um viés constitutivo do sujeito na terapia de linguagem com uma
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS MESTRADO EM LETRAS
Um viés constitutivo do sujeito na terapia de linguagem com uma criança autista
Dissertação apresentada à Pós-Graduação em Letras da UFPB, sob a orientação da profa. Dra. Marianne Carvalho Bezerra Cavalcante, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Letras.
JOÃO PESSOA
2006
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Um viés constitutivo do sujeito na terapia de linguagem com uma criança autista
Juliana Costa Maia
JOÃO PESSOA
2006
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MESTRADO EM LETRAS
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Este estudo é dedicado a minha tia, Norma Costa, exemplo de vida.
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Agradecimentos especiais
Agradeço à fonoaudióloga Andréa Coelho que, mesmo sem me conhecer,
acreditou na minha idéia, aceitou o meu estudo e partilhou comigo momentos
particulares de uma terapia muito bem sucedida que acontece já há alguns anos.
Pela segurança que tem em seu trabalho e pelo ser humano maravilhoso que é,
Andréa tornou possível que esta dissertação de Mestrado acontecesse fiel ao seu
maior objetivo: o de retratar uma terapia de linguagem com uma criança autista.
Andréa, a você meu profundo reconhecimento e agradecimento.
Agradeço, também, à família de Hugo∗ por ter permitido que as sessões
fonoaudiológicas fossem filmadas, acreditando que este estudo resultaria em algo
positivo para o trabalho em linguagem com autismo. Em especial à mãe de Hugo,
agradeço a compreensão e a sinceridade, por ter partilhado comigo e neste
estudo momentos particulares de sua vida. Sem a compreensão de vocês, este
estudo não teria sido realizado. Muito obrigada!
∗ Nome fictício
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Agradecimentos
A Deus, pelo dom da vida e pelas tantas bênçãos alcançadas. Força a que
recorro nos momentos mais difíceis e, tenho a certeza, responsável pelas minhas maiores alegrias.
Agradeço aos meus pais, Fernando e Leonor, pela união familiar, pelo espaço e incentivo que sempre nos deram em relação aos estudos e por toda a força e carinho. À minha mãe, em particular, agradeço o exemplo de pesquisadora e profissional exemplar.
Aos meus irmãos, Manuela e Tiago agradeço pela torcida, pelo apoio e pelo amor partilhados; é muito importante saber que posso sempre contar com vocês. A Tiago, em particular, agradeço, além do companheirismo, a paciência de ter organizado as tabelas e configurado esta dissertação, valeu!
Agradeço ao Nuno, meu marido e confidente, por ter mais que me “empurrado” para fazer este Mestrado, ter me ouvido e apoiado em todos os momentos e por acreditar que sou capaz de tudo. Agradeço, acima de tudo, pela família linda que estamos construindo juntos, base para que eu consiga caminhar serenamente.
À minha filha Joana, pelo tempo que foi “roubado” das histórias e das brincadeiras, da convivência e das idas ao parque. Você é o grande motivo disto tudo.
A minha filha Inês, que está chegando, agradeço por nos ter proporcionado mais uma alegria e benção em nossas vidas.
Agradeço a minha tia, Tania Chaves, que me acompanhou no dia da entrevista, me tranqüilizando e proporcionando a calma necessária, e por ter lido, cuidadosa e carinhosamente esta dissertação, fazendo as correções gramaticais necessárias. Tia, obrigada por tudo.
Agradeço a Anna Carvalheira, amiga e psicóloga, pela leitura cuidadosa e pela ajuda na estruturação do projeto de Mestrado. A sua ajuda foi o início desse trabalho final, muito obrigada!
Durante a minha especialização, uma professora da UNICAP me disse que deveria fazer o mestrado, independente dos obstáculos, e a sua paixão pela fonoaudiologia e dedicação aos estudos e aos alunos são exemplos eternos para mim. Obrigada, Nadia Azevedo.
Agradeço aos professores do Mestrado, cujos ensinamentos foram de grande valia para o meu estudo. Em especial agradeço às professoras Evangelina Faria e Fátima Melo, que fizeram parte da minha banca de qualificação, pelas contribuições enriquecedoras e pelo incentivo que me deram.
À Marianne Cavalcante, minha orientadora, que leu o meu projeto numa fase muito inicial e aceitou me orientar. O apoio que me foi dado desde antes do processo de seleção foi fundamental para que este sonho se tornasse numa dissertação. Pela sua acolhida, pela sua leitura cuidadosa, pelos momentos produtivos de orientação, pelo convívio prazeroso, muito obrigada Marianne.
Às amigas e amigos que conheci durante o Mestrado, agradeço a convivência harmoniosa. Às amigas e fonoaudiólogas, Janaina Sampaio e Iana Carvalho, pela convivência próxima durante estes dois anos, pela amizade partilhada durante as disciplinas de mestrado e durante as tantas viagens Recife – João Pessoa, trocando uma conversa boa e partilhando força e alegria que tornaram o tempo de mestrado tão mais rápido e fácil. A Jana, em particular,
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agradeço pela força e pela ajuda dadas durante as diversas disciplinas que cursamos juntas, por sempre me lembrar das datas importantes e dos prazos a serem cumpridos. A essas duas grandes amigas agradeço, mais que tudo, por uma amizade que, espero, nos acompanhe por toda a vida.
Às amigas e fonoaudiólogas Wilma Pastor e Renata Lima, agradeço os momentos que partilhamos juntas, as trocas importantes durante as disciplinas de mestrado e pela amizade.
À amiga e fonoaudióloga Eliza Nóbrega, pela força dada desde o momento da seleção, pelo carinho com que sempre nos recebeu em sua casa, pelo sorriso franco, alegria e otimismo que tanto ajudam nos momentos mais necessários.
À amiga Sandra Roque, pela experiência de vida partilhada, exemplo de força e garra, pela amizade sincera e pela acolhida calorosa em João Pessoa.
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“O autismo não é algo que uma pessoa tenha, ou uma concha na qual ela esteja presa. Não há nenhuma criança normal escondida por trás do autismo. O Autismo é um jeito de ser, é pervasivo; colore toda a experiência, toda sensação, percepção, pensamento, emoção e encontro, todos os aspectos da existência.Não é possível separar o autismo da pessoa. E se o fosse, a pessoa que você deixaria não seria a mesma com a qual você começou. Os autistas são estrangeiros em quaisquer sociedades.”
(Jim Sinclair, 1993)
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SUMÁRIO
Introdução I. Fundamentação Teórica 1.1. Teoria Psicolingüística e Aquisição de Linguagem 1.2. O lugar dos Estudos em Aquisição de Linguagem na
Linguística
1.3. O quadro autístico: da patologia ao sujeito 1.3.1. A linguagem do autista: lugar de falta? 1.3.2. A linguagem do autista: o que apresenta? 1.3.2.1. Gesto e Fala II. Método III. Apresentação e análise dos dados IV. Considerações Finais V. Referências Bibliográficas Anexos: Termo de Consentimento e Livre Esclarecido e Parecer do
Comitê de Ética em Pesquisa da UFPB.
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EXAMINADORES
_______________________________________________ Profª Drª Marianne Carvalho Bezerra Cavalcante (Orientadora) __________________________________________________ Profª Drª Evangelina Maria Brito de Faria __________________________________________________
Profª Drª Severina Sílvia Ma. O. Ferreira
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Resumo
Abandonando rótulos e noções pré-estabelecidas sobre características marcantes do quadro autístico, particularmente no que diz respeito à linguagem, esta dissertação tem como objetivo destacar uma criança autista como sujeito da fala. Como fundamentação teórica foram utilizados os estudos da lingüista De Lemos e colaboradoras, a fim de mostrar a linguagem como constituinte do sujeito, bem como autores tradicionais da área do autismo, como Kanner, Leboyer, entre outros. É um estudo de caráter qualitativo, observacional, e tem como participantes um menino de 07 anos de idade, com o diagnóstico fechado de autismo, e uma fonoaudióloga. As sessões filmadas ocorreram entre agosto de 2005 e maio de 2006 em um consultório particular da cidade do Recife / PE; o corpus da dissertação são recortes das transcrições destas sessões. É defendida a idéia de língua como constituinte do sujeito, com estrutura que envolve o sujeito que fala, as normas e o outro/interlocutor; sendo esses 3 constituintes indissociáveis e ocupando, na estrutura da linguagem, lugar de igual importância. Partindo das análises das transcrições das sessões fonoaudiológicas, a linguagem da criança autista é destacada como funcional e comunicativa e através da qual o sujeito se mostra e ocupa o seu lugar de falante. Assim concluí-se que uma terapia de linguagem que aceite e interprete a fala tantas vezes enigmática da criança autista pode ser a porta da entrada para este sujeito na linguagem.
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Abstract
Leaving labels and pre-established knowledge about the main autistic characteristics, specially in what concerns language, this dissertation aims to show na autistic child as a language individual. As theorethical fundamentation, the studies of the linguist De Lemos and colaborators were used, in order to show the language as constituent of the individual, as well as tradicional authors from the autism area, such as Kanner, Leboyer, among others. This study has a qualitative and observational character and as participants a seven-year old boy diagnosed as autistic and a speech-therapist. The therapies sessions were filmed from August / 2005 to May / 2006 in a private clinic in the city of Recife. The “corpus” of this work are transcripted parts of these sessions. It is defended the idea of language as constituent of the individual with a structure composed by the person that speaks, the rules and the other/interlocutor; being these 3 components indissociated and occupying, in the structure of language, the same importance. Using the transcriptions from the speech therapy sessions, the autistic child´s language is pointed out as being functional and communicative. On that, the individual shows itself and ocuppies his place as a speaker. Thus, it is concluded that a language therapy that accepts and interpretates the autistic child´s talk, so many times considered an enigma, may be the entry door for this individual into language.
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Introdução
A expressão ‘autismo infantil precoce’ foi utilizada, inicialmente, em 1943
por Leo Kanner, um psiquiatra austríaco que descreveu um grupo de onze
crianças com um padrão de comportamento que incluía: ausência de contato
social, de fala ou fala sem função comunicativa, interesse e habilidade no
manuseio de objetos e boa memória (ELLIS, 1996). Desde então, o tema tem sido
estudado por diferentes disciplinas e desperta o interesse de diversos
profissionais (CAVALCANTI & ROCHA, 2001).
A descrição do autismo, com suas características, prevalência, incidência,
e demais particularidades se dá, sobretudo, na literatura da área médica. De tal
forma que o autismo tende a ser relatado como um quadro patológico com
implicações severas nas áreas da interação social, linguagem e comportamento.
Com o intuito de descrever o autismo de modo mais amplo, este estudo
trará descrições das diversas áreas que contemplam o tema, independente de
haver, ou não, concordância teórica, partindo da literatura tradicional na área – a
literatura médica – até chegar a discussões recentes no campo de linguagem.
Uma das características mais notáveis do autismo é a limitação na
interação social. Em geral, as crianças autistas não respondem quando são
chamadas, evitam o contato visual e não demonstram reação às emoções de
outras pessoas, como se fossem “indiferentes” a tais manifestações (BERNARD-
OPTIZ, 1982).
Crianças com autismo em geral mantêm-se, durante muito tempo,
envolvidas em comportamentos repetitivos ou em comportamentos auto-
agressivos. A reação aos sons e aos estímulos táteis também foge ao padrão,
podendo a criança autista reagir negativamente a um abraço, a uma tentativa de
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aproximação física, mesmo que seja por parte de pessoas próximas a ela, como o
seu pai ou a sua mãe (LEBOYER,2003).
Comumente, a linguagem da criança autista é tida como
descontextualizada e sem intuito comunicativo, de modo que tem a sua fala como
mera repetição da fala do outro e é excluída do processo de interação pelo
discurso.
Ellis (1996) caracteriza a linguagem dessas crianças como sendo
inadequada para a comunicação, podendo haver ecolalia1, gramática imatura,
dificuldade na compreensão e atraso no seu desenvolvimento.
Gauderer (1987) refere, para a criança autista, atraso ou ausência de
linguagem, ritmo imaturo da fala e uso de palavras descontextualizadas.
De acordo com Leboyer (2003), a comunicação verbal e não verbal do
autista é comprometida. Segundo o autor, grande parte dos autistas não
desenvolve a linguagem e quando o fazem é uma linguagem marcada pela
ecolalia, inversão pronominal, ritmo “patológico” e ausência de intenção
comunicativa. Ainda segundo Leboyer (op.cit), o autista é incapaz de
compreender o uso de gestos no processo de comunicação e, por isso, sua
comunicação gestual é inexistente.
Como se vê, o autismo é retratado como um quadro limitador e de sérias
implicações e o autista, consequentemente, como um sujeito à margem das
relações sociais, que não percebe nem interage com o outro e que vive em um
“mundo próprio”.
Diante do quadro limitador a que está associado o termo autismo e
considerando a importância que as alterações de linguagem têm para o
1 Repetição de palavras ou frases
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diagnóstico e prognóstico deste quadro, um estudo que associe a linguagem do
autista a um sujeito da fala (e não a um sujeito “vazio”) pode contribuir para que o
autista perca o lugar de “não falante”, “concha vazia” ou “buraco negro”, e assuma
o seu papel de autor do discurso. Assim, este estudo tem como objetivo mostrar
uma linguagem diferente da que é tradicionalmente atribuída ao autista.
Defendendo a hipótese de que se o fonoaudiólogo se utilizar da
perspectiva de linguagem proposta por De Lemos: uma linguagem que tem como
marco seu caráter constitutivo, uma linguagem constituída por três pólos
igualmente “importantes” para a formação da estrutura lingüística: o pólo do
sujeito (da fala), do outro (daquele que ouve) e o pólo da língua (estrutura),
favorecerá a entrada do sujeito no diálogo. O terapeuta de linguagem passará a
trabalhar então numa estrutura de língua que faz dele um participante que está
imbricado numa noção maior de língua, não podendo dela ser dissociado, ao
mesmo tempo em que é co-adjuvante para que o sujeito (paciente) se estruture e
se coloque como autor da sua fala.
Desta forma, não temos mais o terapeuta de linguagem que “ensina” o seu
paciente a falar, mas, sim, um terapeuta que está, juntamente com o seu
paciente, em uma estrutura de língua na qual deve surgir o sujeito da fala e ao
mesmo tempo, deve acontecer a movimentação deste sujeito na língua enquanto
se constitui como tal.
Assim, o terapeuta assume a posição de “intérprete” da língua, e aqui se
usa o termo intérprete no sentido proposto por Surreaux (2005: 171): “a
interpretação tem o objetivo de alinhavar uma possibilidade de sentido no
movimento dos dizeres entre paciente e terapeuta”, dando significado aos
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enunciados da criança, e, provavelmente, permitindo que a criança se coloque no
e pelo discurso, sendo parte efetiva do processo dialógico.
Este estudo surge da necessidade e inquietação profissional de se colocar
o autista enquanto sujeito ativo e inserido no mundo da linguagem; surge da
necessidade de se estudar a díade atribuindo a ambos (terapeuta e criança) a
mesma importância constitutiva para a situação de interação. Ao invés de apenas
descrever as singularidades lingüísticas apresentadas pelo autista, sem negar
que existem, nosso objetivo é mostrar uma linguagem que é funcional e que,
como em qualquer processo de aquisição de linguagem, precisa do outro /
interlocutor para acontecer.
Este trabalho apresenta seu primeiro capítulo de fundamentação teórica
dividido em três partes: na primeira é abordada a Psicolingüística e os estudos em
Aquisição de Linguagem, situando o surgimento da psicolingüística e as correntes
que dominaram o campo; na segunda discute-se a relação da Aquisição de
Linguagem e o interacionismo na Lingüística, apresentando os estudos da
lingüista brasileira Cláudia de Lemos e colaboradoras e a noção de linguagem
enquanto constituinte do sujeito; na terceira e última, é abordado o quadro
autístico, com um breve histórico dos estudos sobre o tema, bem como suas
características, sinais e sintomas, seguido de dois sub-tópicos onde são
apresentadas concepções da literatura sobre a falta de linguagem do autista e
num outro, o que esta linguagem autística apresenta. Também será brevemente
abordado o tema da gestualidade do autista, contemplando a idéia defendida aqui
de gesto enquanto linguagem, fazendo uso de recortes de sessões terapêuticas
transcritas com esta finalidade.
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O segundo capítulo, o da Metodologia, apresentará os procedimentos
metodológicos adotados para a execução deste estudo.
Num terceiro capítulo, apresentação e análise dos dados, de cunho
analítico, serão mostrados recortes de transcrições de sessões fonoaudiológicas
envolvendo uma terapeuta e uma criança autista de 07 anos de idade, ambos da
cidade do Recife. As filmagens foram feitas em um consultório particular e
ocorreram durante 09 meses, num intervalo de, aproximadamente, 20 dias entre
as filmagens, totalizando 12 sessões filmadas e transcritas na íntegra, das quais
serão utilizados alguns recortes para ilustração e posterior análise dos dados.
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I. Fundamentação Teórica
1.1. Teoria psicolingüística e aquisição de linguagem
A literatura mostra que o processo de aquisição de linguagem pelo qual a
criança passa desperta o interesse de estudiosos há muito tempo, embora
estudos sistemáticos na área sejam relativamente recentes (ALBANO,1999;
SCARPA,2001).
Nos séculos XVIII e XIX passa a haver, na Europa, um interesse crescente
pela criança no sentido de que esta deixa de ser vista como um “adulto em
miniatura” e passa a ser vista como um sujeito em desenvolvimento. Em
conseqüência deste despertar para o desenvolvimento infantil, a Psicologia do
Desenvolvimento ganha lugar de destaque e respeito e a linguagem infantil passa
também a ser observada (ALBANO, 1999).
No início do século XIX, os estudos referentes à aquisição de linguagem
eram feitos, majoritariamente, pelos pesquisadores chamados “diaristas”, ou seja,
pais que acompanhavam e descreviam o processo de desenvolvimento da
linguagem de seus filhos em um contexto espontâneo, e ao longo dos anos.
(SCARPA, 2001).
Os estudos em aquisição encaixam-se no campo da psicolingüística, uma
ciência que surge de forma muito particular, em 1954, num seminário elaborado
por psicólogos e lingüistas pela necessidade de uma disciplina que englobasse a
lingüística estrutural, a teoria da aprendizagem e a teoria da comunicação. Pela
primeira vez surge uma disciplina com o intuito de responder às necessidades dos
pesquisadores, mais especificamente, dos da área da psicologia da
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aprendizagem, sendo, por isso, considerada como uma subárea da psicologia
durante algum tempo (GUIMARÃES LEMOS, 2002).
A demanda vinha da psicologia, como coloca Guimarães Lemos:
“(...) parece que o esforço de criar a psicolingüística teve origem num ponto de ruptura do discurso da psicologia, à medida que ele parecia não poder mais fazer frente às exigências de cientificidade sem modificar uma posição empirista.” (GUIMARÃES LEMOS, 2002, p:67).
Até o fim da década de 50, a teoria que prevalecia nos estudos em
aquisição de linguagem era a behaviorista, que tomava a língua como
comportamento aprendido através do estímulo recebido do meio. Skinner,
psicólogo e representante do behaviorismo, enquadra o comportamento verbal
nos mecanismos estímulo – resposta – reforço, que seriam a base do
comportamento. (SCARPA, 2001). Nesta concepção, a criança não tem um lugar
de destaque, é vista apenas como “menos preparada” para a linguagem do que
um adulto. (FARIA, 2002).
Segundo Guimarães Lemos (2002), o objeto da psicolingüística é o
“language behaviour” que seria “produzido pelo apagamento da ordem lingüística
cuja alteridade se reconheceu num momento imediatamente anterior, para fazer
então da linguagem um comportamento entre outros” (GUIMARÃES LEMOS,
2002, p.70). Ainda segundo a autora, a psicolingüística, neste momento, não se
detinha nos problemas da aquisição, mas sim em
“questões como a realidade psicológica da gramática, comportamento gramatical, repertório lingüístico, etc. Na verdade, parece que os estudos em aquisição de linguagem não sofreram uma modificação essencial e seguiram na orientação que já existia anteriormente – que consistia numa espécie de quadro de desenvolvimento, em que o principal era registrar uma séria de marcos no desenvolvimento lingüístico (...).” (GUIMARÃES LEMOS, 2002, pp. 71,72).
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A linguagem, tal como qualquer outra atividade mental, era tomada como
uma cadeia de estímulos e respostas e os estudos nesta área buscavam apenas
confirmar a existência de seqüências de estímulo-resposta no processo de
aprendizagem de uma língua (ALBANO, 1999). Ou seja, cabia aos pesquisadores
em aquisição mostrar a língua como um comportamento aprendido em
conseqüência de estímulos repetidos. Todo o processo de aquisição poderia ser
observável como mais um aprendizado de comportamento.
Em 1959, ocorre uma modificação do viés que norteia os estudos em
aquisição. O lingüista Noam Chomsky escreve uma resenha sobre o livro
Comportamento Verbal, de autoria do psicólogo Skinner, na qual lança a idéia de
língua como capacidade inata e comum aos seres humanos. Para Chomsky, o ser
humano nasce dotado de um mecanismo próprio para a linguagem que será
deflagrado pelo input.
