verger, jacques. homens e saber na idade média
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8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
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EDÜSC
Edton <t o UntonUM» do
V5867h Vergerjacques
Homens
e
Saber
na
Idade Média
/ Jacques
Verger;
tradução Carlota
Boto.-
Bauru, SP: EDUSC, 1999.
284 p.; 21 cm (Educar)
^
ISBN
85-86259-46-2
Tradução de: Lês Gens de Savoir
daris
l' Europe de
I a
fin
du
MoyenAge
, Inclui bibliografia.
1. Idade Média. 2.
Civilização
Medieval
I.Título.
II. Série.
CD D 940.1
ISBN,2 13 048764 5 (original)
Copyright
© Press Úniyersitaires de France, 1997
Copyright
© tradução),
EDUSC,
1999
Tradução realizada a partir da 1
a
ed. (1997)
Direitos exclusivos
de
publicação
em
língua portuguesa
para
o
Brasil
adquiridos
pela
EDITORA DA
UNIVERSIDADE
DO
SAGRADO
CORAÇÃO
i Rua Irmã Anhinda,
10*50
CE P 17011-160
-B au r u
- SP
Fone (14)
3235-7111
- Fax (14) 3235-7219
e-maa:
edusc@edusc.com.br
S
sumário
Apresentação
Introdução
PRIMEIRA PARTE
Os fundamentos
da
cultura.
Capítulo I: Os saberes _ _™
l .As
bases: o latim e Aristóteles
___
2. Saberes legítimos e saberes marginais.
3.As disciplinas superiores: teologia,
medicina
e direito --~
T
~~
n
_
4.
Utilidade social ou cultura
geral?.
5. Cultura erudita, cultura popular„
Capítulo II: Os
estudos
l .As escolas elementares,
2. A universidade _____
3.As novas instituições.
Capítulo III: Os livros
^
l. O
acesso
ao
livro „
„ _ :
2.0
conteúdo das bibliotecas
1
3. Do manuscrito
ao
impresso
,
S EGUNDA P AR TE
O
exercício
das
competências
„
2.
Homens de saber, homens de
Igreja.
3. Uma
idade
de
ouro
dos legistas?.
4.
Conclusão: alguns matizes necessários
Capítulo V: Saber e
poder
r
_ ,
3
2
23
23
38
47
56
6
69
7
8
4
2
22
8
35
Capítulo IV:
Serviço
de
Deus, serviço
do
príncipe _,
137
l.
Docere aut applicare
39
44
56
65
69
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
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1. Saber e ideologia. _
2.
Do
serviço
ao conselho
3- Espírito
de
corpo
u
Capítulo VI: O mundo da prática
1. Cultura erudita e prática privada
2. Os
intelectuais intermediários
_ _
3-
O alcance social dos
saberes:
contestação ou
integração?
- -'. -
--
- -
r , , -
-
TERCEIRA PARTE
•
Realidades sociais e imagem de si u _ _
Capítulo VII: Homens novos ou herdeiros?,
1.
Questões de
fontes
e de.
método
2.
A
vereda dos estudos „__ ™_
3.
Reconversão, adaptação, reprodução
,
Capítulo VIII:
Ambições e representações
1.
Clero
.. ,
;,.'
- .
2. Nobreza L .
3. Um "quarto estado".
170
179
190
195
196
199
203
221
22 3
22 3
229
237
24 5
246
249
258
Capítulo L X : À
guisa
de
conclusão:
dos
doutores aos
humanistas -
continuidade
e
inovação .
267
1.
Dominadores
e
confiantes
em si 268
2.
Idéias novas, homens novos
: . . . • - : -.
270
Bibliografia
279
present ção
Há
mais
de u ma
década, Jacques
Lê Goff
produziu
u m
livro qu e modestamente chamou de u m "esboço". Os
intelec-
tuais na Idade
Média,
obra já clássica, onde este inquieto e bri-
lhante medievalista-resgatava o pensamento dos mestres das
escolas de pensamento medievais. Apesar da relutância e
x
o
pudor d e Lê Goff de denominar este trabalho de Introdução a
uma
Sociologia
histórica do intelectual
ocidental,
é exata-
mente nisso
que
esta pequena obra consiste:
o
estudo dos
"humanistas cristãos", suas reflexões e a difusão'de seu pensa-
mento, do século XII à Renascença.
yjacques
Verger retoma
este
universo
com um
outro
olhar.
Na
mesma trilha
de uma
sociologia histórica, amplia
o
horizonte de investigação, para além dos "clérigos intelectuais",
para as profissões intelectuais e para os burocratas do Estado,
tentando medir
o
peso
que as
várias disciplinas
-
religiosas,
literárias
e
jurídicas
-
adquirem
na
formação
da
consciência
de
si-mesmo do Ocidente europeu.Verger abandona os mestres,
os formadores e produtores de idéias, para concentrar-se
nos
que
estudavam, tentando entender
o que
estudavam
e como
estudavam,
para depois voltar-se para o
seu
fazer, para a
apli
:
cação
e o
exercício
do que
haviam aprendido.
• ; j í j j
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
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O tema, contudo, não é novo, nova
é
a forma de abor-
dagem.
A
começar pelo título
Gens de Savoir,
qu e intenta pre-
cisar
a real dimensão do saber, da sua produção e á sua circu-
lação.
Os
"homens
de
saber"
não se
restringem
a uma
erudição
latina,
a
uma
cultura
livresca, ao final da
Idade M édia.
Mas
sim,
constituem
os
detentores
de
valores culturais,
que
lhes per-
mitem
o exercício de profissões, a participação no poder e até
mesmo a atividade erudita.
N a tentativa de resgatar é entender esses homens, esta
obra é dividida em três partes. A primeira é preparatória, diz
respeito
à
qualidade
do
saber
e
suas diferentes formas, onde
Verger investiga os limites e as possibilidades de apreensão" - e,
por que não dizer, produção do saber? Para isso, examina o
caráter
das
disciplinas
e o seu
relacionamento, entre
si e com a
doutrina cristã, limite irredutível para toda
forma de co-
• nhecimento medieval. A seguir, analisa ps estudos: das simples
escolas
de
gramática
até as
Universidades. Somos colocados,
então, frente
a uma população
socialmente conformista,
respeitosa
à
ordem estabelecida,
que
estuda
e se aprofunda em
disciplinas pertencentes a uma ordem legítima dos
saberes
e
tm completa sintonia com a ordem social e política dominante.
Homens
de saber, homens do poder, homens dó livro. Os livros
eram a sua marca, a sustentação de seu poder e os fornecedores
da
ju stificativa de seu papel social. Por isto, o autor volta o seu
olhar
para o instrumental por excelência deste saber: os livros,
o acesso a eles e o acervo das bibliotecas, caminhando do
incunábulo ao livro impresso.
A través
de um excelente inven-
tário do conteúdo das bibliotecas e o seu significado, demons-
tra a persistente unidade da cultura erudita e a sua
forte
tendên-
cia conservadora. E é nessa estrutura cultural de preservação e
conservação que reside a
força
dos homens de saber, pois eram
os
detentores
e
reprodutores
de uma
cultura forte
e
coerente
que, apesar de suas limitações e de seus sintomas de esclerose
ao final da Idade
Média,
ainda possuía alento para criar uma
'consciência de si
neste
grupo social.
A
segunda parte está dedicada ao exame da sua prática
intelectual, bem como sua prática social, inventariando as
funções que as competências intelectuais permitiam a
esses
homens desempenhar na sociedade da época. Homens destina-
dos a
servir
a
Deus
ou aos
príncipes, constituem
um
grupo
novo
que ultrapassa a antiga divisão clérigos-laicos, distancian-
do-se os primeiros dos
simples
sacerdotes e aproximando-se os
segundos
-
bastante apartados
dos
burgueses comuns
-
tanto
socialmente
'quanto
intelectualmente dessa,
camada
dos
"doutores"
da Igreja,
formando
um
segmento
nobilitádo pelo
saber
que se
sobrepõe como
uma
cunha
à
primitiva
clivagem
social medieval.
A relação
deste
grupo com o poder, diz respeito a uma
problemática, que Verger desvendará ao longo desta parte,
colocando-se
questões fundamentais para a sua compreensão.
Qual
a natureza exata dos 'serviços'
prestados
pelos homens de
saber à Igreja e ao
Estado?
Eles os serviam, mas não se serviri-
am também deles? Haveria
u ma
relação
funcional
entre
a sua
competência intelectual
e as
tarefas cumpridas?
A
su a praxis
social era sempre direcionada ao serviço de Deus - ou do
Príncipe?
Perguntas que nortearão os próximos capítulos, onde
nós não encontraremos os grandes e orgulhosos doutores, mas
o verdadeiro representante do grupo, o modesto
rnagister,
o
simples mestre em artes, possuidor de conhecimentos rudi-
mentares,
fundados
em uma
prática social específica,
mas que
constituíam uma bagagem comum
socialmente reconhecida.
A relação destes
homens com o poder e sua inserção no
mesmo,
serão objeto
de
análise. Homens
que
desenvolveram
um
sólido espírito corporativo, que irão compor a retaguarda
do poder real, participando de algim modo de sua majestade e
protegidos por salvaguardas especiais, tirando o máximo
proveito
de um
processo
no
qual constituíram simultanea-
mente
os
intrumentos
e, em
larga medida,
os
atores.
E
aqui
insere-se a sua prática: as gentes de saber percebiam que a sua
afirmação
passava pela aceitação de um papel integrador
Integrando
o
aprendido
com as
novas regras
do jogo
social
e
político, estes homens ocupam
um
território privilegiado
na
nova
sociedade que se afirma, e a :sua prática cotidiana
fornecerá
os
meios
ao
nascente Estado moderno
de se
fazer
aceitar e de se fazer obedecer, ou mesmo de se fazer conhecer.
. Por outro
lado,
o estudo de
Verger
não considera
estes
homens
como
abstrações, definidas pela posse de uma deter-
minada competência ou por sua ligação a um ofício. M as sim,
9
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tentai
percebê-los, para melhor entender o
papel
que
desem-
penhavam
na
sociedade
de seu
tempo, como
seres de carne e
sangue,
com
suas ambições, seus interesses
e
suas amizades.
Homens
que
criaram novos papéis
sociais e
lhes deram
uma
forma através de seu próprio fazer.
A
última parte,
que
lamentavelmente
é a
menos
desen<
volvida
e no entanto possui uma riquez a de idéias, algumas ape-
nas
esboçadas, remete
às
representações sociais
e à
imagem
de
si mesmas que têm as elites- intelectuais ao final da Idade Média.
Aí a
problemática
se
adensa,
ao tratar das
represen-
tações
que forjaram
para
si os
homens
de
saber,
e que proje-
tavam
para a
sociedade.
Questões como a sua reprodução como
grupo
e o deslocamento
social, produzido
pelo
novo enquadra-
mento
social e
político, serão instigantemente tratadas.
A
nova
possibilidade
de ascensão
social
e a nobüitação pelo
saber,
destes
"clérigos-leigos",
serão objeto de
.reflexão.
Os papéis
eram
noVos,
mas os homens também o eram? A emergência dos
homens
de
saber teria
possibilitado aos
homens oriundos
de
estratos populares mais modestos se elevarem na hierarquia
social?
Ou será
que
ocorreu apenas uma reconversão das
anti-
gas elites
sociais, assegurando
a
continuidade
dás hierarquias?,
pergunta-se
Jacques
Verger. E
através
de uma mensuração e de
uma posterior análise do
significado
destes dados, busca encon-
trar as pistas
que
levam à imagem
desses
homens, sua maneira
de
viver, seus hábitos, gestos,
maneirismos e
valores,
que
lhes
.garantiam
uma demarcação social, pela diferença
com,
que se
comportavam, assegurando-lhes
u m olhar
específico por parte
do restante da sociedade. E o livro termina mostrando a chega-
da
destes homens à modernidade, colocando em xeque a idéia
de uma ruptura e apontando para
a
continuidade, para a per-
manência junto
ao
poder desses mediadores
e
reguladores
da
nova
ordem política
e
social nascente. Personagens essencial-
mente
urbanos,
hpmens 'novos' e
nobres, surgem
na
sociedade
para
normatizá-la e para mantê-la, formando unia nova-nobreza,
que
fornecerá ps meios para a consolidação das
emergentes
monarquias feudais em
Estados orgânicos
e
possíveis.
Contribuição relevante para
medievalistas
e edu-
cadores,
este
livro ultrapassa as
frágeis compartimentações
do
conhecimento,
inserindo-se em um
contexto mais amplo. Um
10
estudo leve, instigante
e não
menos profundo,
que
permite
aos
leitores
uma
melhor compreensão
do
local
da
ciência
e
do
saber
lato sensu
e de seu papel social enquanto agente
trans-
formador
de
indivíduos,
e
mais particularmente
de
seus
próprios agentes, de suas relações com o poder e a sua real
dimensão como poder.
Enfim,
uma
obra absolutamente
atual, pois ao
estudar
este mundo
dos
profissionais
do
saber, remete
à
própria per-
,
plexidade
que vivem os profissionais da cultura em um
mundo
neo-liberal, perplexidades estas
que
podem encontrar
simili-
tudes e
alguns parâmetros
de
análise neste rico ensaio,
que
analisa antropologicaniente o
papel
dos
homens
de
saber
nos
séculos XlV e
Xy
e as mudanças impostas pela nova realidade
que se inicia: o mundo moderno.
Carlos Roberto
F.
Nogueira
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
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introdução
O próprio título deste livro convida a alguns esclarecimen-
tos,
para
definir
simultaneamente seus propósitos e limites.
O quadro cronológico e geográfico escolhido não coloca,
ao que me
parece,
maiores
dificuldades.
I^or final da
Idade
Média
nós compreendemos
essencialmente
os
séculos
XIV e
XV,
considerando qu e essa
época
foi precisamente marcada pela
emergência, ou,
dê
qualquer modo,
pela
afirmação do grupo
social que nós desejamos estudar, e ao mesmo tempo pelo surgi-
mento
de uma documentação que torna possível esse gêneto de
estudos. Se os anos
1500
constituem um marco que, à exceção
do capítulo de conclusão, de modo geral nos abstívemos de
trans-
por,
é
menos,
na
verdade,
por eles representarem um
momento
de mutação decisiva do que pelo
fato
de que, apesar de haver
continuidades inequívocas antes e depois dessa data, era
^.'necessário, para respeitar o volume concernente a este livro,
'•fixar-lhe
u m
termo.
Em
compensação,
não
deixamos
d e
remon-
, 'ttf, à medida que o tema exigisse, até o século Xfn, e
por
vezes
H O
século
XII, já que
muitos
dos
fenômenos observáveis
no final
,
(b
Idade Média encontram
aí sua
origem
e
mesmo suas primeiras
'
manifestações,
pelo menos nos países atingidos desde essa época
um grande movimento de renovação social, religiosa, política
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
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e cultural designado, muitas vezes, Sob a denominação global de
"Renascimento
do
século XII".
Quanto ao limite geográfico
deste
livro, nós desejaríamos
estendê-lo ao conjunto da Europa Ocidental ou, se preferir, da
Cristandade
latina desse tempo,' uma vez que essa sua história
nos
parece
fixada até o fim da
Idade Média, apesar
da
emergên-
cia
dos
primeiros Estados Nacionais,
com
vigorosos traços
unitários.
Infelizmente,
o
desigual desenvolvimento
das
pesquisas, os limites de nossas próprias competências históricas
e lingüísticas e, na própria época em si - cabe dizer .-, os pata-
mares variáveis dê avanço na evolução social, política e cultural
dos diversos países europeus, não nos permitiram realizar
plena-
mente nossa ambição inicial. Desejaríamos, contudo,
desculpar-
mo-nos por haver com
freqüência
recorrido a exemplos
france-
ses, mais familiares para nós e, sem dúvida, para a maioria de nos-
sos
leitores.
Procuramos, todavia, sempre recolocar o caso
francês
em uma
perspectiva
mais ampla, tentando mostrar aqui-
lo que, segundo as circunstâncias, o aproximava ou separava de
seus países vizinhos, estivessem eles também já engajados no
caminho
da
monarquia nacional (Inglaterra, reinos
ibéricos)
ou
ao
contrário, ainda presos
à
multiplicação
das
cidadés-estados
e
dos principados independentes (Itália, Alemanha). Em contra-
partida,
é
verdade,
os
exemplos mais distantes (Escócia, Hungria,
Boêmia,
Polônia, monarquias escandinavas) não serão
evocados,
nas páginas seguintes,
a não ser
marginalmente. Contudo, apesar
das imperfeições, nosso projeto neste livro reside
na
descrição,
por u ma perspectiva comparada, de um fenômeno observável
em
escala européia (naturalmente, com m últipla? variantes locais
é deslocamentos cronológicos de um país para outro).
Mas
na
verdade,
o que, em
nosso título, coloca mais proble-
mas é
evidentemente
a
expressão
"gens
de savoir".
Sem nos
fecharmos apriori
em uma definição rígida, urge delimitar desde
já o que nós compreendemos por essa idéia e por que
conside-
ramos
que ela
correspondia, naquela
época, a um
grupo humano
específico a merecer um estudo histórico.
A
expressão "gens
de
savoir não pertence à língua
medieval. As palavras utilizadas então - e que nós retomaremos
na seqüência
v
deste
livro
- vir litteratus (em
castelhano
letrado),
ctericus, magister, philosophus - coincidem apenas parcial-
14
mente
com o que se
entende
por gens de
savoir ,
e
nós, por-
tanto, optamos
por não
adotá-las.
~ ~
A expressão
gens
de savoir , há que se admitir, também
não é muito corrente no francês moderno. Mas a palavra "in-
itelectuais", que poderia ser empregada mais à vontade, compor-
tando, por sua origem recente
,
um quê de anacronismo - anacro-
nismo
outrorá
voluntária
e
brilhantemente assumido
por Jacques
lê
Goff
no título de um
livro
clássico
e
sempre estimulante
-,não
seria suficientemente apropriada para designar ó conjunto de
homens dos quais desejamos
falar
aqui. Somente o alemão die
Gelehrten seria, de
fato,
correspondente à idéia exposta.
Poderíamos pensar em outras formulações.
Algumas
como
"diplomados" ou, para permanecer ainda mais próximos do
vocabulário medieval, "graduados"
(graduatí), no
sentido
de titu-
lares
de
graus universitários (bacharelado, licenciatura
ou
doutorado), seriam excessivamente restritivas porque,
se é
ver-
dadeiro
que
todos
os
graduados pertenciam efetivamente
ao
grupo que nos
interessa
e
que,
mais amplamente, a existência de
uma formação
de
tipo
escolar
é um dos
mais pertinentes
critérios de
definição desse^grupo,
nós
veremos, entretanto,
que
este último incluía
I
também muitos antigos estudantes que não
haviam obtido nenhum grau e muitos outros indivíduos que teri-
am feito
seus
estudos, embora jamais houvessem freqüentado
instituições habilitadas a emitir diplomas.
Gens du
livre ,
expressão usada às vezes pelos histori-
adores, seria, sem dúvida, mais adequada.A aptidão não somente
para ler e escrever mas também para utilizar livros,
fosse
para
conservar certos tipos de
conhecimentos, fosse
para informar
esta ou aquela prática social ou política, era, com efeito, uma das
características mais importantes dos homens que nós desejáva-
mos estudar nesta obra.
O
inconveniente dessa denominação
1 - A palavra inteUectuel
só se
torna
um substantivo ao final
do séc. XK. Cf. C.
Charle,Naissance
dê s
intellectuels (1880-
1900). Paris:
1990.
2 - J.
Lê Goff, Lê s
intellectuels
au Moyen Age, 2
a
ed, Paris,
1985.
5
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
http://slidepdf.com/reader/full/verger-jacques-homens-e-saber-na-idade-media 7/68
r
seria, no entanto, fazer crer que esses homens tinham o absoluto
monopólio
do
livro,
o que não
era
o
caso,
e,
sobretudo, privilegiar
uni aspecto
-
certamente essencial
- de
suas atividades,
em
detri-
mento de outros, ligados à
oralidade,
que não devem ser negli-
genciados.
"Gens
de
savoir"
impõe-se,
a despeito
de sua
relativa mpre-
cisão, como
a
fórmula mais neutra, aquela
que
menos prejudica
os resultados da investigação histórica.
Esta
fórmula
recobre, em nosso espírito, dois elementos:
primeiramente,
o
domínio
de um
certo tipo
e de um certo
nível
de
conhecimento;
em
seguida,
a
reivindicação, geralmente admi-
tida pela sociedade circundante, de cercas competências práticas
fundadas precisamente sobre os saberes previamente adquiridos.
A existência
de
indivíduos
condizentes com
esse duplo critério
não é, sem dúvida, uma novidade absoluta no fim da Idade
Média,
mas, como veremos na seqüência deste livro, acreditamos que
somente nesse momento oS "homens de saber" obtiveram
numérica e qualitativamente um peso social suficiente para que
possamos considerá-los,
de uma vez
por todas, como um grupo
específico
e como agentes eficazes de evolução, não somente in-
telectual, mas religiosa, social e política, das civilizações ociden-
tais.
N a
Alta
Idade Média, efetivamente - talvez generalizando,
ou seja, deixando de lado algumas personalidades excepcionais
-, o homem erudito era simplesmente o vir litteratits, quer dizer,
9
homem que sabia ler e escrever em' latim de maneira mais ou
menos correta; aliás, por outro
lado,
havia nessa época uma
iden-
tidade praticamente completa entre
o
grupo
dos
litterati
e aque-
le
dos clérigos e dos monges, sendo.que podemos dizer que os
leigos eram,
por
definição, percebidos como
'iletrados'
(mesmo
que, na realidade, sempre existisse,
pelo
menos na aristocracia,
alguns laicos
litterati e,
ao contrário,
inúmeros
clérigos e monges
ignorantes).
'A
partir
dos
séculos Xlte XHI, esse esquema simplista perde
todo
seu
valor. N ão somente
o
número
de
laicos litterati aumen-
tara consideravelmente, mas o progresso simultâneo dos saberes
e das
instituições
de
ensino acarretou,
pêlo
menos para
vumelite
- precisamente aquela da qual nos deveremos ocupar neste livro
- um aumento geral dó nível dos conhecimentos, o que nos
6
impede de continuar a considerar agora como eruditos aqueles
que possuem apenas o nível mínimo representado pela capaci-
dade
de ler e de
escrever.
Nós não
trataremos, contudo,"aqui,
cm
princípio, do problema da
alfabetízação
na Idade Média nem das
categorias sociais - por exemplo, o baixo clero e os monges
comuns - que, regra geral, possuíam um nível mínimo, o qual não
ultrapassavam.
r
Em
nossa época,
com
efeito, tornou-se possível
r
para quem
a isso se dedicou e contou com recursos intelectuais e finan-
ceiros, adquirir
os
conhecimentos considerados então como
de
nível superior. Na primeira parte deste livro, procuraremos
veri-
ficar
quaís
eram os componentes reconhecidos dessa
cultura
letrada, ou, dito de outro modo, os conhecimentos que constiV
tuíam, no final
da
Idade
Média,
a bagagem normalmente requeri-
da para um homem culto (capítulol). Buscaremos também
veri-
ficar concretamente
graças
a
que tipo
de
escolas (capítulo
2) e
de livros (capítulo 3) esses homens eruditos podiam se formar ê
alcançar
aqueles conhecimentos cujo domínio era o elemento
essencial de sua definição social.
Se
nos
limitássemos
a Isso, observaríamos
apenas
urtí
aspec-
to do temário, concernente talvez a uma certa sociologia do con-
hecimento; caberia, por seu turno, a seguinte questão: o que é um
intelectual na Idade
Média?
v
Julgamos, contudo, ser útil completar esse percurso com
um outro, que ocupará a segunda e a terceira partes dó presente
livro:
nós nos interrogaremos sobre as competências que eram
reconhecidas aos eruditos e sobre o lugar que lhes era, definiti-
vamente, reservado
no
seio
de uma
sociedade,
ela
própria
envolvida por um
processo
de
diversificação
e de
complexidade
cada vez
mais
vigoroso.
A
que
tipo (capítulo
4) e,
mais
precisamente,
a que
nível
(capítulos 5 e 6) de
funções
sociais as competências dos erudi-
tos, fundadas sobre
o
domínio
de
saberes teóricos
e
abstratos,
lhes dariam acesso?
Em
seguida, procuraremos passar
do
exerci
cio das
competências para
a
realidade sociológica:
os
eruditos
se
repartiriam simplesmente no seio de categorias tradicionais
(clero, aristocracia, burguesia), exercendo em cada uma delas um
certo
papel funcional, ou eles teriam alcançado um nível
sufir
ciente de consciência de si - além de reconhecimento social e
17
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
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político
-
para
se
retirarem
(e
segundo quais processos?)
das
estruturas
sociais preexistentes e formarem pelo
menos
o
início
de uma
categoria autônoma (embora, naturalmente,
não
monolítica,
pois tinha forçosamente suas hierarquias internas e
suas especificidades nacionais ou regionais)? Essas são as
questões que nós abordaremos nos últimos capítulos deste
livro,
onde nos esforçaremos por -levar em conta simultanea-
mente os elementos objetivos de diferenciação social, tais
como
a riqueza, as estruturas familiares, os desníveis das uniões, etc.
(capítulo
T) e as representações
pelas quais
os próprios
con-
temporâneos tentavam apreender as mudanças sociais, sendo a
precisão maior ou menor dessas representações, sem dúvida, um
dos critérios mais pertinentes do estágio de consciência de si
dos próprios grupos em vias de constituição (capítulo 8). Uma
breve
conclusão
(capítulo 9) recordará, enfim, que o fenômeno
estudado se prolonga para
bem
depois da data convencional de
1500 e
que, nesse domínio
como em
muitos outros,
a oposição
entre Idade
Média e
Renascimento, embora
não
totalmente
desprovida de significado, não deve ocultar, contudo, poderosas
continuidades.
Um
último detalhe deve
ser
oferecido
ao
leitor,
sob a
forma
de desculpas. Por razões que remontam sobretudo aos limites de
minhas próprias competências científicas,
eu
abordarei
neste
- livro
apenas
os
homens eruditos cristãos, ortodoxos
em sua
maioria,
heterodoxos
algumas
vezes,
na
medida
em que nos foi
possível capturar sua existência. Na mesma proporção, eu não
ignoro a existência, no Ocidente desse tempo, de minorias reli-
giosas que
tiveram, elas também, seus homens letrados.
É
verdade
que, a partir do século
'Xni,
as comunidades muçulmanas da
Espanha,
da Sicflia e do sul da Itália rapidamente desapareceram,
o que, sem dúvida, foi acompanhado, mesmo
antes
de sua
desaparição,
pelo deslocamento
de
suas estruturas sociais
e
pelo
declínio de
suas
atividades intelectuais, tão brilhantes em época
anterior.
E r f l contrapartida, as numerosas comunidades judaicas pre-
sentes em
quase
todos os
países
do
Ocidente medieval conser-
varam uma vida intelectual bastante ativa até o final, da Idade
Média. Pode-se
mesmo pensar
que seu
nível médio
de
educação
e de
conhecimento
era
freqüentemente mais elevado
que o das
18
populações
cristãs circundantes. Contudo,
tratar
dos eruditos
judeus do fim da
Idade
Média
requer conhecimentos históricos
e lingüísticos que eu
não
possuo.
Esta
é a principal desculpa por
essa
lacuna, pois, além
do
mais, teria sido bastante discutível tirar
um
tema
de uma
célula isolada
no
seio
da
sociedade
maior, si-
tuação que certamente
foi
agravada
de
forma
considerável
nos
séculos
XIV e XV pela escalada quase geral de
antijudaísmo
cristão, o
qual,
contudo, não chegou a eliminar qualquer conta-
to, como têm mostrado trabalhos recentes tanto
sobre
personal-
idades
como
Gersonide (l
28&1344),
filósofo
judeu fortemente
ligado a
clérigos
e
religiosos
de
seu, tempo, quanto sobre
o papel
dos médicos judeus,
por
vezes ouvintes
das
universidades cristãs
e, ao mesmo tempo, práticos bastante respeitados pelo conjunto
das populações
de
todas
as
confissões religiosas.
3 - Cf. J.
Shatzmiller,
"Étudlants
juifs à
k feculté de
médecine de
MOntpcIUer, dernier
quart du XIV'
siècle",
Jewfsb History, 6 (1992),
p,
243-255.
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
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primeira parte
OS
FUNDAMENTOS
DA CULTURA
21
'tòM
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
http://slidepdf.com/reader/full/verger-jacques-homens-e-saber-na-idade-media 10/68
O
próprio termo "homens de saber", que
constitui
o título
da presente
obra^
já
diz
o suficiente. Os homens de que tratamos
aqui se
distinguiam
do
restante
da
sociedade tanto pela posse
de
u m certo
tipo de cultura quanto por uma certa idéia acerca da
noção mesma de cultura.
Trata-se,
antes de mais nada, de procu-
rar
compreender os contornos e o estatuto dessa cultura que era
a
deles.
'
Sobre o
domínio
de
quais saberes
- com
exclusão
de ou-
tros
- fundava-se tal cultura?
Mediante quais
condições ela era
adquirida? Seria
ela preciosa herança transmitida de geração
em
geração pela palavra dos mestres ou
tratar-se-ia
de territórios
novos
conquistados pelo espírito, este mesmo estimulado pelas
expectativas da sociedade? Sua bagagem seria exclusivamente
confiada à
mera memória
ou os
livros também teriam algum
papel
na
conservação, circulação
e
mesmo
nos
eventuais
enriquecimentos desses saberes?
Essas são as
principais questões
às
quais procuraremos
responder
nos
três capítulos
da
primeira parte deste livro.
capítulo l
OS
SABERES
Como já dissemos na introdução, nós .gostaríamos de
falar
neste livro
dos
indivíduos
qüè têm em
comum
o
domínio, piais
ou menos completo,
de um certo
número
de
disciplinas intelec-
tuais, as quais englobariam tudo o que
pudermos conceber
como
cultura
erudita daquele tempo. Sem dúvida, não podemos dar de
tal
cultura uma definição verdadeiramente clara e simples, dado
que,
nos últjmos séculos da
Idade
Média, ela já se
revestia, segun-
do o
momento
e o
lugar,
de aspectos
diversos. Podemos, porém,
considerar
quê
ela conservava ainda, através dos principais paí-
ses do
Ocidente,
uma
relativa unidade
que se
apagara progressi-
vamente na época moderna.Torna-se, então, possível destacar-lhe
os
grandes traços característicos,
com a
condição
de não se
esquecer
de assinalar certas particularidades nacionais e certas
evoluções,
-
• , •
I. AS BASES: Q
LATIM
E
ARISTÓTELES
'
'
•
:
\
;
.
:
.
Uma das
características
fundamentais da cultuía
erudita
da ~
Idade Média,é o lugar essencial que nela possuía à língua latina.
Por
vezes, dizemos que a civilização medieval é uma civilização
23
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, l
m
bilíngüe, marcada pela coabitação, em todos os países do
Ocidente,
do
latim
e de
u ma
ou até
mais línguas vernáculas,Deve- f
se,
entretanto, compreender de que sé tratava, de fato, esse bi-
lingüismo, ou, se preferirmos,
essa "diglossie"
medieval.
Desde
a
Alta Idade Média, com efeito, não se filava mais o latim em parte
'alguma
do Ocidente, uma vez que o latim deixara de ser a língua
materna, ou mesmo a língua predominante de qualquer grupo
numericamente importante. Por
todo
lado, novas línguas
vernáculas se impunham, freqüentemente elas mesmas divididas
em vigorosos subgrupos de dialetos. Nos países da Antigüidade
romana, falavam-se diversas línguas: italiano, catalão, castelhano,
português, lahgue d'oc e larígue d'oü; em outros lugares, triun-
favam as
línguas anglo-saxônicas
ou
germânicas;
na
Europa cen-
tral,
havia a reunião de países de língua eslava ou húngara;
enquanto que,
na
direção
do Atlântico, as
línguas
célticas
eram
já
de alguma forma marginalizadas.
N o final da
Idade Média, essas línguas vernáculas
já
haviam
alcançado seu período áureo, comportando, inclusive, um longo
passado e múltiplos títulos de glória. Socialmente, elas eram fa-
ladas
tanto pela mais alta aristocracia quanto
pelo
povo comum;
muitos
nobres,
e até príncipes, não falavam outras línguas e
igno-
ravam
o .
jatim/Seu
papel cultural
era
igualmente bem estabeleci-
do. Mesmo se algumas (o bretão, o basco...)
fossem
ainda essen-
cialmente línguas orais,
a
maior parte, desde
há
muito, dispunha
da escrita e se
alimentava
de uma
produção abundante
e
diversa.
Visto
qu e essas línguas vernáculas não eram exclusivamente,
aquelas da comunicação usual: eram também línguas literárias
que,
na maior parte
dos
países,
haviam já
proporcionado
- ou
começavam
a
íazê-lo
-
obras-primas
em
múltiplos gêneros: poe-
sia
épica,
cortesã ou
satírica,
romances, teatro, história, etc. Enfim,
línguas
de
prática cotidiana,
as
línguas vernáculas
tornavam-se,
mais
cedo ou mais tarde, em proporções variáveis de acordo com
o país, línguas de gestão, administração e até governo; elas eram
usadas para contabilidade, redigir estatutos ou regulamentos, edi-
tar leis ou em itir sentenças, discursar em assembléias ou advogar
diante
de tribunais.
A
despeito
de tudo isso, o estatuto da língua vernácula man-
tinha-se
discutível e sua dignidade contestada. Os gramáticos pre-
sumiam ignorar sua existência, pelo menos até o século X V , e ela
não era, para falar _com
sinceridade,
ensinada como tal e de
maneira
autônoma
1
.
Relativa pobreza
no
léxico,
pelo
menos cm
certos
registros, incertezas
morfológicas,
talvez sintáticas,
e
insta?
bilidade ortográfica eram o vestígio dessa ausência de dimensão
teórica (que,
de feto,
tinha
pelo
menos
a
vantagem
de
coloca-la
ao abrigo dos riscos do purismo e do academicismo).
Completamente diferente era o estatuto do latim. Seu
prestígio persistente tinha longínquas origens, que remontam ao
Renascimento
carolíngeo
(séculos
VIII
e
IX). Foi,
com efeito,
nessa época que, não somente as línguas vernáculas (pelo menos
as línguas romanas) se haviam definitivamente separado do
latim,
como também este, restabelecido pela renovação do
escrito
e
das práticas escolares em sua relativa pureza, permanecia confi-
nado, de alguma maneira, na
posição
privilegiada de língua eru-
dita e elitista. Posição que se tornava ainda mais privilegiada pelo
fato de não ter concorrência, dado que as outras línguas antigas
-notadamerite
o
grego
e o
hebraico
- haviam
sido quase com-
pletamente esquecidas
no
Ocidente cristão
e
eram conhecidas
exclusivamente; por um pequeno número de indivíduos isolados.
O latim medieval era, antes de tudo, a língua sagrada, aque-
la
da
Escritura,
aquela da liturgia, do culto e dos sacramentos; em
outras palavras, era a língua dos padres e monges. No domínio
religioso,
a
língua vernácula, restringia-se praticamente
à
pre-
gação oral destinada aos leigos. A redação ou a tradução em lín-
gu a vernácula de obras religiosas, a começar pela própria Bíblia,
ainda que não fosse completamente desconhecida ou proibida,
k
tóo era praticada sem muita parcimônia e su scitava facilmente a
|,
desconfiança da
Igreja,
sobretudo quando os autores eram, eles
|
também, laicos.
O latim era, por outro lado, a língu a
portadora
de toda a he-
.
da A ntigüidade.
Quer
se
tratasse
de
obras latinas originais
l de
obras gregas traduzidas
em
latim desde
a
Antigüidade
ou
nte a Idade Média (diretamente ou pela mediação de inter-
ios árabes), quase tudo aquilo que o Ocidente possuía no
l da Idade Média em matéria de gramática, de filosofia, de ciên-
1 • Cf. S. Lusignan, Parler vulgairemént. Lê s íntellectuels
tt Ia
langúe
Jrançafse auxXllf
et XI V síècfes,
París-Mon-
tital,
1986.
24
25
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, . •
'
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para
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do canonista
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medieval, tal como o direito canôni-„
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Escrituras
e da
cultura erudita,
o
latim
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j
"*/rla natural,
a língua do ensino.
Estudar era/antes
de
S
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dizer,
© latim. A quele
idado
era considerado Úttefatus, o que significava,
icnte,
que ele sábia latim. v ,
a
verdade, trata-se
de um
tema complexo,
onde
;
j
claro. Seria
possível ensinar unicamente em
para
crianças
pequenas
qu e
ignoravam comple-
•
língua? Existiam, nos séculos XIV e XV , inúmeros .
possuíam u m melhor domínio da língua verriacw
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que
tais
indivíduos ivessem
outrora aprendido
a
exclusivamente em latim? Como explicar, ao
, sua boa prática na língua materna escrita e
sua
seu esquecimento do latim?
Mesmo
que
nada
nos
a
existência
de escolas puramente vernáculas,
hã o
admitir
que ao
menos
uma
parte
do
ensino
dada em língua vernácula.
M as nosso parco co-,'
'íesse
ensino
não nos
permite
afirmar mais
nada.
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1
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é
verdade
que, para
os
níveis
mais elevar
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f -iftntinha o uso
universal,
em
todo
o
Ocidente.
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A
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tivesse
freqüentado a
escola
com ^
na
Idade,
Média, não apenas teria
aprendido
tal, m as deveria dele se servir também paia >
matérias ensinadas na
escola,
porque
o
latim'^
a língua de todas as disciplinas eruditas, Ora, 1
eram essencialmente livrescas.
Elas
repousavam
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27
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cia
(ciências naturais, matemática, astronomia, cosmologia, etc.),
de direito, de medicina, de história antiga, sem falar nos Padres da
Igreja, era tudo ainda em latim. Efetivamente, o legado assim
transmitido era incompleto: toda a obra da cultura antiga
hayia
sido
esquecida
no Ocidente, em particular tudo aquilo que, da li-
teratura
grega,
não houvesse
sido
traduzido
para
o
latim.
Mas
para
o que restara disponível, o latim desfrutava de um quase
monopólio. Até
o.final
da Idade
Média,
pouquíssimas obras ori-
ginais haviam sido produzidas em língua vernácula nas disci-
plinas de cultura erudita. Julgavam-se essenciais as traduções e
mesmo
essas teriam sido tardias,
pouco
numerosas e freqüente-
mente medíocres.
