universidade federal do rio de janeiro · 1 aristÓteles, metafísica, b 1, 995a 24-995b....
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CAMILA DE OLIVEIRA RAUBER
A UNIDADE DAS VIRTUDES NO PROTÁGORAS DE PLATÃO
RIO DE JANEIRO
2018
CAMILA DE OLIVEIRA RAUBER
A UNIDADE DAS VIRTUDES NO PROTÁGORAS DE PLATÃO
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação Lógica e
Metafísica, PPGLM, da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção de Mestre em Filosofia.
Orientadora: Carolina de Melo Bomfim Araújo
RIO DE JANEIRO
2018
CIP - Catalogação na Publicação
Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).
Rauber, Camila de Oliveira
R239u A unidade das virtudes no Protágoras de Platão /
Camila de Oliveira Rauber. -- Rio de Janeiro, 2018.
98 f.
Orientador: Carolina de Melo Bomfim Araújo.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais, Programa de Pós-Graduação em Lógica e
Metafísica, 2018.
1. Virtude. 2. Relação todo-partes. 3.
Conhecimento. 4. Protágoras. 5. Platão. I. Araújo, Carolina de Melo Bomfim, orient. II. Título.
Camila de Oliveira Rauber
A Unidade das Virtudes no Protágoras de Platão
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-
Graduação Lógica e Metafísica do Departamento de
Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte
dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre
em Filosofia.
Rio de Janeiro, 27 de Junho de 2018
______________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Carolina de Melo Bomfim Araújo, Orientadora (UFRJ)
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Anderson de Paula Borges (UFG)
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Fernando Muniz (UFF)
Rio de Janeiro
2018
AGRADECIMENTOS
À CAPES, pela bolsa de estudos de fundamental importância para o prosseguimento desta
pesquisa;
À Carolina Araújo, por todos esses anos de orientação, ensino e incentivos concedidos;
Aos professores Rodrigo Guerizoli e Daniel Lopes, por terem feito parte da banca da
qualificação;
Aos professores Anderson Borges e Fernando Muniz pela disponibilidade em fazerem
parte da banca da defesa;
À minha família, em especial, minha mãe Leila, por todos os momentos de amor,
paciência e motivação para concluir esta dissertação;
Aos meus amigos que foram, dentre outras coisas, de fundamental importância para o
progresso desta pesquisa: Gerarda, Camilla Magalhães, Jéssica Koncimal, Luciana
Chachá, Pamela Leguizámon, Felipe Ayres, Juliana Joyce, Kelly Teixeira, Paulo
Teixeira, Alcino Júnior;
Ao Gutierres Fernandes Siqueira, meu maior incentivador que, com seu amor, sempre
acreditou e me incentivou na conclusão deste presente trabalho;
A Deus, pois sem Ele nada disso seria possível.
RESUMO
RAUBER, Camila de Oliveira. A unidade das virtudes no Protágoras de Platão.
Rio de Janeiro, 2018. Dissertação (Mestrado em Filosofia (Lógica e Metafísica)) –
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2018
Esta dissertação tem por objetivo defender uma interpretação da unidade das
virtudes tal como ela aparece no Protágoras de Platão. Esta interpretação difere das duas
leituras comumente aceitas da questão: a tese da identidade e a tese da bi-condionalidade
/ equivalência. Nossa proposta é pensar que Platão trata da unidade da virtude como um
problema que envolve a relação entre o todo e suas partes. Nesse sentido, o todo e as
partes não serão idênticos entre si, nem as partes entre elas mesmas. Ao invés, elas
formariam uma espécie de estrutura unitária, onde cada parte ocupa uma função
específica no todo.
PALAVRAS-CHAVE: Virtude. Todo. Partes. Conhecimento. Platão. Protágoras.
ABSTRACT
RAUBER, Camila de Oliveira. A unidade das virtudes no Protágoras de Platão.
Rio de Janeiro, 2018. Dissertação (Mestrado em Filosofia (Lógica e Metafísica)) –
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2018
This dissertation aims to argue for an interpretation of the unity of virtues, as it
appears in Plato’s Protagoras. This interpretation differs from the two commonly
accepted readings of the question: the identity thesis and the bicondicionality /
equivalence thesis. Our proposal is to think that Plato deal with the unity of virtues as a
problem that involves the relation between the whole and its parts. In this sense, neither
the whole and the parts will be identical with each other, nor the parts between
themselves. They would rather form a kind of unitary structure, in which each part
occupies a specific function in the whole.
KEYWORDS: Virtue. Whole. Parts. Knowledge. Plato. Protagoras.
Sumário
1. Introdução ........................................................................................................... 7
2. Estado da Questão ............................................................................................. 15
2.1. A unidade da virtude a partir da tese da bi-condicionalidade .......................... 15
2.1.1. Releitura das teses da unidade e da semelhança a partir da tese da bi-
condicionalidade ....................................................................................................... 19
2.1.2 Vlastos e a Predicação Paulina ........................................................................ 22
2.2. A unidade da virtude como Tese da identidade ................................................. 24
2.2.1 Tendências versus “estados de alma” ou “força-motriz” ................................. 26
2.2.2 Aplicação da tese da força-motriz ao Protágoras ............................................ 28
2.2.3 Conhecimento como dynamis .......................................................................... 31
3. Hipótese ............................................................................................................... 36
4. Os modelos do Ouro e da Face .......................................................................... 37
4.1 O modelo do ouro .............................................................................................. 39
4.2 O modelo da face ............................................................................................... 42
4.3 Platão e a noção de ὅλον ................................................................................... 43
4.4 O modelo da face como uma estrutura ἕν-ὅλον ................................................ 49
4.5 A contradição de Protágoras e a inserção de σοφία como parte da virtude ....... 52
5. Σοφία como virtude-ὅλον: análise dos argumentos da Coragem e da
Temperança ............................................................................................................ 58
5.1 Σοφία e Coragem .............................................................................................. 58
5.2 Σοφία e Temperança ......................................................................................... 67
6. Análise dos argumentos da Justiça e Piedade e da Justiça e Temperança .... 73
6.1 Justiça e Piedade ................................................................................................ 73
6.2 Justiça e Temperança ......................................................................................... 76
7. A relação entre as partes e a relação entre as partes e o todo da virtude ..... 79
8. O argumento da negação da acrasia ................................................................. 83
8.1 Descrição do argumento sobre a força da ἐπιστήμη e a negação da acrasia ....... 84
8.2 A relação entre virtude ἕν-ὅλον e conhecimento (ἐπιστήμη ) ............................ 87
9. Conclusão ............................................................................................................ 91
BIBLIOGRAFIA .................................................................................................... 95
7
1. Introdução
“ἀνάγκη πρὸς τὴν ἐπιζητουμένην ἐπιστήμην ἐπελθεῖν ἡμᾶς πρῶτον περὶ ὧν
ἀπορῆσαι δεῖ πρῶτον (...).ἔστι δὲ τοῖς εὐπορῆσαι βουλομένοις προὔργου τὸ
διαπορῆσαι καλῶς: ἡ γὰρ ὕστερον εὐπορία λύσις τῶν πρότερον
ἀπορουμένων ἐστί, λύειν δ᾽ οὐκ ἔστιν ἀγνοοῦντας τὸν δεσμόν, ἀλλ᾽ ἡ τῆς
διανοίας ἀπορία δηλοῖ τοῦτο περὶ τοῦ πράγματος: ᾗ γὰρ ἀπορεῖ, ταύτῃ
παραπλήσιον πέπονθε τοῖς δεδεμένοις: ἀδύνατον γὰρ ἀμφοτέρως προελθεῖν
εἰς τὸ πρόσθεν. διὸ δεῖ τὰς δυσχερείας τεθεωρηκέναι πάσας πρότερον,
τούτων τε χάριν καὶ διὰ τὸ τοὺς ζητοῦντας ἄνευ τοῦ διαπορῆσαι πρῶτον
ὁμοίους εἶναι τοῖς ποῖ δεῖ βαδίζειν ἀγνοοῦσι, καὶ πρὸς τούτοις οὐδ᾽ εἴ ποτε
τὸ ζητούμενον εὕρηκεν ἢ μὴ γιγνώσκειν:τὸ γὰρ τέλος τούτῳ μὲν οὐ δῆλον
τῷ δὲ προηπορηκότι δῆλον.”
“Com relação à ciência que estamos procurando, é necessário examinar os
problemas, dos quais, em primeiro lugar, deve-se perceber a dificuldade,
(...). Ora, para quem pretende resolver bem um problema, é útil perceber
adequadamente a dificuldade que ele comporta: a boa solução final consiste
na resolução das dificuldades previamente estabelecidas. Quem ignora um
nó não poderá desatá-lo; e a dificuldade encontrada pelo pensamento
manifesta a dificuldade existente na coisa. De fato, enquanto duvidamos,
estamos numa condição semelhante a quem está amarrado; em ambos os
casos, é impossível ir adiante. Por isso é preciso que, primeiro, sejam
examinadas todas as dificuldades tanto por estas razões, como porque os
que pesquisam sem primeiro ter examinado as dificuldades assemelham-se
aos que não sabem aonde devem ir. Ademais estes não são capazes de saber
se encontraram ou não o que buscam; pois não lhes é claro o fim que devem
alcançar, enquanto isso é claro para quem antes compreendeu as
dificuldades”1.
O contexto dialógico do Protágoras de Platão, elaborado a partir de diversas nuances,
tem como ponto chave aquilo que veio a ser conhecido como a unidade das virtudes. Após
Sócrates concordar em contar o relato de seu encontro com Protágoras a um amigo anônimo2,
o diálogo abre com uma conversa entre Sócrates3 e Hipócrates, um jovem desejoso de ser
aluno de Protágoras. Devido à sua falta de coragem, Hipócrates pede a Sócrates que este
intervenha a seu favor junto a Protágoras para saber se o sofista aceita Hipócrates como
aluno4. O núcleo da conversa inicial entre essas duas personagens é expresso na seguinte
passagem:
1 ARISTÓTELES, Metafísica, B 1, 995a 24-995b. Tradução: Giovanni Reale. São Paulo: Edições Loyola,
2005, p. 85. 2 PLATÃO, Protágoras, 310a. 3 A presente dissertação não se compromete em apresentar o Sócrates histórico, mas apenas Sócrates como
personagem de Platão. 4 PLATÃO, Protágoras, 310a-314c.
8
SOC. – ἆρ᾽ οὖν, ὦ Ἱππόκρατες, ὁ σοφιστὴς τυγχάνει ὢν ἔμπορός τις ἢ
κάπηλος τῶν ἀγωγίμων, ἀφ᾽ ὧν ψυχὴ τρέφεται; φαίνεται γὰρ ἔμοιγε
τοιοῦτός τις.
HIP. – τρέφεται δέ, ὦ Σώκρατες, ψυχὴ τίνι;
SOC. – μαθήμασιν δήπου, ἦν δ᾽ ἐγώ. καὶ ὅπως γε μή, ὦ ἑταῖρε, ὁ σοφιστὴς
ἐπαινῶν ἃ πωλεῖ ἐξαπατήσῃ ἡμᾶς, ὥσπερ οἱ περὶ τὴν τοῦ σώματος τροφήν,
ὁ ἔμπορός τε καὶ κάπηλος. καὶ γὰρ οὗτοί που ὧν ἄγουσιν ἀγωγίμων οὔτε
αὐτοὶ ἴσασιν ὅτι χρηστὸν ἢ πονηρὸν περὶ τὸ σῶμα, ἐπαινοῦσιν δὲ πάντα
πωλοῦντες, οὔτε οἱ ὠνούμενοι παρ᾽ αὐτῶν, ἐὰν μή τις τύχῃ γυμναστικὸς ἢ
ἰατρὸς ὤν. οὕτω δὲ καὶ οἱ τὰ μαθήματα περιάγοντες κατὰ τὰς πόλεις καὶ
πωλοῦντες καὶ καπηλεύοντες τῷ ἀεὶ ἐπιθυμοῦντι ἐπαινοῦσιν μὲν πάντα ἃ
πωλοῦσιν, τάχα δ᾽ ἄν τινες, ὦ ἄριστε, καὶ τούτων ἀγνοοῖεν ὧν πωλοῦσιν
ὅτι χρηστὸν ἢ πονηρὸν πρὸς τὴν ψυχήν: ὡς δ᾽ αὕτως καὶ οἱ ὠνούμενοι παρ᾽
αὐτῶν, ἐὰν μή τις τύχῃ περὶ τὴν ψυχὴν αὖ ἰατρικὸς ὤν. εἰ μὲν οὖν σὺ
τυγχάνεις ἐπιστήμων τούτων τί χρηστὸν καὶ πονηρόν, ἀσφαλές σοι
ὠνεῖσθαι μαθήματα καὶ παρὰ Πρωταγόρου καὶ παρ᾽ ἄλλου ὁτουοῦν: εἰ δὲ
μή, ὅρα, ὦ μακάριε, μὴ περὶ τοῖς φιλτάτοις κυβεύῃς τε καὶ κινδυνεύῃς. καὶ
γὰρ δὴ καὶ πολὺ μείζων κίνδυνος ἐν τῇ τῶν μαθημάτων ὠνῇ ἢ ἐν τῇ τῶν
σιτίων. σιτία μὲν γὰρ καὶ ποτὰ πριάμενον παρὰ τοῦ καπήλου καὶ ἐμπόρου
ἔξεστιν ἐν ἄλλοις ἀγγείοις ἀποφέρειν, καὶ πρὶν δέξασθαι αὐτὰ εἰς τὸ σῶμα
πιόντα ἢ φαγόντα, καταθέμενον οἴκαδε ἔξεστιν συμβουλεύσασθαι,
παρακαλέσαντα τὸν ἐπαΐοντα, ὅτι τε ἐδεστέον ἢ ποτέον καὶ ὅτι μή, καὶ
ὁπόσον καὶ ὁπότε: ὥστε ἐν τῇ ὠνῇ οὐ μέγας ὁ κίνδυνος. μαθήματα δὲ οὐκ
ἔστιν ἐν ἄλλῳ ἀγγείῳ ἀπενεγκεῖν, ἀλλ᾽ ἀνάγκη καταθέντα τὴν τιμὴν τὸ
μάθημα ἐν αὐτῇ τῇ ψυχῇ λαβόντα καὶ μαθόντα ἀπιέναι ἢ βεβλαμμένον ἢ
ὠφελημένον.
SOC. – Porventura, Hipócrates, o sofista não seria certo negociante e
vendedor de mercadorias, com as quais a alma se nutre? Pois, para mim, é
claro que ele é algo desse tipo.
HIP. – Mas a alma, Sócrates, nutre-se de quê?
SOC. – De ensinamentos, decerto – respondi. E cuidado, meu amigo, para
que o sofista, ao elogiar o que vende, não nos engane, assim como fazem
as pessoas envolvidas com a nutrição do corpo, o negociante e o vendedor.
Com efeito, das mercadorias que portam, eles próprios não sabem o que é
útil ou nocivo para o corpo, mas elogiam todas elas quando estão à venda;
tampouco sabem disso seus clientes, a não ser que seja ele casualmente um
professor de ginástica ou um médico. Da mesma forma, aqueles que
rondam pelas cidades negociando e vendendo ensinamentos a todos que
almejam por eles, elogiam tudo quanto vendem, mas, talvez, haja também
em meio a eles, excelente homem, quem ignore, dentre as coisas que vende,
o que é útil ou nocivo para a alma; e o mesmo sucede aos seus clientes, a
não ser que seja ele eventualmente um médico da alma. Se você, por acaso,
conhece o que é útil ou nocivo dentre os ensinamentos à venda, então é
seguro que os compre de Protágoras ou de quem quer que seja; caso
contrário, homem afortunado, veja se não está lançando à sorte e pondo em
risco o que lhe há de mais caro! Com efeito, há um risco muito maior na
compra de ensinamentos do que na de alimentos. Pois, quando se compra
comidas e bebidas do vendedor ou negociante, é possível transportá-las em
recipientes; antes de comer ou beber e então acomodá-las no corpo, pode-
se estocá-las em casa e, convidando quem conhece o assunto, aconselhar-
se com ele sobre o que se deve ou não comer e beber, em que quantidade e
9
em que ocasião. Por conseguinte, não há grande risco nessa compra.
Todavia, no caso dos ensinamentos, não é possível transportá-los em outro
recipiente, mas é necessário, uma vez pago o preço, que se carregue na alma
o que se aprende e se saia daí ou prejudicada ou beneficiada.5
O interessante nesta passagem é notar a ideia central desenvolvida na conversa entre
Hipócrates e Sócrates, a saber, que existe um certo perigo em querer tomar aulas com um
sofista. O perigo surge devido a pelo menos três fatores: o primeiro, ao fato de o próprio
Hipócrates não saber se, de fato, Protágoras é especialista naquilo que diz ensinar; segundo,
a aparência de sabedoria que envolve a imagem de Protágoras, bem como o tipo de
mercadoria – usada como analogia ao ensino do sofista - que ele pretende fornecer; e, por
fim, o maior de todos os perigos, que é Hipócrates vir a ter sua alma6 prejudicada por um mal
ensino, o que afetaria não somente seu intelecto, mas também seu caráter e suas futuras ações.
Lopes7 destaca que o propósito de Sócrates nessa passagem, e na sequência do
diálogo, é o de dissuadir Hipócrates a não querer tomar aulas com Protágoras. Nesse sentido,
a função do argumento sobre a unidade das virtudes, que surge mais adiante, é testar
Protágoras, de modo a expor o tipo de mercadoria que o sofista se propõe vender e, acima de
tudo, se ele, de fato, é um especialista no que se propõe a ensinar. No decorrer de sua
elaboração sobre o que consiste a unidade das virtudes, a incoerência de Protágoras
funcionará como motivo para “desencantar o fascínio de Hipócrates pelo sofista”8 e, assim,
fazê-lo desistir de ter aulas com o sofista. Sócrates, então, empreende uma investigação
comprometida em desvendar que tipo de coisa Protágoras diz ensinar e se, de fato, ele
conhece a matéria do seu ensino9.
Assim, Sócrates e Hipócrates se dirigem até a casa de Cálias, a maior e mais “suntuosa”
casa da cidade, segundo Hípias10. E em 314d, após baterem na porta de Cálias, se deparam
com o porteiro, um eunuco cuja reação ao vê-los denuncia mais uma nuance presente no
diálogo, a saber, a de confundir a figura de Sócrates com a de um sofista. Segundo Lopes11,
5 PLATÃO, Protágoras, 313c-314b. Tradução: Daniel R. N. Lopes. São Paulo: Editora Perspectiva, 2017. p.
387-389. 6 De acordo com Taylor, “ ‘alma’ tem um sentido menos amplo que o Grego psuchē, que significa o eu em seus
aspectos não corpóreos, abrangendo intelecto, vontade, desejos e emoções.”.(TAYLOR, 1991, p. 66). 7 LOPES, 2017, p. 105, 151-152. 8 Ibid., p. 152. 9 PLATÃO, Protágoras, 318a. 10 PLATÃO, Protágoras, 337d. 11 LOPES, D. R. N. Protágoras de Platão, São Paulo: Editora Perspectiva, 2017, p. 29,36.
10
o que se tem aqui é não só uma crítica a esta “visão comum” de Sócrates como um sofista,
mas, também, uma tentativa por parte de Platão em distinguir o sofista do filósofo.
Sócrates e Hipócrates, portanto, são inseridos nesse cenário cuja casa está repleta de
pessoas ilustres. De um lado, observam Protágoras acompanhado por Párolo, Cármides,
Xantipo, Filípide, Antímines, além do próprio Cálias. E, do outro lado da casa, Hípias, Fedro
e os demais estrangeiros, conversando sobre fenômenos naturais e astronômicos12. Quando
Sócrates, enfim, consegue se dirigir a Protágoras, questiona-o acerca do tipo de mercadoria
que ele propõe vender. Sócrates obtém dele a informação de que o tema do seu ensino
consiste na arte política e na boa formação dos homens como cidadãos (“δοκεῖς γάρ μοι
λέγειν τὴν πολιτικὴν τέχνην καὶ ὑπισχνεῖσθαι ποιεῖν ἄνδρας ἀγαθοὺς πολίτας.13”).
Desse modo, Protágoras inicia um longo discurso para explicar de que modo ele pode ser
considerado o mais capacitado para o ensino dos temas acima, que podem ser resumidos no
ensino de uma única coisa: virtude14. Contando uma versão do mito de Prometeu, Zeus – ele
diz – após observar que os homens careciam da arte política15 e que isto os impossibilitava
de conviverem uns com os outros, decide enviar aos homens a justiça (δίκη) e o pudor
(αἰδώς). Eles foram distribuídos de modo a não serem exclusivos a único homem – como
ocorre com o médico que, em sendo um, tem que tratar de muitos16. A distribuição entre
todos permite que mantenham a sobrevivência da cidade17.
Se, por um lado, o mito dá a entender que Zeus, ao distribuir tais atributos para todos
os homens, dá a todos, igualmente, condições de deliberarem acerca de assuntos políticos e
internos, por outro lado, Protágoras sustentará a seguinte afirmação: pelo fato destes atributos
não serem algo intrínseco aos seres humanos, devem ser adquiridos pelo ensino18. Protágoras
demonstra, a partir do argumento da punição em 323d-324c como esses atributos são
ensináveis. Ele explica que, ainda que todos os seres humanos possam ter acesso a tais
atributos, existem pessoas que não os têm. Por isso, sendo esses incapazes de deliberar acerca
12 PLATÃO, Protágoras, 314e-315c. 13 PLATÃO, Protágoras, 319a. 14 PLATÃO, Protágoras, 319e-320a. 15 PLATÃO, Protágoras, 322b. 16 PLATÃO, Protágoras, 322c. 17 PLATÃO, Protágoras, 322d. 18 PLATÃO, Protágoras, 323c.
11
de assuntos políticos e de manter um bom convívio com seus concidadãos, a cidade constata
a necessidade de possuir uma pessoa qualificada e capacitada para ensinar tais atributos19.
Segundo Protágoras, essa constatação ocorre no seguinte caso: alguns homens, que
possuem, por exemplo, um caráter contrário à virtude – e, por conseguinte, acabam por
praticar ações não virtuosas – devem ser submetidos a repreensões em forma de castigo, cuja
finalidade será a de ensiná-los a serem virtuosos. Para Protágoras, isto constitui uma
evidência de que a virtude pode ser ensinada por meio da coação de tais homens pelo castigo
tornando-os, assim, virtuosos20.
Protágoras está lidando com dois tipos de raciocínio: 1) Os homens apenas
conseguem conviver em grupo se possuírem a virtude (justiça e pudor). Se os atenienses, por
exemplo, conseguem conviver em grupo, isto prova que eles possuem virtude. 2) Todavia,
existem alguns homens que agem de modo contrário à virtude e estes devem ser castigados.
Se todo castigo é uma forma de tornar alguém virtuoso, a virtude pode ser considerada como
algo que pode ser aprendido por outrem. A ideia que perpassa esses dois raciocínios é que a
virtude não é algo que alguém naturalmente tem, mas que pode ser adquirida. Tendo em vista
que, apesar de ser algo disponível a todos os homens, algumas pessoas não a possuem, isso
leva a possibilidade de pensar que, segundo Protágoras, a virtude pode ser considerada um
objeto de ensino.
Apesar de existir certo conflito entre o mito de Protágoras e o ensino da virtude – já
que, segundo ele, os atributos seriam distribuídos não através de um único homem, tal como
o médico que curaria muitos, mas estaria acessível a todas as pessoas – Protágoras, em 324e-
325a, amplia a noção de virtude ao dizer que uma cidade, para que possa subsistir através da
convivência conjunta dos homens entre si, necessita da presença não só da justiça – denotada
não mais pela palavra ‘δική’, mas por ‘δικαιοσύνη’21 – mas também necessita da temperança
19 PLATÃO, Protágoras, 323c-324c. 20 PLATÃO, Protágoras, 323e-324b. 21 Sobre a distinção δίκη/ δικαιοσύνη, vemos que, na maior parte do discurso inicial de Protágoras, até este
ponto, em 324e-325a, a ‘justiça’ aparece como ‘δίκη’ e tal termo, de acordo com Havelock, toma como
referência aquilo que é externo ao indivíduo, uma vez que sua função é a de ser aplicada às “regras do poder
político e seu exercício” caracterizando, assim, uma virtude política (HAVELOCK, 1978, p. 311). Porém
Protágoras não parece fazer tal distinção ao utilizar um termo ou outro. Quando Sócrates coloca o argumento
da unidade da virtude, a referência à ‘justiça’ muda, pois Sócrates aplica o outro termo que Protágoras vai adotar
no final da sua explanação, a saber, ‘δικαιοσύνη’. Nesse sentido, a virtude passa a “identificar algo pessoal”,
isto é, a virtude passa a ser compreendida como um aspecto moral na alma do indivíduo. Logo, a referência
para a justiça, principalmente a partir da passagem em 329c, é essa justiça entendida como um aspecto moral e
interno do indivíduo. (HAVELOCK, 1978 p. 311-312).
12
(σωφροσύνη) e da piedade (τὸ ὅσιον), as quais, nas palavras de Protágoras, consistem numa
única coisa: virtude (ἀρετή). A partir do momento que Protágoras relaciona a virtude com
um conjunto de atributos antes não mencionados, afirmando serem eles uma única coisa, a
virtude, Sócrates então avança sobre a questão da possibilidade de alguém ensinar a virtude,
passando a analisar de que modo Protágoras está concebendo essa noção de virtude como
unidade. A questão é abordada em dois momentos distintos do diálogo:
ἔλεγες γὰρ ὅτι ὁ Ζεὺς τὴν δικαιοσύνην καὶ τὴν αἰδῶ πέμψειε τοῖς
ἀνθρώποις, καὶ αὖ πολλαχοῦ ἐν τοῖς λόγοις ἐλέγετο ὑπὸ σοῦ ἡ δικαιοσύνη
καὶ σωφροσύνη καὶ ὁσιότης καὶ πάντα ταῦτα ὡς ἕν τι εἴη συλλήβδην,
ἀρετή: ταῦτ᾽ οὖν αὐτὰ δίελθέ μοι ἀκριβῶς τῷ λόγῳ, πότερον ἓν μέν τί ἐστιν
ἡ ἀρετή, μόρια δὲ αὐτῆς ἐστιν ἡ δικαιοσύνη καὶ σωφροσύνη καὶ ὁσιότης,
ἢ ταῦτ᾽ ἐστὶν ἃ νυνδὴ ἐγὼ ἔλεγον πάντα ὀνόματα τοῦ αὐτοῦ ἑνὸς ὄντος. τοῦτ᾽ ἐστὶν ὃ ἔτι ἐπιποθῶ.22
Você dizia que Zeus havia enviado aos homens a justiça e o pudor, e, em
vários momentos de sua fala, por sua vez, você se referia à justiça,
sensatez23, piedade e todas elas como se fossem, em suma, uma única coisa:
virtude. Explique-me então este ponto com um argumento preciso: se a
virtude é uma única coisa e são partes dela a justiça, a sensatez e a piedade;
ou se essas coisas, às quais há pouco me referia, são todas elas nomes de
uma única e mesma coisa. Eis o que ainda desejo.24
A recolocação da questão surge se encontra em 349b:
ἦν δέ, ὡς ἐγᾦμαι, τὸ ἐρώτημα τόδε: σοφία καὶ σωφροσύνη καὶ ἀνδρεία καὶ
δικαιοσύνη καὶ ὁσιότης, πότερον ταῦτα, πέντε ὄντα ὀνόματα, ἐπὶ ἑνὶ
πράγματί ἐστιν, ἢ ἑκάστῳ τῶν ὀνομάτων τούτων ὑπόκειταί τις ἴδιος οὐσία
καὶ πρᾶγμα ἔχον ἑαυτοῦ δύναμιν ἕκαστον, οὐκ ὂν οἷον τὸ ἕτερον αὐτῶν τὸ
ἕτερον;
A questão era a seguinte, creio eu: se sabedoria, temperança, coragem,
justiça e piedade, embora sejam cinco nomes, concernem a uma única
coisa, ou, se para cada um desses nomes, há uma substância particular, ou
seja, uma coisa dotada de uma capacidade que lhe é própria, sendo cada
uma delas diferente da outra.25
22 PLATÃO, Protágoras, 329c-d. 23 Nesse ponto da tradução é importante ressalvar que, diferente de Lopes, iremos traduzir “σωφροσύνη” por
“temperança” e utilizar esta palavra como referência ao longo deste trabalho, e não a palavra “sensatez”, como
faz o autor. 24 PLATÃO, Protágoras, 329 c-d. Tradução: Daniel R. N. Lopes. São Paulo: Editora Perspectiva, 2017, p. 437-
439. 25 PLATÃO, Protágoras, 349b. Tradução: Daniel R.N. Lopes. São Paulo: Editora Perspectiva, 2017, p. 497.
13
Admitindo, portanto, que a virtude pode ser ensinada – afirmação esta que será retomada
e analisada por Sócrates em 361a-c –, o próximo passo consiste em evidenciar como
Protágoras, de fato, entende a relação entre virtude, de um lado, e justiça, piedade e
temperança, de outro lado. Ou ainda, em que sentido estes objetos são denominados ‘virtude’:
no sentido em que a virtude é uma unidade e os demais objetos são como partes dessa
unidade, ou no sentido de que todas são apenas nomes distintos para uma mesma coisa, não
havendo distinção entre elas? Assim, a virtude é colocada em outra perspectiva, que não se
dissocia da questão sobre ela poder ser ensinada, mas que apresenta um outro caminho para
se responder a essa pergunta. Trata-se de mostrar, por outra vertente, se Protágoras, que julga
ser o melhor professor em matéria de virtude26, conhece, de fato, este objeto.
Recordando o contexto do Mênon27, que abre com a indagação sobre a possibilidade de
a virtude ser ensinada, Sócrates, de um modo semelhante ao que faz naquele diálogo,
redireciona a pergunta sobre o ensino da virtude no Protágoras para um ponto mais
fundamental. À diferença de Mênon, no entanto, onde esse ponto consistia na busca por uma
definição da virtude, o Protágoras redireciona a questão para a relação da virtude com outros
objetos também conhecidos como virtudes.