Há, segundo Faria (2002), uma conversão imediata ao discurso de
Chomsky, e o behaviorismo perde espaço para o inatismo. Aqui, já não é mais a
psicologia que domina a psicolingüística, mas sim a lingüística que domina a área.
“Com a adesão a Chomsky, a linguagem vai passar de comportamento a saber e essa substituição torna obsoleta e demanda de um instrumental analítico descritivo capaz de fundamentar a análise do comportamento verbal, pois este passa a ser apenas a manifestação desse saber.” (LIER - DE VITTO, 1995, p. 23).
O argumento de Chomsky contra a teoria behaviorista de Skinner era que a
criança aprende, num curto espaço de tempo, uma língua que é mais complexa e
completa do que aquela que ouve; portanto, teria de haver um mecanismo inato
da linguagem que permitisse à criança desenvolver a linguagem da forma que a
faz. (SCARPA, 2001).
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Ficou conhecida como “Problema de Platão” a impossibilidade que
Chomsky vê na linguagem como comportamento aprendido devido à pobreza e
limitação de input que é recebido pela criança (FARIA, 2002).
Chomsky afirma que usamos estruturas complexas para falar e isso só é
possível por já nascermos dotados de tais estruturas. Segundo ele, a teoria
Skinneriana, ou qualquer outra teoria da aprendizagem, não é capaz de explicar o
processo pelo qual a criança passa nesta suposta aprendizagem da língua
(ALBANO, 1999).
Chomsky refere-se mesmo a um mecanismo LAD (Language Acquisition
Device) que seria inato e que permitiria à criança o domínio de sua língua
materna, de forma rápida e fácil.
Com Chomsky, a língua perde o seu caráter de comportamento aprendido
e passa a ser algo inato, natural à espécie humana. Para ele, toda criança já
nasce dotada de uma Gramática Universal (GU) que tem princípios universais
referentes à linguagem e parâmetros que irão assumir seu valor quando em
contato com a língua materna (SCARPA, 2001).
Neste momento, com a teoria inatista, os psicolingüistas se ocupam em
escrever uma gramática da criança e de dar conta da temporalidade implicada no
trajeto que a criança percorre entre o não falar e o domínio da língua, partindo da
noção de universais lingüísticos presentes na capacidade de linguagem e
considerando a aquisição de linguagem como instantânea. (FARIA, 2002).
A linguagem infantil seria a prova de que a língua é um mecanismo inato,
uma vez que existem estruturas lingüísticas muito complexas em uma fase inicial
do desenvolvimento (ALBANO, 1999).
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Por ser algo inato e ter um mecanismo próprio, a aquisição de linguagem,
segundo a teoria Chomskyana, ocorre independentemente do desenvolvimento
cognitivo e padrões comportamentais. Assim, a interação social não tem qualquer
influência na aquisição de linguagem (SCARPA, 2001).
De acordo com a teoria Chomskyana, os indivíduos nascem portadores de
uma Língua Interna (doravante L.I.). Desse modo, a linguagem não seria
adquirida ou desenvolvida, mas ela está no indivíduo graças à capacidade inata
que ele tem de “deflagrar” a L.I. ao entrar em contato com a Língua Externa
(doravante L.E.).
A grande questão e justificativa para os argumentos de Chomsky era que a
criança estava exposta a uma fração distorcida da língua e, no entanto, conseguia
ter um output lingüístico além do input recebido. Logo, as crianças só poderiam
compreender e criar novos enunciados porque nascem dotadas da L.I. que
permite o surgimento da L.E. (FARIA, 2002).
Nos estudos Chomskyanos sobre linguagem, não é dado espaço para a
subjetividade, uma vez que este não é o objetivo de Chomsky. Segundo ele, o
indivíduo nasce apto para falar, exceto em caso de alterações biológicas
limitantes, e o fará independente do seu desenvolvimento emocional e cognitivo.
Em seus estudos, o interesse é pela compreensão da L.I., ou seja, da
competência que o indivíduo tem para a fala, de modo que a L.E. não é enfocada.
Este fato implicou mudanças metodológicas nos estudos aquisicionais uma vez
que a capacidade lingüística do indivíduo deixa de ser mensurada pelos seus
enunciados e passa a ser considerado o raciocínio do sujeito falante. Os estudos
Chomskyanos tentam determinar o conteúdo do sistema de conhecimento do
falante, tido como sistema computacional da capacidade da linguagem.
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O funcionamento da linguagem nesta teoria, baseado em cálculos
matemáticos 2 implica uma idéia clara, homogênea (FARIA, 2002). Assim, há a
exclusão da subjetividade e se pode idealizar conceitos utópicos, tais como: nível
zero de linguagem e nível completo de linguagem e falante ideal.
A criança, na teoria Chomskyana, assume o lugar de um mero portador da
LI e o outro/interlocutor não é sequer considerado, tendo apenas relevância o
input lingüístico para os estudos Chomskyanos.
A teoria de Chomsky, através de cálculos matemáticos, permite a idéia
utópica do falante perfeito, do indivíduo que já nasce portador da L.I., dotado de
uma Gramática Universal (comum a todos os indivíduos) e que, ao entrar em
contato com a L.E., irá, naturalmente, ter linguagem.
No fim da década de 70, estudos surgem em oposição à corrente inatista
da aquisição da linguagem. A partir dos estudos de Jean Piaget, um epistemólogo
suíço, surgiu a idéia de que a linguagem seria um processo cognitivo (SCARPA,
2001).
Piaget, em seus estudos observacionais, chegou à conclusão de que a
inteligência não aumenta em quantidade conforme a idade do indivíduo, mas sim
em qualidade. Para ele, a inteligência de uma criança mais velha seria mais
evoluída do que a de uma criança menor e, assim, seu objeto de estudo passou a
ser as diferenças existentes entre os diversos modos de pensamento (ENDERLE,
1990).
Para as suas pesquisas, Piaget fez uso do método clínico, observando as
crianças de forma sistemática e em situação natural. De acordo com Piaget, o
indivíduo nasce dotado da capacidade de aprendizagem, passando a assimilar os
2 Para maiores informações sobre a teoria matemática de linguagem, proposta por Chomsky, ver Faria, 2002.
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estímulos que recebe do meio, denominados estruturas. Assim, a cada nova
estrutura, há uma nova assimilação, uma reorganização mental das estruturas já
assimiladas junto com a estrutura nova e um conseqüente aumento qualitativo do
conhecimento. Esse processo pode ser chamado de “assimilação, reorganização
e acomodação” e seria ele o responsável pelo desenvolvimento cognitivo e
lingüístico do indivíduo (FERNANDES, 1996).
De acordo com a teoria Piagetiana, a organização cognitiva se dá através
da ação individual porque a ação tem função estruturante (LIER- DE VITTO,
1997).
Para Piaget, a linguagem e o desenvolvimento cognitivo estão
relacionados, sendo o cognitivo fundamental para que se dê o desenvolvimento
da linguagem. Assim, tem-se primeiro o desenvolvimento cognitivo que,
posteriormente, permitirá o desenvolvimento / aprendizado da linguagem.
Se a ação tem função estruturante, ou seja, é a responsável pelo
desenvolvimento cognitivo e isto acontece previamente ao surgimento da
linguagem, então o raciocínio estaria, para os estudos Piagetianos, fora da
linguagem (LIER-DE VITTO, 1997).
Segundo esta teoria, o desenvolvimento estaria dividido em estágios que,
obrigatoriamente, obedecem a uma ordem de acontecimento, indo do mais
primitivo ao mais avançado.
O primeiro e, portanto, mais primitivo dos estágios, é o estágio sensório-
motor, que tem início no nascimento e persiste até o surgimento da linguagem,
aos 02 anos de idade, aproximadamente. Neste estágio, surge a inteligência
reflexiva e a preocupação da criança seria em agir sobre o ambiente, tentando
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executar determinadas ações. Este estágio é fundamental para o surgimento da
atividade simbólica futura.
Para Piaget, é por volta dos 18 meses de idade que a criança supera o
estágio sensório-motor e desenvolve a função simbólica, ou seja, é capaz de
associar um significante a um significado e aí desenvolve a linguagem (SCARPA,
2001).
Por volta dos dois anos de idade, tem início o estágio pré-operacional, que
vai até, aproximadamente, os seis anos de idade e tem como característica
marcante o desenvolvimento da linguagem e da função simbólica. A linguagem
surgiria em conseqüência da função simbólica.
Tendo a linguagem como um sistema simbólico de representações, Piaget
considera a aquisição da linguagem como decorrente da interação que se dá
entre o meio e o organismo. Essa interação também seria responsável pelo
desenvolvimento da inteligência em geral. A criança, com base em suas próprias
experiências, vai desenvolvendo suas faculdades cognitivas e,
consequentemente, a linguagem (SCARPA, 2001).
O estágio das operações concretas, que vai dos seis aos doze anos de
idade, tem como marco mais significativo o surgimento da noção de conservação.
Nesta fase, a criança passa a assimilar e a realizar operações, i.e., age
conscientemente sobre o ambiente.
Após o estágio das operações concretas, é iniciado o estágio das
operações formais, quando o indivíduo passa a refletir sobre as suas ações.
Surge, então, o pensamento que independe da ação, o pensamento abstrato e a
formulação de hipóteses. Assim, pela teoria Piagetiana, o pensamento seria um
processo cognitivo que permite a interação do homem com o ambiente.
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Como pode ser deduzido, o sujeito Piagetiano aparece como o sujeito da
plenitude, embora não nasça “pronto” cognitivamente, consegue o seu
desenvolvimento pleno através de suas ações com o meio.
O meio social surge, para tal sujeito, apenas como o lugar onde ocorrem as
experiências. O outro, assim como o social, não tem grande destaque na teoria
Piagetiana uma vez que, sozinho, o indivíduo é capaz de assimilar uma nova
experiência e reestruturar-se.
Sobre a linguagem, estritamente, o que pode ser observado é que a teoria
Piagetiana dissocia-a da subjetividade quando trata da ecolalia e do monólogo.
Piaget (1993) afirma que a fala ecolálica é mera repetição de uma fala ouvida e
que tal repetição serve apenas para o deleite pessoal da criança. Ele diz que as
repetições acontecem independentemente das ações que a criança esteja
realizando, sendo totalmente externa para a mesma, no sentido de não provocar
qualquer reflexão ou mudança de atitude.
A palavra é tomada, ainda segundo este autor (op.cit.), como auxiliar da
ação que a criança está realizando. Para Piaget, a palavra está associada ao
movimento da criança, como uma espécie de suporte para que ela consiga
desempenhar uma ação motora. E a linguagem seria aprendida por repetição.
Como nos mostra a literatura, estudos posteriores ao de Piaget criticaram a
pouca ênfase dada por ele às interações sociais no processo de desenvolvimento.
Vygotsky surge como um estudioso que incorpora às idéias centrais de
Piaget a importância do social e do outro no processo de desenvolvimento
cognitivo da criança. Para ele, o desenvolvimento cognitivo e da linguagem está
diretamente associado às experiências sociais que a criança vivencia (SCARPA,
2001).
26
Desse modo, ao contrário do que propõe Piaget, a criança não é um ser
individual, que sozinho se estrutura e se desenvolve, mas sim um ser social, que
desde o seu nascimento está exposto e sujeito ao meio social, sendo por ele
influenciado (LIER-DE VITTO,1997).
Os estudos de Vygotsky tinham como objetivo traçar um paralelo entre a
fala e o pensamento no início do desenvolvimento filo e ontogenético. E, segundo
o próprio autor (1987-2005), foi constatado em seus estudos não haver uma
interdependência entre as origens do pensamento e da palavra e, mesmo sem tal
interdependência, se dá o desenvolvimento da consciência humana.
Segundo Vygotsky (1987-2005), não há uma ligação primária entre o
pensamento e a palavra, existindo, assim, um período pré-linguistico do
pensamento e um período pré-intelectual da fala. Na medida em que a fala e o
pensamento evoluem, ocorre uma conexão que se modifica e também se
desenvolve. Porém, como ressalta o autor (op.cit.), não se deve supor fala e
pensamento como processos independentes e isolados que apenas se
influenciam em determinados momentos. Não se pode tomar a fala e o
pensamento como elementos independentes que, quando exteriorizados, formam
o pensamento verbal porque as partes independentes não dão conta do todo que
as constituem. Assim, para o autor, o pensamento verbal poderia ser analisado
por determinadas unidades que comportam o todo, e tais unidades seriam o
significado das palavras.
Como explicado pelo autor:
“o significado de uma palavra representa um amálgama tão estreito do pensamento e da linguagem, que fica difícil dizer se se trata de um fenômeno da fala ou de um fenômeno do pensamento. Uma palavra sem significado é um som vazio; o significado, portanto, é um critério da “palavra”, seu componente indispensável. Pareceria, então, que o significado poderia ser visto como um fenômeno da fala. Mas, do ponto de vista da
27
psicologia, o significado de cada palavra é uma generalização ou um conceito. E como as generalizações e os conceitos são inegavelmente atos de pensamento, podemos considerar o significado como um fenômeno do pensamento. (...) O significado das palavras é um fenômeno do pensamento apenas na medida em que o pensamento ganha o corpo por meio da fala, e só é um fenômeno da fala na medida em que esta é ligada ao pensamento, sendo iluminada por ele. É um fenômeno do pensamento verbal, ou da fala significativa – uma união da palavra e do pensamento.” (Vygotsky, 1987-2005, pp.150,151)
Os estudos realizados por Vygotsky mostraram que, usando o significado
das palavras como unidade de análise, é possível um estudo do desenvolvimento
do pensamento verbal. E desta afirmação surge uma outra, a de que o significado
das palavras evolui; deste modo, uma palavra não está presa nem limitada a um
mesmo significado.
Ainda segundo o autor (op.cit.), da mesma forma que os significados das
palavras mudam, também ocorrem mudanças na relação existente entre o
pensamento e a palavra. Esta relação é considerada como “um processo, um
movimento contínuo de vaivém do pensamento para a palavra e vice-versa”.
Vygotsky afirma, ainda, que o pensamento tem origem nas palavras.
Em relação especificamente à fala, Vygotsky (1987-2005) faz uma
distinção entre a fala interna, com seus aspectos semânticos, e a fala externa, ou
oralizada, com seus aspectos fonéticos. Assim, não há, necessariamente, uma
equivalência entre os aspectos internos e externos da fala, podendo mesmo haver
movimentos diferentes ou opostos entre estes aspectos.
A fala da criança, segundo o autor, é um bom exemplo disto. Quando do
processo de aquisição de linguagem, o que se observa na fala externa é que a
criança começa com uma palavra e daí aumenta o seu vocabulário
progressivamente até formar frases e enunciados completos; contudo,
28
semanticamente, aquela palavra inicial emitida pela criança tem, para ela, um
significado completo, carrega em si todo o enunciado desejado pela criança.
“(...) semanticamente a criança parte do todo, de um complexo significativo, e só mais tarde começa a dominar as unidades semânticas separadas, os significados das palavras, e a dividir o seu pensamento, anteriormente indiferenciado, nessas unidades. Os aspectos semântico e externo da fala seguem direções opostas em seu desenvolvimento – um vai do particular para o geral, da palavra para a frase, e o outro vai do geral para o particular, da frase para a palavra.” (Vygotsky, 1987-2005 p.157).
Em relação à fala egocêntrica, Vygotsky diz que esta fala seria um preparo
ou uma etapa do desenvolvimento da fala interior, a fala egocêntrica apresentada
pela criança desapareceria na idade escolar quando a fala interior começa, então,
a se desenvolver. Assim, a fala individual seria um aprimoramento ou um
desenvolvimento da fala egocêntrica. A criança vai passando de uma atividade de
fala coletiva – fala egocêntrica – para a de uma fala individualizada.
Para Vygotsky (1987-2005), a fala interior não só auxilia no desempenho
das atividades exercidas pela criança, como ajuda na organização e orientação
mental e, conseqüentemente, na superação de obstáculos.
Como vimos pelo exposto, as teorias psicolingüísticas foram, num primeiro
momento, de caráter comportamental, tomando a língua como comportamento
aprendido e a criança como alguém que aprende por repetição, via estímulo –
resposta. Esta fase teve início com Skinner e foi de curta duração, tendo sido logo
substituída pela teoria inatista de Noam Chomsky, que atribuía à linguagem um
caráter inato, biológico e, à criança, o papel de “executor” de uma gramática que
já lhe pertencia.
Num momento posterior à fase inatista, surgem os estudos baseados na
teoria Piagetiana, que tinham como ponto central a idéia de que a capacidade de
29
aprendizagem era inata ao indivíduo e que se dava através da assimilação de
novos conhecimentos.
Vygotsky surge em seguida, diferindo de Piaget, ao considerar o outro
como importante para o processo de aprendizagem e desenvolvimento do ser
humano. Temos não mais um sujeito autônomo e quase autodidata, mas sim um
sujeito social, que aprende e interage com o meio e com o outro.
1.2. O lugar dos estudos em aquisição de linguagem na lingüística
Os estudos aquisicionais tendiam a ser de uma das duas ordens:
comportamentalista ou inatista, isto é: a linguagem ou era vista como um
comportamento aprendido ou como uma dotação biológica, com maior ou menor
ênfase dada ao meio social e ao outro.
Segundo Goldgrub (2001), os estudos aquisicionais começam a fugir dos
prismas comportamentalista e inatista com Bruner, cujo grande interesse é a
descrição da passagem do pré-lingüístico ao lingüístico.
“Por mais questionável que a suposição de tal processo possa parecer a seus críticos, ela indica não obstante um reconhecimento da especificidade da linguagem, pelo menos suficiente tanto para desautorizar a definição que a apresenta enquanto “comportamento igual a qualquer outro”, como para colocar sob suspeita a idéia de uma atualização automática da dotação biológica comum aos indivíduos da espécie” (GOLDGRUB 2001, p.131).
De Lemos (1986) atribuiu a Bruner o mérito de ter sido o primeiro
pesquisador, na área de aquisição de linguagem, a ter a interação como unidade
de análise:
“Bruner foi o pioneiro a usar esquemas de interação como unidade de análise no estudo da aquisição da linguagem. Sua motivação teórica era a crença de que as estruturas lingüísticas refletem as estruturas da ação e atenção humana.” (DE LEMOS, op. cit. p.240)
30
Bruner acreditava haver, entre o pré-lingüístico e a linguagem, uma
continuidade estrutural. Assim, primeiro a criança vivencia situações interacionais
em que há a troca de turnos, a atenção conjunta, a troca de objetos, para, só
então, adquirir a linguagem. A linguagem e a interação são tratados como
fenômenos dissociados em que a aquisição da linguagem está sujeita à interação:
“linguagem e interação são representados como domínios separados de conhecimento para a criança e a construção do conhecimento lingüístico é concebida como dependente da construção no outro domínio.” (DE LEMOS, 1986, p. 241)
Assim, as situações interacionais passam a ser o lugar de análise dos
estudos aquisicionais e surgem os estudos interacionistas.
Por ser a base para a observação dos dados desta dissertação, os estudos
de De Lemos terão maior destaque e tentaremos situar suas idéias e as de suas
colaboradoras tanto do ponto de vista temporal quanto das mudanças que
implicaram nos estudos em aquisição de linguagem.
De Lemos desenvolveu no Brasil estudos em aquisição de linguagem, em
paralelo às pesquisas interacionistas que ocorriam na Europa e nos Estados
Unidos da América, livre de tais influências.
O “projeto em aquisição da linguagem” foi criado em 1976 no
Departamento de Lingüística da UNICAMP, por pesquisadores com o objetivo de
compreender o processo de aquisição da linguagem partindo da individualidade
da fala da criança (GUIMARÃES LEMOS, 2002).
As pesquisas deste grupo partiram de um levantamento sobre as teorias
em aquisição da linguagem existentes, a fim de elaborar novas hipóteses. Assim,
foi possível detectar - e isso representou uma ruptura com os estudos que vinham
sendo realizados - que as unidades de análise de tais estudos faziam da fala da
criança um objeto lingüístico, colocando na fala isolada as categorias da língua.
31
Desta forma, ao perceber que essa unidade de análise não era suficientemente
adequada para os estudos em aquisição de linguagem, De Lemos propôs o
diálogo como lugar de análise (FARIA, 2002).
De Lemos buscou, em teorias já existentes, base para os seus próprios
estudos. Foi buscar em Saussure e Jakobson fundamentos lingüísticos, e em
Lacan aproximações com a psicanálise. Numa releitura de Saussure feita por
Lacan a respeito da Teoria do Valor, De Lemos encontrou um suporte e uma
justificativa para a relação sujeito – língua, no que se refere à não positividade.
Como os teóricos lingüistas Chomsky e Saussure, De Lemos reconheceu a ordem
própria da língua. Contudo, não dissociou da língua o sujeito, fazendo dele fator
crucial no processo de aquisição (FARIA, 2002).
De acordo com Nóbrega (2002), Saussure estabelece e delimita a
diferenciação língua / fala, sendo a primeira um ato social, de natureza concreta e
homogênea e que não pode ser modificada pelo indivíduo, enquanto a fala seria
um ato individual de vontade e inteligência, objeto concreto. O mesmo lingüista
vai além, ao instaurar o que seria a “faculdade da linguagem”, estando a fala
atrelada àquele que executa a faculdade da linguagem.