Além dos
mais,
essas traduções não
eram
exatamente destinadas aos homens de cultura, conhecedores do
latim, mas a um
público laico,
um
pouco difícil
de ser
delimitado,
seni dúvida bastante restrito* provavelmente recrutado, sobretu-
do, na alta aristocracia e nos ambientes de corte.
N a França,
é no
século Xin
que
aparecem
as
primeiras
traduções de obras latinas antigas, mas será necessário esperar
meados
do
século
XIV e as
solicitações explícitas
dos
reis João U,
o Bom
(1350-1364)
e, sobretudo, de Carlos V
(l
364-138Q) para
que os empreendimentos mais sistemáticos e de maior enver-
gadura
sejam lançados. São então traduzidos para o francês, ao
mesmo
tempo, inúmeros clássicos como
Cícero ou Tito
Lívio,
inúmeras
enciclopédias medievais
(Barthélemy rAhglais,Thomas
de Cantimpré), a Cidade de
Deus,
de
Santo Agostinho,
o
Policraticus
de Jean de Salisbury; mas a principal
peça
de tal
movimento
foram
as primeiras traduções de Aristóteles por
Nicolas Oresme,
realizadas entre
i 369 e 1377 :& Ética, a Política,
a
Economia,
bem
como
o
Livro
do céu e do
mundo,
Esses
textos, todos destacando
a
cultura erudita,
não
eram,
de
fato,
aqueles que seriam correntemente estudados nas
eso>
Ias. Era esse
em particular o caso de Aristóteles, representado ape-
nas
por
u m
aspecto bem peculiar de sua obra, pouquíssimo
difundida na universidade, rnas particularmente suscetível
de
interessar diretamente aos homens de poder. Pelo menos, tratava-
se,
nesse último caso, de traduções cuidadosamente elaboradas,
apesar de inúmeras falhas que revelavam a que ponto um letrado
do porte de Oresme, doutor em Teologia e antigo grande mestre
do
colégio
de
Navarra,
tinha
dificuldade,
para verter para língua
vernácula um saber que ele, entretanto, dominava perfeitamente
em
latim. Além do mais, Oresme havia acompanhado a tradução
de importantes comentários originalmente escritos em
língua
vulgar.
Por aí, ele
abria caminho pára
os
primeiros tratados políti-
cos em francês, como oSonge
du vergier
do canonista Évrard de
Trémaugon,
obra praticamente contemporânea.
Mas
os outros domínios da cultura erudita permanecem o
apanágio quase exclusivo
do
latim. E
foi
igualmente
em
latim
que
foram
redigidas as obras modernas que,
nesses
domínios, vieram
completar
a
herança antiga. Mesmo
as
disciplinas mais
recentes
e mais específicas da cultura medieval, tal como o direito canôni-
co e a escolástica, permaneceram exclusivamente latinas.
Língua
das
Escrituras
e da
cultura erudita,
o
latim
foi
tam-
bém,
como seria natural, a língua do ensino. Estudar
era,-antes
de
mais
nada,
estudar
"as
letras (W#era«?),<iUer
dizer, o
latim.Aquele
que havia estudado era considerado títtefntus, o que
significava,
fundamentalmente, que ele sábia latim.
Para dizer a verdade, trata-se de um tema complexo, onde
nem
tudo parece claro. Seria possível ensinar unicamente em
latim, inclusive para crianças
pequenas
que
ignoravam comple-
tamente essa língua? Existiam,
nos séculos XIV e X \f
inúmeros
indivíduos
que
possuíam
um
melhor domínio
da
língua vernácu-
la
do que do latim, mesmo no tocante à leitura e à escrita. Seria
possível admitir que tais indivíduos tivessem outrora aprendido a
ler e a escrever exclusivamente em latim? Como explicar, ao
mesmo tempo, sua boa prática na língua materna escrita e sua
ignorância
ou seu
esquecimento
do
latim?
Mesmo que nada nos
permita
afirmar
a existência de
escolas
puramente vernáculas,
parece-nos
difícil hão
admitir
que ao
menos
uma parte do
ensino
elementar era dada em língua
vernácula.
M as nosso parco
co-
nhecimento desse ensino não nos permite afirmar mais nada.
Em
contrapartida, é verdade que, para os níveis
mais
eleva-
dos, o latim mantinha o uso universal, em todo o Ocidente. Isso
significa
que qualquer um que tivesse freqüentado a escola com
alguma
assiduidade na Idade Média, não apenas teria aprendido
o latim enquanto tal, mas deveria
dele
se servir também pata
estudar as outras matérias ensinadas na escola, porque o latim
era, nós já vimos, a língua de todas as disciplinas eruditas. Ora,
essas
disciplinas
eram essencialmente livrescas.
Elas
repousavam
*,
'
26
27
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sobre as "autoridades" qu e remontavam à
Antigüidade, paga
ou
cristã,
e eram redigidas em latim. Não seria possível ter acesso a
tais autoridades, cujo comentário formava o essencial do ensino
medieval, ignorando-se o latim. E esse mesmo comentário era
dado em latim, fosse sob a
forma
de um
ensino
oral, fosse sob a
forma escrita de "aparatos" e de "leituras",
desde
então promovi-
das
ao posto de autoridades secundárias e tornadas, por seu
turno,
fontes
de
saber.
Era
igualmente
em
latim
qu e
eram redigi-
dos os
instrumentos
de
trabalho
-
tabelas, concordâncias,
dicionários
- que facilitavam o
domínio
dos
textos
e dos
comen-
tários eruditos. . ,
Em
resumo, praticamente
não
seria possível, durante
a
Idade
Média,
pertencer
ao
grupo
de
pessoas
de
saber
*- que são
o
objeto
do
presente livro
-
sem
ser latinista.
Isso quer dizer que as pessoas de saber eram as únicas, no
fim da Idade Média, a conhecer o
latim?
Certamente não. D e fato,
eu já
disse, qualquer
um que
tivesse àquela época
um
suficiente
domínio da leitura e
afortiortàa.
escrita,
havia,
sem dúvida, rece-
bido, pelo meaos, uma tintura de latim. Evidentemente, era pos-
sível
que não se guardasse disso grande lembrança, mas esse não
era,
pelo menos,
o
caso
de uma categoria bem
precisa,
a dos
cléri-
gos e religiosos,
cujas
obrigações litúrgicas conduziam a utilizar
quase
cotidianamente o
latim:
Nós já
explicamos,
na
introdução
deste
livro,
por que
utilizamos
a
expressão homens
de
saber para
designar uma categoria de pessoas nos últimos séculos da Idade
Média.
Mas é
fato
que, naquela época, a maior parte dentre eles
possuía um conhecimento ao menos sumário do latim, o qual era
requisitado para
a
celebração
de
missas,
a
distribuição
de
sacra-
mentos,
a
recitação
do ofício. Os bispos
desse tempo lamen-
tavam-se
bem menos que seus predecessores
daÂlta Idade
Média
sobre
a
ignorância crassa
e os
barbarismos escandalosos
dos
padres. Talvez estes últimos não
fossem,
de fato, capazes de
es-
crever ou de
falar
latim, mas
compreendiam praticamente tudo
o
que diziam os textos das Escrituras e dos ofícios, os rituais sacra-
mentais e as
prescrições correntes
do
direito
cánônico
retomadas no sjestatutos sinodais.
Se nós retomarmos nossa gente de saber, qual seria a
natureza
do seu conhecimento do
latim? Aqui,
conviria recordar
que se o latim medieval pode ser considerado como uma língua
28
viva (e, enquanto tal, suscetível de certas particularidades
locais
e de
algumas
evoluções), ele
era, entretanto,
uma
língua aprendi-
da
è que nós
podemos
conceber
como artificial, nesse sentido de
não mais corresponder à língua materna de ninguém.
O nível de
conhecimento
do latim deveria variar
ide u rn
indivíduo para outro. Os mestres da universidade eram teorica-
mente capazes
de
escrever
e
mesmo
de falar com
facilidade
(visto que os estatutos lhes fizessem interdição de ditar um curso
previamente
redigido);
cabe ainda observar que se tratava do
latim escolásticó, quer dizer, de u ma língua b em particular, bas-v
tante técnica, quase u m jargão, com vocabulário estereotipado e
sintaxe elementar, indiferente a qualquer busca de elegância
literária.
Mas os
simples estudantes estavam,
sem
dúvida, menos
à
vontade, apesar da obrigação que lhes era oficialmente cobra-
da^ de não falar outra língua que não o latim,
pelo
menos em
público e até mesmo no interior dos colégios. Seu latim deveria^
assemelhar-se provavelmente
à
língua pretensiosa
e ridícula que
Rabelais
colocará
na boca de seu "escolar limousin .
As mesmas diferenças d e nível se reencontram na prática
administrativa.
Certas chancelarias,
noíadamente
a chancelaria
pontificai,
possuíam, entre seus secretários latinistas de grande
qualidade, retóricos impecáveis capazes de redigir em longos
períodos ritmados os preâmbulos majestosos das cartas mais
solenes.
Mas, ao lado disso, os estatutos, os diplomas correntes, as
enquetes
administrativas, os documentos fiscais, as sentenças
judiciárias, para não falar de simples atos notariais ou descontas,
mesmo quando escritos em
latim,
eram elaborados em uma lín-
gu a
infinitamente 'menos cuidada, um latim grosseiro, acessí-vel
aos leigos" (latinum grossum,
pró
laicis amicum)
como
dizia,
por volta de 1440, um manual de uso dos conselheiros do
Parlamento
de
Paris intitulado
Style
de
Ia
chambre,
áe s
enquetes, escrito em uma língua bastante próxima da língua
vernácula peta estrutura
das
frases
e
pela escolha
do
vocabulário.
As desinências latinas nem mesmo procuravam mais, aqui, escoar
2 - Citado à página 335 em EAutrand, Tapparition d 'un
nouveau groupe
social".
Hístoire de Ia
fpnctionpublique
én
France, dirigida
por M. Pinet, t. l,jOes origines au XV *
siècle,
Paris, 1993, p.
311-443.
29
fclil
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
http://slidepdf.com/reader/full/verger-jacques-homens-e-saber-na-idade-media 15/68
dei que o latim era apenas uma espécie de máscara que fantasia-
va
u m
pensamento
cujas
verdadeiras categorias eram doravante
aquelas da
língua
vernácula. Muitos desses atos foram, por outro
lado,
recopiados
em formulários existentes na maior parte das
chancelarias, dos cartórios e dos ofícios de tabeliães, o
que
apenas
acentuava seu caráter estereotipado e sua pobreza lingüística.
Não
concluamos, entretanto, tão rapidamente sobre
ò abas-
tardamento do
latim
no final da
Idade Média.
A
escolha,
nos do-
cumentos administrativos, dessa língua tão elementar correspon-
dia, cohio vimos, ao
desejo
de ser inteligível para o maior número
possível, mesmo para os mais medíocres latinistas (pró laias
amicuni),
sem
renunciar
ao
prestígio
(e às
comodidades)
d o
latim.
Mas
outros redatores de atas - ou mesmo em outras ocasiões - per-
^maneceram perfeitamente capazes
de ler
tratados latinos
ou de
escrever em uma língua mais pura. A partir de meados do século
X I V , o
humanismo, nascido
a
princípio
naT oscana e
depois difun-
dido por toda a Itália e para além dos Alpes, especificamente em
Avignon
no tempo do papa Benedito
X f f l
e em Paris, de C arlos VI,
encontrou
no
mundo
dos
escrivães
de
justiça
e dos
secretários
de
chancelaria seus melhores
partidários.
Mais
ainda
que os
univer-
sitários, foram esses profissionais da escrita pública os que
bus-
caram
nas
cartas
e nos
discursos
de
Cícero
os
modelos capazes
de
dar
a
seus escritos aquela elegância e aquela força
de
convicção
que
haviam caracterizado
os
melhores oradores
da
Antigüidade.
Uma
carta
de Coluccio
Salutati (1331-1406),
o
grande humanista
dê
Florehça, então
em
guerra contra Milão,
era
mais temível
-
dizia-
se - que um esquadrão de cavalaria.
De
tato, o
sucesso
do
humanismo
não
deve diminuir
a
lenta
e irresistível progressão das línguas vernáculas em todos os
.
domínios, desde a literatura até aprática política, administrativa e
judiciária.
Acima
das
simples razões
de
comodidade
e de
inteligi-
bilidade, as línguas vernáculas beneficiaram-se, sobretudo, do
3 - Citado em E. Garin, L a
Renaissançe.
Histoire
d'une
révolutlori
culturette, trad.fr.
Paris:
1970,
p.30.
crescimento quase geral
dos
sentimentos nacionais
que
começavam
a ver nelas
u ni
dos
componentes
da
identidade
nacional
ou
étnica.
Ao
universalismo
cristão e
erudito
do
latim, -.',
elas opunham
sua
suposta adequação
ao
próprio gênio
dá
raça:
Umas vezes
com reticência,
outras,
com
determinação
-
dado que o purismo
humanista:
começava ridicularizar o latim
rude ou incorreto que muitos
dentre
eles eram incapazes de
ultrapassar -, Os próprios homens cultos cada vez mais se depa-
ravam
com
o
uso da
língua vernácula. Alguns chegaram
mesmo
a
tornar-se
seus propagandistas, escrevendo, sob o
exemplo de
Dante (D e vulgari eloquentia, c.
1305),
as primeiras
defesas
e
ilustrações".Temos, como exemplo, o que fez Nicolas Qresme no
prefacio da já
citada tradução
de
Aristóteles;
por
reconhecer
as
deficiências
de
tais traduções, atribuindo-as
a o
fato
de que
essa
matéria jamais teria sido tratada
e
exercida
em tal
linguagem ,
ele acrescia, com arrogância, que
traduzir^tais
livros em francês
e
oferecer
em
francês
as
artes
e
as
ciências é um
trabalho pro-
fundamente
proveitoso; porque o francês ê em si uma linguagem
nobre
e
comum dirigida
a
pessoas
de
grande engenho
é
boa
prudência.
E
como
diz
Cícero
em seu
livro
Achademiques,
as
coisas de peso e de grande autoridade são do deleite e do agrado
das
pessoas
e da linguagem de cada país. ,
N a
prática
cotidiana, as pessoas cultas e letradas eram, por-
tanto, impulsionadas
sem
cessar
a
utilizar prioritariamente
a
lín-
gu a vernácula.
Por
toda
a
parte,
nos
séculos
XIV e
XV ,
o
latim
recuava maciçamente nos arquivos aos nobres ou das cidades. À
partir de 1380-1400, para além das disciplinas estritamente esco-
lares ou universitárias, eram cada
vez
mais raros os autores,
mesmo os oriundos de escolas, que houvessem deixado uma
obra exclusivamente latina. Tomemos
o
grupo dos ditos
N
primeiros
humanistas
franceses:
se
Nicolas
de
Çlamanges
(c.
1363-1437) escreveu
exclusivamente em
latim,
se a
obra
trance-/
sã de
laurent>
de
Premierfait
(?-apr. 14Í8) restabelece as
traduções (Cícero, Bocage),
Jean de
Montreqil
(1354-1418)
pfe-
4 -
Malstre Nicole
Oresme,£e
livre
de Etbtque d'Arísto
te,
publisbed
from
the Text of
M s. 2902,
Bibliothèqué
royale de
Belgique,
editado pela A. D. Metiut, New
York,
1940,
p. 100-101.
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
http://slidepdf.com/reader/full/verger-jacques-homens-e-saber-na-idade-media 16/68
receu
duas versões
- uma
latina
e uma francesa - de
seus princi-
pais tratados de propaganda política (primordialmente seu Traité
contre lê s anglais),
como
já
havia
feito
antes
Evrard de
Trémaugon para o Songe
du vergier,
e, no caso do chanceler Jean
Gerson (1363-1429),
a
obra latina ligada
à
universidade
tem
como contrapartida
sua
obra em
francês
onde
os
sermões dirigi-
,
dos à corte
juntam-se
aos pequenos tratados espirituais destina-
dos as
"pessoas simples".
N ão
se
pode entretanto,
dizer que ò progresso das línguas
vernáculas no final da Idade
Média
acarretou, sobretudo nas
elites cultivadas, u m verdadeiro recuo
do
latim. Podemos
até
mesmo sustentar que o que
ocorrei
foi, antes,
u m
reforço d a
diglossie medieval, nesse sentido
.erft
que,
deixando de corres-
ponder às clivagens sociais simples (erudito - popular; clerical -
laico;
littemtus
--ittiteratus) , esta fo i transportada para o próprio
coração das
disciplinas escolares
e de
práticas, tanto orais quan-
to escritas, da vida política, jurídica e administrativa. A escolha d a
língua,
para os indivíduos que dominam cada vez melhor o duplo
registro do vernáculo e do latim (para não
falar
aqui da
,
renascença ainda
tímida
e essencialmente italiana do grego), cri-
aria doravante estratégias cada vez mais
refinadas:
a preocupação
com a eficácia política e
com
a
afirmação
lingüística do senti-
mento nacional continuava a se opor ao apego a um universalis-
mo
cristão e cultural, cuja garantia era o latim, ao mesmo tempo
que a reivindicação de identidade
daqueles^cüjos
estudos e
gos-
tos podiam constituir-se
como
castas profissionais.
À
medida qu e
perdia sua legitimidade cultural, o latim, sempre corajosamente
sustentado pela
Igreja e
pela escola, terá
seu
valor acrescido
como sinal de reconhecimento' social e elemento constitutivo da
ordem estabelecida. O latim permanecia como a língua da
memória.
A
formação
inicial
das
pessoas cultas
não se
limitava,
na
Idade Média, à aprendizagem do latim; ela era normalmente com-
plementada, por qualquer um que ultrapassasse
ô
nível elemen-
tar,
pela
jniciação
à fiJosofia .Esse
hábito se manteve até o sécu-
5 - Cf.H.G/undmann,J«ffett j íws -
iüitteratus.
DerWandel
einer Bildungsnorm vom Altertum Z u m Mittelalter,^4«;W z)
für Kulturgeschichte, 40 (1958), p. 1-65.
Io XY para designar o
Conteúdo,
dos ensinamentos de
base,
como
se dizia,
à
moda antiga,
das
"sete artes liberais", repartidas entre
ó
trivium
(gramática,
retórica,
dialética)
e quadrlvium
(aritmética,
música, geometria, astronomia). D e fato, essa classificação tradi-
cional
deixara
de
ser,
desde o
século Xni,
verdadeiramente^ òpe-
ratória. Efetivamente, o
ensino
do
latim correspondia,
em certa
medida, à gramática, eventualmente
coniplementada pela
retóri-
ca,
quando a leitura dos clássicos adquiria uma dada
importância.
Mas, em
seguida, vinha
- o que não
calhava
tão bem rio
esquema
tradicional - a iniciação à dialética, digamos mais simplesmente,
à lógica,
que completava, em geral, algumas
noções
emprestadas
às
disciplinas do
quadrivium
(no essencial, um
pouco
de
arit-
mética e
-
de
cqsmologia
elementar) e, sobretudo, as
lições
de
filosofia natural
e
moral
não
previstas
no
curso original
de
artes
Para
as matérias científicas, utilizavam-se menos os autores
antigos em si do que pequenos manuais, bastante simples, com-
postos na Idade Média, como o De
sphaera
de Jean de
Sacrobosco, que
data
dos
primeiros anos
do
século
Xm , em
Astronomia.' Mas, no restante, tudo, ou quase tudo, repousava
sobre Aristóteles.
De
Aristóteles,
possuíam-se,
há tempos, tratados
de
lógica, cujo
conjunto formava o
Organon.
A primeira
parte
deste último,
ou Lógica
vetus, traduzida
desde o final do século
,
V
por
Boécio,
sempre fora conhecida
e
estudada
no
Ocidente;
os
tratados seguintes (Lógica nova), traduzidos na primeira metade
do século XII, eram ensinados nas
escolas
parisienses
desde'
os
anos
1150.
No final da
Idade Média,
esse
conjunto
havia já
adquirido
um uso
quase universal:
ao
texto mesmo
de
Aristóteles
se
haviam juntado alguns manuais mais recentes, sendo
que o *
mais
propagado destes eram as Sum rnulae
logícates
de Pierre
d'Espagne
(c. 1210-1277).
Contudo, para
os-
ocidentais
do final da
Idade
Média,
Aristóteles
não era
mais somente
um
mestre
d e
Dialética.
A
par-
tir dos anos 1200, já se tinha à disposição, em tradução latina, a
quase totalidade
de
suas obras
filosóficas^ Física, Metafísica,
pequenos tratados de ciência natural
(Parva naturalia),Tratado
da alma,
Livro
do céu
e^Livro
do
mundo,
Meteorologia,
Ética,
Política.
A princípio, formalmente proibido (1210-1215), o
ensi-
no da filosofia de Aristóteles foi progressivamente
tokrado
e,
enfim, oficialmente admitido n a Universidade de Paris (estatuto'
32
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
http://slidepdf.com/reader/full/verger-jacques-homens-e-saber-na-idade-media 17/68
da
faculdade
dç artes de 1255).A partir de então, ele passou a ser
assumido pela maior parte
das
faculdades
de
artes criadas poste-
riormente, ainda que
pareça
que, em
algumas universidades
meridionais (Bolonha, Montpellier,
Toulouse),
a gramática e a
retórica tenham permanecido como
matérias,
dominantes e que
a
filosofia não
tenha jamais ocupado mais
do que um lugar
secundário. Também não se tem certeza de que nas escolas de
níveis mais baixos,
o
conjunto
da
obra
de
Aristóteles
fosse
estu-
dado de maneira sistemática. No entanto,
pode-se
supor que
qualquer pessoa que houvesse recebido na Idade Média uma for-
mação de um certo nível,
fosse
na. Universidade ou em alguma
escola pfé-u hiversitária, teria sido,
por
essa mesma razão, niciada
na
lógica de Aristóteles ou,
pelo
menos, nos aspectos mais co-
nhecidos de sua filosofia.
Çssa vasta difusão contrasta evidentemente com o desco-
nhecimento praticamente completo que se tinha então de
Platão,
cuja principal obra traduzida
em
latim,
o
Timeu, pratica-
mente cessara de ser estudada no Ocidente desde o século XII.
Isso não significa
quê
todos
os
intelectuais medievais hou-
vessem
aderido
ao
aristotelismo, tomado como sistema
filosófico
coerente.
Houve, de foto, na Idade
Média
os aristotélicos e
até,
como dizemos
às
vezes,
os
"aristotélicos integrais".
A
faculdade
de artes de Paris nos anos 1260-1270, a de Pádua durante os sécu-
los XIV e XV haviam sido as principais forças dessa corrente, mais
espontaneamente designada pelos contemporâneos sob o epíte-
to
de^aveiroísta", cujos
adeptos eram, com freqüência, expostos
à hostilidade de seus colegas teólogos e às condenações pela
Igreja.
O aristotelismo
"integral" ou heterodoxo'Vsobretudo com-
preendido à luz dos comentários de Averroes (1126-1198), os
1
quais teriam sido traduzidos do árabe para o latim nos anos
1220,
voltava-se
por sua
vez,
para u ma exposição de doutrinas
dificil-
mente
conciliáveis
com a revelação cristã. Eternidade do mundo
e
unidade
do
intelecto
(em outras palavras,
negação
da
existên-
cia
da alma como substância espiritual, individual e imortal) eram
as
mais visíveis pedras do caminho. Juntemos a isso, a crença
aris-
6 - Cf. L. J. Paetow, The
Arts Gourse
at Medieval
Uriiversities
with Special Reférence to Grammar and
Rbetóric , Ch ampaign, 1910.
34
totélica
no determinismo astral e uma definição puramente
humana
da felicidade e da
virtude, iden tificadas
cont
contem-
plação
bem aventurada do filósofo desfrutando de seu
próprio
conhecimento.
A
despeito
dos
cuidados, afetados
ou
sinceros
dos
averroístas , a
m etafísica,
bem
como
a
moral cristã, estavam
longe de terminar e
compreende-se
- sem que, para tanto, ne-
cessariamente aprovemos - a desconfiança alimentada pela
Igreja
com
relação àqueles ensinamentos.
Contudo, ó
aristotelismo corrente
dos
letrados medievais
era, de
fato, outra coisa. Tratava-se muito mais
de um
tipo
de
koíné, de maneiras de dizer e de raciocinar, de definiçpes e de
conceitos, de conhecimentos diversos, explícitos ou implícitos,
inculcados
desde
a escola e
admitidos praticamente
por
todos
com força de evidência.
;
•
O aristotelismo era, antes de tudo -
repitamos
isso -, uma
lógica,
a arte do silogismo concebida como técnica demonstrati-
va por
excelência, ó
letrado medieval tinha naturalmente tendên-
cia
a expor
seu
pensamento sob
forma
de silogismo e a remeter
às
figuras
-
corretas
ou
incorretas
- do
silogismo
os
argumentos
de seus interlocutores ou
adversários.
Ofereçamos
apenas
urii
exemplo entre centenas
de
outros:
na
França,
du rante os
Estados
Gerais de 1357, nós observamos o bispo Robert lê Coq, principal
porta-voz dos opositores, e os
oficiais
do rei posto em acusação
por ele se afrontarem com uma
rajada
de
silogismos:
"O dito
bispo
utilizava o argumento: É fato notório que o .
rei foi mal
aconselhado
e
governado;
os
abaixo-nomeados
[oficiais]
o aconselharam mal; Ergo etc. [Isto é ,
tais
oficiais
devem ser destituídos].
Resposta [dos oficiais]: A maior é
falsa,
ou
pelo
menos
não \
tão
notória, sendo, pois, obscura
e
duvidosa;
e a
menor
é \
ainda
mais
falsa,
mais
obscura
e
mais,pobre
e m
conheci-
mento de
cáusa.
7
^
• • • > . , •
.. .
' <
Para além da dialética, arte do raciocínio rigoroso e
irrefutável,
o aristotelismo era também
u ma retórica,
arte do
7 - Citado à p. 380 no L . Douèt d'Arcq. Arte d'accusatlon
5
contre Robert
lê
Coq",
Bibltotbèque
de
l'École
dê s
Charles
(1840-1841),
p.350-388.
35
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
http://slidepdf.com/reader/full/verger-jacques-homens-e-saber-na-idade-media 18/68
provável
e do
verossímil,
fundada
sobre
a
procura
dos
"lugares
comuns"
(em
grego
topof), aos
quais seria possível reduzir
as
situações concretas
a fim
de alcançar 'a convicção do
auditório. Os princípios dessa matéria eram ensinados nos
oito livros dos Tópicos.
D o estudo de Aristóteles, os
letrados
medievais não re-
tinham apenas
as
técnicas
de
exposição
e de
raciocínio. Eles
retiravam
também esquemas explicativos e hábitos
clássifi-
catórios aplicáveis a toda espécie de fenômenos. O princípio
da
não-contradição,
a
procura
por causas (materiais, formais,
eficientes;
finais), a
distinção
da
matéria
e da forma, da
substância e
dos
acidentes, da potência e do ato, a
identifi-
cação dos gêneros e das espécies, eram todos meios racionais
que tanto
definiam
o objeto do saber quanto pensavam a tran-
formação.Disso resultava uma percepção de mundo coerente,
que, embora
se
tenha tornado
bem
distante para nós, possi-
bilitava
que
todos
os
homens daquele tempo, providos
dos
mesmos instrumentos analíticos, pudessem
se reconhecer
sem
muita dificuldade.
Essa percepção comum era,
em
primeiro lugar, ligada
ao
universo físico. A teoria dos quatro elementos e uma cos-
mogonia geocêntrica que colocavam uma Terra imóvel no
centro de um sistema de esferas celestes constituíam a base.
Reteve-se também
de
Aristóteles, especialmente de
seu
Tratado
da Alma, uma fisiqlogia
e
uma psicologia que davam
conta
das
características maiores
dos
seres vivos, tanto
da
flora
e da fauna, quanto do próprio homem. Enquanto os
movimentos
dos
planetas
e
suas influências sobre
o
mundo
sublunar
davam uma justificativa científica para a astrologia e
balizavam
o
sucesso inesgotável
das
predições
e dos
horósco-
pos,
o
jogo
dos
elementos
e
dos
humores determinava
a
com-
pleição de cada indivíduo (sangüíneo, bilioso, ffeumático ou
melancólico). Por outro lado, a
definição
de diversas funções
da alma - da
função
vegetativa, a mais primitiva, comum a
todos os seres vivos, à função cognitiva e racional própria do
homem
T - permitia
aproveitar, ao
mesmo tempo,'
a
con-
tinuidade e as hierarquias do universo biológico, bem como o
laço, em alguma medida, orgânico da alma e do corpo.
O edifício intelectual aristotélico era coroado por sua
filosofia moral
e
política cujos textos maiores
(a
Ética
e
a
Política) foram difundidos
em
escolas
e
universidades
a
partir
da
segunda metade do século XIII, antes de serem - conuxjá
vimos anteriormente - traduzidos para o
francês
por
Oresme
nos
anos 1370.
Sem
seguir fielmente todas
as
suas particulari-
dades, muitas vezes dificilmente conciliáveis
com a
revelação
cristã, os letrados do fim da Idade
Média
retiveram desse co-
nhecimento, pelo menos, a definição de virtude como prática
do
justo meio,
da
moderação
e da
medida
e,
sobretudo,
u m
certo número de
conceitos
políticos que, muitas vezes associ-
ados àqueles do direito romano, vieram a constituir uma espé-
cie de vulgata aceita^or todos e, aliás, suscetível de utilização
divergente, se não contraditória
8
.
A
essa vulgata política
arístótelica, nós podemos relacionar noções também difundi-
das no final da Idade Média acerca das distinções entre a lei
natural,
a lei divina e a lei humana, do caráter primitivo e
orgânico da comunidade política (o homem como "animal
social"), da tipologia das formas de governo (monarquia,
aris-
tocracia, democracia) e de sua possível degenerescência e,
finalmente, da noção de "bem comum" como finalidade da
ação política.
Tudo isso - há que se repetir - não constituía um corpo
de
doutrina coerente. Enquanto
tal, o
aristotelismo foi,
nos
séculos
XIV e XV ,
alvo
de
críticas cada
vez
mais
mordazes, por
parte de numerosos filósofos, humanistas, juristas e teólogos;
algiíns colocavam em causa, em nome da retórica e das belas
artes,
a tirania do silpgismo; outros valiam-se da liberdade di-
vina
para contestar
uma
construção francamente determi-
nista, talvez materialista, de modo a privilegiar u ma visão mais
atomista,
senão empírica,
do
homem
e da
natureza.
Mas
aqui,
nossa proposta é simplesmente a de sublinhar o peso conser-
vado
- durante tão longo tempo que ele talvez pudesse
sei*
já
inconsciente - pelos esquemas e conceitos aristotélicos incul-
cados desde
a
infância. Realizando
com
sucesso
- nas
palavras
8 - Ver, por exemplo, a demonstração de Th. Renna,
"Aristotle
andthe French Monarchy", 1260-1303,
Viator
t
9
(1978)^.309-324.
37
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
http://slidepdf.com/reader/full/verger-jacques-homens-e-saber-na-idade-media 19/68
h. - X . -
de
Alexandre Koiré
-
uma espécie
de "união entre uma
metafísica finalista e a experiência do senso comum"
9
, eles
guardaram, por
muito tempo, a/orça
de
evidência
que era
trazi-
da pelos
fundamentos desse
racionalismo
fundamentalmente
qualitativo por
meio
do
qual
nós
podemos,
sem' dúvida,
melhor
definir a atitude intelectual de todos àqueles que haviam rece-
bido
um
ceftp tipo
de
formação escolar
na
Idade Média.
Os homens cultos e os letrados do final da Idade
Média
não
eram
forçosamente
aristótelicos,
embora todos eles se situassem
em
um universo ainda largamente percebido através das
definições e das categorias dê Aristóteles.
2.
SABERES LEGÍTIMOS
E
SABERES
MARGINAIS
A cultura dos letrados medievais não se limitava, evidente-
mente, a tais
elementos
de base. Estes sé integravam em um con-
junto mais amplo
cujos'contornos, sob a
forma
de
classificações
sistemáticas
do
saber,
os teóricos
haveriam tentado desenhar.
Tais
classificações, inspiradas por modelos antigos ou
árabes,
teriam particularmente obtido sucesso em autores dos
séculos
XII e
Xffl
10
.
Elas
podiam
ser
mais
ou
menos
complexas,
embora,
em
última
análise, se remetessem
todas
a um
esquema
genérico que conhecia apenas
as
ciências preparatórias
(scientiaeprímítivaé) - articuladas de maneira mais ou menos
complexa
a
partir
de um
sistema,
que
então
já era
ultrapassado,
das sete artes liberais -;
e a
ciência sagrada, quer dizer,
o
estudo
do
texto revelado
(sacra
pagina), como
finalidade
última,
de
acordo com A doutrina
cristã
de santo Agostinho, de uma edu-
cação cristã.
9 -
Citado
à página 625 de G.
Beaujouan, La
science dans
1'Occident medieval chrétien",
na
Histoire génémle dês
sciences, dirigida por R.Taton,
1.1
La science antique et mé-
diévale, Paris, 1966, p. 582-652.
10 - G. Dahan, Lês classífícations du savoir aux XIF et
XIII' siècles^i L'enseígnement phüosophique, 40/4
(1990),p.5-27.
38
Uma tal concepção, da qual a
D idascálicon
de Hugucs de
Saint-Victor
dava já por volta de 1130, uma expressão bastante
completa," justificava plenamente
o
papel,primordial reservado
ao latim e a Aristóteles, apesar de deixar ostensivamente um
grande número de disciplinas à margem dos saberes legítimos.
Algumas razões para esse desprezo, entre os partidários de
u ma educação ao mesmo tempo "liberal e religiosa", são claras,
assim
como o são suas origens, tanto antigas quanto
cristãs.Trata-
se
de
recusar,
por um
lado,
as
"artes mecânicas", quer dizer,
o
saber-fazer excessivamente técnico, implicando trabalho manual
e
contato imediato
e
degradante, senão
servil, com
a matéria;
por
outro lado, a recusa também das "ciências profanas" ou "lucrati-
vas\quer
dizer, às disciplinas que tinham como finalidade (pelo
menos aos olhos dos autores eclesiásticos) satisfazer as ambições
puramente mundanas
e o
gosto pelo lucro
de
seus detentores.
Outras
ausências são mais difíceis de' serem explicadas.
-Tratar^se-ia de
saberes
que não se
acreditava prestarem para
nada
além da "mera curiosidade", um gostp gratuito da fantasia in-
telectual
e dos
jogos
do
espírito
que se
esquecem
das finalidades
cristãs
do
estudo? "Deve-se aprender apenas para
a
própria
edifi-
cação
ou
para
ser
útil
aos
outros;
o
saber pelo saber
é
apenas
uma
vergonhosa curiosidade", já havia dito são Bernardo em seu ser-
mão
36 do
Cântico
dos cânticos
12
.
A tais motivações inconscientes,
deve-se,
sem dúvida,
acrescer o peso também bastante forte das tradições escolares e
dos reflexos corporativos da parte dos especialistas dessa ou
daquela
disciplina, pouco inclinados a dar lugar ao ensino de seus
eventuais concorrentes.
Seja
como
for,
certos domínios rapidamente escaparam d á
posição subalterna à qual os teóricos haveriam desejado confiná-
los,
embora outros, como contrapartida, tenham
sofrido dura-
mente tais rejeições que, por vezes, os perseguiriam ainda para
11
- Hugues de Saint-Victor,
L'art
de lire:
Didascálicon,
in-
trodução
e
tradução
ftancesasUe M. Lemoiné, Paris,,.199'Í-
12 - Sunt namqüe
qui
scire volunt eo fine tantum, ut
scianfcet
turpis
curtositas es t (Sancti Bemardi Ópera,
éd.
Par.
J. Leclerq, C.
H-Talbot,
H. Rochais, vol. II,
Rome,
1958,
p.5)
39
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
http://slidepdf.com/reader/full/verger-jacques-homens-e-saber-na-idade-media 20/68
além
do período medieval. Não deixaria de haver interesse,
mesmo com o
risco
de
algum anacronismo,
em
buscar reconsti-
tuir a
lista
de
tais rejeições
e das
ignorâncias
que se desenhavam
como limite último da cultura erudita medieval, antes de tecer
considerações
sobre
o conteúdo positivo
destaaíltima.
Antes de mais nada, como já vimos acima, tudo que dissesse
respeito à língua vernácula era imediatamente excluído, qualquer
que fosse o domínio. A inda, com maior força,
tudo
o que nós
chamaríamos
hoje
em dia as
"belas letras", mesmo latinas,
não ti-
nham seu
lugar
nas
escolas, pelo menos
a
partir
do
Renascimento
do
século Xn quando
a
"batalha
das
sete artes" teria sido final-
mente vencida pela dialética às expensas da poesia e da elo-
qüência. Utilizavam-se ainda alguns clássicos para ilustrar as
lições de gramática ou iniciar os estudantes em determinados
procedimentos retóricos,
mas já não sé
procurava oferecer-lhes
u ma verdadeira cultura literária.
Os
humanistas
dos
séculos XV
e
XVI serão profundamente tributários
de
autores gregos
e
latinos,
de cujas lições eles apreenderão não somente o estilo, mas a
estética e moral. Não aconteceu nada disso com seus predeces-
sores medievais. Estes eram efetivamente capazes
de
citar
algu-
mas sentenças de Cícero ou algum verso de V irgílio ou
Horácio,
aprendidos em
compêndios escolares de autores,
mas não
havia
neles nem o amor à bela língua clássica, nem a desinteressada
curiosidade pelas
civilizações
antigas. Quanto ao vernáculo
-como já
destacamos
anteriormente - não se pode
dizer, pelo
menos^ partir
de
meados
do
século Xül,
que os
homens cultos
fossem
propriamente incapazes
de
usá-lo, tanto
por
escrito quan-
to
oralmente
em
diversos registros.
Mas a
prática
que
para tanto
se estabelecia provinha antes de esforços pessoais ou de apren-
dizagens
puramente profissionais.
Não
parece possível designar,
em seu conjunto, uma verdadeira cultura literária, no sentido que
nós hoje
utilizamos.
Será que eles tinham uma cultura histórica? O problema é
suficientemente complexo e requer, sem dúvida, uma resposta
negativa,
embora
se,
devam admitir nuãnces".
