sociedade democrática
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Sociedade Democrática Marilena Chauí
Introdução 1. Direitos, necessidades e interesses. 2. A criação de direitos
3. Os obstáculos à democracia
4. Dificuldades para a democracia no Brasil Conclusão - Uma democracia concreta
Introdução
Democracia parece ser um objetivo que todos defendem e todos perseguem. Mas
como a democracia é definida correntemente? Em termos gerais, tanto para o liberalismo
como para o Estado do Bem-Estar (ou social-democracia), democracia é o regime da lei e da
ordem para a garantia das liberdades individuais. O que isso quer dizer? Em primeiro lugar,
que identificam liberdade e competição - tanto a competição econômica a chamada livre
iniciativa, quanto a competição política entre partidos que disputam eleições. Em segundo
lugar, que identificam a lei com a potência judiciária para limitar o poder político, defendendo
a sociedade contra a tirania, a lei garantindo os governos escolhidos pela vontade da maioria.
Em terceiro lugar, que identificam a ordem com a potência do Executivo e do Judiciário para
conter: limitar os conflitos sociais, impedindo o desenvolvimento da luta de classes, seja pela
repressão, seja pelo atendimento das demandas por direitos sociais (emprego, boas condições
de trabalho e salário, educação, moradia, saúde, transporte, lazer). Em quarto lugar, que
embora a democracia apareça justificada como valor ou como bem, é encarada, de fato, pelo
critério da eficácia. Em outras palavras: defendam a democracia porque lhes parece um
regime favorável à apatia política (a política seria assunto dos representantes, que são
políticos profissionais), que por seu turno favorece a formação de uma elite de técnicos
competentes aos quais cabe a direção do Estado, dessa maneira evitando uma participação
política que traria à cena extremistas e radicais da sociedade.
A democracia é, assim, reduzida a um regime político eficaz baseado na idéia de
cidadania organizada em partidos políticos e se manifestando no processo eleitoral de escolha
dos representantes, na rotatividade dos governantes e em soluções técnicas (e não
políticas) para os problemas sociais. Vista por esse prisma, a democracia é realmente uma
ideologia política e justifica a crítica que lhe dirigiu Marx ao referir-se ao formalismo jurídico
que preside a idéia de direitos do cidadão (Marx, 1946-47). Desde a Revolução Francesa de
1789, essa democracia declara os direitos universais do homem e do cidadão, mas a sociedade
está estruturada de tal maneira que tais direitos não podem existir concretamente para a
maioria da população. A democracia é formal, não é concreta.
O objetivo deste texto é mostrar a origem deste formalismo, discutindo os
conceitos de liberdade, igualdade e participação política a partir do entrelaçamento de
direitos, necessidades e interesses em uma sociedade dividida em classes.
1. Direitos, necessidades e interesses
Uma ideologia não nasce do nada nem repousa no vazio, mas exprime, de maneira
invertida, dissimulada e imaginária, as práxis social e histórica concretas. Isso se aplica à
ideologia democrática. Na pratica democrática e nas idéias democráticas há uma profundidade
e uma verdade muito maiores e superiores ao que a ideologia democrática percebe e deixa
perceber.
Que significam as eleições? Muito mais do que a mera rotatividade de governos
ou a alternância no poder. Simbolizam o essencial da democracia: que o poder não se
identifica com os ocupantes do governo, não lhes pertence, é sempre um lugar vazio que os
cidadãos periodicamente preenchem com um representante, podendo revogar seu mandato se
não cumprir o que lhe foi e1egado para representar.
As idéias de situação e oposição, maioria e minoria, cujas vontades devem ser
respeitadas e garantidas pela lei, vão muito além dessa aparência. Significam que a sociedade
não é uma comunidade una e indivisa voltada para o bem-comum obtido por consenso; mas,
ao contrário, que está internamente dividida e que as divisões são legítimas e devem
expressar-se publicamente. A democracia é a única forma política que considera o conflito
legítimo e legal, permitindo que seja trabalhado politicamente pela própria sociedade.