A teoria do valor, também proposta por Saussure, implica a idéia de que
um significado pode referir-se a diferentes significantes, dependendo do contexto
em que seja usado e este contexto seria:
“um conjunto de outros signos. A realidade do signo lingüístico só existe, pois, em função de todos os outros signos (...) o “valor” é o que faz com que um fragmento acústico torne-se real e concreto, que seja delimitado, fazendo sentido, que se torne, portanto, signo lingüístico.” (DOR, 1992, p.37)
A noção de valor permite inferir que a linguagem é, também, um sistema
estrutural em que “os signos lingüísticos não são somente significativos por seu
32
conteúdo, mas também, e sobretudo, pelas relações de oposição que mantêm
entre si na cadeia falada.” (DOR, 1992, p.38)
Os estudos saussureanos mostram a arbitrariedade do signo e a língua
como um “sistema de valores constituído não por conteúdos ou produtos de uma
vivência mas por diferenças puras.” (DOSSE, 1993, p. 65). Saussure permite uma
reflexão sobre signo e significante. Para ele, o signo lingüístico une um conceito
(significado) a uma imagem acústica (significante), sem se considerar o seu
referente. Ou seja, a língua fechada em si mesma. Para ele, o significado e o
significante são indissociáveis e com igual importância. Contudo, o significante
tem um caráter de presença, enquanto que o significado tem um caráter de
ausência.
Limitando a apenas dois os componentes do signo (significado e
significante), o signo segue dois princípios: a arbitrariedade do signo e o caráter
linear do significante (ARRIVÉ, 1999).
Saussure estabelece, também, uma distinção entre língua e fala. Para ele,
a língua seria o concreto e a fala, o abstrato. Desta forma, a lingüística deveria ter
como objeto de estudo a língua, dissociando-a da fala e do sujeito da fala
(DOSSE, 1993).
De acordo com Saussure (1975), o fundamental da língua é baseado em
relações que se dão no discurso ou fora dele. No discurso, as palavras ditas são
encadeadas de forma linear e para cada palavra escolhida há pelo menos outra
que não foi dita, porque não se pode ter duas palavras num mesmo tempo, num
mesmo lugar do discurso. O encadeamento de, no mínimo, duas palavras, forma
o sintagma:
“(...) Estes se alinham um após outro na cadeia da fala. Tais combinações, que se apóiam na extensão, podem ser chamadas
33
de sintagmas (...) colocado num sintagma, um termo só adquire seu valor porque se opõe ao que o precede ou ao que o segue, ou a ambos.” (SAUSSURE, 1975, p. 142).
A outra forma de relações da língua ocorre fora do discurso e são as
relações associativas. Essas associações se dão no cérebro e constituem,
segundo Saussure (op.cit.), a língua de cada indivíduo. Trata-se da organização,
na memória, de determinada palavra junto a outras com as quais tem algum tipo
de relação.
“A relação sintagmática existe in praesentia; repousa em dois ou mais termos igualmente presentes numa série efetiva. Ao contrário, a relação associativa une termos in absentia numa série mnemônica virtual.” (SAUSSURE, op.cit. p, 143).
De Lemos verificou que Chomsky propõe um mecanismo inato responsável
pela linguagem que justifica o aprendizado pela criança de sua língua materna,
mesmo que o input por ela recebido não seja suficiente para justificar as suas
capacidades lingüísticas.
Ao atribuir à linguagem um mecanismo próprio, Chomsky colocou a língua
como algo particular, com uma ordem própria, que não mais se encaixa no perfil
de língua igual a comportamento, mas, sim, de língua enquanto língua por si só. E
é este aspecto do estudo de Chomsky que foi aproveitado pelo interacionismo no
que diz respeito à ordem própria da língua (GUIMARÃES LEMOS, 2002).
De Lemos (1986) afirma que quando se fala em interacionismo, no campo
da psicologia, está se tratando de
“uma posição epistemológica distinta quer do racionalismo, quer do empirismo, na medida em que assume a interação entre o organismo humano e o ambiente, (...), como matriz de transformações qualitativas desse organismo, capaz, por isso, de explicar a gênese das atividades mentais superiores e do conhecimento.” (DE LEMOS, 1986, p. 231).
34
De acordo com De Lemos (1986), é esta mesma vertente do interacionismo
da psicologia que privilegia a interação criança – adulto que responde pelo título
de interacionismo também nos estudos em aquisição de linguagem. Ainda
segundo a autora, estudos dos mais variados e com posturas igualmente distintas
recebem o título de interacionistas, tendo em comum, essencialmente, “a ênfase
na situação comunicativa “natural” em que a linguagem se apresenta para a
criança.”
Guimarães de Lemos (2002) sugeriu que o interacionismo seria voltado
para a produção metódica da fala da criança, tomando esta fala como objeto
empírico, sem desprezar qualquer dos aspectos desse fenômeno, pois, até então,
características ou particularidades da fala da criança que não pudessem ser
explicadas gramaticalmente eram deixadas de fora dos estudos em aquisição de
linguagem, tomadas mesmo com “horror” ou como provocação às normas da
língua.
De acordo com a autora (op.cit.), o fato de o interacionismo não aceitar a
fala da criança como lugar de análise representou uma decisão metodológica
inédita que rompeu com os estudos tradicionais em aquisição de linguagem. A
fala da criança teria de estar sempre atrelada ao discurso do outro e nunca
tomada como lugar de análise em si mesma. Eis o princípio básico do
interacionismo.
De Lemos, 1995, nos mostra a impossibilidade de dissociar língua,
discurso e falante ao afirmar que:
“a possibilidade de pensar o texto não mais como um nível de estratificação da sentença, mas como domínio em que a língua e o discurso não são mais indissociáveis, do qual, (...) não se pode excluir o falante, cuja relação com a língua está literalmente em jogo em qualquer nível de estratificação.” (DE LEMOS, 1995, p.5)
35
De Lemos (1995) mostra que a concepção de língua trazida pela linguística
é a que contempla a “sentença”3, excluindo da língua o discurso e colocando-o
como algo equivalente ao texto.
A autora ressalta, ainda, que teorias que se propõem a discutir o processo
de desenvolvimento de linguagem tendo como base as noções de língua e
desenvolvimento propostas pela linguística e pela psicologia, respectivamente,
estão fadadas a organizar cronologicamente ou por graus de dificuldade o
processo de aquisição de linguagem, dividindo em etapas ou em ordem
hierárquica uma estrutura única.
Segundo a autora (op.cit.):
“ (...) o modo como se articulam nos estudos de aquisição de linguagem uma teoria sobre a língua, tomada à Linguística, e uma noção de desenvolvimento e/ou aprendizagem ancorada na Psicologia. É essa noção de desenvolvimento/ aprendizagem que acaba impondo à descrição linguística uma ordenação do adquirido/ aprendido com base em seu estatuto (primitivo ou derivado) na teoria linguística.” (DE LEMOS, 1995, p.2)
De Lemos (2000) questiona a noção de desenvolvimento trazida da
psicologia, que dá a idéia de um desenvolvimento de linguagem hierárquico,
como se fosse possível descrever em categorias ou etapas a fala da criança.
Segundo a autora, a aquisição de linguagem deveria ser encarada como um
processo de subjetivação, ao invés de obedecer à noção de desenvolvimento:
“(...) a busca de uma alternativa à noção de desenvolvimento na interpretação do processo de aquisição da linguagem. Busca essa motivada pelo reconhecimento de que as mudanças que a fala da criança dá a ver não se qualificam nem como acúmulo nem como construção de conhecimento.” (DE LEMOS, 2000, p. 4).
A autora afirma que o conceito de estágio, trazido da Psicologia, é
controverso quando associado ao processo de desenvolvimento da linguagem:
3 Aspas da autora
36
“do ponto de vista teórico, há que se levar em conta que, se a língua é um sistema ou se caracteriza minimamente por sua sistematicidade, não é possível pensar nem em sua apropriação parcial nem em uma apreensão dessa sistematicidade em graus sucessivamente menos concretos ou mais abstratos. Do ponto de vista empírico, a noção de estágio de desenvolvimento da linguagem como conhecimento só ganharia evidência empírica se, em um tempo t, esse conhecimento se manifestasse na fala de uma criança e na fala de crianças em processo de aquisição da mesma língua, pelo menos na maioria das vezes em que ele fosse requerido.” (DE LEMOS, 1995, p.7)
A autora continua o texto dizendo não ser possível garantir essa
homogeneidade na fala da criança, de forma que não se pode estabelecer
estágios de desenvolvimento de linguagem. Ainda segundo a autora, a linguagem
da criança se coloca como um enigma para aqueles que a estudam.
De acordo com De Lemos (1995), a criança é “capturada” pelo
funcionamento da língua e inserida numa estrutura composta por ela (a criança),
a língua em funcionamento e pelo outro, que é também “instância de
interpretação”. Assim, falamos de uma estrutura lingüística que tem 03 instâncias:
a língua, o sujeito e o outro. Esta estrutura é a mesma tanto para uma criança em
processo de aquisição quanto para um adulto. Porém, embora também reaja à
fala da criança e à ordem da língua, movendo-se pela linguagem, o adulto detém
um lugar de “saber”, sendo a ele atribuído um papel de “intérprete” desta
linguagem enigmática apresentada pela criança. E desta idéia surge o conceito
central que constitui a sua visão atual sobre o processo de aquisição da língua
pela criança.
Segundo De Lemos (2000), é neste processo de mudanças de posição na
estrutura lingüística que se dá a aquisição de linguagem pela criança.
“as mudanças que qualificam a trajetória da criança de infans a sujeito falante são mudanças de posição nessa estrutura, antinômicas à noção de desenvolvimento.” (DE LEMOS, op.cit.,p.5).
37
Assim, são três as posições que a criança ocupa no percurso de aquisição
de uma língua, posições essas que não são fixas nem hierárquicas, podendo a
criança transitar entre uma e outra (s) numa mesma fala. Ao assumir a segunda
posição, por exemplo, a criança não terá, necessariamente, abandonado a
primeira, e assim sucessivamente (DE LEMOS, 2000).
Além de uma explanação sobre as três posições, traremos exemplos
utilizados pela própria autora (op.cit.) para ilustrar e exemplificar as posições
estudadas.
A primeira posição propõe que a criança não é considerada autora do seu
discurso. A sua fala é uma colagem ou um recorte da fala do outro. E aí, embora
seja correto o seu enunciado, o seu dito é uma colagem da fala alheia. É uma
posição de acerto.
Logo, nesta posição há uma dominância do pólo do outro. Os enunciados
da criança são compostos por fragmentos da fala do outro, que podem aparecer
na fala da criança como uma repetição completa, ou de trechos e recortes, da fala
do adulto. No momento inicial do processo de aquisição, a fala da criança estaria
atrelada como efeito à fala do outro: “é do lugar do outro que ela recebe sua
determinação”, diz Lemos (2002).
Exemplo 1
Contexto: A criança (C) traz para a mãe (M) uma revista semanal
C: é nenê/ o auau M: Auau? Vamos achar o auau? Ó a moça tomando banho. C: ava? eva? M: É, tá lavando o cabelo. Acho que esta revista não tem auau nenhum. C: auau M: Só tem moça, carro, telefone. C: Alô? M: Alô, quem fala, é a Mariana?
38
Ao perguntar à mãe sobre o nenê, a criança não se refere a nenhuma
ilustração da revista, visto que a mãe não conseguiu encontrar nenhum nenê na
revista, mas à situação de olhar a revista com a mãe. Vemos a dominância do
pólo do outro quando a criança evoca, em sua fala, a presença do outro. Ao dizer
a palavra “telefone”, a mãe evoca na criança uma lembrança de algo que não está
ali explícito e a criança responde com o “alô?”, imaginando um outro que fala ao
telefone.
Já na segunda posição, há uma dominância do pólo da língua; o erro não é
mais uma coincidência entre os significantes do outro e os da criança. A criança
mostra-se impermeável nesta posição, não percebendo a sua fala como diferente
da fala do outro, sendo indiferente a possíveis tentativas de correção por parte do
adulto. (DE LEMOS, 1995).
A criança está assujeitada à língua e tenta a ela obedecer, modificando a
sua fala de acordo com o que acredita estar correto na língua, fazendo
generalizações de normas, regras e conceitos adquiridos. Apesar de produzir
enunciados “incorretos”, a criança mostra estar atenta e consciente da língua
existente.
A seguir, um exemplo de um monólogo no berço que ilustra bem o efeito
que a língua provoca na narrativa da criança:
Exemplo 2 (monólogo no berço)
Num fala no meu nome
Num fala no teu nome
Num fala midanoni
Num fala mianomi
Num fala midanomi
Num fala no...nomi
39
Na terceira posição, o pólo dominante é o subjetivo, o outro passa a
exercer uma função de alteridade. A criança passa a perceber a sua fala como
diferente da do outro e tenta moldá-la de modo a agradar ao outro e às normas.
Assim, a fala da criança passa a ser constituída também de pausas, hesitações,
reformulações e auto-correções. É quando a criança se apresenta como
enunciador. Embora possa, ainda, “errar” o enunciado, a criança se corrige e
reestrutura a sua fala, consciente de um possível distanciamento entre a sua fala
e a forma “desejável” de enunciado. (De Lemos, 1995).
Exemplo 3 (criança (C) narrando uma história)
C: Eu e a Aninha quando crescerem que nem (pausa longa)
João falou assim: eu e a Aninha quando cresce,
crescerem...crescererem...querem sê almirante de navio.
Ao perceber a aquisição da linguagem não como fases ou etapas do
desenvolvimento, mas, sim, como uma posição ocupada pela criança numa
estrutura maior (estrutura esta constituída pelos pólos: sujeito, língua e outro),
pode-se redefinir o conceito de “erro” em linguagem e, consequentemente,
repensar o conceito de “patologia” de linguagem.
Assim, a fala isolada da criança perdeu o seu sentido e não pôde
compreender todo o movimento pelo qual a criança estaria passando. No
processo de aquisição da linguagem, o outro, ou seja, o interlocutor, passaria a
ser sujeito ativo, sendo peça fundamental no processo.
Foi constatado, nos estudos de De Lemos (GUIMARÃES LEMOS, 2002),
que a fala da criança, em seu início de construção, não lhe é original, mas, sim,
40
indissociável da fala do outro, mais especificamente, do outro materno. Esses
estudos resultam na idéia de que, em sua fala, a criança cita o outro.
Ao analisar a fala da criança em um espaço dialógico, sempre atrelada à
fala do outro, De Lemos apontou para a significação feita por este sobre a fala da
criança. Não se trata de ter no outro o papel de “professor” da língua, mas, sim,
daquele que irá falar com e pela criança, dando sentido ao seu dito, colocando-o
para circular no discurso, imbuído de um significado.
“(...) é possível tanto reafirmar quanto reconsiderar minha proposta sobre o diálogo como uma unidade de análise do processo de aquisição de linguagem. Reconsiderar (...) a individualidade desse processo, já que dele é parte integrante o outro enquanto instância de funcionamento linguístico-discursivo. Assim definido, o outro não é mais tomado enquanto individualidade (...), passando a ser visto a partir da posição subjetiva, efeito de funcionamento linguístico-discursivo, que lhe permite interpretar a criança. A saber, colocar a criança - sua fala, gesto, olhar, movimento – num texto, ainda que o efeito dessa interpretação não seja previsível e se dê a ver apenas a posteriori – na fala, no gesto, na relação da criança com o “mundo dos objetos”4.” (DE LEMOS, 1995,p.8)
Abandonando a concepção que apresenta a linguagem como simples
forma de expressão, que implica a noção de língua enquanto código que é
transmitido de um locutor para um receptor, sem interferências, com uma
mensagem clara e objetiva que é recebida pelo receptor exatamente da forma
desejada pelo locutor, assume-se aqui uma nova postura e um novo
direcionamento.
Para o pesquisador que estuda a aquisição de linguagem e para o
profissional que atua nesta área clínica e que tem a sua prática influenciada pelos
estudos de De Lemos, o conceito de linguagem envolve, obrigatoriamente, a
noção de outro e de linguagem enquanto constituintes do sujeito. A noção que se
4 Aspas da autora
41
tem de linguagem é de algo que existe antes do sujeito, onde o sujeito está
inserido. Assim, a linguagem da criança é, num primeiro momento, uma colagem
do discurso no qual está inserida, que reflete o outro e sua história de vida.
Tomando para si o que não lhe pertence, e aliás, a ninguém pertence, a criança
se utiliza de algo que já existe para exprimir o que é só dela: os seus desejos e
necessidades. É pela linguagem que o sujeito se coloca e se conhece. Não se
pode esquecer que a criança já é falada mesmo antes de existir, e continua sendo
pela fala tanto dela quanto do outro.
Estando necessariamente atrelada ao conceito de outro, a linguagem
surge e se mostra nunca sozinha, isoladamente, de forma estática, mas sempre
acompanhada do outro, ou como interlocutor presente ou refletido na fala do
sujeito. Nenhuma fala surge do nada, o dito não é novo, já tendo sido falado pelo
outro e ouvido pelo sujeito. Ainda que modificada, há muitos “outros” numa fala.
Esta perspectiva na clínica fonoaudiológica implica que se aceite a fala da
criança como expressão de si mesma e reflexo de toda a sua história e vivência,
de tal ordem que não se considere a fala da criança autista como
descontextualizada, visto que reflete um lugar de enunciação que passa pela
intromissão do outro e, assim, haveria um sentido por trás dessa fala que carece
de interpretação/ significação. O dito precisa ser acolhido, aceito e ressignificado
no espaço discursivo, para que a criança perceba que é dela a autoria de sua fala
e que ela é sujeito do discurso.
Esta idéia de que a língua constitui o sujeito e de que o outro é intérprete /
co-autor da fala, permite um enfoque diferenciado no fazer clínico com linguagem
e isso justifica o nosso interesse em aliar a abordagem estrutural de De Lemos ao
trabalho em linguagem com a criança autista.
42
De Lemos (1999) explora a relação intrínseca entre a língua, o sujeito e o
outro. Para ela, a fala da criança não é inata e deflagrada pelo input, nem é
construída por um sujeito epistêmico que tem a língua como objeto, e tampouco
construída através da interação com o outro, um outro apenas mediador da língua
enquanto objeto. Língua, sujeito e outro não são componentes independentes da
língua. São, ao contrário, indissociáveis estruturalmente. Por isso se pode inferir a
idéia de língua enquanto constituinte do sujeito. Ou seja, é no momento do
diálogo que a linguagem acontece. A reação que o outro demonstra em relação à
fala do sujeito faz com que este se aperceba do seu lugar de falante. Este lugar
pode ser o de um falante que fala e é ouvido ou de um sujeito que fala e que não
é ouvido, compreendido. Ao mesmo tempo em que a fala do sujeito sofre
interferência do outro / interlocutor, ela obedece às normas lingüísticas existentes.
Assim, a afirmação de De Lemos (1995) de que uma fala que não é
interpretada e devolvida em um contexto, fica perdida, sem sentido, como que
“calada” reforça a idéia de língua constituinte do sujeito. Se o sujeito que fala não
é ouvido nem percebido como falante, então a sua fala não se mostrou “eficaz”, o
sujeito que fala não é um sujeito da fala. Essa reflexão pode ser trazida para
tantas falas da criança autista que são deixadas no vazio, no silêncio, por carecer
de significação.
De acordo com Guimarães Lemos (1995), a criança é falada e interpretada
pelo adulto, estabelecendo-se, assim, uma interação que se dá pelo vaivém de
linguagem (mesmo que fragmentos) quando o adulto significa e devolve o
enunciado da criança e esta ressignifica e coloca novamente no discurso o seu
enunciado, que é, ao mesmo tempo, fala do outro e a sua própria fala.
43
Pelo exposto sobre os estudos de De Lemos, é possível observar que o
seu objeto de estudo é a linguagem em processo de aquisição a partir de relações
com teorizações da lingüística e da psicanálise. E embora ela não se proponha a
estudar a linguagem trabalhada na clínica, ou seja, a linguagem “patológica”, é
importante que se tente fazer uma ponte entre esta perspectiva e a terapia
fonoaudiológica em linguagem. Ao trazer para os estudos em aquisição as visões
da lingüística e da psicanálise, De Lemos permite um enfoque diferenciado da
linguagem: a constituição do sujeito (nas três posições) e sua movimentação pela
linguagem enquanto nela se constitui. Talvez seja este o elo que faltava para
aproximar a linguagem do autista do fazer clínico.
Em seguida, será feita uma revisão literária a cerca do autismo, traçando
um quadro geral sobre o tema desde que primeiro abordado, em 1943, até
estudos recentes.
1.3. O quadro autístico: da patologia ao sujeito
O autismo vem sendo estudado há mais de 60 anos e ainda hoje é assunto
ignorado e muitas vezes pouco conhecido. Não há um consenso, na literatura,
sobre a prevalência do autismo, havendo estimativas que variam de 4 : 10.000 e 4
a 15 para 10.000 (PERISSINOTO, 2003).
Presente em todas as raças e classes sociais, o autismo atinge mais
meninos que meninas e manifesta-se até os 30 meses de idade e em graus
variados. (GAUDERER, 1997).
A Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas
Relacionados à Saúde - 10ª Revisão, (CID.10), proposta pela Organização
44
Mundial de Saúde, conceitua o autismo como um transtorno global do
desenvolvimento, pertencente a um:
“Grupo de transtornos caracterizados por alterações qualitativas das interações sociais recíprocas e modalidades de comunicação e por um repertório de interesses e atividades restrito, estereotipado e repetitivo. Estas anomalias qualitativas constituem uma característica global do funcionamento do sujeito, em todas as ocasiões.”
Em específico sobre o autismo, é colocado como:
“Transtorno global do desenvolvimento caracterizado por a) um desenvolvimento anormal ou alterado, manifestado antes da idade de três anos, e b) apresentando uma perturbação característica do funcionamento em cada um dos três domínios seguintes: interações sociais, comunicação, comportamento focalizado e repetitivo. Além disso, o transtorno se acompanha comumente de numerosas outras manifestações inespecíficas, por exemplo fobias, perturbações de sono ou da alimentação, crises de birra ou agressividade (auto-agressividade).”
(www.datasus.gov.br/cid10)
Segundo Cavalcanti e Rocha (2001), o termo Autismo Infantil Precoce foi
utilizado por Leo Kanner, um psiquiatra infantil, em 1943, quando descreveu um
grupo de 11 crianças que partilhavam comportamentos fora do padrão de
normalidade. Kanner descreveu essas crianças como tendo dificuldades de
relacionamento interpessoal, alterações na linguagem oral pela ausência ou
padrão anormal de fala, grande interesse e habilidade no manuseio de objetos,
comportamentos repetitivos e relutância em aceitar alterações na rotina diária.
Para ele, o distúrbio fundamental mais surpreendente seria a incapacidade das
crianças autistas em estabelecer relações normais5 com as pessoas e
situações.
Em seu artigo, datado de 1943, Kanner observa e descreve um grupo de
crianças autistas e relata que, de modo geral, os pais referem que a alteração no
5 Grifo nosso
45
comportamento e nas relações apresentadas pela criança ocorre desde tenra
idade. Neste estudo, Kanner afirma que elas são comumente classificadas como
crianças retraídas, auto-suficientes e que não exigiam ou solicitavam a presença
do outro, como se bastassem a si mesmas.
Tais relatos, feitos há mais de 50 anos, ainda hoje constituem a maior parte
dos relatos de pais de autistas: via de regra, estas crianças são descritas como
“calmas”, quietas, que choram pouco e não antecipam o comportamento de
serem pegas ao colo (PERISSINOTO, 2003).
Segundo Kanner, há dificuldades em relação à alimentação, em
conseqüência de um possível desejo de exclusão do mundo e da sociedade. O
autor considera que a alimentação seria a primeira intrusão oriunda do exterior e,
por se tratar de algo que vem de fora, seria tão difícil de aceitar por parte do
autista. Outra dificuldade mencionada é em relação a sons altos e a objetos em
movimentos, que desencadeiam reações de horror. Kanner afirma que a criança
não tem medo do barulho ou dos objetos em movimento, mas sim da interferência
que tais coisas podem representar em seu mundo, como se o ruído forte ou o
objeto em movimento fossem, necessariamente, interferir em suas vidas. Ele
ressalta que a criança autista pode produzir um ruído forte ou movimentar objetos,
repetidamente, e conforme sua vontade, sem que isso lhe cause qualquer
transtorno (KANNER, 1943).
O autor trata ainda dos movimentos repetitivos e salienta que tais
movimentos, sons emitidos ou ruídos produzidos, são em geral monótonos, bem
como suas falas. E que isso se deve à necessidade que a criança tem de
permanência. Estas características referem-se à mania de repetição e aversão
que a criança autista tem às mudanças. Qualquer alteração na rotina familiar, ou
46
na disposição dos móveis, ou qualquer outra quebra de linearidade é encarada de
forma traumática pelo autista. Segundo Kanner, o medo de mudança e de
incompletude explicariam a repetição monótona e a limitação na variedade da
atividade espontânea.
A criança autista também mantém um distanciamento em relação a outras
pessoas: desde que não interfira diretamente em sua vida, ela não parece
perceber a presença de outra pessoa. Se um adulto tocar na criança ou em seus
brinquedos, a reação é de raiva contra aquela mão que a tocou ou que alterou, de
alguma forma, a sua rotina. Nesse contexto, ela não costuma expressar sua raiva
contra o adulto, como se a mão deste fosse um membro à parte, dissociado do
adulto (KANNER, 1943).
Esta dinâmica é tão marcadamente operante que, na situação em que
precisa do adulto para conseguir alguma coisa, ela age mecanicamente, como se
manipulasse uma ferramenta: pega na mão de um adulto e utiliza-se dela para
alcançar um objeto muito alto, por exemplo.
Em relação à inteligência, Kanner afirma que essas crianças têm boa
capacidade cognitiva e fisionomia “notavelmente inteligente”. Para corroborar
essa opinião, o autor menciona a boa capacidade de memorização, um
vocabulário vasto para aqueles que adquiriram a linguagem, memória boa para
fatos ocorridos há vários anos, capacidade para decorar poemas e nomes, bem
como para lembrar-se de seqüências complexas.
Para Kanner, a origem de tal síndrome estaria no fato de as crianças serem
filhos de “mães geladeiras” e “pais intelectuais”, sem o devido desejo ou
receptividade em relação aos filhos, o que faria com que a própria criança autista
fosse “vazia” de sentimentos. Essa linha de raciocínio foi, durante muito tempo,
47
defendida pela psicanálise, que colocava as crianças autistas como não tendo
sido idealizadas pelos pais nem recebido, por parte deles, a devida atenção.
Contudo, ainda no mesmo artigo, Kanner continua levantando indagações
quanto à causa do autismo. Ele afirma que no estudo que realizou, raros eram os
pais realmente afetuosos. Porém, devido ao fato de os sintomas autísticos
aparecerem desde tenra idade ele questiona até que ponto as relações parentais
afetam na causa do autismo. Mais adiante, advoga em favor da interferência do
orgânico na causa do autismo. Em suas palavras:
“devemos, portanto, supor que estas crianças vieram ao mundo com uma incapacidade inata de estabelecer o contato afetivo habitual com as pessoas, biologicamente previsto, exatamente como as outras pessoas vêm ao mundo com deficiências físicas ou intelectuais.” (Kanner, 1943, pp. 170).
O relato minucioso feito por Kanner é ainda hoje usado como parâmetro
para os estudos sobre o autismo. As características gerais do autismo e,
especificamente, as características particulares das 11 crianças autistas descritas
por ele, retratam um quadro fiel do autismo. A literatura, ao descrever o fenômeno
do autismo (PERISSINOTO, 2003, LEBOYER,2003), em muito se assemelha à
descrição feita por Kanner. E se, àquela época, a etiologia do autismo era incerta,
tampouco isso foi mudado.
Contudo, é preciso salientar que a forma como se vê o autista está sendo
modificada à medida que há mais consciência das particularidades do ser
humano e maior respeito à infância. Estudos sobre as causas do autismo também
estão evoluindo e apontam, atualmente, para uma mistura entre fatores orgânicos
e ambientais, conforme será visto mais adiante.
Em um estudo feito por Rutter (1981 apud FERNANDES, 1996), as
crianças autistas são consideradas portadoras de um déficit cognitivo específico
48
envolvendo a linguagem e os processos centrais de codificação. Mais tarde, em
1983, ele afirmou que ocorre uma alteração no desenvolvimento cerebral da
criança autista que implica prejuízo global das funções cognitivas.
Perissinoto (2003) afirma que a síndrome autística engloba uma série de
sintomas que não aparecem ao mesmo tempo, nem com a mesma intensidade,
embora todo autista tenha um comprometimento nas áreas de interação social e
comunicação e apresente comportamentos, interesses e atividades
estereotipadas.
Ainda de acordo com a mesma autora, as crianças autistas apresentam,
desde tenra idade, alterações no comportamento social que resultam em
dificuldades para iniciar uma interação social: não dão atenção às pessoas, nem
mantêm contato com outras pessoas, não sorriem, não estabelecem contato
visual. Além disso, têm dificuldades em expressar e reconhecer sentimentos.
Leboyer (2003) descreve uma tétrade clássica dos sintomas autísticos que
se constitui pelas seguintes características: alteração no comportamento social (o
isolamento autístico); distúrbios de comunicações verbais e não-verbais;
necessidade de imutabilidade e idade do surgimento dos sintomas. A primeira
característica mencionada (a alteração no comportamento social) diz respeito a
um padrão de comportamento que isola e diferencia a criança autista dos demais.
Segundo o autor:
“A incapacidade muito acentuada de desenvolver relações interpessoais nos cinco primeiros anos caracteriza-se por uma falta de reação aos outros e de interesse por eles, sem comportamento de apego normal.” (LEBOYER, 2003, p.15).
Os distúrbios de comunicações verbais e não-verbais dizem respeito a
ausência de linguagem ou a uma linguagem marcadamente diferenciada da
linguagem “padrão”, conforme visto na introdução desta dissertação.
49
A terceira característica da tétrade estabelecida por Leboyer (2003) é a
necessidade de imutabilidade apresentada pelo autista, e isso se refere aos
comportamentos que são repetitivos e estereotipados. Esta “mesmice”, segundo o
autor, se manifesta nos movimentos estereotipados que as crianças apresentam,
bem como na dificuldade que os autistas têm em aceitar mudanças mínimas na
rotina (seja na rotina diária ou até mesmo na disposição de móveis e objetos); Os
jogos que os autistas executam também tendem a ser repetitivos e “desprovidos
de qualquer imaginação ou criatividade”. (LEBOYER, op.cit., p.18); há apego
excessivo a determinados objetos, sem desejo de trocá-los por outros; Na fala,
específicamente, a “mesmice” se manifesta nas repetições de enunciados,
perguntas estereotipadas que devem obter sempre as mesmas respostas.
Estudos recentes, como o de Ramanathan et al. (2004), apontam para a
possibilidade de fatores genéticos estarem envolvidos no surgimento do autismo,
sendo reforçados por fatores ambientais. Entretanto, tais estudos são recentes e
carecem de maior aprofundamento científico, como salientam os próprios autores.
Não se pode conceituar o autismo sem se considerar o impacto causado
pelo termo. A idéia que se tem da criança autista é tão ou mais importante que a
própria definição, haja vista que será a idéia que se tem do autismo que irá
nortear a forma como as pessoas lidam com tais crianças.
Cavalcanti e Rocha (2001) mencionam algumas metáforas que fazem parte
do imaginário popular e clínico e que, ainda hoje, refletem nos pais, familiares e
profissionais que lidam com essas crianças. As crianças autistas são tomadas
como “ausentes”, “conchas”, “buracos negros”, são definidas pela falta de
imaginação, de desejo, de interação e de relação com a vida. Tem-se a sensação
de se tratar de uma criança composta apenas de corpo físico, sem sentimentos.
50
É de grande impacto a idéia que se tem sobre o autismo e não há como
isso não interferir na vida dos familiares, das pessoas que lidam com a situação e
dos próprios autistas. Se todo rótulo que se dá a uma criança implica
conseqüências futuras importantes, o rótulo de autista traz em si uma carga muito
forte, um estigma que vai além do conceito da doença, remetendo a uma idéia de
um quadro limitado, impondo ao autista o lugar daquele que não tem o que
oferecer e de quem, consequentemente, não se pode pedir muito.
Pelo exposto, temos que o autismo representa um quadro sintomático
heterogêneo em sua manifestação, embora com semelhança entre os sintomas,
cuja origem permanece por ser descoberta.
1.3.1. A linguagem do autista: lugar de falta?
A linguagem merece destaque especial no quadro clínico do autismo.
Todos os relatos feitos sobre crianças autistas até agora mostram que há,
inevitavelmente, um comprometimento na capacidade de comunicação.
De acordo com Kanner (1943), não há diferença efetiva entre as crianças
autistas que falam e as que não falam. O autor menciona como um fenômeno
gramatical característico do autista a ausência de frases espontâneas e a
repetição ecolálica. Kanner ressalta que a criança autista, após conseguir
formular frases, repete-as incansavelmente e essa repetição pode ser imediata ou
tardia. Salienta, ainda, que a criança autista tem grande dificuldade em aceitar a
palavra “sim” como sinônimo de aquiescência e que, como ocorre com todas as
palavras, pode atribuir a ela um sentido literal.
O pesquisador destaca, ainda, que não há dificuldades com o plural e
conjugações. Mas refere-se à presença de inversão pronominal na fala destas
51
crianças, salientando que esse erro nos pronomes persiste até os seis anos de
idade, quando a criança consegue falar de si mesma na primeira pessoa e dirigir-
se aos outros na segunda.
Kanner (op.cit.) afirma que as crianças autistas têm uma boa capacidade
de memorização e que, em conseqüência disso, frequentemente eram treinadas
pelos pais para repetir coisas sem nexo como, por exemplo, bulas de remédio ou
salmos e passagens bíblicas. A respeito desta prática de memorização, ele
questiona até que ponto esse “entulhamento” cerebral não interfere na
capacidade de linguagem.
Desde antes da idade esperada para o desenvolvimento da linguagem é
possível observar em algumas crianças autistas comportamentos não habituais
que dificultam o processo de comunicação, como ignorar a voz dos pais, não
reagir a sorrisos e brincadeiras, não manter contato visual, não imitar sons nem
usar gestos para a comunicação, como acenar adeus ou apontar, por exemplo
(PERISSINOTO, 2003).
A comunicação é uma das áreas de maior impacto no desenvolvimento do
autista. As maiores dificuldades estariam nos aspectos pragmáticos da
comunicação e na estruturação da narrativa (ibidem).
De acordo com Schwartzman (1994), a linguagem do autista, quando
presente, é freqüentemente descontextualizada: o autista pode repetir várias
vezes um mesmo enunciado, uma pergunta ou mesmo monologar extensamente,
sem qualquer relação com o assunto em pauta ou com o seu interlocutor. É como
se estabelecesse um monólogo e não estivesse na companhia de outra pessoa.
Há, freqüentemente, alterações na produção da fala em relação à altura,
entonação e prosódia.
52
Ainda segundo Schwartzman (1994), de modo geral, a compreensão da
linguagem está afetada pela dificuldade do autista em entender metáforas. Os
autistas apresentam ainda dificuldades relativas aos significados, sendo difícil
associar mais de um significado a uma mesma palavra. Assim, mesmo que
desenvolvam a capacidade de leitura, o texto pode não ser compreendido.
A comunicação não-verbal também está comprometida na criança autista.
Não há presença de mímicas ou gestos, como também não há a capacidade de
compreensão gestual. Quando deseja algo, a criança utiliza-se do adulto como
um instrumento, levando a sua mão ao objeto, sem qualquer comando verbal ou
gestual (LEBOYER, 2003).
Como se vê, o prejuízo na linguagem aparece sempre diretamente
associado ao autismo infantil, seja como fator para diagnóstico, seja ligada à sua
etiologia ou, ainda, relacionada ao prognóstico. A propósito, Gauderer (1997),
menciona que, para o prognóstico, faz-se uma associação entre o QI e o
desenvolvimento da linguagem. Quanto mais cedo a criança desenvolver a
linguagem e quanto maior o número de palavras em seu vocabulário, melhores as
perspectivas de desenvolvimento.
Embora seja apontada como lugar de falta, a linguagem do autista,
provavelmente por suas particularidades marcantes, tem merecido a atenção dos
pesquisadores e isto facilita o surgimento de diferentes olhares sobre a
linguagem, talvez apontando aspectos outros que vão além do patológico. Como
exemplo, temos o estudo de Perissinoto (2003), que mostra a importância do
interlocutor no desenvolvimento da linguagem da criança autista, na medida em
que pode ser um intérprete para contextualizar os sinais de comunicação,
53
assumindo o papel de facilitador que possibilitará à criança uma melhor
compreensão do mundo que a rodeia.
1.3.2. A linguagem do autista: o que apresenta?
“O que é que essas crianças têm? Vocês só falam o que elas não têm!”
(CAMPELLO, T. In: Cavalcante e Rocha, 2001, p.03)
Foi com esta indagação que Cavalcante e Rocha iniciaram o livro intitulado
Autismo e a mesma indagação foi tomada como ponto de partida para o
desenvolvimento deste tópico, que busca, como o próprio título enfatiza, mostrar o
que há na linguagem do autista. Não é de nosso interesse ressaltar a linguagem
atípica em seus aspectos semânticos, até porque isso já foi visto no tópico
anterior, mas, sim, advogar em favor da idéia de que o discurso do autista tem
caráter significativo, e que o sujeito do discurso é autor de sua fala.
Rego (2006), em sua dissertação de Mestrado, se propõe a olhar a ecolalia
– característica marcante da linguagem do autista – de forma diferenciada, indo
além do diagnóstico de “patológico”. A autora nos mostra os movimentos que os
dois sujeitos de sua pesquisa fazem na estrutura da língua, movimentando-se na
e pela linguagem e surgindo como autores de sua fala. Rego também lança
questionamentos sobre a interferência do outro (especificamente o terapeuta) na
linguagem destes sujeitos.
Ferreira (2004) em sua tese mostra como são desenvolvidas as relações
de uma criança autista no dia-a-dia em casa, na clínica e na escola, e questiona
se há, desde a fase inicial da vida desta criança, a troca de papéis na interação,
se a esta criança é atribuído o lugar de falante e/ou de locutor. Em sua análise de
54
dados, a autora mostra que não há: “alternância sucessiva dos lugares de falante
e ouvinte, troca fundamental para início e desenvolvimento de jogos de
linguagem” (FERREIRA, 2004, p. 148).
Em sua hipótese de estudo, Ferreira (op.cit.) levanta a possibilidade do
interlocutor/outro da interação partir sempre do pressuposto de que não haverá
resposta por parte da criança autista e, consequentemente, não se consegue
estabelecer uma interação efetiva com esta criança. Tal hipótese corrobora com
as metáforas existentes na sociedade, mencionadas por Cavalcanti e Rocha
(2001) e que colocam o autista no lugar sempre de falta, de ausência, de
“incapacidade para”. Assim, se já se espera que esta criança não fale e não
compreenda, como permitir que isso aconteça? Ou melhor, se nada se espera da
criança autista, então como ela poderá ocupar outro papel além daquele “vazio”
que lhe é atribuído?
Os estudos que abordam a linguagem do autista como tendo caráter
funcional, comunicativa e de subjetivação são poucos e recentes, de tal forma que
este e o próximo tópico usarão análises de recortes de situações terapêuticas do
sujeito desta pesquisa para tentar alcançar o seu objetivo: o de olhar a linguagem
do autista sob um prisma diferente do “patológico” e, principalmente, de uma
linguagem “sem sujeito”.
Segundo Kendon (1982 apud McNeill,2000), os lingüistas têm, desde
Saussure, definido linguagem quase sempre em termos estruturais e, até os
estudos de língua de sinais, a linguagem precisava ser falada para que fosse
considerada “linguagem”.
Para que se possa olhar além da fala caracterizada como “ecolálica” e
“descontextualizada” (KANNER, 1943; LEBOYER, 2003) e da linguagem gestual
55
como “inexistente” (LEBOYER, 2003), usaremos a perspectiva de linguagem que
não se limita à emissão oral compreensível como um código perfeito, mas, sim,
numa perspectiva mais ampla - a de linguagem como processo de subjetivação
constituída no e pelo sujeito (DE LEMOS, 2000).
Neste sentido buscamos também incluir a gestualidade como constitutiva
da linguagem, considerando gesto e fala como uma unidade significativa
(McNEILL, 2000; KENDON, 1982).
A seguir, mostraremos dois recortes interativos com o intuito de apontar a
comunicação existente por parte da criança autista, embora tal comunicação se
dê dentro das particularidades da criança, fazendo juz à descrição de linguagem
marcadamente atípica e com dificuldades para a interação, ela está presente e
constitui uma realidade que foi o foco de nosso estudo.
Cena Interativa 16: A terapeuta e a criança estão sentadas de frente uma para outra, em volta de uma mesa de atividades, desenhando cada uma em sua folha de papel. Idade: 07 anos e 01 mês T*
Gesto (terapeuta) Fala (terapeuta) Gesto (criança) Fala (criança)
1 vira a sua folha de papel de frente para a criança
ó u qui eu fiz' olha para o papel mostrado pela terapeuta
2 aponta para o desenho no canto direito do papel
a rosa
continua olhando para o papel mostrado pela terapeuta
3 aponta para o desenho de um carro no canto esquerdo do papel
u qui é issu”
6 Consultar tabela de transcrição na página 69
56
4 passa os dedos da mão direita contra a palma da mão esquerda, inclinando o corpo para frente
ééé::
5 sorri, balançando a cabeça em sinal positivo
buni:tu' u qui é issu”
interrompe o movimento estereotipado e olha para a terapeuta
6 entrega o hidrocor à criança
desenha iguáu u meu
7 pega o lápis e começa a desenhar
8 desenha com outro lápis
meu nô:mi: ã:dré:ia
9 passa os dedos da mão direita contra a palma da mão esquerda, inclinando o corpo para frente
ééé::
10 aponta para o desenho da flor
a flô' eu fiz prá você
olha para a terapeuta
11 entrega um lápis à criança
faz uma flô
12 não segura o lápis passa os dedos da mão direita contra a palma da mão esquerda, inclinando o corpo para frente
13 segura o lápis em direção à criança
faz' você sabi fazê uma flô' não sabi”
57
14 passa os dedos da mão direita contra a palma da mão esquerda, inclinando o corpo para frente
u bigu bigu bigu bii:igu ê u bigu bigu bigu bigu bigu bii:igu ê
15 olha para a criança e inclina a cabeça para o lado
bigu' bigu' bigu”
16 interrompe o movimento corporal, olha para a terapeuta
u bigu bigu bigu bii:igu ê
17 olha para a criança
u carru' é u carru o bigu bigu bigu”
18 começa a desenhar
No recorte acima, temos um contexto terapêutico no qual a interação
terapeuta – paciente ocorre independente da fala da criança. O movimento de
estereotipia descrito acima – quando a criança passa as pontas dos dedos da
mão direita contra a palma da mão esquerda – aparece como indicativo de
presença por parte da criança na interação. Desde a primeira sessão gravada, tal
estereotipia foi realizada pela criança em momentos de alegria ou tristeza,
mostrando uma criança inserida num contexto dialógico.
