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MRCIA BATISTA DE OLIVEIRA
CORA CORALINA: cartografias da memria
Londrina 2006
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MRCIA BATISTA DE OLIVEIRA
CORA CORALINA: cartografias da memria
Dissertao apresentada ao curso de Ps-Graduacao, em letras, da Universidade Estadual de Londrina como requisito parcial obteno do titulo de mestre. Orientadora: Profa. Dra. Gizlda Melo do Nascimento
Londrina 2006
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Cataloga
o na publicao elaborada pela Diviso de Processos Tcnicos da Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina.
Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP)
O48c Oliveira, Mrcia Batista de. Cora Coralina : cartografias da memria / Mrcia Batista de Oliveira. Londrina, 2006. 148f.
Orientador : Gizlda Melo do Nascimento. Dissertao (Mestrado em Letras) Universidade Estadual de Londrina, 2006. Bibliografia : f. 160-162.
1. Coralina, Cora, 1889-1985 Teses. 2. Literatura brasileira
Histria e crtica Teses. 3. Memria Teses. 4. Mulheres na literatura Teses . I. Nascimento, Gizlda Melo do. II. Universidade Estadual de Londrina. III. Ttulo.
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MRCIA BATISTA DE OLIVEIRA
CORA CORALINA: cartografias da memria
COMISSO EXAMINADORA
Profa Dra. Gizlda Melo do Nascimento Universidade Estadual de Londrina
Prof. Dr. Srgio Paulo Adolfo Universidade Estadual de Londrina
Prof. Dra. Elena Maria Andrei
Universidade Estadual de Londrina Londrina, 04 de Setembro de 2006.
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No sei... se a vida curta ou longa demais para ns, Mas sei que nada do que vivemos Tem sentido, se no tocarmos o corao das pessoas Cora Coralina
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Para Minha Famlia Dora, Mame e Pablo - pelo apoio constante em minha carreira acadmica. Para Willian Girotto - amado companheiro - pelo amor com que me presenteia. Para a Professora Jani de Ftima Gonalves Amiga e um exemplo de vida por ter sempre me estimulado.
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AGRADECIMENTOS
Primeiramente agradeo a Deus por ter estado sempre me acompanhando.
A minha orientadora Prof. Dra Gizlda Melo do Nascimento, pela compreenso,
presteza e pacincia que demonstrou em todas etapas de desenvolvimento dessa
dissertao.
Em especial, minha gratido a minha tia Dora, minha mame e ao meu filho Pablo
pela compreenso durante as longas horas de estudo e por darem uma base slida
de amor.
A Willian pelas palavras carinhosas e infinita pacincia e solidariedade.
Aos amigos Hamilton M. Iwama, Diego Rodrigues, Rita de Cssia Sanches e Luiza
Baldo e em especial a Marcos Hidemi pela ajuda com a bibliografia e com
sugestes que foram extremamente teis na composio deste trabalho, tambm
por terem me ouvido nos momentos de angstia.
Um obrigado especial s: Escola Municipal Prof. Carlos Z. Coimbra, Escola
Municipal Ceclia Hermnia, Escola Estadual Monsenhor Josemaria Escriv e ao
Projeto Alfabetizando Londrina pelo apoio dado principalmente nos momentos de
ausncia inevitvel ao trabalho.
A Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina e seus profissionais em
especial Luiz, Sueli e Milton que com eficincia e carinho facilitaram o acesso
consulta das obras.
A Biblioteca Municipal de Londrina que sempre me presenteia com um atendimento,
carinhoso em especial s amigas Arleide e Rosangela.
Aos amigos que oraram e me incentivaram a continuar esta jornada.
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1 OLIVEIRA, Mrcia Batista. Cora Coralina: cartografias da memria. 2006. 148f. Dissertao (Mestrado em Letras) Universidade Estadual de Londrina, Londrina. 2006.
RESUMO
A memria, como fonte de conhecimento, constitui um recurso freqentemente adotado para criao literria. Tal recurso explica-se por se reconhecer a importncia do ato de rememorar, na obteno de um panorama cultural das experincias vivenciadas por um indivduo ou grupo em determinada poca. A presente pesquisa pretende observar de que forma o tema tratado na obra de Cora Coralina, no intuito de verificar como a escritora realiza a transposio da memria em seus mltiplos aspectos, para a criao literria. A viso crtica da realidade faz sua escritura transcender o registro puro e simples de uma memria nostlgica, levando os leitores a reconstituir uma cartografia histrico-social circunscrita a um tempo: Gois, vista como metfora do Brasil, no incio do sculo XX. Memria como registro de um tempo, vindo expressa atravs de sua recuperao pelo veio scio-cultural, mas sempre atravs de uma viso que recupera a verso dos menos representveis. Para tal pesquisa, consideram-se indispensveis s leituras: Maurice Halbwachs (A Memria Coletiva), Ecla Bosi (Memria e Sociedade: lembranas de velhos); alm do estudo filsofo Merleau-Ponty a respeito da percepo, Lcia Castelo Branco (A Mulher Escrita), que realiza reflexes a respeito da condio feminina. Tambm estar presente o estudo de Gilberto Freyre; este ltimo para dar conta da especificidade de nossa formao histrico-cultural. Palavras-chave: Cora Coralina. Literatura brasileira. Memria. Escritura feminina.
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OLIVEIRA, Mrcia Batista. Cora Coralina: cartographs of the memory. 2006. 148f. Dissertao (Mestrado em Letras) Universidade Estadual de Londrina, Londrina. 2006.
ABSTRACT
The memory constitutes a frequently adopted resource for literary creation as knowledge source. Such research is justified for recognizing how the recall act is important to acquire an experiences cultural view lived by a particular person or group in certain time. The present research intends to observe how the subject is treated in Cora Coralinas work in intention to verify as the writer carries through the memory transposition in its multiple aspects for the literary creation. The critical vision of the reality makes her work exceeds the pure and simple nostalgic memory register, taking the readers to restore a cultural and social cartography delimited to a time: Gois, sight as Brazil metaphor, in the beginning of century XX. Memory as register of a time coming expressed through its recovery by the cultural and social lode but always through a vision that recover the version of less representable persons. For such research, its considered indispensable the readings: Maurice Halbwachs (A Memria Coletiva), Ecla Bosi (Memria e Sociedade: lembrana dos velhos); beyond the Merleau-Pontys philosopher study about the perception, Lcia Castelo Branco(A Mulher Escrita), about the feminine condition. Gilberto Freyres study will be present; this last one to particularize our cultural-historic formation. Keywords: Cora Coralina. Brazilian literature. Memory. Feminine work:
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SUMRIO 1 INTRODUO .......................................................................................................10 2 MEMRIA ..............................................................................................................15 2.1 CONTEXTO SOCIAL DA MEMRIA ............................................................................16 2.2 MEMRIA E SENTIDOS............................................................................................29 2.3 MEMRIA E HISTRIA ............................................................................................48 2.4 MEMRIA E ESCRITURA FEMININA...........................................................................60 3 CARTOGRAFIA DA MEMRIA ............................................................................75 3.1 MEMRIAS DE CORA CORALINA..............................................................................75 3.2 MEMRIA: A DENNCIA DA CATARSE .....................................................................84 3.3 MEMRIA COMO DOCUMENTO.............................................................................. 101 3.4 SENTIDOS E MEMRIA DE INFNCIA ..................................................................... 110 3.5 MEMRIA NAS MARGENS: A HORA DAS DESVALIDAS............................................ 123 4 CONSIDERAES FINAIS ................................................................................ 141 5 REFERNCIAS................................................................................................... 144
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10 1 INTRODUO
O reavivamento do passado por meio da memria resulta de
reflexes embasadas em experincias individuais e coletivas, portanto ricas tambm
de um saber popular; e esse saber expressa uma cultura, por isso, quando um
sujeito rememora est realizando uma avaliao da prpria vivncia, conjuntamente
com a dos espaos sociais de onde pode extrair a gnese da prpria identidade.
Como na cultura, a recuperao das experincias chega transubstanciada pelo
imaginrio, permitindo que haja uma permuta entre o real e este imaginrio que
encaminha para a fantasia e a catarse, vista aqui no sentido de uma libertao
interior. Nesse direcionamento, Cora Coralina produz seus textos ancorados nas
prprias reminiscncias e por meio das lembranas constri uma obra rica e
pungente, como ressalta o poeta Carlos Drummond de Andrade quando a trata de
Dona Janana moderna (1984, p. 28) ou mesmo a comparao do professor
Oswaldino Marques Um Whitman interiorano, de cabeo e saia (1985, p. 13).
Essas e outras imagens metafricas so dirigidas a uma mulher idosa de aparncia
frgil, portadora, entretanto, de uma fora de viver enorme a qual transposta para
os seus versos e suas histrias. Cabe ao presente trabalho, acompanhar o
delineamento de uma cartografia da memria da autora que, realizando uma escrita
literria densa por meio da palavra e da memria - sendo esta ltima mote para
inmeras reflexes a respeito da vida - inscreveu seu nome no universo literrio.
Cartografia da memria aqui entendida num sentido amplo, que abrange espaos
que vo alm do comumente denotado. Isto no intuito de enfatizar que o trabalho
ser o de identificao dos espaos que a memria da autora percorre para compor
sua escritura e redimensionar seu universo, numa tentativa de palmilhar esta esfera
que ela descerra com maestria, pois do estudo de sua obra constata-se que faz de
suas reminiscncias pano de fundo para discusses das relaes humanas de um
momento histrico em particular, estendido condio humana de um modo geral,
pois pode-se perceber um estreito vnculo entre a representao literria da
realidade (mmese) e a liberao dos sentimentos reprimidos (catarse), como
tambm fica evidente uma postura crtica perante o mundo socialmente
representado.
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Frente a esse panorama, possvel afirmar que a memria da autora
um caminho de inmeras vias de acesso, em cujos espaos palmilha e vai
assimilando tudo o que est sua volta: recolhendo as flores dos becos, admirando
o seu to amado Rio Vermelho ou mesmo vendo com nostalgia a decadncia dos
velhos casares que fizeram parte do cenrio de sua cidade para transubstanci-los
em outros espaos, sendo o social, o mais presente deles.
O material de produo de Cora Coralina recolhido em sua prpria
vivncia, na natureza e nas tradies, ressaltando os valores da prpria famlia.
