walcemir medeiros - seminários - trabalho 2
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Mestrado em Direito das Empresas
A tributação autónoma no âmbito do IRC
Parte I - Teoria e noções
Walcemir de Azevedo de Medeiros
Trabalho apresentado na disciplina
“Seminários” do Mestrado em Direito das
Empresas pelo ISCTE - Instituto
Universitário de Lisboa, ministrada pelo
Professor Doutor Manuel António Pita.
Fevereiro, 2015
INTRODUÇÃO...................................................................................................................1
I - TEORIA E NOÇÕES......................................................................................................3
I.1 - A NORMA JURÍDICA.................................................................................................................................3
I.1.1 - A lei natural................................................................................................................................4
I.1.2 - A lei cultural................................................................................................................................5
I.1.2.1 - A lei cultural moral...............................................................................................................................6
I.1.2.2 - A lei cultural “norma jurídica”..............................................................................................................6
I.1.2.3 - A norma jurídica em sua estrutura mínima..........................................................................................7
I.1.2.3.1 - O antecedente normativo: o fato jurídico...................................................................................9
I.1.2.3.2 – O consequente normativo: a relação jurídica...........................................................................10
I.1.2.3.3 – A norma jurídica recomposta....................................................................................................11
I.1.2.3 – A norma jurídica tributária................................................................................................................12
I.2 - O TRIBUTO..........................................................................................................................................12
I.3 - A REGRA-MATRIZ DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA..............................................................................................17
I.3.1 – A decomposição do antecedente normativo............................................................................18
I.3.1.1 – O critério material.............................................................................................................................18
I.3.1.2 – O critério espacial.............................................................................................................................18
I.3.1.3 – O critério temporal............................................................................................................................18
I.3.2 – A decomposição do consequente normativo............................................................................19
I.3.2.1 – O critério pessoal..............................................................................................................................19
I.3.2.2 – O critério quantitativo.......................................................................................................................19
I.3.3 – A recomposição da regra-matriz de incidência tributária........................................................20
CONCLUSÕES.................................................................................................................21
REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO................................................................................22
Introdução
A carga fiscal em Portugal passa dos 35% do PIB. De toda a receita fiscal, pouco mais de 13%
provém do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas - IRC. Neste início de trabalho,
ainda não foi possível conhecer qual é a participação percentual, nessa receita, do valor
arrecadado a título de tributação autónoma, prevista no artigo 88 do Código do IRC. Chamam a
atenção, entretanto, os elevados percentuais ali aplicados, nomeadamente a taxação de 50% ou
70% sobre as despesas não documentadas, conforme nº 1 e nº 2 daquele dispositivo, o que
sugere que sejam representativas em relação ao encargo fiscal das sociedades. E tal relevância
económica, associada à indefinição da base tributária e da incerteza sobre a natureza jurídica
dessa cobrança, justifica a investigação da Tributação Autónoma no âmbito do Mestrado em
Direito das Empresas.
Não obstante tenha escopo bem definido, que é o de prevenção antielisiva, a Tributação
Autónoma possui natureza confusa e base tributária indefinida: suas várias expressões são
instituídas por meio de lei que regulamenta imposto sobre rendimento, todavia, ora parecem
taxar o consumo; ora parecem ser empregadas como sanção pela prática de ato ilícito.
Sob o ponto de vista do contribuinte, o tributo é, ao mesmo tempo, importante
constrangimento ao desenvolvimento da livre iniciativa, e nem sempre justa transferência
compulsiva de riqueza das famílias e empresas para o Estado. Por essa razão, para que se
ofereça a necessária segurança jurídica ao processo de arrecadação tributária, a norma que
define a incidência tributária deve ter precisa o suficiente para revelar de modo claro a natureza
da exação e sua base tributável e evitar constrangimento indevido à livre iniciativa, nem
indevida transferência de recursos de empresas e famílias para o Estado, mesmo porque a livre
iniciativa e a propriedade privada são direitos econômicos garantidos pela Constituição da
República.
A presente investigação possui como premissas, portanto, a indefinição da base tributária
e a confusão acerca da natureza das expressões da Tributação Autónoma em sede de IRC.
Pretende-se começar o desenvolvimento a partir de abordagem teórica, com oferecimento
de noções de norma jurídica, de tributo, e com a apresentação da regra-matriz de incidência
tributária como instrumento de análise. O termo tributo será aqui usado como gênero que
compreende espécies tributárias, consoante sugere o artigo 3º da Lei Geral Tributária. Na
sequência, haverá delimitação do objeto de estudo, seguido de apresentação de noção e
histórico, compreendendo criação, propósitos iniciais e posteriores modificações da Tributação
Autónoma em Portugal. Aqui também haverá exemplificação de casos de instituição de
tributação autónoma em outros Estados, em sede de direito comparado.
Pretende-se, mais à frente, classificar a espécie tributária tributação autónoma (com suas
várias expressões) dentro do gênero tributo. Como critérios de classificação dos tributos em
geral, com vistas à diferenciação da tributação autónoma das demais espécies tributárias serão
adotados (i) a capacidade contributiva, (ii) a vinculação a prestação concreta de serviço
público, (iii) a vinculação à utilização de um bem do domínio público, (iv) a vinculação à
remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares, (v) a vinculação a mais-
valias de bens do sujeito passivo em resultado de obras públicas ou serviços públicos, (vi) a
vinculação a desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade pelo
sujeito passivo (LGT, artigo 4º) e (vi) a vinculação entre a materialidade da hipótese de
incidência a uma atividade estatal referida ao sujeito passivo.1
Serão seguidamente delineadas as expressões da tributação autónoma na legislação
portuguesa, e procedida à classificação dessas expressões segundo a função e a finalidade de
cada uma delas. A partir dessa classificação, será determinada a base econômica sobre a qual
incidem essas espécies tributárias, tendo como guia o artigo 104 da Constituição da República
Portuguesa – CRP, e o artigo 3º da Lei Geral Tributária – LGT, aprovada pelo Decreto-Lei n.º
398/98, de 17 de dezembro.
