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Gestão Social: as fragilidades de um campo em construção.
Raphaela Reis Conceição Castro Silva
Luis Moretto Neto
ResumoA gestão social vem se apresentando como campo promissor de desenvolvimento dos estudos organizacionais.
Diante da expansão da temática no meio acadêmico e para além dele, há uma diversidade de aplicações e
significados atribuídos ao termo gestão social. Nessa perspectiva é imprescindível a organização do seu
significado e fundamentos teóricos. Dessa forma, o objetivo desse trabalho é apresentar os fundamentos teóricos
de delimitação do campo de conhecimento científico da Gestão Social. Para tanto, propõe-se a identificação das
correntes de pensamento em Gestão Social a sustentam como uma área do conhecimento científico por meio da
pesquisa bibliográfica, a fim de evitar a vulgarização e banalização da terminologia Gestão Social. Após as
análises bibliográficas, pode-se afirmar que houve uma institucionalização de modo acelerado da Gestão Social,
porém com distintas informações sobre quando surgiu no Brasil. Apesar do avanço na produção do
conhecimento, ainda não se tem uma visão crítica consolidada e uma definição sólida do referido campo,
evidenciando a fragilidade do tema que ainda precisa de aprofundamento em termos teóricos e metodológicos
necessários para o fortalecimento do campo da Gestão Social.
Abstract:Social management has been presented as a promising field for developing organizational studies. Considering
the expansion of this topic in the academic world and beyond, there is a diversity of applications and meanings
related to the term social management. From this perspective it is essential to organize the meaning and
theoretical foundations. The aim of this paper is to present the theoretical foundations of delimiting the field of
scientific knowledge of Social Management. We propose to identify the approaches and thought on Social
Management that support it as an area of scientific knowledge through research, in order to avoid vulgarization
and banalization of Social Management terminology. After bibliographic analysis, it can be said that there was
an accelerated institutionalization of Social Management, but with different information on when it appeared in
Brazil. Despite advances in knowledge production, Social Management still does not have a consolidated and
solid definition, highlighting the fragility in this topic that still needs further development in theoretical and
methodological terms necessary for strengthening Social Management field.
Resumen:La gestión social se ha presentado como campo prometedor en el desarrollo de los estudios organizacionales.
Teniendo en cuenta la expansión de esta temática en el mundo académico y fuera de este, hay una diversidad de
aplicaciones y significados atribuidos a la gestión social. Desde esta perspectiva es esencial organizar su
significado y fundamentos teóricos. Por lo tanto, el objetivo de este trabajo es presentar los fundamentos teóricos
de la delimitación del campo del conocimiento científico de la Gestión Social. Proponemos la identificación de
las corrientes de pensamiento sobre Gestión Social que la sustentan como un área de conocimiento científico a
través de la investigación bibliográfica, con el fin de evitar la vulgarización y banalización del termino Gestión
Social. Después del análisis bibliográfico, se puede afirmar que hubo una institucionalización de modo acelerado
de la Gestión Social, sin embargo con diferente información sobre cuando apareció en Brasil. A pesar de los
avances en la producción de conocimiento, todavía no se tiene una crítica consolidada y una definición sólida de
ese campo, evidenciando la fragilidad del tema que todavía necesita un mayor desarrollo en términos teóricos y
metodológicos necesarios para el fortalecimiento del campo de Gestión Social.
1 Introdução
A gestão social vem se apresentando como campo promissor de desenvolvimento dos estudos
organizacionais. O tema nasceu dentro da academia como uma possibilidade inovadora de
pesquisa e ensino no campo da Administração. Existem diversos pesquisadores no Brasil que
desde a década de 1990 vem se dedicando a temática e, principalmente, a partir da segunda
metade da primeira década deste século, com a criação de programas de pesquisa, encontros
especializados e mesmo periódicos dedicados ao tema. Institucionalizada em 2003, a Rede
Brasileira de Pesquisadores em Gestão Social – RGS – é formada pelos diversos
pesquisadores e grupos de pesquisa espalhados pelo país e interessados no tema Gestão
Social.
Para França Filho (2008), o termo - gestão social - tem conquistado grande
visibilidade tanto do ponto de vista acadêmico como em termos mediáticos. Segundo Carrion
e Calou (2008) a Gestão Social, apesar de ser um dos mais relevantes temas abordados nos
últimos anos, sofre com a falta de espaço em periódicos de Administração e a criação do
ENAPEGS surge como resposta a esta demanda dos pesquisadores na área. O Encontro
Nacional de Pesquisadores em Gestão Social – ENAPEGS foi para sua sétima edição em
2014 apresentando um crescimento consistente a cada ano. De acordo com a organização do
evento, em 2009 tiveram 280 inscritos e no evento desse ano, o número foi de 456 inscritos
(ENAPEGS, Projeto VIII Enapegs submetido a Capes, 2014 (mimeo). Araújo (2012) analisou
com profundidade todos os ENAPEGS realizados e destaca que estes são abertos para o
diálogo entre a comunidade acadêmica, representantes de ONG’s e do poder público,
diferenciando-o de outros eventos acadêmicos.
Diante desse crescimento e expansão no meio acadêmico e para além dele, há uma
diversidade de aplicações e significados atribuídos ao termo Gestão Social (ARAÚJO, 2012).
Nessa perspectiva é imprescindível a organização do seu significado e fundamentos teóricos.
Japiassu (1991) considera que questionar sobre a história das ciências consiste em indagar
sobre sua finalidade, sobre seu destino, sobre seu por que, mas também sobre aquilo pelo que
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ela se interessa, de que ela se ocupa, em conformidade com aquilo que ela visa. Dessa forma,
o objetivo desse trabalho é apresentar os fundamentos teóricos de delimitação do campo de
conhecimento científico da Gestão Social. Para tanto, propõe-se a identificação das correntes
de pensamento em Gestão Social a sustentam como uma área do conhecimento científico por
meio da pesquisa bibliográfica.