Nesse contexto, a questão elaborada por Sócrates acerca da unidade das virtudes coloca
o Protágoras em um terreno comum a outros diálogos, que consiste no tópico da unidade e
da multiplicidade. Segundo Centrone, Platão, ao abordar o tema que ficou conhecido como
‘unidade das virtudes’, estabelece uma “relação dialética entre unidade e multiplicidade,
identidade e diversidade28”. Isto pode ser observado a partir das perguntas que a própria
abordagem da questão da unidade suscita, dentre elas:
1. Se cada parte corresponde a um objeto diferente do outro, como eles se relacionam
entre si?
2. Se, por outro lado, essas virtudes forem idênticas, qual a razão da distinção entre os
nomes? Seriam idênticas em todos os aspectos?
26 PLATÃO, Protágoras, 328b. 27 PLATÃO, Mênon, 71d. 28 CENTRONE, Bruno. “A virtude platônica como ὅλον das Leis ao Protágoras”. In: Migliori, Maurizio (org.)
e Valditara, Linda M. Napolitano (org.). Plato Ethicus: A filosofia é vida. São Paulo: Edições Loyola, 2015. p.
103.
14
3. Se elas não são idênticas, o que explica o fato de elas serem também denominadas
como ‘virtude’?
4. Sendo idênticas, por que teríamos a impressão de que uma ação justa não é idêntica
a uma ação corajosa?
Existem duas interpretações principais que lidam de forma distinta com a pergunta de
Sócrates:
1. Tese da Bi-condicionalidade: Segundo Vlastos29, precursor desta posição, Sócrates
estaria se posicionando a favor de uma abordagem em que as virtudes seriam tomadas
como distintas umas das outras. Apesar de, na retomada da questão em 349b, Sócrates
parecer comprometido com uma identificação, e não distinção, das virtudes entre si,
Vlastos elabora outro modo em que esta pode vir a ser compreendida e assim reforça
a alegação de sua distinção. A explicação seria mediante uma noção de co-implicação
entre elas, em que a virtude seria uma espécie de classe co-extensiva, uma vez que
todas elas seriam aplicadas a um mesmo indivíduo. Assim, quando Sócrates faz
referência à semelhança ou identidade entre as virtudes, não está identificando as
virtudes entre si, como sendo iguais, mas apontando para uma classe co-extensiva
aplicada a um mesmo indivíduo, o qual, por sua vez, teria todas as virtudes.
2. Tese da Identidade: Esta posição, que tem Penner30 como principal precursor, assume,
diferentemente de Vlastos, que Sócrates, ao falar sobre identidade entre as virtudes,
o faz no sentido forte do termo ‘identidade’, ou seja, no sentido em que as virtudes
são todas iguais. No caso de Penner, a explicação para essa identificação das virtudes
é que Sócrates estaria se referindo a unidade da virtude como sendo um mesmo
“estado de alma” ou “força-motriz”, que faria as virtudes idênticas entre si, na medida
em que elas possuiriam a mesma justificação causal e, por isso, seriam todas
denominadas como ‘virtude’. Hartman31, por sua vez, irá tomar um caminho diverso
29 VLASTOS, 1971, p. 221-265. 30 PENNER, 1973 p. 35-68. 31 HARTMAN, Margareth. “How the Inadequate Models for Virtue in the “Protagoras” Illuminate
Socrates’view of the Unity of the Virtues”. Apeiron. Vol. 18, No. 2, p. 110-117, 1984.
15
ao de Penner ao afirmar que a identificação das virtudes entre si não se justificaria a
partir de uma explicação baseada no estado psicológico ou força-motriz do indivíduo,
mas, antes, no entendimento de que a virtude, tomada como conhecimento, seria uma
única δύναμις, o que permitiria afirmar a virtude como unidade.
Segue-se a exposição de ambas as interpretações.
2. Estado da Questão
2.1. A Unidade da Virtude a partir da Tese da Bi-condicionalidade
Em seu artigo intitulado The Unity of the Virtues in the Protágoras32, Vlastos destaca
que Sócrates estaria “empregando três fórmulas distintas”33 para a compreensão da teoria da
unidade da virtude. Estas fórmulas seriam a tese da unidade, a tese da similaridade e a tese
da bi-condicionalidade. Tais teses, contudo, estariam sendo percebidas por Protágoras não
como etapas distintas, mas como “momentos sucessivos” de uma “única doutrina”.
A começar pela tese da unidade, Sócrates, ao optar pela posição de que as virtudes se
aplicam a uma mesma coisa, estaria definindo-a em 349b como sendo a da identidade das
virtudes entre si. Isso parece contradizer o fato de que, em 329c-d, Sócrates, tal como
Protágoras, estaria admitindo que se trata de uma questão entre o todo e suas partes
distintas34. Isso porque, em geral, assumir a posição expressa em 349b levaria ao
entendimento de que se trata de uma tese da unidade em, ao menos, dois sentidos: a) “as
cinco virtudes são a mesma virtude”, e (ii) seus nomes são sinônimos”35.
Vlastos observa que ambas as noções não correspondem, de fato, à real posição de
Sócrates. As razões seriam estas: se o tratamento da questão diz respeito à identidade entre
os termos, isso significa dizer, por exemplo, que “o definiens de Coragem”36 (1971, p. 227)
32 VLASTOS, Gregory. “The Unity of the Virtues in the Protagoras”. Platonic Studies. Princeton: Princeton
University Press, 1971, p. 221-265. 33 Ibid., p. 224. 34 Ibid., p. 226. 35 Ibid., p. 227, tradução nossa. 36 Observa-se que o uso de maiúsculas para as virtudes ocorre somente nas citações do autor na medida em que
Vlastos as utilizar. O mesmo não será feito nesta dissertação.
16
pode ser usado como padrão para os outros termos, tais como piedade, justiça e demais
virtudes; por outro lado, se alguém afirma que os cinco termos são sinônimos, “isto
implicaria que qualquer destas cinco palavras poderiam ser livremente intercambiáveis em
qualquer sentença (...) sem alterar seu sentido ou verdade.”37
Com respeito à primeira implicação decorrente da identidade entre as virtudes, Vlastos
diz não poder afirmar que elas são idênticas umas às outras. Para sustentar esse ponto de
vista, ele se utiliza dos argumentos encontrados nos passos 5d e 6c do Êutifron. Segundo tais
passagens Sócrates, ao falar sobre a definição de ‘piedade’, vai dizer que esta se trata de
“uma única ἰδέα38 (...) auto-identificável em todas as ações pias”, funcionando como padrão
para identificar um ato como sendo pio ou não39. Nesse sentido, não seria possível definir a
piedade ou as ações como sendo pias por meio de outra virtude, como a coragem, uma vez
que esta última funcionaria como padrão apenas para questões concernentes a ações
corajosas ou covardes.
A segunda implicação recai sobre a relação de sinonímia entre as virtudes. Por exemplo,
em certas frases, tais como as que aparecem no Êutifron: i) “A piedade é esta forma em
virtude da qual todas as ações pias são pias” 40, e ii) “A piedade é esta parte da justiça que
envolve o serviço aos deuses” 41, a substituição de ‘piedade’ por ‘coragem’ e de ‘piedade’
por ‘justiça’, nos respectivos casos, teria estas consequências: na primeira frase, haveria uma
falsificação, dado que a ἰδέα seria responsável por uma determinada característica e ação no
indivíduo, e não outra; e, na segunda frase, esta perderia sentido, pois, sendo a piedade uma
parte, e não a totalidade, da justiça, o definiens de uma não serviria para a outra.
A tese da semelhança surge como um segundo modo de interpretar a questão. Tendo
como referência as passagens 329d e 330a-b, em que Sócrates diz serem as virtudes
semelhantes, Vlastos observa que um dos problemas para esta interpretação é que Sócrates
não diz em que sentido as virtudes seriam semelhantes. Segundo Vlastos, Sócrates oferece
uma analogia cuja imagem não esclarece o que ele estaria entendendo por ‘semelhança’.
37 VLASTOS, 1971, p. 227. 38 De acordo com Chantraine, o termo ‘ἰδέα’ surge como uma “derivação nominal” do verbo ἰδεῖν, do aoristo
do verbo ὁράω que significa “ver como sensação percebida”. Quando passamos para o termo no substantivo, a
palavra ganha outras conotações, como no contexto platônico que passa a conceber ἰδέα/, juntamente com εἶδος,
como a algo com referência a objetos metafísicos. (CHANTRAINE, 1968, p. 455.). 39VLASTOS, 1971, p. 227. 40 PLATÃO, Êutifron, 6d: “ἀλλ᾽ ἐκεῖνο αὐτὸ τὸ εἶδος ᾧ πάντα τὰ ὅσια ὅσιά ἐστιν”. 41 PLATÃO, Êutifron, 12e: “τὸ μέρος τοῦ δικαίου εἶναι εὐσεβές τε καὶ ὅσιον, τὸ περὶ τὴν τῶν θεῶν θεραπείαν”.
17
Essa analogia aparece em 329d, que compara as virtudes e suas partes com a barra de ouro
e suas partes, as quais não difeririam uma das outras, senão em “grandeza e pequenez” 42 (ἢ
μεγέθει καὶ σμικρότητι).
Se a semelhança está sendo entendida no mesmo sentido em que as partes do ouro, cujas
partes apenas se diferem quanto ao tamanho, Sócrates estaria dizendo que “as virtudes são
semelhantes no que diz respeito a todas as suas qualidades”43, ou seja, “que elas são
disposições qualitativamente indistinguíveis”44. Esta afirmação não seria diferente daquela
proposta pela tese da unidade, pois ambas acabam por eliminar a distinção entre as virtudes.
Uma das consequências é que isto impossibilita “classificar ações particulares como
instâncias dessa ou daquela virtude”45. Além disso, a busca por definições de cada virtude,
que ocorre em diferentes diálogos, perde o sentido, pois não haveria nenhum elemento
qualitativo para distingui-las umas das outras. Um outro ponto que Vlastos observa é que,
ainda que haja situações em que mais de uma virtude se faça presente, “as diferentes
disposições morais são expressamente reconhecíveis”46, ou seja, não se pode deixar de
perceber a distinção qualitativa entre elas47.
Vlastos, por sua vez, visa solucionar os problemas derivados das duas teses anteriores
através do que ele chama de tese da bi-condicionalidade. A tese se baseia, sobretudo, na
passagem 329e, em que Sócrates, diferente de Protágoras, assume a seguinte posição: se um
indivíduo participa de uma parte da virtude, ele necessariamente deve participar de todas as
demais. Vlastos expressa essa afirmação por meio de duas fórmulas equivalentes:
(1) N [(x) (Cx↔Jx↔Px↔Tx↔Wx)]48
42 Tradução nossa. 43 VLASTOS, 1971, p. 330. 44 VLASTOS, 1971, p. 330. 45 VLASTOS, 1971, p. 330. 46 VLASTOS, 1971, p. 331. 47 De acordo com Taylor, Vlastos estaria afirmando que Platão rejeita ambas as teses, a unidade e a semelhança,
porque elas implicariam “que os nomes das virtudes são sinônimos”. Contudo, Taylor observa que se as duas
são as mesmas, designadas por nomes distintos, não existe problema em considerar que o definiens de uma cabe
na outra. Ainda em relação aos casos em que os nomes não são sinônimos, ele vai dizer que “é perfeitamente
apropriado usar o definiens de a para determinar se um ato recai sob uma descrição apropriada para b.” Além
disso, Vlastos não considera a possibilidade de pensar a tese da unidade como uma tese que descreva a virtude
como um mesmo estado de caráter – posição esta defendida por Taylor. (TAYLOR, 1984, p. 104-105). 48 VLASTOS, 1971, p. 232.
18
(2) N (C ≡ J ≡ P ≡ T ≡ W).49
Na primeira fórmula, a variável x está sendo aplicada a pessoas, e não a ações, podendo
ser lida do seguinte modo: “Necessariamente, para todo x, se x é corajoso então x é justo, se
x é justo x é pio, se x é pio x é temperante, se x é temperante x é sábio”50. Sendo esta aplicada
a pessoas, e não a ações, ela não tem – como as teses anteriores – por pressuposto dizer que,
quando uma pessoa realiza determinada ação, esta ação, necessariamente, deve ser
caracterizada por todas as virtudes. De modo contrário, o que a fórmula diz é que um
indivíduo possui todas as virtudes, e suas ações podem ser caracterizadas por meio de uma
virtude ou mais de uma, guardadas as devidas distinções qualitativas entre elas.
A segunda fórmula pode ser lida assim: “Necessariamente, a classe do corajoso é co-
extensiva com a classe do justo, a classe do justo é co-extensiva com a classe do piedoso, a
classe do piedoso é co-extensiva com a classe do temperante, a classe do temperante é co-
extensiva com a classe do sábio”51. No que concerne à noção de co-extensão necessária,
sendo ela aplicada ao mesmo objeto – neste caso a uma pessoa – disso não resulta haver uma
identidade entre as virtudes, mas sim que elas partilham algo em comum e que faz com que
todas estejam no mesmo indivíduo. De modo geral, o que ambas as fórmulas postulam é que
as cinco partes da virtude estariam necessariamente presentes num mesmo indivíduo, mas
não necessariamente numa mesma ação particular.
A respeito do operador modal ‘necessidade’, Vlastos explica que seu uso vai além da co-
extensibilidade entre as virtudes: traz também a ideia de que somente por meio da sabedoria
é que um indivíduo possui todas as demais virtudes. Ou seja, a sabedoria é colocada por
Vlastos como a condição necessária, e também suficiente, para um indivíduo possuir as
demais virtudes52. Esse papel atribuído à sabedoria, considerada como uma das partes da
49 VLASTOS, 1971, p. 232. 50 VLASTOS, 1971, p. 232, nota 26. 51 VLASTOS, 1971, p. 232, nota 27. 52 Brickhouse e Smith fazem uma objeção a esta interpretação de Vlastos. Ao considerar a sabedoria como a
virtude necessária e suficiente para a aquisição das demais virtudes, dois pontos são colocados pelos autores:
1) Se a sabedoria é uma condição necessária e suficiente para aquisição das outras virtudes, basta que o
indivíduo tenha uma das virtudes mais a sabedoria para ser considerado virtuoso; 2) se cada virtude é
considerada um tipo de conhecimento específico em relação ao conhecimento geral, não haveria motivo para
considerar a sabedoria como algo necessário e suficiente na aquisição das demais, já que cada parte seria uma
parte do conhecimento, aquela necessária para realizar uma ação específica. (BRICKHOUSE, T.C.; SMITH,
N. D., 1997, p. 315). Também Devereux observa que esta posição que Vlastos toma em relação ao papel da
sabedoria no Protágoras não se mostra coerente com outras afirmações encontradas, por exemplo, no Laques.
19
virtude, é justificado por Vlastos como sendo uma posição coerente com o princípio socrático
de que a sabedoria seria aquela que torna melhores os homens. Além disso, Vlastos entende
que Sócrates estaria afirmando no próprio Protágoras que a sabedoria é “suficiente para as
ações virtuosas”53.
2.1.1. Releitura das teses da unidade e da semelhança a partir da tese da bi-condicionalidade
Partindo da tese da bi-condicionalidade, Vlastos sugere uma releitura da tese da
unidade e da semelhança a partir de uma proposição L – em que ‘L’ significa link, na medida
em que visa ligar as três teses54:
L Virtude, Sabedoria, Temperança, Coragem, Justiça, Piedade são inter-
predicáveis: se “B” é um substituto de um dos substantivos anteriores e “A”
de um dos adjetivos cognatos, então B é A (i.e., A é predicado de B)”, onde
A deve ser “entendido como aplicado não a uma entidade abstrata nomeada
por B, mas [aplicado]55 a cada uma de suas instâncias. 56
Com isso, dada a tese da bi-condicionalidade,
“Justiça é sábia;
Justiça é temperante;
Justiça é corajosa;
Justiça é pia;
Justiça é justa;
Justiça é virtude.”57
Vlastos explica que o termo predicado não deve ser entendido como estando atribuído
a um nome abstrato, mas aplicado ao indivíduo que é, nesse caso, justo. Com isso, ao dizer
que, por exemplo, a justiça é temperante, deve-se compreender por esta afirmação que o
indivíduo justo é também um indivíduo temperante. Ainda sobre os aspectos dessa tese de
Vlastos, o termo predicado também pode ser colocado na forma substantivada como “Justiça
Neste diálogo, em 198a, bem como no Mênon (78d-79a), Platão não insere a sabedoria na lista daquilo que ele
considera como partes da virtude. Iremos, mais a frente, sustentar que, de fato, a sabedoria, tal como utilizada
por Platão no Protágoras, não será por ele identificada como parte, mas com o todo da virtude. (DEVEREUX,
1993. p. 773. Nota 13). 53 VLASTOS, 1971, p. 233, nota 29. 54 VLASTOS, 1971, p. 234, tradução nossa. 55 Inserção da autora. 56 VLASTOS, 1971, p. 234-235, tradução nossa. 57 VLASTOS, 1971, p. 235, tradução nossa.
20
é Sabedoria”, “Temperança é Justiça”, entre outros. Estes seriam entendidos como inter-
predicáveis do seguinte modo “Justiça é sabia e Sabedoria é justa”58. Em resumo, o que a
tese da bi-condicionalidade diz é que, se uma pessoa tem uma das virtudes, ela
necessariamente terá todas as demais. Com isso, se N é justo, N é sábio, N é temperante, etc.
logo, a justiça de N será sábia, temperante e assim por diante59.
Partindo desse ponto, ele dá início a uma releitura da tese da unidade. Lembrando
que ela parte da afirmação de que “os nomes de todas as virtudes devem ser aplicados a uma
mesma coisa”60, Vlastos chama a atenção para o fato de que ‘nome’ (ὄνομα) pode ser
utilizado de dois modos: a) com o sentido de nome próprio, e b) com o sentido de uma
“expressão descritiva61”. Por exemplo, analisando uma passagem do Fédon62, é possível ver
que o número três é nomeado de duas formas distintas: como ‘três’, em que o nome tem a
função de ser uma referência do objeto, ou seja, aponta para o próprio objeto; e também como
‘ímpar’ e, nesse caso, este nome estaria descrevendo uma qualidade ou atributo do objeto em
questão.
Além da distinção entre as funções desempenhadas pelo ‘nome’, tem-se o caso que,
enquanto o nome, aplicado como referência ou como nome próprio do objeto, estabelece uma
identidade entre a coisa e o nome, o segundo caso não estabelece uma identidade entre o três
e o ímpar, ou seja, eles não são sinônimos, pois “o fato de que eles nomeiam a mesma coisa
não implica que eles sejam” sinônimos ou idênticos63.
Vlastos sustenta que, no caso do Protágoras, quando é dito que, por exemplo, ‘a
temperança é sabedoria’, esta e demais frases de mesmo estilo podem ser traduzidas como
“Temperança é nomeada [descritivamente] Sabedoria”, e assim também para os outros
casos64. Situando esta explicação no Protágoras, Vlastos faz uso de duas passagens: uma,
que se encontra no final do diálogo, em 361b-c, em que Sócrates vai dizer que todas as
virtudes são sabedoria, e a segunda, em 332a-333b, em que ele irá dizer que, pelo fato de a
sabedoria e a temperança terem o mesmo oposto, elas seriam uma única coisa.
58 VLASTOS, 1971, p. 236. 59 VLASTOS, 1971, p. 237. 60 VLASTOS, 1971, p. 238. 61 VLASTOS, 1971, p. 238. 62 PLATÃO, Fédon, 103e-104b. 63 VLASTOS, 1971, p. 240. 64 VLASTOS, 1971, p. 241-242.
21
Na primeira passagem, Sócrates, ao falar que todas as virtudes são sabedoria, estaria,
na realidade, dizendo que a justiça é sabedoria, bem como a temperança é sabedoria, e assim
por diante. Isso poderia ser traduzido da seguinte forma: “Justiça é nomeada
[descritivamente] por sabedoria”65, o mesmo valendo para as demais virtudes, com excessão
da própria sabedoria, cuja aplicação seria entendida como nome próprio. Nesse sentido, não
seria o caso de uma identificação entre as virtudes e a sabedoria, mas de uma relação bi-
condicional entre elas66.
Com relação à segunda passagem acima, o termo ‘oposto’ estaria sendo aplicado no
mesmo sentido em que ‘complemento’ é aplicado na teoria dos conjuntos. Sendo assim, dizer
que a sabedoria e a temperança possuem o mesmo oposto é dizer que ambas são
complemento, neste caso, da insensatez. Isso quer dizer que, se ambas as virtudes têm o
mesmo complemento, elas são classes co-extensivas. Segundo Vlastos, isso demonstra que
a tese da unidade pode ser re-interpretada a partir da leitura dada pela tese da bi-
condicionalidade, quando a unidade da virtude passa a ser entendida como “atributos
instanciados necessariamente em uma e mesma classe de pessoas”67.
Já na releitura da tese da semelhança, Vlastos sugere que a busca de Sócrates pela
semelhança entre as virtudes deve ser vista a partir da “bi-condicionalidade das classes de
suas instâncias68”. A fim de assegurar tal releitura, Vlastos examina as seguintes premissas
presentes no Protágoras: “i) A Justiça é justa (330c) e a Piedade é pia (330d); e ii) A Justiça
é pia e a Piedade é justa (331b)”69. Dada esta releitura, pode-se observar, a partir dessas
premissas, que Sócrates estaria chamando a atenção para o fato de que a semelhança entre
essas virtudes estaria em que ambas são pias e justas.
Então, segundo a proposição L, se ter uma virtude é ter todas as demais, e se isso significa
que um indivíduo justo é, necessariamente, pio, temperante, etc., a justiça, que nele está
instanciada pode ser dita como pia, temperante, etc. Assim, “cada uma é como o resto em
todos os cinco aspectos”70, mas cada virtude possui sua própria caraterística que as
distinguem entre si.
65 VLASTOS, 1971, p. 242. 66 VLASTOS, 1971, p. 243. 67 VLASTOS, 1971, p. 246. 68 VLASTOS, 1971, p. 247. 69 VLASTOS, 1971, p. 249. 70 VLASTOS, 1971, p. 247.
22
Ao fazer a releitura das duas teses acima, Vlastos entende que as três acabam por “se
tornar expressões complementares da mesma afirmação básica71”, qual seja, a de que possuir
uma virtude leva, necessariamente, à obtenção de todas as demais. Entretanto, não fica claro
o entendimento por detrás das afirmações tais como ‘a justiça é temperante’. Isso porque, se,
por um lado, a ‘temperança’ é um nome descritivo para ‘justiça’, por outro, Vlastos diz que
a ‘temperança’ é aplicável ao indivíduo que é justo, e não ao ente abstrato ‘justiça’. De que
modo ele visa solucionar esse problema?
2.1.2. Vlastos e a Predicação Paulina
A justificativa de Vlastos para esta leitura começa por assumir que as sentenças
predicativas estão sendo entendidas pelo o que ele chama de predicação paulina72, que irá se
diferenciar do tipo de predicação conhecida como predicação ordinária. Por predicação
paulina entende-se, por exemplo, que, dada a frase do tipo “A Caridade é gentil73”, o que está
sendo qualificado como gentil não é a caridade em si, porque não se está atribuindo
“propriedades morais a entidades abstratas”74, mas ao indivíduo que, possuindo tal caridade,
é também gentil. Ao contrário, a predicação ordinária estaria assumindo que, na frase “A
Caridade é gentil”75, a propriedade ‘gentil’ estaria sendo aplicada ao ente caridade. Portanto,
a distinção entre esses dois modos de compreender uma predicação é que, enquanto a
predicação ordinária entende que o predicado está sendo aplicado ao próprio ente abstrato, a
predicação paulina interpreta que tais predicados são aplicados às instâncias desses entes nos
indivíduos, e não aos próprios entes.
É por meio dessa interpretação que, segundo Vlastos, as sentenças no Protágoras
devem ser compreendidas. Para finalizar, Vlastos propõe considerar a seguinte reflexão: se
71 VLASTOS, 1971, p, 252. 72 A predicação paulina tem como referência afirmações do apóstolo Paulo, tal como “O amor é sofredor e é
benigno” (I Cor. 13:4). Seguindo essa e outras afirmações semelhantes encontradas nas cartas de Paulo, a
predicação paulina seria o entendimento de que o ‘ser sofredor’ e o ‘ser benigno’ estão se referindo não ao ente
abstrato ‘amor’, mas ao indivíduo que possui este tipo de amor. 73 VLASTOS, 1971, p. 233. 74 VLASTOS, 1971, p. 253. 75 VLASTOS, 1971, p. 233.
23
Sócrates pensava a justiça como um universal76, como é possível sustentar esta leitura no
Protágoras? Nas palavras de Vlastos:
Lida como predicação Paulina (...) “Justiça é justa e pia” implica
diretamente que qualquer um que instancie Justiça será justo e pio; e
exatamente o mesmo é verdadeiro para a leitura Paulina de “Piedade é pia
e justa.”” (...) Lida como predicação ordinária, “(...) tudo o que nós
podemos obter de “Justiça é justa e pia” é que o universal, Justiça, tem essas
duas propriedades. E do fato de que um universal possui certas
propriedades, não se segue que as instâncias tenham tais propriedades.77
Em outras palavras, se tais sentenças forem lidas por uma perspectiva baseada na
ideia de predicação ordinária, não se segue a afirmação de que o indivíduo, no qual a justiça
se instancia, venha também a ser justo e pio. Isto acaba por não se mostrar coerente com o
que está sendo exposto no Protágoras, o que justificaria, no entender de Vlastos, que se trata
do tipo de entendimento sugerido pelas predicações paulinas no Protágoras. Resta, por fim,
saber como a proposição L e a predicação paulina, que constituem a Tese da Bi-
condicionalidade, afetarão a tese da unidade da virtude e a tese da semelhança78.
Sob a ótica da bi-condicionalidade, a tese da unidade (sinonímia) não se aplicaria a
nomes como referentes, mas como descrições. Aplicada à tese da semelhança, a bi-
condicionalidade resulta em que as virtudes são como as outras nos cinco aspectos, porque
um indivíduo não pode participar de uma sem participar das demais, ainda que cada uma
guarde sua distinção específica. Portanto, afirmações do tipo “x é semelhante a y”, de acordo
com a predicação paulina, podem ser ditas na medida em que têm como referência as
instanciações no indivíduo e não na medida em que, indistintamente, as virtudes, que Vlastos
chama de Universais, sejam semelhantes.
76 VLASTOS, 1971, p. 252. 77 VLASTOS, 1971, p. 255-256, tradução nossa. 78 Do ponto de vista da tese da bi-condicionalidade, Sócrates estaria compreendendo as predicações do tipo
“justiça é pia” e “piedade é justa” (Prot. 330a -331b) como predicações paulinas, querendo dizer, com isso, que
“a justiça é tal que suas instâncias serão justas e pias” e assim também com as demais virtudes. Contudo, para
Devereux, após afirmar aquelas sentenças, Sócrates não vai inferir algo parecido com o que Vlastos quer
defender, mas sim que elas são apenas semelhantes. (DEVEREUX, 1992, p. 769).
24
2.2 Α Unidade da Virtude como Tese da Identidade
(a) Terry Penner
Em seu artigo, intitulado “The Unity of Virtue”79, Terry Penner tem como propósito
demonstrar que, ao colocar em discussão o tema da unidade da virtude no Protágoras,
Sócrates está fortemente comprometido com o que ele vai chamar de Tese da Identidade.
Esta tese se fundamenta na seguinte ideia: Coragem = Sabedoria = Temperança = Justiça =
Piedade80, em que o sinal ‘=’ denota o sentido forte do termo ‘identidade’.
Penner inicia sua análise observando as dificuldades que alguns intérpretes possuem
e que os levam a rejeitar esta posição. Referindo-se àqueles que sustentam uma tese da
equivalência – similar em muitos pontos a tese da bi-condicionalidade – em contraposição à
tese da identificação das virtudes entre si, Penner ressalta que a causa de tal rejeição começa
numa interpretação equivocada da questão “O que é X”. Segundo Penner, este tipo de questão
deve ser pensada e reformulada do modo seguinte: “o que é esta única coisa, a mesma em
todos os casos, em virtude da qual homens corajosos são corajosos?”81. Contudo, os que
negam a tese da identidade assim o fazem por entender a questão como que tratando, em
geral, de uma busca por significados82. Por exemplo, no caso de uma pergunta do tipo ‘o que
é a coragem’, estariam raciocinando da seguinte maneira:
i) “Em adição aos homens corajosos, deve existir uma tal coisa como a coragem –
isto é, o significado de ‘coragem’ – em virtude da qual homens corajosos são
corajosos; e
ii) O significado de ‘coragem’ é diferente do significado de ‘sabedoria’”83
A partir dessas duas proposições, segue-se que, uma vez que os significados são
diferentes, apenas a coragem, e não outra virtude, pode fazer com que homens sejam
79 PENNER, Terry. “The Unity of Virtue”. The philosophical Review. Vol. 82, No. 1 (1973), p. 35-68. 80 Ibid., p. 36. 81 Ibid., p. 38. 82 Ibid., p. 38. 83 Ibid., p. 38.
25
corajosos e, portanto, não se pode considerar a doutrina da unidade da virtude como uma
tese da identidade – apesar de ser possível ainda falar de uma semelhança entre as virtudes
e, por conseguinte, de uma tese da equivalência entre elas.
O mesmo pensamento é expresso quando, ao invés de significado, o X da questão é
tomado como referência a essências ou a universais. Nesse caso, dizer que as virtudes são
idênticas umas às outras, seria o mesmo que afirmar:
iii) “A essência da coragem = essência da sabedoria sse “coragem” e “sabedoria” são
sinônimos – isto é, se o significado de coragem = significado de sabedoria.”84
Ao chegarem ao mesmo resultado, estas perspectivas acabam por negar a
possibilidade de tomar a unidade da virtude como uma tese da identidade. Estas posições,
tanto a que toma como referente o significado, quanto aquela cuja referência é a essência
ou o universal, fazem parte do grupo que Penner vai denominar the meaning view85 - ou
“os proponentes do significado”. Com o objetivo de combater a posição deste grupo,
Penner retorna para a questão “o que é X” e observa a necessidade de tal questão ser
compreendida por outro foco, ou seja, não como uma busca por significados, mas uma
busca por um tipo de estado psicológico que explique não só como os homens se tornam
corajosos, mas se este mesmo estado psicológico também torna tais homens sábios ou
não86.