O
grande século
da
13
-
Sobre
a
cultura histórica
dos
homens
da
Idade Média,
-
recomenda-se, de maneira geral, o livro fundamental de B.
Guenée, Histoire
et
eulture
bístoríque
dans 1'Occident
médiéval,2*éd.,P*ns,l99l.
40
historiografia medieval
foi
incontestavelmente
o
século XII.
Os
mosteiros, como
S aint-Denis na
França
ou St.Alban na
Inglaterra,
e as
cortes
principescâs
eram, naquele tempo,
os
principais
focos
de uma
produção
da
qual
a
maior parte
dos
autores
era consti-
tuída
por
monges
ou
clérigos.
A
história
não era
ensinada
nas
escolas,
mas ela
beneficiou-se largamente
do
lugar
de
honra
con-
ferido
aos textos antigos, compreendendo-se nestes os textos
históricos, divulgados pelo Renascimento
do
século X Q * ;
e os in-
telectuais
oriundos
do
mundo
das
escolas
igualmente
fizeram
uso de obras de historiadores; como Jean de Salisbury (c. 1115-
1180), autor
de uma
importante Historia pontiftcalis, consagra-
da
à Jiistória da Igreja e do papado de seu tempo.
,
Em compensação, a época seguinte viu alargar-se o fosso
que separa a história dos outros domínios da cultura erudita. Não
apenas
a história não encontrou seu lugar nos programas das
novas
universidades, como também
o
triunfo da
filosofia de
Aristóteles, às
custas
da
gramática
e da
retórica, privilegiou
um
tipo de pensamento no qual a dimensão historiográfica era prati-
camente ausente. Até mesmo o direito romano e a exegese bíbli-
ca,
disciplinas históricas
aos
nossos olhos, eram pouquíssimo
abordados
nas escolas
medievais
sob o
ângulo
da historicidade.
Seja como
for,
a história praticamente não está presente, a não ser
sob a
forma ornamental de alusões
e de
exemplos, entre
os
grandes mestres da teologia
escolásticà;ela
quase não inspira os
comentadores do Corpus iuris
civilis, atentos, sobretudo,
a colo-
car em posição de destaque a majestade imutável da
lex
romana,
A
produção historiográfica, porém,
não
deixou
de
existir
por isso. Se ela de fato não oferece mais construções tão ambi-
ciosas quanto
as
vastas teologias
da
história
que
haviam sido
as
crônicas universais de um
Sígebert
de Gembloux (c. 1030-1112)'
ou dê um Otton de
Freisjng
(c. 1111-1158), fornecia em
abundância,
tanto
em
latim
quanto em
língua vernácula, histórias
nacionais e regionais, vidas de príncipes e de papas, cronologias
de reinos e relatos de batalhas, sem falar de compilações de
história antiga, tais como
a
Histoire
ancienne
jusqu'$
César, ou
Lê s faits dê s Romains, resumos cômodos
de
história grega
e
romana
compostos no princípio do
século
XIII e cujo sucesso
não foi desmentido até o final da Idade Média.
Y A
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
http://slidepdf.com/reader/full/verger-jacques-homens-e-saber-na-idade-media 21/68
Os autores dessas histórias
e
dessas crônicas,
em
geral ver-
dadeiros historiadores
oficiais
pagos
pelos
príncipes
ou pelas
cidades, continuavam a ser recrutados largamente nos meios
monásticos;
mas encontrava-se também, dentre os historiadores
do final da Idade Média, um crescente número de clérigos secu-
lares (como Froissard) e leigos, alguns cortesãos, diplomatas ou
conselheiros do rei, outros oficiais ou homens dê chancelaria.
Tratava-se, portanto, raramente, para se falar a verdade, de gradu-
ados ou mestres de universidade. Esses não poderiam ser consi-
derados, então, completamente indiferentes à história. Os
numerosos inventários conservados por bibliotecas de
colégios
ou por graduados, especialmente juristas, mostram que, se a
literatura cm
estrito senso
(poesia,
teatro, romance), vernácula ou
mesmo latina, lhes era praticamente ausente, em compensação a
história ali estava representada de maneira modesta, mas regular.
Se
'deixavam
para
os
nobres L ês
faits
dê s
Romains,
eles dispu-
nham normalmente
dos
Faits
et
dits
memorables de
Valère
Maxime, do Speculum historiais de Vincent dê Beauvais, da
Chronique
dê s papes
et
d ês empereursãe
Martin
deTroppau
e
de algumas outras obras do mesmo gênero, antigas ou medievais,
que iam
sendo assim universalmente
difundidas. Nós
podemos,
portanto, admitir que, pelo menos
sob a forma de
referências fac-
tuais, a maior parte dos homens cultos do final da Idade Média -
sem haver estudado
a
história enquanto tal na escola ou na uni-
versidade
-
tinha
um
conhecimento mínimo
de
história política,
militar e eclesiástica dos principais
países
do Ocidente desde a
Antigüidade,
sem dúvida combinando com esta algumas nomen-
claturas geográficas. E essa
cultura histórica,
que eles
partilhavam
com o
ptóprio
príncipe e com os
nobres
de seu
círculo, era, para
dês,
uma importante fonte de argumentos e de exemplos para
apoiar teses jurídicas ou políticas que eles tivessem de defender
a serviço de seu mestrç.
A
vítima principal da estreiteza dos programas escolares e
universitários da Idade Média, ainda mais do que as belas letras
ou a
história, certamente
foi a
cultura cientifica
ou técnica. A s
5
dis-
ciplinas do
quadrivium
(aritmética,
música,
geometria, astrono-
mia)
dewriam ser ensinadas na
faculdade
de artes; contudo,
na
prática, elas deveriam ser limitadas apenas a algumas
lições
e, de
resto,
não
reapareciam
a não ser sob a
forma
de
ensinamentos
facultativos,
reunindo pequenos grupos
de
estudantes realmente
interessados
por
essas matérias.
Mas
como elas praticamente
não
ofereciam perspectivas profissionais asseguradas,
mesmo
esses
últimos
geralmente também
se entregavam a
estudar
uma
outra'
disciplina - tal
como
o
direito
ou a
medicina
-
onde
era
muito mais
viável se
fazer carreira. Além
do
mais,
ratava-se de ciências relati-
vamente abstratas, repousando, antes de tudo, sobre os números e
as
figuras e não
implicando, portanto, praticamente,
nem
apare-
lhagem,
nem contato com a matéria.
Em
contrapartida, aquelas
que
teriam exigido observação
^direta
da
natureza
ou , a jõrtíort, a
experimentação,
não
encon-
traram
jamais seu
lugar
no
ensino
e,
pode-se mesmo dizer, pratica-
mente
não
existiam rjara
os
homens
de
cultura daquele tempo.
Suas curiosidades,
em
matéria
de
química, zoologia, botânica,
mi-
neralogia, etc., consideradas freqüentemente vãos passatempos,
deviam,
pois, se
satisfazer pela leitura
de
Aristóteles, para
os mais
sábios, para
ou tros,
de enciclopedistas genéricos, tais
como
Vincent
de
Beauvais,
Barthélemy l'Anglais
ouThomas
de
Cantimpré,
os
quais, na
maioria
das vezes, se
limitavam
a
compilar seus prede-
v
cessores
antigos,
preferindo
acumular as interpretações alegóricas
a relatar os dados de observações reais.
Quanto ao saber de artesãos e de engenheiros e até dos
arquitetos dentre
os quais
mais eminentes, desde
o
século XIII,
des-
frutavam
de um real
prestígio social
-,
estes eram saberes
a
serem
essencialmente
transmitidos"pela
relação de "aprendizagem", de
patrão para
empregado,
de mestre para discípulo, de acordo com
procedimentos empíricos e orais que deixaram apenas ínfimos
traços na documentação (nós pensamos evidentemente na cader-
neta dos esboços do arquiteto francês V illard de Honnecourt,
caso
tão
célebre quanto isolado,
que data
de meados
do
século
XÜT). No
final da
Idade
Média,
os espetaculares progressos
de
certas técni-
cas, tais como
a extração
mineira,
a relojoaria e,
sobretudo,
a arti-
lharia (para não se Mar aqui da tipografia), acarretaram o surgi-
mento
de verdadeiros
especialistas,
relativamente
considerados
e
bem
pagos
e cujo
nível
de
conhecimentos
ultrapassava
certa-
mente aquele dos simples artesãos; mas eles não souberam, entre-
tanto,
formalizar e difundir
seus saberes para
além
da
prática con-
creta
que era a deles, de
modo
a
transformar aquele saber
em uma
verdadeira cultura científica e tecnológica.
42
43.
« t
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
http://slidepdf.com/reader/full/verger-jacques-homens-e-saber-na-idade-media 22/68
A
mais clássica alternativa para a cultura do clero era, entre-
tanto,
já há
muito tempo,
não
aquela
do bomofaber, mas a do ca-
valeiro. Nesta, a escrita e, afortíorí, o latim, tinham teoricamente
'um lugar bastante diminuto, normalmente abandonado
com
con-
descendência aos bons cuidados de algum capelão. O cavaleiro,
dedicava-se,
sobretudo, a exercícios físicos e
ao
treinamento
mi-
litar, a isto se acrescia a
práiica
de artes mundanas de salão -
canto, música e dança - e a tomar prazer em ouvir recitar, e até a
ler
ele próprio, poemas épicos, romances de amor ou de
aven-
turas.TUdo isso constituía naturalmente um ideal. É bastante duvi-
doso que todos os nobres tenham assimilado, com perfeição, os
refinamentos
da cultura cortesã e, em compensação, o cavaleiro
que possuía um certo verniz das letras - miles litteratus - não
era, também
assim
tão
raro; muitos sabiam
ler e
escrever
e até o
latim - pelo menos aquele dos diplomas e da Igreja -
não
lhes era
totalmente
desconhecido. De
testo,
no
entanto,
a
idéia
de u ma
cultura completa, qu e deveria associar os exercícios do corpo
>
àqueles
do
espírito,
a
descoberta
dos
valores corteses
e a
ini-
ciação à emoção estética ao mesmo tempo que a preparação
para
a disputa e para o desenvolvimento da memória, a gratuidade do
jogo e a seriedade do estudo, permaneceu suficientemente
estra-
nha para os homens de saber da Idade Média. Esse ideal, que
havia
sido aquele dapaideta antiga,
não
reencontrou verdadeira-
mente seu lugar até a chegada dos pedagogos humanistas, que
repreenderão precisamente seus predecessores medievais
por
seu descuido perante os temas do corpo e,
mais
ainda, por sua
falta
de atenção aos
aspectos
afetivos e
morais
da educação.
Afronta certamente excessiva e que vem se
contradizer
também
tanto com escritos de alguns monges pedagogos da Alta Idade
Média,
quanto
com as
concepções educativas
de um Raymond
Lulk
(c. 1232-1315)", de um Pierre Dubois (c. 1250-C.1320)" ou
14 - Ver particularmente sua Doctriné d'epfant, versão
fran-
cesa editada por A.
Llinarès,
Paris, 1969, e seu Livre de l'
ordre
d e
cbevaterte, ed; V
Mihervini.Bari, 1972
15 - Cí. J. Verger, Adstudíum augmentandum: 1'utopie
éducative de Pierre Dubois dans sòn De rvcuperacione
Terre Sancte
(v.1306)",
Mel. De Ia Bibllothèque de Ia
Sarbonnç, 8(1988),p.l06-122.
4 4
de
um
Jean Gerson (1363-1429)
16
; colocava-se porém
o
acento
sobre
o
caráter bastante restritivo
da
própria concepção
dos
saberes
sobre
a
qual
se
apoiava
a
definição medieval
de
cultura.
A
lista das lacunas e das
falhas
da cultura e do saber no
final da Idade
Média
poderia ser indefinidamente prolongada,
não
sem risco de anacronismos. Nós
abordaremos, contudo,
antes de terminar, um último ponto que poderíamos chamar
de ausência, nas elites intelectuais desse tempo, de uma cultura
econômica; ausência que não se
dava
sem conseqüência em
u ma época onde precisamente a aparição do imposto
perma-
nente e das barreiras
alfandegárias,
a tutela dos ofícios e a cri-
ação das feiras, o
desenvolvimento
internacional dos bancos
italianos
e a
multiplicação
das
mutações monetárias
restituía
para
os príncipes e para as cidades os meios de uma verdadeira
política econômica,
com
efeitos,
é
verdade, muitas vezes
não
previstos e mal controlados. É certo que os homens de negó-
cios do fim da Idade Média, pelo menos em certas regiões
pio-
neiras, começaram, então,
a
elaborar
uma
verdadeira cultura
mercantil
e financeira, ultrapassando, nesse sentido, o simples
nível
das tradições orais e das práticas empíricas. Em certas
cidades
daToscana
e da Flandres existiam, ao que parece, esco-
las destinadas aos filhos de mercadores, onde eram ensinadas a
aritmética
comercial - o ábaco - e as línguas nacionais. Os
manuais
de
comércio" (Pratica delia mercatura),
os
exercí-
cios de cálculo e de escrita, os pequenos tratados de contabi-
lidade,
os glossários bi - ou trilíngües, chegaram até nós, teste-
munhando esse
tipo
de
educação.
Se
acrescentarmos
a
isso
o
fato de os homens de negócios não deixarem de comprar
livros e de dar para seus filhos, pelo menos para os meninos,
u ma certa instrução gramatical e religiosa e empregar vo-
luntariamente para esse fim preceptores particulares, percebe-
se
que é legítimo
falar,
para esses meios, de uma cultura viva e
original,
residindo fundamentalmente no
vernáculo,
que se
elabora nos
séculos
finais da
Idade
Média.
Alguns não Üesi-
16
-
V er por
exemplo
se u
tratado Deparvulis ad Chistum
Trabendis
(publicado
em J. Gerson, Oeuvres
completes,
ed.
P Glorieux,
vol.
K,
Paris, 1973, p. 669-686).
4 5
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
http://slidepdf.com/reader/full/verger-jacques-homens-e-saber-na-idade-media 23/68
tavam
em
debater
questões religiosas
17
ou
a
tomar a pluma
para
elaborar os "livros da
razão ,
que eram, ao mesmo tempo,
esboços
de autobiografia, crônicas familiares, e recplhas de reflexões e
conselhos morais. Estudando os
"comerciantes
escritores" de
Florença,
Christian^ec destacou bastante bem a qualidade de
seus librí eUfamigíia, onde a
acuidade
da observação concreta
se alia ao senso agudo das realidades psicológicas e políticas para
sustentar
um
esforço
de
explicação racional
do
mundo.
18
Deve-
se, contudo, abster-se de generalizar o caso toscano. Em outros
lugares, por exemplo dentro do universo da Hansa germânica, a
cultura e a
técnica mental
dos
mercadores parecem
ter
sido
muito
mais simples e arcaicas. Quanto aos mercadores
france-
ses, o caráter bastante sumário de suas técnicas comerciais
e
sua
evidente falta de gosto para com os livros e para com os
estudos - não se encontra entre
eles
nem possuidores de
bi-
bliotecas
e nem fundadores de colégios - n|o permitem que
eles
sejam
considerados, em
hipótese
alguma, como "gente de
saber"; mesmo do mais célebre dentre eles, Jacques Coeur
(v. 1395-1456), a cultura praticamente nos escapa por comple-
to,
se é que havia
alguma.
19
Em todo caso, um fosso quase intransponível continua a
separar essas formas modernas mas ainda embrionárias de cul-
tura
econômicV
e a
cultura erudita, fundamentalmente latina,
reconhecida pela Igreja e difundida pelas escolas é universi-
dades. Mesmo entre o círculo dos príncipes, as duas
aproxi-
mavamrse sem se
misturar.
Se os
homens
de
saber abarcaram
cada
vez
mais
- nós
veremos
na
seqüência .deste livro
- as
funções
da
administração
e da
justiça,
os
reis
se
dirigiam
a
ho-
mens de negócios e de
finanças,
freqüentemente os italianos,
17 - Editando a
Disputatío
contra ludaeos
de
Inghetto
Contardo
(autor latino da Idade Média),
Paris,
1993, G. Da-
haii
conferiu destaque
à
notável
figura de um
mercador
genovês do século
XIJ1,
capaz de uma assombrosa
erudi-
ção exegética, talvez
assimilada pela escuta
de
predica
mendicante.
18 - Ch. Bec. Lês marcbands écrivairis: affaires et
hutnanisme
à
Florence, 1375-1434, Paris:La Haye, 1967.
19 - M. tàollat,
Jacques
Coeur o u 1'esprit
d'entreprise
au
XV siècle, Paris: 1988.
cuja excepcional
competência era
reconhecida
por
todos,
quando se tratava de gerir suas finanças e sua moeda.
O
Traité
dê s monnaies
de
Nicolas Oresme, composto
por
volta de 1357 em duas versões, latina e
francesa,
é, nessa perspec-
tiva,
uma
obra original
mas
muito
isolada e a
serviço
de
con-
cepções que, além disso, eram conservadoras e tímidas, para quê
possamos ver nesta o
ato
de nascimento de uma verdadeira cul-
tura econômica entre os homens de saber provenientes das esco-
las e das universidades
20
.
3
AS DISCIPLINAS SUPERIORES:TEOLOGIA.
MEDICINA
E
DIREITO
j
',
>*
V 4 1
Passemos,
agora, para os saberes realmente valorizados na
imagem e na prática que as elites do final da Idade Média possuíam
da cultura erudita. Para
tento, a
lista
é
curta
e
identifica-se pratica-
mente com
aquela
das
disciplinas efetivamente ensinadas
nas
escolas, studia e universidades daquele tempo: essas últimas
jamais conheceram,
além
da faculdade preparatória das artes,
mais
que
três
faculdades
superiores: teologia, medicina
e
direito.
Tais
eram,
portanto, as disciplinas cujo domínio, com maior ou menor
impulso, caracterizavam verdadeiramente os homens de saber no
Ocidente do fim da Idade Média.
No mais
alto degrau
se
colocava evidentemente
a
ciência
sagrada
(sacra pagina, sacra doctrtna), que se passou a carac-
terizar como "teologia", sobretudo a partir do século
XHI.
A íeolo-
gia
ensinada compreendia dois ramos:
por um
lado,
o
comentário
da própria Bíblia; por outro lado,
t>
estudo sistemático do dogma
cristão,
fundado
tanto sobre os ensinamentos dos Pais da Igreja
quanto
sobre
o
raciocínio
e os
recursos
da filosofia, o que não
(
ocorria sem
risco
de
heterodoxia.
Os
quatro
livros
das
Sentehças,
compostos,
em
meados
do
século XII,
por
Pedro Lombardo per-
f Jnaneceram até o século XV como o manual de base dos estudos
:>lógicos.
20 - Cf.
Nicolas
Oresme, Traité dê s monnaies^et autres
écríts
monétaires du XIV siècle (Jean B uridan, Bartole de
áassoferrato), texto reunidos por Cl.
Dupuy,
Paris: 1989-
46
4 7
•'A/íí
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
http://slidepdf.com/reader/full/verger-jacques-homens-e-saber-na-idade-media 24/68
Teoricamente, a teologia permanecia como disciplina mes-
tra,
aquela que oferecia aos teplogoç uma
espécie
de direito de
olhar
sobre todos os outros saberes para controlá-los pela
ortx>
doxia cristã, sendo que as disciplinas preparatórias da faculdade
de artes, especialmente a dialética e a filosofia, eram natural-
mente as mais diretamente visadas por tais eventuais censuras.
N a prática, porém, ninguém jamais imaginaria
que a
teologia
fosse destinada
a ter um a
vasta difusão.
N ão
somente impedia-se
que os leigos a estudassem, mas, mesmo entre os clérigos, os
monges e os religiosos, apenas uma pequena minoria poderia
receber
uma
verdadeira
formação
teológica. Está
-
verdade
seja
dita - era concebida segundo critérios particularmente exi-
gentes.
Na
universidade
de
Paris, requeria-se normalmente
quinze anos para percorrer o conjunto do curso teológico até o
doutorado. - Até por isso, estava fora de questão impor esse
gênero de formação ao corpo do clero. Nos países mediterrâ-
neos, os membros das ordens mendicantes eram praticamente os
únicos,
nos finais da
Idade Média,
a
estudar
á teologia.Além
disso,
uma parte considerável dos estudantes eram clérigos seculares
mas,
de
qualquer maneira,
tratava-se fundamentalmente
de uma
pequena elite. Não parece, aliás, que essa elite tenha sido espe-
cialmente destinada a ocupar, na Igreja, os postos superiores da
hierarquia quê de feto - nós veremos -
eram
geralmente
abarca-
dos pelos juristas. Quanto aos teólogos, eles tinham.antes a
imagem de especialistas intelectuais altamente q ualificados, cujo
papel era,
por um
lado, cultivar
e
enriquecer
uma
disciplina cujo
valor
eminente não
era
contestado
por
ninguém;
por
outro lado
-pelo menos naquilo que concerne aos mendicantes - deviam
consagrar-se a uma prática pastoral bem particular, o sermão,
para
o
qual
uma formação
teológica superior parecia
ser uma
preparação adequada.
Menos
numerosos ainda
que os
teólogos eram,
na
sociedade medieval,
os
médicos, pelo menos
se
entendermos
por
médicos aqueles que houverem
feito
estudos completos
e
adquirido graus universitários, excluídos tanto os cürandeiros, os
magos
e outros empíricos, quanto os barbeiros e os cirurgiões,
considerados, sobretudo
esses
últimos, como simples artesãos,
fosse
pela formação,
fosse
pela prática.
48
Para dizer a verdade, a medicina teve certa dificuldade paia
se fazer
reconhecer
sua
plena dignidade
de
ciência.
Ela
ainda
não
constava das classificações do saber entre os séculos Xff e XIII;
havia quem declarasse até que ela não passaria de uma oitava
arte
liberal" (em outras palavras, não se sustentando por si
mesma e preparatória para outra coisa), ou até mesmo urna süiu
pies "arte mecânica", visto que se voltava para os cuidados do
corpo e
para
a
bugea
de causas materiais. No entanto, os
mestres da escola de
Salerno
e, depois, de
Bolonha,;
Pádua,
Montpellier
e Paris rapidamente admitiram o estatuto científico
de sua disciplina. Às críticas, eles contrapuseram não apenas a
utilidade social evidente da medicina, mas suas bases filosófi-
cas. Antes de ser terapêutico, o conhecimento do médico
era,
primeiramente, um saber teórico fundado sobre o essencial da
filosofia natural de Aristóteles e sua interpretação por Galeno.
Ele recolocava o microcosmo do homem no coração do uni-
verso criado e lhe aplicava os mesmos princípios de causali-
dade e
mudança
que
existem
no
conjunto
do
mundo
físico.
Além disso, adotando uma deontologia exigente e subordinan-
do á preocupação com a saúde corporal com a própria saúde
da
alma,
qs médicos souberam bem se colocar ao abrigo das
críticas
do
teólogos.
Elite social ao mesmo tempo' que elite intelectual, os
mestres de medicina certamente ocuparam um lugar emi-
nente .entre os homens de saber da Idade
Média.
Nós falare-
mo s mais adiante das
belas
carreiras políticas ou eclesiásticas
que,
para alguns deles, sua reputação
de
ciência permitiu
realizarem.
O que se
deve sublinhar aqui
é que certos
médicos
estiveram entre
os
espíritos mais livres
e de
maior abertura
in-
telectual de seu tempo. Sem dúvida, eles foram os primeiros;
mesmo
antes dós filósofos parisienses, a ensinar à filosofia de
Aristóteles, desde
o final do
século
XII.
No
século XIII,
Arnaud
deVilleneuve (c.
1240-1311),
figura bastante excepcional,
pro-
fessor
em Montpellier,"médico, conselheiro e embaixador de
Inúmeros papas e de inúmeros
reis,
era capaz de conciliar uni
conhecimento aprofundado de
textos
filosóficos
e
;
médicos,
tanto
gregos quanto árabes, com um interesse marcado por
questões
de
alquimia
e de
astrologia,
m ás ao mesmo
tempo
por
debates
políticos e
religiosos.
Influenciado pelo
joaqui-
49
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
http://slidepdf.com/reader/full/verger-jacques-homens-e-saber-na-idade-media 25/68
nismo,
sensível
aos
temas mllenaristas, próximo
da
teologia
dos
Franciscanps
espirituais,
viajante
infatigável,
esse catajão
cosmopolita parece
ter
sido
um curioso de
todos
os
proble-
mas de seu tempo.
21
Se
teólogos e médicos nós aparecem hoje como os espíri-
tos mais originais dentre os homens de saber que a Idade Média
produziu, é, no
entanto,
assegurado ter
sido
o
direito, tanto
do
ponto de vista numérico quanto por sua consideração social, a
disciplina dominante entre
os
diversos componentes
possíveis
da
cultura erudita.
Os
últimos
séculos da
Idade
Média
represen-
taram
uma
idade
de
ouro para
os
juristas,
o
que,
em
inúmeros
países, prolongou-se até o final do Antigo'Regime e mesmo para
- além dele.
Aqui
não é lugar para se opor direito civil e direito canôni-
co. De feto, um e outro
distinguem-se
prontamente quanto a seu
conteúdo,
mas
ambos
se
constituem quase simultaneamente
como disciplinas eruditas.
Talvez
seja um
pouco
redundante dizer
que b
direito
romano
foi
"redescoberto"
na
Itália, a
partir
de
velhos
ma-
nuscritos esquecidos,
nos
últimos anos
do
século
XI.
Desde cerca
do Ano
Mil, alguns juizes
do
reino
da
Itália, sempre utilizando
e
comentando
o
direito lombardo, pareciam possuir
um
dado co-
nhecimento
da
legislação
de Justiniano, especialmente do
Código
2
', mas foi
apenas
por
volta
do ano 1100, em
Bolonha
e em
algumas
cidades vizinhas como
Ravena, Modena
ou
Placência,
que se recomeçou a
estudar sistematicamente
o
direito romano.
Se
nós ignoramos toda a obra do enigmático Pepo, sabemos que
Irnerius (morto por volta de 1125) compôs as primeiras glosas e
sobretudo levou a cabo uma "reedição" em cinco volumes do
conjunto do Corpus
iuris civilis (Códice,
Digesto,
Institutos
et
Novela.) que
permanecerá
em uso até o fim da
Idade
Média. Na
geração seguinte, a
escola
dos comentaristas
bolonheses
tomou
pleno impulso,
ao
mesmo tempo
que
seus alunos começavam
a
21 - C f. J . A. Paniagua, El
maestro Arnau
de ViUanava
médico, Valence: 1969.
22 - Cf. Ch. M. Radding, Th e
origins
of Medieval
Jurisprudence:
Pavia
and
Bolonha
(850-1150), N ew
Haven-Londres:
1988.
se
espraiar
por toda^ a
Itália
e
paraalém
dos-Alpes,
especialmente
em Provença, Languedoc e Catalunha. Foi, igualmente, no segun-
do terço
do
século xn
e
também
em
Bolonha,
que o
direito
canônico tornou-se verdadeiramente
uma disciplina
acadêmica.
Não sabemos infelizmente quase nada
de
Gratiano que,
por
volta
de 1140, ou
talvez
um
pouco antes, compilou
a
Concórdia
dis-
cordàntium canonum
(mais
conhecida sob o nome de
Decreto), coletânea de textos canônicos de diversas origens, de
uma
amplitude até então
desconhecida
e, sobretudo, apresenta-
da de
maneira temática, sendo
as
aparentes
contradições nas
fontes
resolvidas pelo recurso ao método dialético. O
Decreto
não
era, até então, nada além
de uma
compilação "privada",
em-
bora desfrutasse de uma excepcional autoridade. A partir do
século
Xni, ele foi complementado por
coleções
oficiais de
>
decretos pontificais (os
cinco
livros de Gregório IX, o Sexto, de
Bonifácio
vm,
os
Clementirias,
de
Clemente y
as Extravagantes
de
Joãq
XXII), que
no'conjunto constituíam
o
Corpus
iuris
canonici,btnço
eclesiástico do Corpusluris
civilis.O
parentesco
entre
os
dois
Corpus era tão
reconhecidamente grande
que os
compiladores e os comentaristas do direito canônico fizeram
muita referência
às
noções emprestadas
do
direito romano.
Em
meados
do
século XIII,
os
dois Corpus foram providos
de sua
"glosa ordinária", atribuída
em
direito romano
a François
Aceurse, em
direito canônico
a
Jean, oTeutônico. Sintetizando
a
produção
dos
comentaristas bolonheses
já há um
século,
as
glosas ordinárias
tornaram-se, de
qualquer
modo, o
aparato
oficial
do
direito erudito, ensinadas com o mesmo título deste e, por-
tanto,
conhecidas de todos os que estudavam aquelas disciplinas.
Isso não terminou naturalmente com a atividade dos comen-
taristas, mas
estes
passaram a se orientar, de agora em diante, cada
vez
mais, para a redação tanto de questões particulares quanto,
ao
contrário, de vastos tratados com títulos variados (leitura,
summa.
etc.).
Nessa
produção,
os
italianos
-
estivessem eles ensi-
nando em Bolonha ou em outros lugares - guardaram a parte do
leão: o papa Inocêncio IV (c.
1190-1254)
e Jean d'André
(1270-
1348) para
o direito
canônico,
Bartolo (1314-1357) e Baldus
(1327-1400)
para
o
direito civil,
forneceram, sem
dúvida,
os
comentários mais difundidos, embora outras escolas jurídicas
houvessem aparecido
no final do
século
XEH. A
mais fecunda
foi
50
5 1
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
http://slidepdf.com/reader/full/verger-jacques-homens-e-saber-na-idade-media 26/68
dos
juristas
do
Languedoc, provindos
das
universidades
de
Montpellier
e de
Toulouse. Além dissoi houve alguns autores
importantes
em
Paris
e em Órleans. Em
contrapartida,
os
outros
países
da
Europa
não
parecem
ter
oferecido contribuição,ver-
dadeiramente
importante para o comentário das matérias do
direito antes do século XV Essas diferentes escolas poderiam
pos-
suir uma
certa coloração específica, mais concreta
no Midi da
França, mais filosófica em
Orléans,
mas,
de
modo geral,
o
ensino
de um e de
outro direito guardou
na
Eu ropaj
até o final da
Idade
Média, uma notável un iformidade, que vinha ao mesmo tempo da
superioridade
incontestada,
por todos reconhecida, 'da lex
romana e da
forte
marca pontificai imposta ao direito da Igreja
depois da reforma gregoriana.
N ós
temos, por vezes, a tendência de pensar que o direito
erudito deve, para se desenvolver, lutar
cçntra
o
direito
consue-
tudinário, de
origem bárbara
e feudal,
preexistente.
O
sentimen-
to de que os
direitos romano
e romano-canônico
seriam direitos
estrangeiros, impostos em detrimento de costumes ancestrais,
pode ter
existido algumas vezes
nas
populações mas,
sem dúvi-
da,
não era
algo partilhado pelos juristas.
Para
estes,
os
direitos
eruditos
eram, para ialar
com propriedade, os únicos direitos
possíveis, por serem os únicos a quem sua antigüidade e estrutu-
ra racional conferia uma autoridade verdadeiramente universal
face à
diversidade
a ao empirismo dos
costumes. Eles, entretanto,
não
desconheciam,
por
isso,
a
utilidade destes mesmos costumes.
Su a intenção
não era à de
aboli-los
em
proveito
do
direito
romano,
mas
antes
a de
render
ao
direito enquanto
tal sua
dig-
nidade de disciplina douta e, em seguida, impor, em todos os
níveis - tanto no que diz respeito aos procedimentos quanto no
tocante
às
decisões positivas
-, um
espírito
(mens
legis)
de
tipo
científico,
repousando sobre
a
racionalidade
das
demonstrações
e a
universalidade
dos
princípios.
f
Foi igualmente essa reivindicação de
racionalidade
que
permitiu aos juristas conseguirem rapidamente eliminar as re-
ticências
dá
Igreja. No século xn, esta fingia ver, no direito, á
própria personificação da ciência ao mesmo tempo lucrativa e
enganadora. Pela esperança
do
lucro,
o
direito
desviaria
os
me-
lhores espíritos da ciência sagrada; permitiria aos hábeis
enganarem os simples, à argúcia triunfar sobre a verdade.
52
Conseqüentemente,
a
Igreja interditava especialmente
aos
cléri-
gos e aos
religiosos
o
estudo
do
direito romano.
Oficialmente, tais^
interdições foram mantidas até o século
XHI
e talvez até
depois,
dele;
em
1219, pela bula Super specuíam, o papa Honório
III
proibiu o ensino do direito civil em Paris, por medo
da
concor-
rência que tal ensino poderia
íazer
às escolas de
teologia
23
;
Essa
proibição
era
particularmente vigorosa
eni
relação
aos
membros
das
ordens religiosas, a quem era efetivamente proibido o estudo
do
direito
canônico.
Mas se
essa interdição
foi
corretamente
respeitada pelas ordens mendicantes, nós vemos multiplicarem-
se, no
século XIV;
as
dispensas autorizando Cirtercienses
e
Cluniacenses
a
estudar
o
direito,
pela
própria demanda
das
autoridades de suas respectivas ordens. Quanto aos
clérigos
se-
culares, eles
se
debruçaram, dali
em
diante,
nas
lições
de
direito
romano. N o sçculp XI\Ç 40% dos
cardeais
de Avignon portadores
de um diploma universitário eram graduados em direito civil?
4
; a
porcentagem era ainda superior (46%) entre os que participaram'
da Rota, tribunal supremo da cristandade, na época do
Grande;
Cisma (1378-1417)
25
.
Os
argumentos
que
permitiram
aos
juristas reduzirem
um
pouco a oposição da Igreja são expostos desde o final do século
Xn em diversos textos, dos quais um dos mais explícitos foi
o
Serrno
de
legibus datado
de
1186
e
atribuído
a
Placentinus,
um
célebre
jurista italiano que ensinara também em
Montpellier
26
:
o
direito, dizia ele,
não é
unia ciência
de
oportunismo
e de
dissi-
mulação, ele é construído apenas pela própria razão (ratío
23 - G. Giorctenengo,
Réslstances irçtellectuelles
autour de
Ia
Décrétale Stiper speculam (1219),
em Mélanges
offeris
à George Duby, volume III,Aix-en-Próvence
1992, p.l4l-
155 •
• . ; • ;
•
24 - P. Guillemain, L a cour
pontiftcale
d'Avignon (f309-,
13
76): étude d'une société, 2°edição, Paris: 1966,
p.
217.
25
- H. Gilles, Lês auditeurs de Rote au
temps
de Cíémcnt
VI I et Bcnoit xni (1378-1417),
Mélanges
d'arcbeologte et
| d'histoire, publicado
pela
Éc. Fr, de
Rome,
67 (1995),
.
, p.321-337).
26- Ed.emH.Kantorowicz,Tbepoetícalsêrmonofa me*
diaewl 'jurist. Placentinus and his Serfflo de Legibus,
Joifmal
ófthe Waburg Institute, 2,
(1938),
p.ll
1-135.
j > •
53
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
http://slidepdf.com/reader/full/verger-jacques-homens-e-saber-na-idade-media 27/68
scríptà); os
princípios
da lei
humana
não
contradizem
nem
àque-
les da lei da natureza nem aos da lei divina, mesmo se eles fossem
atualizados em função das circunstâncias; o direito é a instância
reguladora suprema da sociedade; ciência do justo
e
do injusto,
ele se confunde com a eqüidade e dá a cada um aquilo que lhe
•pertence. .
Por seu turno, os canonistas souberam mostrar que, longe
de se
opor
à
teologia,
o
direito eclesiástico
lhe era o
comple-
mento necessário no seio da
Igreja
militante; eles tiveram, além
do mais, a habilidade de associar os teólogos ao
seu
ensino, con-
fiando-lhes o comentário de certos decretos que continham mais
diretamente questões de dogma e de sacramento.
Esses
argumentos, como é óbvio, possuíam a dupla van-
tagem
de legitimar o direito como disciplina erudita ao
mesmo,
tempo que criavam nos juristas a pretensão de ocupar um lugar
eminente na sociedade e na Igreja como conselheiros dos
príncipes e dos prelados. Em breve, os doutores em direito não
hesitariam
em
retomar em proveito próprio o versículo de
Daniel
12,3, que São Bernardo havia aplicado aos mestres de
teologia; "Os que são esclarecidos resplandecerão,
.como
o
resplendor do firmamento; e os que ensinam a muitos a justiça
hão de ser
como
as
estrelas,
por
toda
a
eternidade."
27
Istp posto,
a
consideração tanto social quanto
intelectual da
qual
se
beneficiaram
os
direitos romano
e romano-canônico na
Idade
Média
não era igualmente intensa em todo o
Ocidente.
Ela
era, por assim dizer, compartilhada nos países
mediterrânicos:
Itália, França central, Pensínsula Ibérica. Aqui, desde o século XII,
multiplicavam-se
as escolas de direito e os
comentários
eruditos.
Os diplomas, por seu turno, testemunham a ascensão social dos
juristas
(denominados doctores legum, judices,
causadici,
etc.).
A partir do século
XIII,
nesses países, as faculdades de direito
dominam fortemente as universidades, nas quais, ao contrário, as
27 - Q uí
docti
fuerint, fulgebunt quasi
splendor
ftrma-
mentt, et
qui
ad iustítíam
erudiunt
muitos, quasi stellas
in
perpetueis
aeternitates
(cf.
G .
Lê Brás, Velut splendor
ftrmameriti: lê
doctcur
clans
lê droit de 1'Eglise
médiévale,
dans Mélanges offerts à
Etienne Gilson,
Toronto-Paris,
,1959,p.373
:
388) '
54
faculdades de
artes
e de
teologia, quando elas existiam,
ficavam
em uma posição
secundária
ou
marginal, assim como
os gradua-
dos que delas saíam:
Os
juristas adortíavam-se aqui, sem mode-
ração, com os atributos mais Üsonjeiros: circumspectus,
venerabilis,
magnificus, sapientissimus, etc. Em
síntese,
todos
os sinais do reconhecimento
social
e do prestígio
político
eram
acumulados
em seu
proveito para/atestar
o
esplendor
do
direito
na cultura meridional.
Embora
mais tardiamente e em proveito das elites mais
restritas,
os
países germâniCçs
do Império
tiveram igualmente
boa acolhida,
ao
que parece, dç direito romano
e dos
juristas
capazes
de
ensiná-lo
e
praticá-lo. Em contrapartida,
no
norte
da
França
e na
Inglaterra,
o
prestígio atribuído
ao
direito erudito
foi, sem dúvida, menor ou, de qualquer modo, menos exclusivo.
