita.52 Gilmar Mendes acrescenta que, segundo
alegação da FUNAI, existiria uma carta de compromisso entre o Estado de
Roraima, o Governo Federal e as organizações indígenas em que estas
concordariam com a demarcação tal como realizada.
O Ministro também defende que o fato de o advogado responsável pelo
parecer jurídico ter sido indicado pelo CIMI não seria um problema, assim
como a ausência de participação do Estado de Roraima, dada a sua
própria omissão.53
Já Gilmar Mendes salienta que de acordo com os decretos 22 de 1991 e
1.775 de 1996, a participação da comunidade científica ou de membros de
outros órgãos seria “mera faculdade do grupo técnico”.54 O mesmo não
aconteceria com a participação dos grupos indígenas, que seria obrigatória
em todas as fases do procedimento.
Ayres Britto é claro ao afirmar que as titulações conferidas pelo Incra
seriam nulas - de acordo com as disposições constitucionais vigentes
desde 1934. Eros Grau e Joaquim Barbosa são enfáticos ao afirmar que o
Mandado de Segurança 25.483 já teria constituído coisa julgada nesse
sentido, não cabendo então tal discussão. Menezes Direito, por sua vez,
alerta que as Fazendas Depósito e Guanabara sequer existiam como tal
antes de 1991, como seria possível ver em imagem de satélite presente
52 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Ayres Britto, p. 74 a 76. 53 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Gilmar Mendes, p. 11. 54 Idem, p. 11.
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39
nos autos.
Assim, não haveria verdadeiramente um direito de propriedade opondo-se
à demarcação em terras contínuas. Esta, aliás, estaria implicitamente
prevista pela própria Constituição - uma vez que seria impossível
assegurar aos índios posse tradicional que garanta sua sobrevivência física
e reprodução cultural de outra forma. Ayres Britto frisa que as
características desses povos e da própria região desaconselhariam a
demarcação em ilhas.
A petição inicial da Ação Popular 3.388 chama atenção ao fato de que
haveria participantes do grupo interdisciplinar que sequer teriam
conhecimento de sua participação no mesmo. Também teriam sido
designados dois motoristas como se fossem técnicos agrícolas - o que
teria sido corrigido, segundo Ayres Britto, nas páginas seguintes do
laudo.55
O autor da ação popular também afirma que o relatório seria
inconsistente, apresentando peças desconexas. Acrescenta, ainda, que
não haveria motivo para o aumento da área, uma vez que o relatório final
tomaria como base os estudos de Maria Guiomar de Melo - que teriam,
anteriormente, justificado a demarcação em cinco áreas contíguas. É
importante observar que o demandante em momento algum da petição
inicial faz referência a Paulo Santilli, quem, de fato, responsabilizou-se
pelo parecer que instruiu o processo de demarcação em questão.
O “crescimento” da área não é tido como um problema para Ayres Britto.
Cármen Lúcia, apesar de considerar a plausibilidade do argumento de que
seria normal ocorrerem diferenças quando da execução da demarcação,
considera essa diferença de tamanho como único “senão” de todo o
procedimento. No entanto, a Ministra pondera que este não seria um
aspecto jurídico e tampouco estaria na “base do que foi objeto e pedidos
formulados na presente ação.” Portanto, não seria suficiente para tornar a
55 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Ayres Britto, p. 80.
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40
Portaria 534 inválida.56
A ausência de “assentimento prévio” pelo Conselho de Defesa Nacional
também não é apontado como vício formal. Isso porque, como aponta
Menezes Direito, o artigo 91, § 1º da Constituição de 1988 confere a este
órgão caráter meramente consultivo, assim como também o faz a Lei
8.183 de 1991. Todavia, o Ministro enfatiza que, nos termos do III do § 1º
do referido artigo 91, por se tratar de faixa de fronteira, o Conselho deve
ser ouvido.
No mesmo sentido, Gilmar Mendes entende que a ausência da oitiva desse
órgão não invalidaria o procedimento de demarcação da Raposa Serra do
Sol. No entanto, dada a relevância da questão da defesa das fronteiras
nacionais, deve ser levado em consideração na realização de novas
demarcações.57
Ademais, para o Ayres Britto, o procedimento administrativo não poderia
ser revisto. Essa observação também é feita por Gilmar Mendes, que traz
uma longa exposição teórica para apresentar o chamado princípio da coisa
julgada administrativa, segundo o qual um procedimento apenas pode ser
revisto quando constatado erro grave e insanável na sua condução.
Carmen Lúcia também apresenta considerações nessa linha, ponderando
que, sendo a demarcação uma competência do poder executivo, não
caberia ao judiciário dizer de que maneira ela deveria ser feita.
Dentre as questões colocadas sobre a validade do estudo realizado,
ocupou significativo espaço aquela relacionada à própria antropologia
como área do conhecimento. Não que se tenha levantado qualquer
objeção ao seu uso nos procedimentos demarcatórios. De fato, nenhum
ministro questiona a importância do papel do antropólogo neste intento.
Menezes Direito, ao falar da verificação dos fatores cultural e demográfico
da caracterização das terras indígenas remete aos critérios da “ciência
antropológica” - que, não sendo uma ciência exata, não apresenta “uma 56 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto da Min. Cármen Lúcia, p. 40. 57 Tratarei da questão relativa à segurança das defesas e da soberania nacionais em tópico posterior.
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regra geral e abstrata que possa levar tal qual um tipo jurídico à
identificação dessas expressões da ocupação indígena.” A antropologia
possui seus próprios métodos e critérios epistemologicamente válidos -
justamente aqueles que fariam dela “a ciência que oferece os meios de
identificação do âmbito da presença indígena ou, em outras palavras, do
fato indígena“. 58
Adotando tal pressuposto, o enfoque da discussão se desloca, então, à
capacitação técnica dos responsáveis pelo estudo apresentado. Ayres
Britto argumenta que tanto Maria Guiomar de Mello quanto Paulo Santilli
são membros da Associação Brasileira de Antropologia - contando,
portanto, com o reconhecimento de seus pares.
Entendo que, sem contar com conhecimentos próprios significativos sobre
a vida das populações que vivem na Raposa Serra do Sol, restava apenas
aos ministros reconhecer a autoridade dos que empreenderam tal
avaliação, ou simplesmente deixar de fazê-lo. O único a não se dobrar à
credibilidade dos responsáveis pelo estudo antropológico foiMarco Aurélio
de Mello.
Menezes Direito, no entanto, chama atenção ao tema da “orientação
política dos antropólogos práticos”, questão que inquietaria os próprios
estudiosos da área. Antropólogos não estariam livres de pré concepções -
e, para impedir que tal fato influencie a parcialidade dos laudos, seria
necessário, na opinião do Ministro, “a participação de pelo menos três
antropólogos”. Ademais, também seria desejável a presença de outros
especialistas na comissão, que, em perspectiva multidisciplinar
enriqueceriam e dariam “maior subsistência científica ao produto da tarefa
empreendida.”59
Gilmar Mendes apresenta consideração semelhante, reconhecendo haver
uma “margem de subjetividade” inerente ao procedimento de demarcação
de terras indígenas. Desse modo, a disciplina dos decretos 22 de 1991 e
58 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Menezes Direito, p. 23 e 24. 59 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Menezes Direito, p. 31.
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1.775 não seria, a seu ver, a mais adequada - não atendendo às
exigências do contraditório e da ampla defesa (artigo 5º, incisos LIV e LV),
bem como do próprio artigo 231. Assim, favorecendo uma “junção de
perspectivas ou de horizontes”, mitigando “a possibilidade de que
convicções pessoais e ideológicas possam determinar o rumo dos
trabalhos”, estes deveriam ser elaborados por mais de um profissional
qualificado.
Entendo que, de fato, a participação de um grupo maior de estudiosos
talvez favoreça um resultado menos pessoal ou ideológico. Todavia, é de
se questionar em que medida é possível mitigar significativamente a
subjetividade de uma área do conhecimento que não se pauta nem por
resultados matemáticos, nem por categorias fechadas como tipos
jurídicos. Trata-se da recorrente questão da objetividade-subjetividade
nas ciências humanas.
Embora os ministros do STF não tenham se empenhado em discutir qual a
melhor visão sobre os povos da Raposa Serra do Sol, como demonstrarei
adiante, eles mesmos tecem algumas considerações que tangenciam a
observação antropológica. Nessas passagens parece-me claro que o que
se analisa nada mais é do que a própria singularidade desses povos, suas
identidades, usos e costumes.