Se o resultado dessa investigação for afirmativo, então o estado psicológico que torna
os homens corajosos será idêntico ao que torna os homens sábios. A distinção, portanto,
entre os proponentes do ponto de vista do significado e Penner é que os primeiros irão
tomar como referente da coragem o significado, a essência, ou o universal da coragem;
enquanto Penner irá tomar como referência da coragem o que ele chama de “entidade
teórica”, isto é, o “estado psicológico que explica o fato de que certos homens praticam
84 PENNER, 1973, p. 38. 85 PENNER, 1973, p. 39. 86 Segundo Devereux a posição que adota a explicação de um mesmo estado para denotar a virtude e eliminar
qualquer possibilidade de distinção entre elas, levando à negação de que as virtudes são partes distintas do todo
parece “inconsistente com a posição de Sócrates [no Protágoras] e com a visão que ele endossa no Laques e
no Mênon”. (DEVEREUX, 1992, p. 767).
26
atos corajosos”87. E, uma vez que, explica o autor, “as condições de identidade para
estados psicológicos são presumivelmente mais amplas que a sinonímia, podemos supor
que dois termos-virtudes não-sinônimos se referem a um mesmo estado psicológico.”88
2.2.1. Tendências versus “estados de alma” ou “força - motriz”
Pelo fato de Penner construir seu argumento a partir da noção de estados psicológicos,
ele precisa lidar com uma objeção à sua posição. Esta objeção considera que as
referências para “coragem”, “sabedoria” e demais virtudes devem ser entendidas como
disposições: “de um lado, disposição para comportamento corajoso e, de outro,
disposição para comportamento sábio”89. Isso significa que, se existem dois tipos de
comportamentos distintos, de igual modo existem dois tipos distintos de disposições,
causando uma dificuldade para o estabelecimento da ideia de que duas virtudes possam
se referir a uma mesma e única coisa.
Surge assim a seguinte objeção a Penner: “as disposições são numericamente distintas
sse elas conduzem a diferentes tipos de comportamentos”90. Para defender sua posição,
Penner apresenta dois modos em que se pode conceber as noções de coragem e sabedoria,
por exemplo: 1) a que compreende disposições como tendências91, consideradas
“numericamente distintas sse elas conduzirem a diferentes tipos de comportamento”92; e
2) a que concebe disposições como “coragem” e “sabedoria” como força-motriz ou
estados de alma, onde “a mesma força-motriz ou estado de alma pode resultar em
diferentes tipos de comportamento”93. A partir dessas duas concepções, Penner elabora
uma possibilidade descritiva da unidade da virtude:
Sócrates pensava que todos e somente aqueles homens com tendências a
ações corajosas, teriam tendências para ações sábias (estas ações sendo em
geral diferentes das primeiras ações). Mas ele pode ter acreditado que todas
estas tendências surgiam da mesma força-motriz ou estado psicológico (por
87 PENNER, 1973, p. 41. 88 PENNER, 1973, p. 42. 89 PENNER, 1973, p. 44. 90 PENNER, 1973, p. 44. 91 PENNER, 1973, p. 44. 92 PENNER, 1973, p. 44. 93 PENNER, 1973, p. 45.
27
exemplo, um certo tipo de conhecimento). (PENNER, 1973, p. 45, tradução
nossa.)
O que se tem aqui é a descrição dos dois tipos de disposição, tendências e forças-
motrizes, cujas diferenças poderiam ser superadas. Entretanto, há um problema em conceber
a noção de disposição como tendência. Isso se deve ao fato de que esta identificação corre o
risco de cair, com muita frequência, no mesmo problema que o dos proponentes do
significado, qual seja, o de distinguir algo a partir de seu significado. O resultado seria, então,
alcançado em função da não-sinonímia entre elas. Isto, por sua vez, não ocorreria com a
noção de força-motriz.
Outra ocorrência que demonstra a distinção entre ‘tendência’ e ‘força-motriz’ pode
ser encontrada em um raciocínio semelhante ao dos filósofos da ciência. Segundo estes,
independente do significado linguístico dessas disposições, o fato é que todo comportamento
possui uma explicação física94. É esse sentido de explicação que Penner vai associar à noção
de força-motriz, entendida, por sua vez, como uma entidade única que explica as diferentes
ações dos indivíduos.
Penner ainda observa que não há nada de econômico em considerar que exista uma
“tendência ao comportamento corajoso” para além da força-motriz ou estado de alma que
leva a comportamentos tais como de coragem, de sabedoria, de temperança, porque a noção
de ‘tendência’ se faz apenas em “referência a um comportamento ou estado específico”95.
Por exemplo, se os homens são considerados corajosos, estes não são corajosos segundo suas
tendências a atos corajosos, mas sim “se eles possuem a qualidade requerida para realizar
ações corajosas em circunstâncias apropriadas”96. Nesse sentido, essa qualidade requerida
estaria sendo identificada com a força-motriz ou estado de alma. Assim é que Penner rejeita
a possibilidade de que Sócrates estaria compreendendo as disposições também como
tendências.
94 PENNER, 1973, p. 47. 95 PENNER, 1973, p. 47. 96 PENNER, 1973, p. 48.
28
2.2.2 Aplicação da tese da força-motriz ao Protágoras
Segundo Penner, na passagem 329c-d do Protágoras, Sócrates, em oposição a
Protágoras, parte da ideia de que as virtudes não são distintas, mas são nomes diferentes para
uma única e mesma coisa. Esta formulação, juntamente com os demais argumentos do
diálogo, formariam uma defesa da tese da identidade da virtude97.
O primeiro desses argumentos, identificado como argumento dos contrários, se
encontra a partir do passo 332a. Nesta passagem Sócrates explica a Protágoras que, se cada
coisa possui um único contrário, então, a temperança e a sabedoria correspondem a uma única
coisa, pois ambas possuem o mesmo contrário: a insensatez98. Aplicando a tese da identidade
a este caso, Penner sustenta que Sócrates está, na verdade, lidando especificamente com
apenas dois contrários: a virtude e o vício. Assim se tem, de um lado, a virtude, que se refere
tanto à temperança, quanto à sabedoria; e de outro, o vício, que se refere tanto à insensatez,
quanto à intemperança. Logo, quando Sócrates diz que é pela temperança que os homens se
tornam temperantes, e pela insensatez que os homens se tornam insensatos99, ele está, em
realidade, opondo virtude e vício. Dessa forma, Sócrates estaria afirmando que é por meio
da virtude que um indivíduo irá agir de modo temperante, corajoso, sábio, e, de modo
contrário, por meio do vício que irá agir covardemente, injustamente, e assim por diante. O
que Penner propõe é que, ao lermos desse modo, possamos vir a entender que se trata de “um
argumento que parte do modo como os homens agem e leva às forças- motrizes ou estados
de alma que causam tais ações”100.
O argumento da confiança101 surge como segunda justificativa para a leitura de
Penner. Aqui Sócrates estaria se colocando em oposição a uma afirmação feita por Protágoras
de que a coragem é diferente das demais virtudes e, por isso, pode ser encontrada, inclusive,
em indivíduos ignorantes e injustos102. Por sua vez, Sócrates afirma que só é possível agir
com coragem à medida que o indivíduo também for sábio103. Penner interpreta esta
97 PENNER, 1973, p. 50. 98 PLATÃO, Protágoras, 332a-333b. 99 PLATÃO, Protágoras, 332b. 100 PENNER, 1973, p. 52. 101 PLATÃO, Protágoras, 349d-351b. 102 PLATÃO, Protágoras, 349d. 103 PLATÃO, Protágoras, 350c.
29
declaração como uma identificação entre coragem e sabedoria, entendendo que “aquilo que
torna um homem corajoso é idêntico àquilo que o torna sábio”104. Dessa forma, o que
Sócrates está querendo dizer é expresso por Penner do seguinte modo:
Certos homens, mergulhadores, são confiantes em mergulhar dentro de
poços porque eles sabem [o que eles estão fazendo]; e algo similar se dá
com os cavaleiros habilidosos, que lutam a cavalo com confiança, e com a
habilidade dos guerreiros que lutam confiantemente com um escudo
protetor. E de modo geral: Aqueles que sabem o que estão fazendo são mais
confiantes do que aqueles que não sabem. (PENNER, 1973, p. 53-54,
tradução nossa)
Assim, o que explica o fato dos homens expressarem confiança em suas respectivas
ações é o conhecimento da habilidade desempenhada. Em outras palavras, é por causa do
conhecimento que um indivíduo demonstra confiança na hora de agir. Portanto, tais homens
são corajosos porque conhecem. Por outro lado, pode-se afirmar que homens ignorantes
dessas mesmas habilidades demonstram uma espécie de confiança ignorante e, portanto, não
podem ser considerados, de fato, confiantes. Então, nesse sentido, o que Sócrates faz é
assumir que “todos os homens corajosos são confiantes”105 e, sendo confiantes devido ao
conhecimento que possuem, a coragem é colocada na mesma classe daquilo que faz com que
homens sejam corajosos, ou seja, a sabedoria.
O terceiro argumento parte da expressão “aquilo em virtude de quê”106, presente no
passo 360c. A proposta de Penner é demonstrar que se trata de uma expressão “causal ou
explicativa, ao invés de epistêmica ou semântica”107. A mesma demonstração visa a ser
aplicada à questão “o que é X”. O intuito é o de sustentar que a questão tem por objetivo
buscar “um relato psicológico (explicação) sobre o que é isto que, nas almas dos homens,
torna-os corajosos”108. Em ambos os casos, a questão é compreender que alguém que “age
por meio de F”109, não age devido ao “significado de F estar instanciado em um ato que
alguém vê como um ato que está sendo realizado F-mente”110. Isso significa que, quando
104 PENNER, 1973, p. 53. 105 PENNER, 1973, p. 55. 106 PENNER, 1973, p. 56. 107 PENNER, 1973, p. 56. 108 PENNER, 1973, p. 56-57. 109 PENNER, 1973, p. 57. 110 PENNER, 1973, p. 57.
30
Sócrates afirma, por exemplo, em 360c, que “os covardes são covardes por causa da
covardia”111, ele está querendo dizer que os covardes são covardes porque faltam a eles
conhecimento e, portanto, são covardes por causa da ignorância “daquilo que deve e não deve
ser temido”112.
Tomando estes argumentos, Penner afirma que Sócrates estabelece duas coisas: a
primeira delas é a separação de dois contrários, o conhecimento e a coragem de um lado, a
ignorância e a covardia de outro, onde os dois não podem estar no indivíduo ao mesmo tempo.
Estando as demais virtudes do lado do conhecimento, um indivíduo pode ser, ao mesmo
tempo, corajoso e justo, mas não corajoso e injusto. A segunda é que a expressão “por causa
de F”, indica que aquilo que torna alguém covarde não é o sentido ou o significado de F em
suas ações, mas a existência de uma força-motriz ou estado de alma, a saber, a ignorância ou
covardia. Com isso, para Penner faz mais sentido pensar que Sócrates está à procura de uma
explicação de algo que ocorre na alma do indivíduo, e que faz com que ele aja de determinado
modo, do que de uma definição nominal ou do significado das virtudes, que postularia uma
identidade entre elas.
Retomando mais uma vez ao argumento dos contrários, é importante observar que
neste argumento os contrários sublinhados foram ‘virtude’ e ‘vício’ e não ‘conhecimento’ e
‘ignorância’, tal como aparecem nesses dois últimos argumentos. Para demonstrar que se
trata de uma mesma coisa, a saber, de um lado, a virtude como igual ao conhecimento e, por
outro lado, o vício como igual à ignorância, Penner prossegue para sua quarta e última
justificativa com respeito ao Protágoras, a qual se encontra nos passos 360e-361d,
denominados por Penner como argumento da “Virtude é Conhecimento”113.
Penner demonstra a aplicação da tese da identidade do seguinte modo: ao dizer que
virtude é conhecimento, Sócrates estaria promovendo a identidade entre as virtudes. Em
sendo a virtude conhecimento, ela pode ser ensinada. Para Penner, estes dois casos, “virtude
é conhecimento”114 e “virtude é ensinável”115, estariam sendo tratados por Sócrates “como
111 PENNER, 1973, p. 57. 112 PENNER, 1973, p. 57. 113 PENNER, 1973, p. 58. 114 PENNER, 1973, p. 58. 115 PENNER, 1973, p. 58.
31
instâncias de respostas”116 para as seguintes questões, respectivamente: “o que é X (a virtude
em si mesma)?” e se “X é Γ (virtude é ensinável)” 117.
Por fim, o autor destaca que, em ambas as questões, ‘virtude’ aparece como um termo
singular118. E se a resposta para a questão “o que é X” é “virtude é conhecimento”, então
Sócrates estaria dizendo que coragem = sabedoria = temperança = justiça = piedade = virtude
= conhecimento. Em outras palavras, Sócrates, ao longo do diálogo, procura uma única
entidade, e não várias, para explicar porque os homens agem de modo temperante, pio, e
assim por diante119. Sendo assim, se a questão está sendo pensada como um pedido por uma
explicação, baseada em “crenças psicológicas substanciais”120, e não em uma análise do
significado de X, faz sentido considerar que a virtude e o conhecimento, sendo iguais, sejam
tomados no sentido de uma força- motriz, ou seja, como uma explicação psicológica. O
Protágoras estaria, assim, comprometido com a busca por uma “descrição psicológica da
virtude”121, ou seja, uma descrição ou explicação sobre o que é isso que atua na alma do
indivíduo, e que faz com que ele tenha ações virtuosas122.
(b) Margaret Hartman
2.2.3 Conhecimento como dýnamis
Hartman assume uma posição voltada para uma identificação entre as virtudes e não uma
distinção entre elas. Ao contrário de Vlastos que, segundo a autora, entende a possibilidade
116 PENNER, 1976, p. 58. 117 PENNER, 1973, p. 58. 118 PENNER, 1973, p. 59. 119 Para Devereux “existem passagens [no Protágoras] que não se encaixam” com esta posição, a qual não
admite nenhum elemento de distinção entre as virtudes. Por exemplo, em 359d-360d, Sócrates, ao afirmar que
as virtudes são uma única e mesma coisa, isto é, conhecimento do bem e do mal, apresenta uma definição de
coragem que não serve para as demais virtudes. Isso contraria a ideia de que “as virtudes são idênticas por
definição”. Nossa análise posterior também irá se comprometer com a ideia de que as virtudes, no Protágoras,
estão sendo consideradas distintas. (DEVEREUX, 1992, p. 787). 120 PENNER, 1973, p. 60. 121 PENNER, 1973, p. 60. 122 Para Brickhouse e Smith, tomar “cada instância de uma virtude individual” como idêntica a outra gera um
paradoxo, pois, se assim o fosse, não seriam várias, mas uma virtude apenas, sem a necessidade de se aplicar
nomes diferentes. O segundo problema com essa tese é que ela não parece se encaixar com uma afirmação que
se encontra no Êutifron, no passo 12d, a saber, que a piedade seria uma parte da justiça. Isso porque, se todas
são idênticas por constituírem o mesmo conhecimento por definição, não há como entender em que medida a
piedade seria parte da justiça. (BRICKHOUSE, T. C.; SMITH, N. D., 1997, p. 316).
32
da unidade da virtude somente no sentido em que todas se aplicam a um mesmo objeto, sua
contra-argumentação é a de que a noção de relação entre parte e todo evocada no Protágoras
não é entre virtude e objetos comuns – no caso de Vlastos, virtudes e indivíduos –, mas uma
relação mantida pelas virtudes entre si a partir de uma mesma unidade, a saber, o
conhecimento. Apesar de, em certo sentido, sua posição estar apoiada em Penner – para quem
a unidade da virtude passa a ser explicada como uma relação de identidade entre
conhecimento e virtude – Hartman não parte da compreensão de ‘conhecimento’ como sendo
um estado psicológico ou força-motriz. Antes, o conhecimento é compreendido pela autora
como uma δύναμις, isto é, uma força ou uma capacidade, que permitiria afirmar a virtude
como unidade.
Sua análise parte da observação de que, tanto a analogia da barra do ouro e suas partes,
quanto a analogia da face e suas partes, que se encontram nos passos 329d-e do Protágoras,
não oferecem imagens adequadas para a compreensão do que seria essa relação do todo-parte
da virtude. Contudo, ela usa justamente a inadequação de tais modelos para apontar o oposto
do que elas sustentam, construindo assim um novo caminho para a clarificação do problema
da unidade da virtude.
Para demonstrar a inadequação de tais modelos Hartman recorre ao diálogo Mênon
na passagem em 74b em diante. Nesta passagem, Sócrates tenta explicar a Mênon em que
sentido pode-se entender a relação entre a virtude e suas partes. Sócrates começa sua
explicação a partir da analogia da figura e do círculo, cuja relação é expressa como sendo a
relação entre a figura e uma figura. O mesmo poderá ser observado com respeito à relação
entre a cor e o branco, ou seja, a relação entre a cor, como um todo, e uma cor, o branco,
como parte desse todo. Desse modo a analogia é feita do seguinte modo: “círculo está para
figura, assim como branco está para a cor, assim como a coragem está para a virtude”123.
A partir dessa analogia, Hartman retoma os dois modelos propostos no Protágoras
para demonstrar a inadequação dos mesmos. A começar pelo modelo da face e aplicando a
analogia do Mênon vista no parágrafo anterior, a relação entre os olhos e a face não faz
sentido se comparada com o padrão das outras relações pois, observa a autora, enquanto
redondez, branco e coragem são, respectivamente, um tipo de figura, um tipo de cor, e um
123 HARTMAN, 1984, p. 111.
33
tipo de virtude, “os olhos não são um tipo de face”124. De igual modo, adicionar à lista o
modelo do ouro e afirmar que “assim como as partes do ouro estão para o ouro”125, pelo
mesmo padrão no Mênon, também não fará sentido dizer que “pedaços de ouro são um tipo
de ouro”126, porque os pedaços de ouro são o próprio ouro em partes e tamanhos distintos,
formado não por serem partes, mas simplesmente por terem sido formados pela quebra da
barra de ouro.
No entanto, por mais que estes modelos se mostrem inadequados para clarificar a
relação parte-todo da virtude, Hartman observa que, ainda assim, o modelo da face consegue
oferecer uma imagem que permite entender a unidade da virtude de outra forma. Segundo a
autora, tal modelo “sugere que uma multiplicidade de órgana é uma multiplicidade de
dynámeis correspondentes”127 a cada órgão. Desse modo, a face é entendida como aquela que
“nutre todas as dynámeis (...) relacionadas com a percepção do mundo sensível”128.
Se isto pode ser afirmado e se o modelo da face se apresenta como inadequado, então,
segundo Hartman, parece ser possível pensar que o que Platão faz é direcionar “a um
entendimento das virtudes (...) como uma unidade de uma dýnamis e seus correspondentes
órgãos”129, ao invés da correspondência entre uma multiplicidade de dynámeis para uma
multiplicidade de órgãos. Para sustentar esta hipótese, ela parte da afirmação de Sócrates em
361 em diante no Protágoras, quando as virtudes são ditas como sendo conhecimento, que
corresponde à virtude como um todo. Além disso, a seguinte afirmação “virtude é
conhecimento”, será também explorada pela autora em mais outros dois diálogos de Platão:
a República, em 477c-d, que irá afirmar que a “epistéme é uma dýnamis na alma”130, e o
Timeu, nos passos 45b-c e 67e-68b, que vai esclarecer a relação existente entre visão e
dýnamis.
Partindo da afirmação no Protágoras de que todas as virtudes correspondem ao
conhecimento, Hartman se dirige à República em 477c-d e toma o exemplo que Platão dá
sobre a visão. Segundo Platão, a visão seria considerada uma dýnamis, relacionada à cor
124 HARTMAN, 1984, p.112. 125 HARTMAN, 1984, p.112. 126 HARTMAN, 1984, p.112. 127 HARTMAN, 1984, p.112. 128 HARTMAN, 1984, p.112. 129 HARTMAN, 1984, p.113. 130 HARTMAN, 1984, p.113.
34
como sendo seu obejto. Hartman destaca dois pontos que caracterizam algo como uma
dýnamis: “aquilo [o objeto] com que a dýnamis está relacionada [e] o que a dýnamis
realiza”131. Diante disso, o objetivo da autora será o de clarificar o que ela entende por
“unidade da força/capacidade (dýnamis) que torna as pessoas virtuosas, isto é, a epistéme”132.
Uma dúvida pode surgir a respeito do motivo pelo qual Platão estaria considerando a
visão como uma única dýnamis. Isso porque se, por um lado, a cor é uma única coisa, por
outro lado, ela também é múltipla, já que também existem tons como o amarelo, o verde, e
assim por diante. O mesmo ocorre com a visão, que não capta somente uma cor, mas muitas
cores. Com a finalidade de demonstrar e justificar a razão pela qual Platão está considerando
a visão como uma e não várias dynámeis, Hartman vai se ater às passagens 45b-c e 67e-68b
do Timeu, que discutem a visão e a cor a partir de sua estrutura física, isto é, os olhos.
De acordo com o Timeu, os olhos são uma espécie de fogo por carregarem consigo
“uma luz suave”133 que não arde e que seria uma espécie de fogo puro. Então, quando esse
fogo puro vai de encontro às partículas de fogo que estão presentes nos objetos externos,
ocorre a visão. A percepção que corre das diferentes cores “depende da qualidade das
partículas de fogo que se encontram com o fogo puro dos olhos”134. Sendo assim, dependendo
do tamanho e da velocidade com que essas partículas colidem com o fogo puro dos olhos, é
possível perceber diferentes cores, como a cor branca, a cor preta, a cor vermelha e demais
cores.
Portanto, as diferentes cores percebidas pela visão não são “produzidas por diferentes
tipos de fogo inerentes aos olhos”135, mas pelo único fogo puro inerente aos olhos que entra
em contato com as partículas de fogo dos objetos externos, e que gera visão, isto é, gera a
unidade “que dá passagem a uma multiplicidade”136. A partir disso se pode afirmar que Platão
considera a visão “como uma única δύναμις”137, e não diversas dynámeis.
Aplicando esta análise ao caso da virtude, Hartman compara suas conclusões como
algo que pode ser utilizado para dar um novo sentido a interpretação empreendida por
131 HARTMAN, 1984, p.113. 132 HARTMAN, 1984, p.113. 133 PLATÃO, Timeu, 45b. Tradução: Rodolfo Lopes. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos,
2011, p. 124. 134 HARTMAN, 1984, p. 114. 135 HARTMAN, 1984, p. 115. 136 HARTMAN, 1984, p. 115. 137 HARTMAN, 1984, p. 115.
35
Vlastos. Esse novo sentido recai sobre a afirmação de Vlastos de que as teses da unidade da
virtude, da similaridade e da bi-condicionalidade são “expressões complementares de mesma
base afirmativa”138. Sendo assim, partindo dessa nova perspectiva proposta por Hartman tem-
se que a tese da unidade da virtude passa a ser entendida como unidade na medida em que
“a virtude tem uma dýnamis”139; a tese da similaridade como sendo “uma dýnamis
relacionada a uma multiplicidade de objetos similares”140 e, por fim, a tese da bi-
condionalidade como sendo uma afirmação de que “pessoas que possuem uma virtude
tendem a ter todas as demais porque todas as virtudes partem de uma mesma força
(dýnamis)”141.
Todavia, Hartman faz uma ressalva a respeito da noção de identidade implicada em
sua tese ao justificar que não se trata da mesma noção de identidade sugerida pelo modelo da
barra de ouro, cuja diferença diria somente respeito ao tamanho das partes e não à diferença
qualitativa das virtudes. Por outro lado, no que diz respeito às partes da dýnamis, estas “são
fundamentalmente diferentes das partes do ouro”142, porque enquanto o ouro cria suas partes
a partir do momento em que é quebrado, a dýnamis, como por exemplo a visão, cria “uma
multiplicidade quando (...) entra em contato com as diferentes chamas”143, isto é, com as
diferentes partículas de fogo, e não por ser quebrada de algum modo, tal como a barra de
ouro. Com isso Hartman irá dizer que “a analogia com a visão é que a sua multiplicidade é
explicada por um apelo à multiplicidade de objetos através dos quais uma dýnamis pode ser
apontada”144.
Quando o conhecimento passa a ser compreendido como uma dýnamis145, a virtude,
que está relacionada ao conhecimento no Protágoras – relação esta que é entendida por
Hartman, assim como por Penner e outros autores, como uma relação de identidade – passa
a ser compreendida de tal modo que a multiplicidade desse conhecimento, tal como a justiça,
a temperança, entre outras virtudes, passa a ser “explicada pelas diferentes direções para que
ele aponta (...) [e a] multiplicidade das virtudes é criada a partir de uma mesma força
138 HARTMAN, 1984, p. 116, apud. VLASTOS, 1971, p. 252. 139 HARTMAN, 1984, p. 116. 140 HARTMAN, 1984, p. 116. 141 HARTMAN, 1984, p. 116. 142 HARTMAN, 1984, p. 116. 143 HARTMAN, 1984, p. 116. 144 HARTMAN, 1984, p. 116. 145 PLATÃO, República, 477d.
36
(dýnamis) funcionando em diferentes esferas”146 e não o resultado de uma “quebra” gerando
diversas partes iguais que diferem apenas em tamanho.
3. Hipótese
A hipótese que será proposta a seguir visa oferecer um diferente caminho
interpretativo para a questão da unidade das virtudes no Protágoras. Entendendo que a
questão está, sobretudo, centralizada no tema da unidade que envolve a virtude, a chave de
leitura parece estar diretamente ligada a relação entre a virtude, de um lado, e suas partes, a
saber, a justiça, a piedade, a coragem e a temperança, de outro.
Segundo John Cooper147, Sócrates não fornece “uma concepção clara sobre como
exatamente a virtude é uma unidade”, de modo que afirmar que uma interpretação é, em
absoluto, melhor que a outra não faria sentido. Mas é justamente a falta de clareza ou ainda,
a presença de certas lacunas em alguns pontos do discurso que leva à possibilidade de se
pensar em um caminho alternativo àquelas teses vistas anteriormente. Estes pontos, em sua
maioria, estão ligados à tentativa de Sócrates de fazer com que Hipócrates e os demais
ouvintes percebam que Protágoras, de fato, não conhece, mas apenas aparenta saber algo a
respeito da virtude como unidade. Com isto, surge uma nova oportunidade para entender o
que possivelmente Platão estaria sugerindo ao trazer o tema da unidade das virtudes neste
contexto do Protágoras.
Com vistas a isso, a hipótese aqui sugerida segue em parte a leitura que Bruno
Centrone faz deste tema no presente diálogo148. Segundo o autor, a unidade da virtude é
apresentada como “uma totalidade orgânica e unitária, articulada em partes distintas, e
diferente da simples soma ou justaposição de tais partes149”. Como dito anteriormente, o
tema das virtudes e, principalmente, a concepção da virtude como uma unidade vêm inseridas
146 HARTMAN, 1984, p. 116-117. 147 COOPER, John M. Reason and Emotion: Essays on Ancient Moral Psychology and Ethical Theory. New
Jersey: Princeton University Press, 1999. p. 79. 148 CENTRONE, 2015, p. 103-119. 149 CENTRONE, 2015, p. 103.
37
em um contexto cujo tema do um e do múltiplo se encontram presentes a partir de duas
analogias150 sugeridas por Sócrates para se pensar a questão da unidade (ἕν).
Com base nessas analogias, Platão traz para o contexto do diálogo a concepção de
unidade que reflete uma relação em que, de um lado, tem-se a imagem da unidade da virtude
como ὅλον, isto é, todo, e, de outro lado, as demais virtudes como partes (τὰ μόρια) desta
virtude-ὅλον. Ambos os modelos propostos pelas analogias oferecem concepções distintas
de ὅλον e μόρια, bem como a relação entre elas, resultando em dois modos diferentes de se
conceber a unidade.
A seguir, a análise de ambas as analogias tem como objetivo justificar a escolha de
uma em detrimento da outra. O critério para tal decisão será mediante a concepção de todo e
partes coerente com o contexto do Protágoras.
4. Os modelos do ouro e da face
Ernest Nagel observa que, para se compreender o modo pelo qual o todo (τὸ ὅλον) e
suas partes (τὰ μόρια) se relacionam, bem como fazermos quaisquer afirmações acerca desta
relação, é necessário que, antes, venhamos a conhecer de que modo o ὅλον e as μόρια estão
sendo entendidos e empregados no contexto em que eles estão sendo analisados151. Ainda,
de acordo com Rhamon Nunes, um dos “aspectos essenciais” do estudo da parte e do todo
consiste em propor “uma teoria ontológica capaz de capturar (...) [o modo pelo qual] nossas
intuições [captam] as noções de parte e todo”152. Apesar do autor estar especificamente se
referindo ao desenvolvimento atual do campo da mereologia, esses aspectos essenciais se
encontram como reflexões presentes principalmente na elaboração dessas duas analogias.
Tendo isso em mente, é possível perceber que Platão está sugerindo dois modos em que
alguém pode intuir/compreender os conceitos de todo e parte a partir do resultado que ambos
tem para a concepção da virtude como unidade.
150 PLATÃO, Prótágoras, 329d-e. 151 NAGEL, Ernest. “Wholes, Sums and Organic Unities”. Philosophical Studies: An International Journal for
Philosophy in the Analytic Tradition. Vol. 3. No. 2, 1952, p. 178. 152 NUNES, Rhamon de Oliveira. “Problemas de Mereologia: O que é um Todo?”. Revista do Seminário dos
Alunos do PPGLM/UFRJ. Vol. 5, No. 1, 2014, p. 145.
38
Posto isto, em 329d, Sócrates propõe duas imagens segundo as quais se poderia
pensar a unidade das virtudes:
πότερον, ἔφην, ὥσπερ προσώπου τὰ μόρια μόριά ἐστιν, στόμα τε καὶ ῥὶς καὶ
ὀφθαλμοὶ καὶ ὦτα, ἢ ὥσπερ τὰ τοῦ χρυσοῦ μόρια οὐδὲν διαφέρει τὰ ἕτερα
τῶν ἑτέρων, ἀλλήλων καὶ τοῦ ὅλου, ἀλλ᾽ ἢ μεγέθει καὶ σμικρότητι;
São partes (τά μόρια) tais como as do rosto153, boca, nariz, olhos e orelhas
– indaguei –, ou, tais como as partes do ouro, em nada se diferem umas das
outras, seja reciprocamente, seja em relação ao todo, senão em grandeza ou
em pequenez?154
Para se pensar a virtude como unidade, as seguintes analogias estão assim
apresentadas: a primeira, analogia da face e dos órgãos que a compõem, sugere um modelo
de unidade em que a face, tomada como o todo (ὅλον), se articula com seus diferentes órgãos,
identificados como suas partes, distintas umas das outras. Esta distinção entre as partes é
dada não somente quanto ao formato que possuem, mas, em especial, pela função que cada
uma irá desempenhar segundo sua posição específica nesta face.
