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1
UNIVERSIDADE DE COIMBRA
FACULDADE DE DIREITO
2 CICLO DE ESTUDOS EM DIREITO
A LAICIDADE NA FRANA REPUBLICANA: a questo da indumentria religiosa
perante o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.
Anne Kharine da Silva Perazzo
COIMBRA
2015
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2
ANNE KHARINE DA SILVA PERAZZO
A LAICIDADE NA FRANA REPUBLICANA: a questo do uso da indumentria
religiosa perante o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.
Dissertao apresentada no mbito do 2 Ciclo de
Estudos em Direito da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra, como requisito de
aprovao obteno do grau de Mestre.
rea de Especializao: Mestrado Cientfico em
Cincias Jurdico-Polticas.
Meno: Direito Constitucional.
Orientador: Professor Doutor Jnatas Eduardo
Mendes Machado.
COIMBRA
2015
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3
Dedico este trabalho integralmente aos meus
filhos, Gabriel e Alice Maria, como
reconhecimento a todo esforo que fizeram, em
virtude de minha ausncia.
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4
AGRADECIMENTOS
Primeiramente, agradeo a Deus essa oportunidade mpar em minha vida, pois
sem Ele nada seria possvel;
Reconheo os esforos de alguns amigos e familiares que me impulsionaram
nesse projeto, com palavras de carinho e incentivo;
Ao professor Doutor Jnatas Eduardo Mendes Machado, que alm de meu
professor na disciplina de Direito Internacional Pblico, foi meu orientador nesse projeto;
Aos professores Doutores Paula Margarida Veiga, Fernando Alves Correia e
Alexandra Arago, por tudo que foi transmitido em suas aulas ministradas no Mestrado de
Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra;
Aos funcionrios da Universidade de Coimbra, que sempre se mostraram de
prontido a ajudar no que fosse necessrio;
A todos que contriburam direta ou indiretamente, para a elaborao e concluso
desta dissertao, meus sinceros agradecimentos.
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5
A Lei de ouro do comportamento a tolerncia
mtua, j que nunca pensaremos todos da mesma
maneira, j que nunca veremos seno uma parte
da verdade e sob ngulos diversos.
Mahatma Gandhi.
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6
RESUMO
Esta dissertao tem como objetivo abordar a questo do vu integral em territrio francs
aps a lei n 1.192, de 11 de outubro de 2010, proibindo seu uso em todas as vias e
logradouros pblicos, inclusive as escolas pblicas. Inicialmente, para uma melhor
compreenso da matria, foi abordada a questo do direito Liberdade Religiosa como um
direito fundamental de todo cidado e a sua interao com os direitos humanos. Fala-se
rapidamente na questo dos smbolos religiosos e sua importncia e razo de ser na
religiosidade humana. Logo aps, discorremos sobre os conceitos e diferenas entre
laicidade, laicismo e secularismo. O terceiro captulo foi dedicado ao estudo dos
muulmanos franceses, a vinda deles para a Frana, sua chegada e como foram recebidos,
e por fim, as dificuldades na integrao da comunidade muulmana em solo francs. No
quarto captulo destacamos alguns aspectos da Conveno Europeia dos Direitos Humanos
e do funcionamento do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, o TEDH. O ltimo
captulo foi dedicado ao julgamento da cidad francesa pela Corte de Estrasburgo, S.A.S,
que se sentiu prejudicada com a vigncia da lei que probe o vu integral da Frana,
entendendo que ocorreu uma afronta a vrios artigos da Conveno Europeia, que a Frana
signatria. O TEDH, indo de encontro aos artigos da Conveno e prestigiando a Teoria
da Margem de Apreciao, julgou improcedente a ao da cidad francesa, uma vez que
entendeu que os rigores da Lei francesa eram proporcionais ao que se tentava proteger: a
igualdade de gnero, as relaes interpessoais e a segurana nacional.
Palavras-chave: Liberdade de Religio. Igualdade de Gnero. Uso do vu. Laicidade e
Secularismo.
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7
ABSTRACT
This paper aims to address the full veil issue in France after Law No. 1,192, of October 11,
2010, prohibiting its use on roads and public places, including public schools. Initially, for
a better understanding of the matter, religious freedom is addressed as a fundamental right
of all citizens and its interaction with human rights. There is a brief reference to the issue
of religious symbols and their importance and rationale in human religiosity. Then we
continue to explore the concepts and differences among secularity, laicism and secularism.
The third chapter is devoted to the study of French Muslims, their settlement in France,
their arrival and how they were received, and finally, the difficulties in the integration of
the Muslim community in France. In the fourth chapter we highlight some aspects of the
European Convention on Human Rights and the role of the European Court of Human
Rights, the ECHR. The last chapter was devoted to the trial of a French citizen by the
Court of Strasbourg, SAS, who felt aggrieved by the law banning the full veil in France,
understanding that there were transgressions to several articles of the European
Convention, which is endorsed by France. The ECHR, going against the articles of the
Convention and honoring the Doctrine of the Margin of Appreciation, dismissed the law
suit of the French citizen, stating that the rigorous nature of French Law upholds what it is
trying to protect: gender equality, interpersonal relations and national security.
Keywords: Freedom of religion. Gender equality. Veiling. Secularity and secularism.
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8
SUMRIO
INTRODUO ................................................................................................................ 9
1.2. A RELAO ENTRE O DIREITO FUNDAMENTAL RELIGIOSIDADE E OS DIREITOS HUMANOS ............ 19
1.3. LIBERDADE DE CRENA, DE CONSCINCIA, DE CULTO E DE ORGANIZAO RELIGIOSA. .................. 25
1.4. A UTILIZAO DOS SMBOLOS RELIGIOSOS ........................................................................... 33
2. SECULARISMO E LAICIDADE NA FRANA. ................................................................. 39
2.1. CONCEITUAO DE SECULARISMO E LAICIDADE ..................................................................... 39
2.2. DIFERENCIAO DOS CONCEITOS DE LAICIDADE E LAICISMO .................................................... 46
2.3. O SURGIMENTO E A EVOLUO DA LAICIDADE FRANCESA ....................................................... 51
2.3.1 Laicidade Francesa ........................................................................................... 52
3. AS DIFICULDADES DA INTEGRAO MUULMANA NA FRANA ................................ 62
3.1. A IMIGRAO ARGELINA NA FRANA ................................................................................. 62
3.2 A FRANA MUULMANA VERSUS A FRANA REPUBLICANA ..................................................... 65
3.3. A PREOCUPAO FRANCESA COM A SEGURANA. ................................................................. 75
4. A CONVENO E O TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS HUMANOS ......................... 80
4.1. CONVENO EUROPEIA DOS DIREITOS HUMANOS ................................................................ 80
4.2. TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS HUMANOS ..................................................................... 84
4.2.1. Teoria da Margem de Apreciao ..................................................................... 85
5. O CASO S.A.S. JULGADO PELO TEDH......................................................................... 92
CONSIDERAES FINAIS .............................................................................................. 98
REFERNCIAS ............................................................................................................ 102
-
9
INTRODUO
Assistimos perplexos aos atentados terroristas s torres gmeas e ao Pentgono,
nos Estados Unidos, perpetrados por terroristas muulmanos. Do outro lado do oceano, na
Frana, em janeiro de 2015, vimos o semanrio Charlie Hebdo ser invadido por dois
terroristas, tambm de origem muulmana, e vrias pessoas serem assassinadas. A
intolerncia religiosa e a falta de respeito pelo prximo a chave de toda essa barbrie que
temos presenciado.
Esse trabalho aborda a Liberdade Religiosa como um direito fundamental e
intrnseco a todo ser humano. Possui, como ncleo essencial, a dignidade do ser humano, o
respeito e a tolerncia pela diversidade e multiculturalismo. Percebemos que a Revoluo
Francesa teve um papel importante na poltica francesa, na medida em que favoreceu a
ruptura entre o Estado e a Religio. Os cidados, naquele momento, estavam ansiosos pelo
afastamento da Igreja nos assuntos polticos do Estado. Iniciava-se a, mesmo que de uma
forma tmida, o incio do desenlace dessa unio Estado/Igreja, que atravessava muitos
sculos.
Os valores da Revoluo Francesa ainda se encontram presentes em muitos
franceses. O princpio da Laicidade, to propagada como um dos dogmas da Revoluo,
at hoje est vivo nos cidados. Apesar da secularizao do espao pblico estar presente
em quase todos os pases europeus, na Frana h peculiaridades prprias e intrnsecas sua
histria. O captulo dois versar sobre o conceito do que vem a ser a laicidade,
secularizao e do laicismo, assim como suas diferenas.
Ainda no captulo dois, estudaremos a Lei que separou definitivamente o Estado
e a Religio na Frana, em 1905, e sua importncia no cenrio poltico, jurdico e religioso
no momento em que foi promulgada. O princpio da laicidade surge, na constituio
francesa, como um dos elementos integrantes da repblica francesa, em 1946, tamanho sua
importncia. Ser abordada a problemtica das discusses sobre a neutralidade religiosa
nas escolas pblicas que ressurgiu em 1989. O Conselho do Estado, atravs de uma
circular, limitou o uso ou porte de qualquer smbolo de natureza religiosa que dificulte ou
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10
diminua a mobilidade do aluno na escola. Caberia aos diretores de cada escola estabelecer
o que ou no apropriado, causando fortes debates e muitas insatisfaes, principalmente
entre os muulmanos.
No captulo trs, falaremos brevemente sobre a Arglia, pas do norte da frica, a
qual, por mais de cem anos, foi colnia francesa. Entenderemos essa relao conflituosa
entre os franceses e os imigrantes argelinos, apesar de hoje em dia muitos deles j serem
considerados cidados franceses. Na segunda metade do sculo dezenove, guiados pelas
dificuldades financeiras e a pobreza, os argelinos fazem o caminho inverso dos franceses e
migram para Frana e logo se tornam uma forte fora de trabalho de muita valia,
principalmente aps a segunda guerra mundial. Os problemas e as dificuldades de
integrao dessa comunidade muulmana so imensos. A maior parte dos cidados da
religio muulmana, possui pouca instruo e reside nas periferias das grandes cidades.
Sero analisados os principais motivos e graves consequncias dessa problemtica e
possvel interferncia na poltica religiosa da Frana.