No primeiro turno, ao dizer “ó u qui eu fiz”, a terapeuta tenta obter a
atenção da criança, o que acontece sem maiores dificuldades: a criança olha para
o papel que a terapeuta lhe mostra. Quando indagada sobre o seu desenho, no
turno três, com a pergunta “u qui é issu?”, a criança inicia o movimento
estereotipado com as mãos, inclinando o corpo para frente e dizendo algo
aparentemente sem sentido “ééé”, que demonstra a sua inserção no diálogo. Foi
atribuido à criança o papel de interlocutor / locutor, na medida em que a terapeuta
58
fala com ela e espera dela uma resposta. Esta resposta veio em forma de uma
linguagem atípica, com movimentação corporal e emissão de um som a que não
se pode atribuir, com segurança, um significado. Contudo, marca o lugar daquele
falante em particular.
No turno seis, a terapeuta entrega um hidrocor à criança e solicita:
“desenha iguáu u meu”, em resposta, a criança aceita o hidrocor e começa a
desenhar (turno sete).
No turno oito a terapeuta começa a desenhar o seu próprio nome e a
criança reage com o movimento estereotipado. Aqui cabe-nos questionar o que
impulsionou este movimento da criança. Teria sido uma tentativa de resgatar a
atenção da terapeuta para o seu desenho? Seria um desejo que a terapeuta não
desenhasse seu nome? Ou teria sido apenas uma “estereotipia característica do
autista” sem maiores implicações no contexto? Esta última opção não nos parece
justa, uma vez que tem sido clara a interação terapeuta – criança e a
movimentação feita pela criança neste diálogo.
No turno onze, a terapeuta tenta entregar um hidrocor à criança,
semelhante ao que fez no turno seis, mas, desta vez, a criança não segura o
hidrocor que lhe é oferecido e inicia o movimento estereotipado de passar as
pontas dos dedos da mão direita contra a palma da mão esquerda. No turno
treze, a terapeuta insiste para que a criança desenhe uma flor: “faz' você sabi
fazê uma flô' não sabi”” e a criança apresenta como resposta o enunciado: “o
bigu, bigu, bigu ê”. A terapeuta devolve este mesmo enunciado à criança, em
tom de pergunta: “bigu, bigu, bigu”” e, mais uma vez, a criança insiste no
enunciado. No turno 17 a terapeuta atribui a esta fala um sentido possível,
associando a palavra “bigu” à palavra “carro” ao dizer: u carru' é u carru o bigu
59
bigu bigu” talvez devido ao termo bigu poder ser empregado no sentido de
“carona”, “pegar um bigu”. De qualquer forma, até antes da terapeuta atribuir
sentido ao enunciado da criança, a fala apresentada por Hugo manteve-se
inalterada, constituindo numa fala ecolálica tanto por parte dele como por parte da
terapeuta. Ao dar um significado à fala da criança, a terapeuta mostrou que
mesmo uma fala ecolálica pode ser significada e constitutiva do diálogo. Foi
através desta fala que a terapeuta permitiu que o enunciado circulasse no
discurso, primeiro numa repetição espelhada da fala da criança, modificando
apenas a entonação, depois numa atribuição de sentido. Também é importante
ressaltar que ao solicitar à criança que desenhasse uma flor, a resposta recebida
pela terapeuta foi esta fala “enigmática” e a não aceitação do hidrocor por parte
da criança. Após o sentido dado à esta fala pela terapeuta a criança começa a
desenhar, interrompendo o movimento estereotipado apresentado até então.
As situações interacionais observadas mostram sempre uma criança com
um comportamento atípico, que se assemelha à descrição clínica do autismo,
inclusive com uma fala que poderia ser descrita como descontextualizada e
ecolálica. Contudo, Hugo mostra-se inserido na linguagem e consciente do mundo
ao seu redor, ocupando o seu espaço no eixo dialógico apesar das
particularidades descritas. O recorte apresentado acima ilustra esta realidade, da
mesma forma que o recorte seguinte:
Cena Interativa 2: Terapeuta e criança brincam com um jogo de letras de encaixe. A criança não permite que a terapeuta encaixe as letras em seus respectivos lugares, sendo ela a única a encaixar as peças. Idade: 7 anos e 1 mês.
60
T*
Gesto (terapeuta) Fala (terapeuta) Gesto (criança) Fala (criança)
1 pega a letra x e tenta encaixá-la em seu molde
2 olha para a criança
mu:itu beim' mas não tá certu não
3 xuxuxU xaxaxÁ xixi' hugo faz xixi” faz”
continua tentando encaixar a letra x em seu respectivo molde
4 olha para a criança
ê:ita
5 tentando encaixar a peça
tátátátátá
6 tátátátátá’
7 estende a mão em direção à letra x
dêxa eu butá”
8 encaixa a peça parcialmente
9 faz sinal negativo com o dedo indicador e com a cabeça
entrô não
10 cruza as pernas e bate a mão direita no dorso da mão esquerda ((como se estivesse comemorando))
11 entrô não 12 para de gesticular
e volta a tentar encaixar a peça (10s)
13
puxa a mão esquerda da terapeuta e coloca-a sobre a peça
agá agá
14 retrai o braço cauma' u qui é qui você qué”
61
15 olhando para a peça no chão
u xixi
16 tenta encaixar o x em seu respectivo molde
u xixi' dêxa eu butá
17 a criança olha a peça com a letra x parcialmente encaixada
18 virando o dorso da mão para cima e para baixo
entrô não' vira' vira
19 a criança vira a letra e consegue encaixá-la
20 (a peça desencaixa)
vira as costas para a terapeuta e para o jogo, batendo com a mão na cadeira que está próxima
(choraminga)
21 tenta encaixar a peça
cá:u:ma'
22 encaixa a peça olhaí 23 para de bater na
cadeira e interrompe o choro, voltando-se para a terapeuta e para o jogo
24 procurando no chão por outra peça sem encaixe
muintu bem' êssi aqui ficô pronto' ôtru'
Neste recorte, há uma interação efetiva entre a criança e a fonoaudióloga.
Podemos dizer que os dois participam de uma mesma atividade, embora Hugo só
permita que a terapeuta execute o encaixe das peças quando ele não o consegue
fazer. O jogo foi introduzido pela terapeuta e ela mantém-se na atividade através
da fala, a exemplo dos turnos 2, 3, 4, 7, 9, 11, 15, 17 e 22, participando das ações
da criança.
62
No turno três, a terapeuta tenta dar sentido à letra x, dizendo: “xuxuxU
xaxaxÁ xixi' hugo faz xixi” faz” Esta fala, aparentemente ignorada pela criança,
é retomada no turno quatorze, quando a terapeuta pergunta: “u qui é qui você
qué” e Hugo responde (turno quinze): “u xixi”. Esta retomada da fala da
terapeuta pela criança mostra um sujeito que não está alheio à linguagem, que
ouve e compreende o que lhe é dito. Se olharmos isoladamente o enunciado de
Hugo: “u xixi”, podíamos dizer se tratar de uma fala descontextualizada. Mas,
como nos mostram os estudos de De Lemos, a fala isolada perde o seu sentido
quando deslocada do lugar do seu acontecimento, do seu contexto (GUIMARÃES
LEMOS, 2002).
Desta forma, se considerarmos que o enunciado “u xixi” foi falado pela
terapeuta quando exploravam a letra “x”, sendo a ela referente, então
compreendemos que quando é perguntado a Hugo: ““u qui é qui você qué” e ele
responde: “u xixi”, faz sentido que a terapeuta atribua a esta fala o sentido de
que Hugo quer a letra “x”, ao contrário de fazer xixi, por exemplo.
No turno treze, o comportamento de Hugo de usar a mão do adulto para
conseguir o que quer, ao invés de solicitar ajuda oral ou gestualmente, aparece
como característico do quadro autístico. A terapeuta não aceita tal padrão
comportamental e expressa isso claramente em sua linguagem: ela puxa o braço
para trás, para que a criança não o coloque em cima da letra “x”, ao mesmo
tempo em que diz: “cauma” e pergunta: “u qui é qui você qué””, provocando
uma mudança de posição na criança que, para conseguir o que deseja, precisa se
colocar de outra forma, optando pelo discurso.
No turno dezoito, temos uma situação que mostra a compreensão que a
criança tem da linguagem. A terapeuta diz que a peça não encaixou, e pede que a
63
criança a vire, fazendo uso da gestualidade (McNeill, 2000) de movimentar a
palma da mão para cima e para baixo, “virando” a mão, ao mesmo tempo em que
diz: “entrô não’ vira’ vira”. Imediatamente a criança faz o que lhe é solicitado,
mostrando não estar alheia ao que acontece à sua volta e inserida na esfera da
linguagem.
1.3.2.1. Gesto e fala
Como já mencionado, adotamos aqui a idéia de gesto e fala como fatores
constituintes da linguagem, sem prevalência hierárquica. Ou seja, o gesto não
auxilia nem precede a fala (oral), mas, sim, faz parte dela. No conceito de gesto
incluem-se os quatro tipos de gestos propostos por McNeill (2000) - a
gesticulação, os gestos emblemáticos, a pantomima e a língua de sinais.
McNeill (op.cit.) afirma que os gestos são parte integrante do processo de
interação e que interferem e dão forma a este processo.
Segundo McNeill (2000, p.1): “A palavra 'gesto' não precisa de explicação.
(...) Estamos discutindo um fenômeno que, embora passe muitas vezes
despercebido, é onipresente.”7 De acordo com o autor em questão, há diferentes
tipos de movimentos que são denominados gestos e, para um estudo mais
detalhado sobre o assunto, estes gestos foram categorizados em “gesticulação”,
“pantomima”, “emblemático” e “língua de sinais”. Esta categorização foi
primeiramente elaborada por Kendon (1982) e colocada em um continuum por
McNeill.
“este único continuum está agora subdividido em quatro contínuos, estando cada um em uma dimensão analítica separada
7 Tradução nossa. “The word 'gesture' needs no explanation. (...) We are discussing a phenomenon that often passes without notice, though it is omnipresent.”
64
na qual os tipos de gestos acima citados podem ser diferenciados” (McNEILL, 2000, p.1)8 .
De acordo com Mc Neill (2000), a gesticulação seria representada por
aqueles gestos realizados no ato da fala, e que refletem, portanto, o estilo próprio
de cada um, bem como de sua comunidade de fala. A gesticulação está,
obrigatoriamente, acompanhada da fala. Os gestos emblemáticos são
convencionais, determinados culturalmente, podendo ser ou não acompanhados
de fala. A pantomima não se dá junto com o ato de fala e representa ou simula
uma ação. A língua de sinais é convencional, criada por uma comunidade
específica de fala.
Além de classificar, Kendon relacionou os diferentes tipos de gestos em
quatro contínuos de acordo com a relação estabelecida com a língua (contínuo 1),
com as propriedades lingüísticas (contínuo 2), com a convenção (contínuo 3) e o
caráter semiótico (contínuo 4), conforme tabela a seguir:
Gesticulação Pantomima Emblemático Língua de sinais
Contínuo 1 Presença obrigatória de fala
Ausência de fala
Presença opcional de fala
Ausência de fala
Contínuo 2 Ausência de propriedades lingüísticas
Ausência de propriedades lingüísticas
Presença de algumas propriedades lingüísticas
Presença de propriedades lingüísticas
Contínuo 3 Não convencional Não convencional
Parcialmente convencional
Totalmente convencional
Contínuo 4 Global e sintética Global e analítica
Segmentada e analítica
Segmentada e analítica
8 Tradução nossa. “That single continuum is now subdivided into four continua, each an analytically separate dimension on which the types of gestures above can be differentiated.”
65
No Continuum 1 é feita a relação do gesto com a fala, de forma que a
gesticulação tem que ser acompanhada da fala; o gesto emblemático pode ser ou
não acompanhado da fala; a pantomima, obrigatoriamente, é sem
acompanhamento da linguagem oral e o mesmo ocorre com a língua de sinais.
O Continuum 2 mostra a relação dos gestos com as propriedades
lingüísticas. Assim, na gesticulação e na pantomima há ausência destas
propriedades, no gesto emblemático algumas propriedades lingüísticas estão
presentes e na língua de sinais tais propriedades são marcantes.
O terceiro continuum traz a relação existente entre gestos e convenções.
Quando se faz uso da gesticulação e da pantomima não há uso de gestos
utilizados estabelecidos socialmente, ou seja, comuns a todos de uma mesma
sociedade, sendo os gestos utilizados de acordo com as características
particulares daquele que fala / gesticula ou ilustra uma ação (no caso da
pantomima). Já os gestos emblemáticos são parcialmente convencionais
enquanto que a língua de sinais é totalmente convencional, de modo que
determinado gesto representa, necessariamente, uma mesma idéia.
O último continuum9 diz respeito à diferenciação entre gestos e sinais.
Segundo o autor (2000, p.5): “Esta dimensão também mostra a riqueza que vem
da combinação de gesticulação com fala em um sistema unificado fala-gesto
(...)”10 Na gesticulação, os gestos realizados seriam globais: a compreensão de
um gesto isolado depende da compreensão do todo, do contexto; e sintéticos: um
único gesto pode assumir diferentes significados no decorrer de uma frase. Na
pantomima, o gesto também seria global, podendo ainda ter caráter analítico. Já 9 Para maiores esclarecimentos sobre o quarto continuum, consultar McNeill (2000). 10 Tradução nossa. “This dimension also shows the richness that comes from combining gesticulation with speech into a unified speech-gesture system (...)”
66
no gesto emblemático, há os gestos segmentados e os sintéticos enquanto que
na língua de sinais os gestos são segmentados e analíticos.
A respeito dos gestos e da postura corporal na comunicação, Laver (2001)
ressalta a importância e influência dos fatores orgânicos e comportamentais, bem
como dos marcadores psicológicos no processo de comunicação. Como fatores
orgânicos, o autor usa a definição de Mackenzie Beck (1997, p.256. In: LAVER,
2001) como sendo aqueles que: “têm a ver com estrutura ou morfologia
anatômica, e com os limites que a estrutura impõe no potencial da atividade
fisiológica”. Assim, os fatores orgânicos fogem ao controle imediato do indivíduo.
Já os componentes comportamentais que fazem parte do processo de
comunicação são aqueles aprendidos socialmente, geralmente na infância, e que
são usados, de certa forma, inconscientemente e que podem, até mesmo,
modificar a postura global do indivíduo.
Laver (2001) nos mostra que, em um diálogo, a postura gestual tem tanta
importância quanto o que é dito, de forma que além daquilo que é “ouvido” pelo
“interlocutor” ou pelo outro do diálogo, o que é visto também interfere na
comunicação. Deste modo, podemos pensar em uma postura retraída, apática,
tão característica da criança autista, e do impacto que essa postura pode causar
no outro.
Bruner (1983) destaca a importância dos gestos no processo de aquisição
de linguagem, ao mencionar que tal processo ocorre mesmo antes do discurso,
sendo iniciado nas trocas comunicativas estabelecidas entre mãe e bebê, numa
situação interativa particular em que há uma rotina partilhada na qual os gestos
são essenciais.
67
Esta amplitude na noção de linguagem nos permitirá olhar além das
“anormalidades” da linguagem do autista, descritas na literatura, e observar a
movimentação que esse sujeito faz na língua através do seu corpo, de sua voz e,
até mesmo, dos seus silêncios. Temos, assim, uma visão de linguagem como
constituinte do sujeito e que é, ao mesmo tempo, por ele constituída.
Traremos agora um recorte feito a partir de uma das sessões terapêuticas
filmadas e transcritas para esta dissertação, com o intuito de ilustrar a
gestualidade presente na interação terapeuta - paciente autista .
Cena interativa 3: terapeuta e criança autista estão na sala de terapia, com uma bola grande e vários brinquedos no chão. Idade: 7 anos e 6 meses. T*
Gesto (terapeuta) Fala (terapeuta) Gesto (criança) Fala (criança)
1 em pé, olhando para a criança, com os braços estendidos para frente
vamu jogá bola” joga pra mim’ (cantando) jó:ga: bo:la’ não dê:xa caí’ vou jogá: bola(...)
2 entrega a bola à terapeuta, olhando para ela
3 se posiciona de frente para a criança e segura a bola com as duas mãos, com movimentos corporais, como se fosse jogar a bola
vamu jogá bola”
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4 parado em pé, de frente para a terapeuta, olha para ela e estende os braços para cima
5 estende os braços para frente
di novu’ (cantando) joga a bola não deixa” (faz uma pausa como que esperando que a criança complete a sua fala)
6 sai andando pela sala com a bola, sem olhar para a terapeuta
7 caminha em direção à criança com um braço estendido tentando bater na bola
num dêxa caí’ vai caí a bola”
8 desvia a bola das mãos da terapeuta e afasta-se da terapeuta, rodando em torno de si mesmo, com a bola encostada na ponta do nariz
9 olhando para a criança
eita’ eu queru brincá também’
No recorte mostrado, a terapeuta faz uso de gestos na sua comunicação
com a criança autista. Ao estender os braços para frente e solicitar a bola, como
visto nos turnos um e três, a terapeuta estabelece ser esta a forma de pedir um
objeto, passando tal gesto a ser considerado um gesto emblemático. Em
situações terapêuticas, sempre que a terapeuta solicita algum objeto à criança, o
69
faz da mesma forma estendendo o braço para frente e fazendo a solicitação
também através da fala. Assim, podemos supor que este gesto tornou-se uma
convenção, de forma que ambos, terapeuta e paciente, compreendem o
significado do mesmo. Tal convenção é compreendida pela criança, que repete e
modifica este gesto como código de comunicação, conforme visto no turno quatro
em que fica diante da terapeuta e estende os braços para cima, à espera da bola.
Embora não haja presença de fala, os gestos da criança, o fato de ficar de
frente para a terapeuta e esticar os braços para cima, mostram que foi
estabelecida a comunicação através dos gestos.
A criança autista, no turno oito, apresenta o movimento estereotipado de
girar em torno de si mesma, que é citado como comum no comportamento
autístico. Mas mesmo este tipo de comportamento tem uma importância
significativa para a continuidade da interação e construção de sentido.
Desta forma, podemos afirmar a presença de gestos na comunicação da
criança autista, ao contrário do que diz a literatura (KANNER, 1943; LEBOYER,
2003; ELLIS, 2003) e que, conseqüentemente, há comunicação por parte desta
criança, ficando descartada a hipótese de um sujeito “vazio”, um “buraco negro”.
A seguir, daremos continuidade a esta dissertação apresentando o capítulo
do método, que consiste da descrição dos procedimentos realizados para a coleta
de material deste estudo, bem como da tabela de transcrição utilizada.
70
II. MÉTODO
O presente estudo toma como caso clínico o da criança que chamaremos
Hugo11, de 07 anos de idade, diagnosticado como autista aos 03 anos de idade. A
criança é atendida em uma clínica particular da cidade do Recife há quatro anos
por uma fonoaudióloga que concebe a linguagem como constituinte do sujeito,
facilitando a entrada da criança no eixo da linguagem aceitando, acolhendo e
interpretando a fala “enigmática” de Hugo. As sessões foram acompanhadas
durante nove meses, com uma média de uma filmagem a cada 20 dias.
Esta pesquisa é classificada como qualitativa e teórico-analítica e tem
como corpus as transcrições integrais das sessões acompanhadas durante o
período de nove meses, totalizando 12 sessões de, aproximadamente, 30 minutos
cada, num total de 6 horas de filmagem.
Para as transcrições das sessões, faremos uso de um modelo proposto por
Cavalcante (1999), a fim de padronizar as transcrições e, acreditamos, melhor
retratar a interação, dando espaço para a fala e para a ação de cada indivíduo.
O referencial teórico utilizado como base para esse estudo é De Lemos
(1986, 1995, 2000) e colaboradores (GUIMARÃES LEMOS, 2002, SCARPA,
2001, LIER-DE-VITTO, 1995), possibilitando que a aceitação da linguagem como
constituinte do sujeito e de que todo sujeito é atravessado pela linguagem.