Embora a poeta tenha sido educada segundo as normas rgidas do patriarcalismo e
seja de uma famlia socialmente privilegiada havendo diversas passagens de sua
escritura que apontam para suas razes - ela contraria tais normas ao se colocar no
lugar e ao lado dos menos afortunados, assumindo atitudes no adequadas aos
padres vigentes na poca, como por exemplo, sair de casa para constituir uma
nova famlia com um homem casado.
O crtico Silviano Santiago ao refletir a respeito dos autores que
pauta as obras nas reminiscncias, especificamente quando trata da obra de
Drummond, atesta que os autores no inicio de carreira apresentam por meios de
suas criaes literrias uma postura comprometida em que entende-se o desejo do
homem em inaugurar por conta prpria uma sociedade em que pode negar
totalmente os valores do passado e do cl (1982, p. 31), para posteriormente,
passado esse estgio de rebeldia, retornar s razes da famlia, realizando o retorno
do filho casa do Pai, para que possa assumir, depois da insubordinao, o seu
lugar, e a volta ao seio da Famlia, para que seja o patriarca (1982, p. 32).
Cora Coralina realiza a trajetria mencionada pelo crtico, porm
quando retorna a casa de que um dia fugira no volta para perpetuar os valores
familiares e sim para derrubar os ltimos pilares de uma gerao que pautava suas
aes em idias pr-concebidas, com versos enrgicos, impregnados de uma viso
crtica da realidade.
Desta forma, a poeta seguiu a vida cantando a rotina diria de sua
gente a lavadeira do Rio Vermelho, o boiadeiro, o lavrador, adquiriram foros de
inspirao nesse processo de criao - com uma voz vigorosa que tambm se ergue
para denunciar os conflitos sociais. Cabe, pois, aqui a reflexo de Vargas Lhosa,
quando trata do poeta e seu processo de composio, elucidando alguns pontos os
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12 quais sero retomados mais adiante a respeito da verossimilhana presente numa
produo literria.
Nesse estudo da obra de Cora Coralina, sero compostos captulos
com intuito de elucidar alguns aspectos recorrentes em sua obra. No primeiro
captulo, ser traado o percurso da memria no mbito scio-cultural, tendo como
arcabouo para dar sustentao histrica o terico Jacques Le Goff e Maurice
Halbwachs e Michael Pollak com as teorias a respeito da memria coletiva, lanando
luz sobre o modo que se constri a memria individual e coletiva, como tambm a
importncia destas, a fim de entender a sociedade presente e futura, distinguindo
memria e histria.
Por meio de uma leitura atenta da obra da autora, percebeu-se a necessidade de acrescentar ao trabalho uma reflexo sobre a relao entre a
memria e os sentidos, dada a observao de que, na recuperao de fatos,
histrias e poemas constam a interferncia dos sentidos: um cheiro, um sabor, o
sons da natureza muitas vezes tornam-se o fio condutor de tais lembranas.
Para dar conta dos sentidos como deflagradores destas lembranas,
faro parte do corpus algumas reflexes do filsofo Maurice Merleau-Ponty; que
centra seus estudos na procura da essncia da existncia humana, percebendo os
sentidos como responsveis pelo contato do sujeito com o mundo real.
A memria histrica uma vertente que envolve toda obra de Cora
Coralina. Por este veio, ela restaura um momento histrico na narrativa ou na
poesia quando, por meio de objetos, recompe uma poca e as relaes sociais
dela decorrentes, enfatizando em todos seus matizes o passado da cidade de Gois
que metonimicamente pode ser interpretada como microcosmo do Brasil.
Adentrar o universo proposto por Cora Coralina significa abrir pginas
da histria de um Brasil, como bem lembra Oswaldino Marques ao refletir sobre a
obra da autora: A resina aromtica da poesia neutraliza o mofo dos sarcfagos do
passado e suscita a sua ressurreio graas ao sortilgio da palavra balsmica
(1985 p. 15).
As histrias so desprovidas de heris, no sentido clssico que se
acostuma qualificar esta palavra, compostas por pessoas simples assumindo gestos
nobres e que lutam para sobreviver, numa sociedade que ambiciona a modernidade,
arrastando, entretanto, ranos de valores do passado. Neste sentido, os escritos
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13 vm envoltos nos gestos picos por parte dos personagens representados, escritos
eivados de inconformismo diante das injustias sociais, onde os sentimentos
redimensionados pelo lirismo, do vazo a uma poesia comprometida com sua terra
e com seu povo.
Os embasamentos tericos desse captulo sero encaminhados
pelas proposies de Maurice Halbwachs nas questes que envolvem a memria
histrica, e tambm Alfredo Bosi, que contribuir com suas reflexes a respeito de
palavra e memria, alm das pesquisas a respeito de memria e velhice elaboradas
por Ecla Bosi.
Tambm estaro presentes as discusses em torno da memria
realizadas por Michel Pollak que, alm de comentar as idias de Maurice
Halbwachs, ainda as complementa com relatos de experincias de pessoas que
viveram situaes de risco e guardam consigo uma memria traumtica. A titulo de
ilustrao, ademais, sero utilizadas algumas reflexes do Professor Wendel dos
Santos, estudioso da obra de Cora Coralina. O subcaptulo seguinte abrir espao para a discusso do papel
feminino no mbito social e parte dos discursos que serviram para inseri-lo numa
posio de subalternidade no quadro das relaes e representaes sociais. Longe de ambicionar fazer do presente estudo uma discusso de gnero, pretende-se,
entretanto, traar algumas linhas tendo em vista este tipo de abordagem para dar conta dos poemas e contos em que se discute, por meio das personagens e quase
sempre de modo irnico - a realidade de mulheres vivendo sob o regime patriarcal
ou at mesmo aquelas que reproduzem, por meio dos atos ou de discursos, os
valores propostos por tal lgica.
Esse assunto ser discutido luz das teorias de Mary Del Priore,
Maria Lcia Rocha-Coutinho e Gilberto Freyre que, atravs de sua ilustrao da vida
do Brasil-Colnia, permite observar a vida de mulheres e suas relaes, tanto as que
viviam na casa-grande quanto s da senzala.
Uma vez definidas as proposies tericas que nortearo o presente
trabalho, as anlises da obra de Cora Coralina sero elaboradas a partir das
reminiscncias que contm histrias, lendas, tradies e folclores. Por conta dessa diversidade temtica, ser necessrio realizar um recorte privilegiando de contos e poemas que apresentem traos delineadores das rememoraes poticas da autora.
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Neste sentido, sero realizadas anlises de alguns contos do livro
Estrias da casa velha da ponte (1984) Campos Sales, Miquita e As Cocadas
, que so narrativas prenhes de rememoraes e lirismo, tratando da vida de
pessoas simples, permitindo perceber um apelo veemente contra as injustias
sociais.
J do livro Villa Boa De Goyaz (2003), destaca-se o conto Um
Carnaval Antigo; nele, a autora exibe outra faceta ao retratar toda a alegria do
carnaval de outros tempos sem deixar de registrar o apoio explcito ao despojamento
e irreverncia da personagem. E sendo esta festividade um movimento que rene
pessoas de todas as classes sociais, pertinente encaminhar a anlise luz da
teoria da carnavalizao formulada por Mikhail Bakthin.
Os poemas, por sua vez, alm do lirismo impresso em cada verso,
podem ser vistos como verdadeiros documentos de sua cidade, presentes na obra
Poemas dos Becos de Gois e Estrias Mais (1985), destacando-se os poemas
Becos de Gois e Becos da Vila Rica, e Todas as Vidas nos quais se presencia
um despojamento do eu potico que estabelece uma cartografia da cidade
desenhada a partir de uma falange de mulheres e suas ocupaes num discurso
desabusado.
Nesta obra, ser observado tambm o poema O Prato Azul-
Pombinho, o qual trazendo um poema contido em outro, descreve primeiramente de
modo preciso o objeto de forma a ressalt-lo como algo representativo da tradio
da famlia, que tambm conduz para um segundo desdobramento, o da relao do
prato com o eu lrico, apresentando por meio deste objeto o panorama de um
momento histrico circunscrito a uma determinada realidade.
Com base em tais poemas ser delineada uma cartografia da
memria de Cora Coralina para demonstrar a desenvoltura da autora ao transitar por
vrias vertentes chamando a ateno para as histrias que ouviu e vivenciou num
lugar chamado Gois, bero e fonte de recuperao de suas memrias poticas.
Lembranas trazidas por uma memria arguta que, embora repleta de lirismo e
nostalgia, voltam-se para as experincias do mundo real, trazendo consigo uma
conscincia de si e da realidade que a circunda, ancorando seus poemas na
vivncia do real; memria esta conduzida com leveza e ao mesmo tempo vigor, expressa por um discurso emocionado, imprimindo nos textos sua singularidade.
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15 2 MEMRIA
A memria, como conservao e reelaborao do passado, tem-se
mantido como objeto de estudo de filsofos, historiadores e socilogos, alm de
adquirir uma conotao mstica em determinadas sociedades. A ateno prestada
ao ato de rememorar se deve ao fato de que ao partilhar das lembranas de uma
pessoa ou de um grupo obtm-se uma viso mais ampla das experincias
vivenciadas pelo indivduo.
A partir de uma conversa informal, dependendo dos detalhes de
determinados relatos, possvel (re)compor um panorama histrico sob outro ponto
de vista, na maioria das vezes diferente do formalmente institudo, isto , daquele
apresentado pela histria oficial; pois a memria do ponto de vista da histria
trabalha com a inteno de pontuar e selecionar momentos que julga relevantes,
obedecendo ao esquema cronolgico e ideolgico dominante.
A memria coletiva traz tona reflexes pertinentes a uma poca especfica que, por ser espontnea, carrega em seu bojo certa crtica e lana luz
sobre aqueles indivduos que participam da construo da histria, que elege seus
heris, porm no so registrados nos documentos oficiais, ressaltado pelo
professor Jos Moura Gonalves Filho:
O trabalho da memria entra em contraste, ento, com o esforo das cincias quando interpretam a histria renunciando nela tomar parte, quando se dedicam tentativa de um olhar sem subjetividade, que pudesse apanhar as aes sociais como conjuntura de circunstncias positivas e exteriores, evoluindo segundo a mtrica de um processo objetivo, isolvel, sem sujeito. A memria, ao contrrio, faz ver o fato a partir dos indivduos ao mesmo tempo que reencontra neles a ascendncia mais pertinente dos acontecimentos, as influncias mais profundas e indelveis de uma poca[...] (1996, p.95.)