A partir da determinação das bases econômicas, será construída a regra-matriz de
incidência tributária2 para cada uma das diferentes expressões da Tributação Autónoma
previstas no artigo 88 do Código do IRC. A regra-matriz de incidência tributária, na forma
proposta por Paulo de Barros Carvalho, é um método de sistematização analítica da norma
jurídica tributária, em que o termo norma jurídica é utilizado no modelo idealizado por Hans
Kelsen,3 segundo a qual os textos normativos das leis, dos decretos, das portarias, podem ser
reduzidos à estrutura mínima composta de duas partes: a hipótese ou antecedente ou descritor e
o consequente ou prescritor. Será demonstrado que essas partes – antecedente e consequente –
podem, por sua vez, ser decompostos em critérios, de modo que, no descritor ou antecedente,
1 Gama, 2003: 116.2 Carvalho, 2008: 146.3 Kelsen, 1986: 68.
sejam identificados os critérios material, espacial e temporal, ao passo que no prescritor, os
critérios pessoal e quantitativo.
Ao fim, haverá explanação a respeito de como a jurisprudência e a doutrina vêm tratando
a tributação autónoma em Portugal. O termo jurisprudência aqui será tratado em seu sentido
lato, de modo a abranger também as decisões de tribunais administrativos.
Com as informações obtidas a partir da classificação dos tributos, determinação da base
econômica das espécies tributárias e elaboração da regra-matriz de incidência tributária das
diferentes expressões da Tributação Autónoma, estas estarão perfeitamente identificadas e
caracterizadas, de modo que seja possível descrever com segurança sua natureza jurídica e
funcional.
I - Teoria e noções
I.1 - A norma jurídica
Grosso modo, pode-se dizer que tudo no mundo decorre de um nexo qualquer de causa e efeito.
Sempre que se analisa um determinado dado “y” de um objeto de observação qualquer,
constata-se que ele é conseqüência de outro dado “x”, que por sua vez lhe foi a causa. Em
outras palavras, diz-se que “x” IMPLICA “y”.
Sejam, por exemplo, as cinco assertivas abaixo:
1. som no ar IMPLICA propagação à razão de 340 m/s
2. água a 100ºc IMPLICA vapor
3. esbarrão IMPLICA pedido de desculpas
4. sociedade anónima IMPLICA contrato social com indicação do número de ações
5. rendimento da pessoa coletiva IMPLICA IRC
Tais relações de implicação entre a causa e o efeito decorrem sempre de alguma lei, no
sentido mais amplo que a palavra lei possa ter, assim definido por MONTESQUIEU:
“As leis, em seu significado mais extenso, são as relações
necessárias que derivam da natureza das coisas; e, neste
sentido, todos os seres têm suas leis; a Divindade possui
suas leis, o mundo material possui suas leis, as inteligências
superiores ao homem possuem suas leis, os animais
possuem suas leis, o homem possui suas leis. [...] Existe,
portanto, uma razão primitiva; e as leis são as relações que
se encontram entre ela e os diferentes seres, e as relações
destes diferentes seres entre si”.4
As leis ou relações de implicação não são todas da mesma espécie. Há duas ordens de
relações, segundo Miguel Reale5, cada uma delas correspondente a uma das duas espécies de
realidade: a realidade natural e a realidade cultural, essa última também chamada humana ou
histórica. Para esse autor, as relações naturais obedecem às leis físico-matemáticas, enquanto
que as relações culturais obedecem às leis culturais.
I.1.1 - A lei natural
Recorde-se as duas primeiras assertivas:
1. som no ar IMPLICA propagação à razão de 340 m/s
2. água a 100ºc IMPLICA vapor
Pode-se afirmar com segurança que um grito no ar será ouvido exatamente após um
segundo por outra pessoa que esteja a 340 metros de distância; e que a água entra em ebulição
quando aquecida a cem graus Celsius, eis que a experimentação científica oferece certeza sobre
esses fenômenos. Nesses dois primeiros exemplos, logicamente observadas as condições ideais
de temperatura e pressão, o antecedente da lei natural necessariamente implica o conseqüente.
As leis naturais são, assim, leis indicativas: o antecedente indica o consequente. Antecedente e
consequente são ligados por nexo de causalidade.6 São leis empiricamente verificáveis, isto é,
podem ser produzidas e comprovadas experimentalmente. São leis físico-naturais, estudadas
pelos cientistas em geral. São, enfim, leis de natureza ôntica, do âmbito do ser, que podem ser
assim ser resumidas:
dado o antecedente, é o conseqüente
4 Secondat, Charles-Louis, Livro I (2000: 8)5 Reale, 2003: 24.6 Kelsen, 1999: 86.
e
dado água a 100ºC, é a ebulição
I.1.2 - A lei cultural
Sejam agora os três últimos exemplos:
3. esbarrão IMPLICA pedido de desculpas
4. sociedade anónima IMPLICA contrato social com indicação do número de ações
5. rendimento da pessoa coletiva IMPLICA IRC
Essas três leis são bem diferentes das duas primeiras. Pode ser que haja esbarrão que não
seja seguido do pedido de desculpas. É possível existir estatuto de sociedade anónima em que
falte o número de ações. E a sociedade comercial altamente lucrativa pode eventualmente
deixar de pagar o IRC devido. Dado o antecedente, o conseqüente tanto pode ocorrer, como
também pode ser que não ocorra. As leis 3, 4 e 5 não podem ser, portanto, deduzidas a partir de
observação empírica. Não se consegue provocar a ocorrência de seu consequente em
laboratório. São leis chamadas culturais, que são aquelas convencionalmente estabelecidas pelo
homem, com o intuito de viabilizar a vida em grupo. As leis culturais são leis imperativas: o
antecedente impõe o consequente. Antecedente e consequente são ligados por nexo de
imputação. São leis do âmbito do dever-ser, ou leis de natureza deôntica, que podem ser
representadas da seguinte forma:
dado o antecedente, deve ser o conseqüente
Precisa-se algum cuidado com essa terminologia. Normalmente, em comunicação
coloquial, costuma-se utilizar a locução verbal dever ser com o sentido de indicar
probabilidade. É trivial ouvir-se, por exemplo, “o Benfica deve ser campeão este ano”. Não é
esse, todavia, o sentido aqui utilizado. Aqui em nosso estudo, o dever-ser é usado para conectar
o antecedente ao conseqüente de uma relação, e tem como finalidade prescrever conduta:
dado o esbarrão, deve ser o pedido de desculpas
e
dado o rendimento, deve ser o IRC
Essas leis culturais – pois, como já visto, são convenções criadas pelo homem – são
denominadas regras ou normas, pois prescrevem, em seu conseqüente, determinado
comportamento de um ser humano frente a outro. Na lição de Miguel Reale, “Quando, pois,
uma lei cultural envolve uma tomada de posição perante a realidade, implicando o
reconhecimento da obrigatoriedade de um comportamento, temos propriamente o que se
denomina regra ou norma”. 7
As leis ou normas culturais também não são todas semelhantes. Dentre outros tipos,
merecem destaque a norma cultural moral e a norma cultural jurídica.
