viver não é preciso
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Aharom Avelino
Copyright © 2012 by Aharom AvelinoCopyright desta edição © 2012 by Livros Ilimitados
LIVROS ILIMITADOS
Conselho Editorial:BERNARDO COSTA
JOHN LEE MURRAY
LEONARDO MODESTO
Projeto grá� co e diagramação: Luíza CostaCapa: John Lee Murray
Direitos desta edição reservados àLivros Ilimitados Editora e Assessoria LTDA.Rua República do Líbano n.º 61, sala 902 – CentroRio de Janeiro – RJ – CEP: 20061-030Tel.: (21) 3717-4666contato@livrosilimitados.com.brwww.livrosilimitados.com.br
PARCEIRO
Proibida a reprodução, no todo ou em parte,através de quaisquer meios.
Para minha família que, sem querer, fez parte disso tudo.
Sumário
Um estranho na sala 9
O dono da casa 15
O dia do ator 21
A estranha senhora da casa amarela 27
A lágrima do crocodilo 31
E a orelha de Van Gogh? 35
Missão quase impossível 38
Doce encanto 42
Aquele corpo estranho está lá dentro 49
A festa de Bebete 52
Ao mestre com carinho 62Tudo acaba quando chega ao fi m... 66
Agradecimentos 71
Foram dias confusos aqueles. De repente, não se falava em
outra coisa lá em casa. Estava todo mundo na maior expec-
tativa. Ele chegaria em poucos dias e traria muita felicidade
para a gente – assim acreditávamos. Ninguém sabia como ele
era, só meu pai, claro! Mas ele não fala um A sobre isso. Na
verdade, meu pai, num momento de sadismo explícito, até se
divertia com nossa euforia e curiosidade.
Minha mãe era, de longe, a mais empolgada. Estava que
não cabia em si. Abriu um sorriso de orelha a orelha. Ele era
tudo o que ela queira. Para minha mãe, a chegada dele re-
presentava uma mudança radical. Nós estávamos subindo de
posição social, ela dizia. Com ele, nossa família tinha atingido
um novo padrão de vida. O passado era passado, e ele era o
futuro. Tamanho poder só podia resultar em uma coisa: ele
teria todo o poder dentro de casa. Logo o falatório começou:
“Não deita nele, menino!”“Você tá rolando nele, para com isso!”“Olha o braço dele, cuidado!”“Tira esses pés imundos dele, agora!”
Um estranho na sala
10 Aharom Avelino
“Ai, meu Deus, vocês vão destruir ele.”Não podia isso, não podia aquilo. Eu já estava com raiva
dele. Queria chutá-lo, xingá-lo ou cuspir nele, mas minha mãe estava sempre de olho. Ele era muito importante para ela.
Ela o ganhou de presente do meu pai. Não era nenhuma data especial, no entanto ele quis fazer uma surpresa – na ver-dade, acho que meu pai queria se livrar da ladainha da minha mãe. Ela vivia reclamando que não tinha um troço daquele.
Minha mãe o achava a coisa mais linda do mundo. Talvez fosse naquela época, porque hoje, seria considerado horroroso. Brega, feio, hediondo e de mau gosto. Quem o visse hoje usaria essas características.
Ele era verde. Verde mofo, assim meio desbotado, sabe? Também tinha umas flores em relevo, gravadas no plástico frio e duro que era chamado de napa. Pavoroso!
Porém, verdade seja dita: ele tinha uma espumazinha macia, fofa, gostosa. Naquela época, ele era a oitava maravi-lha do mundo, ou pelo menos, a primeira maravilha lá de casa. Pra gente, ele era confortável, afinal, estávamos acostumados com bancos de madeira.
Houve um tempo em que ele era tudo que uma mãe mais queria na sala. Era o sofá dos sonhos de 5 em cada 5 donas de casa. Aliás, ele não era um sofá puro e simplesmente, não, era um conjunto. Três peças. Três sofás: um grande com três lugares e dois pequenos de um lugar cada. Última moda. Um
luxo a que poucas famílias tinham acesso.Era caro. Caro, não, caríssimo. Para levá-lo para casa, meu
pai precisou assinar algumas promissórias na loja (não havia carnê naquela época).
11Viver não é preciso
O dia em que ele foi deixado lá em casa foi um dia de festa.
Não demorou muito e uma revolução começou.
– Chega a televisão pro outro lado.
– Não, aí não, deixa ele do lado de cá.
– Aí vai bater sol. Desbota.