Talvez seja possível falar em segurança jurídica para dizer o que essas
populações não são - no entanto, a meu ver, não há o que aproxime
objetividade de cosmogonias. Com uma ou várias assinaturas, um estudo
antropológico é maneira científica realmente adequada para apreender a
realidade das populações indígenas.
4.2.2. Pacto federativo e Desenvolvimento Econômico: quem está realmente ‘atrapalhando’?
Um argumento recorrente contrário à demarcação da Raposa Serra do Sol
em terras contínuas consiste na assertiva de que a vastidão da área
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demarcada implicaria em grande perda de território pelo Estado de
Roraima. Estendendo-se também sobre os municípios de Uiramutã e
Pacaraíma, haveria para os partidários dessa perspectiva, ainda, quebra
do pacto federativo nos âmbitos estadual e municipal. Além disso, alega-
se que haveria significativos prejuízos econômicos à Roraima – as terras
indígenas correspondem a 46% do Estado de Roraima, sendo cerca de 7%
ocupados pela Raposa Serra do Sol.60
Tais argumentos foram enfrentados na decisão da Ação Popular 3.388,
tendo sido examinados e afastados pelos ministros do STF (à exceção de
Marco Aurélio Mello, para quem a demanda deveria ser julgada totalmente
procedente).
Cármen Lúcia chama atenção ao fato de que as mesmas Disposições
Finais Transitórias que concederam ao território de Roraima o status de
Estado Federado, estabeleceram também o dever da União de proceder a
demarcação das terras indígenas em cinco anos. Demarcação que, no
caso da Raposa Serra do Sol, já tinha se iniciado em 1977. Assim, a
Ministra afasta a hipótese de intervenção da União na autonomia de
Roraima como ente federado, chamando atenção que o direito originário
dos povos da região teria existência anterior ao próprio Estado em
questão como ente federado. Por essa razão, seria equivocado dizer que a
terra indígena estaria ‘amputando’ Roraima.61
Os municípios de Uiramutã e Pacaraíma, como já mencionado, foram
criados apenas em 1995 – dois anos depois da publicação do relatório da
FUNAI apontando a área a ser demarcada. O Ministério Público Federal
entendeu que essa atitude consistiria em um claro ato de oposição de
Roraima à demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, ajuizando,
então a referida ADI 1.512, que pleiteava a declaração de
inconstitucionalidade da lei estadual que criou esses municípios.
Quanto à vastidão do território demarcado em proporção à área
60 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto da Min. Cármen Lúcia, p. 29, e Voto do Min. Marco Aurélio Mello, p. 82. 61 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto da Min. Carmen Lúcia, p. 29.
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economicamente aproveitável de Roraima, Carmen Lúcia esclarece que os
54% restantes do estado teriam extensão equivalente à de Pernambuco,
superior à do Sergipe, de Alagoas e da Paraíba e quatro vezes maior que a
Bélgica. Haveria, portanto, vasta área a ser explorada, e isso
especialmente levando em conta sua baixa densidade demográfica.
“Pelo que alegação de que estaria comprometida a sua condição de
ente federado ou de falta de condições de sobrevivência sem a área
demarcada como reserva indígena cai por terra em face dos dados
aritmeticamente apresentados.”62
Marco Aurélio de Mello cita algumas informações sobre as atividades
produtivas desenvolvidas no interior da Raposa Serra do Sol, como se o
fato de seu território tornar-se bem da União ocasionasse prejuízo à
Roraima, que deixaria de dispor dos ganhos provenientes da região. É
interessante notar que tais informações encontram-se presentes na fala
advogada índia Joenia e em memorial apresentado pelo Conselho Indígena
de Roraima – no que são apresentadas justamente para demonstrar que a
ideia de que a presença indígena implicaria em atraso econômico é
equivocada.
“Nós temos e desenvolvemos nossa economia e isso sequer é
contabilizado pelo Estado de Roraima, que não fala da economia
que circula dentro da Terra Indígena Raposa Serra do Sol”.63
O que Joenia faz é demonstrar que os territórios demarcados não estão
62 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto da Min. Carmen Lúcia, p. 29 - A Ministra faz menção uma média de 0,57% hab/km quadrado. É importante ressaltar que Menezes Direito apresenta a densidade demográfica de Roraima como 1,8 hab/km quadrado e a densidade demográfica na Raposa Serra do Sol seria de 1,1 hab./km quadrado. 63 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Sustentação oral de Joenia Batista de Carvalho, disponível em http://www.youtube.com/watch?v=aEcR0gWHjmk&feature=channel - consultado em 02 de novembro de 2010.
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‘perdidos’ – neles de fato circulam riquezas. Por outro lado, ela argumenta
ainda que a atividade dos posseiros nada acrescentaria ao Estado de
Roraima. Os rizicultores, que tanto chamaram atenção para si na
discussão do caso, sequer pagariam impostos, dada a isenção fiscal
concedida à atividade até 2018, e, como relata Joaquim Barbosa em seu
voto, seriam responsáveis por danos ambientais.
Considerando a versão apresentada pelas comunidades indígenas
(contemplando, inclusive, os relatados episódios de violência contra seus
membros) se há algum “prejuízo”, quem de fato arca com ele não é o
Estado de Roraima, ou os chamados “arrozeiros”. Joenia enfatiza em sua
sustentação oral que sempre as comunidades indígenas acabam
prejudicadas – e questiona: “Por que só os povos indígenas podem ser
sacrificados? Por que só nós temos que ter a nossa terra retalhada?”64
4.2.3. A Relação os Povos Indígenas e o Estado
Na entrevista informal que tive com Paulo Santilli, o antropólogo,
estudioso dos índios macuxi, reportou-me que os povos da região, antes
do início do processo de demarcação, desconheciam qualquer estrutura
política hierarquizada ou organizada que ultrapassasse o âmbito de suas
aldeias.65
Assim, a mobilização por uma representação organizada dos interesses
dessas populações, visando a defesa da manutenção do seu modo
tradicional de vida, implicou, paradoxalmente, na adoção de uma grande
mudança. Trata-se da construção de uma organização política unificada, a
qual é notável pela formação do Conselho Indígena de Roraima em
64
Idem 65 Sobre a entrevista, ver capítulo 2, Metodologia, p. 05.
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meados da década de 1970.
De fato, essa mobilização contou com a participação de agentes externos
- pois, não há dúvida, as questões relevantes ao nosso ordenamento
jurídico dificilmente seriam por si só pertinentes aos usos e costumes
dessas populações. Nesse sentido, nas palavras do professor Paulo, foi
significativa a participação de missionários católicos no processo - fato que
pode ser apurado pela própria atuação do CIMI (Comitê Indigenista
Missionário), entidade ativa em todo o país, vinculada à CNBB.
Com isso, quero chamar atenção ao fato de que, assim acredito, falar-se
em um “Estado Indígena”, no caso específico dos povos em questão, seria
um exercício imaginativo um tanto quanto forçoso. Não obstante, por
diversas vezes discutiu-se se a Terra Indígena Raposa Serra do Sol não
seria um risco à soberania brasileira. Essa alegação foi bastante
acentuada pelo autor da Ação Popular 3.388, sendo, portanto,
cuidadosamente examinada pelos ministros do STF. Para afastar a ideia de
que a demarcação poderia acarretar na criação de território autônomo,
Ayres Britto faz pertinentes colocações, chamando atenção ao fato de que
as terras indígenas são bem ou propriedade física da União - sendo,
portanto, juridicamente representadas somente por esta. Assim, não
haveria partilha de sua titularidade com nenhum outro sujeito jurídico.
Sua elevação ao patamar de pessoa jurídica geográfica, não contaria,
portanto, com qualquer respaldo constitucional. Especialmente tendo em
vista o fato de que a sistemática da Constituição insere o capítulo relativo
aos direitos dos índios no título da “Ordem Social”, e não da “Organização
do Estado“, ou ainda da “Organização dos Poderes“.66
Ayres Britto, demonstrando que a Constituição fala em “terras indígenas”
e não em “territórios”, realiza um interessante esforço hermenêutico,
diferenciando os dois conceitos. Desse modo, citando Kelsen, define
território como “preciso âmbito espacial de incidência de uma dada ordem
jurídica soberana ou autônoma”. Trata-se de um conceito acentuadamente
66 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Ayres Britto, p. 16 a 19.