I.1.2.1 - A lei cultural moral
Isole-se, dessa feita, o terceiro exemplo:
3. esbarrão IMPLICA pedido de desculpas
Essa lei é diferente das duas seguintes. Isso porque, se descumprida, o Estado não
intervém a fim de obrigar a pessoa que provocou o esbarrão a pedir desculpas. Não há
coatividade por parte do Estado. Trata-se de uma norma cultural do tipo moral.
I.1.2.2 - A lei cultural “norma jurídica”
Considere-se, enfim, os dois últimos exemplos dados:
4. sociedade anónima IMPLICA contrato social com indicação do número de ações
5. rendimento da pessoa coletiva IMPLICA IRC
Nesses últimos dois exemplos, já existe coatividade estatal, isto é, o Estado intervém no
sentido de que, em ocorrendo o fato previsto no antecedente normativo, ocorra também o
prescrito no consequente: o Estado intervém para que sejam supridas a falta de indicação do
número de ações e também a falta de pagamento do imposto. Trata-se, aqui, de um outro tipo
de norma cultural, que é a norma jurídica. Dentre outras diferenças em relação à norma moral,
destaca-se a já mencionada coatividade estatal, que é o poder-dever de o Estado, por meio de
7 Reale, 2003: 9.
seu braço judicial, usar a força para fazer com que se cumpra o consequente normativo. Não há
coatividade estatal na norma moral, só na norma jurídica.
Sugeriu-se até aqui o uso dos termos lei e norma jurídica como sinônimos. De fato, a lei,
o decreto, a portaria podem ser considerados como sendo norma jurídica latu sensu. Neste
trabalho, porém, o termo norma jurídica será tomado em sentido estrito, como se explicará. Em
geral, normas jurídicas, assim tomadas em seu sentido largo, que são os textos das leis, dos
decretos, das portarias, não possuem estruturas simples como nos exemplos aqui mencionados.
Ao contrário, os enunciados das leis, dos decretos, costumam ter uma complexidade tal que
demandam leitura mais acurada, por profissionais habilitados8, a fim de desvendar-lhe o sentido
e o alcance. Porém, uma vez feito isso, é sempre possível, a partir do conjunto integrado dos
enunciados normativos que compõem o sistema jurídico, deles extrair normas jurídicas em
sentido estrito, assim formadas em sua estrutura mínima, compostas de antecedente e
consequente, como algo semelhante aos dois últimos exemplos utilizados, que são os casos do
estatuto da SA e do IRC.
I.1.2.3 - A norma jurídica em sua estrutura mínima
Em sua estrutura formal, todo o enunciado normativo pode ser reduzido a uma fórmula
genérica em que é retirada a significação do texto da lei, do decreto, da portaria, e essa
significação é reduzida em sua forma até que seja reformulada em um corpo mínimo, composto
por um antecedente ligado a um consequente normativo.9 O texto em si do enunciado da lei ou
do decreto pode ser da maior complexidade, formado pelas mais diversas palavras
(heterogeneidade semântica), mas a estrutura mínima da norma é sempre a mesma: dado o
antecedente, deve ser o consequente (homogeneidade sintática).10 Paulo de Barros Carvalho
denomina essas estruturas mínimas de “expressões irredutíveis de manifestação do deontico”.11
E Hans Kelsen, idealizador da sistematização da norma jurídica segundo sua estrutura,
ensina também que não há norma jurídica sem sanção. Para o autor, a norma jurídica (estrito
senso) geral ou completa é composta de duas partes. A primeira delas estabelece como devida
uma conduta, a partir da verificação do fato previsto no antecedente normativo, o que
corresponde aos exemplos já vistos. A segunda parte, com estrutura idêntica, fixa a sanção
cabível, aplicada pelo órgão judicial competente, para o caso de descumprimento da conduta
8 Carvalho, 2007: 4.9 Vilanova, 1997: 90.10 Santi, 2001: 38.011 Carvalho, 2008: 20.
estabelecida pela primeira.12 Kelsen chamou de norma secundária a primeira parte, e de norma
primária a segunda parte.13
Adianta-se que, neste trabalho, o conceito de norma jurídica será tomado assim, em seu
sentido estreito, como sendo a significação dos enunciados normativos que compõem todo o
complexo do direito positivo posto, como textos de lei, de decreto, de outras normas jurídicas
em sentido largo, enfim, significação essa reconstruída com formato de expressão mínima,
composta apenas por antecedente e consequente normativos, mas suficiente para, à custa de
imposição de sanções, prescrever condutas condicionadas à ocorrência de fatos jurídicos.
Um exemplo de redução da norma em sentido lato à norma em sentido estrito pode ser
dado em relação às normas em sentido largo expressas nos textos da Constituição da República,
artigo 24, n.º 1, segundo o qual “A vida é inviolável” e do Código Penal, artigo 131, que tem a
redação: “Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos.” Como
significação desses enunciados, tem-se, como norma secundária, “dado o fato de existir vida
humana, deve ser proibido suprimi-la”, e como norma primária, “dado o fato de uma pessoa
matar outra, deve ser a prisão do homicida por 8 a 16 anos”. Trata-se de um exemplo bastante
simplório. Útil, todavia, na medida em que, ao tomar enunciados normativos da Constituição e
do Código Penal para redução a uma só norma jurídica secundária, revela este exemplo que,
para construção da norma jurídica em sentido estrito, deve-se sempre levar em conta todo o
complexo coordenado de normas, isto é, todo o ordenamento jurídico,14 e não só um diploma
formal, a Constituição, uma lei, um decreto.