Desse modo, o papel da memria consolida-se como um espao
essencial para aquele que deseja entender a cultura de um grupo: compreender um
pas, a famlia e sua constituio como um corpo social organizado. Buscar no
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16 passado as motivaes que determinam o presente e para transmitir esse legado s
novas geraes, esta a funo daquele que rememora. Segundo Le Goff:
A memria, onde cresce a histria, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma a que a memria coletiva sirva para libertao e no para a servido dos homens.(1996, p.477).
Evidencia-se a memria aqui como alimento da histria oficial e,
como possibilidade de libertao, vem corroborar a importncia do ato da
rememorao: se o pensamento em torno da memria o de reconhecimento de
sua importncia na recuperao de valores para compreenso do presente, torna-se
pertinente entender o modo que ela se estabeleceu em cada etapa na trajetria
humana. Por conseguinte, faz-se importante realizar um breve traado sobre seu
papel no campo scio-cultural e literrio.
2.1 CONTEXTO SOCIAL DA MEMRIA
A memria vista como dom precioso, inerente ao ser humano, tem
sua consagrao desde o incio da humanidade. Nas sociedades estruturadas
exclusivamente pela comunicao oral, ela ocupa um lugar privilegiado, sendo a
pessoa que lembra a responsvel pela transmisso do conhecimento s novas
geraes: o saber profissional, as tradies e as histrias do grupo com suas
relaes e sucesses so narrados por esses homens denominados pelo povo de
homens-memria.
Mirca Eliade (1972, p. 35), em seu estudo sobre os mitos, trata dos
costumes de uma tribo norte-americana denominada Osage, na qual em cada
nascimento de uma criana chamado um lder religioso, um homem que falou com
os deuses. Esse homem tem por incumbncia narrar a histria da criao do
Universo e dos animais terrestres e, s aps a narrativa, a criana amamentada.
Da mesma forma, o ato se repete quando a criana vai tomar gua
pela primeira vez e tambm quando recebe o primeiro alimento slido. Esse ritual
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17 tem como propsito iniciar a criana no contato histrico-mtico da tribo, bem como
introduzir ritualmente o recm-nascido na realidade sacramental do mundo e da
cultura (ELIADE, 1972, p.35).
Isso acontecia para que, desde a tenra idade, o indivduo tivesse o
conhecimento de suas razes e que essas informaes ficassem registradas em sua
memria para posteriormente serem novamente transmitidas, estabelecendo desta
forma um vnculo memorialstico entre as geraes.
Os responsveis pela transmisso da memria faziam muito mais
que perpetuar o passado. Na verdade, visavam manuteno e consolidao do
grupo. O valor da memria no se restringia apenas s esferas scio-culturais, era
tambm poltico, pois as idias e os valores do passado tambm serviam de base
para formao das diretrizes do grupo, Le Goff salienta:
Nas sociedades sem escrita a memria coletiva parece ordenar-se em torno de trs grandes interesses: idia coletiva do grupo que se funda em certos mitos, mais precisamente nos mitos de origem, o prestgio das famlias dominantes que se exprimem pelas genealogias, e o saber tcnico que se transmite por frmulas prticas fortemente ligadas magia religiosa. (1996, p. 431).
Dentre os interesses propostos pelo autor, importante ressaltar os
mitos de origem, os quais surgiram da necessidade do homem em buscar
explicaes sobre os mistrios da vida e de morte e a origem do universo. Essas
questes povoam a memria coletiva. A gnese dos mitos um mistrio que intriga
os estudiosos, mas h um consenso entre eles quando consideram que os mitos
primitivos ainda refletem um estado primordial (ELIADE, 1972, p.10).
volta ao princpio do mundo, s prprias origens figura-se em uma
das possveis razes de uma narrativa consolidar-se como uma experincia mtica.
Porm, no h resposta precisa para o surgimento dos mitos e isso se d pelo fato
de eles surgirem de uma autoria coletiva e annima. Desta maneira, o mito
sobrevive atravs da memria social, semelhante a fala dos antepassados
alimentando a "alma" de cada grupo e tambm sendo alimentada, fazendo com que
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18 muitas atitudes polticas e sociais sejam pautadas nos atos dos heris mticos
responsveis pela construo do imaginrio do humano atravs dos tempos.
Ainda no tocante s proposies de Le Goff, as genealogias eram
tidas como um estudo relevante s sociedades sem escritas e elas eram mantidas
para ressaltar a preponderncia das famlias, visto que o estudo genealgico
procurava demonstrar as origens sagradas deste ou daquele cl. Os primeiros pais
ou antepassados passavam a seus descendentes as virtudes ou qualidades que
lhes foram transmitidas, ou que conquistaram em suas vidas, mediante a luta pela
sobrevivncia.
Portanto, ser descendente deste ou daquele antepassado, na
verdade, revelava algo mais: a identidade do grupo familiar ao qual o sujeito
pertencia. Desta forma, a genealogia tornava-se algo mais importante do que a
simples relao de parentesco: por meio dela era possvel saber as virtudes do
sujeito mencionado e, por conseguinte, conhecer os valores de uma poca.
A oralidade constituiu um dos instrumentos que permite aos mitos
atravessarem geraes e se consolidarem como verdades para as sociedades.
possvel constatar, portanto, que os mitos, a memria coletiva e a oralidade
caminham juntos, j que os grupos sociais trocam experincias e transmitem s
novas geraes a substncia de suas lembranas ao narrarem histrias e
apresentarem seus costumes por meio da alimentao, do vesturio, de danas e
cantos que podem remontar a uma poca guardada na memria individual e coletiva
conservando suas tradies e transmitindo aos jovens seu legado. Paul Thompson
diferencia a histria oficial da oralidade ressaltando a importncia desta, no mbito
scio-cultural:
... a evidncia oral pode conseguir algo mais penetrante e mais fundamental para a histria. Enquanto os historiadores estudam os atores da histria a distncia, a caracterizao que fazem de suas vidas , opinies e aes sempre estar sujeita a ser descries defeituosas, projees da experincia e da imaginao do prprio historiador; uma forma erudita de fico (1992, p.137).
A evidncia oral, enfatizada Thompson, possibilita a aquisio de
uma dimenso social profunda ao promover a aproximao do homem com as
razes de sua cultura, j que esta favorece o conhecimento de uma riqueza de
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19 costumes e de tradies, e no apenas de grandes feitos realizados por uma parcela
da sociedade, incluindo, portanto, a cultura daquele sujeito que no participa da
cultura letrada. A oralidade mantm viva a memria coletiva e atravs dela pode-se
ter acesso sabedoria popular que vem impregnada de saberes, frutos da vivncia
e da memria de um grupo.
Com a expanso da escrita, houve alteraes significativas no mbito
scio-cultural, fazendo com que o pensamento do homem mudasse completamente
seu eixo: o conhecimento popular foi perdendo espao para a cultura letrada; o que
era transmitido oralmente e de domnio da memria coletiva passou a ser registrado
pela escrita, tornando-se, desse modo, restrito a um segmento social privilegiado.
A memria tomou forma de inscrio e de documento; o que ocorria
quando a sociedade celebrava um acontecimento, um feito herico, principalmente
aqueles realizados pelos soberanos, porque era de seu interesse ver seus nomes
gravados em pedras e mrmores, que por sua vez adquiriam um carter de
publicidade insistente, apostando na ostentao dessa memria lapidar e
marmrea. (LE GOFF, 1996, p. 432). O documento tinha a finalidade registrar o
maior nmero de informaes que pudessem ser transmitidas posteriormente s
geraes vindouras para a preservao da memria.
No Oriente antigo, por exemplo, todos os atos dos soberanos eram
dignos de registros: do nascimento morte, nas igrejas ou nos tmulos;
independentemente de local ou data especfica, o importante era manter os nomes
de reis e familiares perpetuados. J os imperadores romanos, por exemplo,
utilizaram largamente os registros para enfatizar a grandeza das prprias
realizaes. Contudo, quando um imperador cometia alguma falta perante as demais
autoridades, o senado romano tratava de apagar dos arquivos a memria dos
imperadores de honra maculada.
Para a famlia romana que sofria essa excluso, tal ato representava
um dos piores agravos porque se tratava de uma severa punio, pois a posteridade
era de suma importncia para os romanos: a inscrio ou no nos registros
significava uma prova de exaltao ou agravo ao indivduo e famlia do mesmo.
Quanto memria coletiva, esta no entrava nesses registros, j que as aes do
-
20 povo no eram consideradas dignas de inscrio, conforme salienta Leroi-Gourham:
A memria coletiva, no incio da escrita, no deve romper o seu movimento tradicional a no ser pelo interesse que tem em se fixar de modo excepcional num sistema social nascente. No pois pura coincidncia o fato de a escrita anotar o que no se fabrica nem se vive cotidianamente, mas sim o que constitui a ossatura duma sociedade urbanizada, para qual o n do sistema vegetativo est numa economia de circulao entre produtos celestes e humanos, e dirigentes (apud LE GOFF, 1996, p. 433).
A transposio gradativa da oralidade para a escrita permitiu ao
homem reter um nmero maior de dados e visualizar de modo mais preciso os
resultados de seu trabalho. O ato de rememorar atravs da escrita constituiu-se num
fator muito importante para a organizao populacional e resultaria na formao
daquilo que seria o modelo das cidades atuais.
Le Goff afirma que as grandes civilizaes na Mesopotmia, no
Egito, na China e na Amrica pr-colombiana, civilizaram em primeiro lugar a
memria escrita no calendrio e nas distncias (1996, p.433). Deste modo, a
humanidade passou a buscar estratgias para ampliar seus conhecimentos ao tomar
conscincia da importncia de resgatar experincias do passado e aplic-las no
presente.
Seguindo ainda as proposies de Le Goff, lembrando aqueles
grupos sociais que estabelecem a rememorao como religiosidade, pertinente
observar a viso que a sociedade da Grcia antiga tinha em relao memria. Os
gregos atribuam um grande valor memria, tanto que a colocavam num lugar
privilegiado na genealogia dos Deuses. A Filha de Urano (Cu) e Gaia (Terra),
Mnemosine, a deusa da memria, passa nove noites com Zeus e desse enlace
nascem nove musas, a quem era atribudo a inspirao das cincias e das artes.
Calope era a musa da poesia pica, Clio da Histria, Euterpe da
poesia lrica, Melpne da tragdia, Terpscore das canes de coral e da dana,
Erato da poesia romntica, Polmnia da poesia sagrada, Urnia da astronomia e
Tlia da comdia, todas responsveis por conduzir a produo potica e revelar o
que invisvel aos olhos humanos.