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político. Já as terras indígenas, teriam “compostura nitidamente sócio
cultural”, pautada pela perpetuação dos usos e costumes das populações
que nela residem.67
A Constituição de 1988, observa ainda Ayres Britto, não menciona
separatismos. No mesmo sentido, Ricardo Lewandovski aponta que não há
qualquer restrição determinando quais áreas podem ou não ser ocupadas
pelos índios. Assim, assevera o Ministro, alegar risco à soberania nacional
para restringir a posse indígena seria praticamente uma “confissão de
falência” do Estado brasileiro.
Outro ponto importante na discussão relativa ao suposto risco de
separtatismos é o tratamento internacional conferido aos direitos dos
povos indígenas. O primeiro organismo internacional a se manifestar
sobre a questão foi a Organização Internacional do Trabalho, através da
Convenção de nº. 107 de 1957, promulgada no Brasil pelo Decreto 58.824
de 1966. Trata-se da assunção de compromissos relativos ao
reconhecimento dos direitos de posse das populações indígenas à terras
por elas ocupadas. O documento também faz referência à integração dos
índios, mas no sentido de conferir-lhes as mesmas oportunidades
oferecidas aos demais indivíduos, garantindo-lhes a manutenção de seus
usos e costumes tradicionais.
Essa convenção foi sucedida pela de nº. 169, assinada em 1989, e apenas
ratificada pelo Brasil em 2002. De fato, não houve uma alteração
substancial do texto de 1957 - mas alguns pontos colocados possuem
particular importância. É o caso, por exemplo, do artigo 17, item 02,
segundo o qual os povos interessados devem ser sempre consultados,
prestando-se atenção à “sua capacidade de alienar suas terras ou de
transmitir de outra forma seus direitos sobre estas terras para fora de sua
comunidade”.68 Capacidade essa não prevista pelo ordenamento brasileiro,
67 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Ayres Britto, p. 22 a 25. 68 Tal item, embora não tenha sido mencionado por nenhum ministro, é de grande relevância, pois está contido em documento já ratificado e traz uma possibilidade vetada pela própria Constituição Federal. Vale lembrar que após a Emenda Constitucional 45 de 2005, os tratados internacionais de direitos
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para o qual as terras indígenas são inalienáveis – o que dá origem a um
claro problema de compatibilização entre a Constituição e a Convenção
em questão.
Ainda que outros aspectos como esse possam dar ensejo a polêmicas
futuras, os ministros do STF preocuparam-se mais em tratar de alegadas
ambiguidades na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos
Povos Indígenas, da qual o Brasil foi signatário em setembro de 2007. É
que seus artigos 3, 4, 26 e 36 falam em direito à autodeterminação, às
terras e aos territórios ocupados pelos índios, e ao direito dos indígenas
localizados em áreas fronteiriças a estabelecerem relações “com outros
povos através das fronteiras”. 69
Para o Ministro Menezes Direito, haveria ambiguidade na Declaração, de
maneira que “os receios de uma indevida extensão dos direitos indígenas
em direção a uma autonomia frente ao Estado do qual são súditos é,
longe de uma radicalização do discurso utilizado pelos críticos da
Declaração, um anseio de alguns setores da comunidade internacional.”
Por esse motivo, países como Estados Unidos, Austrália, Canadá e Nova
Zelândia teriam se recusado a se pronunciar favoravelmente à declaração,
pois a mesma não diferenciaria autodeterminação interna e externa. O
Ministro alerta que a comunidade internacional “não medirá esforços para
tentar aplicar aos Estados-Membros suas posições quanto a esses
direitos”. 70
Esse raciocínio tipo de raciocínio também pode ser encontrado no voto de
César Peluso, para quem, concordando com Menezes Direito, a Declaração
seria inoperante por não ser um tratado. Não contaria, pois, segundo a
perspectiva do ministro, com força jurídica vinculante.
De qualquer forma, como chamam atenção os ministros Ricardo
Lewandovski e Gilmar Mendes, o artigo 46 da Declaração das Nações
humanos ratificados pelo Estado brasileiro assumem o papel hierárquico de norma constitucional. 69 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Gilmar Mendes, p. 43. 70 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Menezes Direito, p. 39 e 40.
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49
Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas esclarece que nenhuma das
disposições feitas no documento seria interpretada atribuindo-se sentido
de segregacionista ou como “incentivo à autodeterminação jurídica e
política dos índios, como ente autônomo em âmbito internacional”.71
Mendes defende ainda que, de qualquer forma, os artigos 3, 4, 26 e 34 da
Declaração, quando aplicados ao caso brasileiro, devem ter como “filtro
interpretativo” a Constituição Federal, afastando-se qualquer interpretação
que leve à mitigação da soberania nacional. Sugere, assim, que se deve
atribuir uma interpretação nacional a um documento internacional –
assertiva que talvez possa ser questinada sob um perspectiva
internacionalista.72
Preocupado com a possibilidade de intervenções externas, o MinistroMarco
Aurélio de Mello apresenta algumas considerações não diretamente
abordadas pelos demais ministros, mas amplamente veiculadas pela
cobertura midiática do tema. Assim, transcreve em seu voto consideração
feita pelo então comandante da Amazônia, o General Heleno:
“Essa é uma questão que extrapola o componente militar. A cobiça
internacional não se manifesta por ações explícitas de força. Ela age
de forma sub-reptícia, pouco transparente e dissimulada. Fica difícil
entender porque pouquíssimas ONGs dedicam-se a socorrer a
população nordestina enquanto centenas delas trabalham junto às
populações indígenas. Algumas, ao que parecem, investem milhões
de dólares na região. Não se trata de uma questão de governo, mas
de uma questão de estado, uma questão de soberania.”73
Cita, ainda, notícia publicada no jornal O Estado de São Paulo, em 08 de
dezembro de 2008, segundo a qual o governo estaria tomando medidas
para restringir o acesso de ONGs com atuação na Amazônia. Nesta
71 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Gilmar Mendes, p. 45 72 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Gilmar Mendes, p. 41. 73 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Ministo Marco Aurélio de Mello, p. 51.
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50
publicação teria constado manifestação do então ministro da Justiça, Tarso
Genro, em que o mesmo admitiria que entre essas entidades existiriam
aquelas que esconderiam “interesses relacionados à biopirataria e à
tentativa de influência na cultura indígena, para apropriação velada de
determinadas regiões.”74
Seriam essa considerações a origem do desconforto dos Ministros Menezes
Direito e César Peluso quanto à Declaração em questão? Não há uma
resposta clara em seus votos. De qualquer forma, tomo a liberdade de
ponderar que tal preocupação, nos termos em que foi colocada por Marco
Aurélio de Melo, longe de indicar uma ameaça real, consiste em
conjecturas.
Gilmar Mendes, ao enfrentar este ponto, trouxe informações um pouco
mais concretas. Isso porque relata que ele mesmo, assim como o Ministro
Relator Carlos Ayres Britto e A Ministra Carmen Lúcia, estiveram na Terra
Indígena Raposa Serra do Sol. Nas palavras de Mendes
“É um vastíssimo território. Sobrevoava-se uma aldeia e, depois de
trinta minutos de vôo se vê outra aldeia.”
Este é um momento singular na decisão, em que se admite que parte do
conhecimento sobre o objeto do litígio é trazido diretamente pelo olhar de
seu julgador. Não se trata de relato das partes, dos assistentes ou de
quaisquer outros que de alguma forma tenham atuado na demanda.
Situação em que, talvez, a discricionariedade que Menezes Direitos quis
tentar afastar com a alegada “segurança jurídica” proporcionada pelo fato
indígena esteja presente de maneira bastante forte.
EnquantoMarco Aurélio de Mello faz considerações extremamente
genéricas sobre a presença de ONGs na Terra Indígena Raposa Serra do
Sol, Gilmar Mendes chama atenção à ausência do Estado na região - onde,
segundo seu relato, “os índios estão entregues um pouco à própria sorte”. 74 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009,Voto do Min. Marco Aurélio, p. 52.
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51
Ressaltando o “abandono completo do Poder Público”, Mendes afirma que
na região da Raposa Serra do Sol “os índios falam com muita naturalidade
na presença das ONGs”.75 Ele relata, então, sua experiência em uma
aldeia ingarikó, onde o tuxaua76 teria manifestado o interesse de sua
comunidade em explorar o potencial turístico do Monte Roraima:
“Nós perguntávamos, então, por que ele não fazia. Ele disse: “a
ONG que nos dava suporte até pouco era contra esta exploração.
Mas nós desavençamos, agora estamos livres para essa
exploração”. “E onde está essa ONG?, perguntei eu. “Bem ali, muito
próximo”, foi a resposta.
