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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária
Gabriela Trevizo Gamboni Patrocinio
ANA MARIA MACHADO: DA CRIAÇÃO FICCIONAL À CRÍTICA –
O VALOR DA LEITURA LITERÁRIA
São Paulo
2014
Gabriela Trevizo Gamboni Patrocinio
ANA MARIA MACHADO: DA CRIAÇÃO FICCIONAL À CRÍTICA –
O VALOR DA LEITURA LITERÁRIA
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
para obtenção do título de MESTRE em
Literatura e Crítica Literária, sob a
orientação da Profa. Dra. Diana Navas.
São Paulo
2014
BANCA EXAMINADORA
____________________________
____________________________
____________________________
Ao meu pai Jorge, por representar minha
existência.
Ao meu marido Roberto, pelo amor
dedicado e incentivo.
AGRADECIMENTOS
A Deus, em primeiro lugar.
Ao meu pai Jorge, que sempre me apoiou e acreditou em meus sonhos.
À minha mãe Vera, que, onde quer que esteja, está olhando e torcendo por
mim.
Ao meu marido Roberto, pelo amor dedicado, apoio e compreensão, e por
embarcar comigo neste sonho.
À Bella, minha incansável companheira de tantos momentos e diversas
madrugadas.
Às minhas tias Iracy e Célia que me apresentaram, em minha tenra infância, ao
universo da leitura, em especial, dos contos de fadas.
Aos meus amigos, que mantiveram, de perto ou de longe, uma torcida pela
realização desta pesquisa.
À minha orientadora Diana Navas, pelo conhecimento, atenção, disposição e
esclarecimentos.
Às professoras Juliana Loyola e Maria Aparecida Junqueira, pelas ricas
contribuições no Exame de Qualificação.
A todos os professores deste Programa, que lançaram luz à elaboração desta
pesquisa.
À Ana Albertina, secretária deste Programa, pelo esclarecimento de diversas
dúvidas.
À CAPES, por proporcionar esse período tão importante de enriquecimento
profissional e pessoal.
A todos aqueles que contribuíram, de alguma forma, para a produção deste
trabalho, e pela aprendizagem ao longo dessa trajetória.
A todos, o meu muito obrigada!
“Simplicidade não é superficialidade”
“É muito comum que os romancistas contem como seus personagens os surpreendem, de vez em quando, agindo por conta própria. E é verdade, a gente não manda neles e tem que permitir que sigam por onde queiram. De certo modo, essa experiência de criar vidas alheias se parece muito com o trabalho do sonho. [...] Mas digo isso também porque não quero mentir para quem me lê, não além do inevitável ato de fingimento que é qualquer ficção. É honesto lembrarmos que essas vidas são inventadas, essas situações são criadas, mas nosso encontro nestas páginas, seu e meu é real.”
Ana Maria Machado
RESUMO
Este trabalho se propõe a estabelecer, na obra de Ana Maria Machado,
a relação entre a produção literária e a produção crítica da autora, verificando
como ambas se apoiam em aspectos semelhantes, revelando um projeto
literário, pautado na importância da leitura literária. Para isso abordaremos
como, para ela, a crítica é fundamental na sua criação ficcional e está muito
mais relacionada com o prazer de escrever e refletir, do que com a tarefa de
condenar ou exaltar a ficção. Seu texto crítico, portanto, lança luzes à criação,
ajudando-a a ser compreendida como obra múltipla de sentidos. Sendo assim,
abordaremos um corpus específico dentro de sua vasta criação ficcional e
crítica que explora o universo dos livros, a saber Silenciosa Algazarra (2011),
Como e por que ler os clássicos universais desde cedo (2002), Texturas:
Sobre Leituras e Escritos (2001) e como corpus ficcional História meio ao
contrário (1978), Bisa Bia Bisa Bel (1982), Era uma vez um tirano (1982),
Do outro lado tem segredos (1984), De fora da arca (1996), A audácia
dessa mulher (1999) e A princesa que escolhia (2006).Buscamos assinalar
como suas histórias são cheias de significados, nutridas de ambivalência e
rupturas, mergulhadas no simbólico e que essas linhas se cruzam no próprio
ato da leitura, porque nascem de uma dinâmica de rompimento de barreiras,
traçando um projeto político-ideológico a partir de temáticas que abordam o
questionamento ao poder, às relações sociais e aos temas que delas advém.
Diante desse posicionamento, objetivamos, nesta pesquisa, estudar
paralelamente as linhas mestras na obra crítica e ficcional de Ana Maria
Machado, averiguando como ambos os discursos se cruzam, revelando um
projeto literário alicerçado por valores que têm na leitura literária o caminho na
formação do ser humano.
Palavras-chave: crítica, ficção, leitura, projeto literário, Ana Maria Machado.
ABSTRACT
This essay proposes to establish, in Ana Maria Machado’s books, the
relation between writings and literacy criticism of the author, showing how both
of them are based on similar aspects, revealing a literary project, ruled by the
importance of literary reading. In order to do it, we are going to approach how
criticism is essential for fictional creation and it is much more related to writing
and reflecting than coordinating or praising the fiction. Her critic composition,
therefore, highlights the creation, helping her to be understood as a title with
wide fictional and critic creation and the criticism which explores at book
universe such as Silenciosa Algazarra (2011), Como e por que ler os
clássicos universais desde cedo (2002), Texturas: sobre leituras e
escritos (2001) and also as fictional corpus História meio ao contrário
(1978), Bisa Bia Bisa Bel (1982), Era uma vez um tirano (1982), Do outro
lado tem segredos (1984), De fora da arca (1996), A audácia dessa mulher
(1999) and A princesa que escolhia (2006). We emphasize her meaningful
stories, nurtured by ambivalence and ruptures, filled in symbolism and how
these lines cross throughout the reading because they come from a barrier
rupture dynamics, depicting a political and ideological project from a set of
themes which approach the debates about power, social relationships and the
topics which come from them. Towards this position, we have the objective to
study, in parallel, the master lines in Ana Maria Machado’s critic and fictional
writings, determining how both of speeches cross each other, revealing a
literary project based on values which are described on literary reading the way
for human being formation.
Key words: criticism, fiction, reading, literary project, Ana Maria Machado.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..................................................................................................10
1. AS VÁRIAS FACETAS DE ANA MARIA MACHADO.................................. 15
1.1 Ecos de uma infância leitora..................................................................... 15
1.2 Era uma vez uma escritora e tradutora..................................................... 23
1.3 ... E assim nasceu a escritora-crítica........................................................ 32
2. DO FEMININO À TRADIÇÃO: A VOZ DA CONTAÇÃO............................. 39
2.1 As múltiplas mulheres de Ana Maria Machado......................................... 40 2.2 A perpetuação da tradição no contador de histórias............................... 53
3. DO POLÍTICO AO UNIVERSAL: A AUTORIDADE DO CLÁSSICO........... 61 3.1 Do autoritarismo à construção do literário............................................... 61
3.2 Universalidade: a manutenção do clássico na literatura......................... 67
4. O PROJETO LITERÁRIO DE ANA MARIA MACHADO............................. 85
4.1 O valor da leitura literária........................................................................ 93
CONCLUSÃO................................................................................................ 99
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..............................................................102
10
INTRODUÇÃO
é fundamental para um criador ter uma crítica capaz
de ser sensível ao que o texto tem condições de evocar (MACHADO,2011, p.69)
Este trabalho pretende estabelecer, na obra de Ana Maria Machado, a
relação entre a produção literária e a produção crítica da autora, verificando
como ambas se apoiam em aspectos semelhantes. Para tanto, serão
analisados, simultaneamente, textos críticos e ficcionais, a fim de apreender
seu projeto literário, cuja proposta está alicerçada na importância da leitura.
A projeção do nome de Ana Maria Machado se deve ao talento dessa
grande escritora da literatura brasileira, reconhecida por diversas premiações
nacionais e internacionais. Destacam-se, nesse cenário, o maior prêmio
literário do Brasil, o Machado de Assis (2001), concedido pelo conjunto da obra
pela Academia Brasileira de Letras – ABL, e o Hans Christian Andersen (2000),
considerado o Nobel da literatura infantil mundial, oferecido pela Internacional
Board on Books for Young People. Com certeza, tais prêmios garantiram maior
mérito à escritora na eleição para a cadeira de número 1 da ABL, a qual anos
depois a elegeu como presidente.
Nosso interesse pela obra de Ana Maria Machado data de
reminiscências da infância, e, posteriormente, do curso de Especialização. A
escolha deu-se, também, em decorrência da leitura de seus ensaios, os quais
frisam a importância da leitura desde a mais tenra idade, sugerindo um projeto
literário alicerçando toda a produção da escritora. O que mais desperta a
atenção, ao conhecer a profundidade de sua obra crítica, é o fato de ser pouco
explorada em pesquisas acadêmicas. De certa forma, isso nos impulsionou a
buscar compreender a proposta que Ana Maria Machado desenvolve em seus
ensaios.
Assim, por um lado, temos uma autora consciente e que se posiciona
com relação à produção artística. Para ela, o papel da crítica é fundamental,
porque é parte integrante do universo da criação: um texto criativo não se
esgota em uma leitura de dicionário, filológica, preocupada em decifrar o
sentido literal do texto. Pelo contrário, uma criação artística é densa, funda e
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inesgotável, consistindo uma plenitude na multiplicação dos sentidos, na
linguagem plurissignificativa e potencial à medida que se submete às novas
leituras, ou ao universo expandido do leitor. A autora afirma ainda que a crítica
deve ser criadora e digna, usando a linguagem de maneira que, ao explorar a
obra, compreenda-a como aberta e cheia de sentidos, ajudando também a
compor essa criação, dando-lhe sombra e volume, “sem medo de submergir na
coexistência de sentidos que caracteriza a linguagem artística, uma linguagem
simbólica e trabalhada” (2011, p.133). Com isso, a criação só tem a ganhar,
tratando-se de uma espécie de provocação, um estímulo sedutor que provoca
no crítico o desejo de escrever também. Trata-se de uma crítica que, por
participar da criação, está relacionada muito mais com o prazer de escrever e
refletir, do que com o prazer de condenar ou exaltar, caracterizando um juízo
final.
Em contrapartida, temos uma vasta criação ficcional dessa autora, que
trafega desde traduções e adaptações, obras infanto-juvenis e obras
destinadas a adultos, que são as mais estudadas, explorando o universo dos
livros e revelando igualmente um projeto literário. São histórias cheias de
significados, nutridas de ambivalência e rupturas, mergulhadas no simbólico e
que se cruzam no próprio ato da leitura, porque nascem de uma dinâmica de
rompimento de barreiras, traçando seu projeto político-ideológico a partir de
temáticas que abordam o questionamento ao poder. Esse amplo
questionamento se lança, também, às relações sociais e aos temas que delas
advém como a brincadeira e o jogo, à solidariedade e a amizade, à liberdade e
a escravidão, à repressão e o exílio, à busca pelo crescimento pessoal e a
construção do eu, à magia e o imaginário, o cotidiano e a família, o mistério, o
amor, à condição feminina e à diversidade cultural. Outra marca muito forte nas
obras de Ana Maria Machado e que parece relevante é a sensibilidade com
que legitima os silenciados, os excluídos e marginalizados. Além disso, é
frequente em sua obra o tema da leitura e escrita, expandido no emprego de
múltiplos recursos linguísticos, na versatilidade da linguagem literária e na
humanização do leitor, pautados no profundo respeito que demonstra ter em
relação à criança e ao jovem. Machado retoma, assim como seu mestre
12
Monteiro Lobato, personagens conhecidos do leitor, e também parte de suas
próprias referências culturais.
Mediante o posicionamento da autora, objetivamos, nesta pesquisa,
estudar paralelamente as linhas mestras na obra crítica e ficcional de Ana
Maria Machado, averiguando como ambos discursos se cruzam, revelando um
projeto literário por parte dessa escritora.
A obra crítica de Ana Maria Machado é vasta e se desenvolve em oito
livros: Contracorrente (1999), Texturas: sobre Leituras e Escritos (2001),
Como e por que ler os clássicos universais desde cedo (2002), Recado do
Nome (2003), Ilhas no tempo: algumas leituras (2004), Romântico, sedutor e
anarquista: como e por que ler Jorge Amado hoje (2006), Balaio: Livros e
Leituras (2007) e Silenciosa Algazarra (2011). No entanto, iremos nos voltar
com mais atenção às obras Silenciosa Algazarra, Como e por que ler os
clássicos universais desde cedo e Texturas: sobre Leituras e Escritos, para
compor o corpus da pesquisa relativo à crítica, à quais condensam os valores
críticos da autora, em especial, o valor que ela atribui à leitura literária.
Enquanto corpus ficcional, elegemos História meio ao contrário (1978),
Bisa Bia Bisa Bel (1982), Era uma vez um tirano (1982), Do outro lado tem
segredos (1984), De fora da arca (1996), A audácia desta mulher (1999), A
princesa que escolhia (2006).
O estudo da obra crítica e ficcional de Ana Maria Machado exigirá,
primeiramente, o levantamento de dados autobiográficos, apresentando as
várias facetas da autora. Nosso o objetivo, aqui, é expor sua trajetória de
leitura, atentando para a representação e a importância na vida da escritora.
Isso será desenvolvido no primeiro capítulo deste estudo, intitulado “As várias
facetas de Ana Maria Machado”. Para tanto, coletaremos também informações
na web site de Machado, www.anamariamachado.com.br, e nas produções
autobiográficas já mencionadas. Além disso, nos apoiaremos em um diálogo
com as teorias de Mikhail Bakhtin, em Estética da criação verbal (1997),
Walter Benjamin, em O Narrador (1996), dentre outros.
No segundo e terceiro capítulos, buscaremos resgatar os valores críticos
que podem ser identificados tanto em sua obra ficcional como em suas obras
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ensaísticas. Para isso, contamos, como base para o diálogo, com um corpus
crítico e teórico: Altas Literaturas (1998), de Leyla Perrone-Moisés; A
personagem de ficção (1968), de Antonio Candido; Literatura Infantil
Brasileira – História e Histórias, de Marisa Lajolo e Regina Zilberman (2010);
Panorama Histórico da Literatura Infantil/Juvenil (1991), de Nelly Novaes
Coelho; O texto sedutor na literatura infantil (1986), de Edmir Perrotti; O ato
da leitura, uma teoria do efeito (1996), de Wolfgang Iser; A história da
literatura como provocação à teoria literária (1994), de Robert Jauss;
Literatura Comparada (2001), de Tania Carvalhal; além dos ensaios e
criações literárias de Ana Maria Machado.
O segundo capítulo, intitulado “Do feminino à tradição: a voz da
contação”, tratará, exclusivamente de dois valores que primeiro saltam aos
olhos na obra da autora: o valor do feminino e o valor da tradição. Buscaremos
mostrar como o feminino aparece na obra para ser transformado pela leitura,
ou seja, como possibilidade de emancipação da mulher; já o valor da tradição
aparece como indicador de manutenção – seja da família, da figura do contador
de histórias, da cultura e dos saberes fundamentais ao humano. O foco desse
estudo serão os livros Bisa Bia Bisa Bel, A audácia dessa mulher, De fora
da arca, Do outro lado tem segredos e História meio ao contrário.
Em “Do político ao universal: a autoridade do clássico” nosso terceiro
capítulo, focaremos em dois valores com os quais a obra dialoga fortemente: o
político e o universal. Aqui mostraremos como a obra de Ana Maria Machado,
por meio de um discurso fortemente enraizado na problemática brasileira, não
deixa de expandir seus horizontes de atuação abraçando o universal, pois, a
mudança de cenários não interferem no que é intrínseco ao humano. Veremos
como isso possibilitará a reunião de grandes vozes da literatura de todos os
lugares e tempos nos livros da autora, em especial em, História meio ao
contrário, Era uma vez um tirano e A princesa que escolhia que serão alvo
do nosso estudo.
No quarto capítulo, “O Projeto literário de Ana Maria Machado”
finalizaremos tentando demonstrar como Machado alicerça seu projeto literário,
cujo fim é a leitura livre e, culturalmente, transformadora e formadora, por meio
de um discurso fortemente embasado nos princípios por nós elencados, em
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obras críticas. Para tanto, contamos e nos apoiamos nos livros Silenciosa
Algazarra (2011), Como e por que ler os clássicos universais desde cedo
(2002), além de nos valermos de um diálogo com A formação do leitor
literário: narrativa infantil e juvenil (2003) de Teresa Colomer, entre outros
críticos literários.
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1. AS VÁRIAS FACETAS DE ANA MARIA MACHADO
1.1 Ecos de uma infância leitora
Nascida no dia 24 de dezembro de 1941, em Santa Teresa, região
central do Rio de Janeiro, Ana Maria Machado veio ao mundo como um
presente de natal. Suas férias escolares tinham como destino a casa da avó
materna, no Balneário de Manguinhos, Espírito Santo.Conta que, nessa casa,
conviveu com os avós, primos, tios, pais e suas histórias, além de desfrutar do
mar e da natureza que o lugar oferecia:
Jantávamos cedo, à luz do dia. Depois, em volta de uma fogueirinha, ouvíamos e contávamos histórias. Em noite de luar, saíamos para caminhar na praia e fazíamos concursos de quem contava a história mais bonita. Cada adulto tinha sua especialidade. Vovô Ceciliano contava casos de verdade, lembranças riquíssimas de uma vida muito interessante e variada, das experiências em sala de aula, dos políticos que conheceu (foi prefeito de Vitória duas vezes), dos tempos em que abria estrada de ferro pelo meio da mata, conhecia índios, participava de caçadas... Vovó Ritinha contava maravilhosas histórias de folclore, recheadas de jabutis e macacos, de vigário, juízes e almas do outro mundo, povoadas por Pedros Malasartes e Joões Bobos. Tia Dinah tinha um interminável repertório de histórias de três irmãos que saíram pelo mundo em busca de aventuras. [...] Tio Guilherme era folclorista, cantava congos, tangolomangos e romances tradicionais ibéricos, falando na Nau Catarineta ou em Juliana e no Senhor Dom Jorge (MACHADO, 1996, p.15-16).
Ao contar sobre suas férias com a família e, como todos se
posicionavam valorizando a tradição de contar histórias, Machado nos remete
ao que Walter Benjamin (1996) propõe acerca dos narradores, tradicionais: o
narrador marinheiro (viajante/comerciante) que vem de longe e o narrador
camponês. Enquanto o camponês conhece bem sua tradição, a história de seu
povo e de seu país, o narrador marinheiro viaja muito e conhece outros tipos de
histórias ouvidas e trazidas por outros viajantes. O narrador precisa, levar em
consideração a interpenetração desses dois tipos de contadores orais.
Ao falar sobre o narrador, Benjamin resgata,seu ofício e sua ligação com
o trabalho manual, para discutir a importância da sabedoria e como seu
declínio coloca em extinção a arte de dar conselhos. Ecos do pensamento de
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Benjamin podem ser encontrados na trajetória de Ana Maria Machado que,
munida de tal sabedoria advinda das histórias de seus familiares, semelhantes
aos “narradores camponeses”, pode beber da tradição do seu povo e tudo
aquilo que poderia ser compreendido como uma “herança cultural”.
A arte de narrar está definhando porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção [...]. Na realidade esse processo, que expulsa, gradualmente a narrativa da esfera do discurso vivo e ao mesmo tempo dá uma nova beleza ao que está desaparecendo, tem se desenvolvido concomitantemente com toda uma evolução secular das forças produtivas. (BENJAMIN, 1996, p. 201)
Em Esta força estranha – trajetória de uma autora (1996), Ana Maria
Machado conta que, com menos de cinco anos de idade, já sabia ler, embora
não se lembre do processo de alfabetização:
Eu estava no jardim-de-infância da Escola Machado de Assis, escola pública em Santa Teresa, no Rio. A professora se chamava dona Jurema. Lembro muito bem dela e da escola, incluindo o enorme pátio coberto onde tínhamos recreio quando chovia, e o vidro da clarabóia no teto, por onde a gente via o céu quando brincava de roda e ficava deitada no chão, cantando “Carneirinho, carneirão”, depois do pedacinho que dizia: “... para todos se deitar...”. Mas não lembro da alfabetização. (MACHADO,1996, p. 16)
Ela ressalta, ainda, a influência e importância que Monteiro Lobato teve
na sua formação, pois fora presenteada com Reinações de Narizinho no seu
quinto aniversário, obra que marcaria sua vida para sempre:
Não lembro da alfabetização. Lembro que para a festa de fim de ano, pouco antes de eu fazer cinco anos, Dona Jurema distribuiu um bilhete para a gente levar para os pais, e nele dizia a minha mãe que devia mandar papel crepom de alguma cor que eu não lembro, para fazerem minha fantasia de dália, porque o teatrinho ia ser sobre um jardim e eu fazia papel de flor. Eu li e não gostei, não queria aquela cor, queria amarela e reclamei. Ela levou um susto. Como é que eu sabia o que estava escrito? Ainda por cima, manuscrito... Recolheu o bilhete e mandou outro, convocando minha mãe para uma conversa no colégio. Mamãe veio e levou outro susto. Também não sabia que eu estava lendo fluente. [...] Mamãe jurou que não tinha culpa. As duas então me testaram e descobriram que eu lia tudo. Moral da história: fui premiada com a fantasia amarela, como eu queria. Em seguida, no meu aniversário de cinco anos, ganhei meu primeiro Almanaque do Tico-Tico e o livro fundador, que marcaria minha vida para sempre, Reinações de Narizinho.
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[...] eu estava muito interessada em descobrir se em Manguinhos não haveria um jeito de entrar no Reino das Águas Claras, e queria saber quem era Tom Mix... Meus pais me explicaram, me levaram para ver desenho do Gato Félix num cinema chamado Trianon, com um letreiro “Sessão passatempo – o espetáculo começa quando você chega”. E sei que, ao menos algumas partes, eu lia sozinha – não esqueço do livro, da sensação de pegar um pão quentinho e cheiroso, com manteiga derretendo, e ir deitar na rede ou sentar de atravessado na poltrona, com o livro na mão, o coração batendo forte, assustada porque Dona Benta estava correndo perigo, sentada no pé do Pássaro Roca, pensando que era uma árvore... (MACHADO, 1996, p. 17-18).
Ao falar sobre seu processo de alfabetização, é possível notar que
Machado produz um efeito de silenciamento1, empregando outro discurso que
projete a imagem de alguém, priorizando a inserção do leitor em um universo
culto e letrado por meio da sua iniciação no mundo da escrita em um contexto
familiar. Com base nesse conceito, pode-se dizer que Machado, ao invés de
narrar frustrações, problemas, dificuldades e angústias durante seu processo
de alfabetização, opta por expor características que estão relacionadas com
outro tipo de informação, ou seja, aquela que se configurou através do
letramento. Mediante tais informações, percebe-se que, para a autora, é
plenamente possível ser alfabetizada em um ambiente repleto de livros, com
acesso aos bens culturais, dispensando cartilhas com silabação, sem medo de
praticar o erro e ser punida, lendo em voz alta, ouvindo histórias, e, por fim,
realizando a leitura sem considerá-la algo difícil. Com isso, ela evidencia que a
enunciação2 está muito mais comprometida com a formação do jovem leitor no
universo da leitura do que com o processo de alfabetização escolar. Note-se
que a escritora, assim como fez ao contar sobre seu processo de alfabetização,
1 Segundo Orlandi (1989, p. 40) a explicação concebida para tal discurso, está relacionada com “a prática de processos de significação pelos quais ao dizer algo apagamos outros sentidos possíveis, mas indesejáveis, em uma situação discursiva dada”. 2 Segundo Bakhtin (1999, p. 112) a enunciação “é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados e, mesmo que não haja um interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual pertence o locutor. A palavra dirige-se a um interlocutor: ela é função da pessoa do mesmo grupo social ou não, se for inferior ou superior na hierarquia social, se estiver ligada ao locutor por traços sociais mais ou menos estreitos (pai, mãe, marido etc). Não pode haver interlocutor abstrato; não teríamos linguagem comum com tal interlocutor, nem no sentido próprio nem no figurado. Se algumas vezes temos a pretensão de pensar e de exprimir-nos urbi et urbi, na realidade é claro que vemos ‘a cidade e o mundo’ através do prisma do meio social que nos engloba.Na maior parte dos casos, é preciso supor, além disso, um certo horizonte social definido e estabelecido que determina a criação ideológica do grupo social e da época a que pertencemos , um horizonte contemporâneo da nossa literatura, da nossa ciência, da nossa moral, do nosso direito.