No pensamento do homem da Grcia Antiga, a cincia e o fazer
potico eram atribudos inspirao das filhas da Mnemosine. As musas
-
21 inspiradoras das artes da cincia elegiam os poetas e conduziam sua inspirao,
uma vez que a poesia tinha a funo de rememorar os feitos do passado, no de
modo individual, mas coletivo.
Os poemas eram tidos como verdadeiros arquivos, j que continham
os acontecimentos importantes da sociedade grega. Neles eram cantadas as
batalhas, a ao dos guerreiros e at os melhores cavalos do exrcito, pois a estes
era atribuda parte da responsabilidade do bom desempenho dos cavaleiros numa
batalha, portanto dignos de serem marcados para a posteridade.
A pessoa que transmitia a poesia tinha como atributo a memorizao
para dar conta dos fatos a serem declamados; logo, o poeta era visto semelhante a
um ser inspirado. Nele era insuflado o poder das musas para ver o passado e o
presente, fatos estes evidenciados por Vernant:
... o aparecimento do mundo, a gnese dos deuses, o nascimento da humanidade. O passado revelado desse modo muito mais que o antecedente do presente: sua fonte. Ascendendo at ele, a rememorao no procura situar os acontecimentos em um quadro temporal, mas atingir o fundo do ser, descobrir o original, a realidade primordial da qual saiu o cosmo e que permite compreender o devir em seu conjunto (1990, p.141).
A fonte do poeta o passado, mas no concebido pela ordem
temporal, mas aquele que remete origem do mundo (cosmo), onde possivelmente
buscam-se respostas que possam explicar os mistrios da vida e da morte, de
acordo com Vernant. Por isso, a potica para os gregos s se torna entendida numa
perspectiva mtica, tamanha sua relevncia e poder; poder atribudo a quem
portador da palavra e da memria.
O pensamento de Aristteles muda o olhar dos gregos a respeito da
memria, porque ele a v como algo que est includo no tempo humano: ao invs
da rememorao revelar os enigmas da vida, marca a limitao do ser humano. O
filsofo atribui memria apenas a faculdade de guardar o passado e evoc-lo
voluntariamente (LE GOFF, 1996, p. 442). Atravs dessa idia, ele dessacraliza a
viso que se tinha da memria, perdendo esta sua conotao religiosa para adquirir
um aspecto bem humano e, por isso, imperfeito.
-
22
A memria na civilizao grega anterior tradio aristotlica e na
judaico-crist diferem-se em muitos aspectos, embora ambas se originem a partir da
f. Os gregos cultuavam vrios deuses, os quais partilhavam de paixes
semelhantes s dos seres humanos: ira, inveja, amor. Ainda que houvesse
proximidade dos deuses e do homem e este pudesse, atravs da unio com um
deus ou por meio de seus feitos hericos, galgar o caminho para o Olimpo, havia
uma preocupao em cultuar os deuses para obteno de graas, pelo fato de eles
serem passionais.
Era importante evitar uma eventual revolta dos deuses, fato que no
pensamento dos gregos poderia acarretar inmeros infortnios. Dessa forma,
competia a todo cidado praticar culto s divindades com cerimnias e sacrifcios,
exercendo o que se entendia por virtude e justia. Os governantes eram
especialmente encarregados desse dever. Tambm utilizavam a rememorao para
homenagear grandes heris do passado que eram lembrados no s pela recitao
pblica dos poemas picos, em ocasies especiais, mas tambm por rituais
religiosos. Cada cidade tinha seus cultos relacionados a certos heris.
A memria na tradio judaico-crist tambm trazia uma conotao,
alm de sacra, disciplinadora e tinha entre uma de suas principais funes evitar o
pecado e ganhar a salvao da alma. Em virtude disso, as leis crists eram todas
pautadas na rememorao; o que possvel ser constatado nas leis bblicas, tanto
no Velho quanto no Novo Testamento, os mandamentos deixam claro que os
homens devem usar a memria para cultivar a f.
Para a tradio judaico-crist, a distncia entre o homem e Deus
infinita. Ele poderia estar na presena de Deus somente mediante esforos morais.
A moralidade e a bondade so virtudes que possibilitam o encontro do homem com
Deus, e a memria contribui para buscar, no passado, aqueles que foram modelos
de uma vida destituda de vcios e prazeres carnais.
Le Goff (1996, p. 445) cita vrias passagens bblicas para enfatizar a
idia de que a transmisso de conhecimento cristo est alicerada na memria. As
promessas de Deus guiam os patriarcas Abrao, Isaque e Jac, que por sua vez
tratam de guardar na memria e transmitir s novas geraes os preceitos divinos.
Moiss, movido pelas ordens de Deus, liberta seu povo da
escravido e, para que eles no caiam novamente em cativeiro, os ensina a
-
23 rememorar atravs dos ritos e guardar as leis; o que no deixa de ser um atributo da
memria coletiva porque esses ritos faziam parte da educao diria no cotidiano das famlias.
Os pais tinham por obrigao transmitir aos filhos todo o saber
acumulado de gerao a gerao e o ensino religioso era norteador dessa formao,
como Le Goff observa:
Os atos divinos de salvao situados no passado formam o contedo da f e o objeto do culto, mas tambm porque o livro sagrado, por um lado, a tradio histrica, por outro, insistem, em alguns aspectos essenciais, na necessidade da lembrana como tarefa religiosa fundamental. (1996, p. 443).
A partir da afirmativa acima, verifica-se que grande parte dos
conhecimentos era orientada pelo saber religioso e o papel da memria era
fundamental porque os grupos viam nela a fonte para seus estudos. No Novo
Testamento, Jesus fala aos apstolos, na ltima Ceia, para repetirem o ato em sua
memria.
O apstolo Paulo exorta os homens a no se esquecerem das leis e
que tenham a obrigao de transmiti-las aos outros para livr-los do pecado. Os
mrtires tm seus atos relembrados e cultuados. Relatos de milagres, devoes e as
graas alcanadas atravs da f constituem a poro maior da memria coletiva.
Na poca medieval, no Ocidente, o homem tinha o esprito voltado
para a religiosidade e o cristianismo estava em plena expanso. Nesse momento,
Agostinho valoriza a memria como uma busca profunda do autoconhecimento e do
encontro com Deus. Em suas reflexes, lana mo de metforas para explicar a
memria e a trata como: a imensa sala da memria ou como cmara vasta e
infinita (apud LE GOFF,1996 p. 445).
Essas denominaes empregadas por Agostinho para definir a
memria demonstram que ele considera o ato de rememorar um meio que conduz a
outras esferas do conhecimento humano e centraliza a memria na imagem da
Trindade. J os filsofos Alberto Magno e Toms Aquino entendem a memria como
auxiliar da prudncia e fruto da inteligncia, em virtude disso retornam ao uso das
tcnicas de memorizao e propem regras para bem lembrar, as quais iro
influenciar vrias idias no campo das artes e dos estudos dos sculos XIV a XVII.
-
24
Com a propagao da imprensa, o homem no precisava reter
apenas na mente o conhecimento, ele podia tambm conservar atravs da escrita
toda sorte de materiais. Os dicionrios, as enciclopdias criadas na segunda metade
XVIII emprestam memria um aspecto mais tcnico: muitas das informaes que
eram transmitidas de forma oral foram transpostas para a forma escrita tornando o
saber restrito a determinados grupos, explicado anteriormente, conferindo poder ao
homem letrado, que poderia manipular os conhecimentos de acordo com seus
interesses; o que ocorria (e ocorre) com freqncia.
Na histria oficial, estas prticas de manipulao do saber so
comprovadas atravs de documentos que testemunham as transformaes polticas
e sociais. Eles evidenciam, na maioria das vezes, uma viso unilateral dos fatos
favorecendo a classe dominante.
Na Revoluo Francesa, o sentimento nacionalista se apodera do
homem em suas aes e sentimentos. Nesse perodo, marcado por mudanas
significativas nas esferas do conhecimento e do entendimento do mundo, o esprito
que predominava era o de comemorao, portanto o calendrio e as festas cvicas
passaram a serem bem mais valorizadas, do mesmo modo que as homenagens aos
heris da batalhas.
Nesse sentido, celebrar a memria dos mortos torna-se um costume
da sociedade. A literatura, atravs do romantismo vigente, colabora para que o
fascnio pelos cemitrios seja uma constante, uma vez que para os poetas
romnticos o tema da morte era recorrente, trazendo, com isso, para sua potica,
um apelo memria atravs da celebrao do passado.
Assim, ocorre a institucionalizao da memria coletiva devido a um
empenho na criao de arquivos, museus, bibliotecas. Com as novas invenes, o
ato de rememorar tornou-se sofisticado: os bancos de dados permitem ao homem
um domnio maior de suas memrias. Os estudos voltados para este tema tambm
apresentavam progressos: Henry Bergson, Sigmund Freud e mais tarde Maurice
Halbwachs, entre outros, desenvolveram suas teorias neste campo de estudo. Cada
qual com sua teoria demonstrou o quanto a memria individual ou coletiva contribui
para a compreenso do pensamento humano.
Memria e percepo, este o centro do estudo de Henry Bergson.
Em linhas gerais, ele coloca a imagem como deflagradora de lembranas que so
-
25 mediadas pelo corpo do indivduo. Alm disso, desenvolve uma teoria pautada na
dicotomia entre memria-hbito e imagem-lembrana. (apud BOSI, E. 1994,p. 48-
49). A memria-hbito constitui os atos motores, formados pela repetio de gestos
e que no requer esforos maiores alm do que automatizar as aes, atitudes ou
palavras. Brgson a define deste modo:
como uma memria (...) sempre voltada para a ao, assentada no presente e considerando apenas o futuro. Esta s reteve do passado os movimentos inteligentemente coordenados que representam seu esforo acumulado; ela reencontra esses esforos passados, no em imagens-lembrana que os recordam, mas na ordem rigorosa e no carter sistemtico com que os movimentos atuais se efetuam (1990, p.63).
A partir dessa definio, possvel compreender que esta a
memria dos mecanismos e das prticas cotidianas. J a imagem-lembrana
compreende uma memria interiorizada, nela a percepo pura adquire uma
conotao espiritual, pois as lembranas vm dos pensamentos mais profundos. As
impresses de tempos vividos conservam-se latentes nesse estgio da memria,
como tambm os devaneios e a poesia.