– Mais? Ele já é todo desbotado mesmo. Olha que cor feia
– eu disse, mas ninguém me deu assunto.
– Aí num ficou bom, não. Acho que ficava melhor do outro
lado. Ou seria melhor desse lado de cá, mesmo? Ai, que dú-
vida!
Foi um dia inteiro de mexe daqui, mexe dali. A sala toda
acabou alterada.
Primeiro minha mãe trocou o tapete porque vermelho não
combinava com o verde do sofá. Não demorou muito para as
cortinas antigas irem parar no meu quarto. A sala ganharia
novas cortinas que combinariam com o sofá, claro.
Quando tudo parecia calmo, então, minha mãe resolveu im-
plicar com a televisão.
– Ai, essa televisão, num sei não, vai acabar estragando o
meu sofá.
– Como a televisão vai estragar o sofá? – eu quis saber – ela
nem senta nele. Quem senta nele é a gente.
– Esse é o problema, agora todo mundo só quer sentar no
sofá pra ver televisão.
– Ué, mas onde a gente vai sentar, então? – perguntou
minha irmã.
– Não sei. Senta no chão! – sugeriu minha mãe.
– Eu gosto de sentar nele – falei.
12 Aharom Avelino
– Você e todo mundo... Vamos ter que dar um jeito nisso.
Do jeito que tá num dá.
O que ela estava dizendo era verdade, todo mundo só queria
saber de sentar no sofá. Depois que ele chegou, ninguém quis
saber dos banquinhos de madeira duros e desconfortáveis. O
Cassino do Chacrinha ficou muito mais divertido quando pas-
samos a vê-lo esparramados no sofá.
Para desespero da minha mãe, eu comecei a comer no sofá,
a tomar café nele, fazia meu dever de casa usando-o como me-
sinha de apoio.
– Vai sujar de comida.
– Num vai, não, eu tomo cuidado.
– Vai cair suco.
– Num vai, não, eu bebo direitinho.
– Vai manchar.
– Já vou sair...
– Vai melar de molho de tomate.
– Eu já terminei de comer...
– Vou ter que esfregar com sabão depois...
Minha mãe ficava tensa com medo de que a gente destru-
ísse o precioso sofá dela. O que ela não imaginava era que o
pior estava por vir: um dia, minha mãe estava lá toda feliz,
cantando que só ela mesma e passando paninho no sofá. Passa
de cá, passa de lá. Susto! Ela viu aquilo. A visão que mudaria
tudo. Lá estava ela, bem pequenininha, era só o começo, mas
estava lá: uma rachadura, quase invisível, mas estava lá. Foi
um dia de tristeza. Minha mãe entrou em desespero. Colocou
13Viver não é preciso
um pouco de supercola. O plástico ressecou e a rachadura au-
mentou, ela ficou de cabelo em pé.
– O que é que eu vou fazer agora? Meu sofazinho tão boni-
tinho...
– Bonitinho ele num é não...
– Tão macio e fofinho – ela continuou.
– Ah, isso ele é mesmo – concordei.
– Agora tá rachando! É terrível! Tô arrasada!
Arrasada ela estava mesmo, mas não havia nada que se
pudesse fazer. Dia após dia, a rachadura só aumentava. Uma
tragédia se anunciava na minha casa.
Minha mãe aproveitou a situação pra mostrar todo seu ta-
lento dramático. Limpava a casa, tirava o pó, mas se recusava
a olhar para o sofá. Dizia que era muita dor. Não sei onde,
pois a rachadura era no objeto e não nela. De vez em quando,
ela ficava parada olhando para ele. Acho que ela esperava um
milagre, ou coisa parecida. Mas o milagre não veio.
Os dias se passaram e eu achei que minha tinha se tocado
de que não tinha solução. Então, numa sexta-feira, depois da
aula, cheguei em casa e vi minha mãe toda sorridente. Achei
que meu pai tinha comprado outro sofá.
Corri para sala para ver o novo objeto, mas só vi o velho e
bom sofá verde. No entanto havia algo diferente. Um tecido.
Minha mãe havia jogado uma espécie de forro sobre o sofá.
– Viu só? Num ficou lindo? Agora ninguém vai notar que
tá rachado!
Olhei para o forro que imitava pele de onça.
– Lindo? É estranho!
14 Aharom Avelino
– Eu amei essa estampa de oncinha – disse minha mãe
– acho até que vou mudar a decoração da sala para combi-
nar com ela. Primeiro quero trocar o tapete, depois, acho que
posso mudar essas cortinas também...
E assim, começou tudo outra vez...
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