A Frana laica, democrtica e republicana no poderia permitir que as meninas
muulmanas, muitas delas recm-sadas da puberdade, usassem vu dentro de suas escolas
em respeito a sua religio. Muitos franceses consideram isso uma afronta aos princpios
republicanos do pas e se mostraram inflexveis. A Lei n 228, de 15 de maro de 2004,
encerra toda e qualquer discusso ou dvidas possveis acerca da circular do Conselho do
Estado Francs proibindo, definitivamente, qualquer vestimenta ou pertena de carter
religioso em salas de aula. Apesar da lei acima referida ter tido forte impacto nas
comunidades religiosas, em especial a muulmana, devido o uso obrigatrio do vu,
nada foi to devastador e frustrante quanto promulgao da Lei n 2.010-1192,
prontamente revalidada pelo Tribunal Constitucional Francs em outubro do mesmo ano.
A citada lei probe o uso do vu islmico ou qualquer outra vestimenta, seja religiosa ou
no, em espaos pblicos franceses.
Tratando-se de uma matria controversa e muito delicada, principalmente devido
uma possvel coliso da lei que probe o uso do vu em territrio francs e o direito
fundamental liberdade religiosa e a dignidade do ser humano, ser apresentado o recente
julgamento do processo n 43835/11, em que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem
se posicionou a respeito do uso do vu integral, observando at que ponto os resultados
-
11
corroboram com a afirmao da laicidade por parte da Frana e/ou possvel violao nas
questes de liberdade religiosa1.
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, cada vez mais, utiliza-se da Teoria
da Margem de Apreciao em seus julgados, desse modo, entendemos ser de grande valia
um estudo mais especfico sobre o assunto. O trabalho no tem como foco as discusses e
opinies pessoais sobre temas polmicos de ordem religiosa. Ser de grande valia apenas
os aspectos sociais e jurdicos. Sabe-se que a imposio de crenas, a invaso de espaos
pblicos, a ausncia de dilogo inter-religioso nada surpreende, em face da prtica
histrica da intolerncia2.
O tema proposto se torna interessante e de grande valia medida em que tenta
demonstrar a real importncia da luta pela liberdade religiosa nos dias de hoje.
Verificaremos que muito ainda precisa ser feito em busca de uma sociedade mais tolerante
e respeitosa em relao diversidade cultural e religiosa.
Optamos pela vertente metodolgica qualitativa, onde possvel analisar com
mais aprofundamento o tema proposto. Dessa forma, acompanhamos a histria e a
evoluo da laicidade francesa, assim como as ulteriores leis que a respaldaram.
Estudamos as diferentes vertentes de raciocnio que respaldavam a poltica francesa, como
tambm os seus crticos, permitindo assim uma melhor compreenso sobre o assunto.
Em relao ao mtodo de abordagem envolvido, o que utilizamos foi o dedutivo,
que nada mais que uma iniciao acerca da definio da Liberdade Religiosa, passando
pelo estudo da laicidade, polticas de imigrao francesas e as recentes leis que probem o
uso do vu em espaos pblicos franceses. Em relao classificao da pesquisa no que
diz respeito s tcnicas procedimentais utilizadas, ocorrer uma extensa pesquisa
bibliogrfica utilizando-se de autores que j trabalham nessa rea de estudo, alm disso,
sero citados revistas e artigos de internet, com contedo jurdico sobre o objeto de estudo.
1 Machado, Jnatas E. M. Liberdade Religiosa numa Comunidade Constitucional Inclusiva.
Coimbra. Coimbra editora, 1996.
2 Tamayo, Juan Jos. Fundamentalismo y Dialogo entre Religiones. Editorial Trotta. 2004. P.161.
-
12
1. A LIBERDADE RELIGIOSA COMO DIREITO FUNDAMENTAL
1.1 Conceito e Origem do Direito Fundamental Religiosidade
A crena em alguma fora divina e superior que, de alguma maneira, interfira em
nosso universo est presente em quase todos os povos, sejam do mundo ocidental ou
oriental. Desde as culturas mais antigas at as atuais perceberemos grande influencia da
religio como um elemento regulador da vida em sociedade. Como demonstram algumas
pesquisas antropolgicas e arqueolgicas, as religies fazem parte da vida social desde
tempos muito remotos, tendo-se o homem, num primeiro momento, maravilhado com o
mundo e tentado buscar explicaes mticas para entend-lo3.
A maioria dos autores sustenta que os direitos fundamentais tm uma longa
histria. H quem vislumbre suas primeiras manifestaes no direito da Babilnia
desenvolvido por volta do ano 2.000, A.C., quem os reconhea no direito da Grcia Antiga
e da Roma Republicana e quem diga que se trata de uma ideia enraizada na teologia crist,
expressa no direito da Europa medieval4.
A tarefa de conceituar o que venha a ser religio bem difcil, mas a autora
Raquel Panzini5 a define como sendo a existncia de um poder sobrenatural, criador e
controlador do Universo, dando ao homem uma natureza espiritual que continua a existir
depois da morte do corpo. Religiosidade tambm definida por Aurora Camboim e Jlio
Rique como uma extenso na qual um indivduo acredita, segue e pratica uma religio6.
3
Morais, Mrcio Eduardo. Religio e Direitos Fundamentais: O Princpio da Liberdade Religiosa no Estado
Constitucional Democrtico Brasileiro. Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC. N 18
julho/dezembro de 2011. P.225. 4 Dimoulis, Dimitri & Martins, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. So Paulo: Revista dos
Tribunais, 2008. P. 20. 5 Panzini, Raquel. Gehrke. Qualidade de vida e espiritualidade. Revista de Psiquiatria Clnica. Volume 34.
Suplemento 1. Porto Alegre, RS. 2007. 6 Camboim, Aurora; Rique, Jlio. Revista Brasileira de Histria das Religies. Religiosidade e
Espiritualidade de Adolescentes e Jovens Adultos. ANPUH, Ano III, Nmero. 7. Maio. 2010.
-
13
O termo religio originou-se da palavra latina religio, cujo sentido primeiro
indicava um conjunto de regras, observncias, advertncias e interdies, sem fazer
referncia a divindades, rituais, mitos ou quaisquer outros tipos de manifestao que,
contemporaneamente, entendemos como sendo de natureza religiosa7. O conceito de
religio vai surgindo, paulatinamente, muito vinculado ao cristianismo, produto histrico
de nossa cultura ocidental e sujeito a alteraes ao longo do tempo no possuindo um
significado original ou absoluto que poderamos reencontrar8. Na antiguidade, o modelo
visualizado era o monista, em que a religio e a poltica se entrelaavam. Segundo Paulo
Adrago, o monismo variava entre a Teocracia, onde o elemento religioso se sobressai ao
poltico e ao cesarismo, onde o elemento poltico se impunha sobre o religioso9.
No encontraremos traos da liberdade religiosa nas teocracias orientais e nas
cidades-estados da Antiguidade Clssica, nem pode existir em certos Estados Islmicos da
atualidade; assim como no poderia coadunar-se com o cesaropapismo bizantino (com
afloramentos no Ocidente medieval e que se prolongaria na Rssia czarista), ou, em menor
grau, embora com o regalismo das monarquias absolutas dos sculos XVI a XVIII. Muito
menos, garantem a liberdade religiosa, os regimes totalitrios e a maior parte dos regimes
autoritrios contemporneos, sejam quais forem as suas inspiraes; toleram-na, quando a
no podem destruir10
.
Nem sempre existiu liberdade para que o indivduo pudesse exprimir suas
convices religiosas. Se a religio algo antigo, quase inata ao ser humano, a liberdade
religiosa11
algo novo, muito recente em nossa histria. Longo foi o caminho do mundo
Ocidental, permeado de sobressaltos e tergiversaes, at que se plasmasse a concepo da
7 Silva, Eliane Moura. Religio, Diversidade e Valores Culturais: conceitos tericos e a educao para a
Cidadania. Revista de Estudos da Religio - REVER. Nmero 2. Ano 4. 2004. So Paulo, SP. 8Silva, Eliane Moura. Religio, Diversidade e Valores Culturais: Conceitos Tericos e a Educao para a
Cidadania. Revista de Estudos da Religio - REVER. P.4. Nmero 2. Ano 4. 2004. So Paulo, SP. 9 Adrago, Paulo Pulido. A Liberdade Religiosa e o Estado. Coimbra. Almedina. 2002. P.39
10 Miranda, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Volume 4, 3 Edio, Coimbra. Coimbra Editora. 2000.
P. 407. 11
Machado, Jnatas Eduardo Mendes. A diferena entre liberdade religiosa e tolerncia radica,
fundamentalmente, no fato de que a primeira vista como integrando a esfera jurdico- subjetiva do seu
titular, ao passo que a segunda vista como uma concesso graciosa e reversvel do Monarca, do Estado ou
de uma maioria poltica ou religiosa. Liberdade Religiosa numa comunidade constitucional inclusiva: dos
direitos da verdade aos direitos dos cidados. Stvdia Ivridica; 18. Coimbra: Coimbra. 1996. P. 73-75.
http://www.pucsp.br/rever/http://www.pucsp.br/rever/
-
14
liberdade religiosa como um direito, um direito fundamental que consagra a inviolabilidade
da liberdade de conscincia e de crena e assegura o livre exerccio dos cultos religiosos12
.
O professor Jnatas Machado nos ensina que o direito liberdade religiosa
ocorreu em um perodo de transio em que a prtica religiosa era garantida pela tolerncia
religiosa. Afirma o autor que, nomes como Hobbes, Spinoza e Locke, movimentaram-se,
ainda dentro de uma ideia de tolerncia religiosa ou, na melhor das hipteses, de uma
liberdade muito condicionada13
. Para Machado, existe uma diferenciao lgica entre o
que vem a ser a liberdade religiosa e a simples tolerncia. A primeira vista como parte
integrante da esfera jurdico subjetiva do seu titular, ao passo que a segunda vista como
uma concesso graciosa e reversvel do Monarca, do Estado ou de uma maioria poltica ou
religiosa14
.
Themstocles Brando Cavalcanti entende que a conquista constitucional da
liberdade religiosa a verdadeira consagrao de maturidade de um povo, pois ela o
verdadeiro desdobramento da liberdade de pensamento e manifestao15
.
A travessia dos direitos do homem, como direitos morais, para o direito positivo,
certamente, no significa sua despedida. O contrrio exato, porque a parte nuclear dessa
travessia a transformao dos direitos do homem em direitos fundamentais de contedo
igual. Os direitos do homem no perdem, nessa transformao, nada em validez moral,
obtm, porm, adicionalmente, uma jurdico-positiva. A espada torna-se cortante.