Dentre outras classificações possíveis, podem as normas – primárias e secundárias – ser
divididas quanto ao quadro dos destinatários definidos no consequente, e também quanto ao
modo como se descreve o fato no antecedente normativo. Quanto aos destinatários, pode ser
geral ou individual; geral se é destinada a um conjunto de sujeitos indeterminados, e individual
se é dirigida a um só indivíduo ou grupo determinado de sujeitos. Quanto ao fato descrito no
antecedente, pode ser abstrata ou concreta; será abstrata ao referir-se a uma hipótese futura, a
um evento de possível ocorrência. Será concreta se trouxer a descrição de um fato determinado
e já ocorrido.15 Interessa particularmente a este estudo a norma geral e abstrata, que é dirigida a
12 Kelsen, 1986: 68.13 Alguns autores entendem que, em obra postumamente revelada, Kelsen teria mudado de opinião a
respeito dessa denominação, de modo que a norma que estabelece a conduta fosse denominada primária, e a que fixa a sanção fosse a secundária. Como não há consenso a respeito, prevalecerá, neste trabalho, a noção ofertada na obra Teoria geral das normas, ou seja, primária é a norma sancionadora, secundária é a norma estabelecedora da conduta.
14 Bobbio, 1999: 20.15 Carvalho, 2004: 35.
generalidade indeterminada de sujeitos e refere-se a uma hipótese futura, de possível
ocorrência, e também a norma individual e concreta, que é dirigida a um sujeito ou conjunto
determinado de sujeitos, e narra no antecedente um fato já ocorrido. Um exemplo de norma
geral e abstrata pode ser extraído do enunciado do artigo 8º, n.º 7, do Regime Geral das
Infrações Tributárias – RGDIT, instituído pela Lei n.º 15/2001, de 5 de junho, que atribui
responsabilidade solidária por multas e coimas para quem colaborar dolosamente para a prática
de infrações tributárias. E um exemplo de norma jurídica individual e concreta é o acórdão
proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, que manteve a condenação do arguído pelo
pagamento de multa, por ter dolosamente colaborado na prática de crime de abuso de confiança
fiscal.16
A partir dessas noções, pode-se avançar para a análise da estrutura da norma jurídica, do
seu antecedente normativo, que a doutrina convencionou chamar de previsão e do consequente
normativo, denominado estatuição pela doutrina.17 A previsão descreve um fato de possível
ocorrência, no caso da norma abstrata; e a estatuição estabelece uma relação jurídica entre
sujeitos.
I.1.2.3.1 - O antecedente normativo: o fato jurídico
O homem não consegue viver bem no isolamento, necessita de se integrar à sociedade. Disso
resulta um infinito entrelaçamento, um número sem fim de relações interpessoais. Cada uma
dessas relações – sua criação, modificação ou extinção – deriva sempre de um fato
determinado, razão pela qual Pontes de Miranda chega a dizer que “O mundo não é mais do
que o total dos fatos...”. 18
Por vezes, do fato decorrem efeitos jurídicos, casos em que, por exemplo, há
transformações patrimoniais, mudanças de estado civil, transferência de bens, criação,
modificação e extinção de direitos e obrigações. Quando determinado fato tem efeito jurídico,
ele se denomina fato jurídico. Efeitos jurídicos decorrem sempre de fatos jurídicos. Inexiste
efeito jurídico que não tenha tido como origem um fato jurídico. Segundo Paulo de Barros
Carvalho “É incontestável a importância que os fatos jurídicos assumem, no quadro
sistemático do direito positivo, pois, sem eles, jamais apareceriam direitos e deveres,
inexistindo possibilidade de regular a convivência dos homens, no seio da comunidade”. 19
16 Ac. TRP de 06/12/2012, Rel. Mouraz Lopes.17 Pita, 2011: 49.18 Miranda, 1999: 51.19 Carvalho, 2002: 279.
Mas para que um fato seja considerado um fato jurídico, vale dizer, para que um fato
tenha efeitos jurídicos e crie, extinga ou modifique direitos subjetivos, é absolutamente
necessário que ele se enquadre perfeitamente em uma hipótese previamente descrita na
previsão, ou termo antecedente de norma jurídica. Segundo Lourival Vilanova, “O fato se
torna jurídico porque ingressa no universo do direito através da porta aberta que é a
hipótese”.20 O fato jurídico é, portanto, o conteúdo do antecedente normativo ou previsão.
I.1.2.3.2 – O consequente normativo: a relação jurídica
Verificada a ocorrência do fato previsto no antecedente normativo, estabelece-se, no
consequente, uma relação jurídica de natureza deôntica entre o sujeito S1 e o sujeito S2,21 de
modo que a um deles fica obrigado, proibido ou é facultada determinada em relação ao outro.
Isso porque a proibição, a obrigação e a permissão são os três modais deônticos
possíveis.22Todas as normas jurídicas existentes transmitem um desses três comandos. Não há
uma quarta opção de modalidade deôntica.23
I.1.2.3.3 – A norma jurídica recomposta
A norma jurídica secundária (denominação de Kensen) pode, pois, assim ser graficamente
representada:
20 Vilanova, 1997: 89.21 Vilanova, 1997: 75.22 Bobbio, 1999: 31.23 Vilanova, 1997: 216.
Consequente normativo
Antecedente normativo
(Fato)
S1 S2
Fig. 1 – Norma jurídica secundária
Uma vez não satisfeita a relação estabelecida pelo consequente da norma secundária, ou
seja, descumprida a proibição ou obrigação, ou não observada a faculdade, dá-se a incidência
da norma jurídica primária (terminologia de Kelsen), de semelhante estrutura, que é aquela que
estabelece a sanção ao sujeito infrator:
Fig. 2 – Norma jurídica primária
I.1.2.3 – A norma jurídica tributária
Assim, com base no que até aqui já se viu, é possível deduzir com segurança que a norma
jurídica tributária é aquela norma jurídica que contém no antecedente normativo a previsão do
fato jurídico tributário e, no consequente, o estabelecimento de relação jurídica entre o sujeito
ativo e o sujeito passivo da relação tributária, com estatuição de obrigação da prestação do
tributo pelo sujeito passivo ao sujeito ativo, mediante coatividade, que é a imposição de sanção
pelo Estado em caso de descumprimento da obrigação pelo sujeito passivo.