Se o sujeito estiver realizando uma atividade qual est acostumado
exercer no seu cotidiano, na certa a memria-hbito que est vigorando neste
momento. Porm, num momento de reflexo, a imagem-lembrana que est
atuando. Para Bergson, os estgios da memria-hbito e da memria-lembrana
podem sobrepor-se um a outro, mas isso no ocorre sem que haja conflitos, porque
se uma memria tende ao, a outra evoca lembranas isoladas, os sonhos e a
fruio dos pensamentos, ao que se pode denominar de inconsciente.
O estudo de Bergson tende a comprovar que existe uma memria
pura, na qual se guardam as experincias do passado, cabendo conscincia
escolher qual sentimento ou sensao dever vir luz, tal como afirma: O esprito
humano pressiona sem parar, com a fatalidade da memria, contra a porta que o
corpo lhe vai entreabrir: da os jogos da fantasia e o trabalho da imaginao
liberdades que o esprito toma com a natureza. (apud, BOSI, E 1998 p. 50).
Freud trata da memria como condutora do seu objeto de estudo: o
inconsciente. Ele estuda os sonhos para ter acesso memria latente e salienta que
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26 o comportamento da memria durante o sonho certamente significativo para toda
teoria da memria (apud LE GOFF, 1996, p. 471). Desse modo, Freud analisa
profundamente as lembranas trazidas pelo sonho para resolver os problemas
decorrentes de experincias que ficaram registradas na mente do indivduo e, num
determinado momento, afloram na forma de sintomas diversos.
O socilogo Maurice Halbwachs (1877-1945) desenvolveu estudos
primordiais para formar uma teoria da memria. Sua contribuio transcende o
campo social porque ao estudar a memria, tambm toca em reas distintas,
igualmente as da filosofia e psicologia. Ele perpassa por essas vertentes e consegue
dar continuidade aos seus estudos sem aderir aos modismos da poca segundo os
quais, sob a gide da corrente positivista, tudo teria que ser comprovado mediante
experimentos fsicos e cientficos com o corpo humano.
No momento em que os estudos de Halbwachs despontaram, os
contemporneos do socilogo viam a memria como algo individual e, por isso,
relegavam-na a um plano secundrio no campo da pesquisa. No entanto, para
Halbwachs a memria estaria amplamente voltada para o fato social, pois ele no
desvincula as rememoraes particulares das experincias vivenciadas em grupo,
acreditando que os sujeitos necessitam das lembranas coletivas para firmar as
prprias recordaes.
Desse modo, contrariando as teorias de seu mestre Bergson, ele
reformula e amplia o estudo do filsofo ao considerar a memria muito mais que
uma relao entre corpo e alma, acrescentando em suas teorias a influncia
exercida pelo contexto social. As lembranas mais corriqueiras esto ligadas, de
modo intrnseco, memria do grupo. Essa linha de pensamento demonstra que o
homem encontra-se de tal modo imerso na realidade que o circunda, que at seus
pensamentos mais profundos so provindos da memria coletiva. Halbwachs afirma:
Quando um homem esteve no seio de um grupo, ali aprendeu a pronunciar certas palavras, numa certa ordem, pode sair do grupo e dele se distanciar. Enquanto ainda usar essa linguagem, podemos dizer que a ao do grupo exerce sobre ele (1990, p.169).
A memria de um indivduo guarda lembranas dos acontecimentos
sociais de maneira inconsciente, fazendo-o muitas vezes acreditar serem suas estas
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27 recordaes, porm, muitos dos pensamentos so frutos de uma conscincia
coletiva: do relacionamento com a famlia, com a igreja e com os companheiros de
trabalho e, dessa interao, so constitudos os valores que compem a memria.
A maneira de um grupo social pensar, agir e falar diante
determinadas situaes reflete seus valores e costumes de tal modo que podem
estar impressos em gestos mais corriqueiros ou influindo at na maneira de resolver
problemas mais complexos.
A influncia que grupos sociais exercem sobre o indivduo estende-se
at s produes artsticas, pois atravs do meio de convivncia que o artista ir
incorporar as experincias numa relao tempo-espao que posteriormente sero
transformadas em arte; logo, no contexto de uma obra, alm da elaborao artstica
propriamente dita, estaro presentes tambm contedos oriundos do contato com o
mundo real.
No mbito literrio, a prosa e a poesia so frutos da leitura que o
escritor faz do mundo: nas entrelinhas da obra literria possvel ter acesso parte
do universo vivido pelo autor, possibilitando que o leitor partilhe da gnese das
idias que compuseram a criao de tal obra.
Davi Arrigucci Jnior ao realizar uma anlise da produo de Manuel
Bandeira, encaminhando suas observaes para a verificao de um estilo humilde como trao identificador do poeta, reflete sobre essa transformao ocorrida ao
longo de sua obra, j que no incio de sua produo literria Bandeira apresentava
caractersticas parnaso-simbolistas que portavam uma acentuada preocupao com
a esttica e com a forma, tal como o crtico constata:
Deste modo, nos anos passados na Rua do Curvelo, se pode perceber um movimento de concentrao da experincia do poeta: so anos de recolhimento e recomposio das reminiscncias. Mas, ao mesmo tempo, se nota tambm um movimento de expanso de sua experincia aberta para o mundo novo do cotidiano, achado na rua (1983, p. 115).
Seguindo com a reflexo do prprio Bandeira:
A Rua do Curvelo ensinou-me muitas coisas. Couto foi avisada testemunha disso e sabe que o elemento de humilde cotidiano que comeou desde ento a se fazer sentir em minha poesia no resultava de nenhuma inteno modernista. Resultou, muito simplesmente, do ambiente do morro do Curvelo.(apud ARRIGUCCI JR., 1983, p. 115).
-
28
Com base nas afirmativas acima pertinente inferir que o poeta
apresenta-se como um elemento catalisador do mundo real, pois atravs de sua
relao com o cotidiano, de seu espao de convivncia e de fatos armazenados em
sua memria, juntamente com sua viso sensvel capta o real e constri a base de
sua produo, sendo possvel afirmar que o ambiente influencia no processo de
criao do poeta.
As relaes que o indivduo tem com o seu grupo de convvio formam
a sua memria individual: a postura perante a vida, as opinies, o conhecimento de
fatos histricos, as prprias ideologias so fatores herdados das relaes
estabelecidas desde tenra idade.
Com o passar dos anos, fazem parte do indivduo to intimamente a
ponto de ele acreditar que as ideologias provm dele mesmo, no percebendo que
elas foram tomadas de emprstimo do grupo de convivncia, tal como ilustra
Halbwachs ao comentar a formao de Stendhal:
De todos os membros de sua famlia, por que Stendhal guardou uma lembrana to profunda e nos traa um retrato to vivo sobretudo de seu av? No ser por que representava para ele o sculo XVIII acabando, do qual havia conhecido alguns de seus filsofos e que, atravs dele pde penetrar verdadeiramente nessa sociedade anterior Revoluo, qual no cessar de se referir? Se a pessoa desse ancio no houvesse sido relacionada desde cedo em seu pensamento s obras de Diderot, Voltaire, dAlembert, a um gnero de interesses e de sentimentos que ultrapassava o horizonte de uma pequena provncia mesquinha e conservadora, ele no teria sido ele mesmo, quer dizer, aquele entre seus familiares que Stendhal mais estimou e mais citou (1990, p.66.)
As lembranas do passado do ao escritor impresses to fortes que
se tornam o fio condutor de sua obra e a memria do av fornece o subsdio para
suas idias. Esse recorte da vida de Stendhal vem enfatizar o modo como as
relaes com o grupo familiar definem a vida de um indivduo, influindo na vida
pessoal e at na composio artstica. Ento, a memria configura-se como um
elemento de ligao entre o passado e o presente.
por esse veio memorialstico que Cora Coralina inscreve sua obra,
quando entremeia fatos de sua memria histrica e pessoal, seja na poesia ou na
-
29 prosa. Sua memria percorre os recantos da cidade de Gois microcosmo do
Brasil e traz para seus escritos as ruas, o rio e a figura de pessoas simples.
A postura de Coralina de acolhimento, sendo possvel perceber um
olhar solidrio para as minorias, enfatizando ao narrar, ou melhor, poetizar a vida
dos relegados margem. Contudo, h poemas que demonstram um processo
catrtico pelo fato de trazer experincias pessoais para o mbito literrio, sem dar
obra cunho puramente confessional.
Atravs deles recompem-se elementos que evidenciam o momento
histrico, chamando a ateno para os preceitos e normas que permeavam as
relaes sociais, quando o eu potico coloca-se no interior destas relaes de modo a demonstrar as mazelas ocasionadas pelo rigor de uma ordem estabelecida e
mantidas sob o signo do autoritarismo.
Traos de nostalgia tambm so evidentes na poesia de Cora
Coralina. Isso se faz presente ao revisitar, por meio das reminiscncias, locais e
pessoas amadas, convidando o leitor a adentrar seu universo e faz-lo compartilhar
todas as impresses de sua memria.
Contos e poemas iro ser analisados luz de tais proposies no
decorrer do presente trabalho, de modo a observar que atravs da memria a autora
embasa sua obra, semelhante ao modo que expressa a prpria poesia:
Este Livro: Versos... no Poesia... no um modo diferente de contar velhas histrias (1985, p. 45).
2.2 MEMRIA E SENTIDOS
O ato de rememorar trata-se de algo to inerente ao ser humano que
passa at despercebido o esforo mental de elaborao e organizao que envolve
esse processo. No tocante elaborao, a memria recebe informaes, grava,
exclui e armazena aquilo que julga importante. Todas essas aes ocorrem de modo
tanto consciente quanto inconsciente. O ser humano sensvel aos estmulos
-
30 externos, sendo que inmeras lembranas podem vir tona mediante uma imagem,
um encontro, uma conversa.
Apesar de a maioria das lembranas no ser transposta para a
linguagem, ela faz parte do conhecimento do sujeito, havendo uma diferena entre a
formao da memria individual e a memria coletiva: a primeira constri-se pelas
lembranas pessoais e fatos que por motivos indeterminados foram relevantes ao
indivduo.
J a segunda, apresenta um processo semelhante de elaborao,
porm melhor estruturada por depender de outras pessoas, necessitando da
organizao do pensamento acrescido da intermediao da linguagem, sendo
possvel uma conotao social mais ampla, pois o processo de recordar em grupo
requer certa coerncia de pensamento, como salienta Halbwachs:
A memria coletiva tira sua fora e sua durao do fato de ter por suporte um conjunto de homens, no obstante eles so indivduos que se lembram, enquanto membros do grupo. Dessa massa de lembranas comuns, e que se apiam uma sobre a outra, no so as mesmas que aparecero com mais intensidade para cada um deles (1990, p.51).