Foi elaborado um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, segundo a
resolução 196/96, que foi entregue ao responsável pela criança, termo este que
se encontra em anexo. O projeto de pesquisa foi encaminhado para apreciação
ao Comitê de Ética da Universidade Federal da Paraíba e aprovado.
11 Hugo é o nome fictício do paciente.
71
Quadro de sinais para transcrição
(tempo) Pausas maiores Para pausas que ultrapassam 1.5 segundo, indica-se o tempo.
(ininteligível) Dúvidas e suposições Quando não se entende parte da fala ou todo o turno.
Maiúscula Ênfase Quando uma sílaba ou palavra é pronunciada com maior ênfase.
: Alongamento da vogal Os dois pontos podem ser repetidos, a depender da duração.
(( )) Comentários do analista Colocado no lugar da ocorrência
‘ Aspa simples Para subida leve (como uma vírgula ou ponto e vírgula)
“ Aspas duplas (entonação)
Para uma subida rápida (como no ponto de interrogação)
(...) Trechos cortados Indicação de transcrição parcial ou de eliminação
(Cavalcante, 1999)
72
III. Apresentação e análise dos dados
O sujeito da nossa pesquisa, Hugo, é descrito, pela mãe, como de difícil
temperamento, que não sabe dizer o que quer, como se vivesse em “seu próprio
mundo”. Segundo a terapeuta que o acompanha, ele é caracterizado como dócil e
amável e com melhoras significativas na linguagem. Levando em consideração
esse seu trabalho, o diagnóstico de autismo é secundário, sendo fundamental
para a terapia o sujeito da linguagem. Pode-se dizer que a terapeuta considera a
fala como constitutiva do sujeito e, conseqüentemente, carregada de significado e
significação.
A seguir, apresentaremos trechos de uma entrevista realizada em
setembro de 2005 com a mãe de Hugo, a fim de mostrarmos um pouco a história
desta criança.
Sobre a gravidez – “A gestação de Hugo foi o seguinte: (...) então aí eu já não queria
ter filhos. Quando aconteceu essa gravidez foi que eu fiquei com mais trauma e não
queria mesmo. Depois de oito anos foi que a gente, que eu tive ele, por um acaso, eu
nem queria (...) Porque a gente sempre tinha cuidado, aí no dia que aconteceu ele disse
que não tinha feito mas tinha feito e depois eu fui, eu nem sabia que tava grávida, fui
saber já tava com dois meses e começou todo o aperreio porque eu tinha um problema
de engravidar, não de engravidar, de segurar. Tive de tomar remédio pra segurar Herlon
porque eu tive também novamente tipo um início de aborto aí tive de tomar remédio até
os quatro meses mais ou menos, tive que tomar remédio, e aí foi indo e eu ficando mais
ainda com trauma de estar grávida porque eu não tava preparada pra estar grávida. Eu
sou uma pessoa muito vaidosa, gosto muito do meu corpo e aquilo ‘tava mexendo muito
comigo. E aí foi e aí eu tô também, o relacionamento com meu marido que não ‘tava
bem, (...) que não queria viver mais com ele e ele por eu ter, por eu estar grávida, ele
resolveu ficar comigo, ter paciência, queria ficar comigo, (...), aquela história toda, né? Aí,
resumindo, aí eu fui ter, ele nasceu de oito meses, ele não foi de sete nem de nove, foi de
oito meses, foi cesárea.”
Sobre os exames pré-natais – “fiz o pré-natal tudinho, tava tudo normal. Não tinha
mostrado nada, o batimento cardíaco, tudo, tudo, tudo.”
A mãe e a gravidez – “eu não gostei da experiência de estar grávida (...) “
73
Sobre a amamentação – “não mamou, não consegui. Acho que devido aquela ...
como é que diz? Como é que diz que tem pós-parto?”
Pesquisadora – depressão?
– “depressão pós-parto. Eu acho que eu não tive paciência e não queria
novamente pensando que ia deixar meu peito deformado com as coisas todas, aí não
tinha paciência de deixar ele e ele não pegava no meu peito aí contribuiu mais ainda, só
que de todo jeito deformou o meu peito porque eu tive que ficar tirando o leite para dar a
ele na mamadeira e na colher o negócio e deformou de todo o jeito e nem eu dei a ele o
peito nem nada.”
Pesquisadora – mas deu leite materno, então?
– “dei pouco, eu tive pouco, acho que devido ele não mamar. Ele ficou só dois
meses, aí ele precisou ele até mamou um mês até quatro meses ele mamou de uma
vizinha minha, o filho dela tinha nascido no mesmo mês só que é uma semana de
diferença dele, que é o amigo dele aí ela como tinha muito ele pegava no dela.”
Pesquisadora – ele mamou da sua vizinha?
– “mamou dela um mês, dois meses.”
Pesquisadora – todos os horários ou era só de vez em quando?
– “não, era só mais à noite.”
Sobre o Hugo bebê – “era um bebê muito calmo que ninguém nem achava que tinha
filho dentro de casa, ele era calado calmo, ele não chorava, quietinho, dormia que só,
dormia muito que o povo estranhava assim. E um menino sempre saudável que nunca
teve problema nenhum, nada, nada, nada, nunca corri com ele pra médico pra nada,
sempre foi saudável, quieto. Aí a gente começou a estranhar, assim, o fato dele não a
gente sempre fazia comparação com esse amiguinho dele que nasceu na mesma época,
que era minha vizinha de cima só que foi com uma semana de diferença, aí a gente
sempre fazia comparação a ele, que ele faz isso e ele não fazia, foi notando dessa forma.
Eu, por ser inexperiente, né? E minha mãe por ser mais experiente ficava achando
estranho. Eu não achava estranho por não ter tido experiência, mas ela por ter me tido aí
vivia comparando e dizia: “isso não é normal, isso é estranho, ele não olha, ele não
responde” entendeu? Ele ria por ele mesmo, entendeu, a gente conversava com ele mas
parecia que ninguém tava conversando com ele. Parecia que alguém estava
conversando com ele, algum fantasma. Mas a gente conversando ele não estabelecia
nenhum contato. A gente achou que ele não escutava, entendeu?, que ele não
enxergava, ficava desconfiando, só que ele era normal. Quando veio a parte de
engatinhar, entendeu, seis meses mais ou menos. Ele era um menino alegre, ria, mas
sem estabelecer contato.”
74
Pesquisadora – Ele ria aleatoriamente? Sem precisar da presença de vocês?
- “é, não precisava da gente para nada.”
Sobre o vínculo mãe–bebê – “não, em nenhum momento. Não tive vínculo com o
meu filho, eu vim ter assim, vinculo com ele. Não, eu gostava de bebê, sempre gostei de
bebê aí quando ele veio ficar com seis, oito meses, que é a fase que eu mais gosto, ele
era um bebê gordinho, muito gordão, ele era fofinho, lindo, aquelas coisas, mas eu não
me sentia mãe. Eu só vim me sentir mãe, realmente, quando eu vim descobrir o problema
dele, acho que mais ou menos uns três anos quando eu vim me sentir mãe.”
Sobre a relação pai-filho – “com certeza, sempre foi (afetuoso com a criança). Era o
que ele mais queria. Assim, até porque quando eu descobri que estava grávida tem esse
detalhe, que eu também queria ter tido uma mulher não queria ter homem, ele também,
era louco pra ter uma menina. Aí quando eu descobri aí fiquei com mais trauma ainda
pelo fato dele saber que era homem e eu também de achar que ele não ia gostar, que
pererê, aquelas coisas todas. Só que aí eu fiquei com mais trauma ainda porque eu
sempre sonhei ter um filho só, mas não agora, queria ter lá pros 35, entendeu? E que
quando eu tivesse que fosse uma mulher. ((a gestação ocorreu quando a mãe tinha 27
anos)). (...) ele é muito apegado ao meu marido, não sei se o vinculo é por ele ter tido
vontade de ter tido ele, eu sinto que a ligação dele é mais com meu marido que comigo,
mas quando meu marido não está é comigo, nem com minha mãe que criou ele, é
comigo.”
Pesquisadora – O Hugo conversa com o pai, brinca?
– “conversa, brinca, o meu marido conversa com ele, brinca, ensina as coisas a
ele também. A ligação deles dois é muito fina, assim, muito junto, tanto é que hoje em dia
eu já quis me separar do meu marido e ele também foi um dos motivos que eu pra pensar
duas vezes nessa historia, com a ligação que ele tem. Eu tenho medo de atrapalhar o
tratamento dele, da separação, mas vontade eu tenho de me separar do meu marido, não
que meu marido seja um marido ruim, não, (...) Ele é que faz eu me segurar assim. “
Cuidados com a criança –“minha mãe, minha mãe até hoje realmente eu reconheço
que ela é a mãe do meu filho. Eu, hoje em dia pela minha vida ser muito assim...
conturbada porque eu faço faculdade, faço curso (...) resolvo as coisas dela tudinho aí
levo ele pra terapia, aí eu cuido mais dele nessa parte burocrática, levo ele pra médico, ir
atrás de médico, essas coisas todas. Mas em casa quem cuida mais é minha mãe.
75
Apesar de hoje ele acho que ele desde o início ele não obedece minha mãe, ele só me
obedece.”
Sobre as suspeitas iniciais e o diagnóstico – “desde os seis meses o pediatra
dele começou a suspeitar que ele tinha o autismo, aí ele mandou a gente pesquisar, ir
pra fono, fazer o exame de audiometria, teste de desenvolvimento, procurar psicóloga.
Desde aí começou a minha peregrinação, eu digo assim, eu tive sorte que eu comecei
cedo, eu acho que até hoje eu digo a todo mundo e aos profissionais que tão com ele que
o pediatra dele foi o anjo da guarda dele. Assim, porque eu sou espírita, minha família é
toda espírita e por coincidência o médico dele também é espírita, aí acho que tudo teve
ligação, entendeu? Porque eu acho muito difícil, assim, em tão pouco tempo já suspeitar,
entendeu? E também já o progresso dele que todo mundo que acompanha ele, até
mesmo o pediatra mesmo que acompanha ele desde o inicio e vê a evolução dele até
hoje vê que realmente ele teve uma evolução muito grande. Foi ele que realmente deu o
passo assim, deu a estrada pra gente caminhar, entendeu?”
Pesquisadora - Você deve ter procurado vários profissionais...
- “Vários, passei por vários, me aperreei muito, me estressei demais e eu me
desesperava porque eu não tinha certeza da historia, né? E eu via o problema alí no meu
filho e era mais outro problema pra mim lidar (SIC) porque além de eu não ter tido uma
filha mulher, além de eu não querer um filho, ter ainda de lidar com isso, saber que ele
tem um problema aí foi pior ainda pra mim, eu me estressei demais, eu precisei fazer
terapia, eu e meu marido. A gente fez terapia de casal, me ajudou muito a me encontrar,
ela que realmente me ajudou a me encontrar. Foi a partir dela que eu pude me
encontrar.”
Pesquisadora – você diz muito claramente tudo o que você sentia em relação ao seu
filho. Foi a terapia que possibilitou isso ou você sempre assumiu?
– “assumia, eu sempre disse a todo mundo.”
Pesquisadora – para o seu marido também?
– “para o meu marido, pra todo mundo. Eu sou uma pessoa que, eu não olho
assim a forma de que as pessoas me vejam, eu quero que elas me vejam como eu sou,
mesmo que elas gostem de mim ou não, eu sou isso. Então eu sabia que aquilo ali ‘tava
me prejudicando, eu sabendo que ia escutar como escutei várias vezes que eu era uma
mãe desnaturada, que eu não era mãe, da minha própria família, né? Das minhas tias,
que eu não era uma mãe, mas mesmo assim eu não ‘tava nem aí, eu queria saber o que
eu tava sentindo e pronto. Desde a terapeuta foi que eu comecei a me encontrar e a
repensar isso... assim, não que eu mudei meu jeito de ser. Pelo contrário, eu continuo do
mesmo jeito, não tenho medo de dizer quem eu sou ou deixo de ser, mas a ver as coisas
76
por outro lado, não ver só de um lado. Porque antes eu via só pelo meu lado, de não
gostar de ser mãe, de ter meus objetivos, de não querer ter filhos, que ia estragar minha
vida. Hoje não, eu já olho por outro lado. Que isso não é tão importante, mesmo eu
sabendo que eu senti tudo isso. Hoje eu vejo mais por outro lado, que é bonito ser mãe,
mesmo se ele veio dessa forma é porque realmente tem uma ligação, nada é por acaso e
por aí vai.”
Pesquisadora – quem foi que deu o diagnóstico de autismo?
– “Como eu tava dizendo, o pediatra suspeitou e eu comecei a suspeitar tudinho e
aí todo mundo só suspeitava que era autismo mas até então ninguém dava o diagnóstico
certo e também um atraso no desenvolvimento, ele fez teste do desenvolvimento, todos
os testes, tudo deu normal. Graças a Deus eu tive um caminho muito vasto de pegar
profissionais bons, mas também me aperreei muito até chegar neles, mas também
quando eu cheguei o negócio deslanchou. Aí quem deu realmente o diagnóstico foi Dr.
Marcelino Bandini, foi aos 3 anos. Foi ele quem disse que era o autismo e ele tinha um
grau leve, não tinha um grau forte nem moderado. Andréa também suspeitava, mas ela
também tinha dúvida porque ele estabelecia contato, assim, sempre deixava
interrogação, porque a gente que conhece o que é o autismo e que olha pro meu filho
ninguém diz que ele é um autista, só quando ele faz as estereotipias dele aí que a gente
diz que é um autista, mas mesmo assim eu que tô lá no dia a dia e que tô estudando isso
vejo que eu acredito que, se ele for autista ele tem um grau levíssimo mesmo, mas que
também o autismo dele não é um autismo verdadeiro, ele pode estar num estado
autístico que eu acredito que o autismo não seja um problema, uma doença, eu acredito
que é um estado. Eu venho escutando, lendo na internet, que tem até o site da AMA e
tudo que eu até faço parte aí eu vejo sempre e comparo com o meu filho e acho
estranho. Por isso é que eu acredito que ele vá, não é ficar bom, eu acredito que ele vá
ser um menino normal, sociável, que conviva na sociedade normalmente, entendeu? Eu
acredito.”
Sobre a escola – “ele estuda numa escola normal, agora os amiguinhos dele todos
gostam dele, brincam com ele, acho que compreendem as limitações dele. Agora não sei
dizer a você como é lá na escola, assim, a professora diz que ele faz os trabalhos, dá
uma folha pra ele desenhar, não fez o mesmo trabalho que os outros faz, mas ele
desenha muito bem porque ele é muito bom em desenho. Desde os dois anos que ele
fazia aqueles origami, né? Aqueles que dobram assim. Pronto, fazia avião, barco, aí os
amiguinhos da sala dele não sabem fazer aí pediam pra ele fazer aí todo mundo ficava
besta que ele fazia muito bem, que nem eu sabia fazer avião nem barco nem essas
coisas. E de desenho então que ele desenha cada carro que você assim que no futuro
77
vai ter aqueles carros que ele ‘tá desenhando, que é muitos carros estranhos assim que
ele desenha. De propaganda então, ele sabe todas as propagandas na televisão,
novelas, músicas, ele já sabe. Canta uma música ele já sabe que é da novela, se falar
uma propaganda ele já sabe do que é, ele já lê. Não sei onde ele aprendeu, ele já sabe
todas as letras. Deve ser o tratamento que ele vem tendo, né? Se assim, tem uma
palavra que chama a atenção dele ele já vai assim que letra é essa, tal, aí soletra, aí vai e
fala, se ele ver uma cerveja schin aí ele vai e fala, tudo essas coisas assim.”
Embora a entrevista da mãe de Hugo tenha sido usada para retratar a
história de vida desta criança, não achamos cabível comentá-la. O que para nós
pode parecer “chocante” ou “ousado” faz parte da realidade desta mãe, realidade
por nós desconhecida. Portanto, trouxemos recortes da entrevista apenas para
mostrar que Hugo não foi uma criança desejada, sua infância foi, aparentemente,
tranqüila; era um bebê “caracteristicamente” autista e que, mesmo com as
suspeitas precoces do pediatra, o diagnóstico só foi dado aos 03 anos de idade.
Contudo, faz-se necessário dizer que o depoimento da mãe, ao dizer que
não se sentia “mãe” do seu filho, corrobora com a perspectiva de Ferreira (2004)
que afirma não ser possível “encontrar a mãe da criança autista falando em
manhês12 com o seu filho”. Também neste caso, seria improvável pensar nesta
mãe “maternando” o seu filho, quando ela afirma não se sentir mãe da criança.
Também gostaríamos de ressaltar que relatos do comportamento dos
autistas enquanto bebês diferenciam-se dos relatos comportamentais de bebês
não autistas. Estas “diferenças” podem não ser percebidas pelos pais a princípio,
por se tratar de um bebê calminho, que quase não chora, como no caso do sujeito
do nosso estudo que não demonstrava precisar dos cuidados e da atenção dos
outros, como se bastasse a si mesmo (conforme relato da mãe). Em
contrapartida, há relatos que mostram que a criança autista fora um bebê que
12 Sobre o manhês, ver Cavalcante 1999.
78
apresentava um comportamento irritadiço, com presença constante de choro. O
estudo de Ferreira (2004) nos mostra um bebê que chorava incessantemente, por
horas e até dias consecutivos, sem causa aparente.
Traremos agora os recortes e posteriores análises das situações
terapêuticas escolhidas para ilustrar esta dissertação.
Recorte 1a Contexto interativo: A terapia é iniciada com a entrada da terapeuta e da criança na sala. Há bolas coloridas espalhadas no chão. Ao entrar, Hugo pega uma das bolas, e a terapeuta, outra. Idade:07 anos e 05 meses T*
Gesto (terapeuta) Fala (terapeuta) Gesto (criança) Fala (criança)
1 pega uma das bolas e joga contra a parede
((cantando)) jó:ga: bo:la’ não dê:xa caí’ vou jogá: bola(...)
((aparentemente indiferente à terapeuta)) segura uma bola nas mãos e morde o pito da bola
2 pára de jogar e olha para a criança
hu:gu:’ não podi butá a bola na boca’
continua mordendo o pito da bola
3 tira a bola da criança e remove o pito
vô tirá’ sinão você podi ingulí i si machucá’
observa enquanto a bola murcha
4 aperta a bola, direcionando a saída de ar para o rosto da criança
qui ventinhu bom’ né” olha u ventinhu’
continua observando a bola murchar
5 depois que a bola esvazia, deixa-a no chão. Fica de frente para a parede e recomeça o jogo de atirar a bola contra a parede, usando outra bola.
((cantando)) jó:ga: bo:la’ não dê:xa caí’ vou jogá: bola(...)
olha atentamente para a terapeuta
79
6 pega a bola murcha e entrega-a à terapeuta
enchi’ enchi”
7 coloca uma mão na bola vazia e olha para a criança
eu não sei inchê:’ vamu pedí a seu edson’
8 olha para a terapeuta enquanto segura a bola
jó:ga: bo:la’ não dê:xa caí’ ((imita a terapeuta))
9 Continua olhando para a criança; segura, junto com ela, a bola vazia
eu sei qui você qué jogá a bola’ mas eu não consigu inchê
10 alterna o olhar entre a terapeuta e a bola murcha
enchi’ enchi’
Nesta análise, achamos importante salientar uma das características
comportamentais das crianças autistas: a resistência a mudanças com tendência
à repetição de comportamentos. Isso fica visível quando a criança começa a
morder o pito da bola, comportamento para ela prazeroso, não interrompendo
com a solicitação da terapeuta e, no decorrer da terapia, pela angústia
demonstrada ao perceber que a bola não voltaria ao seu estado inicial.
Ao tirar o pito e esvaziar a bola, a terapeuta modifica dois aspectos:
primeiro interrompe o comportamento da criança e, em seguida, modifica o estado
da bola que passa de cheia a murcha. A criança depara-se com algo novo,
diferente, e mostra a sua inquietação durante a terapia.
No início deste recorte, a criança aparenta indiferença à ação da terapeuta
de jogar a bola contra a parede enquanto canta. Porém, no turno oito, vê-se que a
criança repete a fala da terapeuta, cantando a música no mesmo tom, a fim de
80
demonstrar que quer jogar a bola. Podemos supor que a criança percebeu a
funcionalidade da música associada à brincadeira de jogar a bola contra a parede
e fez uso dela para solicitar à terapeuta que enchesse a bola. A terapeuta
interpreta o enunciado da criança, atribuindo a ele sentido e falando pela criança
(turno nove: “eu sei qui você qué jogá a bola’ mas eu não consigu inchê’) e
isto provoca uma mudança no discurso da criança que solicita, explicitamente,
que a terapeuta encha a bola, apresentando um discurso inédito (turno dez:
“enchi’ enchi’).
Guimarães Lemos (2002, p.12) nos mostra a importância do outro /
interlocutor enquanto instância de significação da fala da criança: “qualquer que
seja a fala da criança, é do lugar do outro que ela recebe sua significação”.
A movimentação que a criança faz pela linguagem fica evidenciada nas
diferentes condutas que toma no diálogo, ora repetindo o enunciado da terapeuta,
ora trazendo uma fala inédita, mostrando-se sujeito da fala (respectivamente,
primeira e terceira posições propostas por De Lemos).