Como o objeto de estudo, a tributação autónoma, é, em tese, uma espécie tributária, é de
interesse análise mais demorada da norma jurídica tributária, com partição de seus antecedente
e consequente normativos, o que será feito mais adiante, com auxílio da chamada regra-matriz
de incidência tributária.
O - P - F
Consequente normativo(sanção)
Antecedente normativo
(Descumprimento da norma secundária)
O - P - F
S1 S2
I.2 - O tributo
Para a sociedade, é mais fácil viver organizadamente do que de forma desorganizada. É mais
prático, mais barato, e a maior parte das despesas é dividida por todos. E a história comprovou
que o Estado é a melhor forma de organizar a sociedade: se não há Estado, não há sociedade
eficientemente organizada.
Essa organização, obviamente, tem custos. E o Estado precisa oferecer serviços a fim de
propiciar aos cidadãos as condições necessárias à sobrevivência e ao exercício dos seus direitos
fundamentais. E o Estado também precisa organizar-se, necessidade essa que também consome
recursos. Em suma: Estado requer financiamento. Esse financiamento é obtido na forma de
receita pública: se não há receita pública, não há Estado24.
As classes de receitas públicas mais relevantes são as patrimoniais, as creditícias e as
tributárias. As patrimoniais provêm da exploração ou do usufruto do património do próprio
Estado. As receitas creditícias derivam da remuneração de capital nas operações de crédito em
que o Estado ocupa a posição de credor. A receita pública tributária é a que provém dos tributos
cobrados pelo Estado aos contribuintes. Enquanto as receitas públicas patrimoniais e creditícias
são originárias, isto é, originam-se da riqueza do Estado, a receita pública tributária é derivada,
pois incide sobre a manifestação de riqueza das pessoas singulares e coletivas.25
A origem e composição da receita pública dependem do modelo de financiamento do
Estado. Até o primeiro terço do século XIX, viviam-se nos chamados Estados patrimoniais.
Sociedade e Estado eram organizados em forma de estamentos. Determinadas classes sociais
tinham mais privilégios em detrimento de outras. O Estado patrimonial detinha a maior parte
dos meios de produção; à época, basicamente terra. O financiamento das ações estatais
originavam-se, em sua maior parte, do património do próprio Estado. Mas por volta de 1820,
1830, foram bem-sucedidas algumas revoluções políticas, nomeadamente em Estados europeus,
que foram chamadas de revoluções liberais. Estados absolutistas deram lugar ao Estado liberal.
O liberalismo apregoava liberdade e valorização do indivíduo, além de menor participação do
Estado na economia. Com isso, patrimônios estatais, antes principais fontes de receitas
públicas, foram sendo transferidos à iniciativa privada. A partir daí, as receitas públicas
passaram a ser maioritariamente tributárias, ou seja, provenientes de tributos pagos pelos
24 Guimarães & Catarino, 2014: 16.25 Vasquez, 2011: 80.
súbditos "segundo os seus haveres".26 A maior parcela da receita pública passou a ser, portanto,
receita tributária, quer dizer, proveniente de tributos. A esse novo modelo de financiamento
estatal, que funciona até os dias de hoje nas economias de mercado, convencionou-se
denominar Estado fiscal, assim entendido como aquele “cujo suporte financeiro seja
constituído pela figura dos impostos”.27
Este estudo tem como objeto a tributação autónoma de que trata o artigo 88 do Código
do IRC. Como objeto de estudo que é, precisa ser definido, isolado, classificado, dividido se
possível, e analisado. Não há dúvida de que o produto dessa tributação autónoma é receita
pública, pois é resultado de cumprimento de obrigação patrimonial das empresas para com o
Estado, para que este cumpra suas funções. Não se trata de receita pública de origem
patrimonial, pois não provém do patrimônio estatal. Nem de origem creditícia, pois não decorre
de qualquer relação de crédito. É, portanto, como o próprio nome sugere, receita de origem
tributária: incide mesmo sobre o patrimônio das pessoas coletivas. Logo, tributação autónoma é
uma espécie de tributo. A princípio, neste início de investigação, pode-se dizer, como hipótese
preliminar, que este tributo chamado tributação autónoma não parece ser um imposto. Pelo
menos o legislador optou por não chamá-lo de imposto. É do género tributo, mas sua espécie
carece ainda de identificação mais precisa.
A palavra tributo possui várias aceções. Falávamos da idade média e do surgimento dos
Estados liberais a partir do século XIX. O termo tributo, porém, terá sido usado desde os
primórdios da civilização, com significados outros além de meio de financiamento do Estado.
O vocábulo tributo já foi utilizado como sinónimo de oferenda aos deuses, de presente aos
líderes, em troca de proteção, de entrega de bens ao vencedor da guerra, como despojo, ou
mesmo com o significado de homenagem. Atualmente, não é raro encontrar-se a palavra tributo
como sinónimo de imposto ou taxa.
Neste trabalho, porém, o vocábulo tributo será utilizado como meio de financiamento
estatal, conforme significado atribuído pela legislação portuguesa e de acordo com o
entendimento da doutrina majoritária. E a maior parte da doutrina28 considera tributo como
gênero do qual são espécies o imposto, a taxa e as contribuições financeiras, noção esta que se
assemelha com aquela contida na LGT, conforme artigo 3º, n.º 2, assim escrito:
Artigo 3.º 26 Guimarães & Catarino, 2014: 17.27 Nabais, 2013: 26.28 Nesse sentido, Américo Brás Carlos, (2014, Impostos - teoria geral, pág. 35) cita Soarez Martinez,
Alberto Xavier e Sá Gomes.
Classificação dos tributos
[…]
2 - Os tributos compreendem os impostos, incluindo os
aduaneiros e especiais, e outras espécies tributárias criadas
por lei, designadamente as taxas e demais contribuições
financeiras a favor de entidades públicas.
Sobre a redação desse enunciado normativo, permite-se desde já sejam antecipadas
algumas reflexões, que serão úteis no seguimento deste ensaio. Há aspetos positivo e negativo.