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não se estende em detalhar como se deu essa prática, mas se limita a expô-la
como algo natural, sem grandes problemas. Ao optar por tal discurso,
contando-nos o que aconteceu em sua vida para tornar a leitura algo
corriqueiro, esquiva-se de explicar por que a leitura foi um processo natural,
quando começou, por que lia ou como lia. Fazendo isso, Machado evidencia
fatores que implicam o processo de significação de uma leitora sem conflitos,
sem crise alguma, o que remete a alguém que se tornou o que é hoje através
da leitura.
Portanto, os acontecimentos narrados por Machado contribuem na
construção da imagem de uma escritora que teve contato com os livros desde
muito pequena. Ela conta que os pais liam muito e compartilhavam com os
filhos tudo o que liam; e os filhos, por sua vez, interessavam-se pelo que os
pais tinham para ensinar. Convivia em um ambiente em que a leitura, o
questionamento para entender o mundo, a pesquisa e o desejo de saber eram
de grande importância:
[...] meu pai e minha mãe conversavam animadamente sobre as leituras, todos nós (a filharada) tínhamos vontade de entrar naquele mundo. A Ilíada e a Odisséia, Dom Quixote, A divina comédia, O paraíso perdido, Vidas paralelas de Plutarco, são alguns livros que eu lembro perfeitamente de ver com marcador dentro, pousados numa mesinha-de-cabeceira. Ou, de repente, ele fazia uma pausa, lia para ela um trecho em voz alta, sublinhava com um lápis. [...] Falei nesse ambiente que me cercava porque acho que é um retrato de algo que só muito mais tarde eu vim perceber que era esquisito e anormal, mas que para mim era absolutamente natural durante toda a minha formação: tinha livro por todo canto. As pessoas à minha volta liam e valorizavam o livro como um bem precioso. Não porque fossem economicamente privilegiadas. Mas porque não concebiam que se pudesse viver sem ler, sem perguntar, sem consultar dicionário, sem procurar respostas. (MACHADO, 2001, p. 180- 181).
Mediante a imagem tão bem construída de leitora desde a infância e
com o apoio familiar, é possível notar que essa seleção de recortes que
retratam sua afinidade e paixão pela leitura, sem mencionar sequer um ponto
negativo nessa trajetória, remete à valorização desse discurso. A partir disso,
configura-se uma ideia bem delineada que leva a crer que o que ela nos conta
foi importante para definir o que ela é hoje, fazendo do seu exemplo “modelo”
na formação de nossos jovens leitores. É compreensível, portanto, que
Machado produza uma voz bastante legitimada entre os professores,
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oferecendo um depoimento que caminha na mesma direção de um postulado
muito frequente, que é o da formação pela exposição da criança aos livros, aos
leitores, ao ato em si, no seio da família, na escola etc.
Ela se apresenta com características de alguém que se preparou muito
para desempenhar a função de escritora desde muito jovem, e desde muito
cedo teve acesso a bens culturais diversos, como livros, viagens, bibliotecas,
esculturas, e pessoas que lhe ajudaram em muitos momentos da sua vida.
Enfim, sempre muito ligada às tradições:
Não sei direito com que idade eu estava, mas era bem pequena. Mal tinha altura bastante para poder apoiar o queixo em cima da escrivaninha de meu pai. Diante dele sentado escrevendo, eu vinha pelo outro lado, levantava os braços até a altura dos ombros, pousava as mãos uma por cima da outra no tampo da mesa, erguia de leve o pescoço e apoiava a cabeça sobre elas. [...] Só que no meio do caminho tinha outra coisa. Bem diante dos meus olhos, na beirada da mesa. Uma pequena escultura de bronze, esverdeada e pesada, numa base de pedra preta e lustrosa. Dois cavalos. [...] – O da frente se chama Dom Quixote. O outro, Sancho Pança. [...] Em seguida, eu quis saber onde eles moravam. [...] – É na Espanha, muito longe daqui – disse meu pai. [...] – Mas também moram aqui pertinho, quer ver? Dentro de um livro. Levantou-se, foi até a estante, pegou um livro grandalhão, sentou-se numa poltrona e me mostrou. Lá estavam várias figuras dos dois, em preto-e-branco. (MACHADO, 2002, p. 7-8).
Mesmo antes de aprender a ler, Machado já havia se interessado pelo
universo letrado no qual estava inserida. Não era um ambiente qualquer:
tratava-se do escritório de seu pai, que tinha a escrita como ferramenta de
trabalho. Enquanto muitos leitores não tinham nem o pai por perto, ou um pai
que tivesse a escrita como ofício, ou um pai com quem pudessem dialogar,
Ana Maria Machado tinha tudo isso, além de ter o contato com objetos da
cultura clássica burguesa, por exemplo, a escultura de bronze de Dom Quixote
e Sancho Pança e a possibilidade de saber que a história dos dois estava
registrada em um livro, e, mais ainda, saber quem eram e o que fizeram.
A autora conta não apenas sua ligação com o mundo dos livros, mas
também os gestos, as manias, os seus comportamentos diante dos deles, uma
vez que reconhece a leitura não como mero processo mental, mas como
prática que exige envolvimento, trabalho com o corpo e com as sensações.
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Entrega e paixão que, desde cedo, movem a leitora para outros livros e outras
leituras:
Posso evocar lembranças de infância, mergulhada em livros de Monteiro Lobato ou Mark Twain, deitada atravessada na poltrona ou escondida num canto atrás do sofá para não ser interrompida, e viajando para mundos maravilhosos. Aquela sensação única de beatitude escondida, que Clarice Lispector já qualificou tão bem, chamando-a de “Felicidade Clandestina”. [...] O ranger da rede que balançava enquanto a minha avó contava histórias. O perfume do livro novo, não sei se do papel, da tinta ou da cola que prendia a capa costurada. O peso de meu primeiro Robinson Crusoé aberto no colo, ilustrado por Carybé. O frescor dos ladrilhos da varanda em meu corpo nas tardes de verão em que eu me deitava de bruços no chão para ler A ilha do tesouro. O pão quentinho e crocante, com manteiga começando a derreter, que marcava a hora da merenda, única interrupção possível a me retirar de uma balsa no Mississípi com Huckleberry Finn ou de uma cavalgada entre Paris e Londres ao lado de D´Artagnan – manteiga que depois deixava marcas nas páginas dos livros que tinham que ser cortadas antes de lidas, garantia de sua virgindade. E,evidentemente, minha mania de sublinhar, colorir ilustrações e escrever nas margens era motivo de repreensões sem fim (MACHADO, 1999, p. 70).
As leituras, portanto, refletiram em sua escrita desde pequena. Era aluna
de grande destaque e, além de ler muito, gostava de escrever. Sua primeira
história, publicada aos doze anos de idade, intitulava-se “Arrastão”:
[...] no colégio, minhas professoras de português no ginásio (dona Laís e dona Anéris) iam correndo conosco às páginas das antologias de leitura e nos apresentando a um acervo básico de poetas e prosadores entendidos como um patrimônio comum de clássicos que era essencial conhecer. Ao mesmo tempo, exigiam redações e análise que nos faziam compreender a língua por dentro, suas belezas e possibilidades. Um de meus textos foi tão elogiado e premiado que o mostrei em casa. Meu tio Nelson, que estava lá, o levou para tio Guilherme, folclorista – e essa acabou sendo minha estreia literária. Devidamente assinado e aumentado, por encomenda da revista Folclore, saiu publicado meu “Arrastão”, sobre as redes de pesca artesanal em Manguinhos. Para mim, orgulho supremo foi que nada na revista o caracterizava como tendo sido feito por uma menina de doze anos. (MACHADO, 1996, p. 27)
Machado nos conta que assim como Lobato marcou sua infância, Mark
Twain marcara sua adolescência:
[...] Mark Twain ia ser o guia da minha pré-adolescência. Com Tom e Huck, morei no Mississípi, desci o rio em balsa, ajudei escravo a fugir, pesquei, dormi debaixo das estrelas, preguei peças nos outros, fui absolutamente moleca, livre, sem peias. [...] E minha amizade com
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Tom Sawyer incorporava um traço que sempre marcou minhas amizades pela vida afora: a indicação de livros bons. Como Tom adorava ler e vivia falando em um monte de livros, saí atrás dos que eu não conhecia. E fui descobrindo O Conde de Monte Cristo, O máscara de ferro, Os três mosqueteiros, enfim, a obra de Dumas pai e Dumas filho, e mais Emílio Salgari, Rafael Sabatini e quantas outras aventuras de capa-e-espada se ocultassem nas coleções da Nacional e da Vecchi. E mais: piratas, corsários e capitães para todo gosto, Tarzans em todas as selvas... (MACHADO, 1996, p. 26).
Mais tarde, ao concluir o ginásio, apaixonou-se pela forma como Rubem
Braga escrevia:
[...] toda semana [o jornal] trazia sua equipe de cronistas, entre os quais Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Rubem Braga, que eram meus preferidos. Mas nenhum me fascinava como o Braga, pela maneira como escrevia, pela sua capacidade de captar a poesia do quotidiano, de usar um fiapo de assunto e ir tão longe... Eu recortava e guardava o que ele escrevia (também no Diário de Notícias), colecionava, lia e relia, sabia trechos de cor. O que fazia com as palavras era tão bonito que me dava um aperto no coração, vontade de chorar, de sorrir, de gritar para o céu, sei lá... (MACHADO, 1996, p. 32).
Com isso, fica claro o compromisso que Machado sempre manteve com
a leitura. Muito autônoma, era tomada pelo prazer de ler e sentia na alma os
efeitos de cada livro que explorava. Sua infância leitora evidenciava o que
futuramente iria exercer: por meio de interferências, escrevia nas margens e
deixava marcas onde seu senso crítico falava mais alto. Enquanto para muitos
leitores isso possa vir a ser monótono, para ela representava possibilidades de
intervenção. Ou seja, para ela, a leitura deveria ser acompanhada de um
processo de aprendizagem: é necessário ler não apenas por prazer e para o
deleite, mas para sentir, para vivenciar, para experimentar, para aprender a
opinar. Ana Maria Machado faz da leitura um processo bastante vivo e intenso,
definindo leitura como interação que pressupõe resposta ao texto, implica a
disposição de reagir a ele3. Com isso, estamos diante de uma leitora ativa, que
interfere, rabisca, opina, que tem como resultado em um processo de criação,
reflexão e até mesmo contestação daquilo que aparentemente era imutável4.
3 Para George Steiner (2001, p. 5), a leitura “contém dois elementos cruciais: a reação em si e a responsabilidade que isso representa. Ler bem é estabelecer uma relação de reciprocidade com o livro que está sendo lido; é embarcar em uma troca total”. 4 Alberto Manguel (2005, p. 11) propõe que “A leitura é uma conversa. Os lunáticos respondem a diálogos imaginários que ouvem ecoar em algum lugar de suas mentes; os leitores respondem a um diálogo similar provocado silenciosamente por palavras escritas numa página. Em geral a resposta do
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Considerando esses ecos da trajetória leitora de Ana Maria Machado,
ressaltamos a importância da leitura na formação de bons escritores, sujeitos
que antes de desenvolverem a escrita, desenvolvem bem a leitura. Contudo,
nota-se que o que Machado quer destacar é que o acesso a diferentes livros,
quaisquer que sejam, faz parte da bagagem cultural do escritor. A escritora
mostra-nos que a leitura dos clássicos, ainda que na infância ou na
adolescência desses escritores, foi importante para definir o que eles viriam a
ser assim que ficassem adultos. Além disso, Machado fala do que cada leitura
significou para ela: sensação de deslumbramento e fascínio, intensa felicidade,
abertura das portas do mundo real e encantamento. Todos esses aspectos
aparecem na trajetória dessa leitora e marca a bagagem, a formação cultural,
artística e afetiva que a construiu enquanto leitora e, mais tarde, como
escritora5.
Ana Maria Machado recorre à sua própria história para compor um
exemplo na formação dos bons leitores. Desta forma, sua trajetória pessoal de
leitora pode propor entendimentos para a escritora que é hoje, construindo uma
espécie de modelo de racionalidade para explicar e controlar sua própria
formação de escritora por meio da formação leitora. Ela surpreende por sua
história conter tantos elementos positivos que, talvez, sejam os principais
responsáveis pela escritora de sucesso que é hoje: acesso aos bens culturais,
contato com pessoas que se interessavam pela leitura, desenvolvimento da
escrita, leitura de gêneros e escritores diversos.
leitor não é registrada, mas em muitos momentos ele sentirá a necessidade de pegar um lápis e escrever as respostas nas margens de um texto. Esse comentário, essa glosa, essa sombra que às vezes acompanha nossos livros favoritos estende e transporta o texto para o interior de um outro e de uma outra experiência; empresta realidade à ilusão de que um livro fala a nós (seus leitores) e nos faz viver. 5 Acerca da imagem da leitura e da escrita Manguel (2005, p. 11) afirma que “a leitura é uma tarefa confortável, solitária, vagarosa e sensual. A escrita costumava compartilhar algumas dessas qualidades”.
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1.2 Era uma vez uma escritora e tradutora...
Meu nome é Ana Maria Machado e eu vivo inventando histórias. E dessas que eu escrevo, algumas viram livros. Adoro o meu trabalho. Ainda bem, porque acho que não ia conseguir viver se não escrevesse. Já fui professora, já fui jornalista, já fiz programa de rádio, já tive uma livraria e nesse tempo todo nunca parei de escrever. (MACHADO, 2001, p. 1).
Antes de optar pelas letras, Ana Maria Machado começou a estudar
pintura, primeiro na Escolinha de Arte do Brasil, de Augusto Rodrigues, depois
no Atelier Livre do Museu de Arte Moderna, onde foi aluna de Aloísio Carvão.
Nessa época, livros e pincéis eram inseparáveis para a autora. Participou da
fundação de um jornal chamado O Metropolitano, juntamente com Roberto
Pontual, Cacá Diegues e Arnaldo Jabor.
A fim de melhor compreender a sociedade brasileira, por meio da
geografia econômica, Machado se matriculou no curso de Geografia, tentativa
em vão, pois, com menos de um ano, trancou o curso. Em seguida, deu início
ao curso de Letras, fato que impulsionou a sua dedicação às letras: “havia
tempo iam se embolando e se amontoando lá dentro de mim, parece que
pediam para tentar sair de alguma forma” (MACHADO, 1996, p.40), deixando
de lado a pintura. Durante o curso, começou a trabalhar como repórter no
Correio da Manhã. Em 1964, curiosamente ano que marca o início da Ditadura
Militar no Brasil, a escritora se forma, dois anos depois conclui seu mestrado no
Rio de Janeiro e começa a lecionar na Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro.
Em 1968, já casada e mãe de Rodrigo, começou a escrever para a
Revista Recreio, da Editora Abril, juntamente com sua então cunhada Ruth
Rocha, Marina Colasanti e Joel Rufino:
[...] durante anos, [Recreio] foi esperada com ansiedade nas bancas, lida com sofreguidão nas casas, copiada e recopiada nas escolas por professores que viam em suas histórias a resposta a uma carência que sentiam e ninguém ainda havia detectado: a de textos bem brasileiros com qualidade literária, falando de questões importantes da atualidade, e que pudessem ser lidos com prazer pelas crianças e, ao mesmo tempo, que divertissem. (MACHADO, 1996, p. 60).
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No ano seguinte, vivenciou experiências férteis e enriquecedoras, sob a
influência dos atos da ditadura. No segundo semestre desse mesmo ano, foi
perseguida e presa pela segunda vez (a primeira se deu quando tinha 4 anos,
juntamente com seu pai), fato que impulsionou Machado a se mudar com o
marido e o filho para Paris. Mesmo distante, continuou escrevendo para a
revista Recreio, trabalhou como jornalista na revista Elle, além de se tornar
professora assistente na Sorbonne. Machado exerceu várias atividades
paralelamente com sua carreira de escritora e jornalista. Dentre eles,
responsável pelo acervo do setor sobre a América Latina em biblioteca
francesa, dubladora de documentários, participante em exposições de pintura.
Foi orientanda de Doutorado de Roland Barthes, estudando a obra de João
Guimarães Rosa, texto publicado como ensaio, intitulado O Recado do Nome
(2003).
Em 1971, nasce Pedro, seu segundo filho e, apesar de tantos
compromissos, Machado continuou a escrever histórias infantis com
assiduidade, que contava para seus filhos:
Para poder alfabetizar Rodrigo em português, desenvolvi também uma série, trabalhosíssima, de histórias bem brasileiras e divertidas, com palavras fáceis de ler. [...] Estava definitivamente viciada em escrever, nunca mais parei. (MACHADO, 1996, p. 61)
Embora o regime militar ainda imperasse no Brasil, em 1972, retorna e
concentra seu trabalho na imprensa. Não abandona, no entanto, suas histórias
infantis e, em 1977, lança seu primeiro livro Bento-que-bento-é-o-frade. Mas
foi com História meio ao contrário (1978) que ganhou seus primeiros
prêmios: João de Barro e Jabuti.
Diante do êxito de suas publicações, a escritora passa a ficar conhecida
e a receber diversos convites de editores para que publicasse outros textos que
se encontravam engavetados. No ano seguinte, Ana Maria Machado abre a
livraria Malasartes, espaço voltado especificamente para o público infantil no
qual atuou por dezessete anos como livreira. Apesar do atribulado ritmo de
trabalho, publicou Alice e Ulisses:
Em 1983, tomei coragem e publiquei meu primeiro romance para adultos, Alice e Ulisses, muito bem recebido pela crítica. Ao mesmo tempo, meus livros foram começando a serem traduzidos no exterior,
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primeiro nos países escandinavos e, em seguida, na Alemanha, na França e na Espanha. Paralelamente, fui passando a fazer palestras para professores pelo interior do Brasil e desenvolvi cursos e seminários sobre promoção de leitura no exterior. (MACHADO, 2001, p. 5).
No início da década de 80, a escritora deixa o jornalismo e passa a se
dedicar exclusivamente à produção de livros destinados aos públicos adulto e
infantil. Fato que levou Machado a diversos prêmios, tais como: Selo de Ouro,
pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, em 1980, com Raul da
ferrugem azul; Prêmio Casa de lãs Américas (prêmio de reconhecimento no
exterior), em Cuba, em 1981, com o livro infantil De olho nas penas; de Melhor
Livro Nacional do ano, com Bisa Bia, Bisa Bel, em 1982; Livro Altamente
Recomendável, pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, com Alguns
medos e seus segredos, em 1984; Prêmio APPLE, pelo Instituto Jean Piaget,
na Suíça, em 1988, com Palavras, palavrinhas e palavrões; e Lista de Honra,
pela IBBY, em 1982, com Bisa Bia, Bisa Bel.
Seus livros começaram a ser traduzidos no exterior, primeiro em países
escandinavos e, em seguida, nos europeus, França, Alemanha e Espanha, o
que resultou em diversos convites para ministrar palestras para professores e
desenvolver cursos e seminários sobre a importância da leitura. Atestando,
assim, a forte semelhança entre seu projeto literário e o de Lobato, com Ana
Maria Machado, de um lado, temos a renovação da literatura infantil brasileira
e, de outro, o esforço pela ruptura, de uma tradição alienante na literatura
infantil.
No final de 1989, a escritora recebeu um convite para trabalhar na BBC
de Londres, onde permaneceu por oito meses, concluindo seu romance
Canteiros de Saturno. Mas foi em 2000 que veio a consagração: recebeu o
prêmio Hans Christian Andersen como melhor escritora infantil do mundo. Em
2001, ganhou um importante prêmio concedido pela Academia Brasileira de
Letras - o Machado de Assis, pelo conjunto de sua obra. Recebeu a medalha
Tiradentes da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e a Ordem do Mérito
Cultural da Presidência da República.
Em 2003, a escritora carioca foi eleita para ocupar a cadeira número 1
da Academia Brasileira de Letras, que tem como patrono Adelino Fontoura e
cujo fundador foi Luís Murat. É uma posição que, até então, nenhum escritor,
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com obra significativa para o público infantil, havia recebido. Ana Maria
Machado orgulha-se do feito, afirmando que mesmo Monteiro Lobato não
conseguiu o posto quando se candidatou. Em 2012, foi eleita a presidente da
ABL, onde atuou durante dois anos.
A autora traçou seu projeto político- ideológico a partir das temáticas que
aborda. Dentre eles estão: o questionamento ao poder, às relações sociais, à
brincadeira e o jogo, à solidariedade e a amizade, à liberdade e escravidão, à
repressão e o exílio, à busca pelo crescimento pessoal e à construção do eu, à
magia e o imaginário, ao cotidiano e as relações familiares, ao mistério, ao
amor, à condição feminina e à diversidade cultural. Outra marca muito forte nas
obras de Ana Maria Machado é a sensibilidade que, segundo ela, legitima a
fala dos silenciados, através da cultura oficial, dos excluídos e dos
marginalizados.
Além disso, compõem seu projeto: a frequência insistente do tema
leitura e escrita, o emprego de múltiplos recursos linguísticos, a versatilidade
da linguagem literária e a humanização do leitor, pautados no profundo respeito
que demonstra ter pela criança e pelo jovem. Machado retoma, assim como
seu mestre Monteiro Lobato, personagens conhecidos do leitor, partindo de
suas próprias referências culturais, renovando-os e enriquecendo-os ao dar
nova vida a eles, uma vez que os reinventa.
Quanto às traduções e adaptações, Ana Maria Machado realizou
dezenas em inglês, espanhol e francês, dentre elas estão: O Impressionismo:
um olhar mágico, A floresta, Céus e estrelas, A Amazônia, Renoir: um
eterno verão, Van Gogh: um toque de amarelo, O rei Artur e os cavaleiros
da távola redonda, A Grécia, O Egito, Índios da América do Norte, A
Europa, Maia, Peter Pan, A Princesinha, O Jardim Secreto, Dom Quixote,
Alice no país das maravilhas, Robinson Crusoé, A Bela Adormecida e
outros contos de Grimm, Branca de neve e outros contos de Grimm,
Cinderela e outros contos de Grimm, Chapeuzinho Vermelho e outros
contos de Grimm, Odisseia, Sonho de uma Noite de Verão, A ilha do
tesouro, Viagens de Guliver, As Aventuras de Tom Sawyer, A Jornada do
escritor: estruturas místicas para escritores, Simbad – uma história das
mil e uma noites, A batalha dos monstros e das fadas, dentre outros.