As idéias de igualdade e liberdade como direitos civis dos cidadãos vão muito
além de sua regulamentação jurídica formal. Significam que os cidadãos são sujeitos de
direitos e que onde não existam tais direitos, nem estejam garantidos, tem-se o direito de lutar
por eles e exigi-los. É este o cerne da democracia.
Um direito difere de uma necessidade ou carência e de um interesse. Uma
necessidade ou carência é algo particular e específico. Alguém pode ter necessidade de água;
outro, de comida. Um grupo social pode ter carência de transportes; outro, de hospitais. Há
tantas necessidades quanto indivíduos, tantas carências quanto grupos sociais.
Um interesse também é algo particular e específico. Os interesses dos estudantes
brasileiros podem ser diferentes dos interesses dos interesses dos estudantes argentinos. Os
interesses dos agricultores podem ser diferentes dos interesses dos comerciantes. Os
dos bancários, diferentes dos banqueiros. Os dos índios, diferentes dos garimpeiros.
Necessidades ou carências podem ser conflitantes. Suponhamos que numa região
de uma grande cidade as mulheres trabalhadoras tenham necessidade ou carência de creches
para seus filhos; e que na mesma região outro grupo social, os favelados, tenha carência
de moradia. O governo municipal dispõe de recursos para atender a uma das carências, mas
não a ambas, de sorte que resolver uma significará abandonar a outra.
Interesses também podem ser conflitantes. Suponhamos que a grandes
proprietários de terras interesse deixá-las inativas esperando valorização imobiliária, mas que
interesse a trabalhadores rurais sem terra o cultivo de alimentos para a sobrevivência. Temos
aí um conflito de interesses. Suponhamos que aos proprietários de empresas comerciais
interesse estabelecer um horário de trabalho que aumente as vendas, mas que interesse aos
comerciários outro horário em que possam dispor de horas para estudar, cuidar da família e
descansar. Temos aqui outro conflito de interesses.
Um direito, ao contrário de necessidades, carências e interesses não é particular e
específico, mas geral e universal, válido para todos os indivíduos, grupos e classes sociais.
Assim, por exemplo, carência de água e de comida manifesta algo mais profundo: o direito à
vida.
Carência de moradia ou de transporte também manifesta algo mais profundo: o
direito a boas condições de vida. O interesse dos estudantes, o direito à educação e à
informação. O interesse dos sem-terra, o direito ao trabalho,o dos comerciários, o direito a
boas condições de trabalho.
Dizemos que uma sociedade - e não um simples regime de governo - é
democrática quando além de eleições, partidos políticos, divisão dos três poderes da
República, respeito à vontade da maioria e das minorias institui algo mais profundo, que é
condição do próprio regime político; ou seja, quando institui direitos.
2. Acriação de direitos
Quando a democracia foi inventada pelos atenienses, criou-se a tradição
democrática como instituição de três direitos fundamentais que definiam o cidadão:
igualdade, liberdade e participação no poder. Igualdade significava: perante as leis e os
costumes da polis, todos os cidadãos possuem os mesmos direitos e devem ser tratados da
mesma maneira. Por esse motivo, Aristóteles afirmava que a primeira tarefa da justiça era
igualar os desiguais, seja pela redistribuição da riqueza social, seja pela garantia de
participação no governo. Também pelo mesmo motivo, Marx afirmava que a igualdade só se
tornaria um direito concreto quando não houvesse escravos, servos e assalariados explorados,
mas fosse dado a cada um, segundo suas necessidades e segundo seu trabalho.
A observação de Aristóteles, e depois a de Marx, indicam algo preciso: a mera
declaração do direito à igualdade não faz existir os iguais, mas abre o campo para a criação da
igualdade através das exigências e demandas dos sujeitos sociais. Em outras palavras:
declarado o direito à igualdade, a sociedade pode instituir formas de reivindicação para criá-lo
como direito real.