A ONG que tinha sido expulsa por eles continuava lá porque
trouxeram um outro grupo indígena para perto. Portanto, há um
fenômeno também de atomização, graças exatamente à falta de
presença do Estado.”77
Longe de fazer um exercício de probabilística, como Marco Aurélio de
Melo, ou de afirmar, como César Peluso, que os temores dos militares não
seriam fruto de paranoia, Gilmar Mendes, ao que tudo indica, traz um
dado concreto: as ONGs (seja lá com que bom ou mal intento estejam
agindo) penetram justamente onde há lacuna do Estado. E é interessante
notar que a precisão da informação coincide com uma observação
empírica feita pelo próprio julgador – algo que poderia ser considerado
temerário sob a perspectiva dos que defendem a postura de um judiciário
inerte, mas que, neste caso, aproximou a argumentação ao tema
discutido, trazendo maior verossimilhança às alegações apresentadas.
Ayres Britto, Cármen Lúcia, Lewandovski, Eros Grau e Joaquim Barbosa
concluem em seus votos que o verdadeiro risco à soberania brasileira,
agrava-se pela omissão do próprio Estado. Ayres Britto, aliás, é bastante
enfático ao dizer que autoridades civis e militares devem “alerta-los [os 75 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Gilmar Mendes, p. 107 3 108. 76 Substantivo utilizado para designar líder de comunidade indígena. 77 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Gilmar Mendes, p.109.
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52
índios] contra a influência malsã de certas ONGs, mobilizá-los em defesa
da soberania nacional e reforçar neles o sentimento de brasilidade que nos
irmana a todos.”78
Embora a ausência do poder público tenha sido indicada como risco maior
à soberania nacional nas regiões de fronteira, não se pode dizer que a
maioria dos ministros descarte a presença de terras indígenas nessa
regiões como algo digno de atenção. Do contrário, não haveria justificativa
para que se adotasse condicionante estabelecendo a circulação e
permanência das Forças Armadas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
Entre os dois extremos representados por Joaquim Barbosa (para quem
não caberia qualquer restrição à demarcação) eMarco Aurélio de Mello
(que defendeu que o procedimento deveria ser anulado e refeito desde o
começo), todos os demais ministros aderiram à solução de Menezes
Direito.
Assim, o STF interveio na forma com que o conteúdo da portaria deveria
ser aplicado, estabelecendo que tanto as Forças Armadas quanto a Polícia
Federal podem circular livremente, e tomar as medidas que julgarem
necessárias, independentemente de consulta às comunidades indígenas.79
Essa intervenção, a meu ver, parece ter se delineado como espécie de
meio termo entre o que demandavam o autor da ação e seus assistentes,
e a validade da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
De fato, alguns dos argumentos levantados pelo autor e seus assitentes
foram afastados pelos ministros após seu minucioso exame. Por outro
lado, cabe também ressaltar que alguns dos aspectos indicados como
sendo relevantes não teriam objeto diante do próprio texto da Portaria
534 de 2005. O artigo 3º da mesma já esclarecera que a terra indígena
localizada no território de fronteira deve submeter-se ao disposto pelo
artigo 20, § 2º da Constituição (que, como aponta o Ministro
Lewandovski, estabelece um regime especial de proteção das fronteiras 78 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Ayres Britto, p. 74. 79 As condicionantes do Ministro Menezes Direito serão examinadas mais detidamente em momento posterior do trabalho, em que também tratarei da discussão entre os ministros sobre sua aprovação.
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53
terrestres). O artigo 4º, por sua vez, já delimitara que devem ser
excluídos da demarcação a área do 6º Pelotão Especial de Fronteira, no
município de Uiramutã; os equipamentos de instalações públicas; o núcleo
urbano correspondente à sede de Uiramutã; as linhas de transmissão de
energia elétrica e os leitos das rodovias públicas estaduais e federais.
Esta desatenção não deixou de ser mencionado pelos ministros Ayres
Britto, Menezes Direito, Joaquim Barbosa e Gilmar Mendes. O último ainda
chamou atenção no sentido de que a portaria estabeleceria a
“possibilidade de ingresso, permanência e locomoção da Polícia Federal e
das Forças Armadas nos termos do Decreto outubro de 200280, alterado
recentemente pelo decreto 6.513, de 22 de julho de 2008.”81 O Ministro
Ricardo Lewandovski também faz referência a tal aspecto, chamando
atenção à declaração de Nelson Jobim, então na qualidade de Ministro da
Defesa, para quem “as terras indígenas não são impunes à penetração de
militares”.8283
Tal declaração teria sido proferida durante Audiência Pública na Comissão
de Relações exteriores e de Defesa Nacional em 04 de junho de 2008. E
não a única: também as Comissões de Assuntos Externos do Senado e da
Câmara dos Deputados realizaram audiências públicas. Nessas situações,
questões relativas a alegado risco à soberania nacional foram recorrentes.
Cabe relatar que vários pontos ressaltados pelo Autor da Ação Popular
3.388, e pelo Estado de Roraima encontraram respaldo em documentos
redigidos nessas audiências.
80 Na versão do voto disponibilizada no site do STF a designação deste decreto no excerto transcrito encontra-se assim. Em passagem posterior, fica claro tratar-se do Decreto 4.412 de 2002, também mencionado no Voto do Min. Lewandovski. 81 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Gilmar Mendes, p. 32. 82 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Lewandovski, p. 16, nota de rodapé 9. 83 Gilmar Mendes também destaca o a presença de outros três bases avançadas na região (todas integrantes do 7º Batalhão de Infantaria e do Projeto Calha Norte) e esclarece que o decreto 4.412 de 2002 faculta ainda a instalação de outros pelotões. As Forças Armadas, segundo o ministro, contariam com o apoio estrutural dos projetos Sivam e Sipam - dedicados à fiscalização e controle das fronteiras da Amazônia Legal. - STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Mnistro Gilmar Mendes, p. 35.
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É, então, interessante notar a preocupação do parlamento nacional com
uma temática que, como determina a Constituição Federal e o Estatuto do
Índio, é pertinente a órgão especializado do Poder Executivo. Entendo que
a atribuição dessa competência certamente tem a ver com a necessidade
de fazer valerem os direitos de uma minoria diante da vontade política dos
membros eleitos do legislativo, para os quais esses direitos possam talvez
não contar com a relevância necessária.
Esses documentos preparados pelo Senado e pela Câmara dos Deputados,
assim como o laudo pericial apresentado na Justiça Federal de Roraima,
não são considerados relevantes pelos ministros, à exceção de Marco
Aurélio Mello, para quem, como já relatei, toda a demarcação padeceria
de vícios. Isso não se dá ao acaso: relaciona-se com o fato de que tais
peças não trazem qualquer perspectiva antropológica – fundamental ao
tema, tendo em vista o fato de que a própria Constituição determina que
se deve verificar a posse tradicional através da consideração de usos,
costumes e tradições.
4.2.4. Meio Ambiente, Afetação de bens Públicos, Modos de vida e a Força Persuasiva do Mito
Superada a questão do direito dos povos indígenas à terra como entrave
ao desenvolvimento do Estado de Roraima, apontando-se para a vastidão
de terras disponíveis deste, dado sua baixíssima concentração
populacional, restou ainda aos ministro do STF enfrentarem a questão
ambiental. Foi-lhes apresentada a tese de que a afetação da área como
terra indígena seria incompatível com a própria afetação do Parque do
Monte Roraima como reserva ambiental.
Ayres Britto defendeu em seu voto que os índios mantém com o meio
ambiente uma “relação natural de unha e carne”. Para ilustrar, citou fala
do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro narrando que, ao sobrevoar a
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área do Parque Nacional do Xingu, as áreas verdes, em que se observa a
vegetação preservada, correspondem justamente àquelas ocupadas por
índios. Isso porque haveria aquilo que o Ministro chama de “interatividade
orgânica“ dos índios com suas terras e consigo mesmos - relação essa
marcada por forte “riqueza sentimental.“84
Menezes Direito também chamou atenção ao fato de que os índios seriam
mais propensos a zelar pela preservação do meio ambiente. No entanto,
ressalvou que, alguns deles, como “pessoas humanas”, não deixam de
sucumbir. Fez então referência à denúncia do IBAMA, relacionando a
atividade de comunidades indígenas com o desmatamento da Amazônia.
Neste ponto o Ministro ressalvou que esta observação não pode ser
generalizada, nem desprezada. E, realmente, penso não caber a
generalização, uma vez que diferentes grupos indígenas não podem ser
tomados como iguais - a conduta de uma comunidade nada tem a ver
com aquela tomada pelas tantas outras existentes.