Como aspeto positivo, nomeadamente em relação à atratividade por investimentos, há a
instituição do princípio da legalidade para criação de tributos em sua generalidade, eis que CRP
só se ocupara em prescrever tal princípio aos impostos em especial.29 Como aspetos negativos,
nomeadamente em relação à atratividade por investimentos, pode-se mencionar a indefinição
da abrangência do conceito de tributo, ao admitir a LGT que, além de impostos, a noção de
tributo compreenda também “outras espécies tributárias”. Então, embora logo a seguir aquele
enunciado faça menção “designadamente” às taxas e demais contribuições financeiras a favor
de entidades públicas, dúvidas não há sobre a possibilidade de criação de novas espécies
tributárias a qualquer altura. E também não se pode deixar de anotar alguma dose de tautologia
na lei, segundo a qual “Os tributos compreendem os impostos, […] e outras espécies tributárias
[…]”. Ora, tal assertiva só seria plausível se já existisse definição legal do que seja tributo, o
que, todavia, não existe na LGT, nem na CRP.
Ausente na legislação, a noção de tributo também parece não ter merecido maior
importância na doutrina portuguesa. Em seu Manual de Direito Fiscal, Sérgio Vasques limitou-
se a estabelecer algumas diferenças entre as três fontes mais relevantes da receita pública, quais
sejam a patrimonial, a creditícia e a tributária.30 Em obra com o mesmo título, Glória Teixeira
já começa sua exposição a partir dos dois tipos de impostos, impostos sobre o consumo e
impostos sobre o rendimento, sobre os quais, segundo a autora, assenta-se fundamentalmente o
sistema fiscal português. Em detrimento às figuras tributárias de “diferentes tipos”, que seriam
as taxas, licenças e contribuições, Teixeira dá esse destaque aos impostos em razão de seu
caráter unilateral e vinculativo, termo que usa como sinónimo de obrigatório.31 Nuno Sá
Gomes, em seu Manual de Direito Fiscal, explica que tratará Direito Tributário e Direito Fiscal
29 CRP, art, 103, n.º 2 e 3.30 Vasques, 2011: 80.31 Teixeira, 2012: 33 e 34.
como sinônimos, eis que se ocupará apenas dos impostos, e não das demais espécies
tributárias.32 O Manual de Direito Fiscal de Saldanha Sanches, a partir de um capítulo intitulado
“Sistema constitucional e classificação dos impostos”, o autor discorre sobre a noção de
imposto e das outras espécies tributárias, taxa, contribuições, sem, no entanto, de maneira
semelhante às outras obras, oferecer qualquer noção do que seja o gênero tributo.33 João
Ricardo Catarino, em Lições de Fiscalidade, parte também da definição das espécies
tributárias, imposto, taxa, contribuições, tarifa pública, sem prévia definição de tributo.34 Na
mesma obra, Vasco Valdez reconhece que impostos, taxas, contribuições especiais e receitas
parafiscais são espécies do gênero tributo, mas, igualmente, não define tributo, somente as
espécies tributárias.35 Diferentemente, o Manual de Direito Fiscal de autoria de Alberto Xavier
conceitua tributo como sendo “prestação patrimonial estabelecida por lei a favor de uma
entidade que tem a seu cargo o exercício de funções públicas, com o fim imediato de obter
meios destinados ao seu financiamento”.36 Tal noção, contudo, peca por alguma imprecisão.
Aponta um fim imediato do tributo, o que sugere que haveria também um fim mediato sem, no
entanto, indicá-lo. Compromete também esse conceito elaborado por Xavier a ausência de
menção a outros importantes fins do tributo, como por exemplo a da diminuição das
desigualdades, que é a principal finalidade do imposto sobre o rendimento pessoal, consoante
artigo 104, n.º 1, da Constituição da República.
Mas essa ausência, na legislação portuguesa, de uma definição legal do que seja tributo
enquanto gênero das espécies tributárias, aliada à aparente pouca importância pela doutrina em
relação à necessidade de se formular um conceito próprio para tributo, tem uma explicação.
Segundo Casalta Nabais, que também não oferta noção de tributo, a doutrina procura sempre
isolar um ramo do direito homogêneo quanto ao objeto e específico quanto ao regime jurídico,
que estude as receitas públicas coativas contributivas. Entende o autor que uma parte da
doutrina, nomeadamente a da Itália, Espanha e Brasil, escolheu o ramo do Direito Tributário,
que cuida da generalidade dessas receitas públicas. Por essa razão houve nesses países alguma
preocupação na criação do conceito de tributo. Outra parte da doutrina, à qual Portugal se filia
conjuntamente à França, Alemanha, Áustria, Suíça, etc., isolou, com aquela finalidade, o
Direito Fiscal, que teria como objeto o que seria o mais importante segmento dentre aquelas
receitas, que seria a receita pública coativa contributiva unilateral, ou seja, o imposto.37 Assim,
32 Gomes, 2003: 17.33 Sanches, 1998: 16 e ss.34 Catarino e Guimarães, 2014: 23.35 Catarino e Guimarães, 2014: 182.36 Xavier, 1974: 35.37 Nabais, 2014: 34.
a eleição do Direito Fiscal e o foco na parcela da receita pública proveniente dos impostos
justificaria, em tese, segundo Nabais, a carência de estudo mais aprofundado acerca do instituto
tributo como gênero das receitas públicas de origem tributária.
Necessário se faz, portanto, que aqui se formule uma noção de tributo, prévia que seja,
aproximada que seja, mas que atenda minimamente a sistematização indispensável a um início
de trabalho académico. Pelo que até aqui já foi visto, e com base nos preceitos fundamentais da
legislação aplicável, pode-se afirmar que o tributo é: (i) produto da receita pública tributária,
(ii) objeto da obrigação instituída pela relação jurídico-tributária criada em lei (LGT, artigo 3º,
n.º 2) estabelecida entre a administração tributária, agindo como tal, e as pessoas singulares e
colectivas (LGT, artigo 1º, n.º 2), (iii) com vistas à satisfação das necessidades financeiras do
Estado e de outras entidades públicas e à promoção da justiça social (LGT, 5º, n.º 1).