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Em entrevista a Mario Feijó Monteiro (2001), Ana Maria Machado fala do
processo de adaptação, pontuando os procedimentos, a fidelidade à obra
literária e o caráter autoral da recriação em seus textos:
O máximo que se pode fazer é selecionar elementos da obra original, desprezando outros (com extremo cuidado para não trair o conjunto), e procurar uma linguagem que, para outros leitores, tenham um efeito semelhante ao que em sua origem a obra recriada poderia ter sobre os leitores para quem se dirigia. Para mim, essa concepção de autor determina que o original de uma obra adaptada terá que funcionar como mapa e bússola da adaptação. No caso de uma adaptação não-literária (para teatro, cinema, dança, enfim, outros meios), a liberdade é bem maior, pela necessidade de tradução para outra linguagem. Mas na obra literária, creio que a adaptação tem a obrigação ética de ser fiel. [...] Não há limites. A recriação de uma obra literária a partir de outra existente pode se servir apenas de uns poucos elementos da original e fazer algo totalmente novo, diferente e até conflitante com ela. Nesse caso, a obra original é apenas um pretexto para a manifestação de outra autoria. Podíamos falar em Joyce e Homero para exemplificar o que estou dizendo. Ou Dom Casmurro e Otelo. (MACHADO, 2001, p.139).
A adaptadora expõe também as razões para a adaptação de um clássico
da literatura:
No caso das adaptações destinadas a um público juvenil, para que elas agucem a curiosidade e funcionem como um “trailer”, mostrando que existe aquela obra, tem aquele clima e trata daquilo — um dia a obra pode ser buscada em sua íntegra. Ou, pelo menos, para dar uma visão geral do patrimônio cultural que todos herdamos e não vamos conseguir ler em sua totalidade. Para que possamos depois ler outros livros, posteriores aos clássicos, e entender suas alusões e referências, por exemplo. (MACHADO, 2001, p.139)
E por fim, expressa o porquê do trabalho de adaptação ser estimulante e
desafiador:
Pela intimidade com o original que propicia ao adaptador, faz a gente perceber o texto de dentro, é uma oportunidade de leitura privilegiada muito estimulante. E cheia de desafios, em cada opção do que se vai incluir ou excluir na adaptação [...]. (MACHADO, 2001, p. 140).
Assim como prega Lobato, para Machado os quesitos obrigatórios para
uma boa adaptação são a linguagem adequada à faixa etária, o possível
encantamento do jovem leitor e à fidelidade ao enredo6.
6 Em Dom Quixote das crianças (1956, p. 12), Monteiro Lobato afirma que “se o autor complica, cabe ao adaptador descomplicar, deixando a obra estilo de clara de ovo, bem transparentinho, que não dê trabalho para ser entendido”.
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Com relação à tradução, a autora observa que se perdem muitos fatos
importantes, mas quando é realizada com cuidado, pode ter um ganho
potencial por se tratar de uma recriação. Ela também cita os valores regionais
que marcaram fortemente a tradução das obras de Cervantes, Gabriel Garcia
Marques, Shakespeare, Camus e que, nem por isso, deixaram de ser
universais. Com isso, é possível perceber que o trabalho de tradução e
adaptação para Ana Maria Machado não são tão diferentes.
Ana Maria Machado escreveu muitos livros desde a publicação do
primeiro, sua tese de doutorado intitulada Recado do nome: leitura de
Guimarães Rosa à luz de seus personagens. Após a publicação de seu
primeiro livro infantil, Bento-que-bento-é-o-frade, em 1978, a escritora nunca
parou de escrever, chegando a cerca de duzentos livros publicados. Ganhou,
ainda, vários prêmios e foi nomeada para vários postos. Enfim, é uma escritora
de sucesso pelo que escreve, que tem consciência do que é escrever e
reconhece seu papel como alguém que sabe usar a escrita:
[...] a palavra escrita é muito generosa, porque não há limites para seu alcance. Todo mundo no planeta, de alguma maneira, participa da criação, por meio dos mais diferentes caminhos. Mas creio que aqueles que têm condições de criar por meio da escrita têm que ser muito humildes diante das obrigações para com ela, e não devem confundir seu alcance com coisas passageiras como fama ou sucesso. Pode ser muito gostoso para a vaidade individual ficar dando entrevistas ou indo a colégios, encontrando alunos e professores que celebram a presença física do autor, e carinhosamente lhe fazem festa. Mas nesse momento, o escritor está deixando de lado sua forma específica de criação recolhida e solitária – a escrita – e tentando se apropriar de outra, que não é sua – aparição pública ou o magistério. (MACHADO, 1996, p. 66).
Trata-se de uma escritora para o público de todas as idades,
reconhecida nacional e internacionalmente, amplamente premiada e que
evidencia sua trajetória de escritora a partir de seu passado, da sua história de
formação, demarcando traços e informações muito bem selecionados,
encontrados em seu material autobiográfico7.
7 Bakhtin (1997) afirma, acerca da pertinência de informações de uma autobiografia, que não se trata de um discurso direto do escritor sobre si. O discurso autobiográfico precisa se posicionar axiologicamente frente à própria vida, ou seja, o escritor só conseguirá atingir tal discurso, se distanciar-se da própria vida, olhando-a a de fora, tornando-se um outro em relação a si mesmo. Para ele, o escritor precisa olhar-se com certo excedente de visão e conhecimento ao desenvolver sua autobiografia.
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Ademais, seu discurso é muito bem articulado, pois os aspectos
apresentados em sua trajetória de formação com a escrita e, principalmente,
com a leitura, em diversas fases, culmina no que Bakhtin denomina como
“primado da alteridade”8. Quando Machado constitui sua trajetória de escritora,
traz em sua própria projeção a imagem de alguém que, além de se tornar uma
leitora muito jovem, tornou-se escritora também precocemente:
[...] Lia o que meu avô me dava, o que meu pai me indicava, o que minha mãe estava lendo, o que meus amigos emprestavam. E escrevia. Redações na escola toda semana. Um artigo sobre pesca artesanal em Manguinhos para uma revista de folclore, que meu tio levou para publicar sem ninguém identificar que fora escrito por uma menina. Cartas para meu avô, meus primos, meus amigos. E cartinhas de amor adolescente. Numas férias arrumei um namorado em Vitória, o mais lindo e cobiçado da turma. Durante todo um ano, foi uma troca de cartas esperadíssimas – e minha palavra tinha que ser suficientemente sedutora para fazer com que aquele gato não me esquecesse e suspirasse pela minha volta. Alguém quer melhor motivação para a escrita? No ano seguinte, outros gatos, em outros cenários, faziam parte do grêmio do colégio – em pouco tempo eu era redatora do jornalzinho escolar, fazendo várias seções diferentes em estilos diversos. Ainda não inventaram melhor oficina da palavra. (MACHADO, 2001, p. 188-189).
Além das leituras dos livros, Machado aponta que seu ofício de escritora
se deu também através da escuta de histórias orais como provérbios, cantigas,
rezas, que sua avó Ritinha contava para os netos:
[...] o caminho da leitura à escrita também foi natural, duas faces de uma mesma moeda. Bem do jeito da sabedoria popular que ensinava: "Escreveu, não leu, o pau comeu”. Porque essa sabedoria popular é que estava na base de tudo. Os livros eram só uma fórmula de multiplicar esse saber acumulado havia gerações, de trazer a palavra de gente de longe (como Dona Benta, que não estava ao meu lado como à vovó Ritinha) ou de muito antes (como o Andersen que escreveu O patinho feio no tempo em que ainda não havia Zé Macaco e Faustina). De qualquer modo, minha noção de sabedoria tinha a ver era com a minha avó. Ela é que tinha provérbio, cantiga e reza para tudo quanto era situação, dava jeito em tudo, fazia chá de folha de goiabeira, cataplasma para o peito, sabia qual galinha do galinheiro ia botar ovo naquele dia, cerzia roupa rasgada, fazia doce, consertava brinquedo, guardava barbante no bolso e alfinete de fralda na caixinha... E sabia as melhores e mais incríveis histórias, melhor do que qualquer livro. Nas férias, quando íamos passar o verão com ela em Manguinhos, no Espírito Santo, era um repertório interminável. (MACHADO, 2001, p. 186).
8 De acordo com Bakhtin (1997, p. 397) o “primado de alteridade” consiste em “ter que passar pela consciência do outro para me constituir”.
30
Nota-se que Ana Maria Machado busca na própria origem, uma prática
já existente de contar histórias, estabelecendo um vínculo com seus
antepassados e cultuando a memória daqueles que são origem e motivo de
sua própria existência. Fato que, de maneira simbólica, torna-se elo de
identidade entre o passado e o presente, entre histórias e a história, entre
diferentes culturas passadas de avós para netos. Com base em tal
procedimento, pode-se fazer referência ao que Bosi (1992) afirma em Dialética
da colonização:
A possibilidade de enraizar no passado a experiência atual de um grupo se perfaz pelas mediações simbólicas. É o gesto, o canto, a dança, o rito, a oração, a fala que evoca a fala que invoca. No mundo arcaico tudo isto é fundamentalmente religião, vínculo do presente com o outro retornado agora, laço da comunidade com as forças que a criaram em outro tempo e que sustêm a sua identidade. A esfera do culto, com a sua constante reatualização das origens e dos ancestrais, afirma-se como um outro universal das sociedades humanas.(BOSI,1992, p. 15).
Estamos diante de uma escritora que sempre esteve amparada por
pessoas que gostavam de contar histórias, no caso, sua avó Ritinha, cujo
conhecimento de mundo não estava em nenhum livro. Embora tivesse
aprendido a ler muito tarde, ela conta que sua avó era dona de um repertório
de dar inveja a muita gente e reconhece que ouvir suas histórias fora
imprescindível para querer reproduzi-las aos seus irmãos e primos, e, depois,
descobrir que poderia registrá-las através de sua escrita:
Na volta ao Rio, eu, a mais velha, me esforçava por manter viva a lembrança, recontando essas histórias para meus irmãos menores. Estando mais longe, em Buenos Aires, quando ganhei o diário e descobri que era divertidíssimo escrever todo dia o que me acontecia ou não acontecia, mas eu tinha vontade, percebi também que escrever era uma outra forma de não esquecer. De início, as histórias de minha avó. Pedi e ganhei outro caderno maior, encapado num papel que parecia teias de aranha em relevo, e comecei a escrever o que eu lembrava do que ela nos contava. Em pouco tempo, meu faz-de-conta estava se misturando com o contar dela e comecei a fazer meus contos, sobre os brinquedos que nos rodeavam, as vidas e aventuras imaginadas dos diferentes objetos, as lembranças saudosas de crianças como nós, numa praia brasileira, longe do frio portenho. (MACHADO, 2001, p. 186-187)
31
Ao reconhecer que ouvir as histórias de sua avó impulsionou-a a tomá-
las para si e reproduzi-las a seu modo, aponta a crença num discurso em que a
palavra não é uma unidade “neutra”, mas uma forma abstrata da língua à
espera de um falante que atualize seu sentido e o faça renascer para uso
contínuo da linguagem.9
Contudo, Machado torna-se diferente e singular quando traça sua
história mostrando-nos que leitura e escrita fizeram parte de sua formação de
maneira “natural”, espontânea, prazerosa e alegre, sem desvincular a escrita
da leitura. É importante ressaltar que, ainda que Machado reconheça a
importância e a necessidade da prática intensiva da escrita, ela se esquece de
mencionar que a escrita é também um processo trabalhoso, que exige
dedicação e muito cuidado.
Durante a adolescência, Machado continua investindo na relação
complementar entre leitura e escrita, demonstrando desenvolvimento nessas
duas habilidades, conferindo grande atenção a outros autores, que admirava:
A minha adolescência foi repleta de livros, que me proporcionaram grandes prazeres e descobertas. Ficava abismada com o jeito de escrever de grandes autores e cronistas, como Rubem Braga. Na escola, em casa e com meus amigos, estava sempre rodeada de gente que também gostava de curtir a vida tendo bons livros ao seu lado. (MACHADO, 2001, p. 2).
Ana Maria Machado sabe muito bem o que quer defender e, assim como
fez com a imagem do escritor como leitor, ocupa posições que estão em
concordância com o que pretende apresentar: a do escritor formado a partir de
situações, experiências, contatos marcados pela tradição e pelo que
efetivamente viveu.
9 Segundo Bakhtin (1997, p. 350), a palavra é sempre interindividual, e reúne em si as vozes de todos aqueles que a utilizam ou têm utilizado historicamente, “a palavra (e em geral, o signo) é interindividual. Tudo o que é dito, expresso, situa-se fora da “alma”, fora do locutor, não lhe pertence com exclusividade. Não se pode deixar a palavra para o locutor apenas. O autor (locutor) tem seus direitos imprescritíveis sobre a palavra, mas também o ouvinte tem seus direitos, e todos aqueles cujas vozes soam na palavra têm seus direitos (não existe palavra que não seja de alguém)”.
32
1.3 ... E assim nasceu a escritora-crítica
Dentre os mais de duzentos títulos de autoria de Ana Maria Machado
para as mais diversas faixas etárias, há um tipo de produção que recebe pouca
atenção de pesquisadores: os ensaios. Esse gênero, em sua obra, evidencia-
se a partir de sua biografia, ou seja, de sua infância leitora que gerou uma
escritora de sucesso e, posteriormente, uma crítica literária que não se
desvincula desses traços autobiográficos10.
Embora os ensaios sejam comuns entre os escritores, e ainda que haja
números significativos de pesquisas, dissertações ou mesmo artigos que
analisam a relevância da produção de Ana Maria Machado para a literatura
infantil brasileira, notamos que esses estudos estão focados exclusivamente
em suas obras ficcionais, privilegiando principalmente os aspectos linguísticos .
Em decorrência disso, optamos por contemplar algumas obras críticas
de Machado, dentre as quais está Contracorrente : conversas sobre leitura
e política, coletânea de artigos e conferências (1999). Nela, a escritora
aborda temas relacionados à leitura, literatura e política, tópicos que
prevalecem no livro, uma vez que suas reflexões propõem que a leitura e a
literatura encontram-se carregados de ideologia. Para ela, toda obra de arte,
incluindo a literatura, tende a ser subversiva e a afirmar a rebeldia individual
frente às autoridades. Com relação à política, discute acerca do lugar do
escritor na transição democrática, sua importância na sociedade e os
problemas que enfrentou com a censura na década de 60, e sobre todos os
escritores que lutaram contra a censura e a repressão do Regime Militar. Há
também relatos sobre como era encarada a literatura infantil, além do destaque
à relevância de Monteiro Lobato para a literatura infantil nessa época. Ademais,
aborda também o processo de redemocratização da década de 80, o retorno
dos exilados, a anistia e os livros de memória e de depoimentos, além das
10 De acordo com Bakhtin (1997), a autobiografia baseia-se no relato oral ou escrito que alguém faz da sua vida passada. Trata-se de um gênero literário, em prosa, que consiste na narração da experiência vivencial do indivíduo, ou seja, quando Machado exerce sua crítica ela faz uso de sua experiência vivencial, levando em conta ela mesma, que assume o papel de protagonista e narradora. Com isso, temos acesso a muitas informações no que diz respeito à sua trajetória, em especial, com a leitura. Para Bakhtin, a autobiografia deve ser a narrativa de uma vida, uma forma tão imediata quanto possível, e deve ser transcendente, mediante a qual se pode objetivar o eu e a vida em um plano artístico.
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chamadas patrulhas ideológicas e assuntos afins. No livro, a autora propõe
que, para a defesa e a sobrevivência de suas ideias e do ser, e diante do
sistema político e da estrutura econômica e social criados pela globalização, é
necessário estar na contracorrente, ou seja, contra o sistema e as normas
vigentes:
Sou mesmo contra a corrente. Contra toda e qualquer corrente, aliás. Contra os elos de ferro que formam cadeias e servem para impedir o movimento livre. E contra a correnteza que na água tenta nos levar para onde não queremos ir. No fundo, tenho lutado contra correntes a vida toda. E remado contra a corrente, na maioria das vezes. Quando as maiorias começam a virar uma avassaladora uniformidade de pensamento, tenho um especial prazer em imaginar como aquilo poderia ser diferente. Sou mesmo contra a corrente (MACHADO, 1999, p. 7).
Em Texturas - sobre leituras e escritos (2001), Machado reúne artigos
e transcrições de palestras sobre questões ligadas aos livros, à leitura, à
literatura, à formação do leitor e sobre como esses assuntos devem ser
tratados pela sociedade e pela comunidade escolar. Para Machado, é
essencial acirrar o debate sobre temas como leitura, literatura na escola, leitura
dos clássicos da literatura infanto-juvenil, formação de leitores críticos, num
momento em que, cada vez mais, o Brasil entende que é a hora de repensar os
velhos modelos de ensino, que não dão conta das necessidades de
crescimento e de invenção, nem conseguem transmitir valores humanitários e
éticos. Além de tratar a respeito de assuntos polêmicos, a escritora narra vários
episódios sobre sua trajetória leitora e o seu processo de escrita, ou seja, como
se tornou escritora, a influência que recebeu em casa para aprender a ler e a
escrever e como é a vida literária e profissional de uma escritora que escreve
não apenas para crianças, mas também para adultos. Além disso, defende a
ideia de que a leitura literária constitui um fator de liberdade e transformação,
pois faz com que pensemos na vida, nos modos de ser e estar no mundo,
levando-nos à reflexão como resistência contra estereótipos e à luta por uma
educação melhor:
A literatura – infantil, juvenil, adulta ou senil, esses adjetivos não têm a menor importância – é constituída por textos que rejeitam o estereótipo. Ler literatura, livros que levem a um esforço de decifração, além de ser um prazer, é um exercício de pensar,
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analisar, criticar. Um ato de resistência cultural. Perguntar “para onde queremos ir?” e “como?” pressupõe uma recusa do estereótipo e uma aposta na invenção. Pelo menos, uma certa curiosidade diante de uma opinião que não é exatamente igual à nossa – e o benefício da dúvida, sem a convicção do monopólio da verdade. Só a cultura criadora, com sua exuberância, pode alimentar permanentemente essa variedade pujante e nova. E só a educação pode dar elementos para distinguir com clareza os protótipos dos estereótipos. (MACHADO, 2001 p. 88).
Em Recado do nome (2003), a autora faz uso das obras Grande
Sertão Veredas e Corpo de Baile, ambos de Guimarães Rosa, tendo como
objetivo analisar o papel de cada nome na construção dos personagens e o
universo em que estão inseridos – social, religioso, histórico e físico. Além
disso, avalia a importância na escolha desses nomes na elaboração da
estrutura narrativa:
O Nome, em Guimarães Rosa, não atribui ao personagem uma característica marcante que o acompanha em todas as situações vividas, mas, ao contrário, vai recebendo em cada novo momento um novo significado e, frequentemente, um novo significante, num processo de permanente mutação do signo. (MACHADO, 2003, p. 50)
Nessa obra, Machado examina a relação entre o nome próprio e a
estruturação da narrativa. Consciente da pluralidade de sentidos que a palavra
adquire, a escritora demonstra que o nome é carregado de significados e
encontra-se na origem do processo criativo literário.
Ao escrever Ilhas no tempo: algumas leituras (2004), a autora faz um
convite ao leitor a explorar o prazer da leitura. O livro consiste em reflexões de
uma escritora brasileira que faz brotar sensações, desde o convívio, desejo de
compartilhar ideias e, principalmente, o prazer raro de ler um bom texto. Nessa
obra, a autora fala também da escrita de livros, da leitura e da literatura.
Aborda política, cultura, liberdade, através de análises sobre o tempo e a
sociedade contemporânea, sugerindo uma leitura de nós mesmos e da vida
que vivemos.
Balaio – Livros e Leituras (2007) está dividido em quatro blocos
temáticos, nos quais a autora coloca à disposição do público algumas
observações anteriormente restritas às plateias de congressos, seminários e
encontros dos quais participou. Os textos tratam de temas diversos, alguns são
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sobre criação literária e a palavra escrita em geral, outros versam sobre
questões culturais contemporâneas.
No livro Romântico, sedutor e anarquista – Como e por que ler Jorge
Amado hoje (2006), provoca uma reflexão mais aprofundada sobre o
romancista e defende como incontestável a qualidade das obras do escritor
baiano, autor de uma literatura que ousou falar brasileiro.
Embora todas essas obras críticas sejam grande contribuição para esta
pesquisa, iremos nos voltar com mais atenção às obras Como e por que ler
os clássicos universais desde cedo (2002) e Silenciosa Algazarra (2011),
por evidenciarem de forma mais clara o valor da leitura literária.
No primeiro, Como e por que ler os clássicos universais desde cedo
(2002), a escritora tematiza assuntos polêmicos para o campo da leitura – sua
importância desde a tenra idade, e a relevância da leitura de clássicos. A
autora nos insere em uma viagem de fantasias e aventuras, contada de
maneira muito informal. A obra é dividida em capítulos pontuais, que objetivam
reafirmar que um clássico permanece sempre atual, perene, longe da
efemeridade de escritores superficiais, que, muitas vezes, são apenas produto
da mídia. O livro aborda clássicos gregos e sua influência em outras obras, tal
como fez Monteiro Lobato em O Minotauro e Os Doze Trabalhos de
Hércules. Fala sobre a Sagrada Escritura e as lendas do Rei Arthur em
Cavaleiros da Távola Redonda, e sobre o magnífico Cervantes em Dom
Quixote de La Mancha. A obra revisita também os contos de fadas.
Também faz honrarias a diversos autores, entre os brasileiros, a Monteiro
Lobato, de Reinações de Narizinho e do fantástico universo do Sítio do Pica
Pau Amarelo, mencionado em todos seus ensaios. Cita ainda Carlos
Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Roland Barthes, Jorge Luis Borges e
José Lins do Rego, ressaltando a importância que os clássicos tiveram na vida
desses autores enquanto leitores infantis, pois a bagagem cultural e afetiva
adquirida enquanto criança, muito influenciou na vida adulta desses grandes
escritores. Nessa obra a autora destaca o valor da leitura literária, fazendo
referência aos clássicos universais.
Além disso, Machado registra com propriedade vários pontos
importantes acerca da leitura, afirmando que ninguém deve ser obrigado a ler,
pois ler é um direito e não um dever: forçar alguém a ler é uma maneira
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infalível de gerar horror ao livro. Com relação aos cânones, propõe que um
primeiro contato com um clássico deve ser feito através de adaptações bem
feitas, e defende a ideia de que clássico é eterno e não sai de moda.
Não estou propondo nem sugerindo que crianças e jovens se ponham a ler filosofia, tragédias teatrais em sua forma original [...] O que interessa mesmo a esses jovens leitores que se aproximam da grande tradição literária é ficar conhecendo as histórias empolgantes de que somos feitos. [...] Também não é necessário que essa primeira leitura seja um mergulho nos textos originais.Talvez seja até desejável que não o seja, dependendo da idade e da maturidade do leitor.Mas creio que o que se deve procurar propiciar é um primeiro encontro. (MACHADO, 2002, p.12)
É importante ressaltar que, nessa obra, Machado faz uso de situações
vividas por ela em seu percurso de leitora. Nota-se um tom de oralidade,
fazendo uso de um percurso muito sutil e delicado ao mencionar as sagradas
escrituras, as proezas dos cavaleiros da idade média, os contos de fadas, as
estórias marítimas, os personagens do Sítio do Pica-pau Amarelo dentre
outras.