Recorte 1b
Contexto: ainda na mesma sessão, a criança não desiste da solicitação para que a terapeuta encha a bola, insistentemente pede “enche, enche”. A terapeuta tenta encher a bola, sem sucesso. Senta-se no chão, de frente para a criança também sentada, e explica que não consegue encher a bola. A solicitação da criança persiste, gritando de modo mais enfático. A terapeuta tenta, mais uma vez sem sucesso, encher a bola. T*
Gesto (terapeuta) Fala (terapeuta) Gesto (criança) Fala (criança)
11 sentada no chão, de frente para a criança, tenta encher a bola.
eu não consigu inchê’
sentada de frente para a terapeuta apresenta movimentos estereotipados de friccionar os dedos
chora e grita
81
de uma mão contra a palma da outra mão e balança o corpo para frente e para trás
12 toca os ombros da criança suavemente e olha para ela
você tá tristi porque queria jogá com essa bola’ mas eu não consigu mais inchê’
a criança continua balançando o corpo para frente e para trás, enquanto fricciona os dedos da mão direita contra a palma da mão esquerda, o choro fica mais alto
13 levanta-se e joga a bola para fora da sala pela janela
a:cá:bô’ não teim mais bola’
olha atentamente para a terapeuta, o choro e os movimentos corporais são interrompidos
T*
Gesto (terapeuta) Fala (terapeuta) Gesto (criança) Fala (criança)
14 olha para a mãe da criança
eli queria(...)
olha para a mãe, interrompe a fala da terapeuta
acabô’ acabô’ não tem mais bola’ já passô’
T*
Gesto (terapeuta) Fala (terapeuta) Gesto (criança) Fala (criança)
15 olha para a criança
pois é’ Hugo’ comu eu não sabia u qui você quiria’ joguei a bola fora’ agora acabou’
A mãe não apresenta qualquer reação à fala do filho, continua olhando para a terapeuta.
A mãe da criança entra na sala e pergunta o motivo de o filho estar chorando, olhando diretamente para a terapeuta.
82
16 volta o olhar para a terapeuta
acabô’
No turno onze, a terapeuta mostra-se disposta a atender a solicitação da
criança e tenta encher a bola, mas diz que não está conseguindo e a criança
demonstra grande dificuldade em aceitar o fato de a bola estar murcha e não
voltar mais ao seu estado inicial. Ela chora e grita, em voz alta e demonstrando
grande desespero. O movimento estereotipado de balançar o corpo para frente e
para trás é descrito na literatura quando se trata das estereotipias dos autistas. O
comportamento de friccionar as pontas dos dedos da mão direita contra a palma
da mão esquerda é comumente realizado por Hugo em momentos de emoções
intensas: alegria e/ou tristeza.
Logo em seguida, no turno doze, a terapeuta procura o contato físico,
aproximando-se e tocando gentilmente a criança enquanto atribui significado ao
choro e angústia: “você tá tristi porque queria jogá com essa bola’ mas eu
não consigu mais inchê’”, mostrando que o comportamento da criança tem um
sentido que é compreendido pelo interlocutor. No turno treze, ao se deparar com
uma situação que parecia não ter fim, a terapeuta optou por encerrar o motivo da
aparente angústia da criança, retirando a bola do contexto terapêutico. De
imediato, o choro e os movimentos estereotipados da criança cessam e a criança
olha atentamente para a terapeuta.
Ao se deparar com a presença da sua mãe, que aparece a meio da sessão
preocupada com o seu choro, a criança vira o rosto em sua direção e fala
diretamente para ela (turno 14): “acabô’ acabô’ não tem mais bola’ já passô’”
mostrando que a situação de angústia já havia acabado e que o motivo era a
83
bola: “não tem mais bola”. O enunciado “acabô’ acabô’ não tem mais bola” foi
uma colagem do enunciado anterior da terapeuta.
Conforme De Lemos, esta posição diz respeito ao momento da linguagem
no qual a fala da criança não lhe é própria, mas sim uma colagem da fala do
outro, sendo o outro o pólo dominante da estrutura lingüística. Contudo, nesta
mesma fala, a criança traz um enunciado que não havia sido dito pela terapeuta:
“já passô”, mostrando ineditismo em sua fala e a sua colocação no eixo do
diálogo enquanto autor do próprio discurso. Apesar de tudo, a fala da criança não
provoca qualquer reação em sua mãe. De Lemos (1995) mostra que uma fala que
não é interpretada e devolvida em um contexto, fica perdida, sem sentido, como
que “calada”.
Cabe ao interlocutor dar sustentabilidade à fala da criança:
“(...) o fato da criança pequena tender a parar de falar, deixando seu enunciado à deriva, na ausência de resposta do interlocutor, ou melhor, de um enunciado que lhe dê sentido.” (DE LEMOS, 1995, p. 23)
A fala da terapeuta no turno quinze aparece como uma tentativa de
inserção da fala da criança no diálogo e, consequentemente, daquela criança no
lugar de falante. Ao dar atenção à fala da criança, a terapeuta mostra
compreender e concordar com o que foi dito e, assim, colabora para que esta
criança se veja como autor do seu discurso/sujeito da fala. O lugar de locutor é
atribuído à criança e o diálogo acontece, com a fala da criança circulando no
discurso, sendo interpretada e respondida pela terapeuta.
A última fala da criança, no turno 16, vem complementar o discurso da
terapeuta: “acabô" é o enunciado da criança em resposta à fala da terapeuta no
turno quinze: “pois é’ hugo’ comu eu não sabia u qui você queria’ joguei a
84
bola fora’ agora acabô’”. No turno 16, podemos dizer que a fala de Hugo é
ecolálica, uma repetição fragmentada da fala da terapeuta. Contudo, o que
queremos ressaltar é a ecolalia, em seu sentido de “fala em eco”, presente em
toda a interação tanto na fala da terapeuta quanto na fala da criança.
Pelo recorte mostrado, os trechos de fala são constituídos, em grande
parte, por repetições de uma mesma fala. Nos turnos 9, 11 e 12, a terapeuta
repete o enunciado “eu não consigu inchê”. No turno treze, a terapeuta introduz
o enunciado “acabô’ não tem mais bola’”, que é repetido pela criança no turno
seguinte, ao se dirigir à mãe e responder à pergunta feita por ela (sobre o motivo
do choro do filho): “acabô’ acabô’ não tem mais bola’ já passô”. O enunciado
“acabô" volta ao discurso nos turnos 15 e 16, usado tanto pela terapeuta ao fim
de sua fala, como pela criança, num enunciado que surge aparentemente para
concluir e concordar com a fala da terapeuta.
Conforme evidenciado, o diálogo que se dá nesta sessão terapêutica,
neste trecho em particular, é marcado pela presença de enunciados repetidos,
mas que não impossibilitam ou dificultam a interação. São enunciados que
constituem, com suas particularidades, a marca discursiva apresentada por esta
díade. De tal forma, distancia-se a idéia de “fala ecolálica” como sinônimo de “fala
patológica” e aproxima-se a repetição das diversas falas num diálogo de uma
situação natural e corriqueira, comum a todos os falantes sujeitos aos efeitos da
linguagem e do outro no processo de interação. Assim, a ecolalia torna-se mais
comum, seria os tantos ditos repetidos nos tantos diálogos que, possivelmente,
passaria despercebida não se tratasse, neste recorte em particular, de uma
criança autista.
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Recorte 2
Contexto interativo: a terapeuta chama a criança para entrar na sala de terapia, a criança entra, tira a sandália, e depara-se com bolas espalhadas pelo chão. Idade: 07 anos e 06 meses
T*
Gesto (terapeuta) Fala (terapeuta) Gesto (criança) Fala (criança)
1 andando pela sala
á’ muitas bolas’ vâmu jogá”
segura uma bola azul e anda pela sala
2 em pé, segura uma bola
((inicia a canção)) jó:gá:
3 aproxima-se da terapeuta e toca a bola que ela segura
bóla
4 em pé, de frente para a criança
joga a bola
5 joga a bola contra a parede
((começa a cantar)) jó:gá: bo:la não dê:xa caí
6 tira a bola das mãos da terapeuta
7 estende os braços para frente
mi dê uma’
8 entrega a bola azul à terapeuta
9 segura a bola obrigada’ 10 em pé, braços ao
longo do corpo jóga
11 em pé, segurando a bola com as duas mãos, de frente para a criança
jógu aondi”
12 em pé, próximo da terapeuta
jóga
13 “abraça” a bola ao:ndi" pula e passa as pontas dos dedos da mão direita contra a palma da mão esquerda
14 puxa as mãos da terapeuta para que solte a bola
jó:ga bola jóga jóga bola’
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15 joga a bola contra a parede
((cantando)) jó:gá bo:la não dê:xa ((diminui o tom de voz))
16 permanece em pé, ao lado da terapeuta
caí
17 entrega a bola à criança
joga a bola’
18 segura firmemente a bola com as duas mãos e anda pela sala
No recorte selecionado, a criança mostra-se muito participativa, querendo
fazer parte da atividade e solicitando à terapeuta que jogue a bola. No segundo
turno (t2) a terapeuta inicia a canção da bola enquanto segura uma bola com as
duas mãos e a criança completa o seu enunciado com a fala “bóla” (t3). Em
seguida a terapeuta começa a jogar a bola contra a parede e a criança, então, tira
a bola de suas mãos, mostrando claramente que desejava fazer parte do jogo.
Temos uma interação efetiva, com a criança completando a fala da terapeuta,
constituindo, assim, uma situação dialógica.
No turno sete, a terapeuta pede à criança que lhe dê uma bola, ao que a
criança obedece prontamente, entregando à terapeuta não a bola que havia tirado
dela, mas, sim, a bola azul que a própria criança estava segurando no início da
terapia (turno 8).
No turno dez, a criança solicita à terapeuta que jogue a bola com o
enunciado: “jóga"; ao que a terapeuta responde com uma pergunta: “jógu aondi”
e a criança, mais uma vez, solicita: “jóga" (t12) e a terapeuta insiste, abraçando a
bola contra o corpo: “ao:ndi”” e, em resposta, a criança puxa a mão da terapeuta
e pede: “jô:ga bola jóga jóga bola” (t14). Neste trecho específico vê-se que o
intuito da terapeuta era o de provocar a linguagem na criança. A criança queria
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jogar a bola junto com a terapeuta, mas o enunciado “joga a bola para mim” não
foi dito por Hugo, que permaneceu sempre colado às palavras “joga” e “bola”, ora
juntando-as, ora emitindo somente a palavra “joga”. Apesar desta fala em que
duas palavras são insistentemente repetidas, é possível compreender o desejo de
Hugo.
No turno quinze, a terapeuta joga a bola contra a parede e canta uma
música comum à atividade de jogar a bola. Em determinado momento da música
ela diminui o volume da voz, num movimento lingüístico comum quando se quer
ter o enunciado complementado pelo outro, e a criança assume o lugar de locutor,
complementando a fala da terapeuta, preenchendo a “lacuna” por ela deixada
naquela música tão conhecida dos dois. Na medida em que a criança participa
com a terapeuta da música ela interage ativamente, mostrando-se inserida no
diálogo.
No turno dezessete, a terapeuta entrega a bola à criança e pede-lhe que a
devolva. Em resposta, a criança segura firmemente a bola e começa a andar pela
sala, não mais retomando a atividade de jogar com a terapeuta naquela sessão.
É importante ressaltar que, durante a maior parte do tempo em que esteve
com a bola, a terapeuta não a jogou para a criança: mesmo diante das suas
solicitações, jogou a bola contra a parede.
Recorte 3
Contexto interativo: a terapeuta e a criança estão sentadas no chão da sala ao fim de uma sessão; todos os brinquedos utilizados já foram guardados em uma caixa, exceto um animal de borracha que a criança segura em uma das mãos e brinca no chão. Apesar de ter sido dito pela terapeuta que a sessão estava encerrada, a criança persiste na brincadeira. Sentada em uma cadeira, na sala, há também uma fonoaudióloga que não participa diretamente das atividades realizadas. Idade: 07 anos e 08 meses
88
T*
Gesto (terapeuta) Fala (terapeuta) Gesto (criança) Fala (criança)
1 sentada de frente e olhando para a criança
tá na hó:ra’ já terminô a nossa brincadêra’
sentada no chão, de frente para a terapeuta, brincando com um animal de borracha, olha para baixo
2 olhando para a criança
vamos' hugo’ calce o sapa:tu’ tá na hora di ir embora”
continua brincando
3
continua olhando para o brinquedo no chão
senta aí na cadêra
No recorte 2, nota-se claramente a significância pertinente da voz de Hugo,
visto que ele reluta em sair da sala e continua brincando, parecendo estar
indiferente à fala da terapeuta. Contudo, pela resposta dada por Hugo à outra
terapeuta (turno 3): “senta aí na cadêra’”, vê-se que a criança não está alheia ao
mundo da linguagem, percebendo e reagindo à situação. Também podemos
afirmar que a sua fala não se encaixa nos rótulos de “descontextualizada” e “sem
intuito comunicativo”, conforme aponta a literatura (KANNER, 1943;
LEBOYER,2003). Ao contrário, mostra claramente inserida naquele determinado
contexto.
Fica patente que, embora permanecesse envolto nas suas brincadeiras,
Hugo não estava indiferente ao que se passava à sua volta: estava ouvindo e
compreendendo o que era dito, tanto que trouxe uma fala espontânea, ou, pelo
Neste momento, a outra terapeuta que estava na sala levanta-se da cadeira e diz: “Vamos comigo, Hugo. Estou te esperando para sairmos juntos.”
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menos, espontânea nesta situação terapêutica, expressando que não desejava
sair da sala de terapia.
Recorte 4
Contexto interativo: criança senta-se no chão, de costas para a terapeuta, e tira animais de brinquedo de uma caixa. Sentada atrás da criança, a terapeuta mexe em outra caixa e tira de lá carros de plástico. Há bolas espalhadas pelo chão. Idade: 07 anos e 10 meses. T*
Gesto (terapeuta) Fala (terapeuta) Gesto (criança) Fala (criança)
1 segura os carros e vai tirando-os da caixa, um de cada vez
olhi us carrus ó’ hugo’ você vai querê brincá”
de costas para a terapeuta, manuseando animais de plástico
2 começa a colocar os carros de volta na caixa
us carrus istão aqui’
permanece sentada de costas para a terapeuta, manuseando animais de plástico
3 arruma as bolas numa caixa plástica
a bola está aqui’
permanece sentada de costas para a terapeuta, manuseando animais de plástico
4 estende o braço e pega um animal, colocando-o numa caixa
aqui são us animais’
5 gira o corpo para trás e pega o animal que a terapeuta colocou na caixa. olha para a terapeuta.
6 olhando para a criança
vai brinca com us animais”
volta à posição inicial, dando as costas para a terapeuta
7 estende a mão direita para frente e fecha os dedos contra a palma da mão, num gesto de “chamar”
víri pra cá’ mi mostri us animais’ pur favô’ queru vê’
brinca com as miniaturas de animais que estão à sua frente
90
8 olha para a criança
quais são us animais qui você tem aí” (10s)
permanece manuseando os animais
9 gira a cabeça para trás e olha para a terapeuta
LIÃO’
10 sorri batendo palmas
eita'
11 olhando para a terapeuta
lião
12 olha para a criança
leão' cadê u leão”
volta-se para a frente, de costas para a terapeuta, e manuseia os animais
13 olha para a criança
lião' qui mais” procura’
joga um cavalo na caixa vazia
14 segura o animal que a criança jogou na caixa e, imediatamente, coloca-o de volta
eita' issu aqui” issu aqui não é lião’ cadê u lião” (10s)
permanece manuseando os animais, de costas para a terapeuta
15 olha para a criança
qual é u animau que tem aí mais”
inicia movimento estereotipado de friccionar as pontas dos dedos da mão direita contra a palma da mão esquerda
16 eu não tô vendo’ eu não to vendu nenhum animal’ mi mostra’
inclina o corpo para baixo e continua a estereotipia, friccionando as pontas dos dedos da mão direita contra a palma da mão esquerda
17 hugu” (5s)
permanece friccionando as pontas dos dedos da mão direita contra a palma da mão esquerda
18 bate palmas permanece friccionando as pontas dos dedos da mão direita contra a palma da mão esquerda
91
19 olha para a criança
eu queru brincá com você também’ eu tava com saudadi’ mi mostri us animais’
permanece na estereotipia, agora com vocalização
éééééé
20 mi mostri u qui você tem aí’ (8s)
continua friccionando as pontas dos dedos da mão direita contra a palma da mão esquerda
21 hum” coloca o leão na frente da terapeuta, volta-se de costas para ela e recomeça a friccionar as pontas dos dedos da mão direita contra a palma da mão esquerda
22
segura o leão
a' mi mostrô u lião
permanece na estereotipia, sem vocalização
23 aproxima-se da criança e toca o seu braço
você tá feliz é” tá feliz purquê você tem essis bichus todus e eu só tenho um’
olha para a terapeuta e para a estereotipia
24 olha para a criança
mi dá ôtru’ mi dá ôtru’
No início do recorte 4, a criança não aparentou interesse em olhar para a
terapeuta enquanto esta brincava com os carros e com as bolas. Contudo, a
criança reagiu imediatamente quando a terapeuta pegou um dos brinquedos que
92
a criança estava manuseando (um animal de plástico), tomando de volta o animal
(t5).
É importante ressaltar que o discurso da terapeuta durante os turnos t1 a t8
foram encadeados, sem momentos de silêncio ou pausas prolongadas. Apenas
em t8 a terapeuta faz uma pergunta à criança “quais são us animais qui você
tem aí”” e realiza uma pausa de 10 segundos, obtendo uma resposta da criança
que diz, em voz alta e ritmo acelerado “LIÃO” (t9). A nosso ver, o silêncio da
terapeuta foi um acontecimento importante para que a criança se colocasse no
discurso pela primeira vez durante esta sessão específica13. Ao perguntar
diretamente quais os animais que a criança tem e ao dar um espaço, através do
silêncio, a terapeuta atribui à criança o lugar de interlocutor, daquele para quem/
com quem se fala, do outro do diálogo.
Ao receber uma resposta positiva por parte da terapeuta que sorri e bate
palmas (t10), Hugo repete o seu enunciado e mais uma vez afirma ser o leão o
animal com o qual brinca. Nesta segunda fala (t11), o enunciado de Hugo se dá
de forma mais tranqüila, num ritmo mais lento e num tom de voz mais baixo, que
no turno anterior. Poderia esta fala de Hugo (t11) ser caracterizada como um
episódio de ecolalia? Sim, acreditamos que sim na parte da ecolalia que diz tratar-
se de uma “fala em eco”, repetida, mas não no sentido de uma fala
descontextualizada ou sem intuito comunicativo. A ecolalia, a nosso ver, não está
necessariamente fora do sentido da linguagem, desprovida de “motivação”. Tal
perspectiva por nós apresentada é partilhada por outros pesquisadores, a
exemplo de Rego (2005) que afirma que é possível olhar além do aspecto
13 Para maiores informações sobre a importância do silêncio como “porta de entrada” para a criança / bebê no discurso, ver Cavalcante (1999).
93
patológico envolvido na fala ecolálica, atribuindo a ela um espaço de subjetivação
do sujeito.
Neste trecho específico do recorte selecionado (turnos 8 a 13), é
estabelecida uma situação de interação efetiva entre terapeuta – paciente e a
criança é colocada, pela terapeuta, no lugar daquele que fala, daquele que
poderia responder ao que lhe é perguntado. A criança, por sua vez, assume o
papel do sujeito da fala e responde à pergunta da terapeuta, dizendo que o leão é
o animal com o qual brinca. No turno 13, a terapeuta retoma a fala da criança,
repetindo a palavra “lião” e solicitando outros animais “qui mais””.
Neste recorte, a exemplo do que acontece no recorte 1b, se retomarmos
que o enunciado “leão” já foi dito pela criança nesta sessão terapêutica, então
temos a ecolalia ou a repetição presente na fala da terapeuta. Ela parte do
enunciado final da criança para iniciar o seu próprio enunciado, resgatando o dito
e introduzindo o ineditismo ao solicitar por outros animais.
A resposta da criança ao enunciado da terapeuta, em t13, foi coerente com
a solicitação feita. A terapeuta diz: “lião’ qui mais” procura’” ao que a criança
responde jogando um cavalo de brinquedo na caixa. A ação da criança foi com o
intuito de oferecer à terapeuta aquilo que havia sido pedido: outros animais.
Contudo, como acontece em qualquer situação de diálogo, a terapeuta não
parece se lembrar do que havia solicitado à criança, uma vez que estranha o
cavalo que a criança lhe mostra. Ao dizer: “eita’ issu aqui” issu aqui não é lião’
cadê u lião”” a terapeuta diz à criança que ela não correspondeu à solicitação
inicial. Aqui testemunha-se um “lapso” no discurso da terapeuta, “lapsos” comuns
nas situações de comunicação, tendo sido percebida aqui por se tratar de uma
transcrição com análise da interação desta díade em particular.