Primeiro, com isso, efetivado o passo do reino das ideias para o reino da histria16
.O
propsito da positivao de uma norma atender os anseios e necessidades de uma
comunidade em um determinado momento histrico. Assim, aos poucos, vai se percebendo
12
Machado, Jonatas Eduardo Mendes. A liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva: dos
direitos da verdade aos direitos dos cidados. Studia Iurdica. Coimbra. 1996. P. 9 13
Machado, Jnatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva: dos
direitos da verdade aos direitos dos cidados. (Stvdia Ivridica; 18) Coimbra: Coimbra, 1996, p. 74.. 14
Machado, Jnatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva: dos
direitos da verdade aos direitos dos cidados. (Stvdia Ivridica; 18) Coimbra: Coimbra, 1996, p. 73. 15
Moraes, Alexandre de. Constituio do Brasil interpretada e legislao constitucional. 3 ed. So Paulo:
Atlas, 2003. P. 214. 16
Alexy, Robert. Constitucionalismo Discursivo. Trad.: Lus Afonso Heck. Porto Alegre. Livraria do
Advogado,. 2007. P 49.
-
15
uma delimitao do poder estatal atravs das normas e das medidas que tem como objetivo
proteger o cidado tanto dos seus pares, como do Estado17
.
Machado nos esclarece que a fundamentalizao do direito liberdade religiosa
foi um processo lento e gradativo, tendo como incio a Reforma Protestante, com as
guerras religiosas e o surgimento de pequenos grupos de puritanos. Esses acontecimentos
estabeleceram a base da tolerncia e depois do que viria a ser a liberdade religiosa18
.
Movimentos importantes, como a Reforma Protestante19
, o Iluminismo Racionalista, e as
primeiras declaraes de direito nas colnias americanas, deram o tom de que os poderes
do Estado e da Igreja no devem se confundir a laicizao do Estado e so limitados pela
vontade e liberdade dos indivduos20
.
Para James Madison e Thomas Jefferson, a resoluo do problema da liberdade
em geral pressupunha uma abordagem adequada do problema especfico da liberdade
religiosa. Madison afirmava que era necessria uma separao radical das esferas poltica e
religiosa, como nico meio para assegurar a mxima efetividade na prossecuo dos seus
interesses especficos num contexto de respeito pela liberdade de conscincia. Seus
contributos de natureza terica refletiram na Declarao da Virgnia e na Conveno
constituinte da Filadlfia21
.
Parte da doutrina estabelece uma diviso histrica importante entre o antes e o
depois da Declarao de Direitos do povo da Virgnia, de 1776, e Declarao dos
Direitos do Homem e do Cidado, de 178922
. A Declarao do Povo da Virgnia, ocorrida
na segunda metade do sculo XVIII, significou uma transio, uma primeira etapa na
efetivao dos direitos de liberdades legais j reconhecidas em outros documentos, para os
17
Canotilho, Joaquim. Direito Constitucional e Teoria da Constituio. Editora Almedina. 2002. Coimbra. P.
541. 18
Machado, Jnatas Eduardo. Liberdade Religiosa numa Comunidade Constitucional Inclusiva. Editora
Coimbra. Coimbra. 1996. P. 78. 19
Santos, Alexandre Magno Borges Pereira. O Iluminismo Poltico: A Libertao do Homem pelo Direito..
Inicialmente, a natureza da Reforma Protestante era essencialmente teolgica, mas ao longo do tempo se
tornou algo mais poltico que religioso. 20
Sarlet, Ingo Wolfgang. A Eficcia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais
na perspectiva constitucional. 5 edio. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2005. P. 45-50. 21
Machado, Jnatas Eduardo. Liberdade Religiosa numa Comunidade Constitucional Inclusiva. Editora
Coimbra. Coimbra. 1996. P. 81. 22
Canotilho, Jos Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituio. 6 edio. Coimbra:
Almedina, 2002. P. 380.
http://www.lexml.gov.br/urn/urn:lex:br:rede.virtual.bibliotecas:livro:2002;000644598
-
16
direitos fundamentais constitucionais. Aps essa declarao quase todas as Constituies
no mundo passaram a dispor de uma Declarao de direitos23
.
De semelhana com os documentos anteriores, a citada declarao norte-
americana conservou as caractersticas da universalidade e da supremacia dos direitos
naturais e, diversa e marcadamente, reconheceu a eficcia vinculativa dos direitos,
inclusive em face do poder pblico24
.O termo Direito Fundamental aparece na Frana no
ano de 1770, pela primeira vez, em um contexto de movimento poltico e cultural que
conduziu Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado de 178925
.
Na Europa, a questo da liberdade de religio e do princpio da separao das
confisses religiosas do Estado demorou mais para eclodir. O problema da liberdade
religiosa , muitas vezes, confundido com lutas, reais ou imaginrias, entre catlicos e
manicos. O impulso decisivo foi dado pela Revoluo Francesa26
. Maurcio Scheinman27
explica que a liberdade religiosa representa uma das pedras angulares da civilizao
moderna, consistindo na aplicao do conceito de liberdade s prticas relacionadas f,
seja ela qual for, naturalmente no se podendo prestar a fins expressamente proibidos pelo
sistema normativo.
A expresso Direitos Fundamentais se refere etapa da constitucionalizao
dos direitos, caracterizando, portanto, relevantemente, no s o reconhecimento, a
positivao, mas a incluso dos direitos no plano constitucional interno de cada Estado28
.
O Estado de Direito torna-se o Estado Social e Democrtico de Direito. No plano dos
direitos e liberdades individuais, tais exigncias orientaram-se em trs direes: na
23
Cunha Jnior, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 2 Edio. Salvador. Editora Juspodivm. 2008.
P. 542. 24
Martin, Fernando Batistuzo Gurgel e Marta, Tas Nader. Revista USCS Direito Ano XI . So Caetano
do Sul. SP. N 18 jan./jun. 2010. 25
Luno, Enrique Prez. Los derechos fundamentales. 9 Edio. Editora Tecnos. 2007. P. 29. 26
Machado, Jonatas Eduardo. 1996. P. 85. A Revoluo Francesa veio culminar todo um longo processo de
afirmao do constitucionalismo liberal que teve como alicerces fundamentais, designadamente, a ascenso
da classe burguesa, contratualismo jusnaturalista e a reao contra os resqucios do absolutismo etc. Essa
linha de pensamento trazia naturalmente subjacente uma reao contra a imposio autoritativa unilateral dos
dogmas religiosos pelas igrejas tradicionais. A revoluo de 1789 veio consagrar o direito liberdade de
opinio e de expresso, mesmo em questes religiosas, considerado como direito natural, inalienvel, sagrado
e irrenuncivel. 27
Scheinman, Maurcio. Liberdade religiosa e escusa de conscincia. Alguns apontamentos. Jus Navigandi,
Teresina, ano 9, n. 712, 17/06/2005. Disponvel em:
-
17
fundamentalizao dos direitos sociais que passam a ser consagrados constitucionalmente;
numa reinterpretao dos direitos tradicionais a luz do novo princpio de socialidade; os
direitos fundamentais ultrapassam a mera tcnica de defesa contra os abusos da autoridade
pblica e so vistos como valores que se impe genericamente a toda sociedade29
.
A ntima e dependente ligao dos direitos fundamentais em relao s
Constituies notada nos textos e documentos iniciais do surgimento do
constitucionalismo, nos quais possvel identificar como um de seus pilares estruturantes o
reconhecimento dos direitos fundamentais, que, em essncia, constituem-se em limites ao
poder do Estado e tambm como um dos pilares do prprio Direito30
. Segundo Daz, no se
pode falar de Estado de Direito sem que juntemos a subservincia lei; a diviso e
harmonia entre os poderes; legalidade da lei e controle judicial e, por ltimo, direitos e
liberdades fundamentais de uma forma concreta e efetiva31
.
O professor Canotilho32
nos explica que cabe aos direitos fundamentais duas
funes precpuas: constituem, num plano jurdico-objetivo, normas de competncia
negativa para os poderes pblicos, proibindo fundamentalmente as ingerncias destes na
esfera jurdica individual; implica, num plano jurdico-subjetivo, o poder de exercer
positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omisses dos poderes
pblicos, de forma a evitar agresses lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa).
O direito liberdade religiosa como um todo, com seus desdobramentos, j foi
visto como um direito subjetivo, individual e coletivo, acionvel por iniciativa de seus
titulares diante dos poderes pblicos, cabendo ao Estado realizao das respectivas
prestaes positivas e negativas fticas e normativas33
. Para Machado, precisamos ser
cautelosos e entender que a liberdade religiosa deve ser construda a um nvel de
generalidade conceitual que permita a extenso do seu mbito de proteo no apenas s
29
Novais, Jorge Reis. Contributo para uma Teoria do Estado de Direito: do Estado de Direito Liberal para o
Estado Social e Democrtico de Direito. 1987. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
P.188 30
Azevedo, Antonio Junqueira. O direito ontem e hoje: crtica ao neopositivismo constitucional e
insuficincia dos direitos humanos. Revista do Advogado, AASP. N 99. P/p. 7-14. So Paulo, setembro,
2008. 31
Daz, Elias. Estado de Derecho y sociedad democrtica. Edio 8. Madri. Editora Tarus. 1988. P.24. 32
Canotilho, Jos Joaquim Gomes. Direito constitucional. Coimbra: Almedina. 2002. P.541. 33
Machado. Jonatas. Liberdade Religiosa numa comunidade constitucional inclusiva.Coimbra Editora.
Coimbra. 2002. P.252.
-
18
confisses religiosas dominantes ou tradicionais, mas tambm s experincias religiosas
menos conhecidas, mais recentes ou inconvencionais34
.
Jorge de Miranda entende que no existindo uma plena liberdade religiosa, em
todas as suas dimenses, compatvel com diversos tipos jurdicos de relaes das
confisses religiosas com o Estado, no h plena liberdade cultural, e poltica. Assim
como, em contrapartida, onde inexiste a liberdade poltica, a normal expanso da liberdade
religiosa fica comprometida ou ameaada35
.
Rawls, em sua obra, O Liberalismo Poltico, explica que todos os cidados
possuem mais do que um simples direito de participar da vida pblica, sejam religiosos e
motivados por sua crena ou no, tem nela o lcus privilegiado da vida digna de ser
vivida36
. Vai alm, quando deixa claro que no seu ponto de vista todas as liberdades esto
fadadas a conflitar umas com as outras, sendo assim, as regras institucionais que as regem
devem ser ajustadas de modo que se encaixem no sistema coerente de liberdades. As
liberdades s podem ser limitadas ou negadas em nome de outra liberdade e nunca por
razes de bem-estar geral ou valores perfeccionistas37
.