Liberdade significava: todo cidadão tem o direito de expor em público seus
interesses e suas opiniões, vê-los debatidos pelos demais e aprovados ou rejeitados pela
maioria, devendo acatar a decisão tomada publicamente. Na modernidade, com a Revolução
Inglesa de 1644 e a Revolução Francesa de 1789, o direito à liberdade ampliou-se. Além da
liberdade de pensamento e de expressão, passou a significar o direito à independência para
escolher o ofício, o local de moradia, o tipo de educação, o cônjuge, em suma, a recusa das
hierarquias fixas, supostamente divinas ou naturais.
Acrescentou-se, em 1789, um direito de enorme importância, o de que todo
indivíduo é inocente até prova em contrário, que a prova deve ser estabelecida perante um
tribunal e que a liberação ou punição devem ser dadas segundo a lei. Com os movimentos
socialistas, a luta social por liberdade ampliou ainda mais esse direito, acrescentando-lhe o
direito de lutar contra todas as formas de tirania, censura e tortura e contra todas as formas de
exploração e dominação social, econômica, cultural e política. Observamos aqui o mesmo que
na igualdade: a simples declaração do direito à liberdade não a institui concretamente, mas
abre o campo histórico para a criação desse direito pela praxis humana.
Participação no poder significava: todos os cidadãos têm o direito de participar
das discussões e deliberações públicas da polis, votando ou revogando decisões. Esse direito
possuía um significado muito preciso. Nele afirmava-se que, do ponto de vista político, todos
os cidadãos têm competência para opinar e decidir, pois a política não é uma questão técnica
(eficácia administrativa e militar) nem científica (conhecimentos especializados sobre
administração e guerra), mas ação coletiva, isto é, decisão coletiva quanto a interesses e
direitos da própria polis.
A democracia ateniense, como se vê, era direta. A moderna, porém, é
representativa. O direito à participação tornou-se, portanto indireto, através da escolha de
representantes. Ao contrário dos outros dois direitos, este último parece ter sofrido diminuição
em lugar de ampliação. Essa aparência é falsa e é verdadeira. Falsa porque a democracia
moderna foi instituída na luta contra o antigo regime, portanto, em relação a este último
ampliou a participação dos cidadãos no poder, ainda que sob a forma da representação.
Verdadeira porque, como vimos, a república liberal tendeu a limitar os direitos políticos aos
proprietários privados dos meios de produção e aos profissionais liberais da classe média, aos
homens adultos independentes.
Todavia, as lutas socialistas e populares forçaram a ampliação dos direitos
políticos com a criação do sufrágio universal (todos são cidadãos e eleitores: homens,
mulheres, jovens, negros, analfabetos, trabalhadores, índios) e a garantia da elegibilidade de
qualquer um que, não estando sob suspeita de crime, se apresente a um cargo eletivo. Vemos,
portanto, o mesmo que nos direitos anteriores: lutas sociais que transformam a simples
declaração de um direito em direito real; ou seja, vemos aqui a criação de um direito.
As lutas por igualdade e liberdade ampliaram os direitos políticos (civis), e a
partir destes criaram os direitos sociais (trabalho, moradia, saúde, transporte, educação, lazer,
cultura), os direitos das chamadas minorias (mulheres, idosos, negros, homossexuais,
crianças, índios) e o direito à segurança planetária (as lutas ecológicas e contra as armas
nucleares). As lutas populares por participação política ampliaram os direitos civis: direito de
opor-se à tirania, à censura, à tortura, direito de fiscalizar o Estado por meio de organizações
da sociedade (associações, sindicatos, partidos políticos); direito à informação pela
publicidade das decisões estatais.