94
A criança, no turno quinze, inicia um movimento estereotipado, que lhe é
particular e comum às situações de felicidade e/ou insatisfação, sentimentos
intensos e opostos, que é o movimento de friccionar as pontas dos dedos da mão
direita contra a palma da mão esquerda. Talvez tenha sido em resposta ao fato de
não ter tido o seu comportamento compreendido, mas isso foge à nossa análise.
Não pretendemos aqui decifrar o comportamento de Hugo, apenas constatamos
que este movimento estereotipado em particular sempre acompanhou situações
prazerosas e/ou angustiantes. A estereotipia de Hugo, iniciada no turno quinze, e
acompanhada de vocalização no turno dezenove, tem uma breve interrupção no
turno vinte e um, sendo imediatamente retomada até o turno vinte e dois.
Nos turnos quinze e dezesseis, a terapeuta diz à criança que quer ver os
animais, pedindo que os mostre a ela. A criança, contudo, permanece na
estereotipia.
No turno dezessete, a terapeuta chama a criança pelo nome e, ao não
obter resposta, bate palmas (turno dezoito), fazendo um barulho diferente da
solicitação vocal, o que também não provoca reação na criança. Em seguida,
turno dezenove, a terapeuta expressa o seu desejo de brincar com a criança,
tratando o momento de estereotipia de Hugo como uma brincadeira: “eu queru
brincá com você também’”. Neste turno, a estereotipia de Hugo passa a ser
acompanhada de uma vocalização contínua “éééeééé”.
Nos turnos 8, 14, 17 e 20, a terapeuta realiza pausas após as solicitações
feitas à criança. Ao perguntar “quais são us animais que você tem aí”” a
terapeuta espera 10 segundos, dando à criança o espaço para que entre no
diálogo. No turno vinte, a terapeuta pede para ver o animal que a criança tem nas
mãos “mi mostri u qui você tem aí” e permanece em silêncio durante oito
95
segundos, quando a criança coloca a miniatura do leão em frente à terapeuta. De
imediato, a resposta da terapeuta, turno vinte e dois, mostra que a criança agiu
conforme o solicitado, dizendo: “a’ mi mostrô u lião’”.
Apesar de a criança ter entregue o objeto solicitado à terapeuta, a
estereotipia persiste e, no intuito de contextualizá-la, a terapeuta aproxima-se e
toca a criança, turno vinte e dois, dizendo: ”você tá feliz é” tá feliz purquê você
tem essis bichus todus e eu só tenho um”” Após esta troca interativa, a
estereotipia é encerrada. Aqui, mais uma vez, não sabemos o que fez com que
Hugo interrompesse os movimentos estereotipados.
Uma vez “resgatada” a criança de sua estereotipia, a terapeuta volta a
solicitar por mais animais, dando continuidade à sessão terapêutica.
Neste recorte específico, temos a presença da estereotipia, que provoca
inquietude na terapeuta. Sabe-se que as estereotipias, como já dito na
fundamentação teórica deste estudo, são movimentos considerados “diferentes”
e, consequentemente, causam estranhamento.
Desde o início deste processo terapêutico as estereotipias foram tratadas
como comportamento a ser eliminado. Assim, a terapeuta contextualiza e atribui
significado aos episódios apresentados por Hugo, na tentativa de mostrar à
criança que aquele comportamento provoca no outro uma reação, sendo
percebido na interação.
Recorte 5
Contexto interativo: sentadas no chão, terapeuta e criança manuseiam as peças de um zoológico em miniatura espalhadas pelo chão. Há uma caixa vazia, da qual a criança tirou os animais. A criança está de costas para a terapeuta. Na sessão anterior, a terapeuta trouxe bonecos de super-heróis e a criança identificou e manuseou o boneco do Batman. Idade: 07 anos e 11 meses
96
T*
Gesto (terapeuta) Fala (terapeuta) Gesto (criança) Fala (criança)
1 coloca o cavalo atrás da cerca
ó sentada de costas para a terapeuta, manuseia os animais
2 vira para trás e olha para a terapeuta
bátina' bátina' ((ritmo acelerado))
3 olha para a criança
sim::
4 olha para a terapeuta bátina ((ritmo acelerado))
5 levanta o queixo ligeiramente para cima, ainda olhando para a criança
u: bá:timã:: eu não tenhu u bátimã hoji' ou será qui eu tenhu”
volta-se de costas para a terapeuta e começa a manusear os animais
6 de joelhos, começa a procurar numa gaveta
inicia o movimento estereotipado, friccionando as pontas dos dedos da mão direita contra a palma da mão esquerda
7
encontra uma revista com os super-heróis na capa, senta-se no chão, de frente para a criança e começa a colocar os animais na caixa
ó u homem aranha’ venha pra cá’ venha’ eu arrumu us animais’
8 arruma os animais na caixa
venha pra cá’ venha ((mesma entonação da terapeuta))
9 arrumando os animais na caixa, sorri
venha pra cá’ venha’ senti aqui juntu di mim’ tia déia tá chamanu’ comu é qui tia déia chama”
sorrindo, continua colocando os animais na caixa
97
Neste recorte, a exemplo do que já foi evidenciado em recortes anteriores,
a repetição de enunciados está presente, tanto por parte da terapeuta como por
parte da criança, fazendo parte do processo de comunicação. Em sua primeira
fala, turno dois, a criança diz e repete o enunciado “bátina”. No turno oito, a
criança volta a repetir, desta vez não sua própria fala, mas a fala da terapeuta,
usando, inclusive, a mesma entonação da terapeuta. O enunciado da terapeuta
foi parcialmente repetido pela criança “venha pra cá’ venha“. Ao mesmo tempo
em que repete a fala da terapeuta, a criança também repete a ação da terapeuta,
colocando os animais numa caixa. No turno nove é a terapeuta que faz uso da
repetição. Ela inicia a sua fala repetindo o enunciado da criança, que já foi um
enunciado dela repetido pela criança, usando-o como ponto de partida para o
resto de sua fala: “venha pra cá’ venha’ senti aqui juntu de mim’ tia déia tá
chamanu’ comu é qui tia déia chama””.
Também achamos importante ressaltar que, ao caracterizar a linguagem do
autista, os autores14 mencionam a inversão pronominal (troca da 1ª. pela 3ª.
pessoa no singular) como característica destas crianças. No recorte acima, vemos
que a terapeuta também fala de si na terceira pessoa do singular, se
autodenominando “tia déia”: “comu é qui tia déia chama””. Desta forma,
trazemos de volta a indagação feita em outra situação de análise sobre o quanto
a linguagem que circula no diálogo é passível de “contaminação” por todos os que
fazem parte da situação interacional.
Voltando à primeira fala da criança, turno dois, vemos um enunciado
inédito para aquele dia de terapia. O personagem do batman havia sido usado na
terapia anterior, mas mostrou-se como enunciado inédito nesta terapia específica.
14 Gauderer (1997), Perissinoto (2003), Leboyer (2003), dentre outros.
98
A criança estava de costas para a terapeuta e reagiu ao seu chamado, olhando
para ela e para o brinquedo que mostrou. Mostrando o seu desejo de brincar com
o batman e não com o cavalo apresentado pela terapeuta, a criança diz “bátina”,
voltando a repetir o enunciado no turno seguinte quando só tinha conseguido da
terapeuta um “sim” como resposta. Ao perceber que a terapeuta compreendeu a
sua solicitação “u: ba:timã:: eu não tenhu u bátimã hoji’ ou será qui eu
tenhu””” a criança não mais insiste no mesmo enunciado, passando a apresentar
o comportamento estereotipado de friccionar as pontas dos dedos da mão direita
contra a palma da mão esquerda.
No turno sete, a terapeuta chama a criança para perto: “ó u homem
aranha’ venha pra cá’ venha’ eu arrumu us animais’” enquanto começa a
colocar os animais na caixa. A criança repete a ação e a fala da terapeuta,
colocando alguns animais também na caixa enquanto repete “venha pra cá,
venha”, fazendo uso da mesma entonação da terapeuta.
Ao perceber que o seu enunciado do turno oito provocou reação na
terapeuta, turno oito, a criança sorri. A terapeuta, no turno nove, faz uso da
repetição que a criança emitiu e coloca essa fala para circular no discurso,
pontuando que é assim que ela (terapeuta) o chama para sentar-se junto dela:
“venha pra cá’ venha’ senti aqui juntu de mim’ tia déia tá chamanu’ comu é
qui tia déia chama””.
Conforme mostrado, a ecolalia presente não impossibilita o diálogo. Ao
contrário, parece ser usada como ponto de retomada da fala do outro,
principalmente quando utilizada pela terapeuta, ou como orientação de
compreensão do enunciado, aqui por parte da criança.
99
Recorte 6a
Contexto interativo: a terapeuta e a criança usam o computador. Hugo está sentado na cadeira e a terapeuta está em pé, por trás dele, manuseando o mouse. A terapeuta mostra uma apresentação com diversas figuras, muito semelhante a um álbum articulatório15. Idade: 07 anos e 11 meses
T* Figura mostrada no monitor
Gesto (terapeuta)
Fala (terapeuta)
Gesto (criança)
Fala (criança)
1 banana aponta para o monitor
u:m' u qui é issu”
olha o monitor
2 duas figuras de bolo
bate palmas parabéns pra você' nessa data querida' U BÔLU'
inicia movimento estereotipado, friccionando as pontas dos dedos da mão direita contra a palma da mão esquerda
3 chocolate sonho de valsa
CONFÊITU (em ritmo acelerado)
4 olha para a criança
confêitu
5 cachorro quente
u pão'
6 olha para frente, para o monitor
toca o rosto da terapeuta
7 olha para o rosto de hugo
hum”
8 pão (3s) pão 9 olha para a
criança e sorri
u pão
10 espeto de carne
olha para o monitor
u qui é issu” (5s) carninha
olha o monitor
15 Material utilizado em terapia fonoaudiológica que apresenta diversas ilustrações, a fim de se avaliar a linguagem da criança.
100
11 cebola olha para o monitor
olha para o monitor
má' maçã
12 olha para o monitor
cebola
13 cenoura a flô 14 olha para o
monitor cenoura
15 garrafa de cerveja
antática
16 sorri e olha para a criança
antá:rtica
17 garrafa de coca-cola
realiza movimento estereotipado de friccionar as pontas dos dedos da mão direita contra a palma da mão esquerda
coca-cola (ritmo acelerado)
18 sorri co:ca co:la' coca-cola é issu aí'
Nesta sessão terapêutica o uso do computador causou grande satisfação a
Hugo, que participou ativamente, reconhecendo e nomeando as figuras
mostradas no monitor sem dificuldades.
No turno 3, ao ver a figura do sonho de valsa, Hugo grita “CONFÊITu”
mesmo antes da terapeuta perguntar a ele o que era. A fala da criança é repetida
pela terapeuta, como numa concordância.
Ao se deparar com a figura de um cachorro quente, no turno 5, Hugo diz “u
pão” e, ao não receber uma reação imediata da terapeuta, toca no rosto da
terapeuta, turno seis, fazendo com que ela olhe para o seu rosto. O gesto da
101
criança provoca uma resposta da terapeuta, que pergunta “hum””, ao que a
criança responde, turno oito, repetindo o enunciado “pão’ (3s) pão”. A terapeuta,
no turno seguinte, repete o enunciado “u pão”, em concordância com a fala de
Hugo. Aqui ressaltamos o uso da gestualidade como parte integrante da
comunicação (McNeill, 2000).
No turno 11, a criança associa a figura de uma cebola a uma maçã, e a
terapeuta responde nomeando corretamente a figura. O mesmo acontece no
turno treze, quando a criança chama a cenoura de flor. A terapeuta não aceita a
nomeação incorreta por parte da criança, dando às figuras os nomes corretos. Ao
fazer isto, a terapeuta fala do lugar do “outro que tem uma maior capacidade
“linguageira””16 (GUIMARÃES LEMOS, 2002).
Desejamos ressaltar, também, que mesmo nomeando “incorretamente” as
figuras apresentadas nos turnos 11 e 13, a criança demonstrou perceber que o
objetivo da atividade era a nomeação e agiu de acordo com as expectativas,
dando nome às figuras à medida que apareciam no monitor.
No turno 15, a criança reconhece a garrafa de cerveja, dizendo o nome de
uma marca de cerveja amplamente conhecida, o que provoca um sorriso de
satisfação da terapeuta. No turno dezessete, a criança reconhece a garrafa de
coca-cola e nomeia-a rapidamente, acompanhado do movimento estereotipado de
friccionar as pontas dos dedos da mão direita contra a palma da mão esquerda.
Mais uma vez, conforme visto em recorte anterior, a criança usa-se da
estereotipia num momento de alegria.
As estereotipias que a criança apresentou neste recorte foram nos turnos
dois e dezessete, interrompendo-as imediatamente após a apresentação das
16 Aspas da autora.
102
figuras de bolo e coca-cola. Como já foi dito em outro momento da análise e
apresentação dos dados, a estereotipia de Hugo está associada a momentos de
felicidade e/ou angústia. Neste caso específico, podemos dizer que Hugo ficou
feliz em ver a figura do bolo e da coca-cola, porque além da estereotipia ele sorria
e demonstrava alegria. Também sabemos, pelo convívio da terapeuta com a
criança, que bolo e coca-cola são alimentos de que a criança gosta.
Recorte 6b
Contexto interativo: continuação da sessão terapêutica mostrada no recorte 8, com a criança e a terapeuta ainda diante do computador. T* Figura
mostrada no monitor
Gesto (terapeuta)
Fala (terapeuta)
Gesto (criança)
Fala (criança)
19 mamadeira inicia movimento estereotipado de friccionar as pontas dos dedos da mão direita contra a palma da mão esquerda
20 faz sinal negativo com o dedo indicador
mamadêra não' eu sei qui você ainda tôma mamadê:ra pra durmi
21 mamadêra 22 olha para a
criança mais não' tu já tá grandi
23 chuveiro ajoelha-se ao lado da criança e olha para ela
sábi u qui é issu”
olha o monitor
24 tumá bánhu 25 computador aponta para o
monitor ó
103
26 inclina-se em direção ao ouvido da terapeuta
tadô ((cochichando no ouvido))
27 sorri e olha para a criança
computadô
28 liquidificador leitinhu ((ritmo acelerado))
29 sorrindo, olha para a criança
é u liquidificadô' é ondi faz u leitinhu di hugu'
Neste trecho da terapia, achamos interessante ressaltar que Hugo
reconhece a função dos objetos mesmo quando não os consegue nomear, a
exemplo dos turnos vinte e três e vinte e oito. No turno vinte e três, mediante a
figura de um chuveiro, a terapeuta pergunta à criança: “sabi u qui é issu”” e a
criança responde “tumá banhu”, atribuindo uma função ao chuveiro, mostrando
reconhecer aquela figura e seu uso social. No turno vinte e oito, a criança
reconhece o “leitinho” como produto final do liquidificador. Desta vez a terapeuta
contextualiza a fala da criança, dizendo: “é u liquidificadô’ é ondi faz u leitinhu
de hugo’”. Por saber que o liquidificador é utilizado para preparar o seu leite,
Hugo atribuiu o nome leitinho ao objeto liquidificador. A terapeuta aparece como
instância de significação da fala da criança (GUIMARÃES LEMOS, 2002).
No turno vinte e seis, a criança aproxima-se do ouvido da terapeuta, sua
gestualidade associada ao tom de voz baixo constituem uma situação específica
do diálogo. Fala e gesto, indissociados, representam, neste caso, o ato de
cochichar realizado por Hugo (Mc NEILL, 2000).
104
Também neste trecho Hugo apresenta o movimento estereotipado, desta
vez ao ver a figura de uma mamadeira. A criança ainda é alimentada através da
mamadeira no horário noturno, antes de dormir. Mais uma vez, tal como no
recorte anterior, podemos associar a estereotipia de Hugo à felicidade em ver a
figura da mamadeira, algo prazeroso para ele.
A atividade de nomear figuras no computador provocou uma linguagem na
criança e foi possível perceber, através de suas falas e de seus comportamentos,
sua satisfação em realizar tal atividade.
105
IV. Considerações Finais
É difícil saber o melhor caminho para a terapia de linguagem com uma
criança autista, visto que não há, ainda, uma certeza sobre a etiologia do autismo
nem um padrão único de comportamento apresentado por estas crianças. Assim,
o fazer clínico tem sido baseado, essencialmente, pelo bom senso do terapeuta e
pela sua atitude diante do quadro de autismo. Pode-se ver que, no caso descrito
aqui, há uma interação efetiva terapeuta – paciente, provocando uma reação
nesta criança, que pode ser percebida em sua linguagem.
Na literatura, trata-se sempre da criança autista como aquela da falta: de
interação, de linguagem, de interesse, de contato social, de contato visual, de
risada, de gestos significativos, de comunicação. Pouco ou quase nada se fala
sobre o que a criança autista tem, suas aptidões e capacidades (CAVALCANTI E
ROCHA, 2001).
De acordo com Cavalcanti e Rocha (2001), é de grande impacto a idéia
que se tem sobre o autismo e não há como isso não interferir na vida dos
familiares e das pessoas que lidam com esses indivíduos, incluindo aqui
profissionais considerados como “aptos” para lidar com estas crianças.
Desta forma, ao se considerar o autista como um sujeito passível de
desenvolvimento, capaz de apresentar habilidades próprias e que está inserido no
mundo e não alheio a ele, permite-se a esta criança um desenvolvimento de outro
modo negado quando se vê no autista somente o lugar da falta.
Em particular sobre a linguagem, é preciso que seja considerada como
constituinte e constituída pelo sujeito e, assim, que se abandone o estigma de que
o autista, mesmo que fale, nada tem a dizer, visto que o seu discurso é vazio. É
106
necessário que se atribua à criança autista o seu lugar de autor do discurso, de
forma que ela sinta que a sua fala lhe pertence e que produz efeito no outro
(interlocutor). Ao se tomar a linguagem como lugar de subjetivação, a idéia de um
sujeito que fala mas que “nada tem a dizer” é imediatamente descartada.
A fala do autista, se sempre considerada como ecolálica e sem intuito
comunicativo, receberá do outro/interlocutor interpretação semelhante e como tal
será, provavelmente, descartada do eixo da linguagem. Se o autista “não fala”
então ele nada nos diz. Ora, é exatamente o oposto do que se vê em situações
interacionais com crianças autistas. Vemos crianças que falam, sim, com
particularidades de linguagem, também, mas que definitivamente existem e se
colocam na e pela linguagem.
Se não é novo que a idéia que se faz do termo “autismo” é sempre
negativa (CAVALCANTI & ROCHA, 2001), é importante que se pense o impacto
deste termo também no outro (profissional) que lida com estas crianças. Se na
clínica nos deparamos com um sujeito cuja linguagem nos é enigmática e cuja
subjetividade nos parece muito distante, como será que isso reflete no nosso
trabalho? Quantas falas não “ouvimos”, quantos silêncios evitamos e quantas
vezes falamos nós em “eco” por estarmos ligados diretamente àquele outro?
O que a fala de Hugo nos mostra? Embora haja presença de ecolalia, no
seu sentido literal, esta é feita de forma coerente. Toda a fala escolhida por Hugo
para ser repetida encaixa-se perfeitamente no contexto dialógico. Além da fala
ecolálica, há enunciados inusitados e a criança mostra-se inserida na linguagem.
E o que diz a situação terapêutica? Pode-se dizer que a terapeuta, na
condição de interlocutora, procura significar a fala de Hugo, acolhendo sempre o
que ele profere e talvez seja isto que provoca em Hugo as situações de
107
linguagem. Diante disso, é viável pensar se, ao perceber a sua fala como parte
constitutiva de um diálogo, Hugo não se sinta mais à vontade para permanecer
nesta situação e, conseqüentemente, coloque-se mais e participe, deixando vir à
tona o sujeito da linguagem.
Mais inquietações que esclarecimentos nos levaram a enfrentar este
estudo e seu desenvolvimento. Se, a nosso ver, está claro que há linguagem na
criança autista, restam ainda dúvidas relativas a outros aspectos da comunicação,
como exemplo: qual será o efeito que esta linguagem diferente e particular
provoca no outro? Outra questão que levantamos é relativa aos gestos, ou
ausência deles, conforme apontado pela literatura tradicional (LEBOYER, 2003).
Será que não se pode dizer que há gestualidade na comunicação do autista? Se
acreditamos que a fala e os gestos, juntos, constituem a linguagem (Mc NEILL,
2000) e se levantamos a bandeira de que a linguagem do autista existe e é
significativa, então faz-se necessário questionar a idéia difundida na literatura da
área médica sobre a ausência de gestos por parte da criança autista.
Conforme também já dito na literatura, há uma pluralidade no autismo:
manifesta-se de formas diferentes nos indivíduos. Por isso o nosso estudo explora
o fenômeno da linguagem em uma criança autista específica, em determinado
contexto terapêutico. As nossas indagações, embora possamos tentar ampliá-las
para o quadro do autismo em geral, referem-se a um contexto específico,
envolvendo a díade da pesquisa.
Contudo, e embora não haja pretensão de generalização dos dados aqui
encontrados, gostaríamos que este estudo permitisse um outro olhar em relação
ao autismo. Se o sujeito da nossa pesquisa, Hugo, apresenta linguagem, então
porque não repensar conceitos tão fortemente arraigados em relação ao autismo?
108
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