Do ponto de vista do Estado, cumpre perceber que, em se tratando da relao
entre o Estado e a Igreja e tudo aquilo que se refere esfera religiosa, est tratando de
questo fundamental e, portanto, no basta apenas decidir. Cumpre ouvir, abrir espao ao
dilogo para evitar o acirramento de nimos que no permite retirar do conflito
oportunidade de crescimento de relaes38
.
34
Machado. Jonatas. Liberdade Religiosa numa comunidade constitucional inclusiva.Coimbra Editora.
Coimbra. 2002. P.190. 35
Miranda, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Volume 4. 3 Edio. Coimbra: Coimbra Editora, 2000.
P. 40. 36
Rawls, John. O liberalismo poltico. Traduo Dinah de Abreu Azevedo, 2. Edio, So Paulo: tica,
2000. P. 255.
http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&frm=1&source=web&cd=1&ved=0CB0QFjAA&url
=http%3A%2F%2Fwww.libertarianismo.org%2Flivros%2Fjrolp.pdf&ei=iFJSVd6qJoLUgwSd-
oBg&usg=AFQjCNFK55nHlFSDVBR-A29-9tXIe6WHsg. 37
Rawls, John. O liberalismo poltico. Traduo Dinah de Abreu Azevedo, 2. Edio, So Paulo: tica,
2000. P.349.
http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&frm=1&source=web&cd=1&ved=0CB0QFjAA&url
=http%3A%2F%2Fwww.libertarianismo.org%2Flivros%2Fjrolp.pdf&ei=iFJSVd6qJoLUgwSd-
oBg&usg=AFQjCNFK55nHlFSDVBR-A29-9tXIe6WHsg.
38
Machado, Jnatas Eduardo Mendes. Liberdade Religiosa numa comunidade inclusiva. 1996. Coimbra.
1996. P.9
http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&frm=1&source=web&cd=1&ved=0CB0QFjAA&url=http%3A%2F%2Fwww.libertarianismo.org%2Flivros%2Fjrolp.pdf&ei=iFJSVd6qJoLUgwSd-oBg&usg=AFQjCNFK55nHlFSDVBR-A29-9tXIe6WHsghttp://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&frm=1&source=web&cd=1&ved=0CB0QFjAA&url=http%3A%2F%2Fwww.libertarianismo.org%2Flivros%2Fjrolp.pdf&ei=iFJSVd6qJoLUgwSd-oBg&usg=AFQjCNFK55nHlFSDVBR-A29-9tXIe6WHsghttp://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&frm=1&source=web&cd=1&ved=0CB0QFjAA&url=http%3A%2F%2Fwww.libertarianismo.org%2Flivros%2Fjrolp.pdf&ei=iFJSVd6qJoLUgwSd-oBg&usg=AFQjCNFK55nHlFSDVBR-A29-9tXIe6WHsghttp://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&frm=1&source=web&cd=1&ved=0CB0QFjAA&url=http%3A%2F%2Fwww.libertarianismo.org%2Flivros%2Fjrolp.pdf&ei=iFJSVd6qJoLUgwSd-oBg&usg=AFQjCNFK55nHlFSDVBR-A29-9tXIe6WHsghttp://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&frm=1&source=web&cd=1&ved=0CB0QFjAA&url=http%3A%2F%2Fwww.libertarianismo.org%2Flivros%2Fjrolp.pdf&ei=iFJSVd6qJoLUgwSd-oBg&usg=AFQjCNFK55nHlFSDVBR-A29-9tXIe6WHsghttp://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&frm=1&source=web&cd=1&ved=0CB0QFjAA&url=http%3A%2F%2Fwww.libertarianismo.org%2Flivros%2Fjrolp.pdf&ei=iFJSVd6qJoLUgwSd-oBg&usg=AFQjCNFK55nHlFSDVBR-A29-9tXIe6WHsg
-
19
1.2. A relao entre o Direito Fundamental Religiosidade e os Direitos Humanos
Apesar de no ser objeto do nosso estudo, sempre bom reafirmar o papel da
religio na proteo dos direitos humanos. Sabemos que durante a era feudal, Estado e
Igreja confundiam-se como poderes dominantes, uma vez que, pelo silogismo aquiniano39
em vigor naqueles tempos, razo e f andavam juntas, sendo que o direito natural sucumbia
ao direito divino40
na medida em que o Estado estava obrigado a reconhecer a Igreja
Catlica como verdadeira. No obstante a vinculao entre a religio e o Estado, inegvel
a contribuio da Igreja na proteo e efetivao dos direitos humanos. Tais contribuies
aconteceram, e ainda acontecem, por intermdio das bulas e encclicas papais41
.
Como j foi citado no tpico anterior, a Reforma Protestante se apresenta como
um marco importante na conquista e evoluo dos direitos humanos, reivindicando o
reconhecimento liberdade de opo religiosa e de culto em diversos pases da Europa. Os
efeitos mais imediatos da Reforma foram um acentuado aumento da perseguio religiosa
e a instalao de litgios religiosos na maior parte da Europa.
Tanto cidados catlicos como protestantes partiam do princpio de que era
impossvel tolerar a diversidade de credos religiosos dentro das fronteiras de qualquer pas.
Por conseguinte, os dissidentes em matria de religio eram implacavelmente perseguidos,
onde quer que fossem encontrados42
. Apesar dessa equivocada viso de que a liberdade
religiosa no comporta a convivncia pacfica dos diferentes, a Reforma trouxe como
ponto positivo, dentre outros, a ruptura com a unidade religiosa que, naquele momento da
39
O silogismo que suportava a doutrina da poca, e alavancava a dupla face do Poder (Estado- Igreja),
revestia-se da maior simplicidade e pureza aristotlica: s a verdadade tem direitos, s a Igreja Catlica tem
a verdade, s a Igreja Catlica tem direitos. MACHADO, Jnatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa
numa comunidade constitucional inclusiva: dos direitos da verdade aos direitos dos cidados. (Stvdia
Ivridica; 18) Coimbra: Coimbra, 1996, p. 36. 40
Machado, Jnatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva: dos
direitos da verdade aos direitos dos cidados. (Stvdia Ivridica; Coimbra: Coimbra, 1996. P. 32. 41
Nesse sentido, destaca-se a Bula Sublimis Deus52, de 1537, editada pelo Papa Paulo III, que condenou a
escravido. VATICANO. Papal Encyclicals Online. Disponvel em:
-
20
histria, era to somente fruto da opresso, possibilitando a reivindicao do primeiro
direito individual: o da liberdade de opo religiosa43
.
Em 1776 foi elaborada e promulgada a Declarao de Direitos do Bom Povo da
Virgnia afirmando que todos os seres humanos so livres e independentes, possuindo
direitos inatos, tais como a vida, a liberdade, a propriedade, a felicidade e a segurana,
registrando o incio do nascimento dos direitos humanos na histria44
.
Foi em solo francs, em 1789, que surgiu a mais importante declarao de direitos
fundamentais, a Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado45
. Em seu artigo 1, j
declarava que todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. O artigo 10
da declarao proclamava que ningum deveria ser molestado por suas opinies, mesmo
que estas fossem de natureza religiosa, desde que sua manifestao no cause perturbao
ordem pblica ou estabelecida pela lei46
. A declarao de 1789 foi de uma magnitude
imensa para a histria moderna e pode ser considerada como um marco divisrio entre a
proscrio da liberdade religiosa e o seu reconhecimento47
.
Se compararmos a Declarao Francesa com a americana, a primeira tem a seu
favor o esplendor das frmulas e da lngua, a generosidade de seu universalismo, por isso
foi preferida e copiada ainda que muitas vezes seus direitos permanecessem como letra
morta. Enquanto a americana tem uma preocupao voltada para a efetivao dos direitos
histricos ingleses48
.
43
Lafer, Celso. A Reconstruo dos Direitos Humanos: um dilogo com o pensamento de Hannah Arendt.
So Paulo: Companhia das Letras, 2001. p.121. 44
Comparato, Fbio Konder. A Afirmao Histrica dos Direitos Humanos. 3 Edio. So Paulo: Saraiva.
2003.P. 49. 45
Canotilho. Direito Constitucional e Teoria da Constituio. 1999. 3 Edio. Coimbra. Almedina. P.92.
As ideias francesas so boas no que toca domesticao jurdica do poder poltico, mas h inegvel dficit
na capacidade de engendrar procedimentos e processos para lhes dar operatividade prtica. 46
Declarao Dos Direitos do Homem e do Cidado. 47
Silva Neto, Manoel Jorge. Proteo Constitucional liberdade religiosa. Editora Saraiva. 2 edio. 2013.
So Paulo, SP. P.89. 48
Ferreira Filho, Manoel Gonalves. Direitos Humanos Fundamentais. So Paulo: Saraiva, 1998. P.20.
-
21
Hodiernamente, a proteo da liberdade religiosa no se encontra apenas adstrita
ao direito constitucional de cada pas, pelo contrrio, est cada dia mais presente nos
tratados e nas convenes internacionais49
. Entre os principais instrumentos internacionais
de proteo aos direitos humanos, destacam-se: a Declarao Universal dos Direitos do
Homem e os nove principais tratados da ONU nesta rea50
. Para cada um destes nove
tratados, existe um comit de peritos que avalia at que ponto os respectivos Estados Partes
esto a cumprir as obrigaes que assumiram em virtude da ratificao ou adeso ao
instrumento em causa51
.
A respeito da Europa, no que concerne legislao humanista, o tratado mais
conhecido ser a Conveno Europeia dos Direitos do Homem, cuja violao susceptvel
de dar lugar a queixa para o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, com sede em
Estrasburgo, Frana. Mas dentro do sistema do Conselho da Europa existem cerca de
duzentos outros tratados, muitos deles diretamente relacionados com questes de direitos
humanos52
. Mas s a elaborao de leis e tratados no suficiente. Pontes de Miranda
adverte que no basta positivar os direitos fundamentais, necessrio criar condies para
sua real efetivao no cenrio social53
.
Compreendemos que os Direitos Humanos54
so aqueles que nascem com o
prprio indivduo, so intrnsecos ao ser humano. Independem de raa ou etnia, credo,
situao financeira. Alexy divide, basicamente, em dois grupos os direitos do homem,
quais sejam, em os direitos humanos e os direitos fundamentais, conforme a positivao
pelo legislador ptrio ou no. Dessa forma, o direito moral que encontra respaldo na
legislao internacional, em pactos internacionais, chamado de direitos do homem, e seu
49
Silva Neto, Manoel Jorge. Proteo Constitucional liberdade religiosa. Editora Saraiva. 2 edio. 2013.