Menezes Direito mostrou-se preocupado com o fato de comunidades
indígenas praticarem a criação do gado. Entendo que esta última
ponderação, feita de maneira bastante passageira em seu voto, deixa de
levar conta alguns aspectos - o gado na região foi introduzido já no século
XVIII, assim como a pecuária ali praticada pelo índios não conta com
grandes recursos, não sendo atividade industrializada ou depredatória.85
Seria, portanto, o contrário de certa exploração agrícola praticada na
região e que, para o Ministro Joaquim Barbosa, tem acarretado em danos
ao meio ambiente, também mencionados por Joenia em sua sustentação
oral.
Assim, a preocupação ambiental relativa à área relaciona-se muito mais a
um aspecto formal: o fato de que Parque Nacional do Monte Roraima,
localizado em seu interior, é uma Unidade de Conservação. Assim, ao ser
incluído na área da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, seria um bem
84 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Ayres Britto, p. 48, 50 e 81 85 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Menezes Direito, p.54.
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público sujeito a dupla afetação.
A Constituição, no § 1º do Artigo 225, estabelece um regime especial de
preservação, regulamentado pela Lei 9.985, que cria o Sistema Nacional
de Unidades de Conservação. Assim, para Menezes Direito, haveria, sem
dúvida, limites ao exercício da posse indígena, colocado justamente pela
questão ambiental, fortemente relacionada ao interesse público.
Com isso, observa que seria possível atentar a um conflito aparente de
normas. Menezes Direito argumento que esse conflito seria, no entanto,
apenas aparente, pois a Lei 9.985 prevê adaptações e não veda a
compatibilização das afetações uma área como Parque Nacional e terra
indígena. Nesse sentido, a Ministra Cármen Lúcia chama atenção ao fato
de que não há nenhum óbice constitucional nesse sentido e, em ambos os
casos, trata-se de titularidade conferida á União.
A partir dessas considerações, Menezes Direito elabora uma de suas
condicionantes. Falando, na realidade, em uma tripla afetação (já que a
área seria Terra Indígena, Unidade de Conservação e área de fronteira),
defende que a área onde se localiza o Parque Nacional do Monte Roraima
deve ser administrada pelo órgão de gestão de conservação ambiental,
qual seja, o Instituto Chico Mendes. Diante da atividade deste, os
indígenas devem ser consultados, mas de maneira somente opinativa,
devendo realizar apenas extrativismo vegetal, caça e pesca em períodos
estipulados pela administração - que deve levar em conta seus usos e
costumes, contando para tanto com consultoria da FUNAI.
Cezar Peluso se disse incomodado com a adoção dessa solução. Não pelas
implicações práticas - que, a meu ver, são mais preocupantes (afinal,
estaria o Instituto Chico Mendes, criado para tratar de questões
ambientais, adaptado para lidar com a realidade dos povos da região?)
Para o Ministro tal artifício seria, aliás, muito inteligente do ponto de vista
prático. O problema é que, ele mesmo, sob ponto de vista formal, não
considera como possível um regime de dupla afetação.
De qualquer forma, nenhum dos ministros (à exceção de Marco Aurélio de
Melo, para quem toda a demarcação seria nula) pronunciou-se pela
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exclusão do Parque Nacional do Monte Roraima da Terra Indígena Raposa
Serra do Sol. E há uma forte razão para tanto:
“O Monte Roraima, como se sabe, guarda a alma da história das
etnias dos índios daquela área. Ali, para eles, teria tido início a idéia
de mundo, de vida em abundância. A lenda nunca é inveraz o que a
cria ou que nela crê e faz de seus símbolos marcas de sua
existência. Lenda só é apenas estória para o sem fé. Há enorme
diferença entre a fé e os símbolos de cada religião ou crença. Mas
se os símbolos não são a vida, são eles sinais dos caminhos que se
palmilham para melhor viver, para formar um jeito de viver.
Se o Monte Roraima surgiu de Macunaíma e de seu irmão
Enxikiráng, filhos do sol, se dele por obra e ação de Macunaíma
passaram a brotar os cursos d‘água e as possibilidades de cultivo,
como crêem os índios, para garantia da abundância e da
possibilidade do melhor para a humanidade, ou não, o fato é que
aquele ponto marca tanto, indiscutivelmente, a produção cultural,
necessária de ser reproduzida por eles e pelos que depois dos
atuais vierem, como os seus usos, costumes e ali repousa viva a
sua tradição.
Excluir tal espaço da área demarcada equivaleria a botar por
terra o que nela há de se manter íntegro e disponível para os
que vêem o sol pelos clarões do Monte Roraima. E sem sol,
não há luz. E sem luz, não há vida.” 86
Nessa passagem de seu voto, a Ministra Carmen Lúcia chama atenção à
importância do Monte Roraima para as povos da região. Trata-se de algo
diretamente relacionado a suas crenças, algo que se destava na
construção de sua identidade como populações diferenciadas. Dessa
forma, a ministra volta seu olhar a uma perspectiva antropológica,
expondo um argumento que foge claramente da perspectiva normativa
tipicamente jurídica. Afinal, está considerando a importância de uma lenda
86 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto da Min. Cármen Lúcia, p. 44.
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para quem nela crê – ponderação marcadamente subjetiva, que teve
como origem os relatos do etnólogo Krock Grümber.
Ayres Britto, Menezes Direito, Ricardo Lewandovski, Eros Grau, Joaquim
Barbosa também mencionaram a lenda de Macunaíma. Ressaltaram sua
importância, no entanto, de um ponto de vista externo aos povos que a
narram. Ressaltam sua importância pela contribuição com parte do
imaginário nacional do “herói malandro” da obra de Mário de Andrade.
Outras considerações sobre o que se considera como a contribuição dos
índios para a conformação de um identidade nacional também aparecem
na decisão. No voto de Ayres Britto, isso acontece por meio de uma
generalização, tratando todos os índios brasileiros como uma única
categoria de sujeitos
“formadores de uma só realidade política e cultural: a realidade da
nação brasileira. Entendida por nação brasileira essa linha
imaginária que ata o presente, o passado e o futuro de nosso
povo”.87
A despeito dessa aproximação bastante genérica – e, portanto, criticável -
entre “o índio” e a nação brasileira, o próprio Ayres Britto admite que a
relação entre os povos indígenas e o Estado não se daria de maneira
simples e despida de conflitos. Isso pode ser percebido tanto pela
seguinte' fala de Vicenzo Lauríola, pesquisador do INPA (Instituto Nacional
de Pesquisa da Amazônia), transcrita pelo Ministro:
“Para entender o ponto de vista dos índios, é preciso aceitar que
eles não se relacionam com instituições, mas com as pessoas. Com
o governo local, eles estão há trinta anos em luta.”88
87 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Ayres Britto, p. 13 e 14 88 STF: PET 3.388, REL. MIN. AYRES BRITTO, J. 19/03/2009, Voto do Min. Ayres Britto, p. 20.
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Entretanto, Ayres Britto não deixa de prosseguir em considerações
bastante nacionalistas ao descrever o que ele enxerga como sendo a
perspectiva dos índios:
“... uma libertária visão de mundo que talvez seja o mais
forte componente do nosso visceral repúdio a toda forma de;
autocracia, ao lado de nossa conhecida insubmissão a
fórmulas ortodoxas de pensar, fazer e criar. Essa libertária
visão de mundo que se inicia com a própria noção de limite
geográfico deste nosso País-continente e que tanto plasma a santa
rebeldia cívica de um Tiradentes quando mais o refinado engenho
tecnológico de um Santos Dumont, em par com a mais
desconcertante ousadia estética de um Tom Jobim, um Garrincha,
um Oscar Niemayer, uma Daiane dos Santos.”89
Ayres Britto parece considerar o “índio brasileiro” como herói nacional.
Chega até a citar em seu voto crônica de Eduardo Gonçalves de Andrade
“(o Tostão da memorável Copa do Mundo de 1970)”90, falando sobre a
inventividade artística com que o futebol enfrenta a vida – algo que seria
distintivo de uma identidade brasileira para a qual “o índio” teria
contribuído.