A sociedade democrática institui direitos pela abertura do campo social à criação
de direitos reais, à ampliação de direitos existentes e à criação de novos direitos. Com isso,
dois traços distinguem a democracia de todas as outras formas sociais e políticas:
1.) a democracia é a única sociedade e o único regime político que considera o
conflito legítimo. Não só trabalha politicamente conflitos de necessidades e de interesses
(disputas entre partidos políticos e eleições de governantes pertencentes a partidos opostos),
mas procura instituí-los como direitos e exige que sejam reconhecidos e respeitados. Mais do
que isso. Na sociedade democrática, indivíduos e grupos organizam-se em associações,
movimentos sociais e populares; classes se organizam em sindicatos e partidos, criando um
contrapoder social que, direta ou indiretamente, limita o poder do Estado;
2.) a democracia é a sociedade verdadeiramente histórica, aberta ao tempo, ao
possível, às transformações e ao novo. Com efeito, pela criação de novos direitos e pela
existência dos contrapoderes sociais, a sociedade democrática não está fixada numa forma
para sempre determinada, ou seja, não cessa de trabalhar suas divisões e diferenças internas,
de orientar-se pela possibilidade objetiva (a liberdade) e de alterar-se pela própria praxis.
3. Os obstáculos à democracia
Liberdade, igualdade e participação conduziram à celebre formulação da política
democrática como governo do povo, pelo povo e para o povo. Entretanto, o povo da
sociedade democrática está dividido em classes sociais, sejam os ricos e os pobres
(Aristóteles), os grandes e o povo (Maquiavel), ou as classes sociais antagônicas (Marx).
É verdade que a sociedade democrática é aquela que não esconde suas divisões,
mas procura trabalhá-las pelas instituições e pelas leis. Todavia, no capitalismo, são imensos
os obstáculos à democracia, pois o conflito dos interesses é posto pela exploração de uma
classe social por outra, mesmo que a ideologia afirme que todos são livres e iguais.
É verdade que as lutas populares nos países que capitalismo avançado ampliaram
os direitos e que a exploração dos trabalhadores diminuiu muito, sobretudo com o Estado do
Bem-Estar Social. No entanto, houve um preço a pagar: a exploração mais violenta do
trabalho pelo capital recaiu sobre as costas dos trabalhadores nos países do Terceiro Mundo.
Houve uma divisão internacional do trabalho e da exploração, que ao melhorar a
igualdade e a liberdade dos trabalhadores duma parte do mundo agravou as condições de vida
e de trabalho da outra parte. E não foi por acaso que enquanto nos países capitalistas
avançados cresciam o Estado de Bem-Estar e a democracia social, no Terceiro Mundo eram
implantados regimes autoritários e ditaduras com os quais os capitalistas desses países se
aliavam aos das grandes potências econômicas.
A situação do direito de igualdade e de liberdade é também muito frágil nos dias
atuais, porque o modo de produção capitalista passa por uma mudança profunda para resolver
a recessão mundial. Essa mudança, conhecida com o nome de neoliberalismo, implicou o
abandono da política do Estado do Bem-Estar Social (políticas de garantia dos direitos
sociais) e retorno à idéia liberal de autocontrole da economia pelo mercado capitalista,
afastando a interferência do Estado no planejamento econômico.
O abandono das políticas sociais chama-se privatização. O do planejamento
econômico, desregulação. Ambas significam: o capital é racional e pode, por si mesmo,
resolver os problemas econômicos e sociais. Além disso, o desenvolvimento espantoso de
novas tecnologias eletrônicas trouxe a velocidade da comunicação e da informação e a
automação da produção e da distribuição dos produtos.
Essa mudança nas forças produtivas (a tecnologia alterou o processo social do
trabalho) vem causando desemprego em massa nos países de capitalismo avançado,
movimentos racistas contra imigrantes e migrantes, exclusão social, política e cultural de
grandes massas da população. O fenômeno começa a atingir alguns países do Terceiro
Mundo, como o Brasil.
Em outras palavras, os direitos econômicos e sociais conquistados pelas lutas
populares estão em perigo, porque o capitalismo está passando por uma mudança profunda.