2 Análise
Para que seja possível identificar as correntes de pensamento em Gestão Social, faz-se
necessário compreender o que é ciência e quais são os critérios de demarcação científica que
contemplam o constructo da Gestão Social.
Antes de iniciar a discussão sobre ciência, cumpre revisitar alguns conceitos
importantes sistematizados por Japiassu (1991) sendo eles: o saber, ciência e a epistemologia.
O primeiro deles, o saber é todo um “conjunto de conhecimentos metodicamente adquiridos,
mais ou menos sistematicamente organizados e susceptíveis de serem transmitidos por um
processo pedagógico de ensino” (p. 15). Lakatos e Marconi (2003) indicam quatro tipos de
saberes que se diferem, basicamente, no que se refere ao seu contexto metodológico, sendo
eles, o popular, o filosófico, o religioso e o cientifico.
A ciência, por sua vez, é o “conjunto das aquisições intelectuais, de um lado, das
matemáticas, do outro, das disciplinas de investigação do dado natural e empírico, fazendo ou
não uso das matemáticas, mas tendendo mais ou menos a matematização” (JAPIASSU, 1991,
p. 16). Em outros termos, a ciência é um tipo de saber, no qual seus conhecimentos são
sistematizados e organizados seguindo uma metodologia.
E por fim, a epistemologia. A epistemologia não é o estudo dos métodos científicos ou
uma síntese das leis cientificas. A epistemologia é o estudo crítico dos princípios, das
hipóteses e dos resultados das diversas ciências e tem por objetivo determinar a ordem lógica
das ciências, seu valor e seu alcance objetivo. Conhecer a epistemologia é fundamental para
aqueles que se interessam em olhar criticamente e reflexiva as ciências que vem afetando
nosso mundo atual. Japiassu (1991) sinaliza cinco epistemologias que repartem entre si de
acordo com o primado ao sujeito, ao objeto ou a interação entre ambos, a saber, epistemologia
fenomenológica, de Husserl; epistemologia construtivista e estruturalista de Piaget;
epistemologia histórica, de Bachelard; epistemologia “arqueológica” de Foucault; e
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epistemologia “racionalista-crítica”, por Popper. Campos (1993) afirma que o conhecimento
científico atual está construído sob as bases de uma epistemologia “racionalista-crítica”.
Para que possamos compreender a ciência da administração na atualidade, é preciso
retomar as influências que a ciência moderna recebeu desde o século XVII. A ciência como é
conhecida hoje tem raízes no trabalho de Francis Bacon e René Descartes. Bacon traz as
noções do empirismo, o segundo, do racionalismo.
Bacon (1979) teceu uma crítica à filosofia dos gregos que deram a natureza como um
assunto já debatido e exaurido de discussões e destaca também que os escritos produzidos por
aqueles não eram dotados de nenhuma espécie de regra. Afirmando que o método atual
subordina a natureza ao pensamento humano e o pensamento humano às palavras, e para
Bacon (1979), impede o avanço das ciências. Dessa forma, o filósofo inglês apresenta um
novo instrumento, um “verdadeiro método de interpretação” da natureza. Ele defendia o
empirismo, ou seja, uma nova ciência prática, sem espaço para o conhecimento teórico e
metafísico. Este trabalho foi crucial no desenvolvimento histórico do método cientifico.
Bacon (1979) sugere que a experiência sendo aplicada de forma correta e metódica é possível
alcançar melhores resultados.
O método indutivo proposto por Bacon é composto pelo inventário das várias
situações em que o evento em estudo ocorre, as que ele não ocorre, bem como as que ele
ocorre, quando não é esperado. Tal inventário consta basicamente de três tábuas: a tabela de
presença (registros em que o objeto está presente), a tabela de ausência (registro em que o
objeto está ausente) e a tabela de comparação (registro das variações). Além disso, enfatiza
também a necessidade de ampliar a investigação para os aspectos mais gerais, não se
dedicando a apenas um experimento em particular.
Já para Descartes, as bases de seu pensamento estão na possibilidade de conhecimento,
empirismo e racionalismo. Descartes (1979) recomenda que não é aconselhável derrubar todo
o fundamento das ciências para então reerguê-lo, mas sim ajustá-lo ao nível da razão. E para
tanto, o filósofo apresenta o que ele próprio considera o “verdadeiro método” para chegar ao
conhecimento de todas as coisas de que o espírito fosse capaz, composto com quatro etapas,
sendo elas: (a) regra da evidência; (b) regra da análise; (c) regra da síntese; (d) regra da
enumeração. De maneira bastante audaciosa, o filósofo francês afirma que com o método
proposto, o mundo e qualquer conhecimento são atingíveis.
O trabalho de Auguste Comte (1798-1857) pode ser considerado uma continuação do
de Descartes. Comte foi o maior representante do positivismo francês e é considerado o
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fundador do positivismo em geral. Para ele, o pensamento humano passou por três fases. A
primeira seria a teológica que explica os fenômenos por meio das divindades, que se divide
em três graus: fetichismo, politeísmo e o monoteísmo. A segunda, a metafísica que recorre a
entidades abstratas e o domínio da razão, sob a liderança dos filósofos gregos. E por fim, a
positiva que recorre à realidade empírica. Abrange toda a civilização, inclusive a religião, o
culto da divindade é substituído pelo culto da humanidade.
O positivismo seria o estágio teórico final das especulações do homem, precedido
pelos estágios teológico e metafísico. Ao afastar os deuses e colocar o homem na posição
central, o positivismo dá condições necessárias para o surgimento das concepções morais
hedonistas e utilitárias no qual o objetivo é a alcançar a felicidade, o prazer, o beneficio, a
vantagem, o bem e impedir o oposto (o dano, a dor, o mal, ou a infelicidade) em qualquer
coisa. E a partir disso, nascem os sistemas político-econômico-sociais com os pressupostos de
sufrágio universal, livre concorrência econômica e a centralidade da atividade econômica na
vida. O pensamento positivista se expandiu rapidamente, pois respondia as questões referentes
aos problemas causadas pelo desenvolvimento econômico-social da época.