O segundo, Silenciosa Algazarra (2011), é o mais recente ensaio da
autora, e reúne palestras, ensaios, artigos e conferências que escreveu ao
longo do tempo. Aqui, ela contempla vários temas distintos, dentre os quais
estão a censura, a importância da leitura para crianças em hospitais, a
intertextualidade e mesmo a crítica. Trata-se de uma obra que permite ao leitor
um contato maior com as reflexões e práticas que a autora constrói em torno
da concepção de leitura literária, literatura, literatura infantil e juvenil.
O título é sugestivo, estabelecendo um paradoxo. Na introdução
Machado faz referência à sua infância, na qual “algazarra” traz a imagem de
alegria espontânea do grupo de crianças de sua família, e “silenciosa” por
leituras que não são feitas, que se calam perante o universo de possibilidades.
E afirma:
estantes de livros com um número imenso de vozes querendo falar, à espera de serem ouvidas, todas com algo a dizer, mas sendo ignoradas, [...] um alarido calado à força e uma alegria amordaçada pela ignorância. (MACHADO, 2011, p. 8)
O que Ana Maria Machado mais comenta nessa obra é como a literatura
é uma herança valiosa que não deve ser esquecida, e sobre como seu ensino
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deve ser repensado para que os jovens entendam que há prazer na leitura de
livros, mesmo que eles não se tornem leitores assíduos quando forem adultos.
No primeiro capítulo “A importância da leitura”, apresentado no Encontro
Nacional “Crer para ver” em São Paulo, a escritora remete o leitor ao prazer
oferecido pela leitura e também tece suas experiências como escritora, levando
questões dos bastidores da produção de literatura para crianças e jovens, no
que diz respeito à produção, edição e venda. Em vários outros, ela revisita sua
experiência como autora que participou da “revolução” da literatura infantil
brasileira. Reflete sobre o que impulsionou autores, que não estavam
envolvidos com o ensino de literatura infantil, como Lygia Bojunga, Ruth Rocha,
Joel Rufino dos Santos, a voltarem sua escrita para crianças a partir da
ditadura militar. No capítulo “Quando os livros conversam: presença de
intertextualidades na literatura infanto-juvenil contemporânea”, os
procedimentos intertextuais são desvendados em várias obras, inclusive da
própria autora, e é a partir daí que se aprofunda em outras questões culturais.
Também no capítulo “Contador que conta um conto faz contato em algum
ponto”, faz menção à escrita de Monteiro Lobato e Grimm, refletindo sobre a
particularidade e universalidade que trouxeram para sua vida de leitora e
escritora, evidenciando alguns valores críticos.
Após apresentarmos as obras ensaísticas de Ana Maria Machado, é
importante ressaltar que a ausência de um estudo mais aprofundado por parte
da crítica reforçou ainda mais a relevância do nosso trabalho e nos instigou a
desenvolvê-lo. Essas últimas obras citadas foram eleitas como principais, pelo
fato de evidenciarem o valor literário da leitura, além dos outros valores que
serão identificados no capítulo seguinte.
Considerando as informações acerca dessa escritora, que se apresenta
em suas próprias obras autobiográficas com bastante rigor e cuidado, percebe-
se que Machado posiciona-se discursivamente a partir da opção que considera
importante para se compreender quem é hoje. Porém, é importante ressaltar
que a escritora ocupa várias posições através das relações que a ligam ao
outro. Esse lugar, segundo Todorov permite que o indivíduo não tome
consciência de si mesmo senão através dos outros, dos quais ele recebe as
palavras, as formas, a tonalidade, que formam a primeira imagem de si mesmo.
Ele só se torna consciente de si mesmo revelando-se para o outro, através do
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outro e com a ajuda do outro (TODOROV, 1981 apud BRANDÃO, 1993, p. 8).
Como é possível notar em todos seus ensaios e também a partir de sua fala
em Esta força estranha: trajetória de uma autora (1996):
Ser leitora e escritora é uma escolha ligada ao intenso prazer intelectual que essas atividades me dão. Escrevo porque gosto da língua portuguesa, gosto de histórias e conversas, gosto de gente com opiniões e experiências diferentes, gosto de outras vidas, outras ideias, outras emoções, gosto de pensar e de imaginar. Em todo esse processo, a leitura foi fundamental. E, seguramente, eu teria lido muito menos, se não estivesse sempre cercada de pessoas que falavam com entusiasmo de livros e autores. Eram eles que despertavam minha curiosidade e me faziam correr atrás das sugestões, em geral encontradas nas estantes da livraria Ler (onde eu tinha conta e pagava a prazo), de propriedade do Jorge Zahar, modelo de livreiro, editor e de ser humano. (MACHADO, 1996, p. 44).
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2. DO FEMININO À TRADIÇÃO: A VOZ DA CONTAÇÃO
Todos os grandes poetas se tornam naturalmente, fatalmente, críticos (BAUDELAIRE, L’Art romantique)
Desde o início do século XIX, alguns escritores têm se indisposto, de
maneira geral e constante, com os críticos profissionais, principalmente
jornalistas, acusando-os de vários tipos de perversões como parasitismo,
incompreensão leitora e/ou impotência criadora. Devido a tais agressões, os
criadores literários puseram-se a praticar uma espécie de contracrítica,
desenvolvida por eles mesmos, dita como mais competente, ou pelo menos
mais eficiente, já que estando ligada à própria experiência criadora. Ana Maria
Machado apresenta-se como uma dessas autoras, o que a eleva à categoria de
escritor-crítico, nas palavras de Leyla Perrone-Moisés.
Em Altas Literaturas (1998), Perrone-Moisés leva em consideração não
somente a extensão da obra crítica de alguns autores considerados
importantes para a literatura ocidental, mas também a sua abrangência, por
isso elege alguns escritores-críticos como Ezra Pound, T.S Eliot, Jorge Luis
Borges, Octavio Paz, Ítalo Calvino, Michel Butor, Philippe Sollers e Haroldo de
Campos. Pertencentes à literatura de diferentes países, eles têm em comum o
fato de possuírem uma obra crítica extensa e abrangente, versando sobre
diversas culturas, várias épocas e várias línguas. Além disso, uma
característica une-os no que Perrone-Moisés denomina “retrato falado”, dada a
importância que atribuem à crítica, ou seja, para eles, essa atividade ocupa um
lugar tão importante quanto o da criação literária: “a crítica não é, para eles,
uma atividade esporádica e ocasional, mas constante, ocupando em suas
obras um lugar tão importante quanto o da escrita de criação (...)”. (PERRONE-
MOISÉS,1998, p.12). Outra característica comum a esses escritores, que deve
ser ressaltada, é o fato de todos serem cosmopolitas, poliglotas, escreverem
sobre autores e obras de várias épocas e de vários países. Ou seja, todos
exerceram a atividade da tradução, ligada, ela mesma, à preocupação
pedagógica e à busca da universalidade da literatura, além de terem
desempenhado o ofício de dar aulas. Portanto, para ela, eles representam os
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mais altos valores em termos de literatura: maestria técnica, concisão,
exatidão, visualidade e sonoridade, intensidade, completude e fragmentação,
intransitividade, utilidade, impessoalidade, universalidade e novidade.
Diante disso, objetivamos desenvolver um processo semelhante ao que
Perrone-Móises fez em seu ensaio. No entanto, identificaremos e estudaremos
os valores críticos de Ana Maria Machado, estabelecendo a relação entre a
produção literária e a produção crítica, verificando como ambas se apoiam em
aspectos semelhantes. É importante ressaltar que, embora alguns valores
críticos desses críticos-escritores eleitos por Perrone-Moisés coincidam com os
valores de Ana Maria Machado, temos por objetivo verificar se os valores
identificados em suas obras críticas se reconfiguram em sua obra ficcional.
2.1 As múltiplas mulheres de Ana Maria Machado
Se falo como mulher, ando como mulher, sinto como mulher, sem dúvida olho o mundo e escrevo como mulher. Mas não sei de que modo essa minha escrita será diferente e não me preocupo em saber, prefiro seguir fazendo o que sempre fiz e lidar com a criação intuitivamente. (MACHADO,1999,p.21)
Dentre muitos valores que estão ligados à ficção e também à crítica de
Ana Maria Machado, o valor do feminino é um deles. Na obra Texturas sobre
leituras e escritos (2001), ela descreve a estreita ligação entre os trabalhos de
tecer e escrever. Constatando a forte presença do feminino nas atividades
têxteis, a autora menciona as barreiras que as mulheres enfrentam para triunfar
no universo dos textos, apontando no âmbito social a exploração a que a
mulher vem sendo submetida ao longo dos tempos, produzindo riquezas em
condições de trabalho precárias sem poder se apropriar dos resultados do seu
trabalho. Ela comenta que, durante muito tempo, a mulher, foi uma cidadã de
segunda classe, com impedimentos de direitos elementares, ocupou uma
posição submetida à vontade masculina; e, no entanto, muitas ousaram e
abriram clareiras na selva do preconceito, da discriminação e da ignorância.
Diante dessa preocupação, temos em Bisa Bia Bisa Bel (1982) e A
audácia dessa mulher (1999), respectivamente, mulheres ousadas. No
primeiro, ao arrumar gavetas e caixas, Isabel encontra uma antiga fotografia de
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sua bisavó Beatriz, a Bisa Bia. Esse objeto abre um grande canal de
comunicação entre a bisneta e a bisavó, cuja situação torna-se extraordinária
para a menina, que encontra em Bisa Bia uma amiga e companheira para
todos os momentos. Essa descoberta traz muita alegria para as duas, uma vez
que reserva espaço para o confronto de valores: os conservadores,
representados pelas opiniões de Bisa Bia, e os inovadores, representados por
Isabel. Enquanto, no pensamento de Bisa Bia, a distinção de gêneros é bem
precisa, pois para ela existem coisas de meninas e coisas de meninos; no
pensamento da jovem as coisas não são bem assim. Logo nos primeiros
contatos, quando surgem as diferenças, Isabel percebe e comenta:
Só depois que eu fiquei conhecendo melhor Bisa Bia é que soube da verdade: ela não gosta de ver menina usando calça comprida, short, todas essas roupas gostosas de brincar. Acha que isso é roupa de homem, já pensou? De vez em quando ela vem com umas ideias assim esquisitas. Por ela, menina só usava vestido, saia, avental, e tudo daqueles bem bordados, e de babado. (MACHADO, 1982, p.11)
E mais à frente, é Bisa Bia quem fala:
- Ah, menina, não gosto quando você fica correndo desse jeito, pulando assim nessas brincadeiras de menino. Acho muito melhor quando você fica quieta e sossegada num canto, como uma mocinha bonita e bem comportada. (MACHADO,1982, p.19)
Isabel, uma garota de doze anos que trava conhecimento por meio do
fantástico com o seu passado e futuro, é capaz de perceber essas questões e
de se posicionar diante delas, afirmando que não seguirá os padrões e não
aceitará uma posição subordinada na sociedade. Beatriz também faz uma
viagem ao passado. Esse processo fortalece e reafirma sua condição de
igualdade, não permitindo que sua vida seja submetida ao comportamento
machista que insiste em permanecer. Nessa obra, não sobra muito espaço
para os homens, uma vez que a maioria das ações é dominada pelas
mulheres. A menina Isabel, sua mãe, sua bisavó Beatriz e a bisneta Beta,
ocupam e determinam as ações, e é só em papéis secundários que aparecem
os homens, com pouco destaque, apoiando-se sempre na ação principal de
Isabel e de suas companheiras.
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A menina não se rende às pressões da bisavó; insiste em se vestir como
gosta e brinca com seus amigos, não distinguindo roupas e brincadeiras
específicas para meninos e meninas. Essas contradições não as distanciam,
ao contrário, elas fortalecem o relacionamento das duas, pois ambas respeitam
as diferenças de opinião e não se impõem uma à outra. E a menina se justifica:
[...] os papos explicativos com Bisa Bia podem ser muito divertidos. Mas tem horas em que ela torra a paciência de qualquer um, eu fico com vontade de sumir, mas como é que a gente pode sumir para bem longe de alguém que mora com a gente dessa maneira, bem dentro mesmo? Ainda mais desse jeito dela, transparente e invisível para todo mundo [...] (MACHADO, 1982, p.30)
Vale ressaltar que não é só com a bisavó que a menina Isabel enfrenta
resistências quanto à sua liberdade de comportamento. Entre seus amigos,
isso também acontece, encontrando o preconceito contra a plena atuação das
mulheres. Apesar disso, a menina não se rende, demonstra ter coragem e
ousadia superiores aos meninos, tanto que, em uma dessas incursões por
goiabeiras, Marcela, uma menina da turma que disputa com Isabel as atenções
de Sergio, diz que não pode participar da aventura para não sujar a roupa e
que aquilo não era coisa para meninas. Então, vão Isabel e Sergio até as
goiabas, saltam o muro e deparam-se com um cachorro: Sergio demonstra
medo, enquanto Isabel mantém a calma e domina o cachorro, pois já era velha
conhecida da casa, mas Sergio não sabia disso. O desempenho de Isabel
nesse episódio faz com que Sergio se encante por ela, conquistando o respeito
e o carinho do menino que, por sua vez, afasta-se de Marcela. Isso resulta na
aproximação entre ambos, gerando mais uma divergência de opinião entre
neta e bisneta, pois Bisa Bia afirma que “Menina de sua idade não devia estar
pensando em namoros, isso não fica bem. Menina de sua idade deve é brincar
de roda, fazer comidinha, pular amarelinha, costurar roupa de boneca...”.
(MACHADO, 1982, p.39). Mas Isabel responde mais à frente:
- Olha, Bisa Bia, quer saber de uma coisa? Isso tudo foi muito antigamente. Hoje em dia, é justamente o contrário. Menina do meu tamanho não casa, não. Mas namora se quiser, sabe? Namoro de menina, que é diferente de namoro de mulher maior, mas é namoro sim. E, na hora de casar, não são os pais que resolvem. É a gente mesma. (MACHADO, 1982, p.40)
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Logo no início da narrativa, Isabel traça o perfil de sua mãe,
diferenciando-a das demais: “Minha mãe é gozada. Não tem essas manias de
arrumação que muita mãe dos outros tem, ela vai deixando as coisas
espalhadas pela casa, um bocado fora do lugar.” (MACHADO, 1982, p.6). Para
ela, a mãe representa a força feminina, o modelo de mulher emancipada,
porém não se sabe a profissão, nem o estado civil dessa mãe, fato que deixa
lacunas, ou seja, o leitor precisa preencher esses vazios que, segundo Iser
(1996, p. 30), “constituem uma precondição fundamental da comunicação,
porque intensificam nossa atividade ideacional”.11 No entanto, a protagonista
vai construindo a imagem da mulher moderna representada por sua mãe. A
narrativa só menciona o sobrenome da mãe de Isabel e o fato de ser sido
casada, mas não se fala do pai na convivência familiar:
- Por que minha avó é Almeida e eu sou Miranda? - Porque quando sua avó casou, ficou sendo Ferreira, e eu nasci sendo Ferreira. Mas quando casei, fiquei sendo Miranda, que é o sobrenome do seu pai. - Mas eu quero ter o mesmo sobrenome de você, da vovó e da Bisa Bia. - Não pode filha, cada uma de nós ficou com um sobrenome diferente. Mulher quando casa é assim. - Não. Já resolvi. O nome é meu. Desde que nasci. Meu marido ainda nem me conhece. Não tem nada com isso. Mamãe olhou para mim com atenção e perguntou: - E por que, Bel? - Porque eu sou eu ora. (MACHADO, 1982, p.47)
É através de um processo reflexo e análogo ao seu contato com Bisa
Bia, sua ascendente, que Isabel entra também em contato com uma
descendente, sua bisneta Beta, uma menina cujo futuro vem completar o
círculo de referências para a protagonista. Essa bisneta Beta é muito mais
avançada que a Bisa Bia e contribui para aprofundar os contrastes de
pensamento em relação às atitudes feministas da sociedade.
11 Ainda segundo Iser (1996, 1996, p. 13), o leitor é cúmplice e colaborador no processo de leitura, pois o significado é construído entre texto e leitor. Esta obra propicia uma leitura inovadora, pois tem graus de indeterminação, oferece uma rede de perspectivas para o leitor abrir: “Assim pode ser dito que a indeterminação é a pré-condição fundamental para a participação do leitor”.
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[...] E Neta Beta vai fazer o mesmo comigo, a Bisa Bel dela, e com alguma bisneta que não dá nem pra eu sonhar direito. E sempre assim. Cada vez melhor. Para cada um e para todo mundo. Trança de gente. (MACHADO, 1982, p. 63).
Regina Zilberman (2005) transcorre acerca da temática utilizada por
Machado em Bisa Bia Bisa Bel:
Bisa Bia Bisa Bel é o que se poderia chamar um livro feminista, não apenas porque traduz o processo de independência da mulher ao longo da história, marchando do convencionalismo e obediência de Bia à completa autonomia e autoconfiança de Beta. Mas também porque elege um ângulo feminino para traduzir essas questões, revelando como o processo de liberação nasce de dentro para fora, não por ensinamento, mas enquanto resultado das experiências vividas. (ZILBERMAN, 2005, p.85)
Embora essa obra tenha sido publicada na década de 1980, as
inquietações de Isabel, frente às vozes que se trançam em um diálogo entre
passado, presente e futuro, mostram-se bastante atuais, pois se nota a
necessidade da sociedade em discutir questões acerca da des/re/construção
das relações de gênero, principalmente no que diz respeito às diferenças
culturais e econômicas. Além disso, a preocupação com o caráter estético é
fortemente notado, não só nesta, mas em muitas obras ficcionais de Machado,
comprovando que, para esta autora a literatura deve privilegiar a imaginação, o
jogo com as palavras e a arte como princípio e fim na leitura do literário.
Edmir Perrotti (1986), ao se referir à literatura infanto-juvenil brasileira
produzida pelos autores da geração de 1970, define grande parte desta
produção como sendo de “utilitarismo às avessas”. Se o discurso utilitário
procurou sempre oferecer às crianças e jovens atitudes morais e padrões de
conduta a serem seguidos, a fim de adaptá-los à vida social burguesa,
esperava-se dos autores da nova literatura um questionamento mediante tal
posição. Mas, segundo o autor, não foi bem isso o que ocorreu, pois essa
narrativa, na verdade, passou a questionar os valores burgueses, mas dentro
dos mesmos padrões discursivos, utilizados pelo discurso utilitário.
Embora Perrotti reconheça Ana Maria Machado como uma das
principais autoras da sua geração, bem como a importância que tem para a
literatura infanto-juvenil brasileira, ele afirma que ela se utilizou desse
“utilitarismo às avessas” em algumas obras, como em Raul da ferrugem azul
45
(1979). Para ele, embora a perspectiva de Machado seja radicalmente diferente
daquela adotada pelo autor tradicional em relação aos conteúdos e mesmo
constituindo um livro renovador, ao tomar partido da criança procurando
valorizar seus sentimentos, o discurso da obra não consegue realizar o salto no
plano dos conteúdos, haja vista ser moldado segundo o modelo utilitário
tradicional. Isso significa que a obra valendo-se do “utilitarismo às avessas”
busca um ensinamento, exibe um modelo de criança ideal e revela
preocupação em ensinar ao leitor formas de conduta.
Não desmerecendo a obra, Perrotti enfatiza que a narrativa se sustenta
no talento da autora, que cuidou do discurso para não ser excessivamente
doutrinário e explorou como ninguém o humor, amenizando assim, o
utilitarismo. No entanto, não deixa de mencionar que, nessa obra, Machado
parece querer ensinar crianças tímidas a se defenderem:
Raul da Ferrugem azul pretende instaurar uma nova “ilusão”, uma nova “ordenação metódica” do mundo e das pessoas [...]. Por isso, a discussão levantada pelo narrador a respeito do papel do imaginário e, por extensão, da literatura, junto da criança, aponta para uma resposta normativa e utilitária quanto às respostas dadas pela tradição. (PERROTTI, 1986, p. 125)
Ele registra que faltou no texto um tratamento estético compatível com
sua temática, fazendo a transição entre a tradição e o novo, entre o utilitarismo
e a arte. Esses impasses, no entanto, foram superados em outras obras, como
é o caso de Bisa Bia Bisa Bel (1982) e História meio ao contrário (1978),
exemplos de concepção estética:
O utilitarismo também foi ultrapassado por Ana Maria Machado, em Bisa Bia Bisa Bel, outro excelente exemplo da tendência estética que, a partir dos anos 70, se esboçou na literatura brasileira para crianças e jovens. O discurso, aqui, contrariamente ao mostrado em Raul da ferrugem azul, retoma a preocupação em auto questionar-se, como já o fizera em História meio ao contrário, só que agora num grau de elaboração mais refinado, pois é elemento narrativo. (PERROTTI, 1986, p.135)
A concepção estética de Bisa Bia Bisa Bel (1982) é notada em vários
momentos. Trata-se de uma narrativa em que o limite entre fantasia e realidade
46
é muito tênue e fica quase impossível detectá-lo, pois a fantasia se revela
como realidade psicológica da personagem.