Em Paris e em Oxford, a filosofia e a teologia, sustentadas por
uma longa tradição, eram também tidas
em
alta consideração.
E
se, por seu turno, o direito consuetudinário francês não opôs
verdadeira resistência organizada
ao
direito romano
- mas
dele
se impregnou, ainda que de bom grado, como se vê já no sécu-
lo
XIII, mediante
o
Coutumes de Beauvaisis de Philippe de
Beaumanoif
-, na Inglaterra, ao contrário, a
Cómmon
Lau>,
unifi-
cada e, sistematizada no Tractatus de legibus et
consuetu-
dinibus regni Angliae de Glanvill (fim do
século
XII) e na
coleção
do
mesmo
título
de Henri de
Bracton (c. 1216-1268),
não sem alguma contribuição
romana
de fora,
acantonou
o di-
reito erudito,
pèlO
menos o Cotpus
iurís
civilis, no estatuto
estimável mas marginal
de uma
disciplina estrangeira
e
estrita-
mente
acadêmica.
N Ã O
importa. No final da Idade Média, por todo o Ocidente,
o homem culto era, com bastante freqüência, um jurista. Um bom
latinista, é
certo,
leitor de Aristóteles e capaz;de encadear
silogis-
mos,
mas fundamentalmente imbuído de
citações
do
Decretum,
do Código e do Digesto: as práticas mnemotécnicas, fortes no
prestígio
que
desfrutavam
nas
escolas medievais,
permitiam-lhe,
se nós acreditarmos
na
ArS et doctrina studenti et
docendi
do
canonista espanhol
Juan Afonso
de Benavente
(1453)
28
,saber
de
28 -
Juán A lfonso
de
B enayeme,
Ars
e t
doctrina studendl
et docendi,
editado
por B. Alonso Rodriguez,
Salamanca,
l972,p.84-86
55
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
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cor até mil artigos de leis, disponíveis, a todo instante, em seu
espirito para reforçar uma argumentação, enriquecer uma dis-
sertação
ou ornar um discurso.
O peso considerável do direito
na
cultura
e nas mentàli-
dades do fim da Idade Média hão parecia ser exagerado. Ele
era a própria medida do sucesso social e político dos juristas.
4. UTILÍDADE SOCIAL OU CULTURA
GERAL?
Ainda que se restringisse às disciplinas que acabamos de
indicar, a cultura erudita do final da Idade
Média
não escondia
suas
finalidades
práticas
e a sua
pretensão
de
utilidade social.
Sem
dúvida, seria anacrônico
conceber
essa noção de utili-
dade social mediante a categoria de perspectivas profissionais
precisas,
mas é ftto que se
considerava, então,'que
os
conhe-
cimentos sustentados
pelos homens
cultos
conduziam, com
muita \naturaliclade,
ao
exercício
de
tarefas socialmente legíti-
mas, sempre
melhor
desempenhadas por aqueles que demons-
trassem possuir maior competência intelectual. Estudava-se a
teologia para pregar, a medicina para cuidar dós doentes, o
direito para tornar-se ju iz ou advogado. Apenas as artes li-
berais poderiam não designar. tão claramente sua função
social (mesmo assim, os mestres em artes podiam, no mínimo,
tornar-se
mestre-escolas ou secretários) mas isso era precisa-
mente porque se tratava, pelo menos em tese, de simples dis-
ciplinas
preparatórias
para o curso superior. A idéia de uma
,. cultura desinteressada, sem outros fins que não o desabrochar
da
personalidade e da pura
fruição
do saber por si mesmo, era
estranha para os intelectuais daquele tempo. O sucesso indi-
vidual
não
era para eles matéria de educação e de cultura, mas
de fé, de submissão a Deus, de prática de virtude e de obras
pela esperança de merecer a salvação. Quanto ao prazer
estético
que
poderia
ser
proporcionado pela arte
ou pelo
saber, ele parecia suspeito; seria melhor limitá-lo ao domínio,
no mínimo, inofensivo
ou, no
máximo, perigoso,
da
diversão:
as
artes mundanas
e a
literatura vernácula
lhes
eram absolu-
tamente suficientes: A cultura- erudita era, enquanto tal, coisa
excessivamente séria para ser abandonada a si própria: "Para
\
que serve a ciência desinteressada?
Sciencia
abscondifa
et
56
thesaurus invisus qtte
utilitas
in utrisquel Nós
não
apren-
demos apenas para investigar,
mas
para revelar
e fazer", obser-
vava Gerson
29
; dito de outro modo, para que servem os bons
conhecimentos
se eles não dão margem a uma atividade con-
creta,
útil
tanto para aquele que a produz quanto para a sociedade
em que ele
vive?
Como contrapartida, o homem de saber
espe-
rava
que sua
utilidade social fosse reconhecida
e
recompensada
em
seu justo
valor,
ou
seja,
que fosse aceita sua admissão à elite,
talvez
até mais precisamente, nós o veremos, sua assimilação,
pelo
menos a
título
individual
e
vitalício, na
nobreza.
Esse aspecto
utilitarista
da cultura erudita nos últimos sécu-
los da Idade Média, que lhe fez muitas vezes privilegiar, ppr
preo-
cupação com a eficácia social, os procedimentos concretos e téc-
nicos
às
expensas
da
curiosidade dê espírito
e da elegância
in-,
telectual, certamente alimentou mal-entendidos que a opuseram,
em breve, aos
humanistas
da,
Renascença. Mesmo
que
não
se par-r
tilhe dos preconceitos destes, o historiador moderno mantém-se
tentado a imputar a essa
concepção
dos saberes a insuficiência
do
senso crítico e a efetiva ausência de espírito de investigação,
que aparecem,
pelo
menos retrospectivamente, como traços
maiores da cultura erudita dessa
época.
Trata-se, de fato, de um
julgamento muito genérico ao qual se
poderia
opor múltiplos
indícios de um certo
sentido
de
progresso intelectual,
perceptí-
vel em diversos autores desde a célebre fórmula do teólogo
Bernard
de Chartres, no
início
do
século XII, sobre
"os
anãos
le-
vantados sobre os ombros dos~gigantes" e que, desse modo, viam
mais longe que esses. Contudo, tais referências, permanecendo
pouco numerosas, datam, no essencial, dos séculos
xn
e xni.
Depois de 1300, uma concepção conservadora e bloqueada do
saber parecia predominar.
A visão da cultura medieval que nós aqui delineamos, con-
fronta-se,
entretanto, ao que parece, com uma dupla objeção.
A primeira, a menos pertinente, é a de que a utilidade social
da cultura erudita, ,da qual nós falamos aqui, estava longe de ser
unanimemente
reconhecida. Nenhuma função
na
sociedade,
medieval (salvo talvez algumas formas
de
exercício
da
medicina)
29
- Num discurso de
J.405
(J . Gerson, Oeuvres completes,
ed.P Glorieux, volume VU /1,Paris,
1968,p.1145)
S7
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
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era estritamente reservada aos titulares dessa ou daquela gradua-
ção;
tanto quanto a competência intelectual, o nascimento, a
antigüidade
ou o simples acaso muitas vezes comandavam as
nomeações e promoções. A sociedade medieval
jamajs
deixou .
de ser imperfeitamente
meritocrática/E
os próprios homens de
saber praticamente não o ignoravam, sendo que, muitas vezes,
eles não desdenhavam de fazer valer a seu
favor
as circunstâncias
da
sorte, do
nepotismo
e do clientelismo para obter mais segura-
mente
os
conhecimentos
que
pudessem
por si
mesmos abrir-
lhes o acesso. Mas isso não impede - e aqui está o ponto essen-
cial,
sobre o qual nós retornaremos na seqüência deste livro -
que
a idéia das competências intelectuais pudesse assumir o
papel
de fator de
regulação social, idéia praticamente
desco-
nhecida
na Alta
Idade Média, e que não cessou de progredir a
par;
tir do século XQ, mesmo que ela jamais tenha podido desem-
baraçar-se, por
completo,
do peso-dos fatores
concorrentes.
Mais
embaraçoso
é o
fato
de
que,
tal
como elas eram prati-
cadas e
ensinadas
no final da
Idade Média,
as
principais disci-
plinas constitutivas da cultura erudita não pareciam
mais
se cur-
var
à
noção
de
utilidade social.
O que
havia
de
comum entre
a
teologia escplástica, com suas desagradáveis abstrações e suas
intermináveis
distinções,
e a
pregação popular?
O que
havia 'de
comum entre o discurso teórico dos médicos e as necessidades
reais dos
doentes?
-
recordem-se 05 efeitos cômicos
que
M olière
tiraria disso n o século XVH, Qual a finalidade, enfim, de os juris-
tas, chamados a julgar de acordo com o costume, passarem anos
a glosar
u m
direito romano velho
já há
muitos séculos
e
inaplicável
como
tal na
sociedade medieval?
N a própria época, já existia a sensibilidade para perceber
tais distorções. É provável que, em suas práticas cotidianas,
mestres e sobretudo estudantes, tenham buscado promover
for-
mas
de
ensinamentos mais simples
e
menos
formalistas, aligeiran-
do
os
programas tradicionais.introduzindo
nas
escolas exercícios
e textos, até mesmo disciplinas que originalmente não teriam
lugar. Tais iniciativas nãoorganizadas, freqüentemente ignoradas
e até
combatidas pelas autoridades vigentes, infelizmente
deixaram poucos rastros na documentação. Alguns projetos
reformadores, alguns estatutos de
colégios,
som -dúvida, lhes fa-
ziam eco. Sob uma forma ou outra, nós encontraremos neles
as
58
mesmas
tendências: revalorização da
gramática,
abandono
de cer-
tas
disputas, trabalho
em
pequenos grupos, introdução do uso de
manuais simplificados, encurtamento da
duração
dos
estudos,
lugar maior dado para a teologia e para os estudos bíblicos, na
medicina para os
estágios
clínicos,
no
direito para
o
direito mo-
derno e para os textos dos costumes. Como contrapartida, bem
pbuco se, arriscava, ao que parece, no tocante à substituição do
latim
pela língua vernácula.
Aqui ou lá, à margem das
antigas universidades,
m as
sempre
sob
seu controle,
criaram-se
novos
tipos
de escolas. Em
O xford,
um conjunto de verdadeiras
escolas
de gramática, de bom nível
desenvolveram-se
ao
lado
das
faculdades
de
artes. Em
Bolonha,
foram
as
escolas
do
notaríato que apareceram
à
sombra
da
uni-
versidade jurídica. Em outros lugares ainda surgiram
as
escolas,
de
cirurgiões, mais ou menos supervisionadas pelas faculdades de
medicina. Em Salamanca, já eram distribuídos títulos em música,
enquanto
a
faculdade
de
direito
se
punha
a
ensinar,
sem
dúvida
em língua vernácula, a legislação real castelhana - Siete
Partidas
e Fuero real - paralelamente ao
Cotpus
iuris civilis. Na
Inglaterra,
também
a
Corhmon
Z#tt>itornou-se
matéria
de
ensino,
mas isso ocorreu completamente fora
da
universidade;
as
escolas
especiais, privadas - as Inns ofCourt - apareceram no século
XV
em Londres onde estudavam
os futuros
"advogados", associando
lições magistrais, proferidas por profissionais da vara, e estágios
no
tribunal.
Poderíamos dar outros exemplos. Os ensinamentos, eles
também
mal conhecidos, que se desenvolveram, sobretudo, no
século
XV ,
no próprio seio dos colégios universitários, teste-
munham, sem dúvida, a mesma face doente do caráter esclerosa-
do
e inadaptado do ensino
universitário.
N p
conjunto, porém, tais inovações não chegariam muito
Monge. É
verdade
que as
autoridades, professores
"regulares"
das
universidades e
poderes
públicos, associariam geralmente seus
esforços para contê-las e impor, com isso, a manutenção do sta-
tus quo.Mas
há que se
dizer
que não se
tratava também de
tendências de grande
porte cultural.
Nós somos até tentados a
dar
razão àqueles que lhes quiseram refrear o
desenvolvimento.
Resultando menos de uma reflexão global sobre a natureza dos
saberes
que da pressão dos estudantes e de suas femílias cuida—
59
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
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dosas
em
programar melhor
o
tempo
è o
custo
dos
estudos, esses
esforços para promover uma aproximação mais prática e menos
formal de disciplinas não agravaram algumas das tendências mais
contestáveis da cultura medieval: o primado da autoridade, o
pavor
da heterodoxia, a
substituição
das
fontes originais pelos
florilégios, sinopses e manuais, a hipertrofia da memória.
A
defesa
das disciplinas e dos métodos tradicionais era, a
princípio, indubitavelmente, o
efeito
de uma reação corporativa
por parte dos mestres em suas
cátedrasi,
dos doutores convictos
de
sua
ciência
e
pouco dispostos
a
colocar
em
discussão
sua
autoridade
e seu
prestígio.
Mas ela
traduzia também
uma
certa
consciência dos valores específicos da cultura erudita medieval.
Esta,
de fato, não era uma
cultura livre
e
desinteressada, domina*
da pelo espírito
de
pesquisa.
Mas
pelo menos
ela
tinha
a
pre-
tensão de repousar sobre saberes suficientemente amplos e
sobre
as
"autoridades",
suficientemente ricas
para oferecer àque-
les que a
praticassem mais
do que
saberes técnicos.
O
letrado
medieval se
reconhecia tanto
por sua
capacidade
de
ministrar
em
seu
conjunto
um
dado campo disciplinar quanto
por uma
certa maneira de raciocinar, de abordar os problemas, de
descortinar
os
textos,
de
conduzir
uma
discussão,
de
extrair
os
princípios gerais que o tornassem apto, no seio da disciplina
escolhida, e até para além dela, a assumir de
r
fato uma real diver-
sidade
de
funções sociais conexas.
Os
conteúdos
e as
atitudes
intelectuais eram definidos de maneira rigorosa e até bastante
rígida, mas no interior desse quadro os homens de saber das
sociedades medievais (tanto mais - repitamos - pelo fato de tal
cultura ser ainda largamente internacional) podiam se
reco-
nhecer não somente como capazes de exercer certos ofícios
que
eles consideravam social
e
politicamente
úteis, mas
também
como formando eles próprios
uma
comunidade cultural
defini-
da
por um certo número
de
referências partilhadas.
Isso
não
quer dizer
que não
houvesse,
no final da Idade
Média,
crise
da
cultura erudita
no
Ocidente. Detonada
na
Itália
desde
meados
do
século
X 5 V ,
perceptível
na
França
por
volta
de
1400,
essa crise não se fez sentir, de maneira geral, em outros
lugares
até os últimos decênios do século XV A obsolescência de
certos conteúdos
e a
descoberta
de
novos textos obrigaram
a
rever
a
definição
e a
própria lista
à a s r disciplinas. As
disciplinas
superiores passaram para um'primeiro plano, Platão tornou a
60
fazer
concorrência
a
Aristóteles.
Mas
foi,
sem
dúvida,
o
distancia-
mento
da perspectiva utilitária anteriormente exposta
qU e foi a
mutação mais importante. A noção de cultura, tão fortemente li-
gada na Idade Média, como já bem demonstrou Jacque Lê
Goff,
.àquela
do
trabalho,
foi
progressivamente,
e não sem
polêmica,
derrubada por aquela do lazer e da gratuidade, rejeitando os
saberes
profissionais voltados para estrita funcionalidade.
30
É
evi-
dente não apenas que a transição ocorre lentamente, mas trataya-
•c
fundamentalmente
da tradução, no domínio propriamente
cul-
» ;
tural,
das mudanças sociais e políticas qu e marcaram a passagem
:
das sociedades
européias
para a idade moderna.
5.
CULTURA ERUDITA,
CULTURA
POPULAR
Uma
última questão
se
coloca.
A.cultura
erudita
da
qual
amos de tratar, era evidentemente uma cultura elitista. Mais
nte,
nós
voltaremos
aos
problemas estatísticos,
mas é bem
> que as
pessoas cultas
não
representaram nada além
de u ma
icna minoria, antes de tudo, masculina, da população. Sua cul-
i
era
composta
por disciplinas, bem
precisas,
de,
difícil
acesso,
ez pelo indispensável domínio prévio
do
latim. Longos estu-
i
eram quase sempre necessários, bem como a custosa
posse
: livros. Uma viva consciência dos méritos e do seu valor habita-
,,
aliás,
geralmente
os homens cultos, cuja .qualidade dominante
ais
parecera ser a modéstia. N u m a palavra, todas as condições
i estariam reunidas para
qu e
eles
se
constituíssem
em uma
l fechada, definida
pela
detenção de saberes inacessíveis ao
em comum?
A resposta a essa questão é, antes de mais nada, social. É ver-
i
que u ma casta de homens cultos será tão mais facilmente
uída
quanto
se fizer
capaz
de
formar
um
grupo
endógeno
terizado por
funções
e um modo de vida específicos; pelo
rio,
enquanto os homens de saber permanecem indivíduos
os
no seio de famílias que continuam a se entregar a outras
s, eles permancecem verdadeiramente mais próximos
30 - J.
Lê Goff,
Lês
intellectueis au
tylayen
Age, 2*ed.,
Paris,
'
1985, p.187-188.
61
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
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das
preocupações
e das
representações
do
resto
da sociedade.
Encontraremos
adiante algumas indicações,
por
vezes bastante
matizadas, sobre esse assunto.
Mas a questão também é cultural.-Os homens de saber e
o
resto
da
população efetivamente
se
opunham como
dois u niver-
sos culturais distintos? Certos aspectos,
pelo
menos, da cultura
dos letrados não seriam já
difundidos
por camadas mais largas da
sociedade? E, inversamente, para além dos sabetes que lhes eram
próprios,
os letrados não
continuavam
a partilhar com o
conjun-
to
de
seus contemporâneos
um
certo número
de
crenças
e de
conhecimentos, explícitos ou implícitos, que pertenciam àquilo
que nós chamaremos -- à feita de algo melhor e sem nos furtar à
ambigüidade da expressão - cultura popular?
Esses são os pontos difíceis^para se compreender com pre-
cisão
porque
essa
cultura "popular"
tem
deixado,
por
definição,
infinitamente menos traços escritos
do que a
cultura erudita.
Unia questão
fundamental
quanto a taxa de alfabetização
no
seio das sociedades medievais nos escapa totalmente.
Naturalmente tal taxa deveria ser bastante baixa, mas suspeita-
mos,
apesar de tudo, mediante.escassps indícios, de que ela seria
talvez
maior,
pelo menos a partir dos séculos xn e
XIII,
do que
nós anteriormente imaginávamos. Eni diversas regiões existiram,
nas
cidades e até mesmo nos
campos,
redes não desprezíveis de
pequenas escolas de gramática que podiam atender a um públi-
co verdadeiramente popular. Do século XIII ao Xy o número de
localidades inglesas identificadas como locais de abrigo de uma
ou
várias escolas desse tipo progressivamente se elevou de 32
para 85
31
. Outras regiões,
é
verdade, eram pior aquinhoadas.
Mesmo
se as
crianças
que freqüentavam
essas escolas
não
lhes
extraíssem
nenhuma atitude
para
além
de uma
certa compreen-
são
de textos simples (contas, créditos, atos de locação ou de
venda,
arbitragens e sentenças, contratos de casamento
qu
testa-
mentos, etc.),
isso lhes
proporcionava uma
certa
familiaridade
31 - 32 para o período 1200-1249,48
para
1250-1299,62
para
1300-1349,72 para
1350-1399,82
para 1400-1449,85
para 1450-1499, de acordo com N. Orme,
Ettgtísb
Schools
in tbe MidMeAges, Londres, 1973, p. 294.
62
para com
ais
práticas administrativas e jurídicas que regulavam a
existência cotidiana.
Michael T. Clanchy mostrou bem que, no final da
'Idade
Média,
muitos camponeses
ingleses
possuíam
em
seus cofres títu-
los de propriedade ou sentenças judiciais, os quais eles não ape-
, nas eram capazes de compreender, como ainda podiam utilizar
esses papéis
fios
litígios
com
seus
senhores ou os
oficiais
do
rei.
32
O caso inglês, ilustrado pelos dois trabalhos que acabo de
citar,
seria
em si
excepcional? Qualquer
um que
tenha trabalha-
do sobre os registros de
notários
dos países
mediterrânicos,
con-
frontado com uma massa de transações muitas vezes
minúsculas
c contratos passados pelas pessoas mais comuns para os casos
aparentemente mais fúteis, não se pode impedir de acreditar qúé,
cm tais regiões, também
a
maior parte
dos
habitantes
era
capaz
de compreender a penetração de um ato escrito e que
eles
ti-
nham
até a tendência de atribuir ao direito uma confiança pelo
menos
igual àquela
dos
próprios juristas. Enfim,
é
inútil insistir,
enquanto
algo conhecido, sobre
o
Caráter extraordinariamente
demandista
dos homens desse
tempp,
que não cessavam de
sobrecarregar de múltiplos afazeres os tribunais que então exis-
tiam
e de
maneira hábil
jogavam
freqüentemente
com a super-
posição e a eventual concorrência das
diversas
instâncias judi-
ciárias.
Tudo
isso implica, ao que parece, a existência de um hábito
de
cultura jurídica popular.
Os
simples indivíduos sujeitos
à
ação
da justiça
não
possuíam evidentemente
os
conhecimentos dos
juristas
de
profissão,
mas
partilhavam
com
esses
de uma
certa
idéia
da
força
do
direito
e de
seus grandes princípios.
Os
juristas
não teriam podido, nessas sociedades, elevar-se à posição e ao
-prestígio
que
desfrutavam,
se não se
beneficiassem
de uma espé-
cie de consenso sobre a
legitimidade
e a eficácia de sua disci-
Lplina.
Desse
consenso,
participavam também
os
príncipes,
as
Beldades,
as
ordens religiosas
etc., que
tinham todos
e freqüente-
jnénte com grandes despesas, de se cercarem de procuradores e
ftonselheiros jurídicos .cuja ajuda lhes parecia indispensável
32 - M. T. Clanchy, From, memory to written r ecord
f
}
England, 1066-1307,2
a
edição, Oxford, 1993.
63
- . V i
:
'
, , l
>
.
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
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defender as liberdades e privilégios sem os quais as instituições,
bem como os indivíduos, se sentiriam, na Idade Média, como que
desprovidos de existência
legal e
expostos a todas as cobranças
e todas as violências'
3
.
Será difícil
fazer a mesma demonstração para os outros
domínios da cultura erudita (filosofia, teologia, medicina). O fosso
aqui era, sem dúvida, maior entre os saberes das elites e os co-
nhecimentos da maior parte da população. O processo de Joana
d'Arc,
deixando de lado suas implicações políticas, permanece
um
exemplo famoso
da
incompreensão
qu e
poderia separar
u ma
mulher do povo, embora devota, e os mestres em teologia da uni-
versidade.
Seria
recíproca essa incompreensão? A cultura popular tor-
nava-se,
ela mesma, impermeável aos letrados, isoladas na lógica
de
seus saberes
e na
certeza
de sua
superioridade intelectual?
N ós não podemos oferecer a essa questão u ma resposta
simples.Talvez
obtivéssemos
tantas respostas quantos fossem os
casos pessoais, sobretudo se recordarmos que, sob a etiqueta de
homens de saber, nós classificamos indivíduos que possuíam
diferentes
níveis
de
conhecimentos
e
práticas sociais que, apesar
de tudo,
diferiam
entre si.
Havia em todo caso um domínio que, evidentemente, era
comum a
todos: aqueíe
da fé
cristã.
Nós
estamos Cm
u ma
época
de unanimidade religiosa. Quereria isso dizer que a cultura reli-
giosa
de
todos
era a
mesma? Deixemos
de
lado
o
caso
dos
teólo-
gos. Su a formação era bastante estimulada, mas eles eram, como já
dissemos, pouco numerosos. Deixemos também de lado o caso
dos
religiosos,
que
supostamente
sé beneficiavam das
conferên-
cias (collationes) cotidianas de seu abade.
Para
os outros, quer,
dizer,
os leigos e mesmo o simples clero secular,
a
Igreja medieval
não previa uma forma específica de educação religiosa. Ela reme-
tia tal
tarefa
às
famílias,
especialmente
às mulheres,
para
incul-
carem desdq a infância os rudimentos, em particular as principais
preces;
ela
mesma
não oferecia
aos
fiéis, sem
distinção
de
idade
e
de
sexo, nada
além da
mensagem mais
ou
menos inteligível
da
liturgia, da iconografia (a decoração das igrejas) e sobretudo da
predica em vernáculo. Os homens de saber tirariam melhor
aproveitamento desses ensinamentos que as "pessoas simples"?
É
possíveLAlguns
deles deixaram traços particulares
de sua
piedade
religiosa. As bibliotecas dos membros do Parlamento de Paris,
compreendendo inclusive seus conselheiros leigos, continham
livros
de
espiritualidadej
ao lado dos indispensáveis livros de
direi'
to
34
.
Mas
o desenvolvimento da devoção
laica
é u m fenômeno
geral
nç
final dá
Idade
Média que
tocava tanto homens
e
mulheres
de meios modestos e de cultura medíocre quanto os letrados. E,
por outro lado, existiram pessoas cultas quanto aos conhecimen-
tos
e
à cultura religiosa de quem
nós
nada sabemos. U ma
vez colo-
cadas
de
lado algumas fórmulas introdutórias séniprç feitas
de
recomendações a Deus, seus escritos, excessivamente
técnicos,
são praticamente mudos sobre esse ponto, como eles também são
mudçs, mais amplamente, sobre
os
interesses
que
eles poderiam
despertar
na
cultura
popular
oral, para
não dizer folclórica, de
seus contemporâneos.
U m
provérbio
proferido a respeito de uma
frase,
u ma
reflexão pessoal
qu e
aflora
aqui ou lá, nós
deixam
à
própria sorte. Nós geralmente revelamos grande
consideração
pelos
exempla
(anedotas
moralizadoras) com os
quais pregado-
res, compreendendo-se neles eminentes teólogos, semearam seus
sermões presumindo
que
eles poderiam servir
de
empréstimos
feitos
de maneira consciente à cultura popular (e
reinterpretados
em uma acepção condigna com a ortodoxia religiosa) para me-
lhor reter a atenção dos fiéis". Na realidade, e mesmo que se ne-
gligencie o fato de que muitos dos
exempla
teriam, de fato, uma
origem
erudita, esse
procedimento
pode testemunhar
sobre
a
informação dos
teólogos,
mas não forçosamente sua
adesão
a
essa
cultura
popular
à
qual eles
se
referiam.
33 - Ver por
exemplo
A. Rigaüdière.Tessor
dês
conseillers
juridiques dês villes dans Ia Ftance du
bas
Moyen
Age",
Revue
historique de droit
françaís et étranger, 62
(1984), p. 361-390
(reimpressão
em A.
Rlgaudière,
Gouvemèrla ville au Moyen
Age, Paris,
1993,
p.
215-251).
64
34 -
F. Au trand, Culture
et
mentalité: lês
librairies
dês gens
du Parlement
au temps de
Charles
V I,
Annales
ESC,
28
(1973), p. 1219-1244.
35 - Cf. Cl
Bémont,
J.
L ê Goff, J.-C1. Schmitt, L 'exempltim
Ciypologie dês
spurces
du
Aloyen
Age
occideiital, 40),
Turnhout,
1982. /
,.
65
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Poderíamos
também dizer
outro
tanto dos documentos
judiciais, notadamente da inquisição. Os canonistas e os teólo-
gos,
que
tinham
de
conhecer
as
práticas
de
heresia
e de
feitiçaria,
essas manifestações extremas
de
uffia.cultura popular
em aberta ruptura com
a
ordem estabelecida, apareciam,'
de
maneira geral, não somente como pessoas malévolas, mas tam-
bém mal informadas. Sua
incompreensão
se mede
pelo
caráter
paradoxal de sua atitude, que consistia simultaneamente em
tratar
os heréticos e
feiticeiros como "grosseiros ignorantes"
è
em procurar identificar atrás de tais práticas o ressurgimento
de doutrinas errôneas
outrora
condenadas pelos Pais da
Igreja
(maniqueísmo,
arianismo,
sabelianismo, etc.).
• A questão foi particularmente colocada a propósito de
processos de bruxaria que se multiplicavam por toda a Europa
no
século XV
Os
juizes
qu e
interrogavam
e
condenavam as
feiti-
ceiras,
participavam,
a seu modo e em seu papel (aquele de
agentes da repressão), de um movimento geral de medo coleti-
vo (que durará até o século XVII)? "Acreditariam eles", como
todo mundo, no sabá e nas cavalgadas noturnas? Ou dever-se-ia
antes
ver
nessa
fogueira
demonológica
Q
sinal
de uma
ruptura
entre urna cultura popular há muito tempo tolerada, mas dora-
vante reprovada e,uma cultura erudita, aquela dos juristas e dos
homens
da Igreja,
incapaz
de
compreender
e, a
fortiori,
de
aceitar
as
manifestações
que lhe
eram completamente estra-
nhas?
36
Eu não pretendo travar aqui um
debate
que oponha espe-
cialistas.
Sustento
apenas que, se os aspectos específicos da cul-
tura
dos homens de saber são relativamente fáceis de se
alcançar, em
virtude
de
serem abundantes
os
textos
que
lhes
prestam testemunho,
é
muito mais difícil reencontrar aquilo
que, sob a proteção da língua
oficial,
dos saberes especializa-
dos, de pretensões públicas,
esses
homens de estudo e de ciên-
cia
guardavam
em
comum
com a
massa
de
seus contemporâ-
neos. Isso será obra
de
análise social
e
política
e, ria
medida
do
possível, do estudo
dos
comportamentos, que revelarão aquilo
que os interessados, sem dúvida, preferiam, mais ou menos
inconscientemente, ocultar. ~ .
36 - É
essa última explicação
que me fã?
privilegiar
o
exce-
lente estudo d e R Parvy,j A propôs de Ia gênese médiévale
dês chasses aux
sorcières:
lê traité de Claude Tholosan,
juge
dauphinois" (c. l436),Mélanges (f é école françaisç de,
Rome,
MOyen
Age, temps ihodernes,
91
(1979),
p.
333
1
379,
que
refere-se
à "cruzada das pessoas,
letradas contra
aquelas
da tradição sincretista do mundo aldeão" e do an-
tagonismo cultural";
67
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capítulo 2
OS
ESTUDOS
Do que dissemos no capítulo anterior, depreende-se clara-
mente que a quase totalidade de pessoas cultas, no final da Idade
Média,
havia
feito, de
maneira geralmente prolongada, estudos
do
tipo escolar.
N ão
podemos evidentemente excluir a existência de
autodidatas. Contudo,
nem o
contexto social
e
político,
nem as
condições materiais de acesso à cultura lhes favorecia. O
auto-di-
datismo moderno será filho do livro
infpresso.
Para
todos
os que por ela
passavam,
a
escola,
ria
Idade
Mé-
dia
como em qualquer outra época, era a
princípio
o local de
aprendizagem de sàberes.
Lá
eram inculcados, segundo preceitos
pedagógicos característicos da
época, ao
mesmo tempo, os
co-
nhecimentos
e os
métodos
de
raciocínio
e
de
trabalho
que
cons-
tituiriam
para cada um o essencial da bagagem intelectual de que
se
disporia até
o fim da
vida.
Mas a
escola
era bem
mais
do que
-
isso, ainda que na Idade
Média
ela não tenha pretendido tanto
quanto
cm
outros séculos tomar a totalidade da formação social,
moral
e
religiosa
dos
indivíduos.
A escola era um
lugar
de
sócia-
bilidade e de descoberta. Aprendia-se ali a se comportar, a afir-
mar
sua personalidade e a
avaliar
os outros sempre se curvando
69
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
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capítulo
2
OS ESTUDOS
Do
que dissemps no capítulo anterior, depreende-se
clara-
mente
que a
quase totalidade
de pessoas
cultas,
no final da
Idade
Média,
havia feito,
de maneira geralmente prolongada, estudos do
tipo escolar.
N ão
podemos evidentemente excluir
a
existência
de
autodidatas.
Contudo,
nem o
contexto social
e
político,
nem as
condições materiais de acesso à cultura lhes favorecia. O au to-di-
datismo moderno será filho do livro inlpresso.
Cara todos os que por ela passavam, a escola, ria Idade Mé-
dia
como
em
qualquer outra época,
era a princípio o
local
de
aprendizagem de sàberes. Lá
eram
inculcados,
segundo preceitos
pedagógicos característicos da
época,
ao mesmo tempo, os co-;
nhecimentos e os
métodos
de
raciocínio
e
de
trabalho
que
cons-
tituiriam
para
cada um o essencial da bagagem intelectual de que
se disporia até o fim da vida. Mas a escola era bem mais do que .
isso,
ainda que na Idade Média ela não tenha pretendido tanto
quanto
em
outros
séculos
tomar
a
totalidade
da
formação social,
moral
e religiosa dos indivíduos. A escola era um lugar de
socia-
bilidade e de
descoberta. Aprendia-se
ali a se comportar, a afir-
mar
sua
personalidade
e a avaliar os outros sempre se curvando
69
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
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a uma disciplina coletiva. Nela,
travavam-sç
relações duráveis de
amizad e. Passava-se a
integrar grupos
ou
clientelas. Essa experiên-
cia existencial, inseparável da aquisição de saberes, contribuía
sem dúvida, tanto quanto estes últimos, para
traçar
o contorno
coletivo
dos
letrados medievais.
s Enfim, a escola era - a par da própria utilidade reconhecida
aos estudos - uma aposta política. Houve certamente formas de
educação e Até de escolas puramente
familiares
ou privadas. Mas,
no
conjunto^a Igreja
em
suas diversas instâncias (ordens religio-
sas,
bispos, papas), as cidades, os príncipes preocuparam-se em
criar
escolas e em controlá-las. Essa aposta política era, antes de
tudo, de ordem ideológica.Tratava-se de garantir a conservação e
a difusão de um
certo número
de
saberes, sempre resguardando
a ortodoxia
e se
opondo
ao
desenvolvimento
de
outros saberes
julgados ilegítimos
ou
perigosos. Mas tratava-se, ainda mais,
dê ga-
rantir
as condições favoráveis para a formação de gente instruída
e
competente
das
quais
a
Igreja,
as
cidades
ou os
príncipes
julga-
vam
ter
necessidade,
fosse
diretamente para seus serviços,
fosse,
ao
menos, para um funcionamento harmonioso da sociedade.
Às
redes escolares de que o
Ocidente
dispunha nos últimos
séculos, d a
Idade
Média
não
eram
nem
completas
nem perfeita-
mente coerentes. De acordo com os países, elas possuíam uma
desigual
densidade,
não
seguindo
as
mesmas regras
de
funciona-
mento,
não
difundindo exatamente
a
mesma educação.
No
con-
junto, eram, contudo, bem mais homogêneas que na época
m o-
derna.
Pode-se
portanto, sem muito exagero, estudá-las de manei-
ra
global, com a condição de não se negligenciar certas
especifi-
cidades regionais
ou
nacionais.
Por toda a parte, podem-se distinguir três .níveis de estabe-
lecimentos de ensino, t
Havia
inicialmente aquilo que chamarei de um nível ele-
mentar,
que nós poderemos
fazer
corresponder, sob o custo de
algum
anacronismo, ao nosso ensino primário e, em certa medi-
da, secundário
da
educação.
Geralmente
abandonado
à
iniciativa
privada ou pelo
menos local,
beneficiando-se
apenas
de uma li-
mitada
consideração social
e
política, era o nível mais d iversifica-
do e o menos coerente. Ele não deixou na documentação nada
além
de traços muito dispersos. Sobretudo^ no atual estado das
pesquisas históricas,
é, de
longe,
o
menos conhecido. Apenas
al-
70
guns casos regionais tornaram-se objetos
de
monografias sufi-
cientemente substanciais, a partir dos quais não se deve apressa-
damente generalizar
as
conclusões.
A
peça mestra
do
sistema educativo medieval,
o
elemento
central, era constituído, a partir do século XIII, pelas universida-
des ou, como se dizia então, pelos studia generalla. Nós estuda-
remos mais adiante
seu funcionamento em
detalhes. limitemo-
nos,
neste momento, a sublinhar que as universidades eram, de
longe, os
estabelecimentos
de
ensino
que
possuíam
a
infra-estru-
tura
institucional e econômica mais sólida (o que explica que
elas
tenham deixado abundantes
arquivos),
aqueles
que desfruta-
vam de maior prestígio social e intelectual - o que foi, diga-se de
passagem, por
muito
tempo incontestado -, aqueles, enfim, que
monopolizavam, ou
quase,
a
atenção,
os
favores,
mas
também
por
vezes
os
esforços,
para colocá-los sob
tutela dos
poderes públi-
cos,
tanto eclesiásticos quanto laicos.
As primeiras universidades apareceram
por volta de
1200,
herdeiras diretas
das
principais escolas
do século
XII. Existiam,
para
o conjunto do Ocidente, quinze universidades no princípio
de 1300 e quatro vezes mais, dois séculos mais tarde. Apesar
desse rápido crescimento, que diz muito sobre a popularidade da
instituição, parece claro que as universidades medievais, que
eram, além do mais, de importância muito variável, acolheram
apenas u ma pequena elite de estudantes e
conferiram
diplomas
apenas para uma elite ainda mais restrita de graduados. Os
hor,
mens de saber, dos quais
falamos
neste livro, não se identificavam
com o grupo de graduados da universidade embora este consti-
tuísse para eles o núcleo primeiro, e, em larga medida, a
referên-
cia
e o
modelo.
Apesar disso,
as
universidades
e os
graduados
das
universida-
des não
escaparam,
à
medida
que
passavam
os
anos,
a
toda
espé-
cie de
crítica. Crítica, aliás, que,
em
geral,
vinha antes implícita
dp
que abertamente
formulada.
O resultado disso foi então - e aqui
está o
terceiro
nível que nós levamos em consideração - a apari-
ção de um certo número de estabelecimentos educativos que se
apresentavam como alternativas possíveis para a instituição uni-
versitária. Em
geral,
não
eram mais
do que
criações recentes, lo-
cais, dispersas, mais ou menos bem-Su cedidas. Muitos desses
no-
vos estabelecimentos possuíam um nível modesto, enquanto ou -
7 1
ii»
tros já faziam
abertamente concorrência
a certos
ensinamentos
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universitários.