O positivista busca a objetividade da ciência e da história compreendendo que elas
surgem no campo prático, técnico, aplicado. O positivismo se assemelha ao empirismo, mas
dele se diferencia por um elemento característico: a evolução. Acredita na evolução natural
quer nos meios no que no fim, para o bem-estar material.
O positivismo defende a ideia de que o conhecimento científico é a única forma de
conhecimento verdadeiro e desconsidera a metafísica. Schlick (1980), coordenador do Círculo
de Viena, aponta que a problemática da filosofia está em dois pontos: da formulação de
problemas de forma ingênua e de seus métodos utilizados.
No entanto, Popper (1980) aponta que o erro dos positivistas é eliminar a metafísica e
propõe uma caracterização apropriada da ciência empírica e da metafísica. “O positivismo ao
invés de excluir a metafísica das ciências empíricas, leva à invasão da metafísica no reino
cientifico” (p.11). Entretanto, o filósofo não reconhece a importância da filosofia para o
desenvolvimento da ciência apenas deseja delimitar o espaço de cada uma.
O mundo do trabalho, entretanto, ainda não havia sido afetado por este racionalismo.
A obra de Frederick Winslow e Henry Fayol, principais pioneiros da racionalização do
trabalho, foi à conexão que expôs de maneira bastante clara e cartesiana os princípios da
administração cientifica.
Taylor, no início do século XX, apresenta seus princípios para a racionalização do
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trabalho, mostrando que há uma única e melhor maneira de realizar o trabalho, que deve ser
sistematizada pelo administrador (cientista) e ensinada ao trabalhador. Para sustentar esta
máxima, Taylor desenvolve seu trabalho, afirmando que os homens sempre fazem suas
escolhas baseados no conhecimento pleno de todas as possibilidades (racionalidade ilimitada),
buscando sempre o máximo de resultados (TAYLOR, 1995). Esses princípios atravessam o
tempo e influenciam ainda hoje largamente as organizações empresariais, cujo objetivo é o
lucro e influenciam também a sociedade humana como um todo (PEAUCELLE, 2000 e
FELLS, 2000).
Segundo Farah (2011), as origens da Administração Pública traziam como elemento
central a administração científica que, por sua vez, representava todo um pensamento em que
se voltava, neste caso, à simples formação de técnicos para atuarem junto a burocracia
governamental com o intuito de se implementar as políticas públicas, de forma apolítica e
imparcial. Esta marca histórica ainda é visualizada na atualidade no que tange o
estabelecimento de vários modelos teóricos formulados para a administração pública que
derivaram ou buscaram alicerce na ciência administrativa. No entanto, deve-se ressaltar que
os pressupostos para a construção desta ciência formal possuem como objeto central a busca
pelo lucro e a máxima eficiência. Se o campo da gestão no tocante a administração pública
perseguir tal premissa, sem um amadurecimento coeso que leve em conta a complexidade
atual da sociedade, bem como o pensar público, corre-se o risco de adentrar-se num ciclo
vicioso, no qual tais modelos de gestão não sejam suficientes para superação dos obstáculos
visando uma perspectiva própria, como de certa forma propõe Capra (1995) para as ciências
como um todo, incluindo as chamadas naturais e sociais, tendo em vista, por exemplo, o
fortalecimento da prática democrática e a felicidade dos cidadãos e da sociedade como um
todo.
Na visão de Chevallier e Loschak (1980), a administração originou-se na esfera
pública e seria, até então, utilizada como instrumento de dominação por parte do Estado.
Chevallier e Loschak (1980, p. 40) afirmam que [...] enquanto os homens políticos eleitos são investidos das responsabilidades essenciais de impulso e de controle, os funcionários nomeados, inseridos em estruturas burocráticas, são confinados a tarefas de pura execução.
Neste sentido, os políticos tinham na administração, os princípios intermediários para
colocar seus objetivos em prática, sobretudo a partir da especialização, da profissionalização e
da hierarquização. Os autores relatam que os mesmos modelos utilizados na esfera pública
eram aplicados em outras organizações, sobretudo porque nenhuma sociedade se sustentaria
sem os princípios de unidade e de coesão estrutural. Assim, um dos principais obstáculos da
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ciência administrativa, na época, seria conceber modos alternativos de gestão para tipos de
organizações que se diferenciam dos órgãos públicos.
A Administração foi fortemente influenciada pelos estudiosos que se baseava na
ciência moderna. E esta por sua vez estava ancorada nos pressupostos do empirismo,
racionalismo. Além do mais, a ciência moderna se pautou nas ciências naturais e na busca
pela concepção de leis universais. Dessa forma, o comportamento organizacional foi
submetido a métodos das ciências naturais.
Com o passar do tempo e o avanço da ciência em si, sua aplicação, tecnologia,
começa-se a perceber que o conhecimento é temporário, ou seja, passível de ser substituído
por outro que explique ainda mais a realidade. Além disso, a percepção de que o
conhecimento não avança de maneira contínua e incremental e sim por meio de revoluções
(Kuhn, Popper).
Segundo Alencar (1999), desde os anos 1930 o positivismo tem dominado as ciências
sociais e só a partir dos anos 1960 as abordagens interpretativas começam a ganhar espaço no
meio acadêmico. O positivismo, segundo Alencar (1999), estaria baseado em três ideias: o
objetivo geral é a identificação de leis universais, a geração do conhecimento se restringe à
experimentação e toda pesquisa científica tem os mesmos princípios metodológicos. Para
Demo (2007), este é um dos problemas centrais das ciências sociais, a opção por ciências
sociais imitativas das ciências naturais, ou ciências sociais com horizonte próprio. Ainda
segundo o autor, a abordagem imitativa ou o positivismo ainda é predominante.