Além disso, estamos diante de um narrador autodiegético12 que se
identifica com a personagem principal e é aquele que participa dos fatos e
acontecimentos do universo narrado. A protagonista, muitas vezes, dirige-se
diretamente ao leitor, em tom de cumplicidade, garantindo credibilidade aos
acontecimentos. De certa forma, ao inserir o leitor no mundo narrado, contribui
positivamente para a construção da personagem:
Vou lhe contar uma coisa que é segredo. Ninguém desconfia. É que Bisa Bia mora comigo. Ninguém sabe mesmo. Ninguém consegue ver. Pode procurar pela casa inteira, duvido que ache. [...]. Sabe por quê? É que Bisa Bia mora comigo, mas não é do meu lado de fora. Bisa Bia mora muito comigo mesma. Ela mora dentro de mim. (MACHADO, 1982 p. 5)
Para Machado, a literatura deve constituir-se como um trabalho de
construção estética, para “criar momento de beleza através da palavra” e usar
essa escrita literária de modo “transparente”:
O uso liberatório da linguagem é colocá-la a serviço da transparência. Literariamente, a linguagem pode ter vários sentidos, para que o leitor invente seus próprios significados. Mas gosto de usá-la sempre de forma transparente. Não para ocultar e velar, mas para revelar. Em momento algum, no entanto, eu acho que a linguagem deva ser simplificada. Em meus livros, não há condescendência, tatibitate nem barateamento da linguagem. Não há um pronome fora do lugar, a regência e a concordância são rigorosas. As rupturas são intencionais, têm uma função estilística. Acho essencial dominar a gramática para domá-la e partir para uma linguagem nova. (MACHADO apud. BASTOS,1995, p. 50)
Na perspectiva da autora, a construção estética consiste, dentre outros
elementos, em convidar o leitor, seja ele criança ou não, a apreciar esse
trabalho com as palavras e a imaginação, assim como faz em Bisa Bia Bisa
Bel, tomando-o como “leitor implícito”13. Para tanto, Machado afirma que a
literatura infantil necessita de alguns cuidados especiais, como o ludismo:
12 Compreendido por Carlos Reis e Ana Cristinha M. Lopes (1988) como aquela entidade responsável pelo discurso narrativo, no qual o narrador da história relata as suas próprias experiências como personagem central da história. 13 O conceito de leitor implícito, desenvolvido por Wolfgang Iser (1996), consiste na fonte de autoridade da interpretação, tanto no texto como no leitor, tratando-se de uma construção. Assim, o texto busca
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Escrevo porque gosto. Com meus textos, quero botar para fora algo que não consigo deixar dentro. E escrevo para criança porque tenho uma certa afinidade de linguagem. Mas não tenho intenção didática, não quero transmitir nenhuma mensagem, não sou telegrafista. Acredito que a função da obra literária é criar um momento de beleza através da palavra. Escrever para crianças talvez seja mais aberto, mais lúdico, mais perto da conotação e da poesia, mais polissêmico. E com certo compromisso com a esperança, que não existe quando se escreve para adultos. Mas basicamente não creio muito que as coisas se dividam entre adultos e crianças. (MACHADO apud. BASTOS, 1995, p. 49)
Essa distinção centrada no lúdico, “mais perto da conotação e da
poesia”, enriquece a obra literária, ampliando a perspectiva do leitor, e, é nesse
sentido que a literatura infantil de Ana Maria Machado amplia ao invés de
restringir. A identificação de um leitor infantil ou juvenil se dá por uma espécie
de projeção da criança na personagem com a qual ela se identifica,
proporcionando uma sensação agradável de liberdade e pacificidade, assim
como ocorre com a menina Isabel quando convida o leitor para adentrar na sua
história, deixando-o à vontade, ao estabelecer um pacto de confiança ao
contar-lhe um segredo que mais ninguém sabe.14
Ao se identificar com o protagonista, o leitor está, ao mesmo tempo,
participando da história e atuando sobre ela, uma vez que a interpreta. Sua
participação se dá por meio de um “leitor implícito”, que é compreendido como
parte constitutiva da configuração textual, pois participa da composição do
texto no momento em que este é escrito. O leitor exerce o papel de mediador,
no sentido de fazer com que o autor só adquira plena consciência de sua obra
por meio da reação que mantém com ela.15
designar instruções para a produção de um significado e o leitor produz o seu próprio significado, já que o sentido do texto é algo produzido por um processo de interação entre ambas as partes, ou seja, texto e leitor, independentes. 14 Acerca do convite que o narrador faz ao leitor, Regina Zilberman afirma que “A catarse constitui a
experiência comunicativa básica da arte, explicitando sua função social, ao inaugurar ou legitimar normas, ao mesmo tempo que corresponde ao ideal da arte autônoma, pois liberta o expectador dos interesses práticos e dos compromissos cotidianos, oferecendo-lhe uma visão mais ampla dos eventos e estimulando-o a julgá-los. (ZILBERMAN, 1989, p.57)
15 De acordo com Wolfgang Iser (1996, p. 78), “a obra é o ser construído do texto na consciência do
leitor”. Esse leitor é compreendido como “implícito” porque não está concretizado, mas subentendido na configuração do texto, referindo-se, assim, a uma existência “transcendental”, conforme afirma: “A concepção do leitor implícito descreve, portanto, um processo de transferência pelo qual as estruturas
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Sendo assim, as obras de Machado permitem ao leitor projetar-se na
história narrada, colocando-se no lugar da personagem, vivendo uma nova
experiência e enriquecendo-se interiormente. Ou ainda, distanciar-se da
mesma história para voltar à sua realidade, podendo estabelecer comparações,
enxergar as opções, enfim, um enriquecimento que a literatura pode conceder,
quando revela sua crença no valor formador da literatura. Em vários momentos
de Bisa Bia Bisa Bel, Machado proporciona essa interação texto/leitor, como,
por exemplo, quando junto com a protagonista vai construindo a imagem da
mulher moderna representada por sua mãe, relacionando-a à busca pela
emancipação do feminino:
Uma das coisas mais desagradáveis em matéria de trabalho doméstico sempre foi lavar lenço de resfriado. Acho que no nosso tempo a gente deve sempre procurar as coisas mais simples, que permitam economizar nosso esforço, para podermos fazer outras coisas! (MACHADO, 1982, p. 45)
No decorrer da narrativa, o leitor é defrontado com questionamentos
sobre o papel da mulher na sociedade, além de perceber o diálogo entre
gerações, que se dá nas conversas que Bel desenvolve com a Bisa Bia, com a
mãe e até mesmo com a Bisneta Beta:
Já imaginou que tristeza devia ser passar os dias esperando o marido e os filhos chegarem? Um monte de empregadas e só um trabalho pouco criativo dentro de casa? [...] O que eu acho é que é um trabalho que não transforma o mundo, não melhora as coisas, é só manter como estava, lavar para ficar limpo [...] Claro que educar filho é trabalho que transforma o mundo, mas isso é coisa que pai também faz, e mãe que trabalha fora também...! (MACHADO, 1982, p. 45-46)
Além do preenchimento mediante a projeção do leitor, existem outros
fatores que configuram o caráter estético da obra, como é o caso do uso dos
nomes próprios, que promove a identificação e a individualidade, já que os
do texto se traduzem nas experiências do leitor através dos atos de imaginação. Como essa estrutura vale para a leitura de todos os textos ficcionais, ela assume um caráter transcendental. Robert Jauss (1979, p. 19) aprofunda essa questão do leitor, cuja essência é encontrada em um processo interativo, pautado na “oscilação” entre sujeito e objeto: “A experiência estética, portanto, consiste no prazer originado da oscilação entre o eu e o objeto, oscilação pela qual o sujeito se distancia interessadamente do objeto, aproximando-se de si. Distancia-se de si, de sua cotidianeidade, para estar no outro, mas não habita o outro como na experiência mística, pois o vê a partir de si.
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nomes resultam da exploração poética já presente no título “Bisa Bia Bisa Bel”.
É através do jogo fonético, denominado com inteligência e sensibilidade, que
Machado conota certa semelhança entre as personagens, reforçando também
o grau de parentesco entre elas. Pois estamos diante de uma narrativa que
relata a história de quatro mulheres da mesma família: Beatriz (bisavó de
Isabel), a mãe de Isabel, a própria Isabel e sua bisneta Beta. A obra une as três
pontas do tempo (passado, presente e futuro) que coexistem na protagonista
Isabel, por meio das vozes de Bia e de Beta. O elo dessas gerações é a
fotografia e, em versão futurista, a holografia, as quais retratam a época em
que foram feitas.
A narrativa seduz à medida que o leitor adentra na leitura e consegue
se orientar dentro da insólita situação instaurada desde o princípio – fantasia e
realidade – a partir do momento que Isabel passa a dialogar constantemente
com sua bisavó.
Tendo em vista tais informações, podemos afirmar que nessa obra,
como em várias outras, Machado não se utiliza da ficção de forma utilitária,
descartando também o “utilitarismo às avessas”, de Perrotti. Em Bisa Bia Bisa
Bel, é possível notar um caráter emancipatório do feminino, enfatizando a
superação da assimetria adulto/criança, pois privilegia o trabalho estético e, por
isso, valoriza seu leitor infantil. Essa valorização é percebida a partir da
liberdade e autonomia que a personagem Bel adquire, agindo e refletindo sobre
o mundo e sobre si mesma. A capacidade da autora de criar diferentes formas
de linguagem faz desse texto um conjunto discursivo privilegiado, adequado ao
leitor infantil, isto é, trata-se de um texto do tamanho do leitor, que responde à
necessidade de um esforço por parte da literatura infantil de atingir sua
maioridade literária.
Já em A audácia dessa mulher (1999), sexta publicação ficcional
adulta da autora, Ana Maria Machado nos apresenta mulheres audaciosas,
descontentes com o papel de subserviência que a tradição patriarcal insiste em
lhes reservar. Nessa obra, configura-se o valor do feminino também em sua
ficção voltada para adultos. Trata-se da história de Beatriz, uma jornalista de
turismo, com vida independente e realizada com relação aos seus objetivos.
Convidada a participar da produção de uma série de TV, conhece Virgílio, um
cozinheiro de mão cheia. Diante disso, temos a primeira distinção acerca da
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inversão de papéis: é a mulher que sai, percorre o mundo, enquanto o homem
fica em casa e assume a cozinha. Há ainda o namorado de Beatriz, que já vivia
há algum tempo no exterior, com quem estava “dando um tempo” na tentativa
de revigorar o compromisso entre eles e dar novo rumo à relação. Diante de tal
condição, Beatriz e Virgilio se encontram e o dilema é desencadeado: escolher
entre o antigo namorado distante ou o galante cozinheiro. Dá-se uma decisão
ousada, pois acredita que tem esse direito, e o relacionamento que estabelece
com Virgilio, depois de estudo mútuo, é o que se pode chamar de relação
privilegiada: os dois são livres e o compromisso não pode fazer deles reféns
um do outro.
Além das viagens, outra paixão de Beatriz é a literatura, considerada por
ela como uma maneira diferente de ver a vida e interagir com o outro e consigo
mesma, possibilitando, ainda, conhecer novos cenários16. Mas, é por meio de
um antigo caderno de receitas, emprestado por Virgilio, que vem à tona outra
história para o romance. Não são as receitas que chamam a atenção de
Beatriz, mas sim as anotações que o caderno traz nos cantos: relatos de uma
jovem mulher, vivendo no final do século XIX, que desejava estudar latim, ou
seja, algo só permitido aos homens. A grande surpresa, que Machado guarda
até o fim acerca desse caderno de receitas, é que a autora das notas era Lina,
ou Capitolina, ou Capitu, de Dom Casmurro, esposa de Bentinho, a qual nos
revela vários fatos obscuros acerca de seu marido. Bia descobre outra versão
para os fatos, agora do ponto de vista feminino.
Como se vê, o valor feminino tem grande presença nas obras de
Machado e, nesse livro, ela oferece convincente libelo em defesa de uma
personagem feminina acusada severamente nos debates literários dos últimos
cem anos. Além de absolver Capitu, a escritora desenvolve a inversão dos
fatos nesses relatos do caderno: a traição caminha na direção de Bentinho e
Sancha. Trata-se, portanto, da oportunidade de verificar, outra vez, dois
momentos na história dos conceitos e dos espaços, emitidos sobre as
16 Antônio Candido (1968) afirma que “a grande obra de arte literária nos restitua uma liberdade – imenso reino do possível – que a vida real não nos concede. A ficção é um lugar ontológico privilegiado: lugar em que o homem pode viver e contemplar através de personagens variadas, a plenitude de sua condição, e em que se torna transparente a si mesmo; o lugar em que transformando-se imaginariamente no outro, vivendo outros papéis e destacando-se de si mesmo, verifica, realiza e vive a sua condição fundamental de ser autoconsciente e livre, capaz de desdobrar-se, distanciar-se de si mesmo e objetivar a sua própria situação.”
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mulheres e permitidos a elas. Além disso, no processo que tange à construção
das personagens femininas dessa obra, deparamo-nos com personagens
vivendo em tempos diferenciados: a personagem moderna, ou seja, a própria
protagonista Beatriz dialogando com uma personagem do passado, Capitu.17
Temos, aqui, uma história dentro da história, que começa a ser escrita
pela menina Capitolina e é concluída pela mulher Capitu:
Só depois do almoço [...] tornou a pegar a papelada da Capitu, as anotações que fizera, o livro do velho Machado. Mais uma vez, era dominada pela incredulidade. Racionalmente, porém, constava que era verdade. Sempre imaginara aqueles personagens apenas como seres inventados. Agora descobria que um deles, pelo menos, tivera existência real. (MACHADO, 1999, p. 211).
A obra, desta forma, apresenta-nos personagens femininas em
diferentes tempos, mas que dialogam entre si, aproximando séculos e
desvendando perfis, cada qual inserida em sua época. De um modo geral, as
obras literárias têm como uma de suas peculiaridades a capacidade de romper
a barreira do tempo e do espaço, uma vez que preservam sua atualidade.18
Assim como em Bisa Bia Bisa Bel, nessa obra, as personagens
femininas destacam-se, também, pela força e coragem. A protagonista Beatriz
pode ser caracterizada como ousada, destemida e sintonizada com os novos
tempos: “E quem tomara todas as iniciativas tinha sido ela – tanto de começar
a conversa quanto de encerrá-la” (p.33). Já Lina, ou Capitolina, levava uma
vida voltada para o lar, marido e filho, submissa e injustiçada, mas conseguiu
renascer apesar de todos infortúnios vividos, graças ao desejo de liberdade. Há
de se destacar esse desejo de Lina confidenciado nas anotações descobertas
no peculiar livro de receitas confiado à Beatriz. Convém salientar que sua
17 Segundo Iser (1996), o texto narrativo apresenta algumas perspectivas importantes, como a do
narrador, dos personagens, do enredo e do leitor ficcional. Com isso, percebemos que nessa obra, esses pontos se entrelaçam e oferecem a elaboração de diferentes ângulos, perspectivas que se cruzam, tais como personagens e textos do passado, deixando a critério do leitor a atualização da história a partir de sua imaginação. 18 De acordo com Jauss (1994, p. 26), a obra literária apresenta um caráter de acontecimento,
propiciando atualização, pois questionam as perspectivas presentes suscitadas: “A história da literatura é um processo de recepção e produção estética que se realiza na atualização dos textos literários por parte do leitor que os recebe, do escritor, que se faz novamente produtor, e do crítico, que sobre eles reflete”.
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audácia foi viver o que sentia e acreditava, a despeito das convenções e
expectativas, enquanto que a audácia de Beatriz foi conscientizar-se de
transcender o estático e evitar voltar atrás:
Mas agora, no Recanto, de repente, contemplando o canteiro de rosas, ela via outro sentido na aparente mutilação daqueles tocos podados. Davam-se à sua decifração como se fossem uma bússola para humanos, mostrando que de vez em quando é preciso cortar sem dó para que a seiva não se disperse e possa se concentrar toda no rumo do que é essencial.Ousar uma perda efêmera para garantir a fartura da safra ainda guardada mais adiante. Ter a audácia de apostar no recôndito e na sua força, contra todas as evidências da superfície visível, com seu viço momentâneo e sedutor (MACHADO, 1999, p. 204-205).
Além disso, as demais personagens mostram-se tão ousadas como a
protagonista. É o caso de Ana Lúcia, secretária e amiga de Bia, que tenta
transpor o machismo e o ciúme possessivo do noivo, o qual trata como se
fosse sua propriedade, mas que consegue alçar novos rumos. Dona Lourdes
também merece destaque: mãe de Virgilio, rompe com as expectativas de
Beatriz e, consequentemente, do leitor, mostrando-se uma mulher de fibra que
comanda uma empresa e tem muita energia:
Quando dona Lourdes abriu a porta, era exatamente como a moça imaginara – uma figura bem maternal, baixinha, meio gordota, sorridente e falante. Mas, em seguida, foi tudo diferente. [...] A moça não queria ser indiscreta, mas não pôde deixar de ouvir: a mãe de Virgílio estava fechando a negociação final de um contrato! E negociava bem... (MACHADO, 1999, p. 179).
Outro fato curioso da obra são os nomes que Machado dá aos seus
personagens, Beatriz e Virgilio, correspondentes às personagens da Divina
Comédia, de Dante Alighieri, ambos guias do poeta: Virgilio no inferno, Beatriz
no paraíso. Ele, o maior dos poetas romanos, enquanto Beatriz é a paixão
platônica de Dante. Elementos de contato entre o vivido e o criado, entre a
realidade e a ficção, encontrando-se para a construção de novas significações.
Além disso, o nome de Beatriz, além de remeter ao arquétipo da bem-amada
de Dante, lembra ao leitor Bisa Bia Bisa Bel (1982), pois é o mesmo nome da
bisavó da garota Isabel. A jornalista Beatriz bem poderia ser a Bel, passados
17 anos, justamente o tempo que separa a publicação de ambas as obras. A
Beatriz, de A audácia dessa mulher (1999), é uma mulher sintonizada com os
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novos tempos, mas que leva muito a sério os valores cultivados, herança da
possível linhagem da menina Bel e da bisavó Bia. As aproximações referentes
ao nome justificam-se no ensaio O recado do nome (2003), que analisa a
importância dos nomes próprios na obra de Guimarães Rosa e que, para
Machado, dizem muito.
Em Bisa Bia Bisa Bel e A audácia dessa mulher, evidenciamos a
coragem e ousadia das mulheres construídas por Machado. O valor feminino
se configura em mulheres que não desistem de suas vontades, sonhos e
projetos, por conta de conceitos preestabelecidos e preconceituosos. É
importante ressaltar que, embora tenhamos escolhido esses livros para
contextualizar o feminino em sua obra, existem ainda muitos outros que
insistem neste valor, perseverando na busca de uma nova realidade, de uma
nova ordem para a atuação da mulher na sociedade. Esse é o fio que liga a
maioria das personagens da escritora Ana Maria Machado, que também é uma
mulher de seu tempo e que, por meio de suas narrativas, demonstra
compartilhar a visão de mundo e os anseios de suas heroínas.
2.2 A perpetuação da tradição no contador de histórias
[...] à minha reivindicação de ler literatura (o que, evidentemente, inclui os clássicos), porque é nosso direito, vem se somar uma determinação de ler porque é uma forma de resistência. Esse patrimônio está sendo acumulado há milênios, está à minha disposição, uma parte é minha e ninguém tasca. (MACHADO, 2002, p.19)
Desde que o mundo existe e, nele, os seres humanos fazem sua
morada, a História é construída a partir da relação entre esses seres e as
coisas existentes. Tudo que sabemos hoje sobre o nosso passado histórico é
fruto de uma herança cultural transmitida por nossos antepassados, por meio
de informações que passaram de geração a geração. Isso nos inclui nessa
História, cujo futuro também será transmitido. A literatura também é uma forma
de perpetuação de toda nossa História. Na obra Texturas – sobre leituras e
escritos (2001), Ana Maria Machado menciona a literatura como uma herança
54
cultural, da qual todos nós temos direito, configurando assim o valor que ela
atribui à cultura tradicional. Em muitas obras ficcionais da autora, identificamos
tal valor, uma vez que Machado é fortemente ligada às suas raízes, tanto a
familiar como a cultural.
Na obra De fora da arca (1996), é possível notar duas referências à
tradição: a primeira trata da história bíblica da Arca de Noé; e a outra, da
família como forma de propagação da História através de histórias. Nessa
narrativa, ela se apropria de um aspecto marginal da história bíblica, ou seja,
dos animais que não entraram na arca de Noé pelos mais variados motivos.
A História de Noé é de conhecimento comum, pelo menos por parte dos
povos que seguem a tradição hebraico-cristã. Trata-se de um homem temente
a Deus, que vivia numa época em que as pessoas não queriam obedecer ao
Senhor e só faziam o mal diante dos olhos do seu criador. Irado, Deus resolveu
destruir a terra tão bela que havia feito para os homens. Chamou Noé e
mandou-o construir uma arca na qual pudesse ficar toda a sua família e um
casal de cada espécie de animais existentes na terra. Noé assim fez.
Quando a arca estava pronta, os animais começaram a chegar. “Veio
bicho de tudo que era lado”, o que deu o maior trabalho à família de Noé, pois
tinham que cuidar de toda bicharada. Mas alguns animais foram deixados ou
esquecidos do lado de fora da arca. Como fazer para que as futuras gerações
se lembrassem deles após o dilúvio que mataria todos os seres vivos fora do
grande do barco? Com exceção dos que podiam nadar – Machado ressalta,
“feito peixe, camarão, caranguejo, lagosta” – e de quem era leve e podia voar
pousando na arca de vez em quando – “feito garça, gaivota, mergulhão,
flamingo” – os demais estariam fadados ao esquecimento.
É aqui, então, que aparecem os outros personagens desta história, que
vão dividir com a narradora a tarefa de contar as histórias ao leitor. Esses
personagens são: a mulher, os filhos e as noras de Noé, que salvam os
animais que não tiveram a mesma sorte dos que nela entraram. As vinte e uma
espécies que ficaram de fora da arca só se salvaram na memória da família de
Noé, cujos membros foram passando suas histórias para as gerações
seguintes, retendo na lembrança pelo menos alguns dos nomes apresentados.
E como Noé e sua família eram os únicos humanos em todo o planeta após o
55
dilúvio, ficou fácil para eles transmitirem aquilo que tinham como herança, ou
aquilo que eles queriam que se propagasse. É claro que, com isso, muita coisa
se perdeu também.
Diante da nova versão do mito bíblico, narrado por Machado, é possível
notar o grande compromisso que ela tem com o passado, pois o antigo tem
muita força na modernidade, principalmente por se tratar da História de um
povo. Em Silenciosa Algazarra (2011), ela faz menção acerca da tradição na
construção da herança cultural de todos:
[...] tenho sempre mantido um nítido compromisso com a preservação do patrimônio cultural – brasileiro ou universal. Reconheço que tudo o que escrevo é mesmo tecido de um diálogo entre imaginação, observação e memória. E me dou conta de que, com frequência, estou passando por cima desses limites que às vezes alguns tentam manter de pé como fronteiras intransponíveis – entre o real e o imaginário, entre o oral e o escrito, entre o popular e o erudito, entre o regional e o universal ou entre o infantil e adulto. (MACHADO, 2011, p.101)
Além da obra De fora da arca (1996), temos muitas outras que
configuram a tradição através do contador de histórias. Já vimos que em Bisa
Bia Bisa Bel (1982), a autora apresenta uma história em que a menina
encontra uma foto de sua bisavó quando criança e aprende a valorizar e
respeitar os ensinamentos que vai recebendo dessa sua antepassada. Mesmo
com a ausência da bisavó, que só é vista através da fotografia e da
imaginação, Isabel aprende a conhecê-la:
A partir desse dia, passei a ter longas conversas com Bisa Bia. Geralmente, quando nós estávamos sozinhas. Ela me contava uma porção de coisas do tempo dela, ensinava coisas, falava de lembranças, dava conselhos – o que ela gosta de dar de conselhos não dá nem para imaginar. Alguns conselhos são ótimos. Por exemplo, enfeitar meus cadernos com figuras coloridas (que ela chama de cromos). Acabamos descobrindo uns numa papelaria, que são mesmo umas graças. Fiquei com mania de cromos. (MACHADO, 1982, p.10)
Com isso, é possível notar os valores que acabam por passar de
geração a geração, uma vez que a bisavó transmite a Isabel todo o
conhecimento que fez parte de sua vida. Além disso, é importante ressaltar que
Machado também coloca, nesse encontro de gerações, uma troca recíproca de
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informações específicas sobre cada tempo, o que instiga a curiosidade a
respeito de cada época:
Ela explica as coisas do tempo dela, eu tenho que dar explicações do nosso. É que dentro do envelope, dentro da caixa, dentro da gaveta e dentro do armário, ela não tinha visto nada do que andava acontecendo por aqui esses anos todos. (MACHADO,1982, p. 26)
Ambas as culturas retratadas no livro estão impregnadas de costumes
estrangeiros da potência mundial dominante de cada época. No tempo de Bisa
Bia, vemos a influência da cultura francesa: bibelô, plafoniê, bisotê, bombonier,
etager. Já no tempo de Isabel, que é o tempo da narração, a influência
estrangeira dominante é a americana, e os termos traduzidos ou abrasileirados
vindos do inglês são um mistério para Bisa Bia:
Porque naquele tempo não tinha ‘spray’ de matar insetos, quem disse que ela sabia o que era ‘coca-cola’? Ou qualquer refrigerante? Nada disso tinha no tempo de lá, no domingo em que eu disse que eu ia comer um cachorro-quente e tomar uma vaca preta foi um deus nos acuda [...] quando eu disse que era um lanche, levamos um tempão até entender que ela chamava de merenda [...] ‘sanduiche’ era outra coisa que ela nem sabia o que era, mas deu pra explicar que era salsicha com pão. (MACHADO, 1982, p. 26-27)
Em História meio ao contrário (1978), a escritora também coloca
esses valores com relação à tradição, atentando para a importância daqueles
que nos antecederam: “a história dos filhos começa mesmo é na história dos
pais. Ou na dos avós, bisavós, tataravôs ou requetatatataravós”
(MACHADO,1978, p. 4). Para ilustrar isso, Ana Maria Machado busca na
cultura indígena, uma prática rememorativa existente em muitas tribos,
estabelecendo assim um vínculo com seus antepassados e cultuando a
memória daqueles que são origem e, de certa forma, motivo de sua própria
existência. Esse culto dessas origens de maneira simbólica torna-se um elo de
identidade entre o passado e o presente:
Quando chega a noite e todo mundo se junta em volta da fogueira, muitas vezes os mais velhos ficam contando as histórias de todos os antepassados: avós, bisavós, todos esses que vieram antes, até chegar a vinte. De todos eles, cada índio tem que saber pelo menos duas coisas – onde está enterrado o umbigo e onde está enterrado o crânio. Quer dizer, onde o bebezinho nasceu e onde depois a pessoa morreu. (MACHADO,1978, p. 4).