A segunda analogia, a da barra do ouro, identifica o todo (ὅλον) como sendo esse
ouro inteiro, seja no formato de barra ou outra forma qualquer; e cujas partes não são distintas
desse todo. Nesse sentido, a noção de unidade que aqui está sendo apresentada é a de um
todo que, identificado com suas partes, não irá possuir nenhum elemento de distinção, a não
ser no que diz respeito ao aspecto quantitativo, isto é, o tamanho dessas partes. Tal diferença
quantitativa seria análoga a que as pessoas distinguissem-se apenas por possuir mais ou
menos virtude.
Em resumo, para Centrone155, as analogias sugerem dois modos de leituras possíveis
envolvendo a concepção de unidade: “i) há partes da virtude (...) (no sentido quantitativo156)
e é possível possuir separadamente uma da outra”, imagem esta que estaria sugerida pelo
modelo do ouro, e ii) “há partes da virtude e é impossível possuí-las independentemente uma
da outra”, tal como é sugerido pelo modelo da face. Vejamos primeiramente como a unidade
pode ser pensada a partir da imagem sugerida pelo modelo do ouro.
153 Ao longo do texto, optamos por traduzir “προσώπου” por “face”, ao invés de “rosto”. 154 PLATÃO, Protágoras, 329d. Tradução: Daniel R. N. Lopes. São Paulo: Editora Perspectiva, 2017, p. 439. 155 CENTRONE, 2015, p. 106-107. 156 Explicação da autora.
39
4.1 O modelo do ouro
Como já foi dito, a imagem do ouro é tal que não existe um modo de diferenciar o
todo de suas partes. Segundo, as partes apenas são discernidas quanto a seu tamanho e isso
apenas ocorre quando elas são separadas do ὅλον. Uma vez que Platão não sugere como isso
se daria, essa separação pode ser pensada como uma quebra da barra do ouro, em que se
obteria diversas partes, sendo que o ὅλον, que representa a unidade da virtude, deixaria de
existir. Ou seja, o todo, que representa essa unidade, só é possível na medida em que é uma
soma de suas partes iguais, cuja diferença para estas é, novamente, uma diferença de
grandeza.
Brickhouse e Smith consideram a analogia do ouro como aquela adequada à posição
de Sócrates ao longo do diálogo. Para eles, esta analogia sugere tanto que Sócrates estaria
pensando que as virtudes “se referem a uma mesma coisa”157, quanto que elas podem ser
pensadas como sendo distintas umas das outras. Outra passagem que justificaria esta
interpretação dos autores se encontra no passo 361b do Protágoras. Esta passagem toma o
conhecimento como o todo da Virtude, o que permite aos autores considerarem que, para
Sócrates, “todas as virtudes são partes de uma mesma coisa, o conhecimento”158.
Um outro fator para os autores escolherem esta analogia como a mais adequada diz
respeito a uma tentativa de compatibilizar o Protágoras com outras informações acerca das
virtudes que se encontram no Êutifron (11e-12e) e no Laques (197a), nesta ordem: i) “que
algumas partes são partes de outras e cada uma é parte do todo”159; e ii) “que as virtudes são
partes próprias do todo da virtude”160. Portanto, para eles:
A analogia indica que Sócrates pensa que as virtudes-nomes individuais
(individual virtue-names) se referem a uma mesma coisa e ainda podem ser
diferenciadas umas das outras. [Além disso, a analogia parece dar conta de
afirmar que] as virtudes são partes próprias umas das outras (...) e são partes
próprias da virtude como um todo.161
157 BRICKHOUSE, T. C.; SMITH, N. D. “Socrates and the Unity of the Virtues”. The Journal of Ethics. Vol.
1, No. 4 (1997) p. 319. 158 Ibid., p. 319. 159 Ibid., p. 318-319. 160 Ibid., p. 317-318. 161 Ibid., p. 319, 322, tradução nossa.
40
De modo a visualizar esta adequação entre a analogia do ouro e o conhecimento como
o todo da virtude, eles se utilizam de uma outra analogia para fazer esta ponte. De um lado,
existe algo que pode ser denominado “disciplina da triangulação”162 e, de outro lado, “as
aplicações especializadas”163 dessa disciplina, como a “navegação costeira e a inspeção”164.
Estas últimas não devem ser pensadas como sub-disciplinas da triangulação, mas como
“aplicações da triangulação a diferentes problemas em contextos distintos.”165 Disto resulta:
i) que os resultados diferentes são “alcançados pelas diferentes aplicações do mesmo
conhecimento”; e ii) “qualquer um que sabe sobre navegação sabe a respeito da inspeção”.166
Aplicando ao caso das virtudes, eles vão dizer que, “embora seja um e o mesmo
conhecimento que constitui duas virtudes, elas são, todavia, diferentes virtudes, se de fato
elas tem diferentes funções (ἔργα).”167 Então, as virtudes teriam funções diferentes, ainda
que produzidas, por assim dizer, pelo mesmo conhecimento. Ademais, suas distinções em
relação uma com as outras ocorreriam na medida em que são “aplicadas a uma gama de
problemas específicos, que produzem um tipo específico de ἔργον (função)”.168
Apesar dos autores oferecerem uma boa resolução para a relação mereológica da
unidade das virtudes, não fica claro como a analogia do ouro se encaixa nessa explicação.
Primeiro porque, de modo muito visível, a analogia alí proposta não se compromete em
estabelecer qualquer distinção no âmbito qualitativo das virtudes, como função, capacidade,
dentre outros. Portanto, nenhum outro critério, como função (ἔργον) específica, capacidade
(δύναμις) própria ou ações distintas, está sendo aludido por esta imagem.
Centrone observa que uma das razões pela qual este modelo do ouro se mostra
inadequado é porque “as partes da virtude são suscetíveis de definições diversas”169 e, além
disso,
Do ponto de vista da condição da alma do agente, o estado psíquico de quem
realiza sacrifícios e de quem enfrenta o inimigo em batalha é evidentemente
diferente: há um preciso πάθος correspondente a cada uma dessas virtudes,
162 BRICKHOUSE, T. C.; SMITH, N. D., 1997, p. 321. 163 BRICKHOUSE, T. C.; SMITH, N. D., 1997, p. 321. 164 BRICKHOUSE, T. C.; SMITH, N. D., 1997, p. 321. 165 BRICKHOUSE, T. C.; SMITH, N. D., 1997, p. 321. 166 BRICKHOUSE, T. C.; SMITH, N. D., 1997, p. 321. 167 BRICKHOUSE, T. C.; SMITH, N. D., 1997, p. 322. 168 BRICKHOUSE, T. C.; SMITH, N. D., 1997, p. 322. 169 CENTRONE, 2015, p. 111.
41
e o fato de em ambos os agentes estar presente a mesma ciência do bem e
do mal não comporta uma identidade indiferenciada. Se as virtudes são
apenas nomes de um idêntico estado de espírito, não haverá nenhuma
distinção possível entre coragem, santidade, etc. (CENTRONE, 2015, p.
111-112, nota 25.)
De fato, nesse sentido, a única distinção entre as partes do ouro seria no escopo de
atuação dimensional – e não funcional – de cada uma delas. Por exemplo, a justiça seria uma
virtude maior que a piedade no sentido em que a primeira abarcaria um número maior de
objetos (indivíduos) e situações do que a segunda. Não há, portanto, nenhuma distinção, seja
do significado delas, seja das distinções citadas acima. Além disso, tal analogia não parece
também coadunar com as afirmações do Êutifron ou do Laques, tal como os autores tentam
propor.
Outro ponto que parece tornar o modelo do ouro inadequado é o fato de que tal
representação da unidade implica que um indivíduo pode ter uma das partes sem as demais,
ou seja, ele não precisa da unidade para ser considerado virtuoso. Esse é justamente um dos
resultados que Sócrates irá combater ao longo do diálogo, o que depõe contra qualquer
concepção de unidade que leve a esta possibilidade de se obter parte da virtude, e não o todo.
Um dos motivos por trás da negação desta consequência e, portanto, deste tipo de composição
que leva a uma unidade, é que alguém poderia ser ao mesmo tempo, justo e ímpio, por
exemplo.
Analisando a relação envolvida nesta concepção de unidade a partir da analogia do
ouro, é possível observar que o todo, isto é, a unidade, é algo que depende das suas partes
para existir e não o contrário. Isto também não seguiria a diretriz proposta por Brickhouse e
Smith, pois, para eles, as virtudes individuais assim o são devido ao conhecimento do bem e
do mal, e não que este conhecimento, igualado a virtude, seja uma espécie de soma ou
dependente de suas partes.
Para finalizar, o modelo do ouro nos leva às seguintes conclusões: i) ele não
corresponderia à segunda alternativa da questão que o antecede em 329c-d – em que as várias
virtudes não passam apenas de nomes distintos para uma mesma coisa, isto é, a virtude. Esta
alternativa apresenta uma concepção de virtude que não se compromete com a relação parte-
todo, mas somente com a ideia de unidade como um único objeto, a virtude, recebendo
42
diferentes nomes; ii) O modelo do ouro, por sua vez, constitui um exemplo de relação entre
parte e todo. Porém tal relação pressupõe uma identidade entre o todo e suas partes, ou seja,
não admite nenhuma distinção de ordem qualitativa. O todo e suas partes apenas variam em
ordem de grandeza; iii) Sendo o todo e suas partes indistintos, com excessão do tamanho –
em que o todo é concebido como maior que suas partes – este modelo carrega em si a ideia
de que o todo pode ser considerado como simples resultado da soma de suas partes. Ele seria,
com isso, dependente de suas partes, e não o contrário; e, por fim, iv) o modelo do ouro dá a
possibilidade de um indivíduo possuir uma parte sem as demais. A única diferença seria em
se ter mais ou menos ouro.
Estes resultados, em especial o último deles, serão combatidos por Sócrates ao longo
de todo o diálogo. Isso mostra que a concepção de unidade suposta nos argumentos que
veremos mais adiante não vai na mesma direção aduzida por este modelo. É em decorrência
desses fatores que percebemos que Platão não está considerando tal analogia como aquela
mais apta a nos fazer entender algo acerca da natureza da virtude como unidade.
Nesse ponto, nossa hipótese segue um caminho que toma como ponto de partida o
modelo da face para a concepção da unidade da virtude. Segundo a posição de Centrone,
apesar do modelo da face ser o modelo que Protágoras selecionará mais a frente (329e), ele
surge como o mais adequado para explicar a natureza da virtude a partir do aspecto da
unidade. Ademais, como veremos, Protágoras, apesar de escolher o modelo mais adequado,
não irá se comprometer, de fato, com as implicações contidas nessa imagem para a unidade
das virtudes.
4.2 O modelo da face
A fim de demonstrar como o modelo da face se adequa à noção de unidade que parece
estar proposta no Protágoras, a continuação da análise pretende realçar as características e
os aspectos presentes neste modelo. Outrossim, será observado que esta analogia,
diferentemente da analogia do ouro, se harmoniza com outros diálogos, como o Laques e o
Mênon, mas, em especial, com o Parmênides. Este último diálogo possui um contexto
mereológico em que Platão apresenta noções de todo e parte compatíveis com o modelo da
43
face, servindo como meio de aprofundar e destacar as características presentes nesta
abordagem.
Deste modo, como descrito anteriormente, a face, identificada com o todo (ὅλον),
possui diferentes órgãos, que são suas partes. A relação é tal que o todo é distinto das suas
partes, bem como as partes são distintas entre elas mesmas. Assim sendo, algumas
características relevantes já podem ser esboçadas, a saber: i) o aspecto da distinção, em
oposição ao da identidade presente no modelo do ouro, que envolve tanto as partes com
relação ao ὅλον, quanto as partes entre elas mesmas; ii) a dependência das partes em relação
ao todo; iii) como consequência dessa relação de dependência, não é possível ter uma parte
sem as demais; e iv) a noção de unidade que é intuída a partir da imagem da face sugere um
todo orgânico, cujas relações internas permitem não somente a interação e a partilha entre
elas, como mantêm suas respectivas distinções.
Sendo assim, o modelo da face sugere uma imagem bem delimitada. Essa unidade
possui diferentes órgãos ou partes, formando um todo de estrutura complexa. O ὅλον,
portanto, é concebido como uma estrutura que reúne e é composta por diferentes μόρια. Estas,
por sua vez, apesar de distintas umas das outras e dotadas de δύναμις própria, isto é, uma
capacidade que as especifica, compartilham, de um certo modo, a mesma natureza dessa
unidade.
Nesse momento, para um melhor aproveitamento e aprofundamento deste modelo, é
necessário analisar como Platão pode conceber esta relação entre o todo e suas partes, cujas
opções já foram aqui levantadas: i) como identidade entre todo e partes; ii) como total
distinção entre o todo e as partes; iii) como distinção entre o todo e as partes que, ao mesmo
tempo, mantenha entre ele algo em comum que os unifica. Estas questões, que podem ser
levantadas diretamente do Protágoras são tratadas claramente por Platão em passagens do
Parmênides que analisaremos a seguir.
4.3 Platão e a noção de ὅλον.
Pelo fato de não haver um desenvolvimento linear e aprofundado sobre a relação entre
todo e partes no Protágoras, a presente análise se estende a outros diálogos com a finalidade
de melhor compreender a questão a partir do modo como ela aparece dentro do pensamento
44
platônico. Partindo desses primeiros resultados obtidos a partir do modelo da face, ou seja,
de um ὅλον composto de um determinado modo e bem ordenado – em contraposição a
imagem sugerida da barra de ouro cujas partes não são distintas, e cuja unidade pode ser um
simples resultado de uma soma das partes – Verity Harte, em sua obra “Plato on Parts and
Wholes: The Metaphysics of Structure”170, nos oferece uma abordagem aprofundada sobre o
tema da relação entre ὅλον e partes, sobretudo a partir do Parmênides 171.
Por ela estar comprometida com a temática da mereologia em Platão, e não do uso
desta como explicação de uma questão ou aspecto específico de um diálogo, a presente
proposta acerca do tema da mereologia diverge da autora quanto ao objetivo, mas não quanto
aos argumentos. Assim sendo, a análise de Harte oferece a possibilidade de ampliar a
percepção e a compreensão de como Platão pensa a relação entre todo e partes.
Consequentemente, esta análise tem como objetivo fundamentar a hipótese que, a nosso ver,
perpassa as entrelinhas da discussão acerca da unidade das virtudes no Protágoras.
Seguindo o raciocínio de Harte, o Parmênides apresenta algumas passagens-chave
sobre o modo como Platão desenvolve os conceitos de ὅλον e μόριον, bem como a relação
entre eles. Em resumo, o contexto deste diálogo é dado pela discussão sobre o um e o
múltiplo, cuja descrição pode ser formulada nos seguintes termos: como é que alguma coisa
pode ser ao mesmo tempo um (ἕν) e muitos (πολλά)172? A tentativa de Sócrates para a
resolução da questão é feita do seguinte modo: quando Sócrates é considerado como alguém
que possui um lado esquerdo, e um direito, uma frente e uma parte de trás, ele pode ser
considerado como algo múltiplo devido à sua participação na quantidade. E, de outro modo,
quando considerado em sua totalidade, ele será um quando comparado com outros
indivíduos, por participar da forma do um (ἕν)173. Assim Sócrates conclui:
ἐὰν οὖν τις τοιαῦτα ἐπιχειρῇ πολλὰ καὶ ἓν ταὐτὸν ἀποφαίνειν, λίθους καὶ
ξύλα καὶ τὰ τοιαῦτα, τὶ φήσομεν αὐτὸν πολλὰ καὶ ἓν ἀποδεικνύναι, οὐ τὸ
ἓν πολλὰ οὐδὲ τὰ πολλὰ ἕν, οὐδέ τι θαυμαστὸν λέγειν, ἀλλ᾽ ἅπερ ἂν πάντες
ὁμολογοῖμεν:
170 HARTE, Verity. Parte e todo em Platão: A metafísica da estrutura. Tradução: L. M. Fontes. São Paulo:
Annablume clássica, 2015. 171 A análise de Harte se estende também aos diálogos Teeteto, Sofista, Filebo e Timeu. Porém, por questões de
maior proximidade com nosso trabalho, vamos nos ater somente às conclusões que ela retira do Parmênides. 172 PLATÃO, Parmênides, 128d-129e. 173 PLATÃO, Parmênides, 129c-d.
45
Se então alguém tentar mostrar que coisas desse tipo são simultaneamente
um e múltiplas – pedras, pedaços de madeira e coisas tais – diremos que ele
demonstra que algo é múltiplas coisas e um, não que um é múltiplas coisas,
nem que o múltiplo é um, e que não diz nada de espantoso, mas coisas com
que todos concordaríamos. 174
Sócrates parte dessa afirmação para ressaltar que espantoso não é dizer que algo pode
ser ao mesmo tempo um e múltiplo, mas, sim, afirmar que as coisas em si mesmas, neste
caso, as formas, seriam também o seu contrário, como por exemplo, afirmar que o um
também é múltiplo e vice-versa. E é exatamente neste momento que Parmênides chega para
levantar um dilema para a hipótese metafísica de Sócrates.
Verity Harte destaca alguns pressupostos presentes na resposta de Sócrates a Zenão
que irão levar ao dilema que será posto por Parmênides. Ligado ao contexto do um e do
múltiplo – uma temática presente nos textos de Zenão e, principalmente, Parmênides, as duas
outras personagens deste diálogo – pode-se observar que, quando Sócrates diz ter partes –
lado esquerdo, lado direito – ele automaticamente relaciona esse fator à participação na
quantidade. Harte observa que essa “é a primeira ocorrência de que partes pluralizam175”, ou
seja, a noção de partes está atrelada à ideia de que, se algo possui partes, esse algo é múltiplo.
A segunda observação de Harte é que existe na fala de Sócrates uma certa suposição
inicial subjacente, a saber, a identificação do todo com suas partes. Tal identificação gera o
problema da composição por identidade, em que o todo termina por ser identificado como
uma coleção de partes, e não como um indivíduo propriamente dito176. E se o todo, por
exemplo, Sócrates, acaba por ser identificado com suas partes, surge uma dificuldade para se
pensar o todo como unidade.
Uma terceira observação é o modo como Sócrates irá caracterizar o um: ele não
admite o seu oposto, isto é, não admite a multiplicidade. Nesse sentido, a noção de unidade
aqui se assemelha à noção eleata em que uma unidade não tem partes – uma unidade no
sentido em que “o um exclui a pluralidade e, portanto, é atômico”177.
174 Platão, Parmênides, 129d. Tradução: Maura Iglésias e Fernando Rodrigues. São Paulo: Edições Loyola
2008, p. 29. 175 HARTE, 2015, p. 102. 176 HARTE, 2015, p. 58-60. 177 HARTE, 2015, p. 129.
46
Todavia, Harte destaca que o “pressuposto adicional”178 nas entrelinhas da
argumentação, de que o todo é identificado com suas partes, terá “um efeito direto sobre os
termos”179 da solução metafísica dada por Sócrates no contexto do diálogo, “particularmente,
em sua concepção da forma do um”180. Esse “efeito direto” é o que leva diretamente ao
dilema proposto por Parmênides à teoria das formas de Sócrates. Especificamente nos passos
130a-131e, Parmênides traça o dilema, tal como se nota nas seguintes passagens:
(A)
- οὐκοῦν ἤτοι ὅλου τοῦ εἴδους ἢ μέρους ἕκαστον τὸ μεταλαμβάνον
μεταλαμβάνει; ἢ ἄλλη τις ἂν μετάληψις χωρὶς τούτων γένοιτο;
- καὶ πῶς ἄν; εἶπεν.
- πότερον οὖν δοκεῖ σοι ὅλον τὸ εἶδος ἐν ἑκάστῳ εἶναι τῶν πολλῶν ἓν ὄν, ἢ
πῶς;
- τί γὰρ κωλύει, φάναι τὸν Σωκράτη, ὦ Παρμενίδη, ἓν εἶναι;
- ἓν ἄρα ὂν καὶ ταὐτὸν ἐν πολλοῖς καὶ χωρὶς οὖσιν ὅλον ἅμα ἐνέσται, καὶ
οὕτως αὐτὸ αὑτοῦ χωρὶς ἂν εἴη.
- Não é verdade que cada uma das coisas que tem participação
ou bem tem participação na forma inteira, ou bem em uma parte
dela? Ou haveria uma outra participação além dessas?
- Como poderia? disse ele.
- Então, parece-te que a forma inteira, sendo uma, está em cada
uma das múltiplas coisas? Ou como seria?
- Mas o que impede, Parmênides, disse Sócrates, que ela esteja?
Então, sendo uma e a mesma, estará inteira, simultaneamente,
em coisas que são múltiplas e separadas, e, assim, ela estaria
separada de si mesma.181
(B)
- ἦ οὖν ὅλον ἐφ᾽ ἑκάστῳ τὸ ἱστίον εἴη ἄν, ἢ μέρος αὐτοῦ ἄλλο ἐπ᾽ ἄλλῳ;
- μέρος.
- μεριστὰ ἄρα, φάναι, ὦ Σώκρατες, ἔστιν αὐτὰ τὰ εἴδη, καὶ τὰ μετέχοντα
αὐτῶν μέρους ἂν μετέχοι, καὶ οὐκέτι ἐν ἑκάστῳ ὅλον, ἀλλὰ μέρος ἑκάστου
ἂν εἴη.
- φαίνεται οὕτω γε.
- ἦ οὖν ἐθελήσεις, ὦ Σώκρατες, φάναι τὸ ἓν εἶδος ἡμῖν τῇ ἀληθείᾳ
μερίζεσθαι, καὶ ἔτι ἓν ἔσται;
- Será então que a vela inteira estaria sobre cada um, ou uma
parte dela sobre um, outra sobre outro?
- Uma parte.
- Logo, Sócrates, disse ele, são divisíveis as formas mesmas,
178 HARTE, 2015, 114. 179 HARTE, 2015, 114. 180 HARTE, 2015, 114. 181 PLATÃO, Parmênides, 131a-b. Tradução: Maura Iglésias e Fernando Rodrigues. São Paulo: Edições
Loyola, 2008, p. 33, grifo nosso.
47
e as coisas que delas participam participariam de uma de suas
partes, e não é mais o todo que estaria em cada uma das coisas,
mas, sim, uma parte caberia a cada coisa.
- Parece pelo menos que é assim.
- Será então, Sócrates, que estarás disposto a dizer que a forma,
uma, em verdade, se nos divide e ainda será uma?182
Como destacado nas passagens acima, essa nova dinâmica do diálogo insere de modo
mais claro e patente as noções de parte e todo, as quais, até então, estavam subentendidas no
discurso de Sócrates. O que Parmênides faz, ao trazer o tema mereológico do todo e suas
partes para a superfície do diálogo, é demonstrar não só aquilo que já estava latente no
discurso de Sócrates, mas, de modo mais pontual, a necessidade de esclarecimento acerca do
que ele, Sócrates, quer dizer ao declarar que a forma do um não contém partes.
Em vista disso, o dilema, tal como destacado nas passagens acima, pode ser lido nos
seguintes termos: uma coisa particular, ao participar da forma do um, participa do todo ou
apenas de uma parte desta forma? Ambas as alternativas presentes na questão trazem
objeções às formas. Sendo o primeiro caso (i), em que os particulares participam do todo da
forma do um, a forma pode ser tomada como separada dela mesma, estando presente em cada
particular que dela participa; por outro lado, no segundo caso (ii), se o particular participa de
uma parte da forma do um, poder-se-á supor que a forma é constituída de partes, sendo então
múltipla e não una.
O grande problema que Parmênides aqui explora a partir dos pressupostos da hipótese
das formas de Sócrates é pensar como, dadas essas condições, alguém pode supor que o todo,
identificado com a forma um, é uma unidade, já que este todo se identifica com suas partes.
Esta identificação entre o todo e as partes é denominada por Harte como “composição por
identidade”183, algo que também pode ser observado no Protágoras com o modelo da barra
do ouro. Por oposição a esse modelo Platão propõe um novo modo para conceber as noções
de parte e todo, bem como as suas relações no Parmênides. Essa mudança na perspectiva
mereológica encontra-se a partir do passo 146b:
182 PLATÃO, Parmênides, 131c. Tradução: Maura Iglésias e Fernando Rodrigues. São Paulo: Edições Loyola
2008, p. 35, grifo nosso. 183 HARTE, Verity. Plato on Parts and Wholes: The Metaphysics of Structure. New York: Oxford University
Press, 2002, p. 74.
48
πᾶν που πρὸς ἅπαν ὧδε ἔχει, ἢ ταὐτόν ἐστιν ἢ ἕτερον: ἢ ἐὰν μὴ ταὐτὸν ᾖ
μηδ᾽ ἕτερον, μέρος ἂν εἴη τούτου πρὸς ὃ οὕτως ἔχει, ἢ ὡς πρὸς μέρος ὅλον
ἂν εἴη.
Toda coisa é, com relação a toda coisa, penso, da seguinte maneira: ou é a
mesma, ou é diferente; e, se não for a mesma nem diferente, ou bem será
uma parte dessa coisa em relação à qual é assim [sc.nem a mesma nem
diferente], ou bem será como um todo em relação a uma coisa que seria
parte <dessa>184.
Nessa passagem, Parmênides coloca quatro possibilidades relacionais, descritas por
Harte do seguinte modo: “I) a é o mesmo que b; II) a é outro que não b; III) a é parte de b;
IV) a é um todo de que b é parte”185. Até aqui, a opção três estava sendo explorada a partir
da noção de que o todo é identificado com as suas partes. Com o início dessa nova perspectiva
proposta por Platão, Parmênides explorará a quarta opção que acarretará em um novo
entendimento da relação parte-todo. Sendo assim, em 157c, Parmênides vai dizer:
ἀλλὰ μὴν τό γε ὅλον ἓν ἐκ πολλῶν ἀνάγκη εἶναι, οὗ ἔσται μόρια τὰ μόρια:
ἕκαστον γὰρ τῶν μορίων οὐ πολλῶν μόριον χρὴ εἶναι, ἀλλὰ ὅλου.
Entretanto, é necessário que o todo seja um formado de uma multiplicidade
de coisas, e desse um as partes serão partes. Pois, cada parte, é necessário
que seja parte não de uma multiplicidade, mas de um todo.186
Desse momento em diante, a quarta noção de que existe algo que é o todo do qual x
faz parte é reconstruída por Platão a partir de um princípio que não mais envolve um
comprometimento com uma composição por identidade, mas com algo que Harte irá chamar
de composição restrita187. Por ‘composição restrita’, ela entende uma composição que não
admite a identificação entre parte e todo, e nem entre as partes elas mesmas, e supõe o todo
como uma estrutura que unifica essas partes, garantindo ao todo sua unidade.
Portanto, nessa passagem 157c, Parmênides explica o modo como algo pode ser
entendido como sendo um. Esse modo diz que, a partir do momento em que o todo não é
identificado com suas partes, as partes não tornam esse todo múltiplo, mas se encontram no
184 PLATÃO, Parmênides, 146b. Tradução: Maura Iglésias e Fernando Rodrigues. São Paulo: Edições Loyola,
2008, p.77. 185 HARTE, 2015, p. 201. 186 PLATÃO, Parmênides, 157c. Tradução: Maura Iglésias e Fernando Rodrigues. São Paulo: Edições Loyola,
2008, p. 107. 187 HARTE, 2002, p. 157.
49
todo formando uma única e não muitas coisas. A ideia que está presente nessa passagem é a
de que ser parte depende de ser parte de um todo, e não independentemente deste.
Segundo Harte, o entendimento de Platão nessa passagem é o de que “o todo é
composto de muitos, mas não é identificado com estes muitos que o compõem (...), ele é
gerado [como sendo] um e completo”188. A noção de “completude”, de acordo com Harte,
está ligada à ideia de um todo a que nenhuma parte falta. Entretanto, o todo, completo em
todas as suas partes, não é, ao mesmo tempo, um e muitos, mas uma única coisa. Nesse
sentido, Platão estabelece um outro entendimento para a relação entre todo e partes, segundo
o qual é possível tratar o ὅλον como ἕν quando assumimos que o todo é diferente de suas
partes, bem como as partes entre elas mesmas. Assim, enquanto a identificação entre o todo
e suas partes resultar em assumir, dentre outras consequências, que o todo é um e múltiplo
ao mesmo tempo, semelhante às diretrizes do modelo do ouro, a segunda concepção
mereológica traz um novo modo de intuir a unidade e que se adequa ao modelo da face.
4.4 O modelo da face como uma estrutura ἕν-ὅλον
A fim de saber se a composição restrita proposta por Platão no Parmênides aplica-se
à analogia da face à unidade da virtude, é necessário saber em que medida as intuições e
deduções nelas envolvidas se correspondem. A primeira observação é a de que a face e os
seus órgãos de fato correspondem àquela relação entre todo e partes que não envolve uma
identificação entre estes componentes. Ademais, o tipo de composição envolvida nesse
modelo sugere ordenamento e regras, segundo os quais as partes não podem ocupar qualquer
lugar da face: por exemplo, os olhos não podem ocupar o lugar da boca. Podemos observar
que a face, como ὅλον, oferece um tipo de estrutura com determinações específicas,
nomeadas como a δύναμις de cada parte, isto é, uma certa capacidade que é desempenhada
pela parte, que lhe é própria e que designa a função dessa parte em relação ao todo.
Aplicando este modelo à unidade da virtude, Centrone irá dizer que:
Platão pensou a unidade da virtude em termos de um ὅλον, ou melhor, de
ἕν-ὅλον, isto é, de uma totalidade orgânica e unitária, articulada em partes
distintas e diferente da simples soma ou justaposição de tais partes.189
188 HARTE, 2002, p. 131. 189 CENTRONE, 2015, p. 103.
50
Assim, a face pode ser pensada como um tipo de estrutura unitária que fornece uma
capacidade (δύναμις) específica para cada parte. Essas partes, por sua vez, irão ocupar uma
posição determinada nesta estrutura, que se pode também chamar de virtude ἕν-ὅλον, como
o faz Centrone. A virtude, reconhecida e denominada desse modo, tem a sua natureza assim
definida: o todo (ὅλον) não funciona tal como a proposta da barra de ouro, mas passa a ser
compreendido como uma estrutura unitária, que dispõe de funções identificadas pelo
desempenho de capacidades específicas.