So Paulo, SP. P.83. 50
(Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Polticos, Pacto Internacional sobre os Direitos Econmicos,
Sociais e Culturais 51
Tavares, Raquel. Gabinete de documentao e direito comparado. Lisboa, Portugal. 52
Como a Carta Social Europeia Revista e a Conveno-Quadro para a Proteo das Minorias Nacionais. Ao
nvel da Unio Europeia, conhecida a Carta dos Direitos Fundamentais da Unio Europeia que, depois de
vicissitudes vrias, acabou por entrar em vigor a 1 de Dezembro de 2009, em simultneo com o Tratado de
Lisboa. 53
Miranda, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 3 Edio. Tomo IV. Coimbra. Coimbra editora, 2000.
P. 409. a liberdade religiosa no existir se o Estado no conceder aos cidados, alm do direito de ter uma
religio, as condies de a praticar. 54
Bobbio, Norberto. A Era dos Direitos. Carlos Nelson Coutinho (trad.). Rio de Janeiro: Campus, 1992. P.
30. Os direitos do homem nascem como direitos naturais universais, desenvolvem- se como direitos positivos
particulares, para finalmente encontrarem sua plena realizao como direitos positivos universais.
http://direitoshumanos.gddc.pt/3_1/IIIPAG3_1_3.htmhttp://direitoshumanos.gddc.pt/3_1/IIIPAG3_1_3.htmhttp://direitoshumanos.gddc.pt/3_1/IIIPAG3_1_13.htmhttp://direitoshumanos.gddc.pt/5/VPAG5_1.htmhttp://direitoshumanos.gddc.pt/2_2/IIPAG2_2_1.htmhttp://direitoshumanos.gddc.pt/3_1/IIIPAG3_1_6.htmhttp://direitoshumanos.gddc.pt/3_1/IIIPAG3_1_4.htmhttp://direitoshumanos.gddc.pt/3_1/IIIPAG3_1_4.htmhttp://direitoshumanos.gddc.pt/3_1/IIIPAG3_1_21.htmhttp://direitoshumanos.gddc.pt/3_2/IIIPAG3_2_4.htmhttp://direitoshumanos.gddc.pt/pdf/text-pt.pdf
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22
carter supra-positivo. Entretanto, quando algum direito, compreendido dentre aqueles
que se convencionou chamar direitos do homem, recepcionado pelo legislador nacional e,
por via de consequncia, positivado, ou seja, transformado em lei, dito direito humano e
direito fundamental55
.
Com brilhantismo, o Doutor Joaquim Canotilho estabelece a diferena entre os
Direitos Humanos e os Direitos Fundamentais: Direitos do homem so direitos vlidos
para todos os povos e em todos os tempos (dimenso jus naturalista-universalista); Direitos
Fundamentais so os direitos do homem, jurdico-institucionalmente garantidos e limitados
espacio-temporalmente56
. A expresso direitos fundamentais remete a um plano
constitucional interno, relativo ao ordenamento jurdico de cada Estado especificamente; j
o direito humano extrapola fronteiras nacionais e, num plano universal, coloca todos os
homens como sujeitos de direitos bsicos57
.
Srgio Cademartori, na sua obra Estado de Direito e Legitimidade, esclarece que o
fundamento de validade dos Direitos Fundamentais no extrado da natureza humana,
mas sim do consenso geral dos homens acerca da mesma, uma vez que esses direitos so
reconhecidos por todas as sociedades civilizadas e divulgados em Declaraes
Universais58
. Desse modo, fcil entender sua maior efetividade, uma vez que os direitos
fundamentais possuem em relao aos direitos humanos, o maior grau de efetivao,
particularmente, em face da existncia de instncias (especialmente as jurdicas) dotadas
do poder de fazer respeitar e realizar estes direitos59
.
55
Alexy, Robert. Constitucionalismo Discursivo. Trad.: Lus Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2007, p.10-11. 56
Canotilho, Jos Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituio. Coimbra: Almedina,
1998. P. 359. 57
Sarlet, Ingo Wolfgang. A Eficcia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais
na perspectiva constitucional. 5 ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2005. P. 38. 58
Cademartori, , Sergio. Estado de Direito e Legitimidade. Uma Abordagem Garantista. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 1999. P.34 59
Sarlet, Ingo Wolfgang. A Eficcia dos Direitos Fundamentais. 6 edio. Porto Alegre. Livraria do
Advogado. P.40.
-
23
Segundo Brega Filho, quando se fala em direito fundamental quer fazer referncia
ao mnimo necessrio para uma existncia humana60
, com dignidade e respeito. Em relao
ao princpio da dignidade da pessoa humana, este vem sendo considerado o fundamento de
todo o sistema de direitos fundamentais. Sua fonte jurdica positiva, dando-lhes unidade e
coerncia. O autor Ingo Sarlet comunga da mesma opinio a respeito da importncia do
princpio da dignidade humana e afirma em sua obra que a maior parte dos direitos
fundamentais desdobramentos do direito a dignidade da pessoa humana61
.
A doutrina e a jurisprudncia so unnimes em afirmar que a dignidade da pessoa
humana62
o valor mais elevado do sistema de direitos fundamentais. Como exemplo, cita
o Prembulo da Declarao Universal dos Direitos do Homem, onde se l que "O
reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da famlia humana e dos seus
direitos iguais e inalienveis constitui o fundamento da liberdade, da justia e da paz no
mundo63
".
Logo aps o mundo assistir perplexo aos horrores da Segunda Guerra Mundial,
foi proclamada a Declarao Universal dos Direitos do Homem, ou DUDH, em 1948. O
texto do documento foi elaborado pelas Naes Unidas e tinha como objetivo nunca mais
permitir que tantas violaes aos direitos mais bsicos dos serem humanos fossem
violados. A DUDH fruto de toda essa indignao e serve como um marco, ou
60
Brega Filho, Vladimir. Direitos Fundamentais na Constituio de 1988: contedo jurdico das expresses.
So Paulo: Juarez de Oliveira, 2002. 61
Sarlet, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituio Federal de
1988. Porto Alegre: Livraria do advogado. 2001 P.103. 62
Machado, Jnatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva: dos
direitos da verdade aos direitos dos cidados. (Stvdia Ivridica; 18) Coimbra: Coimbra, 1996, p. 193. A ideia
de dignidade da pessoa humana apresenta-se hoje imbuda de um contedo poltico-moral que, embora
escorado na concepo judaico-crist do homem criado imagem e semelhana de Deus - isto , portador de
uma lmago Dei e enriquecido com os contributos da teologia catlica e protestante, prescinde atualmente de
qualquer vnculo confessional especfico, sendo inadmissvel a sua colocao ao servio da promoo de uma
particular concepo teolgica de verdade objectiva ou de bem comum. Tambm ela sofreu, a partir do
iluminismo, um processo de racionalizao e secularizao que a coloca presentemente num nvel de
generalidade suficientemente elevado para abarcar as ideias de livre desenvolvimento pessoal e social do ser
humano, nas suas dimenses fsicas, intelectuais e espirituais, e de garantia de recursos materiais que
possibilitem o acesso a um nvel mnimo de existncia humanamente digna a todos os indivduos. 63
Machado, Jnatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva: dos
direitos da verdade aos direitos dos cidados. (Stvdia Ivridica; 18) Coimbra: Coimbra, 1996. P. 192,193.
-
24
simplesmente uma retomada aos ideais da Revoluo Francesa, na busca pela afirmao da
igualdade, da liberdade e da fraternidade64
.
A Declarao Universal dos Direitos Humanos65
deixa clara inteno da
universalidade desses direitos quando diz: Toda pessoa tem capacidade para gozar os
direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declarao, sem distino de qualquer espcie,
seja de raa, cor, sexo, lngua, religio, opinio poltica ou de outra natureza, origem
nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condio 66
. Os direitos
consagrados na DUDH, semelhana do que sucede com outros direitos previstos noutros
instrumentos jurdico-internacionais, pretendem apenas afirmar-se como um standard
mnimo, servindo de parmetro hermenutico interpretao dos direitos fundamentais
constitucionalmente consagrados67
. Nada impede que outros direitos, mais amplos ainda,
sejam estabelecidos pelos Estados.
Em 1951, logo aps a DUDH, foi promulgado o Estatuto dos Refugiados,
documento que tem como objetivo a garantia da integridade e dignidade do ser humano. O
artigo 4 do instrumento garante aos refugiados a ampla liberdade de manifestao de
crena, prevendo, inclusive, a liberdade de instruo religiosa dos filhos, ao menos em
igualdade de condies com os nacionais do pas onde se encontram refugiados68
.
A preocupao com as crescentes ondas de discriminao dos cidados em razo
da sua opo religiosa fez com que a Assembleia Geral das Naes Unidas, em 1981,
proclamasse a Declarao sobre a Eliminao de todas as Formas de Discriminao
Fundadas na Religio ou Convices69
. Houve uma interligao entre a discriminao
religiosa e a ofensa dignidade da pessoa humana. A Declarao tinha como ponto de
maior preocupao e interesse a propagao da igualdade e a dignidade do homem. Alm
64
Comparato, Fbio Konder. A Afirmao Histrica dos Direitos Humanos. 5. ed. rev. e atual. So Paulo:
Saraiva. 2007. P 225-226. 65
Soriano, Aldir Guedes. Liberdade Religiosa no Direito Constitucional e Internacional. So Paulo: J. de
Oliveira. 2002. P. 65. apesar de no possuir poder de coero, a Declarao exprime direitos superiores a
qualquer ordenamento positivado 66
Declarao Universal dos Direitos Humanos. Disponvel em
Acesso em 04/03/2014. 67
Machado, Jnatas Eduardo. Liberdade Religiosa numa Comunidade Constitucional Inclusiva. Coimbra.
Editora Coimbra. 1996. P. 207. Sempre que da constituio se puder retirar uma interpretao que confira
uma maior efetividade aos direitos fundamentais deve ser essa a preferida. 68
www.acnur.org/.../Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados.pdf. 69
http://direitoshumanos.gddc.pt/3_2/IIIPAG3_2_6.htm
http://www.acnur.org/.../Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados.pdfhttp://direitoshumanos.gddc.pt/3_2/IIIPAG3_2_6.htm
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25
disso, evoca que problemas de intolerncia religiosa, seja com que desculpa for, so o
nascedouro de muitas perturbaes e guerras. Desde logo, a Declarao, em seu artigo 4,
requer proteo, para que no haja a discriminao baseada em raa e cor ou qualquer
dificuldade cidadania70
.