O positivismo exerceu grande influencia até a década de 1960, momento que perde sua
hegemonia, porém é bastante influente nas ciências sociais e principalmente no campo da
Administração. Nos anos de 1970, a ciência contranormal, que é crítica a ortodoxia dos
estudos em Administração e tentam trazer as características humanas para o foco da ciência.
Entretanto, de acordo com Marsden e Townley (2001), essa ciência comete deslizes e adotam
um relativismo de paradigmas incomensuráveis.
De acordo com Cançado (2011), nesse contexto de mudança a Administração Pública,
ao incorporar a temática das políticas públicas ao campo, realiza também avanços teóricos
importantes. Ana Paula Paes de Paula (2005) propõe uma aproximação da Gestão Social com
a Gestão Pública no sentido da construção de uma Administração Pública Societal. Porém
ainda há um longo caminho para percorrer no sentido de solidificar essa proposta. A Gestão
Social desponta como mais uma possibilidade teórica e prática de gestão. Daí reside à
importância em delimitar o campo visando evitar a vulgarização da terminologia da Gestão
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Social. Para identificar a Gestão Social como campo do conhecimento científico, Cançado
(2011) identificou e organizou as categorias teóricas para a Gestão Social e as comparou com
os critérios de demarcação.
Nessa ótica, Cançado (2011) apresenta as perspectivas de Popper, Kuhn, Lakatos,
Feyerabend e Chalmers, pois foi a partir desses que a ciência foi definida, eles partem das
ciências naturais para definir a ciência como um todo. Posteriormente, o autor analisa os
trabalhos de Santos e Demo que partem das ciências sociais para entender a ciência. Para cada
uma dessas perspectivas, Cançado (2011) elaborou um quadro sintético com três categorias:
(a) critério de demarcação; (b) características da ciência; e (c) hipóteses ad hoc.
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A proposta de Popper (1980) está centrada na falseabilidade e sistemas axiomatizados.
Desta forma, para que a proposta de delimitação seja considerada como ciência deve se
constituir em sistema axiomatizado e ser passível de falsificação. Cançado (2011) selecionou
as categorias teóricas da Gestão Social, a saber: interesse bem compreendido, democracia
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deliberativa e emancipação; analisou cada uma delas a partir do propósito central da Gestão
Social e defende que são complementares e não contraditórias. Desta forma, pode-se
caracterizar este conjunto de enunciados como um sistema axiomatizado popperiano. Em
seguida, satisfazendo a assim a condição de falsificabilidade da teoria, de modo que possa ser
considerada como científica, Cançado (2011) verifica as mesmas categorias teóricas,
defendendo a ideia de que e trata de Ciências Sociais, não se pode propor refutações
empíricas. Desse modo, o autor defende a compatibilidade entre tais categorias e a ausência
destes, caracteriza-se como a refutação do enunciado. Por tais razões, pode-se dizer que,
dentro do critério de demarcação de Popper (1980), a Gestão Social aproxima-se de um
campo do conhecimento científico.
Em seguida, Cançado (2001) apresenta o critério de demarcação de Kuhn, que trata-se
da aquisição do primeiro paradigma. Tomas S. Kuhn (1987), define visão mais tradicional e
conhecida sobre paradigma , chama de paradigmas “as realizações científicas universalmente
reconhecidas que durante algum tempo fornecem problemas e soluções modelares para uma
comunidade de praticantes de uma ciência” (KUHN, 1987], p. 33) . Ademais, Kuhn (1987)
apresenta o termo “paradigma” de forma circular, em outras palavras, “paradigma é aquilo
que os membros de uma comunidade partilham, e inversamente, uma comunidade científica
consiste em homens que partilham um paradigma” (p. 219). Uma comunidade cientifica é
formada pelos praticantes de uma especialidade científica e que absorveram a mesma
literatura. Além disso, cada comunidade possui um objeto de estudo próprio. Há também
comunidades que abordam o mesmo objeto científico a partir de pontos de vista
incompatíveis. Após esta condição satisfeita, o campo se consolida como ciência normal para
determinada comunidade científica.
Cançado (2011) destaca que a estruturação da Rede Brasileira de Pesquisadores em
Gestão Social – RGS e do Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão Social –
ENAPEGS é o início da organização de uma comunidade científica para a consolidação do
primeiro paradigm para a Gestão Social. Porquanto para o estabelecimento de um paradigma
dependerá, ainda, da resposta da comunidade científica, visto que a Gestão Social ainda não
faz parte das mesas temáticas do Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-
graduação e Pesquisa em Administração – EnANPAD. Desta forma, dentro do critério de
demarcação de Kuhn (1987) a Gestão Social ainda não pode ser considerada como campo do
conhecimento científico.
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Nessa direção, Cançado (2011) apresenta a perspectiva de Lakatos, que se aproxima
fortemente da proposta de Kuhn. Os critérios de demarcação conforme Lakatos (1999) exige
que o campo em estudo possua um programa de investigação científico composto por
metodologias irrefutáveis, heurística negativa, que são os caminhos a evitar na pesquisa e a
heurística positiva, caminhos a seguir no reforço da teoria. Sendo assim, o autor chega há uma
resposta similar à anterior em relação à cientificidade do campo da Gestão Social na
perspectiva de Lakatos. Embora tenha se avançado bastante, ainda não se pode considerar a
Gestão Social como um campo científico dentro desse critério de demarcação. Destaca-se o
fato de que as praticamene inexistem enfoques prescritivos do tema e as metodologias de
Gestão Social encontram-se num momento de elaboração, como o modelo apresentado por
Tenório (2011). O autor organizou a obra Cidadania e desenvolvimento local: critérios de
análise, na qual apresenta os critérios para a avaliação de processos decisórios participativos
deliberativos na implementação de políticas públicas elaborado pelo PEGS/EBAPE. Nessa
obra foram coletados 401 entrevistas em seis diferentes regiões do Brasil.