Em relação às partes representadas pelos órgãos da face, infere-se que um dos
aspectos principais que envolve a noção de partes é, como já expressado, o elemento de
distinção. Esta distinção entre as partes e o todo e das partes entre elas mesmas, é o que
possibilita a saída do dilema do um e do múltiplo que leva a unidade a ser considerada como
uma e múltipla ao mesmo tempo, gerando uma contradição. É exatamente nessa direção que
os órgãos da face apontam: partes que em nada se identificam, nem quanto aos seus formatos,
nem com respeito a suas funções e capacidades especificas, ou ainda, a objetos visados por
cada uma. O que elas possuem em comum, e que analisaremos mais à frente no capítulo 7, é
uma certa natureza que permite que, por exemplo, esses órgãos façam parte dessa estrutura
específica e não de outra, em que tal natureza não é intrinsíca a elas mesmas, mas é partilhada
pela unidade.
Pode-se objetar que a boca, o nariz, os ouvidos e os olhos possam ser pensados fora
da face. John Cooper, ao se posicionar em favor de uma leitura que identifica as virtudes
entre si, diz que não faz sentido tomar o modelo da face como a escolha correta. Isso porque,
segundo ele:
Se as virtudes diferem uma das outras em uma constituição interna e no
comportamento que as expressa, o que poderia causar qualquer co-
instanciação necessária? [E ainda] A diferença entre Sócrates e Protágoras
acerca da co-instanciação segue-se de suas diferenças a respeito da unidade
da virtude.190
O que Cooper faz – e que lembra a própria posição de Protágoras ao longo do diálogo
– é tomar este elemento de distinção como suficiente para dizer que esse modelo não leva à
190 COOPER, 1999, p. 83, tradução nossa.
51
co-implicação das virtudes e, por isso, não é possível considerar tal modelo como o mais
adequado.
Tal interpretação, contudo, não parece levar em conta a noção de todo e partes, logo,
de unidade, com que a analogia se compromete. Uma das objeções que se pode fazer é
justamente que a concepção de unidade proposta pelo modelo da face não admite a não co-
implicação entre as partes. Por esse modelo, é evidente que um órgão fora da face perde a
sua natureza específica, não podendo mais ser considerado como tal. Do mesmo mesmo, as
virtudes, fora dessa estutura unitária, deixam de ser virtudes. Isso porque, assim como os
órgãos, as partes de um todo são dependentes desse todo, e não o contrário. Com isso, o
modelo da face leva a uma concepção de unidade onde, necessariamente, as virtudes estão
co-implicadas. A virtude como ἕν-ὅλον não se divide em partes, nem é uma soma de suas
partes. Ao contrário, os objetos que dela participam se tornam partes enquanto estão na
configuração desse todo.
Em resumo ao que foi dito até aqui, os modelos propostos por Sócrates trazem em si
duas concepções distintas sobre o que seriam o todo e as partes e, consequentemente, a
relação que existe entre eles. De acordo com uma análise do conceito de ὅλον mencionado
no Parmênides, Platão parece considerar problemática a identificação entre o todo e a parte,
uma vez que, dentre outras coisas, tal identificação leva não à unidade mas à pluralidade do
todo. Por essa perspectiva, o ὅλον é um tipo de unidade e as suas partes são diferentes tipos
que interagem e compõem de um certo modo essa estrutura unitária.
Essa concepção de ὅλον se adequa ao que o modelo da face representa, dando conta
de diversos aspectos da unidade da virtude. A questão acerca da natureza da virtude é
colocada de um modo semelhante ao Protágoras em uma passagem das Leis ( Livro XII,
965d-e). Destaca-se a versão de Centrone, que segue a tradução de Zadro:
τοῦτο, ὦ φίλοι, εἰ μὲν βουλόμεθα, τὰ νῦν οἷόνπερ σφόδρα πιέσαντες μὴ
ἀνῶμεν, πρὶν ἂν ἱκανῶς εἴπωμεν τί ποτ᾽ ἔστιν εἰς ὃ βλεπτέον, εἴτε ὡς ἓν εἴτε
ὡς ὅλον εἴτε ἀμφότερα εἴτε ὅπως ποτὲ πέφυκεν: ἢ τούτου διαφυγόντος
ἡμᾶς, οἰόμεθά ποτε ἡμῖν ἱκανῶς ἕξειν τὰ πρὸς ἀρετήν, περὶ ἧς οὔτ᾽ εἰ πολλά
ἐστ᾽ οὔτ᾽ εἰ τέτταρα οὔθ᾽ ὡς ἓν δυνατοὶ φράζειν ἐσόμεθα;
Esta coisa, amigos, se a quisermos, agora devemos mantê-la bem firme e
não a largaremos antes de ter definido suficientemente o que é isto que é
preciso olhar, quer deva ser considerado como uno, quer um todo, quer uma
e outra coisa, quer ainda qualquer outra natureza. Ou então, [e] se isso nos
escapa, pensamos nunca saber o bastante sobre a virtude, da qual não
52
saberíamos dizer nem se é muitas coisas, nem se quatro, nem se deve ser
pensada como uma?191
Apesar de Platão não responder a essa questão nas Leis, Centrone considera que a
resposta que se segue tem a ver com a terceira via proposta nesse diálogo, e que consiste em
pensar a virtude como um ἕν-ὅλον. A importância dessa observação se faz ao notar que a
concepção da virtude em termos de um ἕν-ὅλον é um tema presente em Platão e que o diálogo
Protágoras oferece um bom caminho para o tratamento e reflexões acerca desta temática.
Por conseguinte, a passagem nas Leis mostra como é possível, dentro do contexto platônico,
pensar a unidade das virtudes no Protágoras a partir da noção de composição restrita que
Platão desenvolve no Parmênides: essa ponte é feita pelo modelo da face.
4.5 A contradição de Protágoras e a inserção da σοφία como parte da virtude
Após a apresentação das analogias, Sócrates indaga Protágoras sobre qual das duas
imagens melhor representa a concepção da virtude como unidade. E Protágoras escolhe o
modelo da face (Prot. 329d-e). Na sequência, Sócrates aprofunda a investigação com as
seguintes questões:
Σ. πότερον οὖν, ἦν δ᾽ ἐγώ, καὶ μεταλαμβάνουσιν οἱ ἄνθρωποι τούτων τῶν
τῆς ἀρετῆς μορίων οἱ μὲν ἄλλο, οἱ δὲ ἄλλο, ἢ ἀνάγκη, ἐάνπερ τις ἓν λάβῃ,
ἅπαντα ἔχειν;
Π. οὐδαμῶς, ἔφη, ἐπεὶ πολλοὶ ἀνδρεῖοί εἰσιν, ἄδικοι δέ, καὶ δίκαιοι αὖ,
σοφοὶ δὲ οὔ.
Σ. ἔστιν γὰρ οὖν καὶ ταῦτα μόρια τῆς ἀρετῆς, ἔφην ἐγώ, σοφία τε καὶ
ἀνδρεία;
Π. πάντων μάλιστα δήπου, ἔφη: καὶ μέγιστόν γε ἡ σοφία τῶν μορίων.
Σ. ἕκαστον δὲ αὐτῶν ἐστιν, ἦν δ᾽ ἐγώ, ἄλλο, τὸ δὲ ἄλλο;
Π. ναί.
Σ. ἦ καὶ δύναμιν αὐτῶν ἕκαστον ἰδίαν ἔχει; ὥσπερ τὰ τοῦ προσώπου, οὐκ
ἔστιν ὀφθαλμὸς οἷον τὰ ὦτα, οὐδ᾽ ἡ δύναμις αὐτοῦ ἡ αὐτή: οὐδὲ τῶν ἄλλων
οὐδέν ἐστιν οἷον τὸ ἕτερον οὔτε κατὰ τὴν δύναμιν οὔτε κατὰ τὰ ἄλλα: ἆρ᾽
οὖν οὕτω καὶ τὰ τῆς ἀρετῆς μόρια οὐκ ἔστιν τὸ ἕτερον οἷον τὸ ἕτερον, οὔτε
αὐτὸ οὔτε ἡ δύναμις αὐτοῦ; ἢ δῆλα δὴ ὅτι οὕτως ἔχει, εἴπερ τῷ
παραδείγματί γε ἔοικε;
Π. ἀλλ᾽ οὕτως, ἔφη, ἔχει, ὦ Σώκρατες.
S. Há homens, então – disse eu –, que participam (μεταλαμβάνουσιν) de
certas partes (μορίων) da virtude, enquanto outros homens participam de
191 CENTRONE, 2015, p. 104.
53
outras, ou é necessário que, se alguém vier a adquirir uma, ele possua todas
elas?
P. De forma alguma – respondeu ele –, visto que há inúmeros homens
corajosos (ἀνδρεῖοί) que são injustos (ἄδικοι), e homens justos (δίκαιοι),
por sua vez, que não são sábios (σοφοὶ).
S. Então, também são partes da virtude sabedoria (σοφία) e coragem
(ἀνδρεία)? – perguntei.
P. Sim, absolutamente – disse ele. – E a sabedoria (σοφία) é a parte
principal.
S. E cada uma delas – disse eu – se difere da outra?
P. Sim.
S. Porventura, cada uma delas possui uma capacidade (δύναμις) particular?
Em relação às partes do rosto, por exemplo, os olhos não são como as
orelhas, tampouco possuem a mesma capacidade (δύναμις); nenhuma delas
é como a outra, nem quanto à capacidade (δύναμις), nem quanto ao restante.
Da mesma forma, também as partes da virtude (τὰ τῆς ἀρετῆς μόρια) não
são uma como a outra, nem em si mesmas nem quanto à sua capacidade,
não é? Evidentemente esse é o caso, se a similitude com o exemplo procede.
P. Mas é esse o caso, Sócrates – disse ele.192
Esta passagem traz novos elementos para a discussão do tema da unidade das
virtudes, em especial o de saber se, de fato, Protágoras possui conhecimento acerca deste
assunto. Como visto na sessão anterior, o modelo da face é aquele cuja reflexão resulta em
uma unidade implicando a inseparabilidade das virtudes. No entanto, a resposta de Protágoras
traz consequências surpreendentes porque ele não só direciona para uma conclusão que não
decorre da analogia da face, como introduz: i) duas novas virtudes, em que uma delas, a
sabedoria, será coloca em questão nas próximas abordagens; e ii) a admissão de que é
possível que um indivíduo seja, por exemplo, injusto e pio ao mesmo tempo.
Neste ponto da análise pode-se levantar a seguinte objeção contra a defesa do modelo
da face como o modelo platônico para a unidade: se o modelo do rosto é o adequado e se ele
implica inseparabilidade, por que Sócrates pergunta, na sequência, se alguém pode ter uma
parte das virtudes sem as demais?
O início da resposta à objeção acima tem um caráter mais simples e intuitivo. Como
vimos, um dos principais intuitos de Sócrates consiste em averiguar se Protágoras de fato,
possui um conhecimento autêntico acerca da unidade das virtudes, ou se consiste apenas em
uma aparência de saber. Pois, do fato de Protágoras ter escolhido o modelo adequado, não
significa que ele sabe algo a respeito. À semelhança de um candidato que acerta uma questão
objetiva, o examinador não pode garantir que aquele acertou a resposta devido a seu
192 PLATÃO, Protágoras, 329e-330b. Tradução: Daniel R. N. Lopes. São Paulo: Editora Perspectiva, 2017, p.
439-441.
54
conhecimento da questão – pois o candidato pode ter acertado por sorte. O examinador só
terá a certeza se tiver a oportunidade de o interrogar. O mesmo ocorre com Protágoras e
Sócrates. Sócrates só pode mostrar aos seus ouvintes se Protágoras conhece, ou não, apenas
aprofundando a questão, pois acertar na escolha do modelo adequado por si só não constitui
indício de conhecimento.
A continuação da resposta é sustentada pelo próprio diálogo, tomando as duas
passagens a seguir:
(I)
ὅσα δὲ ἐξ ἐπιμελείας καὶ ἀσκήσεως καὶ διδαχῆς οἴονται γίγνεσθαι ἀγαθὰ
ἀνθρώποις, ἐάν τις ταῦτα μὴ ἔχῃ, ἀλλὰ τἀναντία τούτων κακά, ἐπὶ τούτοις
που οἵ τε θυμοὶ γίγνονται καὶ αἱ κολάσεις καὶ αἱ νουθετήσεις. ὧν ἐστιν ἓν
καὶ ἡ ἀδικία καὶ ἡ ἀσέβεια καὶ συλλήβδην πᾶν τὸ ἐναντίον τῆς πολιτικῆς
ἀρετῆς:
Todavia, em relação aos bens que eles presumem advir aos homens pelo
empenho, exercício e ensino, se alguém possuir os males que lhes são
contrários, é nessas circunstâncias que ocorrem as exasperações, as
punições e as admoestações. Dentre esses males, um é a injustiça e a
impiedade e, em suma, tudo o que é contrário à virtude política.193
(II)
εἰ μὲν γὰρ ἔστιν, καὶ τοῦτό ἐστιν τὸ ἓν οὐ τεκτονικὴ οὐδὲ χαλκεία οὐδὲ
κεραμεία ἀλλὰ δικαιοσύνη καὶ σωφροσύνη καὶ τὸ ὅσιον εἶναι, καὶ
συλλήβδην ἓν αὐτὸ προσαγορεύω εἶναι ἀνδρὸς ἀρετήν.
Pois, se há essa única coisa e ela não é a arte do carpinteiro, do ferreiro ou
do ceramista, mas justiça, sensatez e ser pio – em suma, uma única coisa
que eu chamo precisamente de virtude do homem.194
Ambas as passagens constituem a fala de Protágoras que antecede a questão da
unidade colocada por Sócrates em 329c. Por isto, é importante observar como o termo ‘ἓν’,
que designa ‘unidade’ aparece na fala de Protágoras. Na primeira passagem, nota-se que
Protágoras emprega ‘ἓν’ (unidade) com referência ao conjunto de coisas contrárias à virtude,
tais como a injustiça e a impiedade. Na segunda passagem, o mesmo termo é usado para
indicar elementos que, em conjunto, podem ser denominados virtude. Protágoras, já nessas
193 PLATÃO, Protágoras, 323d-324a. Tradução: Daniel R. N. Lopes. São Paulo: Editora Perspectiva 2017, p.
423, 425. 194 Ibid., p. 427.
55
passagens, dá a entender que a unidade é uma espécie de resultado de uma soma de vários
elementos distintos postos em um mesmo conjunto.
De acordo com Da Silva195, Protágoras possui uma concepção de “unidade empírica”
da virtude. Pensando na questão do ensino abordada na abertura do diálogo, começando pela
educação infantil e passando por vários estágios até a vida adulta, o indivíduo, nesse processo
de aprendizagem, teria “ao final, todas as virtudes (...) incorporadas.”196 Ou seja, as virtudes
não são adquiridas como uma unidade, mas suas partes, ao longo do tempo, vão sendo
incorporadas ao indivíduo, o que permite afirmar que este, por não possuir todas, pode, sim,
ao mesmo tempo, ser injusto e piedoso. Ainda segundo o autor, para Protágoras:
A unidade das virtudes deve consistir na possibilidade de que seus
elementos não necessitem de qualquer relação pré-estabelecida para
garantir esta unidade. (...) A unidade aqui é entendida como um todo de
partes completamente distintas sem nenhuma interrelação entre essas
partes.197
Pode-se agora entender com mais clareza por que Sócrates pergunta a Protágoras se
é possível alguém ter uma parte das virtudes sem as demais. Sócrates está contrapondo a
escolha atual de Protágoras pelo modelo da face com a latente concepção dada por ele
naquelas duas passagens anteriores a 329c, e que Sócrates não deixa passar despercebido.
Indagar acerca da escolha de Protágoras pelo modelo da face não constitui uma objeção a
esta analogia, mas ao próprio Protágoras, com a finalidade de demonstrar que ele, de fato,
apenas possui uma aparência de conhecimento acerca do tema da unidade.
Existem ao menos mais duas objeções a esta leitura. Uma é a atribuição da tese da
identidade a Sócrates. De acordo com Centrone198, a dificuldade reside no fato de que
Sócrates coloca a virtude como unidade, o que faz com que outros intérpretes tenham
dificuldades em pensar que a virtude possui partes. Porém, a impossibilidade de compreender
a virtude como um todo unitário ocorre quando se afirma que o todo é idêntico às suas partes,
o que faria o todo, ao mesmo tempo, um e múltiplo. Mas, quando o todo não está identificado
195 DA SILVA, José Wilson. A unidade das virtudes nos diálogos socráticos: uma questão de método. São
Paulo: Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Univerdade de São
Paulo, 2006, p.18-20. 196 Ibid., p. 18. 197 Ibid., p. 19. 198 CENTRONE, 2015, p. 108-109.
56
com suas partes, a unidade do todo passa a ser preservada, bem como a relação dessa unidade
com as suas distintas partes.
Uma segunda objeção ao modelo da face seria a de que quando Sócrates argumenta
a favor da semelhança ou identidade em relação às partes, ele estaria propondo uma
identidade e não uma distinção entre as partes. Isso contaria ou como algo que se segue do
modelo do ouro ou como a tese da identidade. A presente hipótese interpreta que essa
semelhança que Sócrates reivindica não conta a favor da tese da identidade ou da imagem do
ouro, mas, sim, a favor da natureza da virtude como unidade que transmite para as partes
aspectos em comum, justamente por estas participarem e adquirirem a natureza de poder
serem consideradas virtude.
De fato, olhando novamente para a passagem em 329e-330b, após Protágoras dizer
que um indivíduo pode ter uma parte das virtudes sem as demais, Sócrates, na sequência,
retoma o modelo da face para enfatizar os aspectos que tal imagem revela sobre a virtude: i)
que cada uma possui sua própria δύναμις (capacidade), ii) que cada uma é diferente em
relação à outra e, iii) portanto, são diferentes entre si e diferentes quanto à sua δύναμις
específica. Protágoras aceita que assim seja, porém, o que ele deveria mencionar – e é o que
está em jogo desde a abertura da questão em 329c-d – é que, apesar dessas distinções entre
elas, elas compartilham algo em comum, ou seja, ele deveria fazer o que Sócrates fará nos
próximos argumentos que é focar no todo, isto é, na unidade, representada por esta estrutura
da face.
Isso porque o que estas partes compartilham é o fato de que todas possuem a mesma
natureza, a de ser uma virtude, assim como cada órgão da face é um órgão da face. Portanto,
o que Protágoras ignora, intencionalmente ou não, é a face, isto é, a própria estrututa unitária
que corresponde à natureza da virtude como todo. Possuir a mesma natureza não só resulta
da interação e interrelação com o todo, isto é, da virtude pensada como unidade, mas da
interação umas com as outras dentro dessa estrutura unitária, assim como o nariz interage
com a boca, os olhos com os ouvidos, e assim por diante.
O que queremos sugerir neste momento é que, quando Sócrates recoloca o modelo da
face na sequência da resposta de Protágoras, ele o faz com o propósito de contrapor o dizer
de Protágoras de que se pode ter uma parte independentemente do todo com o modelo que
ele mesmo, Protágoras, escolhera. Em suma, o modelo da face garante o contrário, a saber,
57
que só é possível ter a virtude como um todo e não parte dela. A busca, portanto, de uma
semelhança entre as partes da virtude é uma busca pela demonstração de que o indivíduo, ao
participar da virtude, participa dela como um todo, e não em parte. Que esse todo é uno e não
múltiplo é garantido pela concepção da unidade da virtude a partir do modelo da face.
Um segundo ponto em que podemos perceber que Sócrates não vai contra o modelo
da face, mas contra essa implicação equivocada de Protágoras, encontra-se na parte final do
diálogo, em que Sócrates diz:
οὕτω δὴ τούτων ὑποκειμένων, ἦν δ᾽ ἐγώ, Πρόδικέ τε καὶ Ἱππία,
ἀπολογείσθω ἡμῖν Πρωταγόρας ὅδε ἃ τὸ πρῶτον ἀπεκρίνατο πῶς ὀρθῶς
ἔχει—μὴ ἃ τὸ πρῶτον παντάπασι: τότε μὲν γὰρ δὴ πέντε ὄντων μορίων τῆς
ἀρετῆς οὐδὲν ἔφη εἶναι τὸ ἕτερον οἷον τὸ ἕτερον, ἰδίαν δὲ αὑτοῦ ἕκαστον
ἔχειν δύναμιν: ἀλλ᾽ οὐ ταῦτα λέγω, ἀλλ᾽ ἃ τὸ ὕστερον εἶπεν. τὸ γὰρ ὕστερον
ἔφη τὰ μὲν τέτταρα ἐπιεικῶς παραπλήσια ἀλλήλοις [359β] εἶναι, τὸ δὲ ἓν
πάνυ πολὺ διαφέρειν τῶν ἄλλων, τὴν ἀνδρείαν, γνώσεσθαι δέ μ᾽ ἔφη
τεκμηρίῳ τῷδε: ‘εὑρήσεις γάρ, ὦ Σώκρατες, ἀνθρώπους ἀνοσιωτάτους μὲν
ὄντας καὶ ἀδικωτάτους καὶ ἀκολαστοτάτους καὶ ἀμαθεστάτους,
ἀνδρειοτάτους δέ: ᾧ γνώσῃ ὅτι πολὺ διαφέρει ἡ ἀνδρεία τῶν ἄλλων μορίων
τῆς ἀρετῆς.’
Uma vez estabelecidos esse pontos, Pródico e Hípias – disse eu –, que
Protágoras defenda, perante nós, a correção de sua reposta inicial, mas não
exatamente de sua primeira resposta: naquela ocasião, ele afirmava que, na
medida em que são cinco as partes da virtude, nenhuma delas era como a
outra, cada qual dotada de uma capacidade particular. Não é isso, contudo,
a que me refiro, e sim ao que ele disse posteriormente. Pois ele afirmou mais
adiante que quatro delas são razoavelmente parecidas umas com as outras,
ao passo que uma, a coragem, distingue-se em muito de todas as demais,
dizendo que eu compreenderia essa diferença mediante a seguinte
evidência: “Encontrará, Sócrates, homens que são extremamente ímpios,
injustos, intemperantes e ignorantes, mas corajososíssimos. Com isso, você
compreenderá que a coragem se distingue em muito das demais partes da
virtude.199
Ao colocar os equívocos das conclusões e respostas de Protágoras, Platão vai
demonstrando, ao longo do diálogo, que Protágoras apenas aparenta ter o conhecimento da
virtude, pois, na verdade, ele não consegue responder que tipo de coisa é a sua unidade.
Assim, Protágoras, até aqui, comete duas incoerências: i) afirma que o indivíduo pode
participar de uma das virtudes sem as demais – ou seja, ele não compreende o que de fato
seria a concepção adequada do todo e das partes e, em consequência, ii) não concebe que elas
possuem algo em comum, serem virtudes – o que seria uma falsa concepção da relação entre
199 PLATÃO, Protágoras, 359a-b. Tradução: Daniel R. N. Lopes. São Paulo: Editora Pesperctiva, 2017, p. 525.
58
elas, portanto, da unidade. Protágoras apenas assume o modelo da face para tomar a distinção
como garantia de que uma parte pode ser obtida independente das demais. Sócrates, por sua
vez, segue em demonstrar que o modelo da face e a distinção que ele sustenta garante que só
é possível ter a virtude como um todo, todo este que, com as partes, compõe uma estrutura
unitária.
Portanto, tem-se de um lado, Protágoras defendendo uma ideia de unidade que
compreende o rosto como uma mera soma mereológica de partes distintas, ou seja, algo
puramente material e espacial; e de outro lado, Sócrates, que, apesar de não ser claro desde
o ínicio, sustenta uma posição que defende um modelo de unidade parte-todo que não é nem
homogêneo, nem idêntico no que diz respeito ao todo e suas partes, nem mesmo uma soma
mereológica. Sendo assim, a partir de 330b, Sócrates estará trabalhando com quatro
argumentos cuja finalidade será a de destacar o papel da virtude como unidade, apontando
que os aspectos em comum, seja entre as partes da virtude, seja entre as partes e a sabedoria,
refletem justamente esse caráter da unidade como natureza cujas partes dela participam. Estes
argumentos seriam:
i) É possível que a justiça seja ímpia? (Prot. 330b-332a).
ii) As partes podem ter os mesmos contrários? (Prot. 332a-333c.)
iii) É possível que uma pessoa injusta seja temperante? (Prot. 333d-334c).
iv) Um homem ignorante pode ser corajoso? (Prot. 349d-351b / 359c-360e).
Nos próximos capítulos analisaremos os quatro argumentos, não necessariamente
segundo a ordem acima.
5. Σοφία como virtude-ὅλον: análise dos argumentos da coragem (Prot. 349d-351b /
359c-360e) e da temperança (Prot. 332 a-333c).
5.1 Σοφία e coragem
O intuito de começar por estes dois argumentos – que correspondem na sequência do
diálogo, ao quarto e ao segundo argumento – tem a ver com o exame do papel que a σοφία
59
desempenha neste diálogo. É sobretudo no argumento da coragem, que a σοφία, inserida por
Protágoras como parte da virtude, juntamente com a coragem200, não será identificada por
Sócrates como tal, uma vez que ela aparece empregada de modo intercambiável, tendo o
mesmo sentido que ἐπιστήμη.
Antes desse argumento, Sócrates vai referir-se à σοφία como parte sem demonstrar
qualquer comprometimento com essa posição, valendo-se apenas da visão de Protágoras.
Mas, mesmo nesses casos, como será visto no argumento da temperança, já é possível
perceber a posição de Sócrates, ainda que ela só fique mais clara no argumento da coragem.
Estes quatro argumentos estão inseridos em um conjunto de formulações que tentam
estruturar uma noção de unidade e que, a todo momento, buscam defender uma unidade cujo
resultado não condiz com a posição de Protágoras de que um indíviduo possa ter uma parte
das virtudes sem as demais. O argumento da coragem é o último dos quatro argumentos onde
Protágoras insiste nessa posição, admitindo que, por mais que alguém possa falar que as
virtudes são semelhantes neste ou noutro ponto, o mesmo não pode ser dito a respeito da
coragem, visto que esta é diferente de todas as demais. É importante notar que Protágoras
não vai compreender ‘semelhança’ no mesmo sentido que Sócrates.
Quando Sócrates, nestas quatro exposições, referir-se a uma semelhança ou
identidade entre as virtudes, não estará, como defendido na sessão anterior, negando o
modelo da face em função de uma espécie de tese da identidade entre as virtudes, ou
igualando o todo com suas partes, mas retomando o ponto principal da discussão, a unidade.
É a reação de Protágoras a esses argumentos que induz o leitor a pensar que se trata de uma
negação da distinção entre as virtudes. Na verdade, a objeção de Sócrates será em função da
concepção de unidade de Protágoras, uma concepção, como já dissemos, que não decorre do
modelo da face, e que se compromete apenas com uma noção empírica de acúmulo de
“virtudes”.
200 Retomando o trecho da passagem vista anteriormente: “Π. οὐδαμῶς, ἔφη, ἐπεὶ πολλοὶ ἀνδρεῖοί εἰσιν, ἄδικοι
δέ, καὶ δίκαιοι αὖ, σοφοὶ δὲ οὔ. Σ. ἔστιν γὰρ οὖν καὶ ταῦτα μόρια τῆς ἀρετῆς, ἔφην ἐγώ, σοφία τε καὶ ἀνδρεία;
Π. πάντων μάλιστα δήπου, ἔφη: καὶ μέγιστόν γε ἡ σοφία τῶν μορίων.” P. De forma alguma – respondeu ele –,
visto que há inúmeros homens corajosos (ἀνδρεῖοί) que são injustos (ἄδικοι), e homens justos (δίκαιοι), por sua
vez, que não são sábios (σοφοὶ). S. Então, também são partes da virtude sabedoria (σοφία) e coragem (ἀνδρεία)?
– perguntei. P. Sim, absolutamente – disse ele. – E a sabedoria (σοφία) é a parte principal. (PLATÃO,
Protágoras, 329e-330a, tradução: Daniel R. N. Lopes. São Paulo: Editora Perspectiva, 2017, p. 439.)
60
Como ficam essas duas posições frente ao modelo da face? O modelo sugere uma
imagem de unidade concebida como um todo, cuja estrutura, apoiada na ideia de distinção
entre todo e partes, aponta justamente para essa natureza unificada compartilhada pelas
partes. As partes, por sua vez, possuem aspectos de semelhança ou de identidade não entre
elas mesmas, ou seja, não em relação às suas formas, funções ou capacidades específicas,
mas em sua natureza, pelo fato de participarem dessa unidade, o que constitui uma
dependência do todo que será analisada em capítulos posteriores.
O que Protágoras dá a entender é que ele está negando essa natureza subjacente que
responde pela virtude e, com isso, negando qualquer comprometimento com a unidade.
Sócrates, por sua vez, busca, como veremos em cada argumento, um modelo de unidade cuja
coerência se mostra ajustada as diretrizes e intuições propostas pelo modelo da face. A
proposta de Sócrates é a de demonstrar que essa unidade é justamente aquela que
impossibilita que se possa assentar que um indivíduo possa ser ao mesmo tempo injusto e
virtuoso. Lembrando que, para Protágoras, o que justifica a possibilidade de alguém ter uma
parte sem as demais é a ideia implícita de uma “unidade empírica”. Esta unidade pode ser
caracterizada como o resultado de um acúmulo de partes adquiridas ao longo do processo da
aprendizagem. Essas partes não possuem interrelações entre si nem nenhuma dependência
em relação ao todo. Em suma, o conceito de unidade acaba exercendo um papel obsoleto,
deixando de existir como um ente relevante para uma relação entre o todo e suas partes
Entrando na análise do argumento da coragem propriamente dito, Sócrates questiona
a Protágoras se ele considera que os homens ousados são também corajosos e se estes
mesmos homens, que realizam ações com ousadia, assim o fazem por serem conhecedores
(ἐπιστήμονες) do modo como estas ações devem ser feitas. Protágoras irá concordar e o
diálogo passa a ser desenvolvido da seguinte maneira:
Σ. οἶσθα οὖν τίνες εἰς τὰ φρέατα κολυμβῶσιν θαρραλέως;
Π. ἔγωγε, ὅτι οἱ κολυμβηταί.