Essa breve noção permite confirmar afirmativa já antecipada, segundo a qual o objeto
deste estudo, que é a tributação autónoma prevista no artigo 88 do Código do IRC, é realmente
um tributo, eis que compõe a receita tributária, objeto da relação jurídico-tributária instituída
em lei e estabelecida entre a administração tributária e a pessoa coletiva contribuinte. Continua
não sendo claro, todavia, qual é exatamente sua espécie tributária dentre aquelas autorizadas
pela Constituição da República e previstas na Lei Geral Tributária. Com o intuito de identificar
tal espécie tributária, sua natureza jurídica, suas funções, é necessário que se faça análise das
normas jurídicas que instituíram a referida tributação autónoma em suas várias expressões,
veiculadas por meio do artigo 88 do Código do IRC. É o que se propõe fazer com o auxílio da
regra-matriz de incidência tributária, instrumento sobre o qual se discorre a seguir.
I.3 - A regra-matriz de incidência tributária
A regra-matriz de incidência tributária, ou RMIT, é um instrumento de análise idealizado por
Paulo de Barros Carvalho para estudo da norma jurídica tributária.38 Trata-se da sistematização
analítica da norma tributária geral e abstrata, decompondo-a em seu antecedente normativo, ou
previsão, e em seu consequente normativo, ou estatuição. A previsão, como já se viu, descreve
o evento que, uma vez ocorrido, estabelece a relação jurídica tributária prescrita na estatuição.
A gravidade e a importância da norma jurídica tributária decorrem de sua propriedade
ímpar de, uma vez ocorrido o fato jurídico tributário nela previsto, fazer nascer a obrigação de
que pessoas entreguem dinheiro ao Estado. Por ser fato propulsor da transferência de riquezas,
38 Carvalho, 2007: 255.
sua hipótese de incidência deve revestir-se de certos elementos, segundo Alberto Xavier,39 ou
aspetos, segundo Geraldo Ataliba,40 ou critérios, segundo Paulo de Barros Carvalho,41 que lhe
deem precisão tal que a obrigação gerada tenha exatamente os contornos e a dimensão
transmitida pelo fato jurídico efetivamente ocorrido. Precisão obtém-se mediante análise.
Necessário, pois, analisar a norma jurídica tributária. Análise pressupõe quebra, decomposição.
Mesmo a norma jurídica tributária em sentido estrito, quer-se dizer, aquela expressa em sua
estrutura mínima, pode ser decomposta. E é o que se pretende fazer, com o auxílio da RMIT:
decompor a norma tributária em critérios de caráter material, espacial, temporal, quantitativo e
pessoal, como se verá a seguir.
Como já visto, a estrutura mínima da norma tributária, como a norma jurídica em geral, é
formada de antecedente normativo ou previsão, e consequente normativo ou estatuição.
I.3.1 – A decomposição do antecedente normativo
A previsão (antecedente normativo) da norma jurídica tributária pode ser decomposta em
critérios material, espacial e temporal.
I.3.1.1 – O critério material
O critério material é aquele que pode ser considerado o núcleo do antecedente normativo. O
critério material denota qual é a ação que faz nascer o tributo. É sempre formado por um verbo
pessoal no infinitivo e seu complemento.42 O critério material é o pressuposto do tributo e é
normalmente obtido com a resposta à pergunta “o que faz surgir a obrigação?”. Como exemplo,
cita-se o critério material da regra matriz de incidência do IRC é formado pelo verbo obter e
pelo complemento rendimento.43
I.3.1.2 – O critério espacial
É o critério espacial da previsão ou antecedente normativo que delimita a área geográfica em
que a satisfação do critério material dá origem ao tributo. Pode ou não estar explicito na norma.
Caso não seja expresso, o critério espacial coincide, obrigatoriamente, com o âmbito de 39 Xavier, 1974: 247.40 Ataliba, 2000: 76.41 Carvalho, 2007: 265.42 Carvalho, 2007: 269.43 Código do IRC, art. 1º.
validade territorial da norma, isto é, com sua vigência espacial. O critério espacial é obtido com
a resposta à pergunta “onde surge a obrigação?” Um exemplo é o critério espacial da regra-
matriz de incidência do IRC para contribuintes residentes no território nacional, que é de base
mundial (word wide income).44
I.3.1.3 – O critério temporal
O critério temporal indica o momento no qual a satisfação do critério material faz nascer a
obrigação do tributo. Nos casos em que o critério material é satisfeito durante um intervalo de
tempo, entende a doutrina que deve ser tomado como o último instante desse intervalo.45 O
critério temporal pode ser definido pela resposta à pergunta “quando surge a obrigação?”. O
critério temporal da regra-matriz de incidência do IRC é o último dia do período de
tributação.46
I.3.2 – A decomposição do consequente normativo
A estatuição da norma jurídica tributária por sua vez,, pode ser decomposta em critérios pessoal
e quantitativo.
I.3.2.1 – O critério pessoal
O critério pessoal indica as pessoas que ocupam os pólos da relação jurídica tributária que se
estabelece nesse consequente normativo. São os sujeitos ativo e passivo. O sujeito ativo é o
detentor do direito subjetivo à prestação tributária. O sujeito passivo é aquele a quem incumbe
o dever jurídico de entregar o tributo. O critério pessoal pode ser identificado pela respostas às
perguntas “quem tem o direito de exigir?” e “quem tem o dever de pagar?” Por ser imposto
estadual,47 o IRC tem como sujeito ativo o Estado48, e como sujeitos passivos as pessoas
descritas no artigo 2º, n.º 1 do Código do IRC.
44 Código do IRC, art. 4º, n.º 1.45 Carvalho, 2007: 282.46 Código do IRC, art. 8, n.º 9.47 Lei Geral Tributária, art. 3º, n.º 1, alínea “b”.48 Lei Geral Tributária, art. 1º, n.º 2 c/c art. 18, n.º 1.