A despeito destas breve considerações (talvez demasiadamente genéricas
e idealizadas) o voto do Ministro reconhece que são numerosas as “etnias”
indígenas. Fazendo distinção entre diferenças “interétnicas” e
“intraétnicas”, Ayres Britto assume que cada etnia possui particularidades
quanto à sua organização social, ainda que faça parte de um mesmo
macro-conjunto em que se inserem as demais etnias. Diante
desta“realidade plural-endógina dos índios” 91 estaria, então, justificado o
modo contínuo de demarcação - não sendo necessário partir a terra
indígena em porções diversas para cada povo. 89 Idem, p. 37. 90 Idem, p. 47. 91 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Ayres Britto, p. 60.
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Essa característica comum entre esses povos diversos estaria evidenciada
pela ausência de conflitos interétnicos nos últimos cento e cinqüenta anos,
bem como pelo uso de “língua franca ou de tronco comum”, “intensas
relações de trocas” e “uniões exogâmicas”, que levariam a uma forte
miscigenação. Portanto, seria correta a demarcação em terras contínuas,
permitindo o relacionamento entre diferentes grupos indígenas.
Ayres Britto enfatiza que as terras indígenas como espaços fundiários
devem assegurar a subsistência econômica das comunidades, garantindo-
lhes a preservação de sua originalidade - pois o vínculo de territorialidade
é um elemento identidário individual e étnico. Elemento esse que não se
delimita patrimonialmente: o habitat indígena é imaterial.
Assim, a ocupação tradicional teria um “sentido entre anímico e psíquico
de que viver em determinadas terras é tanto pertencer quanto elas
pertencem a eles, índios”. Assim, os índios e as terras ocupadas por eles
apresentam-se como dois sujeitos de uma mesma realidade telúrica. Isso
porque esta, no imaginário coletivo daqueles, não seria mero direito,
tendo a “dimensão de verdadeiro ente ou ser que resume em si toda
ancestralidade, toda coetanidade e toda posteridade de uma etnia.”92
Garantido o direito à terra, o contato com “a sociedade dita civilizada”,
deve se dar através de
“um tipo de interação que tanto signifique uma troca de atenções e
afetos quanto um receber e transmitir os mais valiosos
conhecimentos e posturas de vida. Como um aparelho auto-
reserve, pois também eles, os índios, têm o direito de nos
catequizar um pouco.”93
Assim, Ayres Britto admite que não é o completo isolamento dos índios o
que garante a identidade de seus povos. Já Marco Aurélio Mello defende 92 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Ayres Britto, p. 49. 93 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Ayres Britto, p. 32.
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61
visão contrária; Em diversas passagens de seu voto chama atenção à
aculturação dos índios da Raposa Serra do Sol, como se ela contribuísse
para uma diminuição da importância dos direitos dessas populações.
Assim, Marco Aurélio entende que os demais ministros estariam agindo de
acordo com uma postura romantizada, buscando o resgate de uma “dívida
caduca”.94
Este tipo de visão romantizada, a despeito das idealizações nacionalistas,
não é o que predomina no voto de Ayres Britto - autor da célebre frase
“não é preciso vestir a tanga para receber a proteção da toga”. A despeito
do gosto duvidoso deste trocadilho, a frase ilustra uma outra visão do que
seria a aculturação
“necessário processo de substituição de mundividências (a
originária a ser absorvida pela adquirida), mas a possibilidade de
experimento de mais de uma delas. É um somatório, e não uma
permuta, menos ainda uma subtração.”95
Logo quando li o voto de Ayres Britto, intriguei-me com o vocabulário
empregado pelo Ministro. A partir de quais referências estaria falando em
“afetos”, “mundivisões”, “realidade plural endógina”, “uniões exogâmicas”
entre outras? O laudo e o parecer antropológicos que embasaram a
demarcação procedida pela Funai não são citados como fonte dessas
expressões. Entretanto, não parecem corresponder a um vocabulário
tipicamente jurídico, ou mesmo coloquial.
Pouco tempo depois, vim a formular uma hipótese sobre a origem dessas
expressões em seu voto. Na já mencionada entrevista que tive com o
professor Paulo Santilli, perguntei-lhe sobre suas impressões gerais a
respeito da decisão. Ele então me respondeu que ela teria sido de fato
inovadora se tivesse como base somente o voto de Ayres Britto, sem
94 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto Marco Aurélio, p. 57. 95 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Ayres Britto, p. 34.
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adotar as condicionantes de Menezes Direito.
Comentei então que, a meu ver, o voto conteria em algumas passagens
uma certa idealização do índio como herói nacional, algo que, por afastar-
se da realidade quotidiana daqueles povos, talvez comprometesse a
credibilidade da argumentação apresentada. Paulo Santilli concordou
comigo, enfatizando que essa seria uma caraterística do próprio estilo de
Ayres Britto, e chamou atenção ao que considerou como outras qualidades
de seu voto - como por exemplo o fato de ter delimitado um marco
temporal para a aferição da posse indígena, qual seja, a promulgação da
Constituição de 1988.
Relatou-me, então, que participou de um grupo que esteve em contato
com cada um dos ministros, expondo as particularidades do caso quando
da época do julgamento da Ação Popular 3.388. Nessa situação, teve a
oportunidade de dialogar com Ayres Britto, e contou-me que muito desta
conversa estaria presente em seu voto. Dessa forma é possível que essas
reflexões, cujas fontes não são citadas no voto do ministro relator, tenham
como fonte o diálogo travado com Paulo Santilli.
Menezes Direito também traz algumas considerações que extrapolam o
campo de uma argumentação preocupada com ponderações estritamente
jurídicas. Logo no início de seu voto, após fazer um breve relatório - já
que iniciava nova sessão do tribunal - citou trecho de Caminhos e
Fronteiras, obra de Sérgio Buarque de Holanda, caracterizando os índios
como bravos sobreviventes. Assim, transcreveu excerto comentando que
a
“necessidade de enfrentar desde a infância uma natureza cheia de
caprichos, tornara o índio apto a triunfar sobre todas as
contrariedades de seus meios. Incapaz, muitas vezes, de exercer-
se em certas artes, que requerem uma existência sedentária, à
maneira dos brancos, seus sentidos adquirem energia singular onde
seja obrigado a uma constante mobilidade: caçando, pescando,
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rastreando abelhas, dando guerra aos contrários.”96
Em seguida, apresentou também a fala do famoso antropólogo Claude
Lévi-Strauss, na qual este afirma que o
“conjunto dos costumes de um povo é sempre marcado por um
estilo; eles tem sistemas. Estou convencido de que esses sistemas
não existem em número ilimitado e que as sociedades humanas,
assim como os indivíduos - em seus jogos, seus sonhos, seus
delírios - jamais criam de modo absoluto, mas se limitam a escolher
certas combinações num repertório ideal que seja possível
construir.”97
Dessa forma, argumentou Menezes Direito, a preservação das sociedades
indígenas seria uma forma de reconstruí-las, mantendo sua cultura
íntegra e respeitando “todos que são parte da nacionalidade brasileira”.
O Ministro também fala da ligação do índio com a terra terra - designando
o solo como “marca característica da essência indígena”, pois o índio “é na
terra e com a terra”. Defende, pois, que esta é a interpretação que deve
ser extraída do artigo 231 da Constituição Federal, e ilustra sua afirmação
citando Darcy Ribeiro: “A posse de um território tribal é condição essencial
à sobrevivência dos índios.” 98
Tratando concretamente dos índios da Raposa Serra do Sol, cita passagem
contida no laudo pericial em que o professor Paulo Santilli justifica a
ampliação da terra indígena com relação àquela delimitada em 1981. O
antropólogo afirma que toda uma ampla área localizada entre acidentes
geográficos teria sua extensão percorrida rotineiramente pelos índios, “em
atividades de exploração econômica, de estabelecimento de relações de
96 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Menezes Direito, p. 10 e 11. 97 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Menezes Direito, p. 11. 98 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Menezes Direito, p. 20.
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parentesco e afinidade, de celebração de ritos comunitários, enfim, de
atividades que permeiam toda a sua vida social.”
Santilli afirma ainda que alguns desses acidentes (“a serra de Pacaraíma
ao norte, o rio Mau (Ireng) a leste, os rios Miang e Surumu a oeste e o rio
Tacutu ao Sul”) seriam “referências importantes da memória social dos
povos Macuxi e Ingarikó.” Tais ponto naturais constituiriam
“referências que compõem as mitologias dos dois povos habitantes
das áreas em questão, informando as pessoas que as compartilham
sobre as atitudes, posturas, costumes, hábitos e valores que
estruturam sua vivência coletiva, suas relações comunitárias e
formam, em decorrência, suas instituições, sua identidade étnica
diferenciada, em suma, a continuidade da existência de sua própria
sociedade.”99
Aqui o antropólogo faz menção a mitologias como sendo fundamentais à
configuração de diversos, e importantes, aspectos da vida social dos
povos mencionados. Nesse sentido, creio ser possível aproximar deste
trecho a fala da ministra Cármen Lúcia sobre o Monte Roraima - em que
ela poeticamente descreve o mito de Macunaíma sobre a origem do
mundo em abundância como algo de enorme importância para quem nele
crê.