A proposta de Feyerabend (2007) defende a ideia de que não existe uma estrutura
comum para os procedimentos e resultados que constituem as ciências. Feyerabend (2007)
apresenta a contra-indução como caminho pelo qual a ciência se desenvolve. A contra-
indução consiste em apresentar teorias deliberadamente contrárias às teorias estabelecidas.
Nessa ótica, a Gestão Social apresenta-se como contrária a gestão estratégica. Para Tenório
(1998), esta procura objetivar o “adversário” por meio da esfera privada, enquanto a gestão
social deve attender ao bem comum da sociedade, através da esfera pública. Dentro da
perspectiva feyerabendiana, Cançado (2011) afirma que a Gestão Social pode ser considerada
como um campo do conhecimento científico.
Para Cançado (2011), a proposta de Chalmers (1993; 1994) também é ampla e se
aproxima de Feyerabend (2007). Para Chalmers (1993; 1994), não existe uma categoria única
chamada ciência, o estabelecimento de critérios de demarcação serve apenas para excluir ou
suprimir áreas de estudo. Para que seja considerado como ciência, Chalmers (1993;1994)
define que um campo do conhecimento deve ter um objetivo claro (meta da ciência), métodos
à sua disposição e possibilidade de medir os seus resultados em termos dos objetivos
propostos. A proposta de delimitação do campo da Gestão Social atende à proposta de
Chalmers (1993; 1994) em relação à sua cientificidade.
Posteriormente às análises dos critérios de demarcação das ciências de Popper, Kuhn,
Lakatos, Feyerabend e Chalmers, Cançado (2011) analisa os trabalhos de Santos e Demo que
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diferentemente daqueles partem das ciências sociais para entender a ciência.
Para Santos (1988), a sociedade está em um período de transição como o que ocorrera
no século XVIII, saindo de uma revolução cientifica pelas mãos de Copérnico, Galileu e
Newton, no qual perplexidade pairava e a reflexão sobre os fundamentos que viviam a
sociedade. E atualmente, estamos de novo perplexos, sem confiança epistemológica, com
sentimento de perda a respeito do que estamos em via de perder. O modelo de racionalidade
surgiu no século XVI e foi desenvolvimento nos seguintes séculos e afetou fortemente as
ciências naturais. Já no século XVIII, o modelo se estende as ciências sociais emergentes. Tal
como foi possível descobrir as leis da natureza, seria igualmente possível descobrir as leis da
sociedade.
No atual momento, segundo Santos (2003), está-se na iminência de uma segunda
ruptura epistemológica é uma ruptura com a primeira ruptura, aproximando novamente
ciência e senso comum, cujo resultado seria um senso comum esclarecido e uma ciência
prudente. Esta segunda ruptura partiria das Ciências Sociais e traria as bases para uma
aplicação edificante do conhecimento. A ideia de um paradigma emergente, como adverte
Santos (2008), trata-se de uma ação especulativa, fundada nos sinais que a crise do paradigma
atual. Como muitos outros estudiosos já apresentaram suas sínteses, Santos (2008) também a
apresenta. O autor apresenta o “paradigma de um conhecimento prudente para uma vida
decente” (p.60), sendo ele pautado no paradigma cientifico e também social.
Na visão de Cançado (2011), a Gestão Social atende a ruptura epistemológica proposta
por Santos (2008), pois o campo constroí-se sob as bases do processo de democratização, ao
incluir a importância do bem-estar coletivo, na esfera pública. Desse modo, aproxima o senso
comum da Ciência, sem que um se sobreponha ao outro, no sentido de ampliar as
possibilidades de Dialogicidade e Intersubjetividade.
Desta forma, de acordo com o critério de demarcação proposto por Santos (2003), a
proposta apresentada para a Gestão Social pode ser considerada como ciência (CANÇADO,
2011).
Finalmente, a análise dos critérios de demarcação pelas lentes de Pedro Demo (2007).
Na visão do autor, considera-se como ciência o que for passível de discussão. Ademais,
Cançado (2011) apresenta outros critérios internos propostos por Demo (2007) a saber
coerência, consistência, originalidade e objetivação; enquanto que o critério externo é a
intersubjetividade. Além disso, o conhecimento deve ter qualidade formal e qualidade
política. A questão da discutibilidade se aproxima da falsificação popperiana, pois, para
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falsificar é necessário discutir o argumento/enunciado (CANÇADO, 2011). Posto isso, as
categorias teóricas que podem ser falseados, entende-se que também podem ser discutidos.
Em suma, a Gestão Social atende aos critérios de demarcação nas perspectivas de
Popper, Feyerabend, Chalmers, Santos e Demo. Somente não o cumpre nos critérios de Kuhn
e Lakatos, os quais dependem da aceitação na comunidade científica. É preciso insistir no
fato de que o espaço científico é como um espaço dominado pelas regras do mercado e da
competição (BOURDIEU, 1987). Bourdieu (1987) defende que a ciência é um campo no qual
um bem específico (o conhecimento científico) é produzido. O campo científico é um lugar de
luta e tem como prêmio a acumulação de “capital simbólico” (títulos, prêmios, incentivos).
Dessa forma, os bens negociados nesse campo não tem valor objetivo: o valor atribuído a um
resultado depende do interesse que os outros membros da comunidade científica conferem a
ela.
Leclerc (2005), coadunando com as ideias de Bourdieu (1987), apresenta as relações
de poder, autoridade e prestígio entre os intelectuais e indica que este pode ser medido através
de quatro dimensões: prestígio da instituição; produção de obra reconhecida;
edição/publicação; e direção de laboratórios. Contudo, Bourdieu (1987) ressalta que os
pesquisadores não são todos iguais; alguns dotados de poder simbólico podem agir sobre o
campo para dizer o que merece ser estudados mais ou o que merece menos. Nessa direção,
Martin (2001) traz que a ciência “é desigual, estratificada e apresenta casos de sexismo e
racismo”. A ciência não constitui-se como espaço democrático e possui uma elite que
concentra todos os poderes: “agenciar os cargos, selecionar as pesquisas mais proveitosas,
editar e difundir os resultados julgados mais interessantes, controlar as revistas mais
prestigiadas”.