Em
suma, tratava-se
do prólogo daquilo que - a par-
tir
da fórmula do "colégio interno" -
se
tornará o elemento chave
da
educação na Europa da época moderna, a
ponto
de
freqüente-
mente relegar as universidades a um segundo plano. Cabe, portan-
to, interpretá-los desde sua aparição, ou
seja,
desde os séculos
X E U
ou
XIV,
destacando fundamentalmente, o século XV
Nós iremos estudar sucessivamente esses três tipos de insti-
tuições de ensino por onde passaram, com maior ou menor
inten-
sidade,; praticamente todos os homens de saber do Ocidente nós
últimos
séculos
da
Idade
Média.
I.AS ESCOLAS
ELEMENTARES
AS aprendizagens elementares, em primeiro lugar aquelas
da leitura e da escrita, podiam ser
feitas
de diversas formas. Po-
deriam
ocorrer em casa, fundamentalmente - o que constituía
caso raro - quando a mãe
sabia,
ela mesma, ler e escrever. Po-
deriam
ser
confiadas
a um preceptor. O
preceptórado privado
certamente desfrutou de uma real importância no final da Ida-
de
Média
até nas boas
famílias
do
patriciado
urbano,'embora a
documentação praticamente não permita identificá-lo para
além
das práticas estabelecidas para com os filhos da mais alta
nobreza ou das famílias principescas.
Ainda
nesse último caso
conhecemos, sobretudo, o nome do cavaleiro
responsável
pela
educação militar e mundana de seu aluno, em sua
família
e na
corte, enquanto as aprendizagens intelectuais eram abandona-
das a
qualquer clérigo
ou
capelão,
em
geral,
anônimo
1
. Com al-
gumas
exceções, foi apenas no século XV que se passou a con-
siderar que, mesmo para
um
futuro
príncipe du um
jovem no -
br e
destinado ao
ofício
das armas, urna sólida formação literá-
ria podia ser vantajosa, se não indispensável, merecendo, uni
cuidado particular.
A
todos aqueles que, desejando oferecer
aos
seus
filhos
cer-
ta educação literária, não queriam ou
não
podiam recorrer aos
l
-
Cf. N. Otms,Fromcbildbood to
chivalry:
tbe
educatíon
of-the englisb
kings and arístocracy, 1066-1530, Lon-
dres/New-York,
1984,
p.
1-80.
72
serviços
de um
preceptor, restava
a
solução
da
escola primária
la-
tina. ,
N ós somos, a priori, tentados a pensar que os citadinos
eram aqui favorecidos, porque
não
existia praticamente nenhu-
ma cidade
de
alguma importância
que não
possuísse
no final da
Idade Média uma ou várias escolas de
gramática.
Tem-se
mesmo.
a
impressão
de
que,
pelo
menos
nas .grandes
cidades,
a
oferta
de
escola era, naquela época, relativamente importante.
Para
Parisse
seus arredores, um documento de
1380
trazia nomes de quaren-
ta
e um regentes de escolas de
gramática,
clérigos e leigos, e de
vinte
e uma mestras de escolas para as
meninas
2
;
essa lista, sem
dúvida, hão estava completa porque dela constam apenas aque-
les que dependiam do coro da Catedral
Notre-Dame,
enquanto
outras igrejas
e
abadias parisienses deviam também
igualmente
patrocinar algumas escolas.
Em
Genes,
o
colégio
dos
mestres
de
gramática, que parecia haver excluído de uma só vez os regentes
das escolas eclesiásticas e os simples repetidores ou sub-mestres
associados
a um
mestre
da
praça, contava com treze membros
no
final do século
XHI,
vinte e dois em fins do século XV
3
. Em Lon-
dres, o ensino da gramática permanecia ainda nas mãos da
Igre-
ja,
mas,
às
importantes escolas antigas
da
Catedral
St
Paul e das
velhas paróquias S t Martín's lê Grand e St Mary
lê
Bow, vieram,
no final da
Idade Média, agregar-se duas
ou
três outras escolas
eclesiásticas,
os
studia
dos
Mendicantes,
sem
dúvida abertos
a
discípulos externos, e um número indeterminado de escolas pu-
ramente privadas
4
. As cidades de menor importância não tinham
freqüentemente mais do que duas ou três escolas, por vezes uma
só ligada a um cabido local de cônegos. Mas, como bem mostra-
ram tanto Nicholas Orme para o Sudoeste da Inglaterra quanto
Giovanna Petti B albi para a liguria
5
, não havia praticamente ne
1
2 - Cbartulartum
Universitatts
Parisiensis^
editado
por H.
Denifle
e É. Châtelain, tomo III, Paris, 1894,
n°
1446.
3 - G.
Petti
Balbi,
L'insegnamento
nella Uguria
meMévdte:
scuoÍe,maestri,tíbrl.Gènes.l979,p.75-76.
4 - W. J.
Courte,nay,'"rhe
London Studia in the Fourteenth
Century", Mediaevalia
et
Humantstica: studies In Medie-
val and Renaissance Culture, 13 (1985), p. 127-141.
5 - N.
Otme,Education
in
tb e West ofEnglanã, 1066-1548,
Exeter: 1976, e G. Petti Baíbí, L'insegnamento nella
Ligurie
medievale,
op.cit.
73
nhuma cidade, mesmo as
menores,
que não tivesse sua escola
de
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gramática. .
^
Ainda que
certamente
não
fossem tão
bem
aquinhoados,
na
zona rural,
pelos
menos os meninos, não
eram
irremediavelmen-
te condenados à ignorância ou ao analfabetismo. De
fato,
não ha-
via escolas em todos os vilarejos. Longe
disso.A
coisa não era,>en-'
tretanto,
assim
.tão,
excepcional, sem
falar
do ensino' estritamente
elementar, qu e deveria ser oferecido por alguns curas- E desde
que nós
chegássemos
às aldeias de alguma importância, a existên-
cia de uma pequena escola tornava-se praticamente normal. É
verdade que, carentes de um financiamento regular, muitas des-
sas escolas primárias funcionaram apenas
de
maneira episódica
e seu
nível deveria
ser
bastante modesto.Mas
as
pequenas crian-
ças do campo, ao manifestarem gosto' pelo estudo, poderiam
es-
tudar na cidade, ,sob condição de encontrarem um alojamento.
Certos mosteiros urbanos parecem ter acolhido, até o final da
Idade Média, escolares
a
quem eles asseguravam alimentação
e
abrigo; o jovem Gerson, filho de camponês e nascido na peque
:
na vila
ardennais
da qual ele
traz
o nome, havia começado, diga-
m o s ,
seus estudos no mosteiro
Saint-Remi
em Reimç
6
. Por outro
lado,
existiam verdadeiros colégios, destinados especificamente
a
alojar
uma parte dos alunos da escola catedral; havia dois
em.
Reims
desde o princípio do século
Xffl,
oferecendo vinte e qua-
tro lugares e, em meados do século X T V * a cidade vizinha de
Soissons,
embora claramente menor, possuía três colégios capa-
zes de albergar uma centena de estudantes
7
. Enfim, era freqüente
que os
mestres
de
escolas privadas cobrassem pensão
de
alguns
alunos vindos
do
exterior.
6 - E Glorieux,"£a vic et
lês
oeuvres de Gerson:
essai çhro-
nològlqúe",
Arch.
D'bistoire doctrtnale et littéraire
du
MoyenAge,
18
(1950-5
í), p. 149-192
(p.150)
7 - Ver em
Enseignefnent
et vie intellectuelle (IX°-XVP
stècle)
(Actes
du
95'
congrès nat. dê s
Soe.
savantes -
Phi-
lologie et bistoire Jusqu'à 1610,
t.I), Paris: 1975,
os estu-
dos de P.
Desportes
L
enseignementíà Rcims aux XIII' et
X I V * siècles",p.
107-122,
e
Carohis-Barré,"Ies écòles capi-
tulaires et lês collèges d e Soissons au Moyen Ag e at au
XVfsiècle",
p. 123-226.
N o total, é
difícil
dizer qual era, nos séculos X IV e XV, a den-
sidade dessa rede de escolas de gramática. As grande cidades,
como vimos, eram geralmente muito
bem
providas.
E m u ma
esr
cala
maior, podem ser observadas intensas desigualdades regio-
nais. A
Inglaterra medieval parecia haver sido relativamente
esco-
larizada
e,
mesmo
nos
seis condados pouquíssimo povoados
e ur-
banizados no Sudoeste ao país, N. Orme - em seu já citado estu-
do
-
identificou cerca de quarenta
e
cinco localidades como ten-
do abrigado uma escola em um momento ou outro entre os sé-
culos Xin e XV (sem falar dos trinta e três mosteiros, igrejas ou
conventos q ue mantinham também uma escola, embora, sem dü-
Vida, com uso, sobretudo, interno). Por outro lado, na Ch ampagne
medieval, apenas uma aldeia sobre dez teria possuído uma
esco-
la
8
; e, na
Liguria
de G.
Petti Balbijiem
as
aldeias
de
pescadores
da
costa
nem
aquelas
do
interior montanhoso
do
país pareciam
ha-
ver
atraído mestres de g ramática.Tais disparidades são, entretan-
to, talvez acentuadas pelo estado atual da documentação ou sim-
plesmente por aquele
dás
pesquisas. Convém, portanto, ser pru-
dente.
As
pequenas escolas latinas, urbanas
e-
rurais,
caracteriza-
vam-se
por
sistemas institucionais variados.
As
mais antigas eram
escolas eclesiásticas que existiam desde
a
Alta Idade Média na de-
pendência
das
catedrais,
dos
mosteiros
e de
certas abadias
de cô-
negos
regulares.
A partir do século
XIII,
muitos conventos d e
no-
vas
ordens mendicantes possuíam um studium onde ensinavam
um
ou dois leitores. As escolas mendicantes
ram,
a princípio,
destinadas aos jpvens irmãos, mas, embora seja abusivo qu alificar
as ordens mendicantes - como anteriormente se fazia - de "or-
dens ensinantes", é possível que elas também tenham aberto'seus
studia, ehi
uma
proporção
que nos é
infelizmente desconhecida,
para discípulos externos.
Face
às escolas eclesiásticas, outras
escolas
eram, ao contrá-
r i o , puramente privadas, abertas
com ou sem
licença episcopal
8 - S.
Gu Ubert, Lês écòles rurales
e n
Champagne
au XV *
siècle:
enseignement
et promotíon
sociale",
em
Lê s entres
dans Ia vie: initíatíons et app rentissages (Xlf congrès de
Ia Sòc.
dê s bistoriens médiéyistes de
1'ens.sup.
public),
Nancy: 1982, p. 127-147.
74
75
por mestres-escolas com qualificação freqüentemente incerta e
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que cobravam vencimentos das famílias dos alunos. Esses
mes-
tres de gramática eram, por vezes, padres pobres, que buscavam
no
ensino
um
complemento para
as
fontes insuficientes
de sua
magra prebenda
ou de uma
pequena
capelania. Mas ratava-se, na
maioria das vezes, de
laicos.
Eles
não pareciam desfrutar de uma
grande
consideração social.
Em sua
maioria, eram
u m
pouco
ití-
nerantes e passavam ao
cabo
de alguns anos de uma escola para
outra;
certamente
não
faziam
fortuna.
Essa situação parece haver sido
um
pouco alterada
no final
da Idade Média. Quer isso
se
deva
à
crise econômica geral
ou,'
mais
provavelmente,
ao
fato
de as
classes dirigentes
e as
elites
municipais haverem começado a apresentar um interesse um
- pouco maior pelo ensino elementar, nós verificamos em diversas
regiões, a partir de meados do século
Xiy
multiplicarem-se as
fundações
públicas ou
caritativas
de escolas doravante dotadas
de um financiamento
assegurado (embora praticamente
não
dis-
pusessem
de edifícios próprios e adaptados: a escola continuava
a
funcionar
ria casa do professor).
N a
Inglaterra, os piedosos fundadores instituíram, em geral,
chantries
combinando uma escola e uma capela comemorativa
da qual o titular era, ao mesmo tempo, mestre-esçola e capelão.
Além
disso,
e "particularmente rios
países
mediterrânicos,
foram
muito comuns as municipalidades que se encarregaram tanto de
recrutar
os mestres quanto de responsabilizar-se, total ou parcial-
mente,
por sua
remuneração
e
seu alojamento.
A
Igreja
não via
sempre com bons olhos
tal
laicização das escolas e procurava ha-
bitualmente,
como em
Aix-eri-Provence; reservar-se
pelo menos
o
direito
de
confirmar
o
magister grammaticus escolhido
pelos
cônsules
9
. Esse início
de
municipalização
fo i
talvez
a
ocasião
de
modernizar
o
ensino, instaurando
uma
certa seleção
que era
fa-
vorável
àqueles mestres partidários do humanismo.
Porém,
antes
do' século
XVI,
tanto
os auditórios
dirigidos
aos
"leitores públi-
cos" quanto o esforço financeiro
dispendido
para retribuí-los per-
9 - Vide J. Pourrière, Lê s commencements de
1'écàle
de
grammaire
d'AÍx-en-provence, 1378-1413, d'après
documenta
toáííte.Aix-en-Provence, 1970. '
7 6
maneciam
excessivamente modestos para atrair outros candida-
tos além dos regentes principiantes de medíocre envergadura.
Mais
do que o
sistema
institucional,
seria útil para nosso
propósito conhecer,
concomitantemente, os
efetivos dessas
esco-
las,
oslnétodos, o
contfeúdo
e o nível dos ensinamentos que eram
oferecidos, os
cursos seguidos pelos alunos. Nossa informação
continua infelizmente muito insuficiente sobre todos esses pon-
tos.
N o
que
concerne
à
freqüência
das
escolas
de
gramática,
os
documentos apresentam cifras bastante contrastantes. Algumas
escolas urbanas de gramática teriam acolhido inúmeras centenas
de estudantes com idades e níveis variáveis. E f n 1469, a escola do
velho
mosteiro Saint-Gilles
de
Nuremberg
não
recebia menos
do
que 230
alunos
10
; cifras dessa mesma ordem teriam como prece-
dentes certas escolas urbanas italianas.
Elas
implicam quase ne-
cessariamente
que o
efetivo
seja
repartido
em
várias classes
ou
que o mestre seja auxiliado por repetidores* ou recorra, de acor-
do com a fórmula pedagógica que perdurará praticamente até o
século XK, ao "ensino mútuo", com os alunos mais adiantados
ajudando
os
mais novos.
Além
disso, como contrapartida,
os
e f e - j
tivos
reunidos ao redor do grammaticus parecem ter sido pou-
cos,
dificilmente mais do que dez, o que possibilitava um ensino
quase individual, próximo da aprendizagem. , •/
Em todas essas escolas, a base do
ensino
é evidentemente a
gramática, quer dizer,
o
latim.
A prendizagem,
inicialmente passi-
va,
por vezes associada àquela do canto, e na qual o mestre,
sem
dúvida,
não se proibia o
recurso
à
língua vulgar.
A s
crianças
aprendiam os textos de cor, particularmente os do saltério e de
outros livros
litúrgicos
qu e tinham a vantagem de serem acessí-.
veis
mesmo
nas
escolas mais modestas, porque
era
suficiente em-
10 -
J.
W.
Minei-,
Change and continuity in the schools of
later medieval Nuremberg, Th e
catholic historical
review,
72 (1987),p. 1-22.
Traduzimos como repetidor a palavra francesa repetiteur
que designa um tipo muito específico de professor parti-
cular, sendo, portanto, o mestre que exerce seu ofício em
ambiente doméstico.
(N.T.)
, ,
77
prestá-los
à
igreja vizinha. Depois, vinha o estudo
da
gramática
É fato qu e aqueles qu e chegavam à escola primária latina
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
http://slidepdf.com/reader/full/verger-jacques-homens-e-saber-na-idade-media 40/68
propriamente dita,
que
permitia
o
treino
de
curtos exercícios
de
tema ou de composição latina. O velho manual do Donato, em
certa medida complementado pelos mais
recentes
Doctrinate
d'Alexandre de
Ville-Dieu
et Grecismus
d'Évrard
de Béthuhe,
er&tn os
livros
de
base desse ensino,
ao
mesmo tempo
que algu-
mas seletas
de
pequenos textos simples, como
os
Dísticos ditos
de Catão, a Églogue deTheodule, nCbartula, as Fábulas de Eso-
pó,
o
Florettís,
etc.,
onde
a
criança encontrava prWérbios,
fábu-
las e outros pequenos poemas,
catecismo
elementar, historietas
moralizantes, maneiras de se comportar à mesa
1
'/Esse material
pedagógico bastante heterogêneo,
qu e
datava tanto
da
Alfa Idade
Média, quanto
do
século XII,
não
tinha evoluído
em
nada
do sé-
culo xni ao XV e nós ojeencontraremos, com uma assombrosa
uniformidade, em todas as escolas do Ocidente, desde a Inglater-
ra até a
Itália.
A
qualidade
do
ensino
era
indubitavelmente função corres-
pondente
ao
nível
de
qualificação
dos
mestres. Nesse
sentido,
es-
tes
não se
pareciam
ter
sujeitado
a um
controle mais
rigoroso,
mesmo lá
onde existia
uma
licença
episcopal ou um
exame
pe-
las
autoridades municipais. Entre
os
magistri
gmmmatici,
era
pequena a proporção dos graduados na universidade - sendo
es-
tes,
na
maior parte
das
vezes, mestres
em
Artes;
N.Ormé calculou-
os em cerca de 25% para a Inglaterra do final da Idade Média
e,
na
já
citada
lista
parisiense
de 1380,
não
se encontra, apesar da
proximidade
da
mais
importante
universidade
da
época, mais
do
que
nove graduados sobre quarenta
e um
nomes,
ou
seja
22%
12
.
D e
qualquer modo, tanto quanto
a
qualificação
dos
mestres
-
colocando-se
à parte a questão do acesso dos jovens
estudah-
^es
aos
livros,
provavelmente bem
reduzido,
até
mesmo inexisten-
te, na maior parte das escolas - deveria ser considerado o tempo
passado na escola de gramática e, sobretudo, aquilo que os
pró-
prios estudantes ou, mais provavelmente, suas
famílias
espera-
vam.
11 - Veja-se em particular N.
Oirne,
Englisb scbools in tbe
ÍAiddleAges,
Londres: 1973, p. 87-115,
12 > • N . Orme,
Education in
tbe west
ofEngland,
op.cit.,
p. 19 Vide supra n° 2.
78
com
oito
ou nove
anos
e não
permaneciam nela mais
do que
dois
ou
três anos
não
podiam esperar apreender mais
do que u ma prá-r
tica
elementar de leitura (talvez escrita) e algumas vagas referên-
cias religiosas
e morais
extraídas
do saltério e dos outros
livros
.
qu e
serviam para
os
exercícios escolares. Em contrapartida, aque-
les que
estudavam nessas
escolas por oito ou dez
anos,
sem
inter-
rupção, deveriam alcançar
um
nível nitidamente
superiof e
pode-
riam se iniciar, se o mestre lhes oferecesse essa oportunidade, em
inúmeros
outros saberes para além
da
gramática
latina de
base.
Ainda falta agora aquilo que era verdadeiramente seu objeti-
vo. De maneira significativa, em Genes, onde o grande humanista
Enea Silvio
Piccoíomini
(o
futuro papa
P io H)
deplorará
a falta de
gosto
dos
habitantes pelo estudo ("Hes praticamente
não são
ávi-
dos de saber, eles nã o estudam a gramática a não ser o que é nela
indispensável
e fazem pouco caso de todos os outros gêneros de
estudos")
13
,
determinados contratos
de aprendizagem
exigiam
que a
criança estudasse
a
gramática "tanto quanto convém
a um
mercador" (grammatica ad usum
mercatorum
Ianue)
l
* ,o que
significa que a iniciação na gramática derivaria diretamente da
arte
de redigir contratos e de algumas
noções
de contabilidade;
essa última disciplina era usualmente ensinada por um mestre par-
ticular, o "mestre de ábaco", melhor pago, aliás,
que
o mestre
de
gramática. Isso deveria bastar, pensava-se, para a
formação
de um
mercador,.que
não teria necessidade de estudos suplementares.
Contudo, fora o
caso excepcional dessas grandes cidades
comerciais, a aprendizagem da gramática prolongava-se mais na-
turalmente pelo estudo
das
disciplinas escolares tradicionais,
aquelas repertoriadas nas
velhas
classificações do
saber.
Por aí, o
ensino
das
escolas
de
gramática
parecia-se com
aqueles
das
uni-
versidades (ainda
que
fosse simplificado)
e
eventualmente pode-
ria
mesmo preparar
estes
últimos. Depois
da
gramática, vinha,
13 -
Scientiéparttm cupidi,grammatícam
ad
necessita^
tem
student,
cetera studiorum
genera parvi
pendunt
(ci-
tado
por G.
Petti faXa\J insegnamento neíla Lígttria me-
eNevale,op.çit.p.94).
14 - G.
Petti
Balbi,
L'insegnatnento
nclla Liguria medíevale,
op.cit.,
p. 57.
7 9
portanto, a
lógica
seguida da iniciação aos clássicos (a influência
até
eram mesmo iniciados como escreventes
dos
homens de lei
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
http://slidepdf.com/reader/full/verger-jacques-homens-e-saber-na-idade-media 41/68
do humanismo italiano reforçará evidentemente, de maneira con-
siderável, essa parte do ensino a partir do século XV); as ciências
do quadrlvium não
eram mais totalmente negligenciadas
e, por
vezes até, particularmente nas escolas eclesiásticas fiéis às suas
tradições pré-universitáriàs, os
cursos
de teologia ou
direito canô-
nico
eram oferecidos aos alunos,
pelo
menos aos futuros clérigos;
mas, nessas disciplinas, o ensino universitário teria doravante bas-
tante aceitação
e
o
que se
poderia ensinar
fora
dele não
era
mais
do que um
pálido
reflexo, e com
menor valor^ pelo
fato de os es-
tudos
não
serem,
nesse
caso,
coroados
pela colação
de um
diplo-
ma.
Apenas os Mendicantes, nós já salientamos
isso,.foram
capa-
zes
de
proferir
em
seus próprios studia
os
ensinamentos
de teo-
logia
organizados
em
curso coerente
e com
nível verdadeiramen-
te
equivalente àquele
das
universidades.
Tudo parecia orientar
em
direção
a
essas últimas
o
aluno
realmente dotado
e
desejoso
de tornar-se
homem
de
notório
saber.
Seria,
no entanto, injusto não reconhecer nas escolas de gra-
mática do final da Idade
Média
um duplo papel: dar um a vaga tin-
tura
literária a uma certa parcela da população, preparar os me-
lhores ou os mais ambiciosos para o acesso à universidade.
Além
disso, certas escolas, principalmente aquelas situadas
nas
grandes
cidades
nãouniversitárias mas providas de uma
antiga escola
ca-
tedral
e de uma
sólida tradição
de
ensino -nós
já
citamos exem-
plos
de Reims ou de
Londres
-,
podiam apresentar
um
nível
bem
razoável
(sobretudo comparadas com aquele das universidades
secundárias);
é certo que
alguns alunos provenientes dessas
esco-
las
de
gramática puderam-se tornar, mesmo
sem ter
passado pela
universidade, verdadeiros letrados, mas com à
Condição
de ter de
prolongar seus
estudos
iniciais
com a
aprendizagem seguida
de
uma prática profissional
que
os
mantivesse
no domínio das
ativi-
dades intelectuais.
Esse
foi
particularmente
o
caso
de
inúmeros
íiotários, de es-
crivães,
de
secretários
dê chancelaria.Trata-se
-
nós
retomaremos
isso
- de
ambientes
nos
quais
os
verdadeiros graduados
na
uni-
versidade
são sempre
raros.
É
provável
que a
maioria começasse
seus estudos secundários em uma escola de gramática, a partir
dos quais eles passariam ao serviço de um
notório
instalado ou
em
um tribunal qualquer ou escritório de escrita, no qual se for-
mariam em contato com o mestre ou os escribas
mais
antigos-
que
lhes ensinariam, ao mesmo tempo,
o uso de
formulários
e,
mais diretamente ainda, as técnicas da bela escrita que/diga-se o
.que
quiser",
a
escola privilegiadora
dos
suportes efêmeros
das
ardósias
ou
tabuletas
de cera não
parece
ter jamais ensinado de
maneira sistemática.
2.
A UNIVERSIDADE
N o
conjunto
das instituições
educativas medievais,
as univer-
sidades são, de longe, aquelas qu e deixaram os arquivos
mais
ricos
(ainda que eles não satisfaçam a todas as nossas curiosidade) e
aquelas
que se beneficiaram das mais vigorosas pesquisas históri-
cas.
De uma certa maneira, essa
historiografia
abundante e
declara-
damente
comemorativa carrega
ela
mesma
o
testemunho
de um
prestígio persistente de uma instituição que tem sido, há
tempos*
reconhecida
como
uma das
criações mais originais
e
mais Éecün-
das
da
civilização
do
Ocidente
medieval. Nosso propósito não
é
aqui
o de
procurar resumir
os
múltiplos trabalhos
que foram recen-'
temente concluídos em uma síntese à qual é
su ficiente
remeter
16
.
Trata-se
simplesmente de se tentar identificar em que medida, en-
tre os
séculos
X T T T e
X V ,
a
instituição universitária contribuiu para
modelar
os contornos, a composição, da consciência de si do gru-
po
de pessoas de saber que são propriamente o objeto deste
livro.
As primeiras universidades apareceram
em
Bolonha,
em Pa-
ris,
em
Montpellier, em Oxford nos primeiros anos do século Xm .
Derivadas de
escolas
preexistentes
(mas
não necessariamente de
escolas catedrais), essas primeiras universidades,
para'além
da
di-
15 - A tese, já
exposta
em I. Hajnal,
Uenseignement
de
1'écriture aux
U niversités
médiévales, 2" edição, Budapes-
te, 1959, de um ensino de çscrita específico das escolas e
universidades medievais,
não
parece
ter
mais partiàários
hoje em
dia.
16 - A history of tbe university in Europe, volume I ,
Universítíes in tbe MtOdle Ages, editado ppr H. de Ridder-
Syínoens,
Cambridge,
1992-
80
81
versidade
das instituições, tinham em comum serem organismos
vimento
dessas novas instituições educativas, unificou-as em
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
http://slidepdf.com/reader/full/verger-jacques-homens-e-saber-na-idade-media 42/68
autônomos de natureza corporativa. Ser autônomo significa ser
mestre
de seu recrutamento,
poder
dotar-se de
estatuto, poder
im-
por a seus membros o respeito a uma certa disciplina/ coletiva e a
regras de
cooperação mútua,
ser
reconhecido como
uma
pessoa
•moral pelas autoridades exteriores, tanto eclesiásticas quanto
lai-
cas,
poder,
enfim,
organizar livremente aquilo
que era a
própria
ra-
zão de ser da cooperação universitária, quer dizer, o ensino, os
programas,
a
duração
dos
estudos,
as
modalidades
de
exames
que
sancionavam esses estudos e a colação dos
graus
que coroavam o
êxito nos ditos exames. A s universidades eram, em alguma medi-
da, federações de escolas. Ensinava-se nelas por vezes u ma única
daquelas disciplinas expostas no capítulo precedente,
definidas
estas como as disciplinas superiores da
cujtura
erudita da época:
o
direito
em
Bolonha,
a
medicina
em Montpellier. Por
vezes,
ao
contrário, um a
mesma universidade poderia reunir, repartidas
em
faculdades distintas,
ás
escolas
de
disciplinas diferentes: tanto
em
Paris quanto em Oxford,
encontravam-se,
ao mesmo tempo, um a
faculdade preparatória de artes (liberais) e as
faculdades
superio-
res
de
medicina,
de
direito
17
e de
teologia.
De
qualquer maneira,
não
era
certamente possível atingir
o
nível
exigido pelas
faculda-
des universitárias,
mesmo
pela faculdade de artes, quando esta
existia, sem
haver previamente recebido,
de uma
maneira
ou de
Doutra, uma formação inicial, particularmente na gramática. Como
contrapartida, se está era su ficiente, ela poderia mesmo permitir -
sobretudo
em
países meridionais onde as faculdades
de
artes sem-
pre foram
medíocres
-
aceder diretamente a
uma
faculdade
supe-
,rior , em
particular,
uma
faculdade
de direito
18
.
N ão
tendo precedentes históricos, as primeiras universi-
dades são constituídas de maneira empírica e de acordo com
esquemas bastante diversos.
Foi
apenas
em
meados
do
século
Xin
que o papado, que desde o princípio sustentara o desenvol-
17 - Como eu já havia indicado no capítulo precedente, em
Paris, a
partir
de 1219, apenas o ensino do
direito
cãnôni-
co foi autorizado, em virtude da bula Super
speculam
do
papá Honórío III.
-
N
18 - Vide Jacques Verger, "Remarques sur
l'enselgnement
dês arts dans lês universités du Midi à
Ia
fin du Moyen
Age ,Annates
du Midi, 91 (1979), p. 355-381, ' , . '
82
u m conceito de studium generale, que tinha por efeito princi-
pal
o de
fazer
delas instituições da cristandade,
conferindo
os
graus
de validade universal e diretamente protegidas, ao
mesmo
tempo que controladas pela Santa Sé.
Quanto às causas profundas
que
estão
na
origem
da
insti-
tuição universitária,
as
interpretações dos- historiadores diver-
gem
19
. Duas teses essenciais, mais complementares
do que
ver-
dadeiramente opostas, são expressas.
Para
alguns, seria à pró-
pria renovação do saber, engendrada pela
redescoberta
da filo-
sofia de
Aristóteles,
e o
entusiasmo intelectual suscitado pelas
novidades,
que
teriam estimulado mestres
e estudantes a
orga-
nizarem
tais instituições autônomas, as únicas capazes de lhes
garantir
a liberdade de expressão e de ensino necessária. As ou-
tras, antes,
conferem
prioridade à pressão social exercida por
todos aqueles que
aspiravam
obter, nas melhores condições, a
qualificação e os diplomas que
conduziam
às carreiras cada vez
mais
numerosas
abertas
pela
reforma
da
Igreja
e,
fundamental-
mente,
pelo renascimento
do
Estado. Seja como for,
u ma
coisa
é certa: o
surgimento
da s
primeiras
universidades não foi um fe-
nômeno espontâneo, simplesmente uma pura criação de
mes-
tres e de estudantes. Mesmo que a ação pessoal destes possa ter
sido indispensável,
ela
sempre
foi
sustentada
por uma
vontade
política que permitiu conseguir vencer as resistências (princi-
palmente aquelas dos poderes locais, do bispo e de seu chance-
ler em Paris, da cidade em Bolonha) e oferecer à nova institui-
ção
sua
legitimidade
e seu
estatuto jurídico. Essa vontade polí-
tica foi, ao mesmo tempo, aquela do príncipe (particularmente
visível na
Inglaterra, mais discreta,
mas
real
em
Paris)
e
aquela
do
papa (especialmente ativo em Paris e em Bolonha).
O
apoio
dos
poderes superiores, eclesiásticos
e laicos às
primeiras
universidades
não era
puramente desinteressado.
Es-
19 - Apresentação de conjunto do debate
em
Jacques Ver-
ger,
"A propôs de I a naissance de runiversíté.de
Paris: con-
texte
social, enjeu
politique, portée intelectuelle",
em
Scbuteriund
Studium im sozialen Wandel
dês bolen
und
spâtçn Mitielcdters, hg. v. J. Fried
(Vortràge
und
Forschungen, XXX),
Sigmarlngen, 1986,
p. 69-96.
83
perava-se
delas uma
contribuição
para o desenvolvimento de
Nessa data - cabe notar - o fenômeno universitário era
ainda
majpritariamente
mediterrânicoi
1
. Os studia generalia
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
http://slidepdf.com/reader/full/verger-jacques-homens-e-saber-na-idade-media 43/68
disciplinas
sobre,as quais
tais
poderes
fu ndavam
sua
própria
le-
gitimidade:
o direito
romano
era um
instrumento essencial
para o renascimento do Estado; o direito
canônico
e a teologia,
tal
como
eles eram ensinados na
universidade,
davam especial
atenção para
a . plenitude
potestatis pontificai
e
ajudavam
o pa-
pado a fazer face às resistências das
Igrejas
locais, à contesta-
ção dos heréticos, à vontade de independência dds príncipes
laicos.
Além
do mais, as
universidades
formavam,
também,
ho -
mens
competentes
capazes de se colocar a serviço dos. pode-
res e de fazer
triunfar tais idéias.
A
prova crucial
produziu-se,
ao
menos
em
Paris, enquanto
o
papado impunha
à
universida-
de o acolhimento em seu seio de escolas de
teologia
das or-
dens mendicantes, dominicíanas e franciscanas. Esses recém-
chegados,
cujo
papel
na
igreja
da
época
nós
conhecemos,
e
que devotavam fidelidade às finalidades próprias de suas or-
dens
e a
obediência
ao
papa antes
da
solidariedade universitá-
ria, não
foram sempre
bem
recebidos, embora,
ao
termo
da
cri-
se
que
atingia
seu
paroxismo
no
anos
1250-1259,
a
universida-
de tivesse
que
ceder ante a vontade pontificai
29
.
Esse episódio
não
compromete, porém,
o
sucesso
da
nova instituição-Ainda
sumária e oscilante
no
princípio do sé-
culo,
sua, organização
se fixa
pouco
a
pouco; estatutos detalha-
dos são
redigidos, novos privilégios outorgados pelas autorida-
des.
Não é
possível
dar as cifras de
freqüência para
o
século
XIII, m as
praticamente
não há
dúvida
de que os
efetivos
de
mestres
é
estudantes
não
paravam
de
crescer, pelo menos
até
a primeira metade do século
X T V .
Novas universidades apare-
ciam. Existiam por volta de quinze studia generalia em 1300,
e
mais
de vinte em
1346.
20 - O livro essencial sobre o tema é o de M. M. Du feil,.
Guillaume de Saint-Amaur et Ia
polemique
universttaire
partsienne, 1250-1259. Paris: 1972.
84
meridionais inspiravam-se
quase
sempre,
com
maior
l
ou
me -
nor intensidade,
no modelo
bolonhês. Isso significa,
dó
ponto
de vista institucional, que aqui eram os estudantes que toma-
vam para si, na totalidade ou em parte, a organização e a ges-
tão da universidade. Mas,
sobretudo,
do ponto de vista cultu-
ral, isso significa
que nós
temos
lá
universidades
nas
quais as
disciplinas predominantes eram o direito civil e o direito ca-
nônico.
A s
faculdades
de
medicina tinham também algum
lu -
gar
(M ontpeljier,
Pádua, Bolonha). Como contrapartida, o ensK
no das artes atraía, nessas universidades, apenas uma minoria
de estudantes
e
tratava-se antes
de ensinamentos de
gramáti-
ca, de nível geralmente
modesto,
do que de lógica e de filoso-
fia. Quanto à teologia, ela permanece ausente dessas universi-
dades meridionais até os anos 1360. Em poucas palavras, es-
tando tpdas
sob a
supervisão
da
Igreja, tais universidades
me-
ridionais possuíam
já,
pelo conteúdo
de seu
ensino
e
pelo tipo
de carreiras para as quais elas preparavam, uma forte colora-
ção laica.
Muito
diferente
era
evidentemente
a
situação
na
metade
norte
da
Europa.
Os
studia generalia eram
ali
pouco
numero-
sos e o modelo parisiense,
ilnitado
com bastante fidelidade
em Oxford
e em
C ambridge
22
, afirmava-se aqui
se m
rival. Este
modelo era aquele da "universidade de mestres", quer dizer,
u ma
federação
de escolas onde cada professor conservava
plena autoridade sobre seus próprios estudantes e onde todos
21 - De acordo com A history of the universtíy in
Eura-
pé, volume I,
op.
cit.,
p. 62-63, os
studia generalia ativos
em
1300
eram
aqueles de
Bolonha, Paris, Oxford,
Montpel*
lier (medicina e direito), Cambridge, Salamanca, Pádua, N á-
poles,
V erceil-, Toujouse, a Cura Pontificai, (studium' çu -
riae),
Lisboa
e
Lérida;
em
1346, havia
de se
subtrair dessa
lista Vercel] e
acrescentar
Avignon;
Roma,
(studium urbts),
Orléans, Pérouse.Trévise, Cahors, Pisa, Angers, Valladolid e
talvez Grenoble.
22
- Cambridge nascera por volta de 1209
da secessão
de
um grupo de mestres e de estudantes de Oxford. .,
85
V *
os órgãos de direção da universidade estavam nas mãos dos
tudo,
de uma
certa tolerância,
o "averroísnío
latino" logo susci-
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
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mestres eleitos
por
seus pares. Contudo,
o
essencial situava-se
'
sem
dúvida, mais ainda
r
na diferença
da
orientação intelectual.
N as
escolas parisienses e inglesas, com efeito, o ensino do di-
reito ocupava apenas
um
lugar
limitado e
tratava-se, sobretu-
do,
do
direito canônico.
O
direito romano,
nós o
vimos, havia
sido proibido em Paris desde 1219 enquanto que na Inglater-
ra a existência precoce do direito çonsuetudinário
unificado,
a Common
Laiv,
lhe havia retirado uma boa parte de seu pres-
tígio e de su a utilidade. Essas universidades guardaram uma
forte
coloração eclesiástica, centrando-se
sobre
o
estudo
da
teologia, tendo ela mesma como alicerce aquele das artes libe-
rais confiadas a uma faculdade preparatória que sempre reu-
niu os
mais numerosos efetivos. Desde
o
primeiros anos
do sé-
culo XIII,
sob efeito da difusão
maciça
do aristotelismo, a fa-
culdade
de
artes deixou
de
ter, entretanto, por vocação prin-
cipal
o
ensino
de
certa
forma propedêutico
da
gramática
e da
lógica
e se
elevou
ao
nível
de uma
verdadeira faculdade
de fi-
losofia onde se ensinavam a física, a metafísica, a psicologia e
a
moral, sobre
a
base
dos
textos
de
Aristóteles
e dos
comentá-
rios
de
Averróis,
aos
estudantes
que já
haviam recebido
'uma
formação
inicial
em pequenas
escolas
pré-universitárias.
Esse
alargamento"- que, em compensação praticamente não sé va-
lia das
disciplinas
científicas do quadrivium -
suscitou mui-
to
naturalmente, sobretudo
em
Paris,
uma
reivindicação
de au-
tonomia tanto intelectual quanto
profissional dos
regentes
em
artes,
desejosos de comentar livremente o conjunto de textos
filosóficos que eles conheciam sem ter que sofrer o controle '
.
e a eventual censura dos teólogos.