De fato, tradicionalmente, o capital se acumulava, se ampliava e se reproduzia pela absorção
crescente de pessoas no mercado de mão-de-obra (ou mercado de trabalho) e no mercado de
consumo de produtos. Hoje, porém, com a presença da tecnologia de ponta como força
produtiva, o capital pode acumular-se e reproduzir-se excluindo cada vez mais as pessoas do
mercado de trabalho e de consumo. Não precisa mais de grandes massas trabalhadoras e
consumidoras, pode ampliar-se graças ao desemprego em massa e não precisa preocupar-se
em garantir direitos econômicos e sociais aos trabalhadores, porque não necessita de seus
trabalhos e serviços. Por isso, o Estado do Bem-Estar Social tende a ser suprimido pelo
Estado Neoliberal, defensor da privatização das políticas sociais (educação, saúde, transporte,
moradia, alimentação).
O direito à participação política também encontra obstáculos. No capitalismo da
segunda metade do século XX, a organização industrial do trabalho foi feita a partir de uma
divisão social nova: a separação entre dirigentes e executantes. Os primeiros são os que
recebem a educação científica e tecnológica. São considerados portadores de saberes que os
tornam competentes e por isso com poder de mando. Os executantes são aqueles que não
possuem conhecimentos tecnológicos e científicos, mas sabem executar tarefas sem conhecer
as razões e as finalidades de sua ação, por isso considerados incompetentes e destinados a
obedecer.
Essa forma de organização da divisão social do trabalho propagou-se para a
sociedade inteira. No comércio, na agricultura, nas escolas, nos hospitais, nas universidades,
nos serviços públicos, nas artes, todos estão separados entre competentes que sabem e
incompetentes que executam. Em outras palavras, a posse de certos conhecimentos
específicos tornou-se um poder para mandar e decidir. Esta divisão social convenceu-se na
ideologia da competência técnico-científica, na idéia de que quem possui conhecimentos está
naturalmente dotado de poder de mando e direção. Essa ideologia, fortalecida pelos meios de
comunicação de massa que a estimula diariamente, invadiu a política, que passou a ser
considerada uma atividade reservada para administradores políticos competentes, não uma
ação coletiva de todos os cidadãos. Não só o direito à representação política (ser
representante) diminui porque se restringe aos competentes, como ainda a ideologia
da competência oculta e dissimula que para ser competente é preciso ter recursos econômicos
para estudar e adquirir conhecimentos. Os competentes pertencem à classe economicamente
dominante, que dirige a política segundo seus interesses, não de acordo com a
universalidade dos direitos.
Outro obstáculo ao direito à participação política está posto pelos meios de
comunicação de massa. Só podemos participar de discussões e decisões políticas se
possuirmos informações corretas sobre o que vamos discutir e decidir. Como já vimos, meios
de comunicação de massa não informam, desinformam, transmitem informações de acordo
com os interesses de seus proprietários e das alianças econômicas e políticas destes com
grupos detentores de poder econômico e político. Assim, por não haver respeito ao direito de
informação, não há como respeitar o direito à verdadeira participação política.
Os obstáculos à democracia não inviabilizam a sociedade democrática. Pelo
contrário. Somente nela somos capazes de perceber tais obstáculos e lutar contra eles.
4. Dificuldades para a democracia no Brasil
Periodicamente os brasileiros afirmam viver numa democracia, depois de
concluída uma fase de autoritarismo. Por democracia entendem a existência de eleições, de
partidos políticos e da divisão republicana dos três poderes, além da liberdade de pensamento
e de expressão. Por autoritarismo entendem o regime de governo em que o Estado é ocupado
através de um golpe (em geral militar ou com apoio militar), não há eleições nem partidos
políticos, o Poder Executivo domina o Legislativo e o Judiciário, há censura do pensamento e
da expressão e prisão (por vezes com tortura e morte) dos inimigos políticos. Em suma,
democracia e autoritarismo são vistos como algo que se realiza na esfera do Estado, e o
Estado é identificado como o modo de governo.