Deste modo, Halbwachs v a memria coletiva como um espao
propcio conservao da memria, pois o dilogo permite a troca de impresses
sobre as lembranas, contribuindo para sua perenidade. Os fatores que levam o
indivduo a recordar so diversos e, dentre eles, esto os sentidos: ao ouvir uma
msica, sentir um aroma ou experimentar um alimento, ou quando o sujeito recebe
uma imagem ou at mesmo ao tocar um objeto conduz o ato da reflexo por meio da
recordao. Deste modo, os sentidos, por muitas vezes, podem tornar-se um
estmulo das reminiscncias, visto que as sensaes, uma vez experimentadas,
permanecem nos desvos da mente humana.
Epicuro afirma que todo conhecimento passa pelos sentidos (apud
NOVAES, 1988, p. 15). Com essa definio, ele vai contrariar o pensamento clssico
que consiste em ressaltar a insignificncia do homem perante a religio crendo que
o destino humano dependia estritamente da benevolncia dos deuses.
Plato considerava que a alma era presa pelo corpo e pelos sentidos
e com isso, segundo suas idias, se o homem quisesse obter o conhecimento,
deveria ignorar as coisas mundanas e voltar o pensamento para o plano metafsico.
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31 Igualmente, a pessoa poderia adquirir a viso provinda do esprito e, por
conseguinte, a sabedoria.
Epicuro contesta essa viso enfatizando a supremacia do homem
perante a natureza e esta, por sua vez, segue seu curso prprio independentemente
de seres sobrenaturais, por entender que o ser humano constitui-se de razo e
emoo, sendo impossvel a dissociao desses elementos principalmente num
momento de aprendizado ou de rememoraes, porque aquilo que captado pelos
sentidos retm-se com maior facilidade.
De acordo com Epicuro, os sentidos levam o homem a integrar-se ao
mundo e manter contatos com seu prximo. Cada sentido, em sua especificidade,
cumpre o papel de agente de comunicao porque as experincias trazidas pelos
rgos sensoriais ampliam as possibilidades da relao do homem com o mundo
exterior: desde o prazer proteo contra os perigos do mundo natural.
O ser humano tem noo da capacidade do prprio corpo, porm
nem sempre lhe fica claro se quando age o faz segundo a sua prpria vontade ou se
movido pelas sensaes. No estudo de Merleau-Ponty h meno a essa
particularidade humana:
Pela sensao, eu apreendo, margem da minha vida pessoal e de meus atos prprios, uma vida de conscincia dada da qual eles emergem, a vida de meus olhos, de minhas mos, de meus ouvidos, que so tantos Eus naturais. Toda vez que experimento uma sensao sinto que ela diz respeito no ao meu ser prprio, aquele do qual sou responsvel e do qual decido, mas a um outro eu que j tomou partido pelo mundo, que j se abriu a alguns de seus aspectos e sincronizou-se a eles. Entre minha sensao e mim h a espessura de um saber originrio que impede minha experincia de ser clara para si mesma (1999, p.291).
O filsofo trata da sincronia entre a sensao e o eu individual como
se eles fossem dependentes um do outro, para explicar o modo como os sentidos
interagem com o meio, ou seja, de forma to espontnea que chega a ser
inconsciente. Na rememorao, os sentidos apreendem a impresso e as
experincias como um campo disposio da conscincia que circunda e envolve
todas as percepes, (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 47) tornando possvel o resgate
de fatos do passado e fazendo com que sejam revisitadas as emoes sentidas.
-
32
As experincias vividas deixam marcas impressas, sejam elas
traumticas ou felizes e dificilmente so apagadas da memria, permanecendo
guardadas no subconsciente. O filsofo trata dessa questo com propriedade:
Percepes novas substituem as percepes antigas, e mesmo emoes novas substituem as de outrora, mas essa renovao s diz respeito ao contedo de nossa experincia e no sua estrutura; o tempo impessoal continua a se escoar, mas o tempo pessoal est preso. Evidentemente, essa fixao no se confunde com uma recordao ela at mesmo exclui a recordao enquanto esta expe uma experincia antiga como um quadro diante de ns e enquanto, ao contrrio, este passado que permanece nosso verdadeiro presente no se distancia de ns e esconde-se sempre atrs de nosso olhar em lugar de dispor-se diante dele (1999, p. 124-125).
Na sucesso dos dias, o homem est to envolvido em sua rotina
que muitos sentimentos no so trazidos luz da reflexo e, perante determinadas
situaes, experimenta sensaes que o afligem ou o alegram, todavia sem que ele
saiba a origem desse sentimento; como se ele sasse do mundo real para adentrar
num universo onrico dado pelas recordaes. O tempo pessoal de que fala o
filsofo conserva-se instalado no homem, e nele esto presentes emoes de toda
ordem que so imanentes estrutura do ser.
Merleau-Ponty, ao tratar da recordao e da experincia, toca num
ponto sensvel dessa proposio: o fato de muitas experincias no ocorrerem
diante do olhar, mas pertencerem a um todo significante do sujeito, uma vez que
esse conhecimento ir nortear a vida da pessoa. Se os fatos, um dia vividos, foram
prazerosos, na certa daro ao indivduo confiana e otimismo para reviver outra
situao semelhante; mas se a situao, ao contrrio, for marcada pela dor ou
fracasso, a sensao ser de medo e insegurana.
As sensaes despertadas pela ao de tocar, sentir, cheirar, ouvir, olhar podem proporcionar um apelo ao passado e atravs de imagens, cores, sons,
odores ser possvel um retorno ao j vivenciado no de quem est diante de um
quadro, como quer o filsofo, mas semelhante a uma memria viva que remonta a
tempos idos e faz as lembranas tornarem-se vvidas.
A memria permite que uma pessoa exponha seus valores, suas
crenas sem, no entanto, ser necessrio pronunciar nenhuma palavra; tambm
possvel, atravs de pequenos gestos empregados em qualquer situao, remeter
-
33 experincia de toda uma vida. Neste sentido, ao tratar da memria, Ecla Bosi
afirma: h maneiras de tratar um doente, de arrumar camas, de cultivar um jardim,
de executar trabalhos de agulhas, de preparar alimentos que obedecem fielmente
aos ditames de outrora. E sustentam a tica, a sabedoria e a tcnica de uma gente
(1994, p.75).
A tica e a sabedoria, citadas pela autora de Memria de velhos, so
amostras de uma memria que permanece latente e que ao ter os sentidos
estimulados se manifesta. Os sentidos, por sua vez, cumprem o papel de guardies
de uma tradio e costumes um dia vivenciados que no se apagaram com o passar
do tempo, mas permaneceram guardados no s na mente, como tambm no corpo
em sua totalidade.
Pelo reconhecimento da riqueza que os sentidos empregam
percepo humana, importante observar como ocorrem sensaes apreendidas
por cada sentido e os fenmenos que o circunda. A comear pelo olhar, sentido este
que possibilita o envolvimento do sujeito com todo o ambiente que est ao seu
redor.
O olhar apreende as coisas de tal maneira que d ao ser humano um
certo senso de poder, porque, por meio dele, os objetos podem ser vistos de
ngulos diferenciados com a profundidade necessria para o momento. Vale
reportar afirmao de Merleau-Ponty no momento em que fala da diferena do ato
de olhar e de tocar:
Na experincia visual, que leva a objetivao mais longe do que a experincia ttil, podemos, primeira vista gabar-nos de constituir o mundo, porque ela nos apresenta um espetculo exposto distncia diante de ns, nos d a iluso de estarmos imediatamente presentes a todas as partes e de no estarmos situados em parte alguma (1999, p.424).
Essa sensao de estar presente mesmo a certa distncia, garante a
segurana emitida pelo olhar. A confiana que o ser humano deposita em sua
acuidade visual faz os outros sentidos serem relegados a um plano secundrio, uma
vez que o conhecimento se d mesmo distante do corpo, porque a imagem chega
at os olhos com detalhes minuciosos. Assim, tem-se acesso a objetos sem
necessitar do toque ou da proximidade.
-
34
O ato de olhar possui diversos significados, como se pode constatar
atravs do campo lexical que envolve a percepo com referncia preponderante
viso; ver conhecer, atender, investigar e, tambm, em algumas expresses,
adquire-se a conotao de zelo: estar de olho, ficar de olho, no perder de olho e
trazer de olho marcam um grau de interesse do sujeito que beira a vigilncia. (BOSI,
A. 1998, p.78).
Tambm, contemplar olhar com enlevo para uma imagem. Dirigir o
olhar para algum o mesmo que voltar a ateno, partilhar - com e atravs do
outro - a vida em suas diversas facetas. Os inmeros referentes para definir o olhar
se justificam devido importncia desse sentido na vida humana, j que ele
transcende a visualizao dos objetos para consolidar-se como algo complexo, tal
como ver com certa intencionalidade, de modo profundo, um olhar comprometido
com a vida.
A viso do filsofo, a viso do artista so olhares diferenciados
lanados sobre a realidade. O olhar deste ltimo transforma sua percepo em
(re)criao que vai dar ao outro a noo de como apreende a realidade. Com isto,
no s chama ateno pela viso, mas tambm pelo dilogo que estabelece com os
outros sentidos.
Czane dizia que um quadro contm em si, at o odor da paisagem
(apud MERLEAU-PONTY 1999 p.427). Com esta afirmao, comprova-se que uma
obra s pode ter validade se arrebatar para si todos os sentidos e, atravs do olhar,
permitir que as sensaes despertadas possam se fazer presentes no corpo todo.
O olhar do filsofo, por sua vez, aprofunda-se na natureza para
entender como as coisas se sucedem, de modo a ir alm do olho fsico para ver com
os olhos da mente e de tal modo chegar a formas puras do pensamento, ou seja,
aquilo que se quer entender por verdade. Tal como pontua Alfredo Bosi ratificando o
olhar do filsofo:
Fixar olho da mente nas formas puras o mtodo que conduz ao resgate da alma ameaada pela desagregao do corpo. Transcender olho fsico ter acesso a um mundo que desconhece a lei da morte. O platonismo a educao desse outro olhar (1988, p. 70).