Internacionalmente a Frana signatria da Declarao Universal dos Direitos
Humanos, de 1948. Tambm membro da Conveno Europeia dos Direitos Humanos,
cujo artigo 9 retoma e detalha o disposto no artigo 18 da referida Declarao. As duas
normas jurdicas podem ser evocadas pelos franceses perante a Corte Europeia de Direitos
do Homem, no caso de sentirem que seus direitos fundamentais foram violados pela
jurisdio domstica. Assim, pode-se afirmar, inicialmente, ser a liberdade religiosa um
assunto emergente da modernidade, modernidade essa preocupada com a autonomia do
sujeito, como tambm com a efetividade dos direitos humanos71
.
1.3. Liberdade de Crena, de Conscincia, de Culto e de Organizao Religiosa.
O reconhecimento liberdade religiosa, como um direito a ser protegido pelo
Estado, foi conquistado durante a Revoluo Francesa, por intermdio da Declarao dos
Direitos do Homem e do Cidado, em 1789. Ao longo do tempo o diploma francs serviu
de inspirao a muitos outros documentos normativos internacionais e colocou em
evidncia os princpios de liberdade de conscincia e da livre manifestao do pensamento,
que abrangem inclusive a liberdade religiosa.
Sabemos que a deciso de vivenciar ou no a religio, com os seus mandamentos
religiosos, dogmas e regras a serem cumpridas, diz respeito to somente ao cidado, sendo
uma escolha individual e particular, no cabendo a ningum interferir nessa escolha, nem
mesmo o Estado. inquestionvel que a religio possui um lugar de destaque na vida dos
adeptos, interferindo em sua maneira de pensar, ser e agir em comunidade. O Estado deve
encarar com seriedade esse fato, devendo aos titulares dos rgos pblicos absorverem
70
No artigo 4 Devero ser realizados esforos especiais para prevenir a discriminao baseada na raa, cor
ou origem tnica, em especial nos domnios dos direitos civis, acesso cidadania, educao, religio,
emprego, ocupao e habitao. 71
Morais, Mrcio Eduardo. Religio e Direitos Fundamentais: O Princpio da Liberdade Religiosa no Estado
Constitucional Democrtico Brasileiro. Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC. N 18
jul./dez. 2011. P.226.
-
26
essa questo e se manifestarem com mais considerao e respeito por todas as formas de
religiosidade72
.
Cabe a cada indivduo, de acordo com sua conscincia, sem que haja nenhuma
fora que influencie na direo da deciso a ser tomada, decidir se seguir a alguma
religio, ou no73
. De acordo com Alexandre de Moraes a liberdade de convico religiosa
abrange inclusive o direito de no acreditar ou professar nenhuma f, devendo o Estado
respeito ao atesmo74
.
imperioso perceber que existe uma liberdade de escolha da religio, a liberdade
de aderir a qualquer seita religiosa, o direito de optar por outra religio, mas tambm
compreende a liberdade de no aderir religio alguma, assim como a liberdade de
descrena, a liberdade de ser ateu e de exprimir o agnosticismo. Em suma, liberdade de
crena significa poder ter uma religio, no ter religio e tambm poder mudar de
religio75
. Mas essa liberdade no admite que o particular dificulte ou obstaculize de
qualquer modo o livre exerccio de qualquer religio, de qualquer crena, pois aqui
tambm a liberdade de algum vai at onde no prejudique a liberdade do outro76
.
Ao Estado cabe permitir ou propiciar a quem seguir determinada religio o
cumprimento dos deveres que dela decorrem, seja em matria de culto, de famlia ou de
ensino, em termos razoveis. E consiste, por outro lado, e sem que haja qualquer
contradio, no impor ou no garantir com as leis o cumprimento desses deveres77
. O
Professor Jnatas Machado lembra que as restries s condutas religiosas, ento, devem
observar rigorosos requisitos materiais e procedimentais, sob pena de retirarem contedo
til ao direito liberdade religiosa. As convices religiosas configuram o ntimo e vital
compromisso tico, com plrimas e significativas repercusses polticas, culturais, sociais,
72
Machado, Jnatas Eduardo. Liberdade Religiosa numa Comunidade Constitucional Inclusiva. Editora
Coimbra. Coimbra. 1996. P.224. No cabe ao poder pblico interferir numa adeso a uma confisso
religiosa ou seu abandono, a educao religiosa dos menores pelos pais ou tutores, prtica de atos ou a
participao em atividades de beneficncia, o envolvimento em diversos tipos de servio religioso, o uso de
uma indumentria prpria ou de outros smbolos religiosos etc.. 73
Machado, Jnatas Eduardo. Liberdade Religiosa numa Comunidade Constitucional Inclusiva. Editora
Coimbra. Coimbra. 1996. P.223. 74
Moraes, Alexandre. Direito Constitucional. 13 edio. So Paulo. Atlas. 2003. P. 74. 75
Monteiro, NP. 22ilton de Freitas. Parmetros constitucionais do ensino religioso nas escolas
pblicas.Disponvel em:
76
Silva, Jos Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. So Paulo: Malheiros, 2014, p. 251. 77
Miranda, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV. 3 edio. Coimbra. Coimbra,. 2000. P.409.
-
27
econmicas etc., e, como tais, no podem ser artificialmente desligados da ao humana
em que se concretizam. O Estado deve manter prudente equidistncia, neutralidade
confessional a fim de no encorajar ou desencorajar, direta ou indiretamente, as crenas
que servem de base conduta humana78
.
Diante desse panorama, entendemos o direito fundamental liberdade de
conscincia e de religio como uma resposta poltica adequada aos desafios do pluralismo
religioso. Isso permite desarmar, no contexto do trato social dos cidados, o potencial
conflituoso que continua permeando, no nvel cognitivo, as convices existenciais de
crentes, de no crentes e de crentes de outras denominaes79
.
Faz-se necessrio compreender a ntima relao que se estabelece entre a
liberdade de conscincia, religio e culto e a dignidade da pessoa humana, ao mesmo
tempo em que se sublinha que este o valor mais elevado do sistema de direitos
fundamentais80
. Faz parte do direito liberdade religiosa81
, de uma forma ampla, o direito
liberdade de crena, liber (Pires, 2012)dade de conscincia e de culto. A liberdade de
crena nada mais que a escolha que o indivduo tem de abraar a religio escolhida ou
simplesmente afastar-se dela. a faculdade de decidir o momento exato de seguir em
frente ou no com a sua orientao religiosa. No se podem distinguir grupos religiosos
tradicionais de grupos heterodoxos, religio majoritria ou minoritria, predominante ou
no: todas gozam de proteo82
.
78
Machado, Jnatas Eduardo. Liberdade Religiosa numa Comunidade Constitucional Inclusiva. Editora
Coimbra. Coimbra. 1996. P.223. 79
Habermas, Jrgen. Entre naturalismo e religio: estudos filosficos. Traduo Flvio Beno Siebeneichler,
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007. P. 136. 80
Machado. Jonatas. Liberdade Religiosa numa comunidade constitucional inclusiva.Coimbra Editora.
Coimbra. 2002. P.192. 81
Machado, Jnatas Eduardo. Liberdade Religiosa numa Comunidade Constitucional Inclusiva. Editora
Coimbra. Coimbra. 1996. P. 220. O direito liberdade religiosa visa proteger o frum internum,
precludindo a sujeio das opes de f a quaisquer presses, diretas ou indiretas, explicitas ou implcitas.
Ele cria uma esfera jurdico-subjetiva em torno do indivduo, cujo permetro os poderes pblicos e as
entidades privadas devem respeitar. dentro dessa esfera que o indivduo exerce a sua liberdade de crena,
no pressuposto de que as opes tomadas neste domnio dizem respeito essncia intima e pessoal do
homem. 82
Marmelstein, George. Curso de direitos fundamentais. So Paulo: Atlas, 2011, p. 113.
-
28
Algumas religies possuem um carter proselitista, fazendo parte de sua natureza
a necessidade de manifestar e difundir a sua f. Machado entende que a liberdade religiosa
completamente concretizada, quando o cidado pode express-la plenamente, desde que
no coloquem em risco os direitos constitucionalmente protegidos83
.
Ainda em relao ao proselitismo, verdadeiro dizer que foi por muito tempo
uma prtica mal vista, uma vez que a maioria dos Estados tinham um acordo ou aliana
com a religio predominante do local, por esse motivo no permitiam que houvesse
qualquer movimento que pudesse desestabilizar ou perturbar, de qualquer forma, a
comunidade. A proibio do proselitismo fundamenta-se numa compreenso ablativa do
fenmeno religioso, a qual, ao pretender sujeit-lo aos parmetros de racionalidade,
objetividade e previsibilidade que caracterizam a ordem jurdica, acabam por negar as
dimenses meta racionais emocionais e transcendentes que o caracterizam e que
ineliminavelmente acompanham a sua expresso e divulgao84
.
Estruturalmente, pode-se afirmar ser a liberdade religiosa um corolrio da
liberdade de conscincia, tutelando juridicamente qualquer opo que o indivduo tome em
matria religiosa, mesmo sua rejeio, o que se harmoniza com a dignidade humana do
sujeito85
. O aspecto subjetivo do direito liberdade de conscincia e de crena associa-se
aos direitos intimidade, identidade e formao da personalidade, e seu aspecto
objetivo, garantia da neutralidade estatal, que, diante do livre exerccio de profisses
religiosas, deve abster-se de favorecer a prevalncia de uma doutrina especfica no mbito
do espao pblico86
. dever de o Estado acolher em seu arcabouo jurdico-poltico
83
Machado, Jnatas Eduardo. Liberdade Religiosa numa Comunidade Constitucionalmente Inclusiva.
Editora Coimbra. Coimbra. 1996. P.226-229. um dos problemas conexos a utilizao dos variados
suportes publicitrios pelas confisses religiosas que, em linha de princpio, como atores sociais que
pretendem comunicar mensagens ao pblico, podem utilizar todos os instrumentos adequados ao desiderato,
desde que no ponham em causa, alm das possibilidades de harmonizao, direitos e interesses
constitucionalmente protegidos. 84
Machado, Jonatas Eduardo. Liberdade Religiosa numa Comunidade Constitucional Inclusiva. Editora
Coimbra. Coimbra. 1996. P. 228. certo que o proselitismo deve ser realizado dentro do respeito ao
princpio da tolerncia, no respeito escrupuloso pelos direitos fundamentais dos cidados. 85
Morais, Mrcio Eduardo Pedrosa. Religio e Direitos Fundamentais: O Princpio da Liberdade Religiosa
no Estado Constitucional Democrtico Brasileiro. Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC N.