Portanto, o processo de aceitação da Gestão Social pela comunidade científica trata-se
de um processo desafiador e refleto de nuances que envolvem as relações de poder própria da
comunidade científica brasileira. Diante da necessidade da legitimação do campo da Gestão
Social na comunidade científica, apresenta-se a produção do conhecimento científico sobre o
tema. Discute-se as primeiras concepções sobre a Gestão Social no Brasil, e expõe-se as
críticas ao conceito da Gestão Social.
Não foi possível encontrar na bibliografia pesquisada as origens da terminologia
Gestão Social. A principal pista vem dos textos do professor Tenório, que, desde 1990,
coordenador do Programa de Estudos em Gestão Social, vinculado à Escola Brasileira de
Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (PEGS/EBAPE/FGV).
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Conforme Cançado (2011), o primeiro contato de Tenório com o termo foi em um texto de
Giorgio Rovida que trata de experiências autogestionárias na guerra civil espanhola.
O primeiro texto nacional que trata da temática da Gestão Social foi publicado por
Tenório em 1998, intitulado “Gestão Social: uma perspectiva conceitual” na Revista de
Administração Pública. Nesse artigo, Tenório (1998) apresenta a base conceitual da gestão
social, detalhando que trata-se de um produto de experiências teóricas e práticas
desenvolvidas no Programa de Estudos em Gestão Social (PEGS), materializado por meio de
estudos, da publicação de livros e de atividades de treinamento e cooperação técnica.
Diferente disso, Araújo (2012) aponta que um dos marcos institucionalizadores da
gestão social foram as práticas de formação e projetos de extensão desenvolvidos na
Universidade Federal da Bahia (UFBA), a partir de 2001, no âmbito do Programa de
Desenvolvimento e Gestão Social (PDGS), implementado pelo Núcleo de Estudos em Poder e
Organizações Locais (Nepol), da Escola de Administração (EA). O Nepol, desde 1986
coordenado pela Profa. Tânia Fischer, atuou como um dos mais fortes grupos de pesquisa
sobre temas correlatos e que deram origem à ideia de gestão social. O Nepol, desde 1986
coordenado pela Profa. Tânia Fischer, atuou como um dos mais fortes grupos de pesquisa
sobre temas correlatos e que deram origem à ideia de gestão social.
O campo de estudo sobre Gestão Social encontra-se em construção, contudo, Cançado
(2011) afirma que a Gestão Social se desenvolve no âmbito da esfera pública, na qual se
sobressaem as organizações públicas não estatais e o interesse público da sociedade, além de
proporcionar condições à emancipação dos indivíduos, baseando-se na democracia
deliberativa, na formação da consciência crítica de seres humanos.
Entretanto, observa-se que há uma tendência à banalização do termo, pois “tudo que
não é gestão tradicional passa então a ser visto como Gestão Social” (FRANÇA FILHO,
2008, p. 26) e que o termo carece de maior precisão conceitual, possibilitando múltiplas
interpretações. Araújo (2012) coaduna com as ideias supra citadas ao afirmar “a
popularização do termo caminhou para uma certa trivialidade, com múltiplos focos de
atuação, onde tudo que era relacionado ao campo de expressões da questão social passava a
ser gestão social” (p. 37).
De acordo com Tenório e Pereira (2010), as principais referências conceituais sobre
Gestão Social são os trabalhos de Tenório (2008a; 2008b; 2010; 2011), França Filho (2003;
2008), Fischer (2002), Fischer e Melo (2003; 2006), Boullosa (2009) e Boullosa e Schommer
(2008; 2009). Em relação às críticas, Cançado aponta os trabalhos de Pinho (2010) que
14
questiona as possibilidades da Gestão Social, e também o trabalho de Boullosa (2009) e
Boullosa e Schommer (2008; 2009) que fazem um alerta em relação à transformação da
Gestão Social de processo de inovação a produto inovador. Adicionado aos apontamentos de
Cançado (2011), esse trabalho insere as reflexões críticas de Araújo (2012), decorrentes de
sua tese sobre o tema no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social.
A abordagem de Tenório (2008) parte de uma reflexão relacionada ao pragmatismo,
ao sucesso do mercado, da Administração, decorrente da leitura da obra de Guerreiro Ramos.
Segundo Tenório, a Gestão Social poderia ser considerada como uma linha alternativa em
relação à hegemonia da tradição positivista centrada na racionalidade utilitária das ciências
duras. O autor, baseado em Guerreiro Ramos e na Escola de Frankfurt e, posteriormente, na
“segunda geração” da escola alemã com Jürgen Habermas, constrói o conceito de Gestão
Social.
A construção do conceito acontece, inicialmente, pela ênfase a importância da
sociedade e do trabalho como protagonistas das relações com o Estado e o capital. Tenório
(1998) propõe essa mudança de enfoque a fim de destacar o protagonista no processo dessas
relações: a cidadania. Em outros termos, Tenório (1998) acentua o papel protagonista que a
sociedade civil organizada deve representar perante o mercado. Para tanto, o autor propõe que
a cidadania deliberativa deve intermediar essa relação, que significa, “que a legitimidade das
decisões deve ter origem em processos de discussão orientados pelos princípios da inclusão,
do pluralismo, da igualdade participativa, da autonomia e do bem comum” (TENÓRIO, 2008,
p.160). Tenório (1998, p. 19) esclarece que tal conceito deve ser entendido como uma “ação
política deliberativa”, na qual o indivíduo deve participar de um procedimento democrático
nas diferentes instâncias da sociedade e em diferentes papéis.