-
35
Buscar o olho da mente constitui-se uma forma de perpetuar a
existncia. O olhar proposto por Plato aquele que mantm a perenidade porque
v o eterno e o imutvel das coisas, tanto que supera a materialidade do ser
humano. Deste modo, o olhar filosfico d acesso ao que invisvel. assim
tambm a viso daquele que rememora uma vez que lembrar permite voltar a
tempos idos e assim renovar a experincia. Com isto, vale ressaltar que quem
lembra quando lembrando est triunfando sobre a morte (BOSI, A.1988, p. 71).
Atravs da viso possvel conhecer o mundo em seus inmeros
aspectos e estabelecer relaes com a natureza, contudo se a viso oferece o
universo das imagens, a audio, por sua vez, complementa a percepo
possibilitando a compreenso dos sons, como distingue Marilena Chau (1988, p.
47): ver lana-nos para fora; ouvir volta-nos para dentro. Essa proposio
demonstra que ouvir tambm recolher para si o mundo ao redor. Essa acolhida
permite que o indivduo tenha acesso a um universo vasto que o mundo sonoro,
que propicia apreenso do ambiente no qual o sujeito est inserido.
Os sons vindos de uma rua qualquer, os sons de uma floresta ou de
uma casa possuem significados diversos; alm disso, um simples assovio pode
trazer vrias mensagens, porque um rudo, num determinado contexto, vem
carregado de significaes, de acordo com o que salienta Ecla Bosi:
Sons que desaparecem, que voltam, formam o ambiente acstico dos bairros. As pedras da cidade, enquanto permanecem, sustentam a memria. Alm desses referentes, temos a paisagem sonora tpica de uma poca. H paisagens sonoras selvagens, das florestas e tranqilas, das cidadezinhas onde os sons esto sujeitos aos ciclos naturais de atividade e repouso de seus produtores (1994, p.445).
A audio um dos sentidos que mais contribui para a comunicao
entre os seres vivos em geral, pois numa situao comunicativa a audio
imprescindvel. O som de uma voz exprime muitas emoes e isso faz a
comunicao fluir com uma gama maior de significados. A entonao dada s
palavras remete ao verdadeiro sentido que o falante quer empregar ao seu discurso
e, graas audio, possvel apreender as peculiaridades da fala porque o ouvido
seleciona, avalia e julga os sons que lhe vm atravs do outro.
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36
No que diz respeito audio, impossvel deixar de tecer
comentrios a respeito da msica e sua relao com o ser humano. A msica com
sua capacidade de sensibilizar e emocionar pode provocar sensaes variadas: riso,
choro, alegria, vontade de movimentar, danar; dificilmente se fica impassvel
perante uma msica.
Isto se d porque, atravs da audio, percebe-se o ritmo e uma
sensao diversa toma o corpo todo. O sujeito no precisa ser msico para apreciar
a sonoridade que lhe chega at os ouvidos; e um dos fatores que propicia a
familiaridade do ser humano com o ritmo o fato de a prpria lngua ser ritmada.
A criana aprecia e entende os ritmos antes mesmo de falar, basta
notar como elas se deixam conduzir pelas cantigas: cantigas de ninar, para relaxar e
dormir; cantigas de roda, para brincar. Desse modo, a criana sente o ritmo sem
mesmo saber exatamente porque lhe agradvel.
Para o ouvinte a especificidade de cada cano diverge pela
cadncia de cada uma, por ser mais lenta ou mais rpida e no tanto pela letra.
Como lembra Maurice Halbwachs ... com efeito, acontece freqentemente que
podemos reproduzir uma cano sem pensar nas palavras que a acompanham. A
cano no evoca as palavras em compensao difcil repetir as palavras de uma
cano que conhecemos bem sem cantarolar (1990, p. 173).
A msica prima pela magia que fascina os homens desde os
primrdios da humanidade. Ouvir msica eleva o esprito e transporta a pessoa a um
universo prprio, a outras instncias do pensamento e dos sentimentos evocados
pelas lembranas, permitindo ao indivduo retornar no tempo e sentir a mesma
emoo de quando ouviu a msica pela primeira vez.
A sensao de voltar ao passado parece to real, a ponto de ser
possvel rever o ambiente, pessoas, objetos de quando se ouvia aquela msica.
Esta peculiaridade do universo sonoro atribuda aos sentimentos despertados pelo
som, visto que faz o sujeito libertar-se do presente, mesmo que seja por uma frao
de segundos, e a memria fica a merc da cano. Merleau-Ponty mostra o modo
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37 pelo qual a msica age na percepo humana:
Na sala de concerto, quando reabro os olhos o espao visvel me parea acanhado em relao a este outro espao em que onde havia pouco a msica se desdobrava e, mesmo se conservo os olhos abertos enquanto se toca a pea, parece-me que a msica no est contida neste espao preciso e mesquinho. Atravs do espao, ela insinua uma nova dimenso em que rebenta, assim como, nos alucinados, o espao claro das coisas percebidas se redobra misteriosamente de um espao negro em que outras presenas so possveis (1999, p. 299-300).
A msica permite ao pensamento humano uma evaso e ocupa um
espao e tempo diferenciado daquele habitual, Assim que ocorre com os msicos:
para aprender a executar, ou a ler primeira vista, ou mesmo apenas para aprender
a reconhecer e a distinguir os sons, seu valor e seus intervalos, os msicos tm
necessidade de evocar uma quantidade de lembranas. (HALBWACHS, 1990, p.
184).
Lembrando que a evocao das lembranas realizada pelos msicos
possui certas especificidades que o ouvinte comum no tem, no entanto ambos
fazem uso da memria ao ouvir uma pea musical, demonstrando que a msica
consolida-se como uma forte impulsionadora das lembranas.
Refletindo sobre os sentidos, convm ressaltar a importncia da
percepo ttil. O tato permite que a pessoa no se fira durante uma atividade e
tambm empregue firmeza, suavidade ou cuidado para apanhar um objeto. Com um
simples toque se pode reconhecer a forma, a densidade e o peso dos objetos.
Mesmo estando num local sem qualquer luminosidade, o tato contribui para
distinguir as coisas que esto neste local.
Ao tocar ou sentir-se tocado, o corpo sofre uma modificao
transmitida imediatamente ao crebro identificando o causador dessa impresso e,
caso no oferea qualquer perigo ao corpo, reconhece-se a sensao, mas sem
grande reao. Porm, se atravs do toque o crebro constatar algo nocivo, a
reao de defesa vem a ser instantnea.
Tais reflexos so elucidados por Merleau-Ponty (1999, p. 157)
quando enfatiza que ... cada acontecimento motor ou ttil faz alar conscincia
uma abundncia de intenes que vo, do corpo, seja em direo ao objeto
-
38 enquanto centro de ao virtual, seja em direo ao prprio corpo, seja em direo
ao objeto.
Devido a essa conscincia atribuda pelo filsofo, ao tato se deve o
senso de autoproteo, uma vez que numa frao de segundos, h a possibilidade
de se prever quando o corpo est na eminncia de um perigo. O tato presente no
corpo propicia um senso de alerta preciso e possibilita a variao do sentimento de
bem-estar ao incmodo.
Alm do reconhecimento e da autoproteo, assim como os outros
sentidos, o tato tambm permite que lembranas vindas do passado faam-se
presentes: o toque no spero de uma ferramenta ou na seda de uma roupa pode ser
um convite reminiscncia.
O toque das mos est presente no trabalho, e atravs delas, as
obrigaes, os ofcios e os atos so consolidados; por isso, aps um longo tempo
ser exercer uma funo, o indivduo ao tocar naquilo que era o instrumento de
trabalho, reconhece todos os segredos do manejo daquela ferramenta, tal como se
aquele saber estivesse incrustado no corpo e, ao manuse-la, como se nunca
tivesse deixado de trabalhar, Ecla Bosi ao tratar da memria do trabalho afirma:
Todo e qualquer trabalho, manual ou verbal (...), acaba-se incorporando na sensibilidade, no sistema nervoso do trabalhador; este, ao record-lo na velhice, investir na sua arte uma carga de significao e de valor talvez mais forte do que a atribuda ao tempo de ao. O fazer do adulto ativo inibia o lembrar, mesmo porque o lembrar memria-hbito bergsoniana uma operao j plenamente absorvida pelos gestos e mecanismos da profisso (1988, p. 480).
A memria tende a guardar aquilo que um dia fora fixado atravs da
experincia e Bergson interpreta essa capacidade como um caso de pura
percepo. Com esse pensamento, ele retira todo o cunho social da questo,
entretanto as atividades de trabalho impressas na memria, trazem muito mais que
gestos mecnicos, porque nessas atividades h uma relao intrnseca com a
sociedade.
Quando o sujeito lembra-se de um ofcio, torna-se impossvel no
trazer no bojo das recordaes os relacionamentos que permeavam o trabalho, tais
-
39 como as relaes de patro e empregado. Portanto, a recordao de uma
experincia nunca vem sozinha, ela est sempre interligada a outras.
Como no poderia ser diferente, o olfato tambm constitui outro
sentido que evoca as rememoraes, pois por meio dele tem-se sensaes que
remetem a ambientes, pessoas e lugares. Os cheiros so marcantes; ningum fica
indiferente a um odor seja ele agradvel ou ruim, e as impresses causadas so
intensas: podem variar desde a sensao de fome, at a nusea por essa
caracterstica peculiar.
Os odores se instalam na memria de maneira precisa, tanto que se
podem passar anos sem sentir um aroma, mas ao aspir-lo, numa nova ocasio,
boa parte da situao vem mente como numa seqncia de fatos. Caso seja o
cheiro de uma pessoa, possvel rev-la com riqueza de detalhes, perceber sua
presena e at os sentimentos experimentados de quando estava na presena dela.
As impresses causadas pelo olfato so marcantes pelo motivo de
certos odores, alm de envolverem o ambiente, tambm cooperam para que se sinta
prazer ou desprazer, como por exemplo: pelo perfume, o odor, o sabor da comida; o
homem aspira o aroma do alimento para, posteriormente, sentir o gosto tornando o
paladar e o olfato sentidos complementares: o primeiro quando percebe um sabor
porque o segundo j sentiu e enviou mensagem para o crebro contendo
informaes a respeito do alimento. Sendo presumvel que o paladar ocorra atravs
do olfato.