Com este trecho do laudo elaborado por Paulo Santilli, Menezes Direito
justifica que os fatores culturais e demográficos daquilo que ele cunhou
como fato indígena devem ser averiguados pela atividade antropológica. O
Ministro também transcreve outro excerto do laudo em que o mencionado
professor descreve a alteração sazonal das atividades de exploração dos
povos da região - presente na agricultura de coivara, na coleta, na caça e
na pesca. Tais atividades supõe uma “dinâmica peculiar de mobilidade
cíclica”, com “deslocamentos dos grupos locais” e “outros movimentos de
99 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Menezes Direito, p. 24 e 25.
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maior amplitude”.
O laudo em questão diz, claramente, que “cada aldeia utiliza uma área de
cultivo de 3 a 40ha. Durante um período de 2 a 5 anos.” E, ainda,
“a extensão das áreas percorridas para as atividades de caça,
coleta e pesca ultrapassa largamente os limites do território de
cultivo de cada aldeia, em função da distribuição não homogênea
de recursos naturais.”100
Para Menezes Direito, “a extensão homologada” estaria justificada com
base nesse trecho. Entendo que por “extensão homologada” o Ministro
esteja fazendo menção à demarcação tal como ocorreu, ou seja, em terras
contínuas.
Também é mencionado, no voto em questão, um mapa que teria sido
elaborado pela FUNAI a pedido de Menezes Direito, mostrando
“claramente a área, com base em círculos de raio de 5km, que, a
partir de cada aldeia, os seus habitantes utilizariam para sua
subsistência do sistema da coivara.”
Esses círculos seriam, para o Ministro, o segundo círculo concêntrico da
teoria dos quatro círculos concêntricos apresentada por Nelson Jobim, e já
corresponderiam a quase toda a extensão da terra indígena. Tal teoria é
também citada em outras passagens da decisão - sem que, no entanto,
nenhum ministro tenha se esforçado minimamente para explicá-la, razão
pela qual entendo ser questionável a sua utilidade neste caso.
A respeito desse mapa elaborado pela Funai, também obtive interessante
informação de Paulo Santilli. Este relatou ter ele mesmo elaborado tal
mapa, simplesmente riscando com um compasso círculos que na escala
100 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009, Voto do Min. Menezes Direito, p. 28 e 29.
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deste teriam raio equivalente a cinco quilômetros, tomando como centro
os pontos correspondentes às aldeias ali representadas. Segundo o
professor, o Ministro teria se mostrado convencido ao ver tal mapa
enquanto, que apenas ilustrava de maneira bastante simplificada
informações já contidas nos autos (onde haveria documentação muito
mais complexa e elaborada). No entanto, o tal mapa não só serviu para
convencer Menezes Direito, como também chamou atenção deMarco
Aurélio de Mello. Para este, essa verdadeira prova deveria ter sido
submetida ao crivo do contraditório.
Ao fim de seu voto, Menezes Direito faz sua referência à lenda de
Macunaíma, que, reinventada por Mário de Andrade, teria ajudado a
construir “irreverentemente uma identidade nacional.” Identidade essa,
conclui o Ministro, “formada na fusão de culturas que se somam e se
completam, sem sacrificar-se no todo” servindo de apoio à “grandeza de
nosso povo e o sucesso de nossas esperanças.”
Por fim, Ricardo Lewandovski e Eros Grau fazem suas breves observações
quanto à identidade, ou às identidades, dos povos indígenas. Lewandovski
fala em um Brasil multiétnico e multicultural, sendo inegável a marca da
cultura indígena nesta “Terra de Santa Cruz”, expressão também utilizada
por Eros Grau.
Lewandovski cita, ainda, passagem de Marco Antonio Barbosa, que,
embasando-se também em Lévi-Strauss, afirma
“as sociedades culturalmente diferentes devem compreender que
todo processo social só é possível por uma associação entre
culturas”.
O Ministro então enfatiza:
“De fato, a progressiva extinção da diversidade cultural, a acelerada
homogeinização dos modos de ser e de pensar, que se registra hoje
no mundo, levam a um empobrecimento da humanidade como um
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todo, pelo aniquilamento do potencial de inovação que a diferença
entre as pessoas propícia.” 101
A despeito das críticas que podem ser colocadas à decisão da Ação
Popular 3.388, ela tem como mérito o fato de ter se debruçado sobre a
diversidade cultural, sublinhando-a como verdadeiro direito,
constitucionalmente garantido através da posse tradicional da terra. Posse
essa que não se representa por um título ou se restringe pela sua
afetação como determinada categoria de bem público, mas que constitui
uma vivência, construindo no seio dessa terra uma série de relações que
constituem uma visão de mundo distinta daquela dos que não vivem ali.
5. Conclusão
Nos Confins do Saber Jurídico: interdisciplinaridade em respeito à Constituição
“... na ciência só se tem um profissional, um detentor de
conhecimento científico que permite ter habilidade e conhecimento
científico para o conhecimento da alteridade, e este é o
antropólogo.”102
A temática da posse indígena traz ao judiciário a discussão de uma
questão que, como bem observou Menezes Direito em seu voto, não se
responde com termos abstratos ou categorias típicas. É preciso enfrentar
o peso concreto de uma realidade que, longe do Plenário da Corte,
envolve considerações difíceis de serem expressadas através das
101 Idem, p. 03 e 04. 102 STF: Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, j. 19/03/2009 - Trecho da sustentação oral apresentada pelo advogado Paulo Machado Guimarães, representante da Comunidade Indígena Socó, na primeira sessão de julgamento da Ação Popular 3.388), disponível em http://www.youtube.com/watch?v=aEcR0gWHjmk&feature=relmfu, consultado em 07 de novembro de 2010.
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tradicionais formas jurídicas. Afinal, como uma linguagem jus-positivista
poderia descrever fatores econômicos e culturais que correspondem aos
modos de vida desses povos tradicionais, distantes do formalismo que
quase sempre acompanha nosso ordenamento jurídico?
É preciso recorrer a uma área do conhecimento que esteja familiarizada
com esses aspectos, que saiba tratar com a alteridade. Após se
debruçarem sobre as questões tradicionalmente jurídicas trazidas pela
demanda (como o conflito federativo, a afetação de bens públicos, a
soberania nacional e o resguardo das regiões de fronteira), os ministros
do STF não podem escapar à principal justificativa para a demarcação em
terras contínuas. Trata-se do fato de que esta é a única forma de
demarcação realmente compatível com a reprodução física e cultural
desses povos.
O direito à diversidade cultural implica na compreensão da mesma. Assim,
quando a Constituição determina em seu artigo 231, § 1º, que as terras
tradicionalmente ocupadas pelos índios são aquelas utilizadas segundo
seus usos e costumes, ela determina, necessariamente, que se detenha
algum conhecimento sobre esses usos e costumes. E se esse
conhecimento se encontra inserido no campo antropológico, demanda-se
o recurso à antropologia, como área das ciências sociais especializada
nessas questões, sob pena de descumprir-se o que determina a própria
Constituição.
É então que se chega aos confins do saber jurídico – e a aplicação do
direito demanda, justamente, que se vá além da visão que sua disciplina
como área do conhecimento pode proporcionar. Fala-se do mito de
Macunaíma e da origem do mundo, de relações de parentesco, de
diferenças interétnicas e intraétnicas, da agricultura que desconhece
cercas ou propriedades... São aspectos que nitidamente não cabem àquilo
que convencionamos chamar “ciência do direito”, mas que se fazem
essenciais ao pensamento dogmático para a resolução desse caso.
A partir dessa constatação, surgem uma importantes colocações a sere
feita: Se o enfrentamento de conhecimentos não jurídicos foi fundamental
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para a resolução do caso Raposa Serra do Sol, é possível que seja
também necessário para a discussão de outras questões constitucionais.
Isso demanda dos operadores do direito que se abram a diálogos
interdisciplinares, aceitando que a rigidez da nossa “ciência do direito” é
incapaz de discutir todas as questões que se colocam para ser decididas
em nossa sociedade – que é plural, complexa e sujeita a transformações
cada vez mais rápidas.