Essa
tendência.cujos repre-
sentantes mais decididos receberam a denominação pejorati-
va e, sem
dúvida,
excessiva de
"averroístas", atribuía real
im-
portância, talvez mesmo majoritária, à faculdade de artes de
Paris nos
anos 1260. Através dela,
esboçava-se,
inclusive
uma
nova
figura
social
do
intelectual profissional que, embora
não
fosse
ainda
anticristão,
era,
de certo
modo, mais
laico,
definido
por sua diligência
desinteressada'
de sua vocação de pensador
e
professor,
e
apresentando,
no
próprio exercício desta,
a
ati-
tude superior de uni tipo de felicidade terrestre e de uma
certa aptidão natural para a virtude, beneficiando-se, antes de
tou reações polêmicas dos
teólogos
(o
Contra
Averróistas de
Tomás deÀquino, em
1270)
23
.
Depois
vieram
os
tempos
das
condenações eclesiásticas lançadas pelo bispo de Paras e arce-
bispo de
Canterbury*
4
.
A corrente averroísta foi, se não
des-
truída, pelo
menoslsastante
enfraquecida, embora
o
problema
das
relações entre teologia
e filosofia
permanecesse posto,
bem
como, no plano social, o das
relações
entre mestres da
faculdade
de
artes
e mestres
das
faculdades superiores (teólo-
gos e^canonistas) cuja autoridade
não era
sempre aceita
sem
resistência
pelos,
primeiros, enquanto estes últimos, bem
como seus
alunos, não se
destinavam forçosamente,
na reali^
dade, a seguir seus
estudos
em uma faculdade
superior.
Durante muito tempo, a historiografia, retomando por sua
conta os agravos acumulados desde o século X V I pelos huma-
nistas,
opôs o dinamismo criador das universidades do século
XIII - nas
quais
os
próprios conflitos internos
que nós
acaba-
mos de
recordar eram
a
marca
-
ao declínio
que
essas mesmas
universidades teriam
conhecido n os
séculos
XIV e XV Tal de-
clínio teria
afetado
tanto
o conteúdo em si dos
ensinamentos
(com
a dessecação das
doutrinas
e a
esçkrose
do
método
eso>
lástico)
quanto
seu
funcionamento
institucional: o
encerramen-
to geográfico è social do recrutamento (regionalização e aristq-
cratização), a
desorganização
dos
cursos
e a
passagem para
a tu-
tela dos príncipes teriam então ocorrido em virtude do antigo
universalismo cristão, apoiado sobre um alto grau de autono-
mia, qu e
consistia
na
primitiva
força da
universidade.
Os trabalhos recentes repõem amplamente em questão
essas
apreciações.
Antes de
tudo,
ao que
parece,
há que se
distinguir desde
logo
o
século
XIV,
que, em muitos aspectos, especialmente em
23
-Tomás
de Aquino, Eunité de Vintellect contre lê s aver-
roístes, suiví dê s .Textes
contve Averroês
antérieúrs
à
1270,
editado e traduzido por Libera, Cm Paris, 1994.
24 10 de dezembro de 1270 e 7 de março de 1277 em
Oxford (Vide L -Bianchi, II vescovo e f filosofi: Ip
condaima parígina- deí 1277
e Vevoluztyne
dell'aristotelismo
scolastico,
B ergatne, 1990.
86
87
Paris
e em Oxford,
aparece como
um
prolongamento
do
sécu-
dar,
em filosofia
e teologia, o
movimento geral
de
crítica
o
aristotelismo
e ao tomismo por vezes designado, de uma ma-
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lo
JXIII
e parece haver marcado o apogeu da universidade me-
dieval, tanto quanto o final da influência intelectual dos efeti-
vos,
da
autonomia
e até da autoridade
doutrinai, política
e m o-
ral,
e o século XV onde as
dificuldades
sensivelmente se acumu-
lam sobre as instituições derivando das mutações ligadas à
emergência
do
Estado moderno.
A seguir, convém opor ao julgamento negativo dos historia-
dores,
a
imagem
explicitamente
favorável
que,
com raríssimas ex-
ceções,
as
universidades guardaram ju nto
aos
homens
da
época.
É
verdade qu e alguns puderam ser sensíveis ao
peso
do
ensino escolástico. Um estoque de autoridades tornadas quase
imutáveis, uma pedagogia essencialmente oral e repetitiva, o
uso
exclusivo do latim, a duração de estudos excessivamente
longos
(três ou quatro anos em artes, seis em medicina, oito a
doze em direito, até quinze em teologia), o custo cada vez mais
elevado dos graus, sobretudo nas faculdades superiores onde
u m doutorado em direito ou em medicina terminava por custar
uma fortuna, o que, sem dúvida, desencorajava os candidatos
até
mais
do
que
as
provas
bastante convencionais; tudo isso
constituíam fatores que impulsionavam alguns a abandonar a
rota,
outros
a
buscar
as
possibilidades
de
dispensa
ou de frau-
de, o que
possibilitava chegar mais rapidamente
e com
meno-
res esforços aos cobiçados diplomas. A desorganização dos cur-
sos, o absenteísmo dos professores, o lento abandono de deter-
minados tipos
de
exercícios (por exemplo,
as
disputas) são, so-
bretudo no século
Xy
realidades incontestáveis
25
.
Porém isso não deve esconder o fato de haver existido,
em
todo caso, nas grandes universidades, uma real renovarão
de doutrinas, pelo menos até o princípio do séculp XV . Não é
nosso propósito estudar em detalhe essa questão já mencio-
nada
no capítulo precedente. Será
su ficiente,
portanto, recor-
25
-
Vide Jacques Verger,"Prosopographie
et
curSus unirer-
sitaires",
cm Medieval lives and the histortan:
stueües in.
medieval
prosopography,
publicado por N. Bulst e
J.
Ph.
Genet,
Kalamazoo, 1986^p.
313-331.
neira cômoda
e
algo excessiva,
sob a nomeação de
nqmina-
lismo". Dinamismo
análogo
em
outras faculdades durante
todo o decorrer do
século
XIV: em medicina, as obras dos
doutores
de
Montpellíer
e de
Pádua,
em
direito, tanto
publi-
co quanto privado, àquelas dos comentaristas italianos
(Jean
d'André,Bartolé, Balde) e de Toulouse conheceram um suces-
so
considerável é durável; nós os reencontraremos
em
todas
as bibliotecas européias,
o que ihostra bem que o
ensino
uni-
versitário estava longe de haver
esgotado su a
fecundidâde. É
verdade
que as
universidades adotaram mais tardiamente
o
princípio do humanisnío, quer
dizer,
o retorno aos clássicos,
a redescoberta do grego e de Platão, a renovação da retórica
e, no domínio religioso, o despertar de um evangelismo fun-
dado sobre
a
recorrência
aos
textos originais
da
Bíblia. Al-
guns contatos travados aqui^e lá, particularmente nas faculda-
des de artes italianas, não podem esconder que, n u curso do
século XV , começou
a ser
criado
u m
fosso cada
vez
mais lar-
go
entre a tradição da cultura medieval expressa pelas univer-
sidades e certas aspirações novas. Mas, há que se notar, se
essa evolução suscitou em Francisco Petrarca (1304-1374) e
Lorenzo V alia (1407-1457) algumas críticas severas contra a
escolástica, sempre favorecendo, por todo lado, a aparição de
alguns novos tipos de instituições de ensino sobre as quais
nós discorreremos, ela não foi suficientemente bem-sucedi-
da ,
nem antes nem mesmo depois de
1500,
para desacreditar
seriamente as antigas universidades e tampouco para desva-
lorizar os graus que elas conferiam.
Basta, pelo
contrário,
percorrer a documentação daquela
época para constatar que os
titulares
de graus
universitários
faziam
questão de mencionar estes últimos de maneira sem-
pre mais sistemática t precisa em todos os documentos que
lhes concerniam.
Os
indícios
são
múltiplos
do peso
social
e
político cada
vez
mais reconhecido
às
universidades
e
àqueles
1
1
qu e
eram delas advindos
nas
sociedades ocidentais
do
final
da
;.Idade Média. A primeira
e
mais evidente
é a
multiplicação das
89
fundações universitárias a partir de meados do século XIV: dez
26
Apesar de
tais reservas,
as
criações universitárias
dos
sécu-
los X T V e XV
tiveram importante influência
n as
condições
de
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entre 1340 e o início do Grande Cisma
(1378) ,
dez durante
este último (1378-1-41 T)
27
, cerca de trinta entre 1417 e
1500
28
.
Levando em conta as fundações mais ou menos rapidamente
fracassadas (porque
o s
fracassos, alias,
sempre
significativos
n ão
faltaram)
e
aquelas cujo caráter universitário
é
discutível, pode-se
estimar
que havia, em
1500,
sessenta e três
ou
sessenta e quatro
studia generalia realmente ativos na Europa,
v
O mapa
universitário
do final do
século
XV ,
comparado
com
aquele
do
princípio
do
século
XIV, fez
aparecer
uma
rede
muito
mais
densa. Isto
hão
significa evidentemente
que se
tratas-
se de uma
rede homogênea.
Não
somente essas diversas univer-
sidades apresentavam-se como modelos institucionais e culturais
muito diversos (mais bolonhês
ao
Sul, mais parisiense
ao
Norte),
como elas possuíam uma importância muito desigual. N ão havia
praticamente medida comum entre as mais antigas universida-
des,
Paris, Oxford, Bolonha, Salamanca, que, apesar
de um
certo
recuo,
conservavam o maior prestígio, a mais larga irradiação e os
efetivos mais altos
(de
ordem
de
alguns milhares
de
estudantes)
e certas
fundações
recentes'
estritamente locais, que
vegetavam
com
algumas centenas, às vezes algumas dezenas de membros.
Houve alguns verdadeiros sucessos entre
as
universidades
novas
(Praga, Cracóvia, Louvain, Cologne,
Caen),
mas
muitas, especial-
mente
na
Península Ibérica, permaneceram muito modestas, tan-
to no
tocante
aos
efetivps quanto
no que diz
respeito
ao
nível
de
ensino. N o Império, algumas universidades se resumiam no
es^
sencial às suas faculdades de artes, e as faculdades superiores fi-
cavam nelas freqüentemente esqueléticas.
26 -
Pisa, Praga, Florença, Perpignan, Huesca, Pávia, Cracó-
via,
Orange,
Viena,
Pécs (de
acordo
com
A history
of
the
university.in
Europe,
volume
I, op. c#.-,p.63)
27 - Erfurt,
Heidelberg,
Cologne, Buda,
FerrarejWurzbourg,
Turin,
Leipzig, Aix-en-Provénce, St-Andrews
(JMd.
p. 64)
28 -
Rostock, Dole, Louvain,
Poitiers,
Caen,
Bordeaux, Cata-
ne, Barcelona, Glasgow,
Valença
(França), Trèves, Greifs-
wald, Fribourg-en-Brisgau,
Bale,
Ingolstadt, Nantes,
Bour-
ges,
Pozsony, Veneza, S aragoça,
Copenhagem, Mayence.Tü-
bingen,
Uppsala,
Palma de Majorque, Sigüenza, Aberdeen,
Alcalá,Valença
(Espanha).(Jbid.,ç.
64-65)
90
formação das
elites letradas européias. Elas generalizaram, por'
todo
o
Ocidente,
uma
instituição que,
no
começo
(e
colocando-
se
à parte os casos de Paris e Oxford) era essencialmente meri-
dional. Houve certamente novos studia generalia
estabeleci-
dos nos países mediterrânicos (sobretudo na França central e
na Espanha), mas os grandes beneficiários da nova vaga de cria
:
ções^ram os países germânicos, que haviam até então ignora-
do completamente
ou até
recusado
a
instituição universitária,
e
nos quais os candidatos aos estudos deveriam empreender lon-
gas viagens
até a
França
ou a
Itália. Notamos também
a
emer-
gência no mapa universitário de diversos reinos u m pouco pe-
riféricos
(Escócia, Escandinávia, Polônia, Boêmia, Hungria)
que
marcavam também, entre outras,
a
integração
mais dinâmica na
vida
cultural
do
Ocidente.
,
As novas universidades ofereciam geralmente, pelo menos
no
papel, uma gama praticamente completa de
ensinamentos.
Algumas universidades antigas haviam sido,
aliás, complementa-
das na mesma época, pela criação de facilidades
novas,
notada-
mente
a de
teologia.lssò
significa
que,
nas
novas fundações,
as
faculdades
de
medicina permaneciam
com
freqüência
quase
inexistentes, enquanto a teplogia era, mais ou menos, monopo-
lizada pelas ordens religiosas.
Foram,
portanto,
as
faculdades de
artes, pelo menos nos países do Norte da Europa, e as faculda-
des de
direito, por toda
a
parte,
que se
tornaram
as mais impor-
tantes.A
conseqüência foi, ao mesmo tempo, maior difusão des-
sa cultura literária e filosófica de base que nós definimos no ca-
pítulo precedente
-
ainda
que
isso ocorresse
em um
nível mo-
desto, que nada tinha a ver cojn aquele da alma mater parisien-
se - e a multiplicação de juristas eruditos, canonistas, ou civilis-
tas, mas
sempre,
de uma
certa
maneira, imbuídos
do
direito
ro-
mano. Foram sobretudo, praticamente por toda parte, os docen-
tes de direito, reagrupados em colégios, que assumiram q papel
principal
na
direção
nas
novas universidades.
O predomínio que
então
era dado ao direito permite que
se
calcule
a
dimensão política do movimento.
Se
nenhuma uni-
versidade pôde nascer e se desenvolver na Idade Média sem
apoio
dos
poderes externos serão estes que,
nos
séculos
XIV e
9 1
X V , muitas vezes tomarão a iniciativa de tal operação. E cabe
lidades de controle e de intervenção aos poderes externos e seus
representantes.A mais óbvia foi freqüentemente que os
professo-
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acrescentar
que se
tratavam, dali
por
diante, essencialmente
de
poderes principescos ou urbanos, nos quais o papado não
pos-
suía mais tanta interferência como teriam então
os
poderes
lai-
cos
para confirmar, freqüentemente tarde demais^a nova funda-
ção
è lhe garantir o estatuto clássico de
studiumgenerale.
Na-
turalmente, e como mostra um certo conjunto de insucessos ou
de
falsas
iniciativas, o voluntarisnío
político
não
era^uficiente;
era
necessário existir também
um
contexto
favorável,
o que se
expressa quer por uma tradição escolar preexistente, quer por
u ma
demanda social suficientemente forte.
N ão obstante, a idéia que cada vez mais se impõe é de que
todo Estado ou
principado
moderno deveria possuir sua própria
universidade, para formar as elites religiosas e sobretudo
adminis-
trativas
das quais eles teriam necessidade, sem que se
tivesse
de
recorrer
às
universidades estrangeiras.
Um
texto
de Toulouse em
1427
proclama: T odo
príncipe deve çossuir
uma
universidade
em
seus Estados
29
e o
delfim
Luís (o futuro rei da França,
Luís
XI) re-
tomará claramente nos textos de fundação da Universidade
de
Va-
lença em
Delphiné (1452):"...
Nós
consideramos inteiramente
conveniente, indispensável
e
normal
fundar
e
instituir
uma
univer-
sidade
nos
países
e na
terra
a nós
sujeita (...)
com
efeito,
ao
passo
que
existem poucos príncipes
em
outros territórios
que não te-
nham fundado um a universidade, não há nenhuma nos nossos"
39
.
Essas
universidades principescas eram, em geral, instaladas na pró-
pria capital
do
país
ou do
principado, ou , pelo menos,
em
alguma
cidade que tivesse qualquer ligação particular com o príncipe. Os
estatutos
qu e
elas receberam desde
su a
fundação, sempre
as ca-
racterizando como instituições autônomas, deixam largas possibi-
29
-
Princeps
debet
insuo
império
habere universitatem
(M.Fo\jrniex,Lesstatus et privilèges.des
universités
fran-
çaises depuis
leur
fondation
jusqu'en 1789, tomo III, Pa-
ris, 1892, n° 1915, p. 600).
30 - ...
Valde
congruum,
necessarium
e t decens
arbitra-
mur in pátria nostra seu terra nobis subjecta, unam
creare et instítuere Universitatem ...) cum rari
sint
príncipes, in quorum
territoriis úniversttas non sitfun-
data, in nostris
vero
nulla (M. Fournler, Lês statuts
et
pri-
vilèges dês uniyersités
ftançaises,
tomo III,
n°
1785, p. 362).
res (ou pelo menos alguns dentre eles) seriam, dali por diante,
pa-
gos
pelo
príncipe que, como rejorno, exerceria
o
direito
de
res-
ponsabilizar-se por suas nomeações. N a Itália, os magistrados par-
ticulares,
os
Savi ou
Re formatori dello Studto, foram
em
geral
ins-
tituídos para
se
ocuparem
dos assuntos
universitários.
As universidades antigas
não
escaparam
a
essa evolução, ain-
da que
opusessem
uma
certa resistência. Para
nos determos no
caso francês,
onde
o
reforço
do
poder
real
foi particularmente
precoce,
nós
vemos
no
século
XV as
velhas universidades
(Paris,
Orléans, Toulouse) passarem para a tutela de reis,
de
seus Parla-
mentos e de seus oficiais. As reformas foram autoritariamente im -
postas,
os
tribunais reais assumiram, dali
por
diante, processos
de
mestres e estudantes, os abusos aos quais os antigos privilégios co-
modamente davam lugar foram severamente reprimidos,
o pró-
prio direito
de
greve
foi
rapidamente colocado
em questão.
31
Essa
nova responsabilidade não excluía algum favoritismo. O s verda-
deiros estudantes continuavam
a
desfrutar
d e
seus privilégios (so-
(bretudo
fiscais) e o rei da
França, desde
C harles V
(1364-1380),
ad-
quirira o
hábito
de
chamar
a
universidade
de
Paris
de sua
filha
pri-
-
mogênita .
Isso significava reconhecer àquela o prestígio e a auto-
ridade
intelectual, moral
e
política
que ela
mesma
já
reivindicara
pela
boca do chanceler
Gerson
em
1405
(discurso Vivat rex de 7
de
novembro)
32
, porém
com a
condição
de que
essa autoridade
se
exprimisse doravante nó quadro das instituições nacionais e da
lealdade monárquica,
e não
mais
no
plano univefsalista
no
qual
haviam
sido colocados os privilégios pontificais primitivos.
A
análise estatística e social das populações estudantis confir-
V > ma que dificilmente se pode falar em declínio das instituições uni-
versitárias no final da Idade Média, Uma documentação ainda im-
perfeita
(listas
de
súplicas
universitárias
conservadas
no
Vaticano
i
cm registros pontificais, matrículas que infelizmente não eram mui-
31
- Jacques V erger, Lês universités ftançaises au XVsiè-
cle: crise et
tentative
de reforme'',
Cabiers
d'bisioire, 21
(1976), p. 43-66.
32
-
Editado
em J.
Gerson,
Oeuvres
completes, ed. P. G lo-
rieux, volume
VWl,
Paris, 1968, p. 1137-1185. '
92
93
tq
aplicadas,
a não ser
para
as
universidades
do
Império) permitem
antecipar algumas hipóteses pontuais
33
.
No
início
do
século X V ,
bal
é
a
Alemanha, Os resultados da pesquisa de R. Ç.
Schwiriges
são
impressionantes
39
.
Nesse país, onde a instituição universitá-
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apesar
dos
diversos
fatores de
crise
que haviam
provocado
a eva-
são, de
vários estudantes estrangeiros
(a guerra, as pestes, o
Grande
Cisma),
a universidad.e, de Paris devia ainda reunir por volta de qua-
tro .mil
estudantes, dentre
os
quais três quartos
na faculdade de ar-
tes
34
. As
principais universidades provinciais
(Angers,Orléans,Tou-
Ipuse,
Montpellier,Ayignon), que
eram, acima
de
tudo, universida-
des jurídicas, deveriam, todas elas, atrair
mais
ou menos outro
tan-
to, entre quinhentos ç mil cada uma, de acordo com o
caso
35
.
Na In-
glaterra, uma vez
terminada
a
Grande Peste
jde
1348,
a
universida-
de de Oxford havia
rapidamente retomado seus
efetivos anterio-
res
36
,
e até continuou a crescer, para atender aproximadamente mil
e setecentos
estudantes
no
decorrer
do
século
X V ,
enquanto
Cam-
bridge,
superando pouco a pouco seu atraso secular, atendia mil e
trezentos estudantes
37
.
Não se
dispõe
de
cifras precisas para
os
paí-
ses mediterrânicos, mas Bolonha devia possuir três
mil
estudantes,
enquanto Pádua,
em
pleno vigor
no
século X V ,
aproximava-se de
mil
38
. O
único país para
o
qual poderia
ser
tentado
um
esforço
glo-
33 - Vide J.Paquet,Zes matricules universtíaires (Typologie
dês sources
du
MoyenAge
occidental,
65),1\irnhout, 1992.
34 - De acordo com j: Favier.Píwfc
au
XV siècie; 1380-1500
(Nouvelle
Histoire
de
Paris), Paris, 1974,
p.
68-73.
35
-Jacques
Verger, Les recrutament geographique dês
uni-
versités
françaises au
début
du
XV ' siècie d'après lês suppli-
ques de 1403", Mel.
d'archéologle
et d'histaire, publicado
por
Ec.
Fr. De Rome, 82
(1970),
p. 85-902.
36 - Vide W J.
Courtenay,
"Tbe e f f e c t
ofthe black
death
on^
english
higher edúcation ,
Speculum, 55 (1980), p. 696-
'714.
37 - T.
H.Aston,"Oxford's Medieval
Alumni ,
Past
and
Pre-
sent, 74 (1977), p.
3-40,
e T. H. Aston, G. D. Duncan.T. A. R.
Evans,
"The medieval
alumni
ofthe
university
of Cambrid-
gc",Past andpresent, 86(1980), p.
9-86.
38 - A. I. Pini, "Disceré turba volens: studenti e vita studen-
tesca
a
Bologna dalle
origini alia meta dei Trecento",
dans
Studentt
e uníversità
degU
studenti da l X II ai XIX
secolo,
dirigido
por G. P. Brizzi et A. I.
Pini (Studi
e
memorie
per Ia
storia
delTUniversità
d i Bologna, n.
s.VII).
Bolonha: 1988. p.
45-136.
ria
não se implantou antes do final do século
XIV, assiste-se
logo a seguir, durante mais de cem anos, a um
crescimento
mais ou menos
contínuo,
ainda que
afetadp
por um ritmo
cícli*
co ele próprio ligado, ao que parece, às flutuações da ativida-
de
econômica.
No
total,
de
1385
até o
início
do
século
XVI,
aproximadamente 250.000 estudantes
matricularam-sé nas
universidades imperiais;
ao
passo
que a
própria população to-
tal, até os
anos
de
1450, diminuía, depois estagnava para
reco-
meçar
a crescer
apenas
no
século
XVI, o
número médio
de ma-
trículas anuais
fo i decuplícado
em pouco menos de um século
(de 300
para
3000).
Ainda que a
grande maioria
dos
estudantes
não ultrapassasse o estágio da faculdade de artes e que muitos
deles
sequer
obtivessem
os
diplomas, houve certamente
uma
multiplicação
dos
homens
de
saber
no seio da
sociedade ale^
ma (ao
passo que,
ao
mesmo tempo,
os
mais ambiciosos
e os
mais abastados dos jovens estudantes alemães continuavam a
freqüentar as universidades italianas ou, acessoriamente, as
francesas>
.
Dessa
forma,
mesmo que acontecesse das antigas univer-
sidades
lastimarem
a
concorrência
das nov,as
(Paris
denunciaíria
com particular vigor a fundação de universidades excessiva-
mente próximas de
Caen
e de Bourges), é infinitamente prová-
vel
que o final da
Idade Média\tenha conhecido, apesar
das di-
ficuldades dos tempos e da crise demográfica geral, um forte au-
mento
global do
número
de estudantes.Á
possível estagnação,
em
um nível, mesmo assim, elevado, dós mais veneraveis dentre
ps
efetivos
dos studia generalia
teria
sido
mais
do que
com-
pensada pela multiplicação das universidades novas, ainda que
muitas destas últimas atraíssem apenas algumas centenas
de
es-
tudantes.
Quanto
aos
egressos,
p
número
de
graduados provenien-
tes das universidades, especialmente em artes, e em direito - o
39 - R. C.
Schwinges, Deutsche Universitàtsbesucher im
14 . und 15. Jabrhundert. ètudien zur Sozialgescbíchte
dês alten
Reiches.
Stuttgaít:
1986,
95
que é ainda mais
importante
para nosso
propósito
- crescera
,-
península, se uniriam, dali para a frente,
contingentes
crescen-
40
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
http://slidepdf.com/reader/full/verger-jacques-homens-e-saber-na-idade-media 49/68
em
proporções comparáveis, mesmo que se deva admitir que,
apesar de uma tendência geral de refluxo dos estudos, estás se
tornassem fortemente seletivas; nas faculdades de artes germâ-
nicas, mais da metade dos estudantes deixavam a universidade
sem haver obtido qualquer diploma e nas
faculdades
superiores
de direito ou de medicina, pelo menos no caso da
Alemanha
e
da França central onde o cálculo pôde ser efetuado, as taxas de
evasão eram da mesma ordem: um terço dos estudantes chega-
vam ao bacharelato, menos de dez por cento à licenciatura e,
afortíori, bem menos ainda ao doutorado.
Por estarem globalmente crescendo, as populações uni-
versitárias européias teriam visto alterar sua composição duran-
te os
séculos
XI V e XV ? Sem
autorizar
conclusões
radicalmente
definitivas, os resultados obtidos pelas recentes pesquisas con-
vidam
pelo
menos a empregar sérias nuances à dupla .tendên-
cia
tradicionalmente diagnosticada: regionalização
e
isolamento
social.
As universidades recentes geralmente tiveram u ma irra-
diação sobretudo
local ou, no máximo, nacional. Isso significa,
por outro lado, que o príncipe interditava aos reinóis que
fre-
qüentassem qualquer universidade que não
fosse
aquela de
seus Estados (assim procedeu em
1444
o feudo de Veneza,
obrigando seus súditos a irem para a Universidade de Pádua
depois da união dessa cidade ao domínio do território véne-
ziano). Em
contrapartida,
as
antigas universidades, ainda
que
talvez
houvesse baixado a proporção de estudantes de ori-
gens distantes, continuaram a ser expoentes de um&peregri-
natio acadêmica ativa. Como no passado, os estudantes com
maior mobilidade eram os estudantes alemães (e, em certa
medida, os eslavos e escandinavos) enquanto ps principais pó-
los
de atração permaneciam sendo Paris (completada por Or-
léans,
em
direito
civil), outras universidades italianas (Bolo-
nha,
principalmente, e, cada vez mais, Pádua, Pavia, Siena, Pisa,
Perúsia,
etc.).
Pode-se assegurar que, sobretudo a partir
dos
anos 1440, o retorno de uma Conjuntura mais favorável pára
as viagens e a atração crescente pelo humanismo italiano pro-
piciou uma popularidade excepcional à "viagem da
Itália ;
aos
estudantes germânicos, que tradicionalmente
freqüentavam
a
96
tes de franceses, ingleses e
ibéricos .
Isso quer dizer, no que concerne ao nosso propósito, que,
se a maioria dos homens de saber, dali por diante formados nas
suas localidades e com despesas menores, deveriam possuir ho-
rizontes geográficos e uma experiência de contatos humanos
bastante limitados, existiram sempre,
pelo
menos a título da
eli-
te, indivíduos que haviam adquirido em sua juventude,
pela
prá-
tica de grandes viagens de estudos,
uffla
abertura de espírito, de
conhecimentos
e de
relações
que
convidam-nos
á
falar, desde
o
final
da
Idade Média, em uma "república das letras",
pelo
menos
embrionária.As correspondências eruditas, as missões diplomá-
ticas permitiam a manutenção posterior dos laços assim selados
em escala ocidental. Na França, o meio dos
notários
e
secretários
do rei, humanistas da época de Carlos M, em relações constan-
tes com
seus homólogos florentinos
ou
napolitanos,
na
Europa
central os cursos cosmopolitas de um Carlos IV (1346-1378) em
Praga,
de um Frederico III de Habsbourg
(1440-1493)
em Viena,
de um
Mathias
Corvin (1458-1490) e m
Budapeste,
de um Casi-
miro IV Jagellon (1447-1492) em C racóvia, onde se encontravam
humanistas italianos e sábios autóctones há pouco formados em
Bolonha ou em Pádua, são algumas ilustrações da abertura uni-
versitária que a rede universitária permitia àqueles que preten-
diam
conservá-la
no
curso
de
suas
carreiras
41
.
O s
estudos universitários favoreciam a ascensão social ou,
antes,
precipitavam a constituição de
pessoas
cultas em
peque-
nas
castas hereditárias? As fontes não oferecem a esse propósito
mais
do que informações fragmentárias, que parecem, além do
mais,
indicar que a situação variava de uma universidade para ou-
tra.
Por exemplo,
entremos estudantes alemães
qu e
freqüentaram
a universidade de Bolonha entre 1400 e 1530, a proporção de
nobres elevara-se por volta de 18%, mas em universidades do
40 -Vide Jacques Verger,
La mobilité
étudíante au Moyen
Age .
ln:ffístoire
de 1'éducaHon, 50 (1991), p.65
:
90.
41 -Vide Jacques
Verger, Lês étudiants slaves
et hòrigrois
dans
lês
universités
occidentales (XüT - XV ' siècles)". In:
L
Église
et lê peuple chréiien dans tespays de 1'Europe du
Centre-Est
et du
Nord QOV°
- X V <
siècles). (Coll. deTÉc.
fr.
de Rome, 128). Roma: 1990. P. 83-10tí.
97
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
http://slidepdf.com/reader/full/verger-jacques-homens-e-saber-na-idade-media 50/68
verdadeiro prêmio naquela sociedade de ordens, cada vez mais
complexa
e
rígida,
que
então
se desenhava.Tornar-se
estudante:
para a formação de homens de saber, dotando-os,
não
apenas de
uma
certa bagagem intelectual, mas de
sàber-fazer
e de desem-
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
http://slidepdf.com/reader/full/verger-jacques-homens-e-saber-na-idade-media 51/68
isso
significava,
no final da Idade
Média,
independentemente do
estatuto anterior de cada um, aceder a uma condição privilegia:
da;
significava poder furtar-se
ao imposto,e às
formas mais
rigo-
rosas
da
justiça ordinária, significava poder pleitear determina-
dos tipos de proventos (proventos dos benefícios eclesiásticos
sem obrigação de residência), significava tomar assento sob a
direta salvaguarda
das
mais altas autoridades, laicas ou eclesiás-
ticas, intervindo indiretamente pelos "conservadores privilé-
gios" universitários. Antes
mesmo
de
qualquer obtenção
de
graus, a
mera matrícula universitária
era já, de u ma certa
manei-
'
rã, promoção social. ' - •
Aprendizagem do
privilégio,
a
vida universitária
era
tam-
bém aprendizagem da responsabilidade. A universidade efetiva-
mente favoreceu p desenvolvimento do
individualismo
político
no final da Idade Média. A decisão de ir "aos estudos" era fun-
damentalmente u ma decisão individual
(QU,
no máximo,
fami-
liar) cuja
ocorrência implicava, ainda que sob a promessa de
unia
promoção
futura,
uma etapa inicial de risco è de desorien-
tação. Os estudos por si mesmos exigiam, para serem levados a
cabo,
que uma
atenção passiva
às
lições magistrais fosse com-
plementada
por u ma
outra parte,
de
trabalho pessoal
em
casa
e
na universidade.
As
leituras asseguradas
por
bacharéis
e a
par-
ticipação nas disputas habituavam os estudantes a se exprimir
e
posicionar-se
em
público,
a
enfrentar
e, se
possível, vencer,
pela argumentação, os eventuais adversários. Junte-se a isso o
fato
de, na
maior parte
das
universidades,
os
estudantes
e os jo-
vens mestres em artes poderem tomar a palavra na deliberação
das
diversas assembléias
e
conselhos, exercer funções
eletivas,
representar a universidade diante de autoridades exteriores.
En-
fim,
as
provas, sempre orais,
ps
exames, relativamente simples
para
o bacharelato, bem mais formalizados
e
solenes para as li-
cenciaturas e o doutorado, eram concebidos um pouco sob o
modo de
proezas individuais onde cada
um
deveria,
fazer expo^
sição
de
suas
qualidades não
apenas quanto
ao
conhecimento
científico,
mas
quanto
à
memória,
ao
temperamento
e ao
tema,
para
não se falar da
generosidade
que
vinha
a se
exprimir
no
contentamento que se seguia 30 exame. Pela importância dada
a todas essas atividades; a universidade certamente contribuiu
10 0
baraço
sociate
politicamente úteis.
O.individuallsmo
não era, entretanto, o que de fundamen-
tal
existia
na
experiência humana adquirida
na
universidade. O
fundamental era antes a experiência da sociabilidade, integra-
ção mais poderosa no entrelaçamento das alianças, de amizade
e de clientela que estruturavam vigorosamente toda a socieda-
de do final da
Idade
Média.
A
sociabilidade universitária repou-
sava, antes
de
tudo, sobre
o
pertencer
a uma
comunidade de
scolares, sobre
a
fruição comum
(e,
eventualmente,
a
defesa co-
letiva,
pela greve
ou
outros meios)
dos
mesmos privilégios.
Mas,
ela se
exprimia
sem
dúvida, mais plenamente;
no
escalão
de al-
gumas
entidades mais reduzidas.
A
escola,
por
vezes, assimilada
a
uma societas
constituída pelo mestre
e
seus estudahtes, pode-
ria ser uma
dessas unidades.
A
faculdade,
qu e
reagrupava
os
es-
tudantes
da
mesma disciplina,
e
mais, ainda,
a
"nação" onde
se
reuniam os compatriotas e que assegurava não apenas a respon-
sabilidade administrativa
dos recém-ingressados, mas as
distra-
ções comuns, o enquadramento religioso e a ajuda caridosa, de-
viam
desempenhar
um-pape l
ainda mais importante;
os
mais
brilhantes dos estudantes ou os mais ricos podiam constituir
pequenos séquitos
de
amigos
e
obrigá-los
a
lhes permanecer
fiéis ao longo de toda sua
carreira.
•
Mas o lugar por excelência
da
sociabilidade universitária
tornou-se,
ao final da
Idade Média,
na
maior parte
das u niversi-
dades, o colégio.Ainda que os colégios jamais tenham acolhido
mais
do que uma
minoria
de
estudantes (por volta
de
1450,
eram ,
mais
ou
menos,
um
para
dez em
Paris
e em
Oxford,
u m
para
seis
em Cambridge, um
para quatro em Toulouse),
sua im-
portância deve ser considerada. Os primeiros verdadeiros
cole*
s
glos
apareceram,
em
Paris
e em Oxford, por
volta
de iheados do
século
XIII.
Eles, em
seguida, multiplicaram-se
nos
séculos
X T V
j; e XY
fundados,
na maioria das vezes, por prelados príncipes ou
l Oficiais reais de alto escalão. Deixando de lado as casas reUgio-
j. ws,
podemos avaliar
em
trinta
e
sete
o
número
de
colégios
se-
LCulares fundados
em
Paris
no
século
Xiy
contra cinco
em Ox-
Iford e
sete
em Cambridge. O
movimento
se
afrouxou
no
sécu-
T
XX antes
p or
causa
da
saturação
do que por
conta do declí-
'- > da instituição: doze
fundações
em Paris, três em Oxford, cin-
1 0 1
co em Cambridge. Sem lhes ser desconhecida, a instituição do
colégio se implantou menos
maciçamente
nas novas universi-
celaria e Parlamento; uma boa parte das elites tanto políticas
quanto intelectuais
do
tempo
de
Carlos
VI
(especialmente
os
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
http://slidepdf.com/reader/full/verger-jacques-homens-e-saber-na-idade-media 52/68
dades alemãs e da Europa central. Ela
obteve igualmente
um
certo sucesso nos países mediterrânicos; havia, no final da Ida-
de Média, quatorze colégios em Toulouse, três em Montpellier,
três
em Avignon, três em Bolonha; contavam-se também alguns
- promissores de um grande futuro -' na Península Ibérica.
Teoricamente local de abrigo para estudantes pobres;
côn-
tudo^mais
freqüentemente, reservados aos parentes ou compa-
triotas do
fundador,
a longo prazo, os
colégios
medievais torna-
ram-se progressivamente
locais de
ensino
qu e
diretamente
fa-
ziam concorrência às faculdades; mas issa só acontecerá efeti-
vamente
no final do século XV. Porém, mesmo sem a presença
de
lições
internas
e de um
corpo específico
de
regentes,
os
co-
légios,
por
reunirem todos
os
membros
da
vida comum
de um
internato, submetidos
a uma
disciplina bastante estrita,
por se-
rem mais
ou
menos geridos
de forma
coletiva pelos próprios
bolsistas e,
enfim,
por
oferecerem múltiplas
ocasiões de
trocas
amigáveis, intelectuais ou de trabalho comum (inúmeros colé-
gios contaram bem cedo com uma biblioteca), fizeram com quê
nascesse em todos os que tiveram a chance de ser nele admiti-
dos (e que
nele permaneceriam muitas vezes
por
inúmeros
anos) um forte espírito de corpo. Duradouras solidariedades
eram
criadas,
e os
"veteranos" desse
ou
daquele colégio
pos-
suíam,
no
curso
de sua
carreira, tendência
a
favorecer aqueles
que eçam provenientes
de sua
própria
"escola".'O
exemplo
mais
gritante,
que
ganhará toda
sua
importância
no
século
XVI,
é aquele dos
colégios mayores
de Salamanca, V alladolid e
A l ç a * -
lá (aos
quais
podemos associar o colégio São Clemente, ou de
Espanha,
em
Bolonha)
quê se tornou local quase exclusivo de
formação
das
elites
administrativas da monarquia espanhola
moderna. Tendências análogas observam-se
em
Oxford, Cam-
bridge
ou
Paris. Nessa última universidade,
se o
colégio
da
Sor-
bonne,
viveiro
de
teólogos seculares
de
valor, desempenhou so-
bretudo um papel de vida intelectual intensa, enriquecido por
um a magnífica
biblioteca e cioso de se manter um pouco à par-
te das vicissitudesípolíticas da época, o colégio de Navarra
(fun-
dado
em
1305 pela rainha
da Franca Jearine de
Navarra)
e
aque-
le de Dormans-Beuvais
(fundado
em 1370 por Jean de Dor-
mans, cardeal dê Beauvais) m antiveram, estreitas relações
com a
monarquia
e com seus grandes gabinetes administrativos, Chan-
102
primeiros humanistas franceses, como
Pierre
d'Ailly, Jean
de
Montreuil,
Nicolas
de
Clamenges
e Jean Gerson) saíram
deles
44
.