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No entanto, há uma crítica ao focalizar a importância dada pelo índio aos
seus antepassados e à cultura, em contraste com o homem branco “que não
liga para essas coisas” (MACHADO,1978, p. 5) e, por isso, não sabe a história
de seus pais, enfim, a sua origem. Aqui, a ironia se instaura, pois o narrador
observa que a sociedade capitalista contemporânea é marcada por “sabedorias
civilizadas”, tal como “escalação de time de futebol, anúncio de televisão,
capitais de países, marcas de automóveis”. Além da referência à cultura
indígena, existe ainda o destaque a outras histórias que integram o horizonte
de escolhas pessoais dessa voz narrativa que se confunde com a voz autoral.
Ela utiliza de certa intimidade e transparência com seu leitor ao falar ou contar,
como se se tratasse de uma conversa despretensiosa: “Mas é que eu gosto
muito de índios e piratas (por isso adoro a história de Peter Pan) e toda hora
lembro deles”. Ao transformar esse leitor em cúmplice, operacionaliza-se
também a incorporação dele no texto, que, para Iser (1996), acaba por ser uma
interação bem-sucedida, pois a transferência do texto só obterá êxito se
conseguir ativar certas disposições na consciência do leitor, ou seja, sua
capacidade de apreensão e de processamento. Intencionalmente, portanto,
Machado garante o vínculo com seu leitor por meio do passado, da cultura e da
história narrada.
Em Do outro lado tem segredos (1985), o menino Bino descobre a si e
ao seu povo por meio de histórias contadas e relembradas pela sua avó Odila,
sobre Luanda, em Angola, “com olhar perdido, espiando de saudade”:
– Vó, que é que tem do outro lado do mar? Ela parou e ficou pensando, o olhar perdido. Espiando para dentro. Falou alguma coisa que o neto não entendeu bem. Aruanda? Luanda? Angola? (MACHADO, 1985, p. 20)
Ou como conta o velho Mané Faustino, com certa tristeza:
- Coisa triste da viagem, do cativeiro, dos maus tratos. Pai para um lado, filho para o outro, pancada todo mundo sem entender nada do que estava acontecendo, tudo amontoado no porão, preso com corrente sem saber para onde ia, sem querer comer para ver se morria de uma vez e acabava aquele inferno... Coisa triste... Não é bom lembrar. Bino insistia: - Mas isso é na viagem. E do lado de lá do mar? Que é que tem? De é que eles vinham? Que é que tinha lá? – Coisa boa... Terra do rei... E todo mundo solto trabalhando junto,
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comendo junto, fazendo festa... Tinha até reis... (MACHADO, 1985, p. 26-27)
Os negros mais velhos carregavam sua história de memória, bastante
amedrontados pelos terrores sofridos durante anos de maldade e escravidão,
com o coração saudoso das terras do outro lado do mar gigantesco. Aos
poucos, o menino Bino vai compreendendo a sua origem e os costumes de seu
povo. Além disso, Machado inclui na narrativa a menina Maria, uma índia,
amiga de Bino, que também demonstra grande interesse por suas raízes.
Trata-se de um conhecimento pautado no que lhes foi contado pelos mais
velhos, quando pressionados pela curiosidade e imaginação dos jovens acerca
do que mal sabiam. É importante ressaltar que Machado, em nenhum
momento, inclui uma referência ao outro, o branco, o diferente de acordo com a
identificação da cor. Ela se refere a eles apenas como homens não índios ou
negros, sugerindo que não é igual, mas tampouco diferente, uma vez que
pertencem todos à raça humana.
Desde o início da obra, é possível notar palavras, versos, crenças,
cantigas, superstições de origem africana. Com relação à criação literária de
Machado, Nelly Novaes Coelho (1986) afirma:
[...] pela transgressão bem humorada de fórmulas narrativas consagradas, recusa conteúdos ideológicos ultrapassados e abre espaço para outras ideologias, desmistificando os preconceitos e colocando interrogações e reflexões no ar. Não dá respostas, mas abre caminhos para elas. Outro elemento bastante fecundo na criação literária de Ana Maria Machado é o confronto entre o pensamento racional, humanístico e conceptual herdado da tradição cristã e progressista, com o pensamento mágico primordial. (COELHO, 1981, p.199)
O próprio cenário da história, uma vila à beira-mar, com seus
pescadores, mulheres que trabalham juntas, meninos ajudando na pesca,
enfim, tudo isso compõem um clima semelhante ao da África, lugar de origem
dos escravos que para cá vieram. Para evidenciar ainda mais essa tradição, a
autora representa seus costumes, como ler a sorte nas conchas, búzios e
estrelas; dependurar uma figa ao pescoço; buscar água na fonte equilibrando a
talha de barro sobre uma rodilha na cabeça, dentre outros. Mesmo as festas,
que lá aconteciam, combinavam as raízes cristãs com as africanas, ou seja, o
Rei Congo com São Benedito, bem à maneira de Ana Maria Machado:
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Benedito pretinho Olha as ondas do mar Lelê-ôi... Ele vai, ele vem Ele torna a voltar Lelê-ôi... (MACHADO, 1985, p. 35)
As festas lembram a África e os reis que lá viviam e retomam alguns
lugares da África: Guiné, Angola, Congo. “A África é igual à mãe da gente, foi
de lá que a nossa gente veio” (MACHADO, 1985, p.40), explica Tião a Bino. No
sincretismo das culturas afro e cristã, os dançarinos da congada cantam: “Vai
puxando pro seu rendimento que São Benedito é filho de Zâmbi”. E a história
volta a ser lembrada:
- Eu sei é que tinha um Zumbi que era o rei e veio para o lado de cá, preso, cativo. Depois o filho dele fugiu. Levou muita gente junto. Fizeram um quilombo, reino de preto que não era mais cativo. Lutaram muitos e muitos anos para conseguir não ser cativo de novo. Os filhos tiveram filhos. O rei chamava Zumbi ou um nome parecido. Até que os bandeirantes chegaram lá e acabaram com tudo. Mas era um reino grande, cheio de gente, com muita terra. (MACHADO, 1985, p.47-48)
Assim como muitas outras obras de Machado, Do outro lado tem
segredos propõe um novo modelo social na pequena vila de pescadores, com
negros e índios juntos, vivendo em amizade. Essa ideia é coroada com o beijo
do negro Bino e a índia Maria, no desfecho. E todos relembram e contam as
histórias como se fosse “akpalô”, termo cujo significado é explicado por Gilberto
Freyre:
Akpalô é uma instituição africana que nasceu no Brasil na pessoa de negras velhas que só faziam contar histórias. Negros que andavam de engenho em engenho contando histórias às outras pretas, amas dos meninos brancos. [...] contavam histórias e iam-se embora. Viviam disso. Exatamente a função e o gênero de vida da akpalô. (FREYRE, 1997, p. 331)
Diante disso, podemos afirmar que o valor da tradição, a importância da
herança cultural, a qual todos temos direito, aparecem em muitas obras de Ana
Maria Machado, em especial, Do lado de fora da barca, Bisa Bia Bisa Bel,
História meio ao contrário, Do outro lado tem segredos. Essas obras não
60
fogem aos temas complexos e inclui história e raízes sociais, cultura popular,
racismo e escravidão, justiça social, igualdade e liberdade, contos tradicionais
e mitos folclóricos, tudo isso se tecendo através da figura do contador de
histórias. A partir disso, como já mencionado no primeiro capítulo, estamos
diante de uma escritora que, por ter ouvido muitas histórias quando criança,
aprendeu a valorizar o contador de histórias responsável pela perpetuação de
suas raízes e, mais do que isso, atribuiu à tradição um valor que perpassa
várias de suas obras. Fica evidente que, para ela, a leveza de um povo está
pautada nas bases de sua cultura popular nos momentos de definição e
identificação desse povo, através de suas crenças e movimentos culturais.
Tratar da identidade de um país e de seu povo é tratar, certamente, da cultura
popular e da memória coletiva disseminada na tradição.
61
3. DO POLÍTICO AO UNIVERSAL: A AUTORIDADE DO CLÁSSICO
3.1 Do autoritarismo à construção do literário
Se a boa leitura garante a possibilidade de ascensão social e a tomada de uma parcela de poder, desenvolvendo a capacidade de ler nas entrelinhas e pensar pela própria cabeça, pode ser muito perigoso para os privilegiados assegurar a imersão da população num ambiente de livros. (MACHADO, 2001, p.11)
Durante a ditadura militar no Brasil, muitos autores brasileiros
encontraram na literatura infantil o espaço para expor seus questionamentos e
protestos contra a política de repressão imposta pelo governo. Dentre eles,
temos Ana Maria Machado, que tem denunciado, através de seus textos
dirigidos ao público infantil e/ou adulto, os abusos do poder e a realidade
político social de um país que vive alienado graças à falta de contato com
livros. É essa visão que aparece já no primeiro capítulo de Silenciosa
Algazarra (2011):
Só a possibilidade de leitura de literatura, distribuída pelo maior número possível de cidadãos, poderá reforçar a coletividade diante da manipulação do mercado, dos interesses políticos, dos fundamentalismos religiosos, das ambições pessoais de ditadores. Sociedades que já são letradas há muito tempo têm anticorpos intelectuais mais desenvolvidos para enfrentar esses novos males. Sociedades menos acostumadas à leitura ficam muito mais vulneráveis e expostas. Aproximar as crianças de bons textos é também uma forma de fortalecer defesas e cuidar do futuro. (MACHADO, 2011, p.44 e 45)
Em Texturas – sobre leituras e escritos (2011), ela declara com
orgulho que, durante a manifestação a favor do impeachment, um grupo de
jovens afirmaram terem lido Era uma vez um tirano e que com esta obra
aprenderam a lição:
Poucas obras são tão emblemáticas desse período quanto a tetralogia dos reis, de Ruth Rocha, com seu Reizinho mandão, seu Rei que não sabia de nada, seu rei que não conseguia enxergar os pequenos – monarcas poderosos e autoritários, mas sujeitos a ouvir
62
de uma menina a frase de enfrentamento: “Cala a boca já morreu, quem manda na minha boca sou eu!” Esses reis viviam em livros que não eram censurados oficialmente, mas viviam tendo problemas em um ou outro colégio, pois eram perfeitamente entendidos pelos leitores. Tanto assim que muito tempo depois, em 1992, estávamos Ruth e eu, às vésperas de um 7 de setembro, autografando livros na Bienal de São Paulo, quando entrou um grupo de jovens com as caras pintadas chamando para uma passeata pelo impeachment do Collor. Quando nos viram, nos cercaram, entre exclamações alegres, fazendo piada: “A culpa é de vocês duas! Viram só no que deu?” E uma menina dizia para mim: “Eu li Era uma vez um tirano e aprendi”.. Outra dizia para Ruth: “Viu como a gente está sabendo mandar o reizinho calar a boca?” (MACHADO, 2001, p. 82).
A partir desse episódio, delineia-se uma artista da palavra que não cria,
não inventa do nada, mas dentro de condições históricas, sociais, políticas e
ideológicas, nas quais tanto ela como seu material de trabalho estão inseridos.
Nesse caso, movida pelos acontecimentos e pelas condições de produção da
ditadura militar, a escritora mobilizou-se como cidadã contra as ideias do
aparelho repressor da época, escrevendo seus livros e ajudando a formar o
entendimento e a consciência política de uma geração.
No entanto, não podemos deixar de mencionar que, nos anos 60, o país
expressava uma imagem de modernismo em expansão com o desenvolvimento
da indústria brasileira, uma vez que reforçada por investimentos estrangeiros e
pela lei de desenvolvimento de pequenos polos no país, encontrava-se
alinhado com o mundo capitalista, situação que acarretou dependência tanto
da economia quanto da ideologia. Durante a ditadura militar, multiplicaram-se
as instituições voltadas para a Literatura Infantil Brasileira com uma quantidade
notória de títulos infantis. Dentre elas estão a Fundação Livro Escolar (1966) e
a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (1968), que aderiram a uma
nova roupagem.19
19 Marisa Lajolo e Regina Zilberman (2010, p. 160) afirmam que “a cristalização e ampliação de um
mercado rendoso e pouco exigente, sensível a expedientes de divulgação que exploram a dependência entre a literatura infantil e a escola, favorecem a repetição de velhas fórmulas e exige do escritor uma periodicidade de lançamentos que talvez seja incompatível com a criação artística, nos moldes em que ela é concebida na literatura não infantil”.
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Ao mencionar os “livros que não eram censurados oficialmente, mas
viviam tendo problemas em um ou outro colégio”, Machado deflagra a difusão
do livro na escola, instituição regulamentada segundo as diretrizes do governo
ditatorial. Com isso, deixa entrever que, possivelmente, tais livros não fossem
tão ameaçadores, já que passavam livres da censura oficial para serem usados
na escola e na formação de leitores. E, provavelmente, isso acontecia porque
embalados em uma literatura que apregoa a necessidade de nos tornarmos um
país leitor20.
Para exemplificarmos o valor político presente na ficção de Ana Maria
Machado, tomamos por base História meio ao contrário (1978) e Era uma
vez um tirano (1982). A primeira traz uma narrativa que se passa na era
medieval, em um reino que tem como centro o castelo no qual vive a família
real, ou seja, o rei, a rainha e a princesa. Em torno do castelo, existe um
vilarejo onde moram pessoas muito simples e trabalhadoras, como aldeãos e
camponeses. Tudo transcorre calmamente até que um dia o rei descobre que
sua cidade é diariamente atacada por um monstro enorme e terrível, que faz
com que o dia desapareça. Mas o monstro, na verdade, é a noite, fenômeno
natural desconhecido pelo rei que quase nunca sai do castelo, mantido fechado
a maior parte do tempo. Resolve, então, dar fim ao monstro, oferecendo a
própria filha em casamento ao príncipe que matar o monstro terrível. Os
aldeãos, porém, entendem que a existência da noite é de suma importância
para a sobrevivência de todos, unem-se e convocam a ajuda de um gigante
para impedir o príncipe de matá-la. O gigante, por sua vez, atende ao pedido
dos aldeãos e com seus poderes mágicos acelera o curso normal dos
processos da natureza, para que o príncipe não consiga atingir o Dragão
Negro. No entanto, o príncipe em sua busca se depara com a Pastora e se
apaixona por ela, enquanto o rei desiste de acabar com o Dragão Negro, pois
20 É importante ressaltar que, embora Ana Maria Machado defenda que a arte, no caso dela e de outros
escritores, materializada pela palavra escrita, não estava a serviço da ideologia, não há como, segundo Bakhtin (1999, p. 96), separar uma da outra: “A língua, no seu uso prático, é inseparável de seu conteúdo ideológico ou relativo à vida. Para se separar abstratamente a língua de seu conteúdo ideológico ou vivencial, é preciso elaborar procedimentos particulares não condicionados pelas motivações da consciência do locutor. Se, à maneira de alguns representantes da segunda orientação, fizermos dessa separação abstrata um princípio, se concedermos um estatuto separado à forma linguística vazia de ideologia, só encontraremos sinais e não mais signos da linguagem. A separação da língua de seu conteúdo ideológico constitui um dos erros mais grosseiros do objetivismo abstrato.”
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percebe sua importância. Ao final, a princesa recusa casar-se com o príncipe
para se aventurar pelo mundo; enquanto ele, apaixonado pela pastora e tento
decidido ficar ao seu lado, torna-se vaqueiro.
Nessa obra, o rei aparece ridicularizado e ignorante, desconhecendo as
verdadeiras necessidades de seu povo. A ignorância do Rei é colocada na
narrativa de maneira cômica, o que contribui para a construção da imagem do
rei como alguém que vive uma vida “de mentira”, de “faz de conta”. Esse
distanciamento social é gerador do conflito na trama do livro: a Corte Real
desconhece o que seja um pôr do sol e, por consequência, a noite. Fato que,
no contexto, é perfeitamente possível e justificado, pois o Primeiro Ministro diz:
“Vossa Majestade é um homem feliz para sempre e ninguém quis incomodá-lo
com essas coisas” (MACHADO,1978, p. 15).
Ana Maria Machado chega ao extremo da crítica social fazendo com que
o Rei nem sequer saiba o que é o povo, pois pensava que se tratava de um só
indivíduo. Ele queria conversar com esse povo, como se conversa com uma
pessoa, e convoca-o, pedindo a seus criados que lhe gritem aos ouvidos,
joguem-lhe água e o façam “pular da cama, calçar os sapatos e vir correndo”
(MACHADO,1978, p. 17). Quando o povo atende ao chamado do rei, ele se
assusta ao ver uma multidão embaixo da sacada real, que é constituída pelos
seus próprios trabalhadores. Nota-se, então, uma personagem alienada daquilo
que acontece em seu reino, pois desconhece por completo todos os fatos
recorrentes.
Era uma vez um Tirano (1982) foi escrito após a anistia, embora ainda
vigorassem as leis da ditadura, e traz a história de um país muito divertido que,
por descuido ou preguiça, deixou-se dominar por um tirano. As armas que três
crianças dispunham para combater sua tirania eram um arco-íris no bolso, uma
canção no corpo e uma chuvarada de estrelas. A obra enfoca a relação com o
poder político, mas o narrador demonstra preocupação em marcar a
atemporalidade e o não-lugar, reforçando a ideia de que os fatos que serão
contados podem ocorrer em qualquer lugar ou época:
Uns dizem que esta história aconteceu há muitos anos, num país muito longe daqui. Outros garantem que não, que aconteceu há poucos e poucos dias, bem pertinho. Tem também quem jure que está acontecendo ainda, em algum lugar. E há até quem ache que ainda vai acontecer. (MACHADO,1982, p.05).
65
Para introduzir o questionamento acerca dos limites do poder, Machado
insere como protagonista um Tirano, centralizador do poder, que se impõe
politicamente pela força e proíbe as diferenças de qualquer natureza em seus
domínios. Diante de tal construção, fica evidente que a escritora buscou
elementos que fizessem menção ao regime ditatorial que o Brasil viveu em seu
passado histórico, demarcando uma de suas características: a resistência a
tudo que é imposto. Daí seu desejo de ser Dom Quixote, como menciona no
Prefácio de Contracorrente (1999), ou seja, uma defensora da liberdade por
meio de sua atitude anticonformista. Em seu web site, Machado nos revela sua
real intenção acerca da obra:
Minha proposta para vencer a situação era simbólica, naturalmente. Mas tinha a ver com o caminho em que eu acreditava: uma festa feita com a união de toda a nação, nas suas diferentes etnias e gerações, com os recursos da memória e da criatividade artística, e com a pureza e coragem das crianças.
21
Desde o início da obra, o narrador expõe as atitudes repressivas do
Tirano, com o intuito de anular aquilo que ele julgou ser uma bagunça: as
pessoas discutiam por qualquer coisa antes de tomarem as decisões acerca do
país. Em seguida, surge o discurso do Tirano, afirmando a inutilidade da
discussão, sobretudo em detrimento do trabalho.
É curioso observar que a submissão às ordens desse Tirano não se deu
de forma pacífica, mas força e violência funcionaram como armas para coibir
qualquer divergência em relação ao poder, ou a quem ousasse contrariá-lo. E
mais uma vez, Machado nos remete ao regime ditatorial ao mencionar o toque
de recolher, que, simbolicamente, propunha uma retirada da resistência de
forma pacífica ou não, pois acabava desencadeando prisões e expulsões. A
apatia do povo diante de tal situação foi o mais lamentável fato, portanto, era
necessário introduzir e delegar às crianças o poder de articulação entre as
pessoas que julgavam ser improcedentes as imposições do Tirano.
Em Contracorrente (1999), Machado questiona o papel dos textos para
crianças no que diz respeito à ideologia transmitida. Segundo a autora, na
21 Disponível em www.anamariamachado.com.br
66
literatura infantil, muitas histórias reafirmam a dominação do mais fraco pelo
mais forte, ensinando aos pequenos que os adultos sempre devem decidir. No
entanto, a autora acredita que a literatura infantil, assim como qualquer outra
literatura, enquanto forma de arte, tende a ser subversiva e questionadora
mediante a autoridade, tanto que, em Era uma vez um tirano, são as três
crianças os elementos fundamentais de contestação em relação aos abusos de
poder por parte do Tirano. Assim, quando o narrador menciona as crianças, há
uma espécie de recomeço com o uso da estrutura “Era uma vez”, e as três
crianças descobrem-se diferentes entre si devido as cores da pele: “preta”,
“rosada” e “cor de cobre”, fazendo referência à etnia brasileira.22
O despertar por parte da população, portanto, é provocado por essas
três crianças, e cada uma delas é responsável por uma frente. É importante
lembrar que uma das proibições do Tirano correspondia à arte, ou seja, “estava
proibido cantar, dançar, tocar, batucar, representar, desenhar, pintar, inventar,
escrever, ler, guardar papel escrito" (MACHADO,1982, p. 14). Foi por isso que
as crianças instauraram a revolução, através de algumas atitudes dos
pequenos: Jacira e seu grupo trouxeram de volta as cores que, com o reflexo
da luz, fez surgir o arco-íris; o outro grupo, liderado por Totonho, trouxe a
música e a dança; e a última, conduzida por Isabel, teve como objetivo ligar a
intervenção humana na tentativa de reinventar a natureza. Ao final, temos o
esperado desfecho: ao perceber que não tinha forças para enfrentar o povo, o
Tirano foge e a paz reina novamente.
Diante de tais definições, podemos pensar que Machado com seus
reis23, após duas décadas, muito contribuiu na formação de uma geração mais
22 Nelly Novaes Coelho (2000, p.11) assinala um conjunto de características estilísticas e estruturais da literatura infanto-juvenil contemporânea, dentre elas estão as personagens-grupo, que deixam de lado suas individualidades e incorporam-se em grupos, adquirindo assim o espírito coletivo, a fim de buscar um interesse comum. Com base nessa informação, temos um grupo de crianças que promovem a revolução e “de conversa em conversa as ideias aparecem... E as conversas e ideias são inimigas dos Tiranos”. 23 Tendo em vista as figuras do Rei ignorante de História meio ao contrário (1978) e o Tirano de Era
uma vez um Tirano (1982), é importante destacar o que Michel Foucault (1988, p. 35) afirma acerca do poder que é representado pelo rei, pelo fato de, ainda hoje, esse conceito estar ligado às ideias de direito e soberania: “No fundo, apesar das diferenças de época e de objetivos, a representação do poder permaneceu marcada pela monarquia. No pensamento e na análise política, ainda não cortaram a cabeça do rei.” Além disso, o estudo dos símbolos também nos remete às motivações da conotação de soberania associada ao monarca. De acordo com Chevalier (1996), o rei é concebido como a projeção de um eu superior. Sua imagem associa-se a do pai, do herói, do sábio e do santo – personas que concentram em si o arquétipo da perfeição humana. Essa imagem de onipotência confere ao rei, em
67
participativa, que leu e entendeu o que ela havia dito. Além disso, ajudou na
formação de leitores que, futuramente, participariam ativamente de um
acontecimento político de repercussão nacional – a destituição do presidente
do país, fazendo valer seus direitos, desde que estivessem unidos pela mesma
causa.