Com efeito, a esfera pública seria o espaço de intermediação entre Estado, sociedade e
mercado, bem como a cidadania deliberativa seria o processo participativo de deliberação
baseado essencialmente no entendimento (e não no convencimento ou negociação) entre as
partes (TENÓRIO, 2008).
Outra definição essencial para a construção do conceito de Gestão Social de Tenório é
a ação social do tipo comunicativa de Habermas, em vez de uma ação social do tipo
estratégico. Assim, no âmbito da gestão social orientada pela racionalidade comunicativa, os
atores, ao fazerem suas propostas, não podem impor seus objetivos sem que haja um acordo
atingido pela via da comunicação (TENORIO, 1998). Para o autor, a Gestão Social se baseia
no entendimento, estreitamente vinculado com a linguagem, pois, no processo de Gestão
15
Social, o acordo alcançado entre os atores é decorrente de uma discussão crítica. Assim, para
Tenório (1998, p.158) a Gestão Social é entendidaComo processo gerencial dialógico em que a autoridade decisória é compartilhada entre os participantes da ação (ação que possa ocorrer em qualquer tipo de sistema social – público, privado ou de organizações não-governamentais). O adjetivo social qualificando o substantivo gestão será entendido como o espaço privilegiado de relações sociais no qual todos têm o direito à fala, sem nenhum tipo de coação.
França Filho (2003; 2008) e Boullosa (2009) preocupam-se com a utilização do termo
de maneira banal e equivocada, pois o aparentemente o termo é auto-explicativo. Araújo
(2012) esclarece que o termo social colocado junto ao termo gestão é um adjetivo e também
uma forma substantiva de entender e tratar a gestão organizacional. No entanto, trata-se de um
ideal de gestão que não orienta-se pela finalidade econômica e pela racionalidade instrumental
(FRANÇA FILHO, 2008). O autor também conceitua a Gestão Social, e a faz por meio da
distinção entre gestão pública, gestão privada (ou gestão estratégica) e Gestão Social.Modo de próprio de gestão atuando num circuito que não é originariamente aquele de mercado e do Estado (...). Este é o espaço próprio da chamada sociedade civil, portanto uma esfera pública de ação que não é estatal (...) As organizações atuando neste âmbito, que são sobretudo associações, não perseguem objetivos econômicos. O econômico aparece apenas como um meio para a realização dos fins sociais.
Neste sentido, a Gestão Social é entendida pelo autor em duas perspectivas, como
processo e como fim. A Gestão Social enquanto fim (nível macro) se aproximaria da gestão
pública, pois ambas buscam atender às demandas e necessidades da sociedade. Ademais, o
termo Gestão Social sugere que a própria sociedade pode também gerir tais demandas da
sociedade, por meio de diversas formas de auto-organização. Por outro lado, a Gestão Social
enquanto processo, vista como uma modalidade específica de gestão (nível organizacional)
busca “subordinar as lógicas a outras lógicas, mais sociais, políticas, culturais ou ecológicas”
(FRANÇA FILHO, 2008, p.30).
Araújo (2012) destaca que o termo gestão social frequentemente está atrelado aos
conceitos de sustentabilidade, território e desenvolvimento. A adjetivação proposital ao conceito de gestão surge como construto inovador que denomina e domina na contemporaneidade o cenário e a agenda política. Progressivamente se consolida defendendo um tipo de gestão mais humanizada, relacional e interdisciplinar, emergindo como construto inovador no âmbito acadêmico das ciências gerenciais (ARAUJO, 2012, p. 33).
O autor analisou sete cursos específicos de gestão social na graduação e pós-graduação
strictu sensu, bem como de disciplinas em cursos de Administração e Serviço Social e conclui
que ensina o que não se sabe muito bem o que é. O referido autor alerta para a inclusão do
tema em novas agendas de pesquisa e extensão sem haver uma maior precisão quanto aos
usos desse novo contorno conceitual, principalmente pela Administração. Araújo (2012)
atribui a expansão da Gestão Social aos fomentos de pesquisa e programas de formação por
16
órgãos públicos e agências internacionais; a criação de uma nova carreira pública de gestor
social no âmbito do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; entre outros.
Maia (2005, p. 15) apresentou uma análise divergente dos demais do conceito de
Gestão Social, a saber a gestão social é um conjunto de processos sociais com potencial viabilizador do desenvolvimento societário emancipatório e transformador. É fundada nos valores, práticas e formação da democracia e da cidadania, em vista do enfrentamento às expressões da questão social, da garantia dos direitos humanos universais e da afirmação dos interesses e espaços públicos como padrões de uma nova civilidade (MAIA, 2005, p. 15).
Outra perspectiva conceitual sobre Gestão Social no Brasil é trazida pela professora
Tânia Fischer (2002, p. 29), apresenta a Gestão Social como “gestão do desenvolvimento
social”, definido pela autora como um espaço “reflexivo das práticas e do conhecimento
constituído por múltiplas disciplinas”. A autora apresenta uma perspectiva diferenciada de
França Filho (2008) ao entender que a distinção entre organizações pertencentes à esfera do
mercado, do Estado ou o Terceiro Setor é irrelevante; tendo em vista que todas as
organizações devem ser orientadas para e pelo social. A Gestão Social seria ainda uma
“proposta pré-paradigmática” que vem recebendo a atenção de muitos centros de pesquisa no
Brasil e no exterior (FISCHER, 2002; FISCHER; MELO, 2006). Assim, “a Gestão Social
pode ser definida como aquela orientada para o social (enquanto finalidade) pelo social
(enquanto processo), norteada pelos princípios da ética e da solidariedade” (FISCHER;
MELO, 2006, p.17). Um conceito importante para entender tal perspectiva sobre Gestão
Social é o de interorganizações. As interorganizações se aproximam do conceito de redes,
porém, a diferença está na hibridização e complexidade das relações, pois são organizações
necessariamente diferentes e a associação se faz pela complementaridade (FISCHER, 2002).