Alguns decênios mais tarde,
as
quatro grandes "pedagogias"
de
Louvain
começaram a desempenhar um papel comparável aos
Países
B aixos.
'
)
>
Mas,
se cada vez mais, eles tenderam a atrair g elite das po-
pulações
universitárias, os colégios, ao mesmo tempo, coloca-
~vam
em causa
.alguns
princípios
que haviam originalmente
constituído o próprio
e spírito
da pedagogia universitária me-
dieval. Eles restringiam a liberdade do estudante,
impondo-lhes
uma estrita disciplina
e um
certo controle
de
seus cursos; opu-
nham,
ao
antigo universalismo
da
universidade, regras particu-
lares que presidiam o funcionamento de cada colégio e verda-
deiramente abriam
a
porta
às
intervenções
dos
fundadores, rei-
tores, provedores, visitantes, etc.alheios à universidade, mas res-
ponsáveis
pelo bom
andamento
da
instituição
do
colégio.
Por
essas
e
outras razões, eles assemelhavam-se mais
a
outros tipo$
de estabelecimentos educativos não-universitários que começa-
mos
a ver florescer no
Ocidente
em
fins
da
Idade'Média
e
que
eram,
pôr
sua
vez, novos locais
de
formação
de
homens
de sa-
ber desgostosos com o
peso
ou com as insuficiências dos estu-
dos universitários tradicionais.
44-Vide N . Gorochõv, Le Collège de Navarre de sã
fonda-
tion (1305)
au
début du XV
sièclé"
(14118). In: Histoire de
Vinstttution,
de sã víe-—intelectuelle et de
son
recrutement.
Paris: 1997.
10 3
3.AS
NOVAS
INSTITUIÇÕES
Não se trata, aqui de procurar traçar u ma
lista
exaustiva de
dês colégios nos quais
os
estudantes eram abrigados
erfi inter-
nato
e oride os
ensinamentos, orientados antes
de
tudo sobre
a
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
http://slidepdf.com/reader/full/verger-jacques-homens-e-saber-na-idade-media 53/68
iniciativas de foto locais e díspares. Simplesmente daremos al-
, guns
exemplos dessas fundações novas qu e tinham em comum
propor, ao lado das universidades
e,
sem forçosamente rejeitar
toda
a
herança destas últimas, formas
de
ensino abertas
às no-
vas disciplinas e métodos pedagógicos supostamente mais
adaptados
as
expectativas
e as
capacidades
dos
alunos.
É
possível
que
as
ordens mendicantes tenham tido, nessa
matéria, um
papel pioneiro. Desde
os
anos 1220-1230 para
os
Dominicanos,
um
pouco mais tarde para
o s
Franciscanos,
no fi-
nal do século para os Carmelitas e os Eremitas de Santo A gosti-
nho, essas ordens foram efetivamente dotadas de redes coeren-
tes de studia
conventuais
destinados especialmente aos jovens •
membros que houvessem manifestado reais aptidões para o es-
tudo (ainda
que a
presença
de
alguns alunos externos
não
fos-
se
excluída).
Tais studia formavam em
cada
província um
con-
junto hierarquizado
no seio do qual os estudantes circulavam à
medida
de
suas progressões pessoais: eles começavam
a
fre-
qüentar o sudium de gramática, depois eram enviados por seus
superiores para os das artes (para a lógica), de filosofia natural,
de Santa Escritura, de teologia.
Instalados
em cidades universi-
tárias como Paris
ou
Oxford
e
integrados
às
faculdades
de
teo-
logia
locais,
os mais importantes
desses
studia, qualificados
de
studia generalia das ordens, tinham a possibilidade de receber
estudantes de todas as províncias da ordem de poder e
confe-
rir
a eles não somente o título conventual de "leitor", mas ver-
dadeiros diplomas universitários
de
licenciados
e
mestres
ern
teologia. Apesar disso,
a
rede escolar
dos
Mendicantes
era fun-
damentalmente
autônoma, distinta daquela das universidades.
Gomo
contrapartida, o modelo de ensino dispensado nesses ,
studia,
tanto para
a
formação inicial
na
gramática
e
artes, quan-
to,
a seguir,
em
teologia, parece
ter
sido
muito
brevemente ali-
nhado com o das universidades, tão aprofundados e tão, moder-
nos quanto elas.
Teria
sido sobre esse modelo que se estruturaram os stu-
dia mendicantes? Sempre que vemos aparecer aqui ou ali no
Ocidente,
nos
primeiros decênios
dó
século
Xiy
tipos
de
gran-
4
gramática, as artes e a filosofia, que tais colégios tinham por
pro-
pósito manifesto atenuar, ao mesmo tempo, as insuficiências '
muito
freqüentes
das
escolas
de gramática
tradicional
e o pe-
queno número das
faculdades
universitárias de artes. É assim
que, de 1363 a
í373,
os papas Urbano V e Gregório XI funda-
ram
em
Provence
e no
Baixo
Languedoc, em
Trets, Saini-
Germain-de-Calberte,
Saint-Ronian-de-rAiguille,
Gigean,
Avig-
non e Carpentras,
enormes colégios (sendo
que
alguns podiam
acolher até duzentos pensionistas), financiados por u ma Gama- ^
rã apostólica, para
formar
em artes e gramática futuros estudan-
tes (na verdade, em direito) das universidades de A vignon e
Montpellier". Apesar do sucesso inicial incontestável, tais esta-
belecimentos, vítimas tanto
de
seus custos elevados quanto
das
epidemias
que
danificavam
os
internatos, rapidamente
tiverarh
que
fechar suas portas.
Gom espírito
análogo, embora prometido
a uma
fortuna
infinitamente mais duradoura, foi fundado o colégio em Win-
chester,
em 1382, na
Inglaterra, pelo bispo
e
chanceler
do
reino
William
de
Wykeham;
esse poderoso personagem,
que
viria
a;
instituir
em 1379 o maior dos cplégios
oxfordianos,
da Idade
Média
(New
College, com setenta vagas), julgava qye a fundação
instalada
em sua cidade episcopal serviria precisamente para
garantir boas condições para a formação preparatória dos futu-
ros ellows
de
seu colégio universitário. Esse ancestral
de
todas
as public
schools
inglesas ulteriores foi imitado, alguns decê-
nios mais
tarde,
pelo colégio
de
Eton, estabelecido
pelo rei
Hen-
rique
VI, em 144O.
Na
feita de
criações
do
mesmo
gêneros
vimos aparecer eni
Paris pequenos colégios de gramática não diretamente integra-
dos à universidade, embora situados em suas redondezas, e nos
45 - Vide particularmente, L. Stouff, Une création cTU rbáin
V: lê studium
papal de Trets
(1364-65)". Ia:
Provence
bis-
torique,
16
(1996),p.528-539,e L.H. Labande, U ne fonda
:
tion
scolaire
d u pape Grégoife; X I à
Carpentras".
In:
Me-
moires de 1'Acad. De Vaucluse,2"s., 15 (1915),p.217-232.
10 5
quais crianças (de oito a
dezesseis
anos) estudavam os
rüdimen-
tos do
latim antes de entrar na faculdade de artes propriamen-
te
dita;
o
colégio
de Ave Maria fu ndado
desde 1336
por
Jean
de
às
crianças, pode-se atribuir como crédito do Irmãos de Vida
Comum um certo número de inovações pedagógicas das quais
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Hubant, presidente
da
Câmara
de
Investigação
rio
Parlamento,
é, para tanto^o exemplo melhor documentado
46
.
N ão é, entretanto, aí que se devem buscar os verdadeiros
precursores do colégio "interno" da época mqderna. Este pare-
ce
possuir
uma,
dupla origem.
Houve primeiramente, desde os últimos anos dó século
XIV,
as
escolas
fundadas
nos Países Baixos pelos Irmãos
da
Vida
Comum e os cônegos de Windesheim. Essas
duas
congregações
religiosas, estreitamente ligadas, surgiram por volta dos anos
1380, reunindo espíritos devotos e enamorados por u m misti-
cismo simples.
Eles
eram a expressão dessa corrente religiosa
característica
dá
Eu ropa
do
Norte
no final da
Idade Média
fre-
qüentemente qualificada
de
devotio
moderna.
Denunciando,
de uma só vez, o orgulho dos doutores da universidade e os
abusos do xlero responsável por todas as mazelas do tempo
(nós estamos em plena crise do Grande Cisma), Irmãos e cône-
gos haviam se
estabelecido
em
comunidades que associavam
vida ativa
e vida
contemplativa.
A
título de vida ativa, eles
se
atribuíram desde logo como vocação, entre outras, a abertura
de escolas, para uso das crianças, nas quais, submetidas a uma
estrita disciplina e a um enquadramento religioso atento, estas
seriam
instruídas nas bases da gramática e da lógica, é simulta-
• neamente formadas para uma vida religiosa mais pessoal, dire-
tamente alimentada pela leitura da Bíblia e por práticas de ora-
ção. As primeiras grandes escolas dos Irmãos d a
Vida
Comum
foram
as de Deventer e de
Zwolle;
em seguida, elas se
multipli-
caram nos Estados bourguignons, e em cidades universitárias
como Louvain e até Paris.Encontram-se,entre seus
alunos.mui-
tas
futuras
figuras do humanismo
setentrional,
a começar por
Erasmo.
A
despeito
do caráter bastante tradicional de seu ensi-
no
e da austeridade por vçzes excessiva da disciplina imposta
46
- A. L.
Gabriel, Student life in Ave Maria College, Me-
ãlaeval
Pariy
History an d
chartulary of
tbe
College,
No-
tre Dame,
1955
10 6
a mais marcante foi a criação de verdadeiras classes graduadas.
Doravante, aos antigos cursos essencialmente repetitivos, subs-
tituiu-se
uma
progressão racional, na qual
a
criança aborda tex-
tos cada vez mais difíceis, à medida que avança na idade e do-
mina melhor as disciplinas.
Essa
fórmula se generaliza no sécu-
lo
XVI.
O outro
berço
do
colégio
moderno foi a
Itália
do Norte
humanista. Foi lá
que
alguns pedagogos, dos quais o mais co-
nhecido é, sem dúvida, Guarino Gu arini de Verona
(1374-1460),
prepararam a fórmula do
contubernium
humanista. Pensionato
não
universitário, pago (e caro, o que garantia um recrutamen-
to bastante aristocrático),
o contubernium
humanista dispensa-
va
aos alunos
u m
ensino derivado daquele das antigas escolas
de
gramática, mas enriquecido por contribuições novas: ali, os
clássicos eram detidamente estudados por si mesmos, com-
preendidos neles os retóricos, os poetas e os historiadores; o
grego, que Guarino dominava perfeitamente (ele havia estuda-
do na sua
juventude
em Constantinopla, não era
negligenciado.
Por
outro lado, dava-se maior
ênfase
ao
desabrochar
da
perso-
nalidade do
aluno;
bs
exercícios físicos altèrnavam-se
com os
exercícios religiosos, o mestre tomava cuidado pessoal de
cada
um e velava por seu equilíbrio físico e moral
47
. Guarino teve inú-
meros concorrentes, em particular Vittorino de Feltre
(1378-
1446), cuja Casa Gioçosa em
Mântua
foi um outro belo exem-
plo de contubernium humanista.
Um pouco diferentes, ainda que possivelmente compará-
veis, foram as escolas novas
qu e
apareceram
em
Veneza
no
século
XV A escola do
Rialto,
aberta pouco depois de
1400, situava-se,
de
início, nas vizinhanças da
faculdade
de artes de
Pádua
e de seus fi-
lósofos averroístas .
Contudo,
a
partir
de
1441, dirigida
por
Do-
ménico B ragadin,
descendente de uma das maiores famílias
dê
Ve-
neza,
e
subvencionada pelo Estado,
ela se
torna
um
foco de estu-
47 - A.
G rafton,
L . Jardlne,"Humanismc ande
the
School of
Guarino:
a
problem
os
evaluatíon".
In:
Fasf and Present,
92
(1982),
p.
51-60.
10 7
: ^
. ,
' '
dos
humanistas para
o
patriciado veneziano. Simultaneamente
(1446),
criou-se a escola de São
Marcos
para formar nas discipli-
nas gramaticais e retóricas os jovens que seriam, em seguida, em-
do sistema tradicional
de
aprendizagem para
se
reconciliar, em
certa medida, com as práticas e o nível universitário, do qual
ainda permanecia muito distante.
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
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pregados na C hancelaria
48
. Insistência sobre novas disciplinas, ade-
quação
às
expectativas
e
necessidades culturais
do
patriciado lo-
cal,
finalidades
cívicas claramente afirmadas,
as
novas escolas
de
Veneza
inscreviam-se, desse modo, claramente na mesma linha
cultural e política dos conturbenia
de
terra firme.
Naturalmente,
o
objetivo
era bem
mais
laico,
senão mun-
dano, nestas instituições italianas
do que nas
Escolas
dos
Irmãos
da
Vida
Comum, mas, ao
menos,
tanto umas quanto outras ti-
nham
em
comum
a
mesma
preocupação de
retornar às
fontes
(lá
a
Bíblia, aqui
ps clássicos) e de
levar
em
consideração
as
ati-
tudes específicas da infância e da juventude.
Os
Irmãos da
Vida
Comum
e os
humanistas italianos
não
estavam
em
aberto
desacordo com a
universidade.
Eles
chega-
vam,
pôr
vezes, até a se integrar a
éla.Jan
Standonck de
Malines
(1453-1504),
que foi no final do século XV o principal
pedago-
go
da
devotio
moderna,
reformou,
em
Paris,
o
velho colégio
de
Montaigu
antes de vir
fundar
em
Lou vain
a
domus pauperum
que
depois
tomaria
seu
nome
(colégio
de
Standonck).
Na
Itália,
destacaríamos, por exemplo, o último contubernitíní
fundado
por Guarino, em Ferrare, e que acabou por ser, em 1442, assimi-
lado
à
faculdade
de
artes
da
universidade
há
pouco reaberta
na-
quela
cidade, Mas, num e noutro caso, tratava-se
menos
de fór-
mulas pedagógicas novas
e
que,
por
esse motivo, pelo nível
de
seus ensinamentos,
bem
como pelas ambições sociais
que
elas
anunciavam
-
formar
as futuras
elites sociais, insistindo mais
so-
bre a formação
religiosa, nesse primeiro caso; literária, moral
e
cívica no
segundo
-, acreditavam também contribuir para a
constituição e
renovação
do
grupo
de
homens
de
saber.
Deve-se recordar,
enfim,
que o final da
Idade Média tam-
bém viu
aparecer, ainda
de modo
muito disperso, talvez embrio-
nário, algum ensino profissional,
desprendendo-se
diretamente
48 -
Vide
G.
O rtalli,5cwo/é, maestri
e istruziane base ir a
Medioevo e Rtnascimento; ti caso veneziano. Veneza:
1993.
R
24-29.
10 8
Desde
a época do
genial calculador
de
Pisa Leonardo
Fibo-
nàcci (1170-1240), os mestres de ápaco das cidades comerciais
italianas não se contentavam mais em forçosamente ensinar,
com sucesso, aliás, a aritmética comercial aos futuros mercado-
res; alguns eram já tidos por sábios de alto nível em aritmética
e em álgebra, sem equivalente entre os mestres universitários
do quadrtvium.
Também
na Itália formaram-se, tias dependências de cer-
tas faculdades de medicina, as primeiras e verdadeiras escolas
de
cirurgia. No mesmo país,
foi
permitido qu e verdadeiras
esco-
las fossem criadas para a formação dos notários (que, na Fran-
'
ca,
pareciam permanecer, sobretudo, presos ao estilo da apren-
dizagem).
Em
outro espaço geográfico, houve, entretanto, um pouco
da
mesma tendência qu e destaca a emergência, na primeira me-
tade do
século
XV , dos Inns ofCourt
ingleses,
que nós já
assina-
lamos no
capítulo
precedente
49
.
Designamos
sob
esse nome
(pelo
fato
de
elas haverem sido inicialmente instaladas
em al-
bergues) quatro
esc~olas
de direito que surgiram não em Oxford
ou
em Cambridge, mas em Londres, na capital
do.reino
e na
proximidade das principais cortes de justiça reais.
Ao
lado dos
Inns
ofCourt,
existia u ma dezena d e Inns
ofChancery
de me-
nos importância. Nessas diversas escolas, os
futuros
juizes e ad-
vogados vinham iniciar-se na Common Law (isto é, no direito
consuetudinário unificado
aplicado nos tribunais ingleses) se-
guindo
as lições dadas pelps praticantes
de
direito que os acom-
panhavam
às sessões judiciárias. N a segunda metade do século,
os Inns
ofCourt
londrinos atraíam, ao que parece, até duzentos
ou
trezentos ouvintes e uma boa parte dos juristas reais saíram
deles, tanto ou mais que das próprias faculdades universitárias
onde
se professava o direito romano. O ensino, a princípio ex-
tremamente
informal,
era, doravante organizado de modo rigo-
49
-
Cf .
síipra, p. 41; para
uma
apresentação
de
conjunto
dos
Inns
ofCourt
do século
XV
e respectiva
bibliografia,
vide N .
Otmc,From childhood to chivalry, op. cit,p,74-79.
109
roso (para isso
praticamente
não existiam diplomas concedi-
dos) e o público era
constituído
principalmente por filhos de
cavaleiros ou de escudeiros da
gentry
cm busca de formação
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
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profissional
ou, pelo menos, de
relações úteis
nos
meios
da
cor-
te e dos ofícios governamentais da capiíal.
Esse poucos exemplos,
cuja
lista poderia ser; sem dúvida,
ampliada, demonstram que no
século XV
- mesmo que o mode-
lo universitário tradicional guardasse ainda por toda a parte um
peso
considerável
-, as
possibilidades
de
formação
oferecidas
para os
futuros
homens
de
saber começavam a se diversificar
de maneira notável, em virtude da própria importância e até da
complexidade
sempre crescentes
desses
homens e das funções
sociais que lhes eram designadas.
0
capítulo
3
OS LIVROS
De tudo-o que dissemos nos dois primeiros capítulos deste
trabalho, conclui-se que as pessoas cultas, nas
sociedades
ociden-
tais do final da Idade Média, eram homens do livro e, mais ampla-
mente, da escrita.
Isso
nã o
ocorria
de
maneira exclusiva. Eles sabiam também
usar a palavra. Graças a seus conhecimentos gramaticais, eles
po-
deriam exprimir-se tanto em latim quanto em língua vernácula,
Seus
estudos
de lógica e de
retórica
lhes teria dado a arte do ra-
ciocínio correto
e da
demonstração convincente.
Uma longa
aprendizagem da memória lhes permitia convocar, sem se referir
a notas escritas, múltiplas
citações
de "autoridades" que
funda-
mentavam
seu saber.
Estudantes, eles haviani aprendido a seguir as lições dos
mestres
ou a
intervir
n as
discussões
sem a
ajuda
da plum a. Pro-
fessores, eles teriam, como supunha seu status universitário, pelo
menos
em
teoria,
a
obrigação
de
exercer
o
ensino
sem se
conten-
tar
em
ditar
um
texto redigido previamente. Clérigos,
eles pos-
suíam o hábito de pregar; advogados,
de
pleitear. Homens de con-
selho, embaixadores
ou
membros
de
qualquer assembléia
de
E s-
tados, eles deveriam ser capazes
de
discursar para o príncipe ou
para a multidão, de se fazer entender no
tumulto
ou de fazer
des-
lizar pelo ouvido palavras decisivas.
II
\ "O
Permanece,
contudo,
que os
homens
de
saber eram funda-
mentalmente, e,
sobretudo,
aos
olhos
de
seus contemporâneos,
homens do livro e
da
escrita, e essa era inclusive, em relação a
to-
portantes e para obras pelas quais o dono se
apegava,
desejando
transmiti-las aos
descendentes.
N a
realidade, o
fator principal
do
elevado preço
dos
livros
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
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dos os outros grupos sociais, uma de suas espec ificidades mais
marcantes. Eram, em última instância, os livros que os mantinham
por si sós no poder; pela leitura, ou até pelo manuseio correto, eles
obtinham seu saber e, portanto, a própria justificação de seu pa-
pel social. Era nos livros e nos arquivos que eles tinham, que eles
consignavam
e
conservavam suas decisões
e
suas
opiniões.
As
pessoas simples sabiam muito bem disso e freqüentemente, em
motins populares
e
revoltas urbanas, bibliotecas, livros, registros,
papéis
foram os
primeiros alvos
da
vingança popular.
,
Dessa
forma,
é muito importante para nosso propósito
procurar descobrir o lugar que ocupava o livro na vida dos
homens
de
saber.
.
I. O CESSO AO LIVRO
Sem
refazer
aqui toda a história d o livro medieval, convém
antes recordar que sua confecção e circulação são
sempre
cerca-
das
por
múltiplos obstáculos
qu e
lhes tornavam difícil
o
acesso.
O primeiro e principal obstáculo era de ordem econômica.
O
livro
custava caro. Esse custo vinha, antes
de
mais nada,
do
pre-
ço do
suporte.
Um
livro requeria grande quantidade
de
pergami-
nho (de
acordo
com o
formato
do
livro,
obtinha-se de dez a
dezes-
seis folhas por pele) e o pergammho era um material oneroso.
A
difusão
do
papel c b i f f b n , ocorrida
na
Espanha desde
o
século xn,
na Tranca no XIH,
permitiu baixar
o
preço.
M as é
somente
no sé-
culo XIV
e,
sobretudo,
no XV que p uso do
papel
se
difundiu
lar-
gamente no
domínio do livro manuscrito.
Com
igual superfície,
calculando-se a
partir
de
documentos
franceses, o
papel podia tor-
nar-se cinco vezes niais barato que o pergaminho no século
X T V
e até
treze vezes mais barato
no
século
XV,
graças
à
melhoria
das
técnicas
da
papelaria e'à multiplicação
das oficinas de
papel. Mas
em outros
lugares,
especialmente
na
Alemanha,
a
diferença foi,
sem
dúvida,
menor.
,
De
qualquer modo,
o
ganho sobre
o
preço total
do
livrp per-
manecia relativamente limitado,
na
ordem de 10 a 20% somente
em re)ação as
obras
em
pergaminho.
A
relativa modéstia desse
ga-
nho permitiu
a
esse tipo d e livro guardar uma posição suficiente-
mente sólida, visto que muitos letrados parecem ter tido
u m
pre-
conceito desfavorável contra
p livro de
papel;julgado,
ao
mesmo
tempo,
menos nobre
e
menos sólido, sobretudo
para os
textos
im-
1 1 2
era o
custo
da
cópia.
Os
bons
copistas
eram raros.
No final
da Ida-
de
Média,
os scríptoria monásticos haviam perdidp.o essencial
de sua
importância
e
a maior parte
dos
escribas seriam,
doravan*
te, artesãos profissionais que se encontravam principalmente em
grandes
cidades, especialmente aquelas
qu e
abrigavam
u ma
rlientela
importante, quer dizer,
as
capitais
da
nobreza
f as
cida-
des
universitárias/Mesmo
deixando
de
lado
o
caso
dos
livros
de
luxo ornados de miniaturas, verdadeiras obras de arte
destinadas
sobretudo aos prelados, aos grandes senhores e aos reis, a confec-
ção de
livros tomava tempo.
Os
bons copistas
trabalhavam
lenta*
mente:
por
volta
de
duas
folhas e meia por
dia,
em
média.
Por ou-
tras palavras, em u m ano, um bom copista produzia apenas cinco
livros
de
duzentas folhas; ou ainda, se
preferirmos, para chegar
a
fornecer mil livros deste
tipo
em um ano, não se poderia ter me-
nos de
duzentos copistas trabalhando
o
tempd inteiro. Nas-cida-
des universitárias, onde mestres
e
estudantes tinham necessidade
de muitos livros, mas dispunham
de
limitados recursos financei-
ros, procurou-se
reduzir
a um
mínimo
o
preço
de
revenda
dps li-
vros:
pequenos formatos, linhas apertadas, escrita
mais cursiva,
multiplicação
das
abreviaturas
permitiam
economizar
o
pergami-
nho ou o papel, sempre ganhando um pouco de tempo de cópia.
A
adoção
do
sistema dapecia,
qu e
acelerava
a rptação dos
exem-
plares a serem reproduzidos, permitia igualmente melhorar a
produtividade
dos
escribas, semprepreservando
a
qualidade
dos
textos postos em
circulação
1
.
l - O sistema
de pecia,
que apareceu em Bolonha e em Pa-
ris durante o século XIII, consistia em confiar aos livreiros
da universidade
exemplares
oficialmente controlados
dos
principais livros
de
estudo;
tais
exemplares
eram
feitos
de
cadernos (pecíoé) não ligados, o que permitia serem aloca-
dos
para inúmeros,
copistas ao
mesmo tempo; estes
po-
diam, então, produzir
simultaneamente
muitas cópias do
mesmo livro. (Vide La productton
du
livre
universítaire
au Moyen
Age: exemplar
e
pecia,
editado pôr
L.
J.
B atail-
lon,B.G.Guyot,R.H.Rouse,Paris, 1988,
que
conduzirá para
a abundante literatura anterior até o livro pioneiro de J.
Destrez, La pecia dans
lês
manuscrito universitaires du
XUetliuX]VsiècleP
3
Nessas
condições, acredita-se
que
muitos escolheram
uma
solução
bem
menos onerosa -
mas que
não garantia
mais a
cor-
reção
dos
textos transcritos
-, que consistia em
encomendar
a
desvencilhando
de seus
exemplares repetidos, por
herdeiros
li-
quidando a biblioteca de algum tio cura ou cônego, etc.
Pode-se,
em tais condições, estabelecer
o
"preço médio"
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
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qualquer copista amador - um capelão necessitado ou um es-
tudante pobre
por
exemplo
- a
cópia
do
livro
desejado.
Q
problema do preço real dos livros medievais é uma ver-
dadeira
pedra
no
caminho
4os
pesquisadores. Quando
sé
dese-
ja fazer comparações
de um
país para outro
ou
seguir evolu-
ções
de longa duração, é preciso adotar uma unidade de
refe-
rência
ou
converter todos os preços em peso de metal precio-
so. É necessário, além disso, que se evite tomar os preços esti-
mados
dos inventários como preços de venda ou de compra
efetivos. Enfim, e sobretudo, há de se ter a estimativa do estado
material dos volumes, o que, muito freqüentemente, nos esca-
pa, mas
quê devia fazer variar
os
preços
em
consideráveis pro-
porções:
pefgaminho ou
papel, tipo
de
escrita, número
de
fó-
lios, formato, presença de ilustrações, encadernação,
etc.;
dois
manuscritos,
mesmo sendo de uma única obra, nunca eram per-
feitamente
semelhantes.
'
,
\ .
Algumas conclusões relativamente seguras, entretanto,
impõem-se
(deixo
aqui
de
lado,
repito,
os
livros de luxo
das bi-
bliotecas principescas).
Inicialmente,
os
preços
dos
livros eram extremamente
va-
riados. Os. mais caros, geralmente as grandes Bíblias -ou os volu-
mes glosados do Corpus iurís civttis ou do Corpus
iuris
canonicí, cu stavam uma
dezena
de
libras deTours (para
tomar
uma unidade de medida francesa). Mas existiam, ao lado disso,
inúmeros pequenos volumes,
por
vezes
sob a
forma
de
simples
cadernos soltos, nos quais se anexavam "anotações" de cursos,
alguns fragmentos
de
questões disputadas,
de
sermões,
de
bre-
ves
tratados práticos etc. eram vendidos por algumas poucas
moedas.
Em seguida,
os
preços parecem haver variado praticamen-
te do simples ao dobro, conforme
se
tratassem de livros novos
ou
livros
de
segunda
mão. O
mercado
do
livros de segunda mão
era,
com
efeito, muito ativo, especialmente
nas
cidades univer-
sitárias, onde e}e era alimentado pfelas obras colocadas à venda
por estudantes em necessidade ou deixando\a
universidade,
por aqueles que emprestavam sob penhor, pelos colégios se
4
do livro
medieval?
Baseando-se
numa abundante
documenta-
ção, proveniente da França do Norte nos séculos XIV e XV, Car-
la Bozzolo e Ezío Ornato asseguraram, para essa região, as
cifras
de 5
libras
10
sous
parisis
para
o
século
XIV e
duas libras
16
sous parisis para o século^XV
2
, devendo-se essa baixa aos pro-
gressos
já
assinalados
do
papel
e ao
marasmo econômico geral.
Tratava-se
evidentemente
de
cifras
absolutamente
fictícias,
que
não têm qualquer sentido para além dos indivíduos
específicos
qu e
tenham adquirido
ou
possuído
um
número relativamente
N
importante de volumes.
Talvez
seja interessante notar que em
Paris, por
volta
de 1^00, o "preçomédio" de um
Ifvro correspon-
dia aproximadamente a sete dias de "salário e pensjio" dê um
notário ou secretário do rei; nessas condições, vê-se que qual-
quer personagem (ora, há que se recordar que os nòtários e se-
cretários
de rei eram em
Paris,
no final ,da
Idade
Média, com os
conselheiros
do Parlamento e ps
professores
da
universidade,
os principais donos de bibliotecas privadas) praticamente não
teria pqdido, mesmo considerando
a
compra
de
livros
em um
quarto
de
seus proventos
-
hipótese
evidentemente otimista
-
adquirir
mais
de
duzentos
e
cinqüenta volumes
em
vinte
anos
de
carreira.
Na
realidade,
a
mais importante
das
bibliotecas pri-
vadas parisienses cuja composição nós conhecemos, aquela do
escrivão
do
parlamento
N icolas de
Baye, nessa época,
em 1419,
permanecia
beni
abaixo dessa
cifra
teórica,
com 198
volumes
dos
quais
uma
parte
foi
adquirida
por
doação
ou
herança.
Pudemos reconstituir,
seja pelo
exame dos manuscritos
subsistentes, seja
pela
analise dos inventários e dos testamen-
tos, um número bastante grande de bibliotecas privadas do final
da Idade Média.
No
caso
da
França,
esses
estudos, primeiramente, permiti-
ram mostrar que, uma
vez
colocados à parte o rei, os príncipes
de sangue e os grandes senhores, os homens de saber são prati-
2
- C . B ozzplò,
E * Ornato, Pour
u ne
histoire
d u
littre ma-
nuscrít au
Moyen Age.
Trois
essais
de
codicologie
quantitative,Parixl98Q,p.25-26.
15
camente os únicos a possuírem, até o final do século XV, bibliote-
cas de alguma importância.
Para
além delas e, até em meios onde
os indivíduos
alfabetizados não
deveriam faltar
-
pequena
e mé-
menos que 435 livros ou o cardeal Piero Corsini, antigo auditor
de Rota, que deixaria 320 no ano de 1405
4
. -
A dimensão média das bibliotecas teria aumentado do sécu-
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
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dia nobreza, mercadores, baixo clero - os livros eram praticamen-
te ausentes; aqui um
fragmento
de crônica, ali um livro de horas
e u ma
vida
de
santo, acolá ainda
uma
coleção
dos
estatutos
sino-
dais não podem evidentemente ser caracterizados como
biblio-
tecas.
Entre
os
próprio»
homens de saber,
as coleções
de livros
possuíam
importância variável.
A
biblioteca
de um
estudante, ain-
da que abastado, não ultrapassava praticamente, em média, uma
dúzia de
volumes;
os
livros
de
estudos
fundamentais, de um
lado,
uma
ou
duas
coleções de
textos
religiosos, de
outro, Seus
profes-
sores,
que-tinham necessidade
de uma
pequena biblioteca
pes-
soal para preparar seus cursos, eram
um
pouco melhor aquinhoa-
dos
e
possuíam, para além das "autoridades" de base,
u m
determi-
nado número de comentários e de tratados modernos; isso repre-
sentava,
no
mínimo, cerca
de
trinta livros. Contudo, alguns mes-
tres, mais ricos ou de espírito mais curioso, possuíam bibliotecas
que alcançavam ou até ultrapassavam uma centena de volumes
3
.
Foi
igualmente
com
essa
cifra
média
de uma
centena
de
volumes
que se organizaram as bibliotecas de homens do Parlamento de
Paris por volta de 1400, às quais eu retornarei adiante.Tais cifras
não eram Sensivelmente ultrapassadas, a não ser nos casos de ver-
dadeiros bibliófilos (como o escrivão Nicolas de
Baye,
ou, cin-
qüenta anos mais tarde, Roger Benoíton, antigo notário e sécçetá-
rio do
rei,
que se
tornara cônego
de
Clermont
e que
manteria
or-
gulhosamente o catálogo comentado de 257 livros de sua cole-
ção pessoal), ou de personagens qu e
haviam
acedido a altas fun-
ções,
por
exemplo, antigos professores
de
direito
ou
dignitários
pontificais
que se
tornaram bispos
ou
cardeais
-
tais como Gau-
celme de Deux, antigo tesoureiro do papa que se tornara bispo
de
Magu elone,
e que
possuía, quando
de sua
morte
(1373),
nada
3
-
Vide, por exemplo, J.V erger, L ê fívre dans l ês uríivér-
sités
du
midi de
Ia
France
à
Ia
fln de Moyen Age", em
Pratiques de
Ia
culture écrtte e m France
au
X V" siècle,
editado
por
M.Ornato
e N.Pons,Loüvata-la-Ncu vc,
1995,
p.
403-420.
16
lo X T V para o XV ? Sem fornecer resultados muito precisos, as pes-
quisas recentes parecem, apesar
de
tudo, indicar
u ma
tendência
nesse sentido.
D e
fato,
em estudo já
citado,
C .
B ozzolo
e E.
Orna-
to
haviam suposto quê
a
produção
de
livros novos tinha diminuí-
do sensivelmente
na França,
entre
1350 e 1450, em
virtude
da
cri-
se econômica geral do período, e nós podemos pensárque se tra-
tava
de uma tendência comum a toda Europa ocidental. Porém
as
bibliotecas
não continham
apenas livros novos. A
existência
de um ativo mercado de Segunda mão e a cuidadosa conservação
dos manuscritos*antigos - a
esperança
de vida dos
livros medie-
vais,
sobretudo
os mais
úteis
e os
mais caros/efa certamente
bem
mais do que
secular
-
permitia
às
coleções aumentarem
pelo
simples efeito
da
acumulação. Entretanto,
o
crescimento,
se é que
se
pode
falar em crescimento, não foi
considerável.
Em um
certo
número de casos, foi a aparição de belíssimas bibliotecas, com
inúmeras centenas de volumes, que parecem ter elevado a cifra
média, mais
do que u m
aumento generalizado.
Os proprietários
de
bibliotecas consideravam-nas verdadei-
ros tesouros e as
tratavam
com o
maior cuidado,
O
valor
de um
livro
era, para
um
homem
de
saber, simultaneamente simbólico
e
material. Cuidadosamente conservados dentro de um
cofre
ou ar-
mário,
os livros proclamavam a ciência
de
seu
proprietário.
Fre-
qüentemente adquirido junto a livrarias de universidades, por ve-
zes
despachados com altos custos de Paris ou
de Bolonha
5
, os
li-
vros
eram
indissoluvelmente
ligados
aos
estudos
e aos
diplomas.
4
- Eu
retiro tais cifras
dos
estudos
de G.
Hasenohr, Téssor
dê s bibliotèques privées aux XI V
a
e X V
a
siècle",
e de M.
H. Jtülien
de
Pommerol e . Monfrin, La bibliothèque
pontiflcale
àAvignon
au
XIV siècle",
erp
Histoires
de
bi-
bliothèques
rançaisés,
tomo
I ,
L ês bibtíothèques médié-
vales du W
siècle
à 1530,
dirigido
por A .
Vernet,
Paris,
1989, p.
215-263
e
147-169-
5-Ver, por exemplo,
S.
SteUing-Míchaud, Lctransport inter-
nacional
dês
manuscrits
juridiques bolonais entrç 1265 e
1320", e m
Mélanges d'histoires économique et sociale
em hommagejiu pfcofesseurAntony Babel, om o I ,
Gene-
bra,
1963,
p. 95-127.
7
v , . ' , '
A
entrega
de um
livro
ao
candidato
não era um dos
gestos
rituais
das
cerimônias
de
doutorado?
Por
outro
lado,
toda biblioteca de
alguma importância possuía
um
alto valor
de
mercado.
Ela
repre-
SCUS
CUS
os osômiliares
do soberano,
seus
visitantes distintos
e
conselhoros
poéticos tinham acesso a elas *
C
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
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sentava uma forma de entesouramento, um capital tanto intelec-
tual quanto financeiro que se pretendia legar aos seus herdeiros,
se eles empreendessem seus próprios estudos, fosse num colé-
gio, fosse
em
alguma igreja.
O s
juristas sempre
se
bateram para
que os
livros
não
fossem computados quando
os
oficiais
do im-
posto vinham
avaliar
seus bens
móveis;
a seus olhos, esse privilé-
gio
não era apenas uma apreciável vantagem
fiscal
- porque não
era
raro
que
tais livros representassem,
em
valor,
a
metade
ou
mais
do
capital mobiliário
7 mas
também
o
reconhecimento
pú-
blico da
nobreza
do seu
saber
e das atividades que eles exerciam
a
título
de sua
com petência* intelectual.
N ão
mais
do que as
armas
do
cavaleiro;
os
livros
do
doutor
não
deveriam recair
nas
malhas
do
imposto.'
Será
que a
relativa simplicidade
das
bibliotecas privadas
poderia
ser
compensada pelo recurso
às
bibliotecas públicas
ou
pelo menos
- a
noção
de
serviço público sendo evidente-
mente anacrônica nessa
matéria
6
-
institucionais? Existiam,
na
época, três tipos de bibliotecas que poderiam merecer tal qua-
lificação.
Primeiramente, as
bibliotecas principescas.