18 julho/dezembro. 2011.P.241. 86
Pires, Terezinha Ins Teles. Liberdade de Conscincia, Liberdade de Crena e Pluralismo Poltico. Revista
de Informao Legislativa. Braslia. N49. 195 julho/setembro. 2012. P.56.
-
29
valores filosficos e religiosos minoritrios como possibilidades de escolha individual,
atenuando a dominao histrica de uma especfica doutrina87
.
Muito tempo se passou at que o conceito de liberdade passasse a se referir
tambm ao produto da conscincia humana. Quando isso ocorreu, a liberdade deixou de
constar como mero status poltico, ou uma circunstncia aleatria de no impedimento, e
passou a incorporar em seu significado uma disposio ntima, que prescinde do agir,
implicando num querer desvinculado do poder88
.O mbito de proteo da liberdade de
conscincia deve ser expansivo o bastante para incorporar em seu contedo as diversas e
multifacetadas mundividncias filosficas, ideolgicas e religiosas. Alm disso, tem que se
pautar pela no violao do princpio da neutralidade estatal89
.
Com o surgimento do individualismo, o homem comea a despontar como
elemento essencial e fundamental na comunidade em que vive. O indivduo emerge como
o centro de tudo a sua volta. Envolto a tudo isso, a conscincia vai se desassociando da
religio, nascendo uma liberdade fundamentada na conscincia individualista. A liberdade
religiosa constitucionalmente consagrada tem como ponto de apoio bsico a liberdade de
conscincia. No existindo qualquer critrio inequvoco e indiscutvel de verdade religiosa,
as opes em matria de f so relegadas, numa ordem constitucional livre e democrtica,
para o foro da conscincia individual90
.
Para Jorge Miranda, assim como para a doutrina portuguesa em geral, a liberdade
religiosa deriva da liberdade de conscincia. Esta se apresenta como um conceito mais
amplo, que incorpora seja a liberdade religiosa91
, de professar qualquer crena religiosa,
seja a liberdade de ter convices filosficas destitudas de carter religioso92
. Outro
exemplo o da objeo de conscincia, pela qual se reserva ao indivduo o direito de
87
Pires, Terezinha Ins Teles. Liberdade de Conscincia, Liberdade de Crena e Pluralismo Poltico. Revista
de Informao Legislativa. Braslia. N49. 195 julho/setembro. 2012. P.56. 88
Cabral, Alex Ian Psarki. A proteo internacional ao direito liberdade de conscincia. 2009. Publicado
em 07/2009. Elaborado em 11/2008. (Garcia, 1997) 89
Pires, Terezinha Ins Teles. Liberdade de Conscincia, Liberdade de Crena e Pluralismo Poltico. Revista
de Informao Legislativa. Braslia. N49. 195 julho/setembro. 2012. P.55. 90
Machado. Jonatas. Liberdade Religiosa numa comunidade constitucional inclusiva.Coimbra Editora.
Coimbra. 2002. P.194. 91
Miranda, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 2 edio. Volume 4. Coimbra Editora. Coimbra. 1993.
P. 416. A liberdade de conscincia mais ampla e compreende a liberdade de ter ou no ter religio alm da
liberdade de convices de natureza no religiosa. 92
Miranda, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 2 edio. Volume 4. Coimbra Editora. Coimbra. 1993.
P. 365.
-
30
recusar-se prtica de determinado ato, por motivo de crena. Mencionem-se, nesse
sentido, o caso da pessoa que no aceita a transfuso de sangue por professar a religio
Testemunha de Jeov, a recusa ao servio militar e a recusa do mdico a realizar o aborto
nos pases nos quais sua prtica legalizada93
.
Machado entende que a proximidade entre a liberdade de conscincia e a de
religio evidente se se pensar que muito caso de objeo de conscincia, porventura a
maioria deles, tem a sua origem em motivaes de ndole religiosa. necessrio, desde
logo, ter em conta que o direito liberdade de conscincia releva no apenas no plano
religioso, mas tambm nos domnios filosficos, ideolgico, etc94
.Para Maria da Gloria
Garcia, a liberdade de conscincia considerada a expresso mais elevada da dignidade
humana, portanto liberdade por excelncia na sociedade humana que radica na dignidade
humana95
.
A liberdade de conscincia trata do comportamento de cada um diante da
sociedade96
. Relaciona-se com as convices ntimas de cada indivduo.
Ainda em relao liberdade de conscincia, esta possui relao direta com o princpio da
dignidade da pessoa humana. Desse modo, ao tratar a pessoa humana como fim, e no
como meio, como sujeito, e no como objeto, o Estado Democrtico de Direito busca
proteger no apenas a sua vida corprea, mas tambm favorecer a procura pela prpria
felicidade97
.
O professor Jonatas Machado argumenta que a liberdade de conscincia procura
acentuar o fato de que a plausibilidade, a autenticidade e o prprio sentido moral das
escolhas religiosas individuais supe sempre uma estrutura institucional religiosa e
mundividencialmente neutra, entendida esta como a ordem social desvinculada de um bem
93
Pires, Terezinha Ins Teles. Liberdade de conscincia, liberdade de crena e pluralismo poltico. Revista de
Informao Legislativa. Braslia a. 49 n. 195 jul./set. 2012. P.49. 94
Machado. Jonatas. Liberdade Religiosa numa comunidade constitucional inclusiva.Coimbra Editora.
Coimbra. 2002. P.195. 95
Garcia, Maria da Gloria Ferreira Pinto Dias. Liberdade de Conscincia e Liberdade Religiosa. Direito e
Justia. Voluma 11. Tomo 2. P. 75. 1997. 96
Bastos, Celso & Meyer-Pflug, Samantha. Do Direito Fundamental Liberdade de Conscincia e Crena.
P.107. 97
Heringer Junior, Bruno. Objeo de Conscincia e Direito Penal: justificao e limites. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2007, p. 26.
-
31
comum objetivo aprioristicamente captado, apoiada apenas em princpios bsicos de
justia e reciprocidade98
.
Embora a Carta dos Direitos Fundamentais da Unio Europeia seja
subsidiria em relao Conveno Europeia dos Direitos Humanos, considerado um
dos textos mais completos e referncia internacional em relao aos Direitos do Homem.
Encontraremos a liberdade de conscincia sendo abordada ao lado da liberdade de religio.
Encontramos na Conveno Europeia dos Direitos Humanos, em seu artigo 9,o
reconhecimento da importncia da liberdade de conscincia concomitante liberdade de
religio ou crena. O direito fundamental liberdade de conscincia j devidamente
consagrada no cenrio internacional.
Podemos diferenciar a liberdade de conscincia da liberdade de crena e de culto
na medida em que estas ltimas, embora tambm sejam de foro ntimo, so espcies mais
direcionadas s questes religiosas, no obstante estejam tambm albergadas sob o
conceito maior da liberdade de conscincia e desta decorrente99
. A prtica religiosa
conhece no exerccio de atos de culto um dos seus elementos fundamentais100
. na
celebrao do culto em que se exteriorizam os rituais caractersticos de cada religio.
Quem tem o direito, tem que ter os meios de exercer esse direito101
.O exerccio da
liberdade de culto consiste no direito de prestar homenagem ou honrar, adorar e servir s
divindades que melhor parea a cada um, celebrando seus rituais, o que tambm envolve a
construo de templos. Inclui, ainda, o direito de recolhimento de contribuio dos seus
fiis ou adeptos102
.
98
Machado. Jonatas. Liberdade Religiosa numa comunidade constitucional inclusiva.Coimbra Editora.
Coimbra. 2002. P.196. Ao nosso ver, a liberdade de conscincia um importante valor de articulao entre
o direito liberdade religiosa e a separao das confisses religiosas do Estado, mas no o nico. 99
Soriano, Aldir Guedes. Liberdade Religiosa no Direito Constitucional e Internacional. So Paulo: Juarez,
2002, p. 11. 100
Machado, Jnatas Eduardo. Liberdade Religiosa numa Comunidade Constitucional Inclusiva. Editora
Coimbra. Coimbra. 1996. P.229. 101
Costa, Clio Silva. A interpretao constitucional e os direitos e garantias fundamentais na Constituio
de 1988. Rio de Janeiro: Lber Juris, 1992, p. 155. 102
Garcez, Robson da Boa Morte. Liberdade de Crena e de Expresso Religiosa no mbito dos Direitos
Fundamentais. Alicerces ticos para seu exerccio, numa perspectiva crist. Faculdade de Direito da
Universidade Mackenzie. Disponvel em:http://www.mackenzie.br/fileadmin/Graduacao/
FDir/2011/artigos/robson_garcez.pdf >. Acessado em: 27/03/2015.
-
32
Pontes de Miranda afirma que a liberdade ao culto um direito fundamental
assegurado em si e no s institucionalmente. Engloba o exerccio da orao e a de praticar
atos prprios das manifestaes exteriores em casa ou em pblico, bem como a de
recebimento de contribuies por isso103
. Miranda ainda esclarece que a liberdade de culto
est para a liberdade religiosa como a liberdade de pesquisa cientfica para a liberdade de
pensar cientfico. Ambas supem contato com outros homens ou com objetos que
interessam a outros homens, em vez de ser liberdade do indivduo sozinho. O culto a
forma exterior da religio. As cerimnias so a parte mais visvel do culto e na parte
cerimonial, para o autor, esse fato presume-se liberdade fsica104
.
Como qualquer outro direito, no absoluto. Deve respeitar os limites impostos
pelo Direito. A liberdade religiosa s tem sentido em condies de reciprocidade, num
Estado de Direito. O princpio da Igualdade, em matria religiosa no responde apenas aos
problemas de justia ou reciprocidade entre os cidados, mas tambm ao da sua prpria
liberdade religiosa105
.Cabe ao Estado proteo e preveno de qualquer perturbao ao
culto106
realizada por terceiros, se necessrio, cabe medidas de polcia.