Na perspectiva da rememorao, o olfato e o paladar possuem papel
relevante: o gosto de pipocas ou de um bolo pode remeter s experincias da
infncia, lembranas de uma av, de um amigo ou ente querido. O paladar faz vir
tona os sabores de tempo idos, tal como ressalta Bahloul: o ato de comer se torna
ento um verdadeiro discurso do passado e o relato nostlgico do pas, da regio,
da cidade ou do lugar em que se nasceu (apud CERTEAU, 2003, p. 250). Deste
modo, um prato culinrio pode conter muito mais que o valor de um alimento, ele
pode guardar em si as tradies de um povo.
Marcel Proust (1871-1922), autor da obra Em busca do tempo
perdido, usa como mote as sensaes para compor traos da memria e, atravs
desta, reconstitui o passado da Frana, da Terceira Repblica, para tanto constri
um narrador-personagem que pauta sua trajetria nas impresses fornecidas pelos
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40 sentidos, tal como pode ser observado nessas famosas passagens da obra:
... Levei aos lbios uma colherada de ch onde deixara amolecer um pedao de madalena. Mas no mesmo instante em aquele gole, envolta com migalhas do bolo, tocou o meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinrio em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noo de sua causa. Esse prazer logo me tornara indiferente s vicissitudes da vida, inofensivos seus desastres, ilusria sua brevidade, tal como faz o amor, enchendo-me de uma preciosa essncia: ou antes, essa essncia no estava em mim era eu mesmo (1979, p. 31).
E prossegue suas reminiscncias enfatizando as lembranas advindas pelas sensaes:
Mas quando nada subsistisse de um passado remoto, aps a morte das criaturas e a destruio das coisas sozinhos, mais frgeis, porm mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiis -- o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando aguardando, esperando, sobre as runas de tudo o mais, e suportando sem ceder, em sua gotcula impalpvel, o edifcio imenso da recordao (1979, p. 31).
Essa narrativa reflexiva comporta a essncia temporal da realidade
porque o narrador de Proust recria, pela memria, o universo do vivido para retirar
do passado pessoas, lugares e sentimentos e, desta forma, driblar o tempo fugidio e
destrutivo, atravs das impresses dadas pelas sensaes e venc-lo.
Pelo vis das reminiscncias, Proust realiza uma obra inusitada na qual une
as sensaes e as lembranas como matria de sua escritura. As madalenas
embebidas no ch, ao entrar em contato com o olfato e o paladar derrubam as
barreiras do tempo e fazem o passado vir com toda fora ao momento presente.
Antonio Candido mostra sua viso atravs de suas consideraes acerca da obra de
Proust:
O escritor procura recuperar a poeira das recordaes porque a memria permitindo remontar ao passado mostra, meio contraditoriamente, que o que passa s ganha significado ao desvendar o que permanece; e este permite refluir sobre o pormenor transitrio, o particular relativo, para compreend-los (1933, p. 128).
-
41
A compreenso do presente pelo desvendamento do passado
permite uma compreenso maior da vida, pois descrever fatos corriqueiros pode ser
uma forma de reviver um momento esquecido no tempo, tornando-o atemporal. O
narrador-personagem de Proust busca, em suas paisagens interiores, revisitar um
tempo, reconquist-lo e venc-lo.
Para tanto, as sensaes assumem o papel de desencadeadoras do
fluxo de rememoraes. E estas vm impregnadas de costumes de uma sociedade e
suas relaes sociais e afetivas. Trazer para o mbito literrio as percepes
significa muito mais que enumerar detalhes de um personagem, significa, tambm,
estabelecer relaes entre os acontecimentos do interior da narrativa e ver as
situaes por diversos pontos de vista. Como enfatiza Candido: a arte do narrador
(Proust) pretende descrever de muitas maneiras, recomear de vrios ngulos, ver o
objeto ou a pessoa de vrios modos, em vrios nveis, lugares e momentos, s
aceitando a impresso como ndice ou sinal... (1933, p. 127).
Tal como salienta Candido, a focalizao de um personagem atravs
das sensaes amplia as caractersticas que o narrador quer enfatizar, j que ele
estabelece contato com o leitor por chamar a ateno para as sentidos, fator
inerente ao ser humano, tornando a narrativa um apelo para que o outro compartilhe
as mesmas emoes.
Quando se fala no ritmo de uma msica, sabor de uma comida ou a
beleza de uma paisagem parece que h um desejo de levar o interlocutor a partilhar
dos mesmos sentimentos. Portanto, uma literatura fundamentada na memria e nos
sentidos permite que se tenha acesso ao passado, no como um tempo distante da
realidade, mas como fonte de conhecimentos onde se possa buscar a compreenso
do presente.
Cora Coralina explora o universo da memria e dos sentidos em
vrios momentos de sua obra: maneira de Proust, medidas as devidas distncias,
uma das quais diz a respeito inteno do autor ao lanar mo deste recurso,
Coralina recompe o passado atravs dos sentidos e retoma as experincias
vivenciadas. Deste modo tambm Walter Benjamin, ao desenvolver uma crtica
obra de Proust, faz lembrar determinados temas recorrentes na escritura de Cora
Coralina,
-
42 principalmente quando ressalta os recursos utilizados pelo autor francs:
Sabemos que Proust no descreveu em sua obra uma vida como ela de fato foi, e sim uma vida lembrada por quem a viveu. Porm esse comentrio ainda difuso, e demasiadamente grosseiro. Pois o importante, para o autor que rememora, no o que viveu, mas o tecido de sua rememorao, o trabalho de Penlope da reminiscncia (1990, p.37).
Se em Proust a recomposio do passado um pretexto para colocar
em primeiro plano o ato de tecer a memria, em Coralina tal recomposio pelos
sentidos se apresenta como forma de focalizar e restaurar fatos sendo trazido por
meio deles uma memria histrica - de um lugar e de uma gente. Por meio das
imagens lanadas, vai partilhando das sensaes e pontuando saudades e tambm
um amor incondicional por sua terra. Embora esse sentimento no a deixe esquecer
as injustias sofridas pelos mais humildes, com os quais estabelece laos afetivos
profundos, irmanando-se com eles.
A rememorao em Proust seria, segundo Benjamin, a protagonista
da histria, em que personagens e seus costumes surgem como instrumentos para
dar suporte aventura da rememorao, ou seja, esta torna-se o personagem da
histria. O tecido da memria ser a experincia a ser representada, eixo em torno
do qual a narrativa se estrutura, como observa Candido ratificando Benjamin no que
diz respeito ao uso das mincias em Proust.
Por que alm de outras funes, o uso do pormenor em Proust:
resulta do arranjo e qualificao dos elementos particulares que no texto, garantem
a formao do seu sentido (CANDIDO, 1993, p.120). No de se estranhar, ento,
as oitenta pginas de que se utiliza para descrever o simples mergulho de um
bolinho numa xcara de ch.
Nessa literatura que retoma o passado, os sentidos servem como
mote para dar nfase s rememoraes e, por meio deles, trazer para a escritura
vestgios de um tempo outro. medida que Cora Coralina descreve a sensao
experimentada, tambm termina por partilhar, com o leitor, os sentimentos
suscitados pelas lembranas: os sabores das comidas tpicas de sua terra, os
cheiros suaves das iguarias ou os malcheirosos dos becos abandonados,
igualmente a viso de elementos da natureza e o cotidiano de sua gente, ou os sons
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43 que embalaram parte da vida. Com isso, a textura dos caminhos trilhados
redimensionada pela memria e transformada em material de sua escritura.
No poema Velho sobrado, do livro Poemas dos Becos de Gois e
Estrias mais, (1985), fica ntido o uso dos sentidos para recompor uma poca e
transmitir as emoes um dia vivenciadas. vista do casaro em runa, h aluso
queda de um sistema social e, medida que descreve as condies em que se
encontra a casa, estabelece um paralelo com a sociedade em decadncia nesse
momento histrico:
Bem que podia ser conservado, bem que devia ser retocado, to alto to nobre-senhorial. O sobrado do Vieiras cai aos pedaos, abandonado. Parede hoje. Parede amanh Calia telhas e pedras Se amontoando com estrondo. Famlias alarmadas se mudando. Assustados passantes e vizinhos. Aos poucos, a fortaleza desabando (1985, p.96).
Essa estrofe vem impregnada de um olhar que contm um misto de
tristeza e dor, sentimentos enfatizados pelo modo como os versos esto
acomodados havendo alternncia nos tempos verbais, numa demonstrao de que
a ao do tempo tratou de operar mudanas no casaro.
De inicio as repeties anafricas bem que devia ser conservados e
bem que devia ser retocados, seguidos por verbos no futuro do pretrito traduz o
fastio diante do presente ( casaro em runas) e o desejo (bem que podia) daquilo
que no se realizou (a conservao.) Ser a partir destes trs dados dois dos
quais exprimem sentimento e o ltimo uma constatao, que o poema se construir.
O olhar do eu lrico volta ao passado e traz uma lembrana carregada
de nostalgia, presente nos versos to nobre, to senhoril em que est implcito o
verbo no pretrito era como se com um olhar saudoso desejasse e pudesse
trazer a suntuosidade da construo e tambm de uma poca.
Ao voltar o olhar para o presente como se o eu lrico sasse de seus
devaneios passa a ver as reais condies do local, em que a frase cai aos
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44 pedaos com o verbo no tempo presente marca essa volta realidade. Partindo da,
o campo semntico evidencia a completa degradao do local, calia, telhas e
pedras reforada pela expresso a fortaleza desabando.
O olhar lrico em tal poema to minucioso que possibilita ver a
imagem do sobrado e acompanhar a decadncia e seu processo de decomposio
permanente, imagem esta dada pelo aspecto descritivo do poema; descrio
completamente distinta da descrio num texto narrativo, uma vez que a poesia
descritiva (...) vlida, quando transcende um inventrio uma nomenclatura de
seres, coisas e eventos, quando utiliza a descrio como suporte do universo
simblico do poema (AGUIAR E SILVA, 1983, p. 585).
Em Velho Sobrado, percebe-se na construo do poema que h
estreita aproximao entre elementos da descrio e o estado de esprito do eu
lrico, como se ele estivesse desmanchando-se junto com o casaro, assim os
elementos descritivos (descrio da paisagem exterior, as paredes que vo
cedendo, as telhas as pedras e a calia) oferecem mais do que uma viso plstica
da paisagem, mas um estado de alma marcado pela sensao de decadncia e
impotncia.
Havendo uma conscincia por parte do eu lrico de no ser apenas
uma casa a ser demolida, mas sobretudo parte de si, juntamente com o
conhecimento de toda uma gerao, pois estas construes constituem-s
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