I.3.2.2 – O critério quantitativo
O critério quantitativo da estatuição resulta da mensuração da manifestação da riqueza a ser
tributada. É a base monetária utilizada para cálculo do valor do tributo. Assim como o critério
material é considerado o núcleo do antecedente normativo, considera-se a base monetária do
critério quantitativo como sendo o núcleo da estatuição tributária. Além de servir como
parâmetro de mensuração econômica do fato jurídico tributário, essa base monetária exerce o
importante papel de confirmar a sintonia com o critério material, que é o núcleo do antecedente
normativo, como já se disse, ou mesmo de infirmar aquele critério, se com ele houver
incompatibilidade.49 Assim, o conjunto formado pelo critério material e o critério quantitativo,
nomeadamente essa base monetária, pode ser considerado como a “impressão digital” do
tributo, eis que oferece identificação precisa da espécie tributária, inobstante o nome que lhe
tenha sido atribuído pelo legislador, isolando-a, diferenciando-a das demais. O tributo incide
sobre a manifestação de riqueza. E a riqueza se manifesta no rendimento, na propriedade e no
consumo, de modo que o critério quantitativo é sempre expressão de uma dessas três vertentes
de manifestação. O critério quantitativo pode ser indicado com a resposta à pergunta “quanto se
deve pagar?” Um bom exemplo de critério quantitativo pode ser extraído da regra-matriz de
incidência tributária do IRC das pessoas coletivas com atividade empresarial, situação em que a
base monetária ou matéria coletável é o lucro tributável.50 A taxa é o outro componente do
critério quantitativo. É aplicada sobre a base monetária para obtenção do valor do tributo. No
caso do IRC, a taxa é de 23% para empresas que não sejam enquadradas como pequena ou
média, salvo situações descritas no n.º 2 e seguintes do artigo 87 do Código do IRC.
I.3.3 – A recomposição da regra-matriz de incidência tributária
Reagrupando os critérios, pode-se montar o seguinte quadro genérico para a regra-matriz de
incidência tributária:
ANTECEDENTE
NORMATIVO
OU
PREVISÃO
CRITÉRIO
MATERIAL
(o que?)
VERBO
COMPLEMENTO
CRITÉRIO ESPACIAL
(onde?)
49 Carvalho, Curso de Direito Tributário. 2007: 344.50 Código do IRC, art. 15, n.º 1, alínea “a”.
CRITÉRIO TEMPORAL
(quando?)
CONSEQUENT
E
NORMATIVO
OU
ESTATUIÇÃO
CRITÉRIO
PESSOAL
(quem?)
SUJEITO
ATIVO
SUJEITO
PASSIVO
CRITÉRIO
QUANTITATIVO
(quanto?)
BASE DE
CÁLCULO
TAXA
Há que ser lembrado que a regra-matriz de incidência tributária é um instrumento de
análise da norma jurídica tributária em sentido estrito, que é aquela já reduzida à sua mínima
estrutura (dado o fato jurídico tributário então deve ser a relação entre o sujeito ativo e o sujeito
passivo). Logo, há que ser montada uma RMIT específica para cada situação tributária, pois
existe uma regra-matriz própria e distinta para cada uma das combinações legalmente possíveis
entre os cinco critérios.
Conclusões
1 – Salvo alguma abordagem teórica que possa tornar-se necessária durante o desenvolvimento
do estudo, pretende-se que essas noções apresentadas sobre norma jurídica, tributo e regra-
matriz de incidência tributária, por hora ainda não aprofundadas, sirvam de base para a
identificação da verdadeira natureza jurídica e da função de cada uma das expressões da
tributação autónoma exigida por meio do artigo 88 do Código do IRC, que é o que se pretende
com a dissertação final.
2 – As leis, decretos, portarias, etc., são redigidos a partir dos mais variados vocábulos e
construções gramaticais. Mas as normas por eles veiculadas podem sempre ser reduzidas a uma
mesma estrutura mínima, formada pela previsão do fato jurídico e estatuição de uma relação
jurídica em que, sob sanção, um sujeito fica obrigado, proibido ou lhe é facultado algo em
relação a outro.
3 – Embora exista entendimento majoritário de que o tributo é gênero das espécies tributárias
como imposto, taxa e contribuições, há carência na legislação e na doutrina de uma definição
própria de tributo, de modo que o estudo será desenvolvido a partir da noção de tributo aqui
mesmo deduzida.
4 – Mesmo a norma jurídica tributária reduzida à sua mínima expressão, em previsão e
estatuição, pode ser decomposta em critérios, por meio do instrumento chamado regra-matriz
de incidência tributária, de modo a facilitar a identificação das espécies tributárias, o que se
pretende seja útil na identificação da verdadeira natureza jurídica da tributação autónoma, em
suas expressões instituídas pelo artigo 88 do Código do IRC.
Mais abaixo, em vermelho, conteúdo IBET acerca de capacidade contributiva.
Referencial bibliográfico
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1. Há necessidade de manifestação de capacidade contributiva para que possa ser exigida contribuição?
Não necessariamente. Só faz sentido falar-se em capacidade contributiva em relação a
tributo cujo critério material provenha de signo presuntivo de riqueza emitido pelo próprio
contribuinte, como no caso dos impostos, que têm por hipótese de incidência, conformada pela
base de cálculo (Paulo de Barros Carvalho, Curso, 10.ed, p.36) fato alheio a qualquer atuação
do poder público.
Não se pode, portanto, condicionar a incidência de taxa e de contribuição de melhoria à
observação do princípio da capacidade contributiva, pois, nesse caso o tributo é contrapartida
de atuação estatal, o que significa dizer que a dimensão econômica é dada pelo próprio Estado.
Nessa situação, que deve ser obedecido o princípio do não-confisco (CF, art. 150, IV).
Justamente por isso, a própria Constituição Federal, ao tratar de capacidade contributiva,
artigo 145, § 1º, fala somente em impostos:
Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão
instituir os seguintes tributos:
I - impostos;
II - taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva
ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte
ou postos a sua disposição;
III - contribuição de melhoria, decorrente de obras públicas.
§ 1º - Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão
graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à
administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos,
identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os
rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.
§ 2º - As taxas não poderão ter base de cálculo própria de impostos.
A partir daí, em relação às contribuições, pode-se dizer que há necessidade de
manifestação da capacidade contributiva sempre que a correspondente hipótese de incidência
não esteja ligada a qualquer atividade estatal, como por exemplo a CIDE.
Já em relação a contribuições ligadas a contraprestação estatal, como na CIP, não há
necessidade de manifestação de capacidade contributiva.
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