Essa visão é cega para algo profundo na sociedade brasileira: o autoritarismo
social. Nossa sociedade é autoritária porque é hierárquica, pois em qualquer circunstância
divide as pessoas em inferiores, que devem obedecer, e superiores, que devem mandar. Não
há percepção nem prática da igualdade como um direito. Nossa sociedade também é
autoritária porque é violenta (nos termos em que, no estudo da ética, definimos a violência):
nela vigoram racismo, machismo, discriminação religiosa e de classe social, desigualdades
econômicas das maiores do mundo, exclusões culturais e políticas. Não há percepção nem
prática do direito à liberdade.
O autoritarismo social e as desigualdades econômicas fazem com que a sociedade
brasileira esteja polarizada entre as carências das camadas populares e os interesses das
classes abastadas e dominantes, sem conseguir ultrapassar carências e interesses e alcançar a
esfera dos direitos. Os interesses, por não se transformarem em direitos, tornam-se privilégios
de alguns, de sorte que a polarização social se efetua entre os despossuídos (os carentes) e os
privilegiados. Estes, por serem portadores dos conhecimentos técnicos e científicos, são os
competentes, cabendo-lhes a direção da sociedade.
Como vimos, uma carência é sempre específica, sem conseguir generalizar-se
num interesse comum nem se universa1izar num direito. Um privilégio, por definição, é
sempre particular, não podendo generalizar-se num interesse comum nem universalizar-se
num direito, pois, se tal ocorresse, deixaria de ser privilégio. Ora, democracia é criação e
garantia de direitos. Nossa sociedade, polarizada entre a carência e o privilégio, não consegue
ser democrática, pois não encontra meios para isto.
Esse conjunto de determinações sociais manifesta-se na esfera política. Em lugar
de democracia, temos instituições vindas dela, mas operando de modo autoritário. Assim, os
partidos políticos costumam ser de três tipos: os clientelistas, que mantêm relações de favor
com seus eleitores; os vanguardistas, que substituem seus eleitores pela vontade dos
dirigentes partidários; e os populistas, que tratam seus eleitores como um pai de família trata
seus filhos menores. Favor, substituição e paternalismo evidenciam que a prática da
participação política, através de representantes, não consegue se realizar no Brasil. Em lugar
de cumprir o mandato que lhes foi dado pelos representados, os representantes surgem como
chefes, mandantes, detentores de favores e poderes, submetendo os
representados, transformando-os em clientes que recebem favores dos mandantes.
A indústria política, isto é, a criação da imagem de políticos pelos meios de
comunicação de massa para a venda do político aos eleitores-consumidores, aliada à estrutura
social do país, alimenta um imaginário político autoritário. As lideranças políticas são sempre
imaginadas como chefes salvadores da nação, messias escolhidos por Deus e referendados
pelo voto dos eleitores. Na verdade, não somos eleitores (os que escolhem), mas meros
votantes (os que dão o voto para alguém). A imagem populista e messiânica dos governantes
indica que a concepção teocrática do poder não desapareceu. Ainda se acredita no governante
como enviado das divindades (o número de políticos ligados a astrólogos e videntes fala por
si mesmo) e que sua vontade tem força de lei.
As leis, que exprimem ou os privilégios dos poderosos ou a vontade pessoal dos
governantes, não são vistas como expressão de direitos nem de vontade e decisões públicas
coletivas. O Poder Judiciário aparece como misterioso, envolto num saber incompreensível e
numa autoridade quase mística. Aceitasse por isso mesmo que a legalidade seja, por um lado,
incompreensível; e por outro, ineficiente (a impunidade não reina livre e solta?); e que a única
relação possível com ela seja a da transgressão (o famoso jeitinho). Como se observa, a
democracia, no Brasil, ainda está por ser inventada.
Conclusão – Uma democracia concreta
Se a democracia no Brasil, embora declarada, ainda não está instituída, as lutas
sociais revigoradas conseguem questionar seu formalismo e buscar a instituição de direitos.
Neste processo, enquanto aproxima legalidade e legitimidade, desvela a ideologia da
competência técnico-científica, sustentáculo ideológico da divisão social, inventando a
democracia na concretude.
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