3.2 Universalidade: a manutenção do clássico na literatura
Concebem, assim, uma literatura de valor universal, que tem por base convicções humanísticas de igualdade e fraternidade. Não há dúvida de que o progresso e a rapidez dos meios de transporte e de comunicação contribuíram fortemente para o cosmopolitismo e o internacionalismo. A ampliação demográfica do público virtual obrigou os modernos a pensarem a “universalidade” em termos muito mais vastos e diferenciados do que no século XVIII. (PERRONE-MOISÉS, 1998, p.168-169)
Como já mencionado, Leyla Perrone-Móises em Altas Literaturas
(1998), elege alguns críticos escritores que, por sua vez, enumeram alguns
valores ditos modernos. Dentre eles está a universalidade, um valor
identificado na obra de Ana Maria Machado. Em Como e por que ler os
clássicos universais desde cedo (2002), a autora faz um mergulho nos
clássicos da literatura, utilizando linguagem simples e tom de oralidade, para
apresentar o leitor às obras, seja apontando a importância do cânone, seja
enfatizando sua universalidade.
Logo no capítulo inicial, registra vários pontos importantes acerca da
leitura, afirmando que: “Ninguém deve ser obrigado a ler; ler é um direito, não
um dever. É alimento do espírito. Igualzinho à comida.” (MACHADO, 2002,
p.15)24.
muitos escritos literários, um caráter tirânico porque detentor de algo que o faz superior aos outros mortais - é o guardião de um poder que a ele foi conferido por Deus. 24 Em “O direito à literatura”, Antonio Cândido (1995) reafirma o direito que todos temos à boa
literatura, colocando-a junto aos direitos humanos como elemento de organização individual e social. Afirma também que direito humano é aceitar que aquilo que é indispensável para mim, também o é para meu próximo, ou seja, a literatura é tão importante quanto os direitos básicos, tais como moradia,
68
Nesse primeiro capítulo, Machado ainda faz mais algumas observações
e uma delas consiste na crítica que direciona à escola e aos pais que obrigam
crianças e jovens a lerem somente para fazer prova. Cita Monteiro Lobato, para
quem obrigar alguém a ler um livro, mesmo que seja pelas melhores razões do
mundo, só serve para vacinar o indivíduo para sempre contra a leitura; e Oscar
Wilde, para quem os acadêmicos e aqueles que se acham donos da literatura
muitas vezes empregam os clássicos ao modo do guarda com seu cassetete,
para dar com eles à cabeça dos outros, principalmente dos inovadores que
querem sair da linha e se afastar do que presumem ser a legalidade literária.
Para a autora, a leitura dos clássicos para crianças e jovens não consiste no
contato forçado com Machado de Assis, Raul Pompéia ou José de Alencar
para efeito de fazer prova ou de cobrança valendo nota. Ela defende a ideia de
que se o leitor travar conhecimento com um bom número de narrativas
clássicas desde pequeno, mesmo se esse contato for feito por meio de boas
adaptações, esses eventuais encontros com nossos mestres da literatura virão
a acontecer naturalmente no final da adolescência. E frisa, ainda, que as
adaptações dirigidas ao público infanto-juvenil servem para estimular a
curiosidade e funcionam como um “trailer”, mostrando em que consiste a obra,
para que, posteriormente, esse jovem possa buscar tal narrativa em sua
íntegra.
Nesse mesmo ensaio, é possível identificar a universalidade presente
em diversas narrativas mencionadas por Machado. No entanto, daremos
prioridade ao que ela afirma acerca dos contos de fada. No capítulo “Encantos
para sempre”, discorre acerca do lugar que essas narrativas ocupam na
academia e entre os críticos literários, por serem compreendidas como obras
de pouco prestígio e, talvez por isso ou em consequência disso, serem
direcionadas às crianças. Na visão da escritora, isso não passa de preconceito
por se tratar de contos que partiram de criações populares, o que significa que
foram feitos por artistas do povo, anônimos, e não por escritores de
reconhecimento e fama. Além disso, para ela, “o alto nível da qualidade
alimentação, água, emprego. Defende a ideia de que a literatura de qualidade e uma boa música também são fundamentais para todo ser humano. Porém, esses quesitos não são colocados em questão, pois não refletimos que nossos direitos são literalmente iguais ao de nossos semelhantes.
69
artística e força cultural são atestados pela sua universalidade e sua
permanência” (MACHADO, 2002, p. 69).
Para muitos estudiosos, a origem desses contos está associada a
alguns ritos das sociedades primitivas, em especial, aos ritos de passagem de
uma idade para outra, ou de um estado civil a outro, o que justifica tantas
marcas simbólicas acerca da puberdade e do início da atividade sexual.
Observe-se a insistência no sangue feminino, em Branca de neve, A Bela
Adormecida, ou mesmo na cor vermelha, como é o caso de Chapeuzinho
Vermelho e A Bela e a Fera, que podem representar os vestígios da primeira
menstruação.
A escritora afirma que essas narrativas corriam por todo canto e, às
vezes, serviam de tema para que algum escritor se inspirasse e desenvolvesse
sua própria narração. É o caso de Charles Perrault, que reconta e publica
alguns desses contos, especialmente para crianças da corte real, pois os narra
em finos versos ou prosa burilada, fazendo com que todos fossem
acompanhados de uma moral. Wilhelm e Jacob Grimm optam por apresentar
esses contos em prosa e com uma linguagem bem próxima da oralidade e
modo falado pela gente do povo, mantendo o máximo de fidelidade ao linguajar
utilizado pelos contadores populares. Já Hans Christian Andersen não se
limitou em recolher e recontar essas narrativas, mas criou várias histórias
novas, seguindo o modelo dos contos tradicionais e trazendo sua marca
individual e inconfundível para eles, ou seja, “uma visão poética misturada com
profunda melancolia” (MACHADO, 2002, p. 72), em O Patinho Feio, A Roupa
Nova do Imperador, A Menina dos Fósforos, A Pequena Sereia,
Polegarzinho, dentre outras.
Além disso, Machado faz uma crítica aos escritores contemporâneos
que tentam mudar os finais desses contos, almejando poupar as crianças da
violência, como por exemplo, empurrar a bruxa má de João e Maria para o
forno quente, ou até mesmo poupando os pais dessas crianças pelo papel ativo
e terrível que desempenharam ao abandoná-los na floresta:
Os autores originais, geralmente gente do povo, de pouca instrução, muitas vezes camponeses, predominantemente mulheres, eram humildes contadores de histórias tradicionais. Despretensiosos, prestaram um imenso serviço cultural à humanidade, preservando esse riquíssimo acervo de contos populares até os nossos dias. Não
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está certo agora um candidato a autor ou pretenso pedagogo se invista unilateralmente do poder de modificar essa criação, e queira fazer crer a todas as gerações posteriores que é melhor do que eles – seja poupando o Lobo de engolir a avó, seja Cinderela ficar amiguinha das irmãs. (MACHADO, 2002, p. 76)
Para ela, a narrativa literária tem como base diversos elementos que vão
se correspondendo de modo coerente, e que, aos poucos, vão erigindo um
edifício de sentidos: “é para isso que o homem conta histórias – para tentar
entender a vida, sua passagem pelo mundo, ver na existência alguma espécie
de lógica” (MACHADO, 2002, p. 74). Ela afirma que cada texto e cada autor
tem uma maneira de lidar com os elementos que constituem essas narrativas,
e eles se adequam às diversas formas de expressão e conteúdo, de modo a
manter a coerência interna que lhe dá sentido. Sendo assim, mexer nisso
equivale a transformar a nova versão em alguma coisa “esdrúxula”, sem
sentido algum.
A universalidade e permanência que permeiam esses contos permite
que se possa aproveitar plenamente sua ampla descendência, uma vez que
esse gênero foi um dos mais fecundos no imaginário popular. Para atestar isso,
até hoje deparamo-nos com narrativas, dentre as quais podemos incluir temas
cinematográficos, que continuam contando a história de Cinderela, A Bela e a
Fera, Branca de Neve, mas com outra roupagem. Dentro da literatura, isso
volta inúmeras vezes, seja através de reimersão ou reinvenção desse universo,
como é o caso de Marina Colasanti, ou ainda como pretexto para inspiração,
no caso de A Bela e a Fera, de Clarice Lispector, ou até mesmo Fita Verde no
Cabelo, de Guimarães Rosa, entre outras as narrativas voltadas
exclusivamente para público infantil. Os contos populares sempre trouxeram
uma imensa carga de significados, que permitem uma grande economia da
narrativa e boa densidade semântica, enriquecendo-os de novos sentidos.
Assim afirma Machado:
Como esses contos tradicionais são os clássicos infantis mais difundidos e conhecidos, a gente sabe que pode se referir a eles e piscar o olho para o leitor, porque conhece o universo de que estamos falando. Fica possível, então, fazer paródias aos contos de fadas e brincar com esse repertório, aprofundando uma visão crítica do mundo a partir de pouquíssimos elementos. Mas para que esse jogo literário possa funcionar plenamente, para que o humor seja
71
entendido e a sátira seja eficiente, é indispensável que o leitor localize as alusões feitas, identifique o contexto a que elas se referem e seja, então, capaz de perceber o que está fora de lugar na nova versão. (MACHADO, 2002, p. 81)
No artigo Reino das fadas às avessas25, publicado pela Revista Entre
Livros, Gabriela Romeu define as mudanças que as narrativas contemporâneas
atravessaram:
Essa desconstrução do reino do "era uma vez" é constantemente promovida por escritores contemporâneos de literatura infantil. São autores que bebem nas fontes dos textos tradicionais, mas modificam a ordem narrativa, invertem o papel de personagens e brincam com as conhecidas fórmulas dos contos de fadas. Clássicos, aliás, cuja leitura, segundo Bruno Bettelheim, em A psicanálise dos contos de fadas (Paz e Terra), é de extrema importância para o desenvolvimento infantil. Os contos de fadas, explica Bettelheim, anunciam já nos primeiros anos de vida que a luta contra as dificuldades é inevitável. (ROMEU, 2007, p.20)
A estudiosa completa, citando algumas personagens que sofreram
mudanças se comparadas aos contos clássicos:
Em algumas obras, os personagens-símbolos dos contos de fadas – princesas, fadas, seres encantados, por exemplo – são virados do avesso. Se toda princesa é dócil, recatada e submissa no imaginário infantil, Formosura surgiu para mudar isso de uma vez por todas, em A Princesinha boca-suja (Scipione). O autor, Cláudio Fragata desconstrói mais uma personagem-símbolo dos contos de fadas. Formosura não está à espera de um príncipe encantado, é valente e diz tudo o que lhe dá na telha – para desespero de Cinderelas, Brancas de Neve e Rapunzéis. O ilustrador Odilon Moraes, premiado com o livro A princesinha medrosa (Companhia das Letrinhas), encontra o tom certo para misturar delicadeza e rebeldia em Formosura. (ROMEU, 2007, p. 20).
Para exemplificarmos a universalidade dos contos de fadas, tomaremos
por base as ficções História meio ao contrário (1978) e a A princesa que
escolhia (2006). Em ambas as obras, Machado, como boa leitora antes de
escritora, faz uma releitura dos contos de fadas misturando temas da
atualidade aos clássicos e do maravilhoso à realidade, por meio da
25 Disponível em : http://revistaentrelivros.uol.com.br/Edicoes/10/Artigo14533-1.asp> Acesso em 08 maio.2014.
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originalidade de uma linguagem marcada pela ruptura e das invenções e
reinvenções26.
História Meio ao contrário (1978), chama a atenção do leitor já pelo
título. Trata-se de uma narrativa que inicia como os finais comuns à grande
maioria dos contos de fadas: “E então eles se casaram tiveram uma filha linda
como um raio de sol e viveram felizes para sempre” (MACHADO, 1978, p. 3).
Por sua vez, o final surpreende por ser o conhecido “Era uma vez...”, aderindo
a uma estrutura circular. A continuação agora se lança como convite a que
outros continuem tecendo essas histórias que vêm sendo narradas desde há
muito tempo, como ela mesma afirma em seu ensaio Silenciosa Algazarra
(2011):
Ao começar meu História meio ao contrário, eu sabia que queria partir da frase “E viveram felizes para sempre...” para terminar meu livro com a fórmula “Era uma vez”. Para isso, precisaria reescrever de outra maneira um conto de fadas clássico, revisitando de modo crítico personagens e situações. Ao me dar essa mistura inicial de limites e liberdade, acabei entrando numa aventura altamente intertextual que não esperava e me levou por muitos outros caminhos, em que faço descrições recorrendo a versos antológicos de poetas brasileiros, lugares-comuns de nossa história literária e até trechos do Hino Nacional. (MACHADO, 2011, p. 98)
As referências ao título27 aparecem logo no início da obra: “então é
melhor mudar de história porque esta aqui é meio atrapalhada mesmo ou toda
ao contrário” (MACHADO, 1978, p. 4-5). Em seguida, o narrador reafirma a
parcialidade dessa contradição “Mas vamos começar de novo pelo começo. Ou
pelo fim, que esta história é mesmo ao contrário”.
Se no primeiro parágrafo da obra Machado resgata o final consagrado
pelas narrativas dos contos de fadas de antigamente, no parágrafo seguinte, a
26 Compagnon (1996,p.29) afirma acerca do ato de reescrever “(...) escrever é sempre reescrever, pois
une o processo de leitura e escrita. O trabalho da escrita é uma rescrita já que se trata de converter elementos separados e descontínuos em um todo contínuo e coerente, de juntá-los, de compreendê-los (de tomá-los juntos), isto é, de lê-los: não é sempre assim?Reescrever, reproduzir um texto a partir de suas iscas, é organizá-las ou associá-las, fazer as ligações ou as transições que se impõe entre os elementos postos em presença um do outro: toda escrita é colagem e glosa, citação e comentário. (COMPAGNON, 1996, p.29) 27 Nessa obra, é possível notar a ratificação no nível do enunciado na relação com o cânone, anunciando
seu rompimento, conforme refletem Marisa Lajolo e Regina Zilberman (2010, p. 157): “Logo no início do texto, o narrador manifesta consciência da inversão sistemática a que submete os constituintes tradicionais do gênero e do reflexo disso no modo de narrar”.
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metanarrativa pode ser compreendida como um processo responsável pela
construção da própria tessitura narrativa:
... E então eles se casaram e tiveram uma filha linda como um raio de sol e viveram felizes para sempre... Tem muita história que acaba assim, mas este é o começo da nossa. Quer dizer, se a gente tem que começar em algum lugar, pode muito bem ser por aí. (MACHADO, 1978, p. 4).
Diante disso, nota-se que a digressão da voz narradora permite focalizar
a importância do passado na construção do presente, uma vez que a narrativa
contemporânea relaciona-se com a visão do cânone, estabelecendo diálogos
com eles. Assim como todo texto literário resgata textos anteriores,
confirmando o que Umberto Eco (1985, p.20) diz acerca de que “os livros falam
sempre de outros livros e toda história conta uma história já contada”, a de
Machado leva-nos ao conceito de intertextualidade:
[...] a repetição (de um texto por outro, de um fragmento em um texto, etc.) nunca é inocente. Nem a colagem nem a alusão e, muito menos, a paródia. Toda repetição está carregada de uma intencionalidade certa: quer dar continuidade ou quer modificar, quer subverter, enfim, quer atuar com relação ao texto antecessor. A verdade é que a repetição, quando acontece, sacode a poeira do texto anterior, atualiza-o, renova-o e (por que não dizê-lo?) o reinventa. Toda apropriação é, em suma, uma “prática dissolvente”. (CARVALHAL, 2001, p. 53-54)
Em seus ensaios, Ana Maria Machado também discorre sobre a
intertextualidade, refletindo que somos uma “gota d’água no grande oceano da
literatura”, pois não podemos ter a pretensão de querer inventar nada do zero.
Herdamos uma língua e herdamos também uma tradição literária, artística e
cultural, que não é exclusivamente nossa, mas de toda a humanidade:
[...] o que chamamos de reescrita é, na verdade, uma criação de outra obra, com sua própria originalidade. Não uma condensação ou adaptação. Jamais uma reiteração. Trata-se apenas do aspecto que assume a continuidade de uma criação coletiva da humanidade. Tanto Virginia Woolf como Borges já insistiram em afirmar que os livros dialogam entre si, continuam uns nos outros, criam até mesmo próprios precursores. [...] A leitura é uma arte da réplica, frisava Ezra Pound. O diálogo faz parte da natureza da literatura. (MACHADO, 2011, p. 98-99)
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Essa aguda observação vale para toda a literatura, inclusive a infantil,
que não deve limitar seu sentido, mas ampliá-lo. A autora afirma que o modelo
que se oferece a esse diálogo exige ser reinventado, pois cada paradigma
propõe, dialeticamente, a invenção de outro num novo sintagma que será a
prática criadora de cada autor. Só faz sentido retomar um material existente se
for para fazer com ele algo novo, assim “como lembra Roland Barthes, é inútil
reescrever se não partir de uma decisão de repensar” (MACHADO, 2011,
p.99).
Retomando a ficção, o narrador afirma que irá narrar a história da filha
do casal, a Princesa, que começa com a união de seus pais. Aqui o narrador
dialoga com o leitor da história, colocando os porquês de toda esta inversão.
Nesse primeiro momento, a autora inverte a ordem das histórias tradicionais,
iniciando-a pelo fim. Mas vale ressaltar que essa subversão se estende
também ao tratamento do enredo, que vai apresentando claramente um ponto
de vista crítico sobre a ordem estabelecida, levando o leitor a pensar, por meio
da história, acerca da realidade e do contexto no qual o livro está inserido.
A metanarrativa, processo presente na literatura contemporânea e
enunciado já nas primeiras páginas de História meio ao contrário, sinaliza a
construção do que se tece o texto: índios e piratas povoam as referências
desse tecer narrativo em que há “uma história grande e principal toda cheia de
historinhas pequenas penduradas nela” (MACHADO, 1978, p. 5), no dizer do
próprio narrador, articulando realidade e imaginação, entretecendo textos e
tempo. Com isso, nota-se que a metalinguagem utilizada por Machado se
mistura ao tom ensaístico e despreocupado, mesclando-se a uma efusão do
eu, dando à narrativa um caráter intimista, pois é nesse momento que ficamos
sabendo estar diante de uma narradora que, por gostar muito de inventar, não
se acha “muito boa contadeira de histórias”, conforme justifica: “Fico
misturando as coisas que aconteceram com as inventadas. E quando começo
a conversar vou lembrando de outros assuntos, e misturando mais ainda”
(MACHADO, 1978, p. 5).
Além desse diálogo intertextual e metalinguístico com a tradição dos
contos de fadas, contextualizado em um cenário com castelos, reis, rainhas,
príncipes, princesas, dragões e gigantes, é possível perceber que a autora
ousa, por sacudir a poeira que repousa sobre a tradição, questionando assim
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esse “feliz para sempre”. Ela investe contra a passividade do “sempre”, que
acaba por enclausurar as pessoas e, por consequência, as personagens da
narrativa. Ainda que afirmando ser “muito difícil” e até “sem graça”, o narrador
realça valores essenciais à condição de ser feliz, condições presentes na vida
do rei e da rainha como a sorte por terem saúde e amor:
Isso era o mais difícil de tudo. Viver feliz para sempre não é fácil, não. Para falar a verdade, nem é muito divertido. Fica tudo tão igual a vida inteira que é até sem graça. E eles conseguiram essa felicidade para sempre porque tiveram alguma sorte e muita esperteza. (MACHADO, 1978, p. 6)
Logo de início, nota-se a diferença entre essa história e os contos de
fadas. Ao mesmo tempo em que o leitor é inserido no universo das histórias de
reis e princesas, ele é levado à reflexão diante desse universo. Além disso, a
ruptura da obra se dá, também, através da composição das personagens.
Como já mencionado no capítulo anterior, o Rei de História meio ao contrário
rompe com o arquétipo que configura sua função, ou seja, não consegue
mudar a ordem da natureza, interferindo na alternância dos dias e das noites,
nem tem o domínio social, pois não consegue realizar o esperado destino da
filha: casá-la com o Príncipe. E, tampouco, representa o saber, o que é
evidenciado nas ações e nos pensamentos do Primeiro Ministro: “o Rei
representa ao mesmo tempo a puerilidade e o autoritarismo” (ZILBERMAN,
2003, p.180). A puerilidade, marcada pelas atitudes de ignorância e por crises
de “real fúria”; o autoritarismo, por berrar, urrar, gritar, em diversas passagens
da narrativa, rompendo, assim, com a verdadeira função de ordenar e
harmonizar. No entanto, outros atributos relativizam seu perfil, pois na visão da
Rainha e da Princesa, ele nunca mentia, configurando o arquétipo de pai
protetor, aquele capaz de resolver uma situação problemática.
A figura do Rei, nesta obra, evidencia o trabalho estético de Machado,
pois ela cria a ironia a partir de expressões polissêmicas. Para exemplificarmos
esse procedimento, tomemos o item lexical “real” que aparece cinquenta e uma
vezes, sem contar em suas ocorrências de “realmente”. Tudo que diz respeito
ao Rei é adjetivado como “real”: o banho, a banheira, a tarde que o rei observa,
o dicionário, a varanda, os corredores, a raiva que ele sente, as barbas, a dor
de cabeça e até mesmo a sujeira que ele deverá retirar no seu banho. Estamos
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diante de um jogo polissêmico criado com o termo “real” ora como adjetivo, ora
como substantivo, indicando transitividade semântica entre o espaço protegido
e fechado. A ironia se instaura a partir da ambiguidade interpretativa, ou seja,
real pode ser interpretado de duas maneiras distintas, com efeitos
completamente diferentes, pois se, por um lado, “real” tem ligações semânticas
e morfológicas com “Rei”, por outro, também tem com a “realidade”. No
entanto, temos aqui um Rei que vive fora da realidade, delineando o retrato de
uma figura completamente alienada que desconhece que o sol se põe todos os
dias, ou não sabe que o povo não é uma pessoa. É também através dessa
repetição que a autora estende sua crítica:
Com a repressão e o fechamento da década, ficou muito difícil falar do real, mas por isso mesmo, mais do que nunca isso era necessário. E era preciso driblar a repressão. Jogar com as ambiguidades, com a possibilidade de diversos níveis de leitura, com a polissemia, a multivocacidade. Aguçar a ironia. Transpor sentidos. Fazer metáforas. Construir símbolos. (MACHADO, 1995, p. 52)
Em outros momentos, o emprego de palavras e expressões
polissêmicas também aparece. É o caso de “grilos”, que, em um primeiro
momento, é utilizada pelo Primeiro-Ministro com o sentido denotativo, ou seja,
de inseto: “nunca sentiram a mudança do canto dos pássaros pelo dos grilos”,
onde o rei furiosamente retruca: “Grilo? Que é isso? Já não chegam minhas
preocupações, e você ainda vem me encher a cabeça de grilos?” (MACHADO,
1978, p. 15). Esses “grilos” aparecem com duplo sentido: o Primeiro Ministro se
refere a insetos, enquanto o rei entende como preocupações.