É claro que, ao enfrentar temas tratados por outros áreas do
conhecimento, estamos, também, lidando com as incertezas dessas áreas.
Por isso, há quem defenda que não caberia aos aplicadores refletir sobre
conhecimentos não jurídicos. Mas, se a certeza não se encontra dentro do
próprio direito (afinal, a “segurança jurídica” é sempre um princípio que se
busca aplicar diante dos mais variados obstáculos), será que fugir desses
conhecimentos de outras áreas para alcançar uma resposta “certa” não
seria um esforço inútil?
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6. Fontes Consultadas
a. Acórdãos – disponíveis em www.stf.jus.br (consultado em 07 de
novembro de 2010.
Ação Popular 3.388; Ação Declaratório de Inconstitucionalidade 1.512;
Medida Cautelar na Ação Cautelar 2.014; Questão de Ordem na Ação Civil
Originária 1.006; Medida Cautelar na Ação Cautelar 2.009; Agravo
Regimental na Ação Civil Pública 3.775; Agravo Regimental na Medida
Cautelar na Ação Cautelar 1.794; Mandado de Segurança 25.483;
Reclamação 3.331; Agravo Regimental na Ação Popular 3.338;
Reclamação 2.833; Agravo Regimental na Suspensão de Medida Liminar
38.
b. Peças Processuais Consultadas
Ação Popular 3.338- 4: petição inicial (cópia reprográfica tirada
diretamente do Supremo Tribunal Federal); petição das comunidades
indígenas Barro, Maturuca, Jawari, Tamanduá, Jacarezinho e Manalai e
memoriais do Conselho Indígena de Roraima (material da CONECTAS
Direitos Humanos, gentilmente cedido por Heloísa Machado de Almeida).
c. Livros
SANTILLI, Paulo, Pemongon Pata: território Macuxi, zonas de conflito. Ed.
Unesp, São Paulo – SP, 2001.
CUNHA, Manuela Carneiro da, Cultura com Aspas. Ed. Cosac Naify, São
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71
Paulo – SP, 2009.
d. Revista
CAROS AMIGOS, Edição Especial: Genocídio e Resistência dos Índios do
Brasil. Ed. Casa, São Paulo – SP, outubro de 2010.
e. Endereços Eletrônicos
www.cimi.org.br – acessado em 07 de novembro de 2010.
http://www.youtube.com/watch?v=aEcR0gWHjmk&feature=channel – acessado
em 07 de novembro de 2010.
f. Entrevista
Entrevista não estruturada com o Professor Dr. Paulo Brando Santilli, a
respeito do laudo etnográfico por ele assinado e do julgamento da Ação
Popular 3.388.
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73
Anexo 2
A decisão condicionada: novidade ou inconsequência?
(Um breve comentário sobre as dezenove condicionantes de Menezes Direito.)
Ao dizer que uma determinada medida deve ser mantida, desde que
tomadas certas providências, o julgador ultrapassa o limite posto por uma
visão tradicional da repartição de poderes. Se essa atitude é tomada por
uma corte constitucional, sob uma perspectiva tradicionalista, talvez ela
ultrapasse seu papel – o de legislador negativo.
Sob este ponto de vista, é possível defender que a decisão da Ação
Popular 3.388 não tenha sido algo ‘tradicional’ ou usual. Mas não é este o
ponto que pretendo frisar aqui ao analisar, ainda que brevemente, as
dezenove condicionantes colocadas à demarcação da Terra Indígena
Raposa Serra do Sol. Se a atitude de adotar condicionantes parece ser por
si só uma inovação, quero aqui procurar vislumbrar o que ela implica na
prática. Apontar para a originalidade da solução adotada não me parece
ser refletir de maneira aprofundada sobre ela – porque assim o fizeram os
próprios ministros.
As tais condicionantes se relacionam com colocações feitas pelo Estado de
Roraima – que pleiteou da decisão uma aplicação de seus efeitos que
incidisse sobre qualquer demarcação de terras indígenas. Uma vez que
Roraima não ingressou como autor da demanda, essas considerações não
precisavam ser apreciadas pelo STF, porque não faziam parte do objeto da
ação. Não obstante, Menezes Direito resolveu enfrentá-las, dizendo
claramente a seus colegas que o fato de realizar um julgamento extra
petita não o preocupava. E sua posição foi elogiada por esses mesmos
colegas – que o felicitaram pela originalidade e pela inteligência da
solução. Mas por que razão ela seria inteligente (se é que o foi)?
Lendo com atenção cada uma dessas condicionantes, cheguei à conclusão
de que (como objetou a ministra Carmen Lúcia, sem que, no entanto,
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levasse adiante seu posicionamento) a grande maioria delas apenas
repete disposições da própria Constituição e do Estatuto do Índio. Tornam
explícitas regras aplicáveis a qualquer terra indígena – como a forma com
que se dá o usufruto, o aproveitamento de recursos naturais, a vedação à
exploração da região por não índios, a realização de quaisquer negócios
com essas terras, bem como a imunidade tributária sobre as atividades
exercidas dentro de seus territórios.
Outras, no entanto, possuem conteúdo mais polêmico. A condicionante nº.
V estabelece que os interesses indígenas não se sobrepõem aos da
segurança nacional – implicando em que a implementação de medidas
com este fim não dependeriam de consulta aos índios. Vejo essa colocação
como problemática: ela autorizaria a remoção de índios da reserva? Se o
fizer está em confronto com o § 5º do artigo 231, segundo o qual a
remoção dos índios só se realiza em circunstâncias excepcionais, mediante
referendo do congresso, devendo cessar o mais rápido possível.
As condicionantes de nº. VIII e XIX determinam que a Unidade de
Conservação compreendida dentro da terra indígena deve ser
administrada pelo Instituto Chico Mendes. É preocupante o fato de que
essa competência é - tomo a liberdade de assim dizer - estabelecida por
Menezes Direito sem grandes explicações e, fora o ‘incômodo’ de César
Peluso, não enfrenta objeção alguma. Assim, antes mesmo de indagar se
o STF poderia interferir dessa forma na administração pública, coloca-se já
o fato de que o fez, na minha opinião, de maneira temerária – sem
ponderar se a estrutura da entidade estaria preparada para lidar com a
questão.
Certamente a condicionante mais problemática foi de nº. XIX, a única a de
fato encontrar opositores. Trata-se da vedação à ampliação “da terra
indígena já demarcada”, posta sem que fosse feita qualquer ressalva. Não
faz menção a eventual reparação de erros, que podem muito bem
acontecer uma vez que, como colocado pelos próprios ministros, a
questão da demarcação de terras indígenas envolve aspectos ‘subjetivos’.
Atribuem, pois, enorme rigidez a uma espécie de decisão que não
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contempla resposta do tipo ‘sim ou não’. Parece-me claro que essa medida
visa à manutenção da segurança jurídica, mas até que ponto de fato se
atinge esse objetivo, ou se cria uma falsa rigidez a um tema que envolve
enorme subjetividade?
É importante notar que essa condicionante não é clara ao dizer se veta a
ampliação da Raposa Serra do Sol ou de qualquer terra indígena que
tenha sido demarcada. Como fica o caso, então, de terras indígenas cuja
demarcação foi feita de forma precária?
O Sistema de Proteção ao Índio, antecessor da Funai, foi extinto
justamente por problemas relacionados à corrupção. Não obstante,
realizou procedimentos de demarcação. É o caso dos índios guarani-
kaiowá do Mato Grosso do Sul, justamente aqueles a que fez referência
Joaquim Barbosa citando a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha. A
demarcação das terras indígenas em ilhas nesse Estado acabou levando à
completa desestruturação daquelas comunidades – em que hoje se
constatam altos índices de suicídio.103
A vedação estabelecida pela condicionante de nº. XIX impediria a revisão
das demarcações no Mato Grosso do Sul? Se a resposta for positiva, de
que maneira então seria possível resolver o problema dos guarani-kaiowá?
Assim, não me parece que essas condicionantes tenham sido colocadas de
maneira pertinente. Não por se tratar de uma intervenção do judiciário na
esfera do executivo, exercendo funções legislativas. Essas colocações
formais tornam-se insignificantes diante das implicações práticas
decorrentes de algumas dessas condicionantes (em especial da de nº.
XIX). Implicações essas que, muito provavelmente, demandarão no futuro
novas reflexões, e desafios, do STF.
103 Ver revista Caros Amigos, Edição Especial – Genocídio e Resistência dos Índios do Brasil, outubro de 2010.
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