N a
altura
da
morte
do rei d»
França Carlos
V (1380), sua
"livraria"
do
Louvre
contava com
pouco menos
de
1300 volumes;
no
século
XY o
duq ue de
Bourgogne Filipe,
o Bom
teria
uma
biblioteca
com
cerca de 880 livros. Por seu turno, os papas de
Avignon
enrique-
ceram
sem
cessar suas coleções
de
livros. Eles possuíam mais
de dois mil quando morre Urbano V, de acordo com um inven-
tário de 1369, e apesar dos avatares do Grande
Cisma,
ao mor-
rer
no
exílio
em
Peniscola,
o
último papa
de Avignon,
Benoit
XIII
(13944423), possuía ainda praticamente
a
mesma quanti-
dade
7
. A s
bibliotecas
dos
príncipes
e dos
pontífices eram aber-
tas ao público? Seu
catálogo
preciso deixa supor que pelo me-
6 - As primeiras bibliotecas públicas, no sentido moderno
da palavta, apareceram no curso do século X V em Floren-
ça,
em Veneza e em algumas cidades alemãs.
7 - Tais dados foram extraídos dos dois estudos já citados
supra,p.9Q,si.2i
18
que.exçetuando.e
peoalmente enriquecidas^
sido extremamente
importantes
(mais
Média
1450-lumes em Saint-Denis ou em Clair
nece
*
sariamente
to, tais cas ecessticas eram
religiosos e em livros
litúr£
s
™
tão
úteis para
se elas c
As bibliotecas mais modernas
P M ™
A '
e universidades. • '
sobretudo
>
no
c a s < > dos
colégios
O s principais
colégios u niversitários tinham
um a bibliote
9
de
1500'.Os outros colégios possuíam coleções mu ito mais mo-
destas, mas por vezes, preciosas: cerca de 200 livros no colégio
d'Autun em
Paris (1462), 150
no
colégio
d'Annecy em
Avighon
dades de medicina e de direito canônico de Paris (1395 e
1475).
Foi
quase exclusivamente
em
Caheii
que um
inventário,
tardio, é-verdade (1515), constatou uma coleção mais substan-
cial
(277
volumes)
12
.
Outras universidades eram melhor provi-
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
http://slidepdf.com/reader/full/verger-jacques-homens-e-saber-na-idade-media 61/68
(1435), 78 no
colégio
de
Pélegry
em Cahors (l 395), etc. Os co-
légios ingleses parecem oferecer cifras
da
mesma ordem desde
•o
final do sécu loJOV
(500 livros
em M erton, 150 em
B alliol,
100
em Oriel) e mais ainda no século XV (369 Hvros na dotação ini-
cial de
Ali Souls
em
1438,800
doados a Magdalen em 1480)
10
.
U ma
das
mais célebres bibliotecas
de
colégio foi,
no final da
Ida-
de Média, a do
Collegium
Amploniarium
de
Erfurt,
qu e
rece-
beu em 1433, de seu
fundador,
o antigo reitor Am plonius Ra-
tingk,
uma
extraordinária
coleção de 637
livros, rica
em
clássi-
cos, o que representou uma das vias
de
ingresso do humanismo
na Alemanha
11
.
No
conjunto,
entretantç, as
bibliotecas
dos
colé-
gios continham, sobretudo, livros
de
estudos, destacando-se
as
disciplinas tradicionalmente ensinadas nas universidades.
Tais
bibliotecas
eram, então, particularmente
bem
adaptadas para
os
homens de
saber. Resta averiguar
se
eles ainda teriam acesso
a ,
f
elas
após o fim de seus estudos: os estatutos conservados não ^
parecem indicar que os visitantes externos tenham sido acolhi-
dos com
muita
facilidade
nas
bibliotecas
de
colégios.
O
mesmo acontecia
com as
bibliotecas
de
universidades,
as quais eram, aliás, freqüentemente, muito menos importantes
e que praticamente não existiam antes do século
XV
Na França,
constatamos entre
as
primeiras
bibliotecas
universitárias, cons-
tituídas
somente por algumas'dezenas de volumes, aquelas de
<
Orléans (l4ll),deAvignon
(1427),de Poitiers (1446) e as
facul-
:
das, como Oxford cuja biblioteca, fundada
em
1412,
se desen-
volveu
principalmente graças às doações do duque de
Glouces-
ter
(280 livros entre 1439
e
1447)".
N o
total, é provável que, no exercício cotidiano de suas
atividades
profissionais ou administrativas, o conjunto dos
ho-
mens
de
saber, sobretudo
os
leigos
-
fossem
eles médicos,
advo-
gados,
procuradores, juizes ou oficiais do rei -, deveria, antes de
tudo, contar com os recursos de sua pequena livraria pessoal...
e de sua memória, eventualmente auxiliada por aqueles peque-
nos cadernos
e
anotações pessoais que .alguns pedagogos os
aconselhavam
a começar a compor desde o tempo de seus
es-
tudos, sugerindo ainda qu e
os
mantivessem sempre à
mão
14
.
Era
apenas
a
título
excepcional e
para consultar esta
ou
aquela obra
rara
em sua versão original que eles deveriam buscar sua admis-
são
em uma biblioteca
universitária, eclesiástica
ou
principes-
ca. Compreende-se, nessas condições, o sucesso que sempre
desfrutaram
na
Idade
Média
os florilégios,
repertórios,
dicioná-
rios, enciclopédias e todo gênero qu e
permitisse
restringir, em
;, alguma medida, o acesso aos livros.
9
-Tais cifras foram retiradas,bem como
as que se
seguem,
de M.-tí.
Julllen
de Pommerol, Livres d'étjadiarits,
bibliothèques d e
collèges
et
d'université",
em H istoire
dê s
bibliothèques
rctnçaises,
tomo
I, op.
cit.,
p.
93-111.
10 - N. Ker,
Oxford College Ubraries
befpre 1500", em Lês
universités à
Ia
fln du Moyen Age, editado por J. Paquet e
J.ljsewijn,Louvain, 1978, p. 293-311.
11 -
Citado
à página 175 em
H.-J.
Martin, La Révohition de
l'imprime", em Histoire de 1'édition françaíse, dirigida
por Roger
Chartíer
e H.-J. Martin, tomo I, Lê livre
conquérant'
du Moyen Age aü
milieu
eteXVLP siècle, 2
edição, Paris: 1989, p. 165-185.
12
-V eja-se
o
estudo
de
M-H
Julllen
de
Pommerol,
supra
citado, n.l.
13 - Vide M. B.
Parkes,
"The provision of
Books ,
em The
bistory ofthe University ofOxfoni,volume II ,Late medie-
val
Oxford,
editada por J. 1. Catto e R . Evans, Oxford: 1992,
p. 407-483.
'
14 -
Cita-se,
como exemplo, Juan
Alforíso
de
Benavente
em
su a
Ar s
et doctrina
sMdenti
et docendi, editada por B.
Àlonso Rodriguez, Salamànca: 1972,p.
90.
120
1 2 1
2 6 CONTEÚDO DAS
BIBLIOTECAS
Os inventários
de
bibliotecas antigas, apesar
de
suas
im-
A
esses textos
fundam entais
e
presentes
por
toda parte,
vi-.'
nham juntar-se,
em quantidade variável, um
certo
número
-de
\comentarios, tratados e questões modernas, além de alguns
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
http://slidepdf.com/reader/full/verger-jacques-homens-e-saber-na-idade-media 62/68
perfeições,
e os manuscritos conservados até nossos dias
infor-
mam-nos relativamente
bem
sobre
o conteúdo dos
livros
dos
homens d e saber em fins da
Idade Iédia.
É claro que, de fatp,
eram
estes que, em todo caso e
a
título privado, detinham a
grande
maioria dos livros existentes. Sabe-se beni que, ainda
hoje,
os
manuscritos relevantes
das
disciplinas
da
cultura erudi-
ta
-
gramática, lógica,
filosofia,
direito, teologia
-
sobreviveram
às centenas, por vezes aos milhares, enquanto outras obras lite-
rárias, históricas ou políticas, inclusive algumas daquelas qu e
nos
parecem
as
mais importantes,
são conhecidas
apenas por*
um número reduzido
de
manuscritos
- quantas
vezes
por um
único manuscrito - sobretudo quando se trata de
textos
em lín-
gu a
vernácula.
Através d e toda a Europa do final da Idade Média, as bi-
bliotecas do saber , como diziam os especialistas,
apresentam
u m
incontestável ar de família, quer se tratasse de
bibliotecas
universitárias ou, em escala mais modesta, fossem bibliotecas
pessoais
dos
homens,
de
saber
que
mais diretamente aqui
nos
interessam. Havia
até um a
confirmação suplementar
do
caráter
universalista guardado pela cultura erudita
até o final da
Idade
Média.
Encontraram-se,
a princípio, nessas bibliotecas, os textos
de
base, as autoridades
fundamentais
de cada disciplina. Os juristas
possuíam
os
pesados volumes
de
dois
Corfnís
iuris providos
d e
su a
glosa ordinária; os teólogos possuíam a Bíblia, freqüentemen-
te ela também glosada, os comentários exegéticos de São
Jerôni-
mo e de
Santo Agostinho
e,
entre
o s
modernos, alguns tratados
d'
Hugües
de Saint-Viçtor, as
Sentenças
de
Pedro
Lombafdo e
uma o u
outra Suma
d e
SãaTomás
de Aquino;
entre
os
médicos,
encontravam-se traduções de Galiano e
05
grandes mestres
ára-
bes (Avicena, R hazès);
enfim,
os mestres em Artes possuíam t>o-
nato e Prisciano,
mais algumas
coleções de auctores
para
a gra-
mática,
o Organcm d e
Aristóteles para
a
lógica
e,
menos sistema-
ticamente,
alguns tratados do mesmo Aristóteles (Da alma,
Físi-
ca, Metafísica, Ética)
para
a filosofia
natural
e
moral.
122
manuais è textos diversos de referência.
Aqui
aparece-mais à
personalidade
- e os meios financeiros - do
proprietário.
Algu-
mas bibliotecas parecem muito tradicionais, outras acolheram
rapidamente
os
novos livros. Algumas parecem bastante neu-
tras, outras claramente deixam adivinhar
uma
orientação /dou-
trinai particular. Algumas,
enfim,
parecem muito
escolares, pro-
dutos
diretor
do
ensino recebido
ou
ministrado, enquanto
ou-
tras contêm Obras completamente alheias
ao ensinp e
expressa-
mente vinculadas
a uma
prática profissional.
Vem, enfim, a inevitável rubrica "diversos". Ela é por vezes,
em
algumas bibliotecas austeras, praticamente vazia.
E m outras,
pelo
contrário,
pode representar uma
porcentagem considerá-
vel, ainda
qu e
sempre minoritária.
E la
traduz então, além
dos
acasos
que podiam
presidir
o Agrupamento de algumas cole-
ções, 05 interesses
e os-gostos
pessoais
do
proprietário. Perce-
be-se
que este hão se
limitava forçosamente
a seu
domínio
de
atividade profissional nem às disciplinas aprendidas na escola
.ou
na
universidade.
A
existência
de
livros
religiosos
(Bíblias,
tra-
tados de espiritualidade, vidas de santos, livros de horas) será
tida como sinal
de piedade e de
devoção, talvez
sob a
influên-
cia das ordens mendicantes. Outros marcam seu interesse pela
história
(crônicas universais, história antiga,
ou história
nacio-
nal contemporânea). N aturalmente, a presença dos clássicos -
até mesmo de alguns italianos: um Dante, um Petrarca, u m Bo-
caccio, u m pouco mais tarde, os
Elegantioe
de Lorenzo Valia -
mostrará que alguns
desses
homens de saber, muitas vezes for-
mados
na
pura tradição escolástica, puderam
ser bem
cedo sen-
síveis às novas correntes humanistas;
Enfim,
um
pequeno
setor
em
língua vernácula, infelizmente muitas vezes
m al
repertoria-
do, com uma
significativa
condescendência, pelos
redatores do
inventário ("Item,u m pequeno livro eiji romance ),ou ainda, al-
gumas coleções de
"prognósticos"
recordam-nos que
os
ho-
mens
de
cultura essencialmente latina
não
eram necessaria-
mente
alheios
a
toda
forma
de
literatura vernácula,
e nem mes-
mo à cultura popular.
123
Alguns exemplos emprestados
às
recentes pesquisas ilus-
trarão
essa sumária tipologia. .
Françoise Au trand
estudou,
em
detalhes,
as
bibliotecas
dos
5
pode-se,
sem
dúvida, somar igualmente como testemunhos
de
preocupações
profissionais alguns tratados
políticos,
todos
fa-
voráveis
à
prerrogativa real (como
o Polícraticus de Jean de S á-
lisbury
ou o
Songe
du
vergier,
ou ainda, menos degustáveís do
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
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homens do Parlamento' .Tratava-se ali, verdadeiramente, da eli-
te dos
homens
de
saber
na
França
em finais
da Idade
Média. Al-
guns
cléfigos, outros leigos, mas quase todos licenciados ou
doutores,
os
conselheiros
do Parlamento
eram
os
juristas
de
alto nível, não
devendo nada
aos
melhores professores
de
direi-
to de
Paris
ou de Orléans.
Ricos
e
geralmente nobres
ou
pelo
menos
enobrecidos, eles pertenciam
à
esfera superior
da
socie-
dade
parisiense. Enfim, constituindo
a
corte soberana
da
justiça
do
rei, exercendo, portanto,
a
função regalista
por
excelência,
eles se situavam no cume da hierarquia dos ofícios e dos encar-
gos do Estado.
As
"livrarias" de trinta e sete dentre eles nos são conheci-
das,
graças
aos
inventários
ou aos
testamentos, para
os anos
1389-1419 (mais
um de
1362).
A
homogeneidade
do
grupo,
es-
pecialmente sob o plano cultural, é confirmada pelas fortes se-
melhanças dessas diversas bibliotecas.
Em
média,
uma
centena
de'obras,
nós já o
dissemos,
com
urna ligeira tendência de cres-
cimento
à
medida
que se
avança
no
tempo. Elemento maior
do
capital mobiliário de
cada
um,.tais
bibliotecas eram, entretanto,
primeiramente bibliotecas de trabalho. É o que explica que os
•livros de direito lhe ocupassem a parte do leão,
oscilando
entre
u m quarto e dois terços do conjunto segundo o caso; apenas o
bibliófilo, Nicolas
de
Baye
não
possuía mais
do que 16% de li-
vros de
direito
(32
sobre 198).
Bem
mais surpreendente
é o fato
de o direito canônico - não apenas com os diversos volumes do
•
Corpus
iuris canonici
mas com seus numerosos comentários
recentes, com freqüência procedentes de autores italianos
ou
da
França central
-
parecer melhor representado
que o direito,
civil; é
verdade
que a metade
desses conselheiros eram
os clé-
rigos e qu e
eles deviam
julgar
tanto matérias
eclesiásticas
quan-
to
matérias
laicas,
sendo estas julgadas normalmente segundo
o
costume e não segundo o direito romano. Ao s textos jurídicos,
ponto de vista
daJgreja,Marsílio
de Pádua ou Guilherme de
Oc-
kham),
os livros de/rezas, algumas coletâneas de cartas, os
ma-.1
miais de retórica.
Se nos reportarmos à parte mais pessoal dessas
bibliote-
cas,
os
livros religiosos prevalecem
e não
apenas entre
os con-
selheiros clérigos: alguns tratados teológicos, mas, sobretudo as
Bíblias, os breviários e os livros de devoção e de espiritualida-
de. Em
contrapartida,
nem
a história,
nem os
clássicos ocupa-
vam um lugar importante. Junte-se a isso a ausência praticamen-
te
total
da
língua vernácula; tais bibliotecas eram,
em
geral,
ex-
clusivamente
latinas.
A
conclusão impõe-se,
portanto,
ppr si mesma. E m u ma
época onde o humanismo de P etrafca abria uma brecha impor-
tante no colégio de Navarra e no meio dos
notários^e
secretá-
rios
do
rei (o "primeiro humanismo" francês) - onde a bibliote-
ca
real
do
Louvre
era, por seu.turno,
constituída po r
v
u ma quan-
tidade de 60% de livros em francês
-,
o meio das pessoas
do
par-
lamento, homogêneo e unido por um
forte
espírito de corpo
nascido desde os tempos dos estudos pela própria freqüência
aos colégios, aparecia como o meio culturalmente mais conser-
vador, e ainda impregnado de Uma forte tintura religiosa; u m
meio de juristas competentes e austeros, onde uma piedade tal-
vez marcada pela influência
da
"devoção moderna" provenien-
te dos
Países Baixos vinha apenas fazer
um
contrapeso
ao pres-
tígio esmagador do direito, percebido, ao mesmo tempo, como
disciplina
erudita
e
vocação política.
As pesquisas mais sumárias igualmente dirigidas
aos gru-
pos
de clérigos cultos - 41 bibliotecas de
cônegos
dos
séculos
XIV
e
XV,
68 bibliotecas de bispos
e
cardeais
franceses
do pe-
ríodo avignonense - produziram resultados
análogos
16
.
Os ptv-
meiros praticamente
não
possuíam,
em
média,
mais do que 25
livros;os segundos,70 (o que confirma bem.a contrario,o alto
15 F.
A\jtrand,
"Culture
et mentalité: lê s
libraMes
dês
gens
du
Parlement
üu temps de Charles
VJ" ,Arinales ESC,
28 (1973), p. 1219-1244.
124
16- Sugere-se o
estudo
de G.Hasenohr
supra
citado págí-,
na 90,íi.2. > ' c . .
125
nível de cultura dos homens do Parlamento, com suas livrarias
de
cento'e tantos livros). Entre esses homens
freqüentemente
provindos das universidades e encarregados de trabalhos ad-
Apoiando-se sobre
vasta
documentação
notarial, Henri
Brese recenseou bibliotecas ou,.pelo menos, indicações de li-
vros para a Sicília dos séculos XIV e
XV
18
.
Em 120 casos, trata-
va-se d e bibliotecas privadas e individuais. •'
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
http://slidepdf.com/reader/full/verger-jacques-homens-e-saber-na-idade-media 64/68
ministrativos,
o direito consistia sempre em um peso opressi-
vo; entre
a
metade
dos
cônegos,
ele
representava mais
do que
50%'dos
volumes e não ficava nunca abaixo dos
20%,
a não ser
em algumas bibliotecas excepcionalmente importantes e re-
presentativas do verdadeiro gosto do letrado e do humanista.
Mas no essencial, eram os livros religiosos -breviários e outras
obras
Htúrgicas,
coletâneas
de
sermões
e
tratados teológicos,
aliás,
mais do que a Bíblia e os textos espirituais - que vinham
completar tais bibliotecas, pouquíssimo abertas, também elas,
à língua vernácula.
O
estudo comparado dessas diversas séries
de
bibliotecas
coloca, assim, em evidência a homogeneidade cultural do mun-
do dos homens de saber (fossem estes clérigos ou laicos), e, ao
mesmo tempo, os limites de uma cultura na qual as novas cor-
rentes não costumavam ter seu caminho franqueado.
Coisa ainda mais notável, outros estudos sugerem que a
homogeneidade dessa cultura - jurídica, escolar, latina - verifi-
cava-se d e
fato
p or
toda
a
cristandade.
Em
qualquer
lugar,
eram
encontradas as mesmas tendências e praticamente os mesmos
livros.
Tomemos, na extremidade meridional do Ocidente me -
dieval,
o exemplo da Sicília: velho país de direito romano, de
fato, mas também zona em algum a medida marginalizada no fi-<
-
nal
da Idade Média, economicamente dominada por
homens
de negócios da Itália do Norte, politicamente governada por
soberanos
aragoneses que não
foram
bem
sucedidos
em im-
plantar
uma verdadeira administração central, desprovida de ;
universidade
17
e, portanto, coagida a enviar seus
futuros juris-
tas e médicos
aos
studia
generalia
do continente (sobretudo,
Bolonha).
Dois
traços depreendem-se notoriamente de seu estudo/,
confirmando, a seu modo, as constatações
feitas
para a mesma
época
no caso do reino da França.
Antes
de tudo, a posse de livros era aqui
praticamente
mo-
nopolizada pelos homens de saber.
Para
2341 volumes,
cujo
proprietário
foi
identificado
com
precisão,
somente
1%
perten-
cia
a artistas ou a mercadores, 9,2% ao patriciado urbano ou à
nobreza;
um
clero aparentemente pouco instruído
e
contentan-
do-se com
os recursos
das
bibliotecas
das
igrejas
que
detinham
apenas 3,2%
dos
livros localizados.Todo
o
resto pertencia
aos'
homens de saber. Entre esses
distinguiam-se
os simples mestres-
escolas,
notários,
cirurgiões, boticários,
oficiais
menores ou, por
outras palavras, aqueles que não haviam passado pela universi-
dade e cujas bibliotecas, mais do que modestas, reagrupavam
apenas 12,6% dos livros,e os doutores (em medicina e, sobretu-
do ,
em
direito) que, mesmo sendo
pouco
numerosos
(27
sobre
120
dos
proprietários
de
livros identificados), possuíam
74%
dos ditos livros, com belas bibliotecas apresentando, em média,
65
volumes. ~
Também-não há surpresa no que concerne à composição
dessas
bibliotecas e, por sua
própria autoridade, daquelas
dos
doutores.
O
direito, civil
e
çanônico, ocupa
com facilidade o
pri-
meiro plano (54% dos volumes), possuindo não somente os
dois
Cotpus,
mas um rico leque de comentários recentes, italia-
nos no essencial,' bem como
franceses
do Midi, que testemu-
nham
a
qualidade daquela cultura jurídica. Segu em-se-lhe
as ou-
tras
disciplinas escolares, em
função
dos estudos e da
especiali-
zação do proprietário: á
escolástica
(filosofia e
teologia)
repre-
senta
12% dos
títulos,
a m edicina 8%; a
gramática
5%.
As
obras
^religiosas
constituíam apenas uma limitada seção (9%),
aliás,
t
1
com uma preponderância do mais banal
-<
pelo
menos
a nossos
•
i
i ' •
17 - Pelo menos até 1444, data da fundação da
u niversida-
de de
Catania,
que
permaneceria tendo importância
se-
cundária.
18- H. Bresc,
Livre et
sòcieté.em Sicile (£299-1499), Pa-
lerme:
1971.
-
126
127
olhos
-,quer dizer,
livros litúrgicos e os Sermonários sobre a Bí-
blia"e os
autênticos tratados
de
espiritualidade. Enfim, embora
a
Sicília^não tenha sido
u m dos
grandes territórios
do'humanis-
guido fazer com que seus efeitos
fossem
imediatamente senti-
dos no
meio
dos
homens
de
saber
da
sociedade medieval?
Recordemos aqui
-
naturalmente deixando
de
lado
p pro-
blema dos
antecedentes
chineses - que é
difícil apontar para
a
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
http://slidepdf.com/reader/full/verger-jacques-homens-e-saber-na-idade-media 65/68
mo italiano, os clássicos totalizaram, apesar de tudo, 187 exem-
plares (8% do total), um percentual notável, essencialmente no
século
X V Em
contrapartida, tanto
a
literatura recente (princi-
palmente Dante),
com 3% do
total, qvjanto
as
obras técnicas
(manuais
de
comércio),
com 1%
permaneceram m anifestamen-
te marginalizadas.
Outros
estudos
abarcando bibliotecas
dá Itália do
Norte,
principalmente as bibliotecas de médicos, não trouxeram resul-
tados fundamentalmente diferentes
19
. D e fato, mais do que
além dos
Alpes, observa-se,
no
século
XV, um
certo
crescimento
de
coleções
e u ma pronta penetração dos clássicos e dos tex-
tos
humanistas;
mas o
grosso dessas bibliotecas
-
mais
que
75%
-
permanecia constituído
por
obras
de ilosofia
natural
e de me-
dicina; dito
de
outro modo, hoje como ontem,
uma
forte colo-
ração latina,
universitária
e profissional continuava sendo, de
longe,
a característica maior dos livros de que dispunham os
•
homens
de
saber.
É
inútil multiplicar
os
exemplos.
C om
algumas variações
regionais, as mesmas constatações se impunham por toda par-
te, testemunhando, ao mesmo tempo, a unidade persistente dá'
cultura
erudita medieval e suas fortes tendências
conservado-
ras.
3. DO MANUSCRITO AQ
IMPRESSO
Teria sido abrandado esse conservadorismo, na segunda
metade do século XV , pela invenção da tipografia? Essa invefl-^
cão,
que
transformou completamente, tanto
em
rapidez
quanto'
em
quantidade, a circulação da informação escrita no
seio
daí
sociedade,
fo i
realmente
uma das
revoluções técnicas mais im-j
portantes
da
história
da humanidade.Teria ela
também conseÜ
19 - D. Nebbiai-Dalla
Guarda, Liisres, patrimoÇne,
professi&n: lê s bibliotbèque de quelques
médecins
en Ita-
lie
(XIV etXVsiècle);
o autor nos permitiu tomar conhe-
cimento desse seu estudo ainda inédito.
128
invenção da tipografia uma data e um autor únicos, o célebre;
Háns Gutenberg (c.1400 -
c.1468)
sendo provavelmente ape*
nas o mais conhecido desses artesãos,
geralmente:
ourives de
origem,
os quais, nos países renanos, no segundo terço do sécu-
lo
X V , conseguiram
inaugurar unia
nova técnica
de
impressão
por caracteres moveis gravados, os quais a moda das imagens
xilográficas fazia, já há
algum
tempo,
pressentir, quer pela
pos-
sibilidade material, quer pelo interessç prático.
Aquilo que importa para nosso propósito, é primeiramen-
te
sublinhar
que a
difusão
da
tipografia
foi
relativamente lenta.
O s
primeiros livros impressos
dos
quais foram conservados
al-
guns
exemplares - a Bíblia em 42 linhas", dita de Gutenberg; ô
Psautíer
de Mayence - datam dos anos
1450.
Tratava-se então
de uma
técnica essencialmente germânica, implantada
em Ma-
yence} Cologne,
Estrasburgo, Bale. Além disso, durante
uma ge-
ração
ainda-, através
de
toda
a
Europa,
os
impressores serão
na
grande
maioria
os
alemães. Praticamente,
foi
apenas
em
1470
que eles começaram a emigrar para além de suas fronteiras.
Nessa época, apenas cinco
ou
seis tipografias funcionavam fora
da
Alemanha, sendo
que as
únicas
que
prometiam
u mrcerto fu-
turo
eram
de Veneza, onde
Jean
de
Spire
se estabeleceu em
1469, e de Paris, onde Ulrich Gering de Gonstance c dois com-
panheiros vieram instalar,
em í
470,
sua
oficina próxima
da Sor-
bonne (senão no
próprio
interior do colégio) por solicitação de
dois socii dçsta, estando tanto um como outro fortemente im-
pregnados pelo humanismo, o
Saboiano
Gu Ulaume Rchet e, da
Basiléia,
Jean
Heynlin.
Ò
decênio Í471-1480 viu a imprensa se multiplicar
na
Ale-
manha
.(em 26
localidades
novas,
tomando conta
também da
i Suíça e dos Países Baixos), mas principalmente na Itália (44 loca-
(lidades novas). Em compensação, a França, com
sete
implanta-
^.ções
em Albi,
Angers, Caen^Lyon, Poitiers,Toulouse
e Viena, a
Pé*
i nínsula Ibérica (oito implantações) e, de maneira surpreendei -
[lê, a Inglaterra (apenas quatro implantações: Londres,Westmins-
;
St
A lban's,
Oxford) ainda
não
haviam
entrado
explicitairtcnte
'• K
129
no movimento; elas farão isso, no caso das duas primeiras, entre
1481 e 1500:28 novas implantações na França, 19 na Península
Ibérica...mas nenhuma na Inglaterra. A Alemanha (21 novas im-
e a circular. Aqueles que possuíam belas
coleções
- sendo que,
dentre eles,
destacavam-se
precisamente os homens de saber -
tinham tendência a conservá-los e não substituí-los, a não ser
progressivamente, pelos livros impressos. Estes, de fato, custa-
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
http://slidepdf.com/reader/full/verger-jacques-homens-e-saber-na-idade-media 66/68
plantações) e Itália (26) conservavam, entretanto, a vanguarda,
qu e aparece ainda mais nitidamente se considerarmos a quanti- >
dade
de
livros produzidos.
Avaliados
pelos .historiadores
em
cer-
ca de 27000
edições
antes de 1500, correspondendo a mais de
dez
milhões
de
livros,
tal
produção provinha,
ao
menos
em
qua-
tro
quintos,
da
Itália
(44%) e da Alemanha
(35%);
em
seguida,
vi- -
nham 15% dê
edições
francesas, e os outros
países
da Europa
simplesmente repartiam
os 5%
restantes. Se,
no
total, cerca
de
240 localidades européias haviam visto, em 1500,
funcionar
uma
prensa
de
imprimir,
o
mapa
da tipografia
européia apresentava
ainda lacunas espantosas (Bordeaux ou Montpellier na França,
Cambridge ha Inglaterra) e, de qualquer modo, era necessário,
para ser preciso, distinguir as localidades onde impressores iti-
nerantes simplesmente haviam passado, deslocando-se com sua
prensam seus caracteres,
e
cuja modesta atividade
não
fizera nas-
cer uma produção regular, daquelas onde as oficinas de tipogra-
fia
se instalaram com atraso, dado que estas podiam se beneficiar ,
dos capitais e dos
clientes
com segurança. No segundo caso, o
único verdadeiramente importante, as grandes cidades alemãs
de um lado,Veneza de outro, vinham imediatamente à frente; na
França, foi
Paris que,
de
longe, venceu,
com uma
produção três
vezes maior do que aquela de Lyon
20
.
Mais ainda que
a
reprodução
do
livro impresso,
é sua
difu-1
são que nos interessa aqui. Fjitre uma e outra, havia evidente-
mente alguns desníveis. Podia-se importar
livros
alemães
ou ita-
lianos na França ou na Inglaterra para diminuir as fraquezas da ';,
imprensa local. Ao contrário, a aparição da tipografia não termi-i
nou de uma vez com as atividades dos copistas de manuscritos;
'*
mesmo
que a produção
destes
tenha
sofrido
inflexões por
toda
parte e mais claramente após 1470, continuou-se
a transcrever
à
livros manuscritos até o início do século
XVI.
E,
de
qualquer mav|
neira, os manuscritos mais antigos continuavam a ser utilizados
^
française,
13 0
vam
menos, mas estamos- mal informados sobre o ritmo peran-
te
o-qual
aconteceu o distanciamento entre manuscritos e
1
im-
pressos em termos de preços; não se pode esquecer que os pri-
meiros livros impressos freqüentemente tiveram modestas
tira-
gens,
por vezes da ordem de cem exemplares, e não eram então
necessariamente tão bem comercializados e nem muito
acessí-
veis. -
O s estudos bem precisos
fazem-nos
pensar que, por volta
de 1480, a parte da Impressão nas "bibliotecas do saber" france-
sas não passava
dos
6% e que foi apenas por volta
de
1500 que
ela
passou
para
mais
d e
50%.
A
evolução pareceu
ter
sido
a
mesma por todo lado, anterior em dez ou quinze anos na Itália,
mais lenta ainda
na Inglaterra
21
.
Aliás, teriam sido
O s
homens
de
saber
os
principais clien-
tes da
nova invenção? E fetivamente, como
se tem
observado
há
tempos, os textos impressos do século XV foram, em sua graiv
de
maioria,
os
textos "medievais"
cujo
mercado parecia
assegu-
rado.
Mas não eram necessariamente esses os que tinham a pre-
ferência
das
bibliotecas eruditas. Em primeiro lugar, encontram-
se
livros religiosos,
que
constituem quase
a
metade
da
produ-
ção incun ábu la: tratava-se, de uma parte de Bíblias, por outro
lado, livros
litúrgicos
(missais.breviários, livros de horas),
enfim,
tratados de espiritualidade, livros de devoção, vidas de santos,
etc., em latim ou em língua vulgar. Outra categoria bem provi-
da: a gramática;
porém tratava-se
de
obras elementares
(o
Dona-
to, o Doctrinate de Alexandre de V ille-Dieu, os Dísticos de Ca-
tão, etc.) que eram dirigidos tanto aos alunos das escolas primá-
rias quanto aos estudantes da faculdade de artes; eles puderam
servir
para a melhoria dos ensinamentos de base, não para a re-
novação
cultural
das
elites. V inha
finalmente a
literatura profa-
na, geralmente em língua vernácula: enciclopédias e florilégios,
21 - Vide C. Bozzolo,
E.
Ornato, Lês bibliothèques entre lê
manuscrit
et
rimprltné ,
em Histoire dês biliothèques
françalses,tomo I, op.
cit,p.
333-347.
3
crônicas, versões mais ou menos modernizadas das canções de
gesta ou dos romances corteses, para uso, sem dúvida, de um
público aristocrático, que se aproximavam com obras decidida-
mente populares, do gênero dos almanaques e outros "calendá-
22
Em
suma, que sé
pode, acredito, concluir que, desde
os
primeiros decênios
de sua
existência,
a
imprensa alargou consi-
deravelmente
o
público da cultura escrita. Os meios populares,
pelo menos urbanos, não se conservariam mais à parte do mun-
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
http://slidepdf.com/reader/full/verger-jacques-homens-e-saber-na-idade-media 67/68
rios dos pastores" .
Em compensação, os textos eruditos, dos quais existiam,
sobretudo nas cidades universitárias,
centenas
de manuscritos,
não
tiveram
a não ser
elegantemente
e com
freqüência tardia-
,
mente as honras da impressão. Nem as Sentenças de Pedro
Lombardo,
nem os grandes doutores da escolástica, de Tomás
deAquino e
Alberto,
o
Grande,
até
Gerson, foram impressos
em
Paris
antes de 1500; aquelas edições que lhes foram oferecidas,
depois
de
1480, vieram
da
Alemanha
ou da
Itália. Poder-se-ia
di-
zer o mesmo de Aristóteles ou dos Corpusé comentários de di-
reito romano e canôniço. Os textos jurídicos, que ocupavam
u m
tal lugar nas bibliotecas
eruditas
da Idade Média, pratica-
mente
não
representam mais
de 10% das edições incunábulas,
produzidas principalmente em Lyon ou na Itália. O u seja» foram
os
textos propriamente humanistas, quer dizer,
os
clássicos (la-
tinos
e,
cada
vez
mais,
os
gregos)
e as
obras
dê
autores italianos
recentes
que
teriam sido
os
livros impressos mais procurados
pelos letrados, inclusive
na
França ou na Inglaterra, porquê
precisamente
os manuscritos lá eram raros. Os primeiros livros
editados na Sorbonrie, no prelo de Ulrich Gering (que teria
sido aconselhado
por
Fichet e Heynlin)
em
1470-1472, assina-
lavam quase tudo desta categoria: Gering começou por um ma-
nual
italiano de arte
epistolâr,
aquele de Gasparin de
B ergame,
Â
depois ele
editou
Salluste,
Cícero, Perse, Juvenal, etc., ao
mês-
'
mo
tempo que
os
modernos
(os
Elegentiae
de Lorenzo Valia c
a
Rhétorique
do
próprio Fichet).
Mas
deve-se recordar que,
desde 1472,
esse
mesmo Gering deixara a Sorbonne e, tendo
transferido sua
oficina para
a Rua Saint-Jacques,
ele retornou
abs
textos universitários mais tradicionais e, sobretudo, às
obras de piedade
23
.
22 -
Vide LFeb\T€,H.J.Martm,Z'«£p«rf«ort du
livre,novsL
edição, Paris: 1971, p.
351-365.
23 - D. Coq, "tes incunables: testes ahciens, textes
riouv«aux",emffísto/re de i'édftíonfrançaise,tomo I,op.
cit.,
p.
203-227.
132
do
do livro; os oficiais subalternos (sargentos, notários,
etc.),
os
simples vigários tiveram, dali por diante, a possibilidade de
constituir para
si próprios um
embrião
de
biblioteca, ainda
que
fosse com apenas
uma
dezena
de
volumes. Vê-se,
por
toda
parte, entre 1480 e 1530,multiplicárem-se essas "bibliotecas mí-
nimas ,
de
acordo
com a
expressão
de
Pierre
Aqu ilon
24
.
Além
disso, a
tipografia certamente permitiu
um
efetivo progresso
cultural
nos meios
aristocráticos. Vê-se
então constituírem-se
belas bibliotecas, principalmente literárias
e
vernáculas. A isso
'
deve-se evidentemente aliar o novo impulso então proporcio-
nado às grandes bibliotecas principescas.
Mas,
no que concerne aos homens de saber,
colocando-se
à parte, sem dúvida, uma elite de humanistas geralmente italia-
nos
estimulados
por
novas idéias
e
sempre curiosos
de
novos
textos,
não se
percebe
em que
medida, antes
de 1500,
os pro-
gressos do livros impresso
modificaram
as proporções ou a
composição
das
bibliotecas. Como sempre
injusto
e, ao
mesmo
tempo, clarividente, Michelet apreendeu bem essa ambigüidade
inicial
da
imprensa:
"Se nós
publicamos
a
A ntigüidade,
nós pu-
blicamos
e republicamos bem de outro modo a Idade Média, so-
bretudo, os livros de estudos, os resumos, as.sinopses, todo o en-
sinamento
de idiotices, os manuais dos confessores e dos casos
de consciência; dez Nyder
25
contjra u ma Ilíada;para um Virgílio,
vinte
Fichet.
26
'
Mais objetivamente, pode-se,
sem
dúvida,
ver ali uma
pro-
'
vá suplementar
da
força
e da
coerência
da
cultura letrada
do fi-
24 - E Aquilon, "Petites e t moyennes bibliothèques", em
HtsMre dê s
bibliothèques
fmnçaises, tomo I ,
op.
cit.,
p.
285-309.
25
-
Teólogo dominicano alemão (1380-1438), conhecido
como
autor deFornicarizís
seu
myrmeçia bonórum,
que
consagrou longas passagens
à
bruxaria.
26 - J. Michelet,
Oeuvres
completes, tomo
VII,
Paris: 1978,
p. 85.
• F 3 3
nal da IdadeMédia.
Apesar
de
seus limites
e dos
sinais
bem
per-
ceptíveis de esclerose, ela seria ainda suficiente para criar a
consciência de si dos homens de saber, o que nos
leva agora-a
investigar
a obra da sociedade
de
seu tempo. ,
8/17/2019 VERGER, Jacques. Homens e Saber Na Idade Média
http://slidepdf.com/reader/full/verger-jacques-homens-e-saber-na-idade-media 68/68
segunda
parte
O EXERCÍCIO DAS
COMPETÊNCIAS
134
135
top related