Σ. πότερον διότι ἐπίστανται ἢ δι᾽ ἄλλο τι;
Π. ὅτι ἐπίστανται.
Σ. τίνες δὲ ἀπὸ τῶν ἵππων πολεμεῖν θαρραλέοι εἰσίν; πότερον οἱ ἱππικοὶ ἢ
οἱ ἄφιπποι;
Π. οἱ ἱππικοί.
Σ. τίνες δὲ πέλτας ἔχοντες; οἱ πελταστικοὶ ἢ οἱ μή;
Π. οἱ πελταστικοί. καὶ τὰ ἄλλα γε πάντα, εἰ τοῦτο ζητεῖς, ἔφη, οἱ
ἐπιστήμονες τῶν μὴ ἐπισταμένων θαρραλεώτεροί εἰσιν, καὶ αὐτοὶ ἑαυτῶν
ἐπειδὰν μάθωσιν ἢ πρὶν μαθεῖν.
61
Σ. ἤδη δέ τινας ἑώρακας, ἔφην, πάντων τούτων ἀνεπιστήμονας ὄντας,
θαρροῦντας δὲ πρὸς ἕκαστα τούτων;
Π. ἔγωγε, ἦ δ᾽ ὅς, καὶ λίαν γε θαρροῦντας.
Σ. οὐκοῦν οἱ θαρραλέοι οὗτοι καὶ ἀνδρεῖοί εἰσιν;
Π.αἰσχρὸν μεντἄν, ἔφη, εἴη ἡ ἀνδρεία: ἐπεὶ οὗτοί γε μαινόμενοί εἰσιν.
Σ. πῶς οὖν, ἔφην ἐγώ, λέγεις τοὺς ἀνδρείους; οὐχὶ τοὺς θαρραλέους εἶναι;
Π. καὶ νῦν γ᾽, ἔφη.
Σ. οὐκοῦν οὗτοι, ἦν δ᾽ ἐγώ, οἱ οὕτω θαρραλέοι ὄντες οὐκ ἀνδρεῖοι ἀλλὰ
μαινόμενοι φαίνονται; καὶ ἐκεῖ αὖ οἱ σοφώτατοι οὗτοι καὶ θαρραλεώτατοί
εἰσιν, θαρραλεώτατοι δὲ ὄντες ἀνδρειότατοι; καὶ κατὰ τοῦτον τὸν λόγον ἡ
σοφία ἂν ἀνδρεία εἴη;
S. Você sabe, então, quem são as pessoas que mergulham em cisternas
audaciosamente?
P. Sim, os mergulhadores.
S. Por que possuem conhecimento, ou por algum outro motivo?
P. Porque possuem conhecimento.
S. E quem são as pessoas audaciosas201 em combater montadas a cavalo?
São os cavaleiros, ou os que não sabem montar?
P. Os cavaleiros.
S. E em manejar a pelta202? Os peltastas, ou os que não sabem manejá-la?
P. Os peltastas. E o mesmo vale para todos os demais casos – disse ele –, se
é isto o que você procura: os que possuem conhecimento são mais
audaciosos do que aqueles que não o possuem, e, em relação a si próprios,
são mais audaciosos depois que aprendem do que antes de terem aprendido.
S. Já viu pessoas – perguntei –, que não possuem conhecimento de nenhuma
dessas coisas, mas são audaciosas em cada uma delas?
P. Já vi sim – respondeu. – E excessivamente audaciosas.
S. Então, essas pessoas audaciosas não são também corajosas?
P. A coragem seria decerto vergonhosa se assim o fossem – disse ele –, pois
são desvairadas.
S. Como, então – perguntei –, você se refere aos corajosos? Não são
audaciosos?
P. Mantenho o que digo – respondeu.
S. Então – disse eu –, essas pessoas que são assim audaciosas não são
corajosas, mas manifestamente desvairadas, não são? E os mais sábios, por
sua vez, são os mais audaciosos e, sendo os mais audaciosos, são os mais
corajosos, não são? E segundo esse argumento, a sabedoria seria coragem,
não seria?203
A primeira observação de Sócrates é que não somente os conhecedores são ousados,
como também os ignorantes demonstram ousadia em diversas situações. A distinção entre
eles, por sua vez, é que, sendo os indivíduos mais sábios os mais ousados, Sócrates pode
concluir que a coragem não é ousadia – porque esta também se encontra em homens
ignorantes – mas σοφία, por ser justamente algo que distingue a coragem da ousadia.
201 A presente dissertação usa “ousadia” ao invés de “audácia” para a tradução de ‘θαρραλέους’. 202 Espécie de escudo grego antigo. 203 PLATÃO, Protágoras, 349e-350c. Tradução: Daniel R. N. Nunes. São Paulo: Editora Perspectiva, 2017, p.
499-501, grifo nosso.
62
Tomando este argumento à luz da hipótese proposta, Protágoras até então havia
afirmado que um homem ignorante, por exemplo, pode ser ao mesmo tempo corajoso.
Sócrates, por seu lado, tenta demonstrar que não é possível ter uma parte da virtude sem as
demais porque uma unidade é justamente essa em que as partes são dependentes do todo e,
consequentemente, um indivíduo não pode ser parte ignorante e parte corajoso. Sendo assim,
ao dizer que a coragem é σοφία, Sócrates parece ter como intuito indicar que existe algo que
é semelhante às partes e que as identifica de tal modo que elas não podem ser obtidas
individualmente – ou seja, não podem ser encontradas em indivíduos ignorantes, injustos, e
assim por diante.
Este algo é promovido pela unidade, contudo, – e isto Protágoras parece não
compreender – isso não quer dizer uma identidade entre as partes da virtude e a σοφία, ou
entre as demais partes da virtude, como espécie de tentativa de identificar o olho com a boca
a fim de eliminar as distinção entre eles. A identificação que aqui parece estar em jogo é mais
no sentido da razão que explicaria o porquê destas partes serem tomadas em conjunto e não
separadas. Por este viés, o todo, tal como representado pela face, apresenta uma estrutura
específica e bem ordenada de que as partes, assim como os órgãos da face, fazem parte. Essa
é a noção de ‘partes’ aqui implicada.
Não obstante, Protágoras não se deixa convencer por esta associação da coragem com
a sabedoria. Por isso, Sócrates segue com o argumento em 360b:
Σ. θαρροῦσιν δὲ τὰ αἰσχρὰ καὶ κακὰ δι᾽ ἄλλο τι ἢ δι᾽ ἄγνοιαν καὶ ἀμαθίαν;
Π. οὕτως ἔχει, ἔφη.
Σ. τί οὖν; τοῦτο δι᾽ ὃ δειλοί εἰσιν οἱ δειλοί, δειλίαν ἢ ἀνδρείαν καλεῖς;
Π. δειλίαν ἔγωγ᾽, ἔφη.
Σ. δειλοὶ δὲ οὐ διὰ τὴν τῶν δεινῶν ἀμαθίαν ἐφάνησαν ὄντες;
Π. πάνυ γ᾽, ἔφη.
Σ. διὰ ταύτην ἄρα τὴν ἀμαθίαν δειλοί εἰσιν;
- ὡμολόγει.
Σ. δι᾽ ὃ δὲ δειλοί εἰσιν, δειλία ὁμολογεῖται παρὰ σοῦ;
- συνέφη.
Σ. οὐκοῦν ἡ τῶν δεινῶν καὶ μὴ δεινῶν ἀμαθία δειλία ἂν εἴη;
- ἐπένευσε.
Σ. ἀλλὰ μήν, ἦν δ᾽ ἐγώ, ἐναντίον ἀνδρεία δειλίᾳ.
- ἔφη.
Σ. οὐκοῦν ἡ τῶν δεινῶν καὶ μὴ δεινῶν σοφία ἐναντία τῇ τούτων ἀμαθίᾳ
ἐστίν;
- καὶ ἐνταῦθα ἔτι ἐπένευσεν.
Σ. ἡ δὲ τούτων ἀμαθία δειλία;
- πάνυ μόγις ἐνταῦθα ἐπένευσεν.
63
Σ. ἡ σοφία ἄρα τῶν δεινῶν καὶ μὴ δεινῶν ἀνδρεία ἐστίν, ἐναντία οὖσα τῇ
τούτων ἀμαθίᾳ;
S. E a audácia deles é vergonhosa e má devido a alguma outra coisa senão
à estupidez e ignorância?
P. É o que sucede – disse ele.
S. E aí? Aquilo em razão de que os covardes são covardes, por acaso você
chama de covardia ou coragem?
P. Pelo menos eu chamo de covardia – respondeu.
S. E não se revelaram covardes devido à ignorância das coisas temíveis?
P. Certamente – disse ele.
S. Portanto, são covardes devido a essa ignorância, não são?
Ele concordou.
S. Aquilo em razão de que são covardes, você concorda que é covardia?
Ele confirmou.
S. A ignorância das coisas temíveis e não temíveis não seria, então,
covardia?
Ele acenou que sim.
S. Com efeito – disse eu –, a coragem é contrária à covardia.
Ele disse que sim.
S. A sabedoria (ἡ σοφία) relativa às coisas temíveis e não temíveis não é
contrária, então, à ignorância delas?
A essa altura, ele ainda acenou que sim
S. E a ignorância delas? Não é covardia?
Com muita relutância, ele acenou que sim.
S. Portanto, a sabedoria (ἡ σοφία) relativa às coisas temíveis e não temíveis
é coragem, que é contrária à ignorância delas, não é? 204
Sócrates aqui destaca dois tipos de relações interagindo: de um lado, a relação entre
covardia e ignorância; de outro, a relação entre coragem e σοφία. A primeira estabelece que
os covardes assim o são devido à covardia, cuja causa é a ignorância a respeito das coisas
que devem e não devem ser temidas. Já os corajosos assim o são devido à coragem, cuja
causa é a σοφία, isto é, o conhecimento daquilo que deve e do que não deve ser temido. A
consequência destas relações para o agente é que, uma vez sendo ignorante, ele não poderá
ser, ao mesmo tempo, corajoso, pois a coragem, que torna o indivíduo corajoso, depende do
conhecimento do que se deve ou não deve ser temido. Isto porque ambas as características,
o de ser sábio e ser corajoso, andam juntas, e não separadas. Ou seja, a virtude como unidade
exibe uma relação tal que não permite ao indivíduo ter somente uma parte da virtude, ou
ainda, uma parte desconectada da σοφία porque, de algum modo, esta última qualifica a
coragem, a qual não pode ser obtida individualmente.
204 PLATÃO, Protágoras, 360b-d. Tradução: Daniel R. N. Lopes. São Paulo: Editora Perspectiva, 2017, p.
529-531, grifo nosso.
64
É necessário agora refletir se Sócrates estaria de fato, tal como Protágpras, tomando
a σοφία como parte ou alguma outra coisa. Como visto, a σοφία, juntamente com a coragem,
será tomada como uma das partes da virtude (329e). Mas, ao longo do Protágoras,
diferentemente da coragem, que não é posta em questão, e sim aceita por Sócrates como
parte, a σοφία surge como um caso estranho a questão da unidade. Se notarmos as passagens
aqui citadas, os termos nelas sublinhados, a saber, ἐπιστήμη e σοφία, estão sendo utilizados
de modo intercambiável, no sentido forte de possuírem o mesmo sentido e significado, isto
é, conhecimento. Em 350a-b, são utilizadas variações do verbo ἐπίσταμαι, cuja forma
substantivada, ἐπιστήμη, é intercambiável com σοφία. Isto pode ser constatado pelo fato de
que Platão começa associando coragem à ἐπιστήμη, mas conclui a primeira parte do
argumento com a afirmação “coragem é σοφία”. Observa-se que Platão começa
estabelecendo que o contrário da coragem é a ignorância, isto é, a falta do conhecimento
daquilo que deve ser temido, e termina concluindo, mais uma vez, que a coragem é um tipo
não de ἐπιστήμη, mas de σοφία.
Em virtude da ἐπιστήμη e σοφία serem utilizadas de modo indistinto, surge um
problema que é saber qual o sentido que Platão atribui a σοφία dentro deste contexto da
virtude. Em 361b, Sócrates simula um interlocutor anônimo que expõe a questão do seguinte
modo:
Σ. εἰ μὲν γὰρ ἄλλο τι ἦν ἢ ἐπιστήμη ἡ ἀρετή, ὥσπερ Πρωταγόρας ἐπεχείρει
λέγειν, σαφῶς οὐκ ἂν ἦν διδακτόν: νῦν δὲ εἰ φανήσεται ἐπιστήμη ὅλον, ὡς
σὺ σπεύδεις, ὦ Σώκρατες, θαυμάσιον ἔσται μὴ διδακτὸν ὄν.
S. “Pois, se a virtude fosse alguma outra coisa que não conhecimento, como
Protágoras tentava argumentar, ela obviamente não poderia ser ensinada.
Todavia, se é manifesto que é conhecimento como um todo, como você se
apressa em dizer, Sócrates, será espantoso se ela não puder ser ensinada.”205
O que se destaca nessa passagem é que Platão categoriza a unidade da virtude como
ἐπιστήμη ὅλον. Se, de fato, σοφία e ἐπιστήμη são a mesma coisa, a σοφία, para Platão, está
identificada com o todo e não como uma das partes da virtude. De fato, a σοφία dentro do
pensamento platônico, tem várias possibilidades de sentido. Segundo Nicholas Denyer206:
205 PLATÃO, Protágoras, 361b. Tradução: Daniel R. N. Nunes. São Paulo: Editora Perspectiva, 2017, p.533. 206 DENYER, Nicholas. Plato: Protágoras. Cambridge: Cambridge University Press, 2008.
65
Os termos σοφία e ἐπιστήμη estão relacionados de algum modo com
‘sabedoria’ e ‘conhecimento’: pode-se argumentar que são apenas dois
nomes para a mesma coisa (Teet. 145d-e, Xen. Mem. 4.6.7); porém também
pode ser argumentado que σοφία deva ser reservada para um tipo de σοφία
especialmente importante ou valiosa (Rep. 428c-429a). (DENYER, 2008,
p. 124, tradução nossa.)
Dentro dessa perspectiva mais ampla do contexto platônico, ambas as possibilidades,
a de ser ou parte ou todo, poderiam ser adequadas à σοφία. Para Centrone, a analogia da face
apresenta um elemento que permite considerar a σοφία como sendo, ao mesmo tempo, tanto
parte quanto o todo. Tomando a passagem da República em 507c – em que a visão é
relacionada ao conhecimento – ele vai dizer:
A visão tem, em Platão, uma posição proeminente; e, mesmo sendo parte
em certo sentido, pode-se dizer que a visão é o rosto inteiro (...); a parte, e
em geral a parte considerada mais importante, designa por meio de
sinédoque o todo (como às vezes a testa, ou o próprio olho, indicam toda a
pessoa). (CENTRONE, 2015, p. 114-115.)
Contudo, não faz sentido dizer que a σοφία corresponde ao todo e à parte ao mesmo
tempo e, por outro lado, escolher um modelo, tal como o da face, que não identifica o todo
com suas partes. Se tal afirmação de Centrone fosse adequada, Protágoras não estaria errado
em tomar o modelo da face e, na sequência, afirmar que se pode ter uma parte, por exemplo,
a testa, sem o todo e, ainda sim, classificar alguém como virtuoso. Nesse ponto da discussão,
nossa hipótese diverge da de Centrone quanto à função da σοφία em relação à virtude. A
presente hipótese oferece uma leitura em que a σοφία, tal como parece propor o diálogo
Protágoras – ainda que não de modo tão evidente, isto é, por uma fala direta de Sócrates, por
exemplo –, está identificada não como parte, mas com o todo da virtude.
Esta interpretação não só se mostra coerente com a discussão no próprio Protágoras
– e também, vale dizer, com o Parmênides – como encontra no Laques um contexto muito
semelhante a várias passagens e temáticas aludidas no Protágoras, em especial, o de que não
se pode confundir o todo com as suas partes. Neste diálogo, uma das virtudes, a coragem,
terá a sua definição confrontada com a definição da virtude como todo, justamente porque
ambas não podem ter a mesma definição, por não serem idênticas.
66
O Laques tem como objetivo saber se é bom que jovens venham a aprender o combate
com armas (μαχόμενον ἐν ὅπλοις)207. Com respeito a esse assunto, Sócrates vai dizer que é
necessário investigar o todo da virtude (ὅλης ἀρετῆς)208, começando com uma parte dela, a
saber, a coragem209. Em 194e-195a, Nícias irá dizer a Laques que a coragem é o
conhecimento do que deve e do que não deve ser temido (“ταύτην ἔγωγε, ὦ Λάχης, τὴν τῶν
δεινῶν καὶ θαρραλέων ἐπιστήμην καὶ ἐν πολέμῳ καὶ ἐν τοῖς ἄλλοις ἅπασιν”). Sócrates, então,
em 198d-199a, fala que o conhecimento, a respeito do que quer que seja, é sempre um
conhecimento sobre o passado, o presente e o futuro. Isso porque o conhecimento diz respeito
às mesmas coisas, em qualquer tempo. Por exemplo, a medicina é a arte do presente, do
passado e do futuro com respeito a saúde. Em 199b, Nícias irá concordar que a sua definição
de coragem diz respeito tanto à coisas boas futuras, quanto aos futuros males. Sócrates
pergunta a Nícias se um homem, com esse tipo de conhecimento, não seria privado de
temperança, da justiça e da piedade. Nícias acha que não seria privado dessas coisas, e
Sócrates coloca a seguinte questão:
Σ. οὐκ ἄρα, ὦ Νικία, μόριον ἀρετῆς ἂν εἴη τὸ νῦν σοι λεγόμενον, ἀλλὰ
σύμπασα ἀρετή.
Ν. ἔοικεν.
Σ. καὶ μὴν ἔφαμέν γε τὴν ἀνδρείαν μόριον εἶναι ἓν τῶν τῆς ἀρετῆς.
Ν. ἔφαμεν γάρ.
Σ. τὸ δέ γε νῦν λεγόμενον οὐ φαίνεται.
Ν. οὐκ ἔοικεν.
Σ. οὐκ ἄρα ηὑρήκαμεν, ὦ Νικία, ἀνδρεία ὅτι ἔστιν.
S. Então, Nícias, não seria uma parte da virtude o que dizes, mas a virtude
inteira.
N. Parece.
S. Mas dissemos que a coragem é uma das partes da virtude.
N. Pois dissemos.
S. Mas agora não se parece com aquilo que dissemos.
N. Não parece.
S. Então, não descobrimos, Nícias, o que é a coragem.210
É possível perceber por esta passagem que Platão toma as partes da virtude como
diferentes da virtude-ὅλον – algo também sugerido pelo modelo da face no Protágoras. A
ênfase da questão é colocada sobre a necessidade de não confundir as partes com o todo. No
207 PLATÃO, Laques, 179e-180a. 208 PLATÃO, Laques, 190c. 209 PLATÃO, Laques, 190c-d. 210 PLATÃO, Laques, 199b, tradução nossa.
67
caso do Laques, o problema aparece na definição de coragem, que recebe a mesma definição
no Protágoras. Por sua vez, o Protágoras não irá adentrar nessa questão propriamente dita
da definição de coragem, mas irá, na sequência, relacionar a virtude-unidade com o
conhecimento. Se de fato Platão não está comprometido em tomar a σοφία como parte da
virtude, podemos concluir a partir dessa passagem sobre a coragem, que a σοφία causa a
coragem, e esta torna os homens corajosos. Em outras palavras, o que causa a coragem como
uma virtude é o fato desta coragem ser parte da virtude-ὅλον, tal como as demais partes.
Sendo assim, o elemento em comum destacado nesta passagem e que aponta para a
natureza unitária da virtude é esse em que a coragem faz parte de uma estrutura que guarda
relação com a σοφία, e não com a ignorância, uma vez que a ignorância não faz parte da
virtude e nem é uma virtude. Como consequência, um indivíduo não pode ser ao mesmo
tempo ignorante e virtuoso. Virtude está ligada à ἐπιστήμη ὅλον (em que σοφία = ἐπιστήμη)
e, consequentemente, suas partes também devem ser consideradas um tipo de conhecimento,
uma vez que são um tipo de virtude.
5.2. Σοφία e Temperança
O segundo argumento a ser analisado se encontra entre os passos 332a-333c. Nesse
argumento a σοφία reaparece, agora relacionada à temperança. O argumento tem como
proposta demonstrar aspectos em comum que permeiam a unidade da virtude. O intuito da
nossa hipótese é demonstrar que nesse, e nos demais argumentos, essa busca por elementos
ou aspectos de semelhança ou de identidade não estaria contando a favor de uma tese da
identidade ou semelhança, mas sim a favor do modelo de unidade presente na analogia da
face.
Um outro ponto relevante a se ter em mente na leitura desta passagem é que Sócrates
não deixa claro em que sentido ele está pensando o papel da σοφία até chegar no argumento
da coragem, visto acima. Como afirma Taylor211, Sócrates está, neste argumento, ignorando
“os amplos aspectos da σοφία”. Portanto, Sócrates aparenta tomar a a σοφία a partir do ponto
de vista de Protágoras, ou seja, como parte, mas não dá nenhum indício de que está
211 TAYLOR, C.C.W. Plato: Protagoras. New York: Oxford University Press, 1991, p. 122.
68
comprometido com essa visão, como sustenta o nosso argumento anterior. Sendo assim,
temos o seguinte argumento:
Σ. ἀφροσύνην τι καλεῖς;
- ἔφη.
Σ. τούτῳ τῷ πράγματι οὐ πᾶν τοὐναντίον ἐστὶν ἡ σοφία;
Π.ἔμοιγε δοκεῖ, ἔφη.
Σ.πότερον δὲ ὅταν πράττωσιν ἅνθρωποι ὀρθῶς τε καὶ ὠφελίμως, τότε
σωφρονεῖν σοι δοκοῦσιν οὕτω πράττοντες, ἢ εἰ τοὐναντίον ἔπραττον;
Π.σωφρονεῖν, ἔφη.
Σ.οὐκοῦν σωφροσύνῃ σωφρονοῦσιν;
Π.ἀνάγκη.
Σ.οὐκοῦν οἱ μὴ ὀρθῶς πράττοντες ἀφρόνως πράττουσιν καὶ οὐ
σωφρονοῦσιν οὕτω πράττοντες;
Π.συνδοκεῖ μοι, ἔφη.
Σ.τοὐναντίον ἄρα ἐστὶν τὸ ἀφρόνως πράττειν τῷ σωφρόνως;
- ἔφη.
Σ.οὐκοῦν τὰ μὲν ἀφρόνως πραττόμενα ἀφροσύνῃ πράττεται, τὰ δὲ
σωφρόνως σωφροσύνῃ;
- ὡμολόγει.
S. Há algo que você chama insensatez?
Afirmou que sim.
S. E a sabedoria não é absolutamente contrária a tal coisa?
P. É o que me parece – respondeu.
S. Quando os homens agem de maneira correra e benéfica212, eles lhe
parecem sensatos agindo assim nessas circunstâncias, ou o contrário disso?
P. Parecem sensatos – disse ele.
S. E não é com sensatez213 que eles agem sensatamente?
P. Necessariamente.
S. E aqueles que não agem nem corretamente agem insensatamente e não
são sensatos quando agem, não é mesmo?
P. É o que eu acho – disse ele.
S. Portanto, agir insensatamente é o contrário do agir sensatamente?
Afirmou que sim.
S. Então, quando se age insensatamente, age-se com insensatez; ao passo
que, quando se age sensatamente, age-se com sensatez, não é?
Ele assentiu.214
Sócrates chama a atenção para o fato de que tanto a σοφία quanto a temperança
(σωφροσύνη), possuem o mesmo contrário, a saber, a insensatez (ἀφροσύνην). Sócrates vai
delimitar o conceito de ἀφροσύνη como aquela responsável por tornar um indivíduo
insensato (ἄφρων). Ser insensato é aquilo que faz com que um indivíduo aja contrariamente
àquilo que é ὀρθός (correto) e ὠφέλιμος (útil), dois conceitos muito importantes para o
212 Utilizamos a palavra “útil” para a tradução de “ὠφέλιμος”. 213 Esta dissertação utiliza “temperança” ao invés de “sensatez” para a tradução de “σωφροσύνη” e
“temperante/ser temperante” ‘para σωφρονεῖν”, ao invés de sensatez, como o faz Daniel Lopes. 214 PLATÃO, Protágoras, 332a-333c. Tradução: Daniel R. N. Lopes. São Paulo: Editora Perspectiva, 2017, p.
447.
69
conceito de unidade da virtude como ἀρετή ἐπιστήμη ὅλον, a ser abordado mais adiante.
Desse modo, sendo a ἀφροσύνη contrária tanto à σοφία quanto à temperança, pode-se deduzir
que ambas, σοφία e σωφροσύνη, estão relacionadas ao agir corretamente (ὀρθῶς) e de
maneira útil (ὠφελίμως). Dando prosseguimento, Sócrates vai sugerir mais alguns exemplos
de modo a clarificar o ponto a que ele quer chegar. Por exemplo, o καλός (belo), o ἀγαθός
(bem) e ὀξύ (agudo), cada um destes, segundo Sócrates, possui seu contrário respectivo que,
nesta ordem, seriam: αἰσχρός (indigno, desonroso), κακός (mal) e βαρύς (grave)215. A partir
disso, Sócrates fará duas afirmações:
1. “(...) para cada um dos contrários existe somente um, e não muitos, contrários” –
“οὐκοῦν, ἦν δ᾽ ἐγώ, ἑνὶ ἑκάστῳ τῶν ἐναντίων ἓν μόνον ἐστὶν ἐναντίον καὶ οὐ
πολλά”216;
2. (...) “se algo é feito contrariamente, é feito por ação do contrário” – “οὐκοῦν εἴπερ
ἐναντίως πράττεται, ὑπὸ ἐναντίου πράττοιτ᾽ ἄν;”217.
Sócrates se utiliza dessas premissas para concluir que, se cada coisa possui um único
contrário, então, deve haver uma identidade entre σοφία e σωφροσύνη, uma vez que elas
compartilham o mesmo contrário (Prot. 333a-b). Apesar da rapidez da conclusão de Sócrates
dar a entender que poderia estar considerando a tese da identidade como sua posição, o
argumento, segundo a perspectiva da nossa hipótese, tem outra finalidade, que pode ser
observada a partir do desafio que Sócrates propõe a Protágoras com o intuito de fazer com
que este enxergue sua própria contradição e que os demais ouvintes percebam que o sofista,
de fato, não possui conhecimento acerca da unidade da virtude. O desafio consiste em fazer
com que Protágoras escolha entre a proposição que afirma que cada coisa só tem um único
contrário e o modelo da face. Tal desafio não leva necessariamente à negação da virtude,
como o faz a leitura proposta pela tese da identidade, mas força Protágoras a encarar as reais
implicações contidas no modelo da face acerca da natureza da virtude. Isso faz com que o
leitor do diálogo perceba que, ao não saber resolver tal dilema, Protágoras demonstra falta
215 PLATÃO, Protágoras, 332c. 216 PLATÃO, Protágoras, 332c. 217 PLATÃO, Protágoras, 332e.
70
de conhecimento sobre o tema analisado, tanto no que diz respeito às relações das partes entre
si e com o todo, quanto às consequências da projeção dessa unidade no indivíduo.
O argumento de Sócrates, quando posto em questão, leva às seguintes ponderações:
i) se Sócrates quisesse estabelecer uma tese da identidade entre as virtudes ou se apoiar no
modelo do ouro, negando assim o modelo da face, ele deveria, ao menos, ter feito algo que
ele não faz: partindo da constatação de que cada coisa tem um único contrário e que, por
isso, a σοφία e a σωφροσύνη não possuem nenhuma distinção por serem idênticas, a mesma
formulação deveria ter aparecido no argumento da coragem visto anteriormente. Alí Sócrates
deveria ter dito que o contrário da coragem não é a covardia, mas a insensatez – contrário
direto da σοφία – e do mesmo modo com as demais partes da virtude. Por conseguinte,
Sócrates teria que explicar: a) ou que a covardia não é o contrário da coragem; b) ou que a
coragem possui não um, mas dois contrários: a covardia e a insensatez. ii) A segunda razão
se apoia em uma das observações de Centrone:
Se do fato de duas coisas não serem estritamente idênticas se seguisse sua
radical diversidade, neste caso o ἀγαθόν deveria ser radicalmente diferente
do καλόν, algo que Sócrates certamente não admitiria. O argumento serve
para pôr Protágoras à prova.218
Por estas observações Sócrates, ao buscar um aspecto em comum entre as partes, não
pode estar, com isso, querendo negar que duas coisas não idênticas, como o caso do ἀγαθόν
e do καλόν, não possuam algum aspecto semelhante entre si. A mesma reflexão se aplica às
partes, ou seja, o fato delas serem distintas com respeito a elas mesmas e em relação ao todo,
não é suficiente para negar: 1) a sua dependência necessária na/da unidade; 2) os aspectos
semelhantes ou idênticos entre elas, que não eliminam suas distinções, mas são resultado da
sua participação nesse todo, isto quer dizer, nesta natureza unitária da virtude. Isto serve para
mostrar que Protágoras não está comprometido com a compreensão da virtude como unidade,
e que os argumentos de Sócrates focados na relação entre partes e todo – representado pela
σοφία – e as partes entre si são sempre uma tentativa para se voltar à questão que Protágoras
parece se recusar a responder: o que é a unidade das virtudes? Protágoras é, então, cada vez
mais exposto como alguém que não compreende as implicações envolvidas no modelo da
face porque ele não conhece o que seja essa unidade. Buscar os aspectos semelhantes na
218 CENTRONE, 2015, p.115.
71
dessemelhança seria, nesse sentido, um modo de demonstrar que, nessa relação entre parte e
todo, a virtude não é uma soma de partes que podem ser divididas e destacadas das demais,
mas uma unidade.