A proposta de Carrion (2007) para a Gestão Social tem como centro a governança
local, na qual, além de existir espaço para a participação democrática e deliberativa dos
cidadãos, deve criar condições para esta participação, considerando o conflito de interesses
como parte integrante do projeto democrático. Em outras palavras, o Estado deve
descentralizar as decisões, porém, continuando como condutor do processo democrático,
compatibilizando eficiência com aprimoramento da democracia. Em outras palavras, o Estado
deixa de ter o monopólio do poder para juntamente com a sociedade civil, planejar, traçar
diretrizes e tomar decisões capazes de potencializar o desenvolvimento local. Por sua vez, a
sociedade civil precisa se organizar para fazer-se presente nesse processo. Carrion (2007)
destaca que o grande desafio da Gestão Social está em promover a interação entre os três
atores – Estado, sociedade e mercado – tendo como base a solidariedade.
17
Boullosa (2009) destaca a propagação de práticas, que recebem novos rótulos, porém
continuam a perpetuar a mesma lógica instrumental que se firma no Estado e no mercado. A
autora salienta que a imprecisão conceitual da Gestão Social atrai diferentes iniciativas que
podem conter contradição diante da base epistemológica desse novo modo de gerir as relações
entre atores, que de alguma forma, se articulam na busca de um objetivo comum – o bem
comum.
Boullosa e Schommer (2008; 2009), “a noção de gestão social indica e fortalece um
novo modelo de relações entre Estado e sociedade para o enfrentamento de desafios
contemporâneos” (p. 1). As autoras apresentam os momentos evolutivos da Gestão Social e
alertam que o campo vem se transformado de processo de inovação a produto inovador.
Destarte, a Gestão Social abdica de seu potencial de inovação e não se diferenciando
claramente em relação aos outros tipos de gestão. As autoras defendem a ideia de que a gestão
social, ao transformar-se em produto, contribuiria para a institucionalização de um produto
sem substância. Isso ocorre quando a gestão social extrapola as fronteiras acadêmicas e é
incorporada nos discursos gerenciais e em agendas de governos e retorna para o mundo
acadêmico (BOULLOSA; SCHOMMER, 2008). Boullosa e Schommer (2008; 2009)
evidenciam o crescente número de cursos de formação em Gestão Social que se espalham
pelo Brasil, mesmo diante das diferentes interpretações sobre o tema e da ausência de
disciplinas estruturadas que misturam diferentes abordagens como a gestão tradicional,
economia solidária, responsabilidade social e desenvolvimento territorial.
3 Conclusão
Como um advento da pós-modernidade, a Gestão Social nasce a partir das necessidades
latentes da própria sociedade como a coesão social, inclusão no mercado de trabalho,
qualidade de vida, melhoria das condições de vida nas cidades grandes e pequenas, entre
outros. Com o intuito de minimizar ou mitigar tais questões é preciso mais capacidade de
governo nas entidades locais e mais capacidade também de envolvimento dos cidadãos nos
processos de mudanças.
Nas últimas décadas, o tema Gestão Social expandiu-se nas academias e fora dela. Em
torno da temática formou-se uma de Rede de Pesquisadores de Gestão Social e para debatê-la
foi constituído um Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão Social.
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Diante desse fato, percebe-se uma diversidade de aplicações e significados atribuídos a
Gestão Social e delimitar o campo tornou-se fundamental a fim de evitar a vulgarização e
banalização da terminologia Gestão Social.
Nessa perspectiva, este trabalho visa apresentar os fundamentos teóricos de
delimitação do campo de conhecimento científico da Gestão Social e identificar as correntes
de pensamento em Gestão Social que a sustentam como uma área do conhecimento científico.
E para tanto conhecer a epistemologia é fundamental para aqueles que se interessam em olhar
criticamente e reflexivamente as ciências que vem afetando nosso mundo atual. Ressalto a
relevância desse desafio, que em muito irá contribuir (na verdade, já o fez) para a construção
de minha tese de doutorado. Reconheço que trata-se de um labor inicial, mas imprescindível
para meu posicionamento dentro desse campo de estudo.
Cançado (2011) afirma que a gestão social já está consolidada como campo de
conhecimento científico. Defende tal argumento por meio da análise sobre a demarcação
científica da Gestão Social nas perspectivas de Popper, Feyerabend, Chalmers, Santos e
Demo. Para o autor, somente não o cumpre nos critérios de Kuhn e Lakatos, os quais
dependem da aceitação na comunidade científica. Portanto, o processo de aceitação da Gestão
Social pela comunidade científica trata-se de um processo desafiador e refleto de nuances que
envolvem as relações de poder própria da comunidade científica brasileira. É preciso insistir
no fato de que o espaço científico é como um espaço dominado pelas regras do mercado e da
competição.
Diante da necessidade da legitimação do campo da Gestão Social na comunidade
científica, debrucei-me sobre a produção do conhecimento científico sobre o tema.
Inicialmente deparei com a dificuldade de encontrar na bibliografia pesquisada as origens da
terminologia. O que não significa que cessei minha busca. Outrossim, o marco
institucionalizador da Gestão Social também é passivo de polêmicas e dúvidas.
É sobremodo importante assinalar que o pesquisador que se destaca em produções
sobre a temática é o professor Fernando Guilherme Tenório. Contudo há outras grandes
referências conceituais sobre Gestão Social como França Filho, Fisher, Carrion, Boullosa e
Schommer. Após as análises bibliográficas, pode-se afirmar que houve uma
institucionalização de modo acelerado da Gestão Social e que se trata de um objeto recente,
porém com distintas informações sobre quando surgiu no Brasil.
Apesar do avanço na produção do conhecimento, ainda não se tem uma visão crítica
consolidada e uma definição sólida do referido campo, evidenciando a fragilidade do tema
19
que ainda precisa de aprofundamento em termos teóricos e metodológicos necessários para o
fortalecimento do campo da Gestão Social.
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