Machado, em sua obra elucidativa sobre o tema de liberdade religiosa, explica que
a liberdade de culto pode suscitar problemas de articulao com outros direitos
fundamentais. As reunies ou procisses cabem dentro do mbito da proteo do direito de
reunio e associao, aplicando o programa normativo deste direito no que diz respeito s
dispensas e autorizaes107
.Para o eminente professor, a garantia da liberdade de culto
relaciona-se, sobremaneira, com o problema da manuteno da ordem e da necessidade de
medidas de polcia, que variam consoante o lugar onde decorrem os atos do culto: sendo
103
Miranda, Pontes de. Comentrios Constituio de 1967. Tomo IV. So Paulo. RT. 1967. P.121. 104
Miranda, Pontes de. Comentrios Constituio de 1967. Tomo IV. So Paulo. RT. 1967. P.123-7. 105
Lourdes Simas Santos, Da proteo liberdade de religio ou crena no Direito Constitucional e
Internacional, In Revista Brasileira de Direito Constitucional. P. 585. 106
Coelho, Sacha Calmon Navarro. Comentrios Constituio de 1988 Sistema Tributrio. 10 ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2006, p. 33. Templo, do latim templum, o lugar destinado ao culto. Em Roma era lugar
aberto, descoberto e elevado, consagrado pelos augures, sacerdotes da adivinhao, a perscrutar a vontade
dos deuses, nessa tentativa de todas as religies de religar o homem e sua finitude ao absoluto, a Deus. Hoje,
os templos de todas as religies so comumente edifcios. (...) Onde quer que se oficie um culto, a o
templo. 107
Machado, Jnatas Eduardo. Liberdade Religiosa numa Comunidade Constitucional Inclusiva. Editora
Coimbra. Coimbra. 1996. P.230.
-
33
manifestaes interiores, a preservao da ordem compete essencialmente aos ministros de
culto. Concorrem a liberdade religiosa e o direito a inviolabilidade do templo religioso108
.
No que diz respeito liberdade de organizao religiosa, esta consiste no direito
individual de exerccio coletivo, de associar-se a outros indivduos para o desempenho de
atividades de cunho religioso109
. O fenmeno religioso possui um carter eminentemente
social, sendo assim, deve existir respeito pela autonomia das formaes sociais. O
principal fundamento para a garantia da liberdade religiosa s confisses e comunidades
religiosas decorre do seu necessrio escoramento nas convices da conscincia
individual110
.
Deve-se atentar que a organizao do fenmeno religioso muito diversificada,
no sendo legtimo privilegiar ou impor, por via legislativa ou hermenutica, uma
determinada concepo ou estrutura organizatria em detrimento de outras111
. Sempre
importante lembrar que o direito liberdade religiosa coletiva deve ser exercido dentro dos
limites impostos pela liberdade religiosa individual e pelos princpios da igualdade e da
separao das confisses religiosas do Estado112
.
1.4. A Utilizao dos smbolos religiosos
O uso de smbolos religiosos considerado uma decorrncia da liberdade de
manifestao religiosa, liberdade esta amparada em distintos instrumentos convencionais
internacionais113
e consignada, tambm, na Declarao Universal de Direitos Humanos114
.
108
Machado, Jnatas Eduardo. Liberdade Religiosa numa Comunidade Constitucional Inclusiva. Editora
Coimbra. Coimbra. 1996. P. 231-2. 109
Santos Jnior, Alosio Cristovam dos. A Liberdade de Organizao Religiosa e o Estado Laico Brasileiro.
So Paulo: Mackenzie, 2007. P. 77 110
Machado, Jonatas Eduardo. Liberdade Religiosa numa Comunidade Constitucional Inclusiva. Editora
Coimbra. Coimbra. 1996. P.235. 111
Machado, Jonatas Eduardo. Liberdade Religiosa numa Comunidade Constitucional Inclusiva. Editora
Coimbra. Coimbra. 1996. P.239. 112
Machado, Jonatas Eduardo. Liberdade Religiosa numa Comunidade Constitucional Inclusiva. Editora
Coimbra. Coimbra. 1996. P.241. O direito a uma igualdade liberdade religiosa, individual ou coletiva, em
conjunto com o principio da separao das confisses religiosas do Estado, tem como consequncia o
reconhecimento de um direito autodeterminao s confisses religiosas. 113
Conveno sobre os Direitos da Criana, art. 14 [CDC]; Pacto Internacional sobre Direitos Civis e
Polticos, art. 18 [PIDCP]. Ambos os instrumentos esto disponveis em SALIBA, Aziz Tuffi. Legislao de
Direito Internacional. 7 ed. So Paulo: Rideel, 2012.
-
34
Observando de forma mais acurada o artigo 18 da Declarao Universal dos
Direitos Humanos encontraremos que todo homem tem direito liberdade de pensamento,
conscincia e religio; este direito inclui a liberdade de mudar de religio ou crena e a
liberdade de manifestar essa religio ou crena pelo ensino, pela prtica, pelo culto e pela
observncia, isolada ou coletivamente, em pblico ou em particular". O documento
entende que a liberdade religiosa deve abranger tambm a manifestao dessa crena, que
pode se d com o porte de smbolos ou pertenas, seja de forma privativa ou pblica. A
importncia do artigo 18 da DUDH115
deveras, mesmo sendo considerado soft law,
inclusive serviu de inspirao para o surgimento de outras declaraes tambm de natureza
religiosa116
.
Embora seja considerado um direito intrnseco de cada cidado a portabilidade de
smbolos ou pertenas que simbolizem sua religio, a verdade que, em vrios pases e
regies, com diferentes argumentos, a liberdade individual de uso de smbolos religiosos
vem sendo restringida. A Frana, Turquia, Sua e Quebec so exemplos de pases em que
se impuseram limites exibio individual de signos religiosos, sob a alegao de se
proteger a mulher, a segurana nacional ou o secularismo117
.
O Conselho de Direitos Humanos das Naes Unidas entende que o uso de
smbolos religiosos constitui um elemento integrante da liberdade de determinado
indivduo de manifestar sua religio ou crena118
. Na mesma linha de pensamento, o
Comit de Direitos Humanos das Naes Unidas119
manifestou-se coadunando com o
114
Declarao Universal dos Direitos Humanos (Resoluon217/1948 da AGONU) in SALIBA, Aziz Tuffi.
Legislao de Direito Internacional. 7 ed. So Paulo: Rideel, 2012, p. 234. 115
Artigo 18. Toda pessoa tem direito liberdade de pensamento, conscincia e de religio; este direito
inclui a liberdade de mudar de religio ou crena e a liberdade de manifestar essa religio ou crena, pelo
ensino, pela prtica, pelo culto e pela observncia, isolada ou coletivamente, em pblico ou em particular.
(Corte Europeia dos Direitos do Homem, art. 18, 2011) 116
A Declarao sobre a eliminao de todas as formas de intolerncia e discriminao fundadas na religio
ou convices, proclamada pela Assemblia Geral das Naes Unidas em 25/11/1981 (Resoluo 36/55) e a
Declarao sobre os direitos das pessoas pertencentes a minorias nacionais ou tnicas, religiosas e
lingsticas, aprovada pela Assemblia Geral em sua Resoluo 47/135 de 18/12/1999. 117
Saliba,Aziz Tuffi e Maia, Tain Garcia. Restries ao Uso de Smbolos Religiosos: uma discusso a partir
da jurisprudncia europeia e canadense. Revista da Faculdade de Direito UFMG, Nmero Especial: Jornadas
Jurdicas Brasil-Canad. P.50. 2013. 118
Human Rights Council, Report of the Special Rapporteur on freedom of religion or belief, UNGAOR 4th
Sess, UN Doc A/HRC/4/21/Add.3 (2007); Cf. Human Rights Committee [HRC]. Julgamento.
Hudoyberganova v. Uzbekistan. CCPROR, 82d Sess, Communication No 931/2000. 5 de novembro de 2004.
p. 7. 119
O Comit de Direitos Humanos um corpo de especialistas independentes que moni- tora a
implementao, pelos Estados-Partes, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Polticos.
-
35
contedo do discurso do Conselho, reafirmando que a liberdade de manifestao religiosa
se concretiza com o direito de utilizao, em pblico ou em privado, de objetos, roupas e
trajes que estejam em conformidade com a crena ou com a religio do indivduo120
.
Sendo a liberdade de manifestao religiosa to amplamente defendida, tutelada e
propagada pelo Direito Internacional, a anlise de proibies ou restries impostas a ela
ultrapassa a mera apreciao de conformidade com determinada ordem jurdica nacional
ou regional. Dessa forma, a legitimidade de limitaes ou negativas ao uso de smbolos
religiosos deve ser lida luz do Direito Internacional Pblico121
.
O artigo 9 da Conveno Europeia de Direitos Humanos proclama a liberdade de
conscincia, de pensamento e de religio, elencando os sujeitos, as faculdades e os limites
que podem ser postos desde que seja respeitado o previsto no segundo inciso do mesmo
artigo. Segundo um pensamento consolidado h algum tempo, declara-se que o artigo nono
proporciona ao indivduo vasta gama de faculdades, dentre as quais abrangida a liberdade
de manifestar publicamente, alm de privativamente, o culto da religio de pertenas122
.
Para a autora, a lcita manifestao da sua liberdade religiosa pode ser exercida tambm
por meio de smbolos e condutas que expressam convices interiores, gerando,
frequentemente, uma coliso com os demais direitos e liberdades igualmente garantidas
pela CEDH.
Verificamos, desse modo, que existem diversos documentos que tratam de direitos
humanos, mas eles no se chocam ou se contradizem muito pelo contrrio, so
entrelaados e deve vigorar a norma que mais beneficie o cidado. Coadunando com a
afirmativa anterior, o autor Canado Trindade, em sua obra sobre Direito Internacional,
explica que as clusulas de limitaes consignadas em um documento de direitos humanos
no so interpretadas de modo a restringir o exerccio de quaisquer direitos humanos. A
120
HRC, General Comment No. 22, CCPROR, 48th Sess, UN Doc CCPR/C/21/Rev.1/ Add.4, (1993)
[G.C.No.22]. 121
Saliba,Aziz Tuffi e Maia, Tain Garcia. Restries ao Uso de Smbolos Religiosos: uma discusso a partir
da jurisprudncia europeia e canadense. Rev. Fac. Direito UFMG, Nmero Especial: Jornadas Jurdicas
Brasil-Canad. P.50. 2013. 122
Biazi, Chiara Antonia Sofia Mafrica. Revista Meritum Belo Horizonte v. 6 n. 2 p. 187-231
jul./dez. 2011. A questo dos smbolos religiosos anlise da Corte Europeia dos Direitos Humanos: O caso
Leyla Sahin contra Turquia P.190.
-
36
interpretao restritiva de tais clusulas de limitao constitui uma decorrncia lgica de
interpretao teleolgica e evolutiva dos tratados de direitos humanos123
.
Nessa mesma linha de pensamento do pargrafo anterior, encontraremos as
declaraes do Comit de Direitos Humanos, da ONU, que defende que os direitos
fundamentais no podem ser restringidos com fins discriminatrios. As restries que
derivem da discriminao no so s
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