Existe ainda uma terceira razão favorável à leitura proposta por nossa hipótese. Como
já sinalizado no início da exposição deste argumento, o agir de modo correto (ὀρθός) e útil
(ὠφέλιμος) são ambos contrários à ἀφροσύνην e, portanto, descrevem mais dois traços
comuns a todas as virtudes. Isso pode ser explicado por meio da concepção da unidade como
todo. Em resumo ao que será visto no capítulo 7, as virtudes possuem aspectos comuns à
medida que elas participam do todo. Sendo dependentes desse todo, elas partilham uma
mesma natureza, a saber, a de serem virtude. Além do mais, tais traços ou aspectos se revelam
estritamente ligados ao conhecimento que depois será associado à unidade da virtude na parte
final do Protágoras nos passos: 352c; 358b e 361b-c.
O princípio em que se baseia a ideia de que ὀρθός e ὠφέλιμος são aspectos presentes
em todas as partes e garantidos pela virtude como natureza unitária é a presença da φρόνησις
em todas elas. A φρόνησις é mencionada em 352c no argumento conhecido como a negação
da acrasia, e estará associada ao conhecimento que é dito ser todo belo, e não em parte. Sua
função é de auxiliar os homens a agir segundo este conhecimento, ou seja, sua função é levar
os homens a agir bem219. Logo depois, em 358b em diante, esse conhecimento associado à
φρόνησις, designando, sobretudo, um conhecimento prático, é definido como um
conhecimento forte e resistente à força da aparência, fazendo com que toda ação bela seja
boa e útil (“καὶ τὸ καλὸν ἔργον ἀγαθόν τε καὶ ὠφέλιμον;”). Por conseguinte, a virtude está
ligada a esse conhecimento prático que, como unidade, faz com que cada parte que a ele
pertence seja descrita como bela, boa, correta e útil aos homens. É este conhecimento que,
em 361b-c, estará sendo descrito como a virtude como um todo, ou unidade.
A relação da virtude com o conhecimento, associada à φρόνησις que leva à ação
qualificada como ὀρθός e ὠφέλιμος, pode ser observada claramente nos passos 88a-89a do
Mênon, onde se sublinha a seguinte passagem:
219 PLATÃO, Protágoras, 352c: “ἢ καλόν τε εἶναι ἡ ἐπιστήμη καὶ οἷον ἄρχειν τοῦ ἀνθρώπου, καὶ ἐάνπερ
γιγνώσκῃ τις τἀγαθὰ καὶ τὰ κακά, μὴ ἂν κρατηθῆναι ὑπὸ μηδενὸς ὥστε ἄλλ᾽ ἄττα πράττειν ἢ ἃν ἐπιστήμη
κελεύῃ, ἀλλ᾽ ἱκανὴν εἶναι τὴν φρόνησιν βοηθεῖν τῷ ἀνθρώπῳ;”.
72
Σ – ἆρα οὐχ ὥσπερ τῇ ἄλλῃ ψυχῇ ἡ φρόνησις ἡγουμένη ὠφέλιμα τὰ τῆς
ψυχῆς ἐποίει, ἡ δὲ ἀφροσύνη βλαβερά, οὕτως αὖ καὶ τούτοις ἡ ψυχὴ ὀρθῶς
μὲν χρωμένη καὶ ἡγουμένη ὠφέλιμα αὐτὰ ποιεῖ, μὴ ὀρθῶς δὲ βλαβερά;
Μ – πάνυ γε.
Σ – ὀρθῶς δέ γε ἡ ἔμφρων ἡγεῖται, ἡμαρτημένως δ᾽ ἡ ἄφρων;
Μ – ἔστι ταῦτα.
Σ – οὐκοῦν οὕτω δὴ κατὰ πάντων εἰπεῖν ἔστιν, τῷ ἀνθρώπῳ τὰ μὲν ἄλλα
πάντα εἰς τὴν ψυχὴν ἀνηρτῆσθαι, τὰ δὲ τῆς ψυχῆς αὐτῆς εἰς φρόνησιν, εἰ
μέλλει ἀγαθὰ εἶναι: καὶ τούτῳ τῷ λόγῳ φρόνησις ἂν εἴη τὸ ὠφέλιμον: φαμὲν
δὲ τὴν ἀρετὴν ὠφέλιμον εἶναι;
Μ – πάνυ γε.
Σ – φρόνησιν ἄρα φαμὲν ἀρετὴν εἶναι, ἤτοι σύμπασαν ἢ μέρος τι;
Μ – δοκεῖ μοι καλῶς λέγεσθαι, ὦ Σώκρατες, τὰ λεγόμενα.
S – Não é o caso que, assim como a sensatez (φρόνησις) que, conduzindo
as outras partes da alma, torna úteis as coisas da alma, e a insensatez
(ἀφροσύνη) torna essas coisas danosas, e, novamente, também a alma,
usando e conduzindo corretamente aquelas coisas, assim também as tornam
úteis, [porém não conduzindo e usando] corretamente as tornam danosas?
M – Totalmente
S – Então, a alma dotada de sensatez conduz corretamente, e a que é
insensata conduz erradamente?
M – Assim é.
S – Portanto, segundo tudo isso, deve-se dizer que, para o homem, as demais
coisas dependem da alma, e as coisas da alma dependem da sensatez, se
quiserem ser boas. Afirmamos, então, que a virtude é útil?
M – Totalmente.
S – Afirmamos que a virtude é sensatez, seja como todo, seja uma parte
dela?
M – Julgo que disseste belamente, Sócrates. 220
Este é outro contexto muito semelhante a certas partes da estrutura do Protágoras.
Sócrates diz a Mênon que, para que algo seja considerado como útil e proveitoso, em resumo,
bom (ἀγαθός), deve estar acompanhado pela φρόνησις. Isso porque as coisas que estão na
alma podem ser tanto boas quanto ruins. Por exemplo, a coragem pode trazer o bem ou o mal
para o indivíduo221. O que fará diferença será o fato dela estar acompanhada ou não pela
φρόνησις, caso contrário, ela será apenas uma “espécie de ousadia (οἷος θάρρος)”222. Em
outras palavras, a coragem, quando não acompanhada da φρόνησις, que é um aspecto que
corresponde à natureza da virtude como unidade, não será coragem, pois, fora do todo, ela
deixa de ser uma virtude.
Uma vez que a virtude mantém essa ligação com φρόνησις tanto como todo, isto é,
de modo completo, quanto em relação a suas partes, não só a virtude, mas também suas
220 PLATÃO, Mênon, 88d-89a, tradução nossa. 221 PLATÃO, Mênon, 88b. 222 PLATÃO, Mênon, 88b.
73
partes, dependem da relação com a φρόνησις. Nesse sentido, todas a partes da virtude são
contrárias à ἀφροσύνη, e isso não porque as virtudes são idênticas entre si, mas porque elas
participam da natureza da virtude que está acompanhada pela φρόνησις. Em suma, as
virtudes são semelhantes, não por serem iguais, mas porque todas levam o indivíduo à ação
correta e útil porque todas compartilham da mesma natureza do todo.
Para concluir sobre a relação entre σοφία e unidade do todo, Sócrates e Protágoras
divergem sobre o significado de σοφία. Ao que apontamos, Sócrates entende que a σοφία,
que é o mesmo que ἐπιστήμη (conhecimento), se associa à φρόνησις, e portanto, ao todo da
virtude.
6. Análise dos Argumentos da Justiça e Piedade (330b-332a) e da Justiça e Temperança
(333d-334c)
6.1 Justiça e Piedade
A partir dessa sessão serão analisados dois argumentos que correspondem à relação entre
as partes da virtude. Começando pela análise que relaciona a justiça e a piedade, tem-se a
seguinte passagem:
Σ – ‘οὐκ ἄρα ἐστὶν ὁσιότης οἷον δίκαιον εἶναι πρᾶγμα, οὐδὲ δικαιοσύνη
οἷον ὅσιον ἀλλ᾽ οἷον μὴ ὅσιον: ἡ δ᾽ ὁσιότης οἷον μὴ δίκαιον, ἀλλ᾽ ἄδικον
ἄρα, τὸ δὲ ἀνόσιον;’ τί αὐτῷ ἀποκρινούμεθα; ἐγὼ μὲν γὰρ αὐτὸς ὑπέρ γε
ἐμαυτοῦ φαίην ἂν καὶ τὴν δικαιοσύνην ὅσιον εἶναι καὶ τὴν ὁσιότητα
δίκαιον: καὶ ὑπὲρ σοῦ δέ, εἴ με ἐῴης, ταὐτὰ ἂν ταῦτα ἀποκρινοίμην, ὅτι ἤτοι
ταὐτόν γ᾽ ἐστιν δικαιότης ὁσιότητι ἢ ὅτι ὁμοιότατον, καὶ μάλιστα πάντων ἥ
τε δικαιοσύνη οἷον ὁσιότης καὶ ἡ ὁσιότης οἷον δικαιοσύνη.
S – “Portanto, a piedade não é como ser uma coisa justa, nem a justiça como
ser uma coisa pia, mas como não ser pia; e se a piedade é como não ser
justo, então ela é como ser injusto, ao passo que a justiça é como ser ímpio;
não é isso?” O que lhe responderemos? Eu próprio diria, em minha defesa,
que tanto a justiça é pia quanto a piedade é justa; e, em sua defesa, se você
me permite, eu daria a mesma resposta, que justiça e piedade são a mesma
coisa ou coisas muitíssimo semelhantes e, sobretudo, que a justiça é como
a piedade e a piedade é como a justiça.223
Este constitui o primeiro argumento na sequência do diálogo e a primeira chance de
Protágoras para demonstrar que conhece o tema da unidade da virtude. Lembrando que
223 PLATÃO, Protágoras, 331a-b. Tradução: Daniel R. N. Lopes. São Paulo: Editora Perspectiva, 2017, p. 443.
74
Protágoras não admitiu nenhuma semelhança ou identidade na concepção da virtude como
unidade – o que, na perspectiva da nossa hipótese, constitui uma falta de atenção ou mesmo
negação da própria função que a face desempenha na analogia em relação às partes, qual seja,
da participação em comum que as partes têm nessa natureza a partir da estrutura da unidade
– Sócrates coloca diante de Protágoras o modelo da face e o contrapõe com a conclusão a
que este chegou em 329e em diante: se alguém pode ter uma parte sem as demais, estaria
Protágoras afirmando que a justiça é impiedade e vice-versa? Protágoras entende que
Sócrates quer propor uma semelhança entre as partes para negar a distinção entre elas,
levando igualmente à negação da conclusão de poder ter uma parte independente do todo224.
Todavia, segundo a interpretação proposta por nossa hipótese, é possível fazer uma
leitura em que se perceba que o que Sócrates está dizendo é que a semelhança não se deve às
partes em si, que continuam e são distintas umas das outras. A semelhança se deve a e é
explicada pela unidade. A face não torna os órgãos iguais, mas é ela que os faz terem a mesma
natureza, qual seja, a de serem órgãos da face e não do sistema respiratório. É por meio disso
que eles possuem aspectos em comum sem deixarem de ser distintos. Sócrates quer
demonstrar a Protágoras que, se ele encarar a distinção como algo que leva a possuir uma
parte da virtude, e não a virtude como um todo, ele terá que admitir que a justiça é ímpia, i.e.,
dizer que um indivíduo pode ser ímpio e, ainda assim, possuir uma parte da virtude.
O intuito de Sócrates com este argumento é mostrar a Protágoras que a unidade é o
que condiciona as partes a serem o que elas são. É possível perceber que Sócrates aponta
para isso a partir do momento que ele visa demonstrar que há algo que ambas as partes,
mesmo distintas, teriam em comum, sendo esse o fator responsável para a afirmação de que
ser pio é ser justo, e vice-versa. Nesse sentido, a afirmação seria não que justo é igual a pio,
mas, tomando o modelo da face como parâmetro, seria um entendimento do tipo ‘aquele que
tem face e tem boca, tem olhos’. E isso porque estes fazem parte de uma unidade, que não se
divide, mas funciona como estrutura para estas partes e estas, por sua vez, partilham de
aspectos da natureza da virtude, sem se igualarem ao todo e umas com as outras.
Quando Sócrates postula que a justiça e a piedade devem ser idênticas ou
semelhantes, ele o faz para Protágoras perceber que, em realidade, não é a identificação entre
as δυνάμεις de ambas que deve ser levada em consideração, uma vez que a ação justa é
224 PLATÃO, Protágoras, 331a-332a.
75
diferente de uma ação pia e que ambas possuem capacidades e funções especificas, mas que
essa distinção não leva à consequência de se ter uma parte sem as demais, porque ambas, a
justiça e a piedade, fazem parte de uma mesma estrutura, a saber, a virtude que não admite
nem a impiedade nem a injustiça. A justiça e a piedade, nesse sentido, seriam,
respectivamente, pia e justa, não no sentido destes serem um atributo específico de cada uma,
mas no sentido de demonstrar que, onde se encontra a justiça, também se encontra a piedade.
Uma pessoa que possui a justiça não tem como agir impiamente, porque a verdadeira justiça,
aquela que faz parte da virtude, se encontra na mesma estrutura que a piedade.
O enfoque de Sócrates sobre a questão da identidade e semelhança entre as partes
parece ter o sentido de apontar para a existência de algo que perpassa todas essas partes, e
que faz com que elas, mesmo sendo distintas, sejam obtidas todas juntas, e não em parte.
Assim como o rosto do indivíduo é completo, e não pode ser obtido em partes, a justiça ou a
piedade, sem estar juntamente com as demais partes na virtude como um todo, deixa de ser
virtude, assim como um olho, fora da face, não é o mesmo que estando na face. Isso porque
é a face que proporciona que o olho tenha a visão, do mesmo modo a virtude faz com que a
coragem seja considerada uma virtude. A busca da identidade ou semelhança, seria, em
realidade, a busca por essa unidade que relaciona essa multiplicidade de virtudes.
Para finalizar, Cooper, um defensor da identificação entre as virtudes, vai dizer que
tomar a semelhança entre as partes indicaria “um tipo de unidade mais forte que aquela
pertencente a um todo de partes”225. Essa leitura de Cooper assemelha-se à de Protágoras, ou
seja, que todo e partes são uma soma mereológica em que as partes não são co-implicadas.
Entretanto, quando se adota uma abordagem coerente com as intuições inferidas pela imagem
do modelo da face, tal ideia de unidade se apresenta igualmente forte, por, ao menos, dois
motivos: i) A noção de semelhança ou identificação não tem como critério a eliminação das
distinções entre as partes e o todo. De modo contrário, é devido à dependência das partes ao
todo que elas compartilham da mesma natureza que, fora da face, elas não possuem. Portanto,
não podem ser obtidas independentes dessa unidade; e ii) Essa concepção de unidade como
todo-parte, baseada no modelo da face, preserva tanto a distinção entre todo e partes, quanto
a unidade da virtude.
225 COOPER, 1999, p. 81.
76
6.2 Justiça e Temperança
O seguinte argumento socrático contra a posição de Protágoras relaciona a justiça e a
temperança. A seguir, selecionamos a parte do argumento que nos parece central:
Σ. ἴθι δή, ἔφην ἐγώ, ἐξ ἀρχῆς μοι ἀπόκριναι. δοκοῦσί τινές σοι σωφρονεῖν
ἀδικοῦντες;
Π. ἔστω, ἔφη.
Σ – τὸ δὲ σωφρονεῖν λέγεις εὖ φρονεῖν;
Π – ἔφη.
Σ – τὸ δ᾽ εὖ φρονεῖν εὖ βουλεύεσθαι, ὅτι ἀδικοῦσιν;
Π – ἔστω, ἔφη.
Σ – πότερον, ἦν δ᾽ ἐγώ, εἰ εὖ πράττουσιν ἀδικοῦντες ἢ εἰ κακῶς;
Π – εἰ εὖ.
Σ – λέγεις οὖν ἀγαθὰ ἄττα εἶναι;
Π – λέγω.
Σ – ἆρ᾽ οὖν, ἦν δ᾽ ἐγώ, ταῦτ᾽ ἐστὶν ἀγαθὰ ἅ ἐστιν ὠφέλιμα τοῖς ἀνθρώποις;
Π – καὶ ναὶ μὰ Δί᾽, ἔφη, κἂν μὴ τοῖς ἀνθρώποις ὠφέλιμα ᾖ, ἔγωγε καλῶ
ἀγαθά.
S. Adiante, então! – disse eu. – Responda-me desde o princípio! Parece-lhe
que alguém seja sensato226 ao cometer injustiça?
P. Que seja! – respondeu.
S – Você afirma que ser sensato é ter bom senso?227
Disse que sim.
S – E ter bom senso é deliberar bem ao cometer injustiça?
P – Que seja! – respondeu.
S – Se ele for bem sucedido. Ao cometer injustiça – perguntei –, ou
malsucedido?
P – Bem sucedido.
S – Você afirma, então, que certas coisas são boas?
P – Afirmo, sim.
S – Por acaso – perguntei – são boas as coisas que são benéficas228aos
homens?
P – Sim, por Zeus – disse ele. – E mesmo que não sejam benéficas aos
homens, pelo menos eu as chamo de boas. 229
A sequência deste argumento é interrompida por Protágoras. Ele diz que, apesar de
existirem coisas boas, elas podem não ser úteis aos homens. A explicação para isso é que as
coisas consideradas boas possuem uma natureza variada (“οὕτω δὲ ποικίλον τί ἐστιν τὸ
ἀγαθὸν καὶ παντοδαπόν”)230, o que pode ser exemplificado com o azeite. Apesar de ser bom
226 Mais uma vez lembramos que a palavra “temperança” está sendo utilizada nesta dissertação no lugar de
“sensatez” para a tradução de “σωφροσύνη” e “temperante/ser temperante” ‘para σωφρονεῖν”, ao invés de
sensato/ser sensato. 227 Nesta dissertação fazemos uso da expressão “pensar bem” ao invés de “bom senso” para a tradução de “εὖ
φρονεῖν”. 228 Lembramos que a palavra “útil” é a que adotamos na presente dissertação para a tradução de “ὠφέλιμος”. 229 PLATÃO, Protágoras, 333d-e. Tradução: Daniel R. N. Lopes. São Pauo: Editora Perspectiva, 2017, p. 451. 230 PLATÃO, Protágoras, 334a-c.
77
e útil quando utilizado externamente, ele deixa ser ser bom e útil quando ingerido pelo
homem. Segundo Denyer esta resposta causa uma dificuldade para a estrutura deste que
constitui o terceiro argumento na sequência do diálogo, porque ela impede que “aprendamos
aonde a questão estava levando”231.
Contudo, algumas conclusões podem ser retiradas desta passagem se pensada em
conexão com o que foi visto até aqui. Em 333b, Protágoras, mais uma vez, reforça a ideia de
que, para muitas pessoas, existem indivíduos injustos que também se mostram temperantes
quando agem injustamente. Assim é que alguém pode admitir que um indivíduo temperante
é capaz de cometer um ato injusto. Essa é a concepção que Protágoras tem da virtude. Ele
passa a defender essa posição, dita por ele ser aquilo que a maioria das pessoas concebe,
insistindo que um indivíduo pode ter uma parte da justiça, e nesse caso, pode ser ao mesmo
tempo injusto e temperante. Por sua vez, Sócrates analisa as implicações por trás do
estabelecimento de uma relação entre temperança e injustiça. O intuito é, mais uma vez,
demonstrar que tal associação não se sustenta.
Se, como visto no argumento da σοφία e da temperança, a temperança está ligada à
φρόνησις – contrária à ἀφροσύνην – um indivíduo que é temperante passa a ser um indivíduo
que εὖ φρονεῖν, isto é, uma pessoa que tem bom senso, ou ainda, que pode ser caracterizada
por pensar bem. Considerando essa informação juntamente com a posição de Protágoras, se
um indivíduo é temperante no momento em que age injustamente, sendo suas ações descrita
como εὖ φρονεῖν, o resultado a que se chega é que ele age de forma injusta por considerar
essa ação como sendo a melhor deliberação. Dessa forma para um indivíduo temperante,
neste caso, a ação injusta revela ser a melhor escolha.
O segundo bloco do argumento visa estabelecer a relação entre algo que é, ao mesmo
tempo, bom e útil aos homens, ou seja, que as coisas boas são úteis aos homens. No
argumento do Mênon apresentado anteriormente, uma coisa é dita como sendo boa quando é
feita de modo correto. Isto é considerado útil aos homens, e isso só é possível quando está
acompanhada pela φρόνησις – uma afirmação que também aparece no Protágoras, como
visto antes. No momento em que Sócrates visa relacionar estes dois blocos, Protágoras o
interrompe com seu argumento um tanto relativista e o exemplo do azeite.
231 DENYER, 2008, p. 134.
78
Numa tentativa de unir os dois blocos, Denyer sugere que Sócrates poderia fazer o
seguinte questionamento: “quem é beneficiado e prejudicado por tal justiça ou tal
injustiça”232? Pensando de outro modo, dado que a ação injusta seria considerada boa e útil,
fruto do pensar bem e do deliberar pelo melhor, o passo seguinte seria pensar para quem esta
ação injusta seria útil. Isto envolveria, no mínimo, dois indivíduos: aquele que pratica a ação
e aquele que recebe esta ação. Sendo a injustiça o resultado da melhor deliberação, se ela for
considerada útil, ela deverá ser considerada boa para ambos.
Entretanto, quem sofre uma ação injusta não a considera como algo bom por si
mesmo. Por conseguinte, a ação injusta sofrida pelo indivíduo não é tomada como algo útil,
porque ela não traz benefício, mas prejuízo para o indivíduo. Uma ação injusta também revela
que aquele que escolheu praticar esta ação não optou pelo útil aos homens, mas sim ao que é
mal e prejudicial. Tal ação é diretamente contrária aquele que, de fato, pode ser considerado
temperante.
Protágoras, talvez prevendo a conclusão a que seria levado, tenta relativizar o
argumento que envolve as coisas boas e a utilidade destas para os homens, com a intenção
de demonstrar que nem tudo o que é bom é útil, ou proveitoso aos homens. Essa posição o
levaria a um outro raciocínio, a saber, que podem haver coisas úteis as quais, no entanto, não
são boas, o que explicaria o fato de alguém agir injustamente. Nesse caso, a questão seria não
que a injustiça é algo ruim, mas que alguns homens agem em função do que é útil para si,
ainda que precisem praticar uma ação injusta e isso seria o mesmo que deliberar bem. Logo,
a temperança não estaria ligada ao que é bom, mas ao que é útil ao homem, uma vez que a
utilidade está relativizada, podendo ser associada tanto a coisas boas quanto a coisas ruins,
tomando sempre a si mesmo como parâmetro.
A partir destes dois pontos Sócrates mais uma vez aponta para uma falta de coerência
do raciocínio de Protágoras, que admite que um indivíduo pode ser injusto e, ainda, ter uma
parte da virtude, como a temperança. De modo contrário, dizer que um indivíduo é virtuoso,
é dizer que ele possui todas as partes da virtude. Isso significa que um indivíduo, sendo
temperante, age também de modo justo, não porque temperança e justiça são idênticas, mas
porque ambas fazem parte dessa estrutura única, que não admite ser dividida, nem obtida em
232 DENYER, 2008, p. 134.
79
partes e que mantém, de forma distinta, cada uma das suas partes segundo suas capacidades
específicas.
7. A Relação entre as partes e parte/todo da virtude
A partir da análise feita dos quatro argumentos discutidos nas seções 5 e 6, é possível
compreender que a divergência central entre Sócrates e Protágoras recai sobre a equivocada
compreensão de Protágoras acerca da unidade. Protágoras não consegue explicar esta relação
que envolve as partes regidas por essa unidade e não percebe que elas não podem ser obtidas
fora dessa relação. De posse das informações obtidas anteriormente, a análise se volta para a
concepção de estrutura e da relação entre o todo e suas partes inferidas a partir do modelo da
face para o entendimento da virtude como unidade.
Fazendo uma avaliação da analogia antes de retornar ao Parmênides, a face é esse todo
ou estrutura que possibilita, de algum modo, a cada parte desempenhar bem sua capacidade
(δύναμις) específica. Isso leva ao entendimento de que tais características assim o são em
função da dependência das partes com essa unidade, o que significa dizer que pensar as partes
separadas dessa estrutura é pensá-las sem uma δύναμις própria de cada uma. Por exemplo,
para o olho possuir a capacidade de ver e ser considerado um órgão da face, precisa estar em
estrita conexão com a face. Fora dessa estrutura, o olho deixa de ser um órgão e passa a ser
considerado apenas um material disforme, separado da natureza da face e incapaz de ver –
ou seja, sem δύναμις. Quando a parte, portanto, é separada do todo, ela deixa de ser ‘parte’
de algo, não podendo mais ser considerada o mesmo ente, porque ela perde as características
que apenas obtém ao fazer parte da estrutura, não sendo algo intrínseco a ela.
Aplicando o mesmo caso com relação à unidade da virtude, as partes, como a justiça,
a temperança, a coragem e a piedade, somente possuem essa natureza denominada ‘virtude’
na medida em que participam dessa virtude-ὅλον, isto é, dessa unidade. Como consequência,
tais virtudes não podem ser consideradas como tal ao estarem separadas dessa estrutura
unitária. Fora do todo, ela deixa de ser parte, isto é, ela deixa de ser justiça, piedade,
temperança e coragem, passando a ser outro ente que não uma virtude.
Toda essa analogia entre a unidade da virtude e o modelo da face pode ser explicada
também a partir de uma noção de composição desenvolvida por Harte a partir do Parmênides.
80
Segundo a autora uma “composição envolve limite nas relações que as partes possuem umas
com as outras e com o todo; [portanto] a composição envolve estrutura”233. Essa noção de
limite entre as partes estaria apontando não só a função que elas ocupam na estrutura unitária,
mas também a distinção entre elas mesmas. Destaca-se a seguir a passagem no Parmênides
em 158c-d:
Π - καὶ μὴν ἐπειδάν γε ἓν ἕκαστον μόριον μόριον γένηται, πέρας ἤδη
ἔχει πρὸς ἄλληλα καὶ πρὸς τὸ ὅλον, καὶ τὸ ὅλον πρὸς τὰ μόρια.
A - κομιδῇ μὲν οὖν.
Π. τοῖς ἄλλοις δὴ τοῦ ἑνὸς συμβαίνει ἐκ μὲν τοῦ ἑνὸς καὶ ἐξ ἑαυτῶν
κοινωνησάντων, ὡς ἔοικεν, ἕτερόν τι γίγνεσθαι ἐν ἑαυτοῖς, ὃ δὴ πέρας
παρέσχε πρὸς ἄλληλα: ἡ δ᾽ ἑαυτῶν φύσις καθ᾽ ἑαυτὰ ἀπειρίαν.
A - φαίνεται.
P – Por outro lado, quando cada parte, cada uma, se torna parte, a partir daí
tem limite cada uma com relação a cada uma das outras e com relação ao
todo, e o todo com relação às partes.
A – Seguramente.
P – Para as coisas outras que o um resulta pois que, a partir do um e delas
mesmas, quando entram em comunhão com ele, algo diferente, nelas
mesmas, segundo parece, vem a ser, algo que justamente oferece um limite
de uma em relação a outra; mas, a natureza delas em si mesmas <oferece>
a falta de limite.
A – Parece.234
O que parece estar sublinhado nesta passagem é que Platão estabelece duas maneiras
em que algo, que funciona como parte, pode ser pensado: a) parte (μόριον) de um todo (ὅλον)
e b) parte por si mesma, isto é, considerada segundo sua natureza independente do todo.
Sendo o ὅλον uma unidade (ἕν), quando as partes são consideradas a partir da sua relação
com essa unidade, ocorre o surgimento de algo distinto (ἕτερόν) entre as partes, a saber, o
limite (πέρας) entre elas.
De outro modo, quando estas coisas são consideradas em si mesmas, isto é, fora da
relação com o todo e com as demais partes, são consideradas como algo ilimitado (ἀπειρίαν),
cuja ausência de limite impede que elas sejam definidas tal como seriam ao estar em relação
com o todo, sendo, portanto, partes do todo. De acordo com a explicação de Dorothea Frede,
quando Platão se refere ao ilimitado, tal como ocorre no Filebo235, as coisas que são
233 HARTE, 2002, p. 138. 234 PLATÃO, Parmênides,158c-d. Tradução: Maura Iglésias e Fernando Rodrigues, 2008, p. 109. 235 PLATÃO, Filebo, 23c-27c.
81
consideradas ilimitadas “não possuem natureza definida até que um “limite” ou medida
definida e estável lhes sejam impostos”236
Em outras palavras, quando as coisas, que são ditas partes, são consideradas em si
mesmas, elas não possuem a mesma natureza e o mesmo elemento que lhes marca quando
elas são partes de um todo. Ou seja, fora do todo elas são algo diferente do que quando
consideradas como partes. Isso porque a natureza e o elemento de distinção que nelas surge,
neste presente caso, a δύναμις específica de cada uma, não são intrínsecos às coisas em si
mesmas; elas só os adquirem na medida em que estão em relação com o todo, pois é o todo
que as define e que estabelece a relação entre elas.
Harte sugere pensar o todo em termos de estrutura fazendo uma comparação com o
estruturalismo matemático. Resnik, utilizando o termo “padrão” ao invés de “estrutura”, vai
dizer: “um padrão é uma entidade complexa consistindo de um ou mais objetos, os quais eu
chamo de posições, permanentes em várias relações (e tendo diversas características,
posições e operações distintas)”237. De acordo com Harte, para Resnik “a entidade complexa
é a estrutura; a estrutura não é algo que os objetos envolvidos possuem” 238.
Ao tomarmos o modelo da face como uma estrutura do mesmo tipo descrito acima, é
possível observar que nele as partes estão, por assim dizer, bem arranjadas e posicionadas de
um determinado modo. Por meio desse posicionamento, a cada uma é atribuída uma δύναμις
específica. Pensando na virtude, ela seria então uma espécie de estrutura unitária, tal como a
face, que compartilha sua natureza com as demais partes, de modo que podemos chamar a
justiça e as demais de partes como virtude, porém sem eliminar o aspecto distintivo entre
elas.
Os quatro argumentos apresentados até aqui são evidência de que a virtude-ὅλον pode
ser pensada em termos de uma estrutura unitária no Protágoras. Sendo assim, quando
Sócrates utiliza esses argumentos para demonstrar o equívoco de Protágoras a respeito da
unidade – apontando assim o que poderia ser considerado sua própria concepção de unidade
– ele o estaria fazendo em dois sentidos: 1) para demonstrar que Protágoras não entendeu as
reais implicações que o modelo da face traz para o entendimento da virtude – como o fato de
236 FREDE, Dorothea. Desintegração e restauração: prazer e dor em Filebo e Platão, In: Kraut, Richard (Org.).
Platão. São Paulo: Editora Ideias e Letras, 2013, p. 505. 237 HARTE, Verity, 2002, p. 175. 238 HARTE, 2002, p. 176.
82
que essa unidade, tal como a face, não pode ser obtida em parte; e 2) para demonstrar que as
partes possuem uma relação entre si, não por serem idênticas ou semelhantes umas às outras,
mas porque é a virtude-ὅλον, a unidade, que determina o modo como essas virtudes se
relacionam.
Quando Protágoras apenas utiliza o modelo da face para demonstrar que as virtudes
são distintas, ele desconsidera – consciente disso ou não – o fato de que, neste modelo, não
só a distinção está implicada, mas também a noção de unidade: uma unidade mantém as
partes de um determinado modo, em que a boca não ocupa o lugar dos olhos, nem os ouvidos
o nariz. Essa concepção de unidade estabelece que as partes, a justiça e a piedade, por
exemplo, não possuem características contrárias umas às outras, isto é, não existe o caso em
que a justiça seja ímpia, e a piedade injusta.
A explicação para isso é que ambas compartilham a mesma natureza da virtude – não
de modo a serem idênticas entre si, porque, enquanto a virtude reúne em si cada uma das
virtudes, a parte da virtude individual não possui a δύναμις das demais partes – e por isso
não compartilham características contrárias ao que a virtude é e comporta em sua estrutura,
como a injustiça e a impiedade. Segundo, uma vez que a virtude, como será abordada na
próxima sessão, é um tipo de conhecimento que está ligado à φρόνησις, as virtudes levam os
indivíduos a agir de modo útil e correto, ou seja, εὖ φρονεῖν (pensar e agir bem), associado
ao conhecimento.
Essas características pertenceriam, portanto, à virtude como unidade, sendo atribuídas
às partes na medida em que dela participam. Essas características que foram apontadas nos
argumentos anteriores, bem como a razão pela qual o indivíduo não pode instanciar uma
parte, mas apenas a virtude como um todo, se encontram reunidas na parte final do diálogo,
que fala a respeito da força do conhecimento contra as aparências, conhecida, em geral, como
o argumento da negação da acrasia.
83
8. O argumento da negação da acrasia.
Em 352b-359a, Sócrates faz a seguinte afirmação, contrastando com o início do
diálogo239: uma vez que a virtude é um tipo de conhecimento, ela pode ser ensinada. O que
Sócrates pretende demonstrar é que, se Protágoras não aceitar que a virtude é conhecimento,
ele não poderá ser considerado professor da virtude. A dificuldade de Protágoras em aceitar
essa posição de Sócrates é que ela contém implicações contrárias à sua concepção de unidade
da virtude.
Neste argumento, Sócrates sustenta que as pessoas possuem uma ideia equivocada a
respeito do que ocorre com aquilo que elas chamam “ser vencido pelos prazeres”240. O
entendimento por trás desta expressão é o de que, mesmo possuindo conhecimento do que é
o melhor, um indivíduo continua vulnerável a agir segundo aquilo que não é o melhor para
ele. Essa compreensão ordinária para a maioria das pessoas coloca um desafio para Sócrates
porque vai exigir dele a mesma resposta requerida nos argumentos anteriores, ou seja, que
ele explique porque é necessário que as virtudes sejam entendidas como unidade. A
indagação retoma porque, com esse senso comum, fica aberta a possibilidade de se admitir
que aquele que possui conhecimento pode, ainda sim, escolher pelo pior. E isso leva,
novamente, à concepção de unidade que Protágoras parece querer promover, ou seja, uma
“unidade empírica” formada pela soma das partes que podem ser obtidas independentemente
dessa unidade. A relevância desse argumento da negação da acrasia para a questão da unidade
fica patente quando Sócrates, em 361b-c, comunica que a virtude é conhecimento. Para
conectar este argumento com os anteriores e compreender a relevância do mesmo para o tema
da unidade desenvolvido neste diálogo, vejamos o que foi dito até aqui:
O modelo da face indica um modo possível e adequado dentro dos moldes deste
diálogo e de um contexto platônico mais amplo de compreensão da unidade das virtudes. Por
esse modelo é possível entender e definir a unidade a partir de uma relação entre todo e suas
partes que não envolve a identificação entre eles e entre as partes elas mesmas. Considerando
a unidade das virtudes por meio dessa lente, esta pode ser percebida como uma estrutura
unitária responsável por: a) promover e delimitar a distinção entre as partes ao dotá-las com
239 PLATÃO, Protágoras, 320b. 240 PLATÃO, Protágoras, 353a.
84
δύναμις específica para cada parte b) fazer com que todas elas partilhem dessa natureza do
todo de modo que elas, a partir dessa relação, possam ser denominadas ‘virtudes’.
Na tentativa de persuadir Protágoras e, principalmente, seus ouvintes de que o sofista
apenas tem uma aparência de saber ou concepção equivocada acerca deste tema, Sócrates
elabora quatro argumentos com o intuito de sustentar a unidade da virtude a partir dos
aspectos comuns às partes ou entre as partes e o todo, isto é, pela natureza que partilham.
Tais aspectos, como vimos, são: i) nenhuma parte é contrária à outra; ii) todas as partes são
contrárias a todos os vícios; ii) todas levam o indivíduo a agir de modo correto e útil; iii)
todas as partes são conhecimento. É este último item que Sócrates deverá sustentar agora e
que tem a ver diretamente com a virtude como todo, já que, para que as partes sejam
consideradas conhecimento, é necessário que participem dessa natureza da virtude. O que
Sócrates vai fazer é demonstrar que o conhecimento não se deixa vencer pela força das
aparências. A seguir, tem-se a descrição e análise do argumento.
8.1. Descrição do argumento sobre a força da ἐπιστήμη e negação da acrasia.
Para dar início a esta investigação é necessário recapitular o que foi visto sobre o
argumento da coragem e da σοφία a partir de 349b. Este é o contexto da última tentativa de
Protágoras em defender que uma virtude pode ser adquirida sem as demais. Mais uma vez, a
explicação seria que a coragem se apresenta como algo totalmente distinto das demais partes
da virtude, podendo ser encontrada em pessoas ignorantes, injustas, intemperantes, entre
outros vícios241. Sócrates elabora um argumento para demonstrar que a coragem e a σοφία –
que tem aqui o mesmo sentido que conhecimento – possuem uma relação que permite afirmar
uma semelhança entre elas242.
A rejeição de Protágoras a essa tentativa de Sócrates tem como propósito negar que
haja uma relação forte entre coragem e conhecimento, para afirmar que uma pessoa ignorante
também pode ser corajosa, condizendo com a afirmação de que a virtude, como unidade,
pode ser obtida em parte. A implicação contida nessa rejeição de Protágoras é que, mesmo
que exista um indivíduo corajoso, que possua conhecimento sobre determinada técnica –
241 PLATÃO, Protágoras, 349d. 242 PLATÃO, Protágoras, 350c-d.
85
como mergulhar em poços profundos ou guerrear a cavalo – isso não significa que ser
corajoso é ter, necessariamente, conhecimento. Em outras palavras, para Protágoras, alguém
pode ser corajoso sem conhecimento porque a coragem não está ligada ao conhecimento.
Nesse sentido, o conhecimento não seria critério para impedir alguém de realizar uma ação
contrária à prática virtuosa. Além disso, a partir do momento em que o indivíduo possui uma
parte, com a ausência das demais, ele só possui a virtude em um nível estrito de ação, podendo
estar associada a outras coisas que não são virtudes.
Esta implicação leva Sócrates a construir um argumento a partir da ideia de que
Protágoras está equivocado quanto ao que é ἐπιστήμη. Em 351b-c, ele pergunta a Protágoras
se os homens, que vivem bem (εὖ ζῆν), também vivem de modo agradável (ἡδέως), e se os
que vivem mal (κακῶς), vivem de modo desagradável (ἀηδῶς). Protágoras diz que isso só é
possível quando o viver de modo agradável (ζωή ἡδόμενος) está associado ao que é καλός,
isto é, ao que é nobre. Com isso, Protágoras abre a possibilidade de pensar que nem tudo o
que é agradável está relacionado ao bem, porque existem coisas que não são boas, mas que,
ainda assim, se mostram agradáveis243 – algo que já estava implícito na interrupção do
argumento sobre a justiça e a temperança por Protágoras.
Sócrates precisa demonstrar que o valor de ‘agradável’ está ligado ao do bem, e não
a qualquer coisa que pareça bem ao indivíduo, principalmente se consistir em uma má ação.
Para isso, ele questiona em que sentido Protágoras se posiciona acerca destas opções: 1) que
o conhecimento, como entende a maioria, é algo que não é capaz de governar um indivíduo
e, por isso, o indíviduo, mesmo sabendo o que é a melhor ação, pode errar em suas ações, ou
2) que o conhecimento – que é “conhecimento das coisas que são boas e más (γιγνώσκῃ τις
τἀγαθὰ καὶ τὰ κακά)” – governa a ação dos indivíduos e, por meio da φρόνησις, os leva a
agir bem e de modo correto.244
Protágoras concorda com Sócrates que a descrição do conhecimento é tal como a
segunda alternativa. Mas Protágoras é aquele que fundamenta seu saber na aparência das
coisas ou, ainda, a partir de uma perspectiva empírica de mundo. Logo, para ele, mesmo
sendo este o caso, o fato é que – e isso é o que ele leva em consideração – para a maioria das
pessoas, alguém que tenha a posse do conhecimento do que é o bem e o mal pode cometer
243 PLATÃO, Protágoras, 351d-e. 244 PLATÃO, Protágoras, 352a-c.
86
ações contrárias ao que dita o conhecimento, ou seja, pode ser vencido pelos prazeres, e não
praticar aquilo que seria melhor para eles. Sócrates rechaça a posição da maioria alegando
que não existe nenhum caso em que o conhecimento é vencido pelo prazer, mas, por um
equívoco de entendimento, o indivíduo acha que possui o conhecimento, quando, na verdade,
não o tem. Por isso, é necessário explicar de outro modo o que leva alguém a agir de forma
contrária ao que é melhor245.
Primeiramente, ele explica como as pessoas entendem o que é deixar-se vencer pelos
prazeres: elas pensam que sabem o que é mal para elas, mas mesmo assim o fazem, porque,
a princípio, consideram que tal objeto ou situação as levaria a algum tipo de prazer. Além
disso, elas compreendem que algo é considerado como ruim ou bom em função de seus
resultados posteriores: o que é ruim terá consequências negativas para o indivíduo, o que é
bom levará o indivíduo a alcançar o bem. Elas, em geral, associam o mal à dor, e o bem ao
prazer. Contudo, existem situações em que coisas dolorosas são, na verdade, um bem, porque
resultam em coisas boas, como saúde, ou a salvação da cidade.246
O que Sócrates tenta mostrar é que as pessoas sempre irão associar o prazer ao bem
e a dor ao mal. A questão é que nem tudo o que é prazeroso ou doloroso é, respectivamente,
um bem ou um mal247. O que vai definir se uma ação deva ser classificada como boa ou má
- é o resultado desta. Se o fim de uma ação for bom, então, o prazer se mostra autêntico,
porque tem como resultado um benefício para o indivíduo. Da mesma forma, se evitar a dor
resultar em algo bom, também este indivíduo estará agindo conforme o que é melhor, porque
o resultado dessa ação é bom. Ou seja, saber se uma ação é boa ou má tem a ver com o
conhecimento da conclusão dessa ação, o que tem a ver com conhecimento a longo prazo.
Partindo desta constatação de que o agradável não é diferente do bem e o
desagradável não é distinto do que é mal, Sócrates sugere a seguinte explicação: a maioria
das pessoas entende, num curto prazo de tempo, que a ação que ela pratica é um bem porque
lhe causa prazer. Se agir dessa forma é ser vencido pelo que é agradável, o que a maioria das
pessoas está dizendo é que, ainda que elas possuam o conhecimento do que é o verdadeiro
bem, isto é, o que é o melhor, elas escolhem essa outra coisa que aparenta ser um bem, mesmo
sabendo que, na verdade, se trata de algo ruim. Essa conclusão a que leva o raciocínio do
245 PLATÃO, Protágoras, 353a-b. 246 PLATÃO, Protágoras, 353c-354b. 247 PLATÃO, Protágoras, 354c-355a.
87
senso comum descreve que, ao saber o que é melhor, o indivíduo acaba optando por um
“bem” menor.248
Sócrates vai dizer que essa não é a verdadeira explicação. O que de fato acontece
nesse caso é que essas pessoas não possuem conhecimento algum e é devido à ausência de
conhecimento que elas acabam por praticar uma ação que se mostra como ruim a médio e
longo prazo. Isso ocorre porque a maioria das pessoas comete ações desse tipo por ser
vencida por uma aparência de bem, ou seja, um “prazer” imediato, seduzida pelo que Sócrates
irá chamar de “φαινομένου δύναμις249”, algo como força da aparência. Essa força da
aparência faria com que as coisas tomassem uma aparência diversa do que elas são. Essa
distorção seria a nível temporal, porque a dificuldade aqui, e a razão que faz com que elas
sejam derrotadas pela força da aparência, é o fato delas não saberem discernir se aquilo, que
se apresenta no tempo presente, é melhor ou não para elas mesmas no futuro250.
O indivíduo, derrotado pela aparência, não consegue ter uma apreensão real do objeto
ou da situação próxima temporalmente a ele e, por isso, não consegue discernir o verdadeiro
bem do mal. Em 356e-357e, Sócrates diz que isso é devido à ausência de conhecimento do
bem e do mal, que consiste, segundo ele, numa espécie de “μετρητική τέχνη”251, ou seja, uma
arte da medida, que faz com que o indivíduo não se deixe enganar pelas distorções
provocadas pela força da aparência.
8.2 A relação entre virtude ἕν-ὅλον e conhecimento (ἐπιστήμη).
Em seu argumento sobre a negação da acrasia, Sócrates traz uma definição de
conhecimento forte cuja principal característica é o de ser resistente às aparências. Segundo
Gosling:
O que combate a força das aparências é o conhecimento das medidas. (...)
Admitir que a técnica de medir remove a força das aparências parece sugerir
que convicções seguem imediatamente ao cálculo. Emoções tais como o
medo tendem a ser julgadas baseados em aparência, e evaporarão quando
formos confrontados com os fatos. Estamos descomplicando não apenas em
248 PLATÃO, Protágoras, 355a-356c. 249 PLATÃO, Protágoras, 356d. 250 PLATÃO, Protágoras, 356c-e. 251 PLATÃO, Protágoras, 356d.
88
motivação, mas, também nosso modo de aquisição de crenças. É isso que
torna a posição de Sócrates tão otimista em relação ao progresso moral.252
Desse modo, Sócrates coloca que este conhecimento, uma vez instanciado no
indivíduo, capacita a pessoa a agir sempre em função do bem, sendo algo útil ao indíviduo e
aos demais que possam estar recebendo esta ação. Portanto, esse conhecimento, classificado
como um tipo de μετρητική τέχνη – técnica ou especialidade em não se deixar levar pela
proximidade ou distância temporal de um evento – é um conhecimento não só a nível teórico,
voltado para um objeto, mas um conhecimento prático, por estar associado à φρόνησις, não
admitindo que um indivíduo pratique algo contrário a este saber. Este é o tipo de
conhecimento que está ligado à unidade da virtude e que Sócrates expõe a Protágoras da
seguinte maneira:
Σ. εἰ μὲν γὰρ ἄλλο τι ἦν ἢ ἐπιστήμη ἡ ἀρετή, ὥσπερ Πρωταγόρας ἐπεχείρει
λέγειν, σαφῶς οὐκ ἂν ἦν διδακτόν: νῦν δὲ εἰ φανήσεται ἐπιστήμη ὅλον, ὡς
σὺ σπεύδεις, ὦ Σώκρατες, θαυμάσιον ἔσται μὴ διδακτὸν ὄν.
S. “Pois, se a virtude fosse alguma outra coisa que não conhecimento, como
Protágoras tentava argumentar, ela obviamente não poderia ser ensinada.
Todavia, se é manifesto que é conhecimento como um todo, como você se
apressa em dizer, Sócrates, será espantoso se ela não puder ser ensinada.”253
Aqui Sócrates expressa de forma direta uma característica essencial da natureza da
unidade da virtude, qual seja, a de ser uma ἀρετή ἐπιστήμη ὅλον. Uma vez que as partes
obtém, por participação, a natureza de ser uma virtude, elas igualmente são tomadas como
conhecimento254, que se diferencia da ἀρετή ἐπιστήμη ὅλον uma vez que dela é dependente
e que cada uma possui sua δύναμις própria. Essa característica essencial que define a natureza
da virtude como unidade pode ser pensada como sendo a principal já que, por meio dela, é
possível relacionar todas as características vistas anteriormente nos quatro argumentos.
Sendo assim, a partir de toda essa relação, é possível inferir que, se uma pessoa é
virtuosa, ela o é devido a esta unidade que é, por sua vez, categorizada como um tipo de
conhecimento – μετρητική τέχνη. Com isso, essa pessoa não só é capaz de agir segundo a
252 GOSLING, Justin. Weakness of the Will: The Problems of Philosophy their past and Present. London:
Routledge, 1990, p. 14-15. 253 PLATÃO, Protágoras, 361b. Tradução: Daniel R. N. Nunes. São Paulo:Editora Perspectiva, 2017, p. 533. 254 PLATÃO, Protágoras, 361b-c.
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δύναμις específica de cada parte, como pensa e age em função do que é melhor – indivíduo
εὖ φρονεῖν. Como resultado, ela não age em função daquilo que é contrário à virtude, por
exemplo, a ἀφροσύνην – bem como não admite que o indivíduo seja em parte virtuoso e em
parte contrário à virtude – isto é, ele não pode ser, ao mesmo tempo, justo e ímpio, temperante
e injusto, e assim por diante.
Para concluir esta argumentação da negação da acrasia – que leva à intrínseca relação
entre a virtude como unidade, a ἀρετή ἐπιστήμη ὅλον – e a μετρητική τέχνη –, é importante
fazer a ligação entre esta e o argumento que está inserido neste contexto, que é o argumento
da coragem e da σοφία visto na sessão 5. A intenção aqui é: 1) unir a questão da σοφία ao
conhecimento e a virtude agora como ‘ἐπιστήμη ὅλον’; e 2) refazer a leitura do argumento
por uma perspectiva mais ampla na qual ele está inserido.
Como visto, em 353b, Sócrates afirma que entender o que de fato ocorre no momento
em que alguém se diz vencido pelo prazer auxilia na compreensão da relação entre a coragem
e as demais partes da virtude255. Em outras palavras, saber que um indivíduo age mal devido
à ignorância e não à falha ou fraqueza do conhecimento, explicaria porque um indivíduo tem
todas e não somente uma parte da virtude. No segundo momento do argumento da
coragem256, aquilo que é considerado verdadeiramente bom e agradável só pode ser
discernido por alguém que possui o conhecimento do bem e do mal. Este indivíduo agiria em
vista daquilo que é bom e útil. Agir de modo contrário a isso é agir em função da aparência
de bem, isto é, agir por meio da ignorância.
Analisando a coragem no indivíduo, uma pessoa corajosa é assim considerada por
agir de acordo com o bem. Sendo a coragem um tipo de conhecimento, o indivíduo corajoso
será aquele que, ao enfrentar dores e perigos, fa-lo-á sabendo que o resultado dessa ação – o
fim dela a curto, médio e longo prazo – será bom e agradável. O contrário disso descreve o
tipo de ação impulsionada pela covardia. Nesse caso, o indivíduo não enfrenta, mas foge de
situações dolorosas e perigosas, por parecer a ele que, evitando a proximidade da dor e do
perigo, estará fazendo a escolha pelo melhor. A coragem, portanto, é contrária à covardia e,
255 PLATÃO, Protágoras, 353b: “οἶμαι, ἦν δ᾽ ἐγώ, εἶναί τι ἡμῖν τοῦτο πρὸς τὸ ἐξευρεῖν περὶ ἀνδρείας, πρὸς
τἆλλα μόρια τὰ τῆς ἀρετῆς πῶς ποτ᾽ ἔχει.”. 256 PLATÃO, Protágoras, 358b-c.
90
por sua vez, contrária à ignorância, porque aquilo que a rege, isto é, o todo, é a ἀρετή
ἐπιστήμη ὅλον, ou seja, a unidade da virtude. 257
Quando Platão diz que coragem é σοφία – portanto, conhecimento como descrito
anteriormente e associado ao todo – e que um indivíduo que possui este conhecimento não
age contrariamente ao que é o melhor, o mesmo vale para as demais virtudes porque, assim
como a coragem só é coragem (virtude) por participar dessa estrutura que é o todo, assim
também as demais, participando desse todo, podem ser ditas como conhecimento. Desse
modo, como a unidade não pode ser dividida em partes, um indivíduo que é corajoso não
pode agir impiamente, injustamente e de modo intemperante.
Protágoras, no final do diálogo, se vê diante de um dilema sem saída: ou ele admite
que a unidade da virtude é o tipo de conhecimento definido por Sócrates – e não um acúmulo
de virtudes adquiridas ao longo dos anos - e demonstra que ele, de fato, nada sabe a respeito
das virtudes; ou ele nega que a unidade da virtude seja um tipo de conhecimento, levando à
impossibilidade de ensiná-la e de haver qualquer professor da virtude.
257 PLATÃO, Protágoras, 359c-d.
91
9. Conclusão
A conclusão desta dissertação começa por indicar como nossa hipótese se situou
diante do estado da questão. Vlastos, como foi visto, centraliza sua leitura muito mais na co-
implicação das virtudes do que na própria ideia de virtude como unidade. Em resposta, o
caminho da nossa hipótese foi o inverso: entendendo que Platão, por meio de Sócrates, está
centrado no tema da unidade da virtude, onde a co-implicação surge apenas como um dos
resultados da concepção de unidade, é a unidade, e o não inverso, que explica porque uma
pessoa não pode ter uma parte da virtude sem as demais. Além disso, quando Sócrates trata
das virtudes como partes ou relacionadas à σοφία, existe uma diferença para a qual Vlastos
não atenta. Esta consiste em que ora Sócrates se refere aos termos da virtude considerados
como objetos em si, ora como instanciados no indivíduo, e os relaciona.
Relacionar as partes entre si e as partes com o todo, por exemplo, indica aquilo que é
comum entre elas devido à unidade; outra coisa é, partindo dessa concepção, mostrar sua
implicação quando instanciada no indivíduo, por exemplo, que ele não pode ter uma das
partes sem as demais. Vlastos adota a predicação paulina como leitura para essas relações,
centralizando-se somente no indivíduo. Ademais, ele considera a σοφία como parte, quando
Platão não parece estar comprometido com essa leitura, como tentamos mostrar. Pela tese
aqui apresentada Platão usará σοφία no mesmo sentido que ἐπιστήμη, associada ao todo e
não às partes.
Em relação a Penner, nossa posição se diferencia principalmente na defesa de que as
virtudes são distintas umas das outras e isso não constitui impedimento para se pensar a
virtude como unidade. Usando a mesma resposta que foi dada a Cooper, que tem uma posição
que vai na direção da tese da identidade, a relação de não identidade entre o todo e suas partes
está fundamentada na noção de um todo como estrutura unitária de que as partes são
necessariamente dependentes. Ainda sobre a posição da tese da identidade, diferente de
Hartman, que não considera os modelos da face e do ouro como adequados, nossa hipótese
toma o modelo da face como diretriz para aquilo que entendemos ser a posição de Platão
expressa pelos argumentos de Sócrates.
92
Em termos mereológicos, a noção que designa essa unidade deve ser compreendida
como estrutura a partir das intuições proporcionadas pelo modelo da face. Essa estrutura
envolve uma relação entre todo e suas partes em que estas são dependentes daquela. A
unidade da virtude seria, portanto, esta estrutura que delimita as partes da virtude entre si,
bem como o modo em que elas se relacionam, além de torná-las participantes dessa natureza
da unidade de modo a poderem assim serem consideradas ‘virtudes’.
De modo a defender essa interpretação da virtude como unidade proposta no
Protágoras, a presente dissertação argumentou a partir de Centrone e Harte de modo a
compreender como esses conceitos mereológicos e suas relações, sobretudo por meio do
modelo da face, correspondem a uma perspectiva mais ampla no pensamento platônico.
Assim, baseados em Centrone, tomamos o modelo da face como diretriz que indica o modo
como Platão concebe a unidade da virtude. Como afirmamos, em sintonia com esse autor,
essa unidade se apresenta como uma estrutura ἕν-ὅλον, ou seja, “uma totalidade orgânica e
unitária, articulada em partes distintas e diferente da simples soma ou justaposição de tais
partes”258. Essa articulação entre o todo e suas partes tem como uma de suas consequências
a afirmação de que alguém pode ter uma das virtudes sem as demais.
Através de Harte, procuramos oferecer um entendimento mais ampliado das noções
mereológicas que estão em jogo no Protágoras. Tomando o Parmênides como ponto de
partida, Platão elabora um novo modo de pensar o todo, as partes e suas relações ao não
identificá-lo com suas partes, algo presente no Protágoras com a analogia da face. A unidade
portanto é concebida como uma estrutura cuja “composição envolve limite nas relações que
as partes possuem umas com as outras e com o todo”259. Nesse sentido, as partes são aquelas
que, fora do todo, perdem a sua natureza de serem órgãos da face ou virtudes. A partir dessa
leitura apoiada no próprio pensamento platônico, é possível sustentar a hipótese que a
unidade da virtude é essa estrutura complexa em que as partes se relacionam entre si e com
o todo não por um princípio de indentidade, mas por um princípio em que a virtude-ὅλον
determina o modo como elas devem ser segundo sua própria natureza.
A dependência das partes em relação ao todo foi indicada a partir dos quatro
argumentos sobre as virtudes. Na análise desses argumentos foi possível observar que a busca
258 CENTRONE, 2015, p. 103. 259 HARTE, 2002, p. 138.
93
por semelhanças e identidades não se faz necessariamente por uma identificação entre as
virtudes, tal como sustentada pela tese da identidade ou pela analogia do ouro. De outro
modo, os quatro argumentos oferecem caminhos para se pensar uma noção de unidade tal
como conduzida por meio da imagem do modelo da face. Neste caso, o que explica e sustenta
essas coisas em comum entre virtudes distintas é o fato delas participarem dessa natureza
unitária. Sendo assim, a natureza da virtude gera nessas partes os seguintes atributos: i) todas
as partes são conhecimento devido à natureza da virtude consistir em uma ἀρετή ἐπιστήμη
ὅλον; ii) nenhuma parte é contrária à outra; iii) elas possuem o mesmo contrário devido à
natureza da virtude; iv) todas conduzem à ação correta (ὀρθός) e útil (ὠφέλιμος), porque a
virtude-ὅλον está assoaciada à φρόνησις; e v) elas, para existirem como tais, são
necessariamente dependentes do todo, logo, não podem ser obtidas em parte.
Com relação ao papel da σοφία no diálogo, entender em que sentido ela está sendo
utilizada por Platão se mostrou fundamental para o entendimento da virtude como unidade.
Isso porque, partindo da hipótese do modelo da face, o todo não está identificado com suas
partes. Assim, ao contrário de Centrone, que defende a possibilidade de Platão ter pensando,
neste diálogo, a σοφία como parte e todo ao mesmo tempo – o que o leva, ao nosso ver, ao
sentido oposto de sua argumentação a favor do modelo da face –, nossa interpretação
procurou defender que a σοφία corresponde ao todo, e não às partes da virtude. Baseado no
argumento da coragem e da acrasia, bem como em algumas passagens do Laques, a σοφία
se define como virtude-ὅλον por estar sendo utilizada por Sócrates não como um tipo
específico de saber mas como intercambiável com a ἐπιστήμη, associada à virtude como todo.
Por fim, o conhecimento surgiu como essencialmente associado à virtude como um
todo, passando a unidade da virtude a ser definida como uma ἀρετή ἐπιστήμη ὅλον. Este
conhecimento surge como aquele que resiste à aparência e sempre leva o indivíduo a agir
bem, uma vez que está associado à φρόνησις e não pode ser obtido em parte.
Quando observamos que a virtude-ὅλον, ou seja, a unidade da virtude, corresponde
ao conhecimento do todo, identificado como sendo o conhecimento do bem e do mal260, e
que este conhecimento está associado à φρόνησις, que leva o homem à ação boa e útil261,
chegamos às seguintes conclusões: 1) que o fato de um indivíduo não poder ser em parte
260 PLATÃO, Protágoras, 352c. 261 PLATÃO, Protágoras, 352c, 358b.
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corajoso e em parte injusto não se explica porque o indivíduo possui uma parte da virtude,
mas a virtude como um todo, ou seja, o conhecimento do bem e do mal. 2) Isso explica que
a coragem e as demais partes da virtude, separadas desse todo, não são suficientes para
impedir que um indivíduo aja de modo contrário à virtude. Isso porque, se assim o fosse, não
haveria motivos para Sócrates negar a possibilidade de obter apenas uma parte da virtude.
Com isso, dizer que um indivíduo corajoso não irá agir injustamente, é dizer que aquele que
possui a coragem, possui as demais virtudes, porque a virtude, como unidade, deve ser obtida
como um todo. Tendo isso em vista, o diálogo nos dá abertura para podermos dizer que o
fato de cada parte ser conhecimento, cada um distinto do outro, se deve à sua participação na
unidade da virtude.
Em resumo a tudo que aqui foi dito, procuramos demonstrar que a ideia da virtude
como estrutura unitária é sugerida pela analogia do modelo da face, o qual, dentre outros
aspectos, nega a possibilidade de que um indivíduo possa instanciar uma das partes sem as
demais. Nesse sentido, os argumentos sobre partes da virtude se mostram coerentes com o
modelo da face, por terem como objetivo demonstrar a impossibilidade de se ter uma parte
da virtude sem as demais.
Para concluir, a relação da virtude-ὅλον com o conhecimento demonstra que um
indivíduo, que é virtuoso, não só terá em si instanciada a coragem, mas também todas as
demais partes da virtude, não podendo, em função disso, agir contrariamente ao que é
moralmente melhor, isto é, justo, pio, temperante e corajoso. Assim, ao mostrar que a virtude
é conhecimento, Platão resguarda a unidade da virtude, bem como a relação dessa unidade
com as suas partes.
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