O duplo sentido também aparece na expressão “tomar banho”, conforme
afirma: “-Majestade, Dona Rainha está chamando. Disse para Vossa Majestade
vir logo tomar seu real banho, que a real banheira já está cheia e a real água
vai acabar esfriando.” (MACHADO, 1978, p.8). E como o Rei estava entretido
observando a maravilhosa tarde, diante da insistência do criado, responde
irritado: “- Diga à Rainha para ela ir tomar banho, se faz questão de aproveitar
essa água. Ou então eu tomo antes de deitar. Mas agora eu quero ficar aqui
olhando o dia.” (MACHADO, 1978, p. 9).
A Rainha representa muitas das características culturalmente
associadas à mulher, como a compreensão, o cuidado e a ponderação. Ela não
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sofre subversões, pois no contexto familiar configura-se como aquela que cuida
mais atenciosamente dos laços fraternais, aquela que melhor atua como
mediadora. Exemplo disso é a forma como se dirige ao cônjuge quando está
perplexo pela descoberta: “Majestadinha do meu coração, conta para mim,
conta... Que foi que aconteceu, meu real amor...” (MACHADO, 1978, p. 12). O
tom amoroso, cheio de meiguice, assim como o diminutivo, sugerem o perfil
que a sociedade traçou para a mulher ao longo de sua história. Esse
estereótipo da mulher se confirma nas características maternas que são
exacerbadas e estendidas à relação conjugal.
A Princesa, embora pouco focalizada de início, caminha para uma
grande expressão no final e também é desconstruída, pois aquilo que se
conhece como modelo clássico de princesa não acontece. Ela se nega a casar
com o príncipe, tal qual acontecido com sua mãe, a Rainha e seu pai, o Rei:
Meu real pai, peço desculpas. Mas se o casamento é meu, quem resolve sou eu. Só caso com quem eu quiser e quando quiser. O Príncipe é muito simpático, valente, tudo isso. Mas nós nunca conversamos direito. E eu ainda quero conhecer o mundo. (MACHADO, 1978, p. 37)
Uma recusa que vem acompanhada de uma consciência crítica a
respeito de sua vida de princesa, enclausurada, e o quanto isso havia lhe
prejudicado:
Até hoje eu nem sabia que o sol voltava todo dia tão bonito. Tem muita coisa mais que eu quero saber. Isso de ficar a vida inteira fechada num castelo é muito bonito, mas eu vi que aqui fora, nesses campos e nesses bosques, tem muita coisa mais. Não quero me casar agora. (MACHADO, 1978, p. 38)
Sua tomada de consciência resulta em objetivo de vida, pois, no dia
seguinte, a Princesa segue em uma longa viagem para conhecer novas
pessoas, novas terras e “até mesmo morar em repúblicas”, ou seja, uma
grande ruptura que, além de fugir do tradicional, renega-o. Aqui, a Princesa
representa a nova mulher, fruto da revolução que age contra os paradigmas
impostos pela tradição, objetivando configurar uma nova identidade.
A Pastora, outra figura feminina, é uma personagem de grande
expressão e decisiva em muitas passagens do enredo, pois ela vem composta
78
de um tom imponente que deixa à mostra uma índole autônoma, consciente e
forte. Nessa obra, a Pastora sofre uma inversão, assim como a Princesa, isso
contraria a visão tradicional que se tem dela: tímida, ingênua e frágil. Aqui, é
ela quem detém o saber, o espírito de liderança e um impulso à ação, que
normalmente são atitudes dos mais velhos e dos homens. Quando fica
sabendo da promessa do rei de oferecer a filha em casamento a quem
conseguisse acabar com o monstro, expressa sua opinião enunciando juízos
de valor e visão crítica de mundo: “Eu é que não queria ter que casar com um
desconhecido só porque ele é bom de briga...” (MACHADO, 1978, p. 22).
Suas opiniões têm um papel relevante dentro da história. E é ela quem
dá a sugestão de procurar o Gigante para pedir conselho, pois ele já existe
muito antes da aldeia e do castelo, tento, portanto, grande experiência. É
através de sua perspectiva, também, que o príncipe deixa de ser Encantado e
passa a ser “Encantador”, e resolve ficar para “tratar de aprender”. Ao ficar
para ver como seria o combate, ela e o príncipe se veem, e é ele quem vai
enxergar a beleza da Pastora, que é decorrente do seu posicionamento e
participação nos problemas coletivos de sua aldeia, ao contrário dos contos
tradicionais que exigiam da figura feminina um comportamento pacífico
acompanhado de extrema beleza física: “Talvez de manhã nem fosse tão
bonita, porque a verdade é que todos os acontecimentos do dia tinham ajudado
muito a Pastora a não esconder mais seus olhos e levantar a cabeça.”
(MACHADO, 1978, p. 34).
Esse “levantar a cabeça” também pode ser compreendido através de um
jogo polissêmico, que vai além do movimento físico, implicando tomada de
consciência. E, por fim, é ela quem se casa com o príncipe, que decide
trabalhar como Vaqueiro:
Então o Príncipe resolveu ficar por ali, aproveitando sua vontade de fazer alguma coisa e seu amor pelos cavalos. Acabou trabalhando de Vaqueiro, nos campos em volta da aldeia. Sempre encontrava a Pastora e conversavam. Numa noite de luar, resolveram visitar o Dragão Negro e se aconselhar com o Gigante. E o Gigante, como vimos, mesmo dorminhoco é bom conselheiro. Dessa vez, disse: - Vocês se gostam não é. Querem estar juntos. Então acho que a Pastora deve se casar com o Vaqueiro. Assim, não precisa dizer Vossa Alteza. (MACHADO, 1978, p. 40)
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Como já mencionado, o Príncipe, em História meio ao contrário, não é
Encantado, mas sim Encantador, a autora muda o sentido: de passivo torna-se
ativo. Ao invés de ser um objeto de encantamento e sortilégio, na história de
Ana Maria Machado ele é belo e encantador.
O Gigante também rompe com a tradição porque, normalmente, os
gigantes são representantes da maldade, opondo-se aos protagonistas e seus
objetivos como acontece em João e o pé de feijão, por exemplo. Já aqui, ele
atua como auxiliar mágico, uma espécie de conselheiro, que orienta a
população contra a intenção do Rei de dar fim ao Dragão Negro. Nessa obra,
ele é tratado com naturalidade e respeito, já que é um ancestral do povo da
região, que adquire status de algo maravilhoso, extremamente sábio e
possuidor de poderes mágicos. Isso aparece quando acelera o curso normal
dos processos da natureza, com o intuito de impedir a empreitada do Príncipe:
E o Gigante suou orvalho que evaporou para virar nuvens. E as nuvens choveram água no alto dos montes para engrossar os riachos. E as sementes que os homens plantaram viraram grama e capim, espinhos e mato, árvores e cipós. E toda essa mata produziu flores e frutos que atraíram insetos que atraíram passarinhos que atraíram passarões e animais de pêlo e de pele. Para os homens, todas essas coisas levam muito tempo. Para o Gigante, não. Foi rapidinho. (MACHADO, 1978, p. 30).
Esse Gigante surge, curiosamente, adormecido28. Mais do que isso, ele
está “deitado eternamente”. Tal situação estabelece uma intertextualidade
nítida com o Hino Nacional Brasileiro, no qual o Brasil é metaforicamente
apresentado como “Gigante pela própria natureza”, e que também está
“deitado eternamente”, evidenciando o trabalho estético da autora. Devemos
entender essa intertextualidade a partir do caráter crítico da narrativa, resultado
do momento histórico-político que foi produzido, ou seja, o regime militar
ditatorial, que suprimiu muitos direitos coletivos e individuais. Nesse período,
28 Com a presença do Gigante é possível notar o maravilhoso em História meio ao contrário, recurso
típico de histórias infantis, sobre o qual Regina Zilberman (2003, p.136) reflete: “[...] tradução de fantasia, que não aparece no texto como algo diferenciado, como um milagre, que pode ser assustador, na medida em que coloca o indivíduo diante do sobre-humano, mas é percebido como natural. Percebido como constitutivo do real, adquirindo assim naturalidade, ele possibilita uma ruptura com os constrangimentos espaço-temporais, de modo que as personagens podem assumir caráter simbólico.”
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com exceção das bravas resistências espalhadas pelo país, o povo brasileiro
manteve-se alienado do processo político, ou parafraseando a obra,
adormecido eternamente em berço esplêndido:
Por isso foram. Naquela tarde, a aldeia ficou deserta. Todo mundo saiu das oficinas e das plantações. Foram todos para os montes. E foi até divertido, um passeio bonito pelos risonhos lindos campos cheios de flores e pelos bosques cheios de vida. Todo mundo conversando e cantando. Quando chegaram embaixo dos montes, já eram as costas do Gigante deitado. (MACHADO,1978, p. 27)
Com a intenção de ir contra a ideologia dominante é que Ana Maria
Machado compôs esse personagem, adormecido e estático em um primeiro
momento, mas depois, consciente, torna-se ágil e de extrema importância.
O Primeiro-Ministro, assim como a Rainha, não sofre subversões, pois
aparece na história como conselheiro real, incumbido de esclarecer ao rei as
questões que não entende, entre elas o desaparecimento do dia. Porém, no
decorrer de seus diálogos com o Rei, sua atuação vai além de dar bons
conselhos ou explicações, sugerindo, muito indiretamente, certa manipulação.
Na passagem em que o Rei, irritado, cobra o nome do “ladrão do dia”, o
Primeiro-Ministro, para acalmá-lo, diz : “Temos espiões no meio da multidão e
num instante vamos ficar sabendo de tudo”. Pouco mais tarde, volta
acompanhado de um soldado que diz ter uma explicação para o mistério: “a
culpa é de um monstro terrível que assola nosso reino. Um tremendo Dragão
Negro” (MACHADO, 1978, p. 20). Toda essa teatralidade é arquitetada por ele
mesmo que, posteriormente, traz explicações ao Rei sobre esse suposto
Dragão Negro, cujo olho ora diminui, ora aumenta. Nota-se o teor crítico quanto
à total ignorância do Rei que acata e acredita em tudo aquilo que o Primeiro-
Ministro diz, exemplificando, por sua vez, a sagacidade e a esperteza daqueles
que aprenderam a agir e reagir “ao lado” do poder.
A inserção de personagens do povo é também uma novidade nesse
cenário de castelos, reis, rainhas, príncipes e princesas, pois é através dele
que Machado inclui algumas de suas metáforas. Aqui a atenção é voltada para
aqueles que serão diretamente afetados pela morte do monstro que roubava o
dia. O povo é composto pela própria Pastora, a Tecelã, o Ferreiro, o Camponês
e o teor que caracteriza a conversa dessas personagens é a preocupação com
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a vida prática, com as mudanças que sofreriam, evidenciando também a
consciência do compromisso com a coletividade. Essas personagens discutem,
avaliam os acontecimentos e as possíveis consequências no trabalho e na
natureza, ficando evidente que a sabedoria e experiência do povo opõem-se à
ordem inicial do enclausurado Rei:
Quando eu fico na fornalha, fazendo força na bigorna e recebendo chamuscada de fagulha, eu sei que é para fazer uma coisa boa para todos nós: malhar o ferro enquanto ele está bem quente e pode ficar da forma que a gente precisa. (MACHADO, 1978, p. 24)
Essa preocupação com o coletivo estende-se também quando propõe
fazer uma greve, que precisa da mobilização e união de todos: “Hoje nosso
trabalho é outro. Tão importante como o trabalho de todo dia. Não faz mal
parar de trabalhar aqui uma tarde porque é para ajudar toda a vida da gente.”
(MACHADO, 1978, p. 27). A pausa no trabalho rotineiro tinha por objetivo
ajudar o Dragão Negro, que era amigo desses personagens, pois responsável
pelo equilíbrio da natureza:
– Se ele não carregasse o sol todo dia, garanto que nós íamos ter que trabalhar sem parar, sem poder ir dormir, sem descansar. - E se ele não esfriasse os montes e não trouxesse neblina para o vale, os carneirinhos não iam precisar se esquentar e não iam ter tanta lã. (MACHADO,1978, p. 25)
O Dragão Negro, cujo olho é a lua, é o representante da noite, ainda que
tal identificação não se enuncie na obra. Aqui ele aparece metaforizado, pois
não é a representação do mal, como os dragões dos contos de fadas, mas um
elemento necessário para o equilíbrio natural:
- É um Dragão enorme, maior que a aldeia, o vale e este castelo real. Diariamente ele chega de mansinho e rouba o dia por um tempão, até a hora em que se cansa dele e deixa o sol voltar de novo. É imenso, todo preto de escuridão. Solta pelas narinas uma espécie de fumaça gelada parecida com nuvens que fica assentada no fundo do vale até que o sol se desmanche de manhã.Quando abre a boca lança fagulhas pequenas que não desaparecem enquanto o dia não volta, ficam brilhando e cintilando na escuridão... (MACHADO, 1978, p. 20)
82
Em A Princesa que escolhia, Machado nos insere no universo mágico
dos contos de fadas, reinventando uma nova história. Trata-se de uma
princesa, que, como todas as outras, concordava com tudo e acatava todas as
ordens dos pais, porém, um dia, resolveu dizer: “- Desculpe, mas acho que
não” (MACHADO, 2006, p.12), resposta que causou muito espanto por parte do
rei e da rainha, que a castigaram: deveria ficar em uma torre até voltar a ser
boazinha. No entanto, o que era para ser um castigo acabou se tornando um
momento de sorte, pois, nessa torre, a princesa conheceu um universo que iria
muito além das paredes do castelo: livros deixados por um mago, internet e
televisão. Em suas pesquisas, a Princesa descobriu a cura de uma epidemia
que assolava o reino de seu pai, uma febre causada por um mosquito, sendo,
por isso, liberada do castigo. Orgulhoso da filha, o rei recompensou-a deixando
escolher tudo o que achava melhor.
A narrativa traz personagens clássicas dos contos de fadas, porém com
uma nova roupagem, ou seja, uma versão modernizada, próxima do real. A
princesa foi estudar na escola, depois na universidade, trabalhou e se casou:
Estudou, viajou, aprendeu um monte de coisas. Foi para uma universidade e virou arquiteta. Depois resolveu estudar ainda mais, umas coisas de nome comprido: urbanismo e habitação popular. Quer dizer, como fazer casas baratas para as pessoas. (MACHADO, 2006, p. 35)
Esse processo de reinvenção que revisita o universo dos contos de
fadas agrada gerações, além de facilitar a compreensão da criança quanto aos
valores humanos e sociais. Faz com que o público infantil perceba e assimile
certas dicotomias, como mau e bom, de maneira natural, pois o herói enfrenta
dificuldades, mas é capaz de mudar seu destino. Tais situações faz com que o
leitor infantil se identifique com seus heróis, gerando assim uma visão crítica de
si e da sociedade na qual está inserido, como afirma Nelly Novaes Coelho
(1991):
Lembra a psicanálise que a criança é levada a se identificar com o herói bom e belo, não devido a sua bondade e beleza, mas por sentir nele a própria personificação dos seus problemas infantis: seu inconsciente desejo de bondade e de beleza e, principalmente, sua necessidade de segurança e proteção. Identificada com os heróis e heroínas do mundo do maravilhoso, a criança é levada, inconscientemente, a resolver sua própria situação – superando o medo que a inibe e ajudando-a a enfrentar os perigos e ameaças que
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sente à sua volta e assim, gradativamente, poder alcançar o equilíbrio adulto. (COELHO, 1991, p. 51)
A Princesa dessa obra escolhe com quem vai se casar, provocando uma
grande ruptura também, embora tenha escolhido um pretendente com perfil
para as princesas dos contos de fadas, não quis se casar naquele momento,
preferindo conhecer o mundo primeiro, estudar, viajar e, ao final, se casar com
o filho do jardineiro que reencontrou na faculdade. Nota-se as referências que
Machado traz das princesas protagonistas de várias histórias como Rapunzel,
Cinderela, Branca de Neve, Bela Adormecida, para sua narrativa
contemporânea:
O segundo pretendente conversava muito sobre a criação de gado, fabricação de couro e exportação de calçados. Ela achou que ele deveria ser bom para experimentar sapatinhos e escolheu uma boa noiva para ele. E daí a pouco tempo estava casado com uma tal de Cinderela. (MACHADO, 2006, p. 31)
O “Barba Azul” também apareceu como pretendente para se casar com
a princesa, ela se lembrou da história dele e chamou a polícia: “Ela olhou bem
para a cara dele, com aquela barba azulada, pensou, lembrou de muitas coisas
que tinha lido... e chamou a polícia.” (MACHADO, 2006, p. 32). Aqui é possível
notar a diferença dessa história para os contos de fadas, pois Machado “brinca”
com seus personagens, propondo ao seu leitor um prazer intertextual.
O desfecho da narrativa “às avessas” se dá com a princesa escolhendo
viver feliz com o filho do jardineiro e resolvendo os problemas de seu reino,
trazendo soluções democráticas, e, para que todos vivessem felizes, propõe o
parlamentarismo e as eleições. Tendo em vista tal construção, fica evidente
que a autora atua a partir de uma perspectiva de subversão. Entretanto, ela
consegue superar o caráter puramente ideológico dessa empreitada, já que
inscreve na forma o elemento transgressor não prejudicando o resultado
estético da obra.
Em seu livro Texturas: sobre leituras e escritos, Ana Maria Machado
distingue a literatura como aquela em que a arte maneja a palavra de maneira
estética, em oposição a outros usos da linguagem, especialmente aqueles
84
presentes na chamada cultura de massa. A autora aponta a capacidade de
inovação como uma característica da arte literária que:
[...] experimenta o que ainda não foi dito, inventa algo novo, propõe protótipos, enquanto o texto da cultura de massa vem carregado de estereótipos, trazendo apenas redundância e repetição do já existente, consolidação do status quo [...] (MACHADO, 2001, p. 88)
Como se observa, a obra de Ana Maria Machado, seja ela crítica ou
ficcional, evidencia o valor que atribui à leitura literária. É importante ressaltar
que são diversos os valores que podem ser identificados em sua obra, e que
estes mencionados, a saber, o feminino, a tradição, a política e a
universalidade foram identificados através de seus ensaios e também sua
criação literária, e que podem ser compreendidos como os elementos
norteadores de um projeto literário da autora.
Além disso, é importante ressaltar que todas as obras ficcionais
mencionadas devem ser compreendidas enquanto construção literária, nas
quais o estético prevalece com relação ao utilitário, uma vez que estamos
diante de obras que trabalham o leitor implícito, a intertextualidade, além de
construções polissêmicas e metafóricas. Em sua crítica, Ana Maria Machado
exalta o valor literário da leitura, não só no campo ideológico, mas na
construção estética:
Mas basta começar a haver uma narrativa digna desse nome, com conflitos, antagonismos, crises, personagens de alguma complexidade, com um trabalho de linguagem capaz de criar ambiguidades semânticas, e estratégias de relato que deem margem a situações ricas de plurissignificação, e, pronto, acontece: os traços dessa intertextualidade começam a ser sugeridos aqui e ali. São sinais de que aquele texto tem uma densidade de outro tipo e entrou no terreno da literatura porque permite reapropriações múltiplas em diferentes leituras. (MACHADO, 2011, p. 91)
85
4. O PROJETO LITERÁRIO DE ANA MARIA MACHADO
Ler é como namorar. Muito gostoso. Quem acha que não gosta é porque ainda não encontrou seu par. Deixe aquele de lado e experimente outro, e mais outro, até sentir prazer, deixando-se levar pelas novas delícias descobertas e exploradas. (MACHADO, 2011,p.17)
Conforme observamos nos capítulos anteriores, a obra de Ana Maria
Machado, crítica e ficcional, é portadora de valores específicos à alta literatura,
dentre os quais foram identificados nesta pesquisa: o valor do feminino, da
tradição, do político e da universalidade. Esses valores revelam um projeto
literário alicerçado no princípio formador da literatura.
Ao longo desta pesquisa, podemos notar que, mesmo antes de aprender
a ler, Ana Maria Machado já convivia com livros e leitores e apresentava
grande interesse pelo universo letrado no qual estava inserida. Em Como e
por que ler os clássicos universais desde cedo (2002), logo no início,
Machado nos descreve uma cena da qual jamais se esqueceu: ao pé da
escrivaninha, o pai explica à filha a origem espanhola dos cavaleiros esculpidos
em bronze que trazia sobre a mesa, Dom Quixote e seu fiel escudeiro Sancho
Pança, mas acrescenta que eles também moram ali pertinho, dentro de um
livro. Como já mencionado no primeiro capítulo, a trajetória leitora de Ana Maria
Machado é longa, além de sempre ter estado rodeada de leitores e livros em
seu contexto familiar. Aprendeu a ler sem qualquer ajuda, antes dos cinco
anos, quase que secretamente; e, daí por diante, nada mais segurou a menina
que mergulhou no Almanaque do Tico-Tico e na obra de Monteiro Lobato. O
aniversário de cinco anos fora marcado por um livro e um diário, presentes que
viriam a simbolizar o universo da autora nos tempos passado, presente e
futuro, ligados entre si pela leitura e escrita como processo indissociável na
geração do saber. Com isso, percebemos que a perspectiva sobre o poder da
leitura para esta autora perpassa e advém da formação familiar.
A importância da leitura dos livros de Monteiro Lobato, não só para
Machado, mas para a formação de vários escritores que representaram a
literatura infanto-juvenil de qualidade na década de 70 é inquestionável. Esses
86
autores sofreram a influência de Lobato, porém, tiveram que se adequar, pois
seus futuros leitores exigiam outra realidade e valores. Em A formação do
leitor literário: narrativa infantil e juvenil atual (2003), Teresa Colomer
afirma que, desde os fins da década de 70, a literatura infantil e juvenil
experimentou um “enorme impulso para adequar-se às características de seu
público atual” (p.173), formado por leitores integrados em uma sociedade
alfabetizada e familiarizados com os sistemas audiovisuais. São crianças e
jovens que formam as sociedades contemporâneas “a quem se destinam
textos que refletem as mudanças sociológicas e os pressupostos axiológicos e
educativos de nossa sociedade pós-industrial e democrática” (COLOMER,
2003, p. 174). As características desses novos leitores demandam
importantes mudanças em relação à narrativa anterior, nos critérios dos autores sobre o que é adequado e pertinente nos temas que abordam suas narrativas, na descrição do mundo que oferecem e nos valores que propõem (COLOMER, 2003, p. 174)
Diante desse contexto, Teresa Colomer detectou fatores que conduzem
à necessidade de modelos literários diversificados, os quais afastam as
narrativas infanto-juvenis atuais “dos pressupostos básicos de simplicidade
antes estabelecidos” (COLOMER, 2003, p. 175). É o que ocorre com Ana Maria
Machado a partir de Lobato, pois, embora ambos produzam sua obra em um
Brasil em transformação, o país de Machado não é o mesmo de Lobato, e o
projeto de modernização, do qual um sítio que dá petróleo é um bom exemplo,
transformou-se em paisagem, que vive e escreve em um país de antenas e
satélites.
Durante as décadas de 1960 e 70, as sociedades ocidentais
experimentaram importantes mudanças, tanto nas formas de vida, quanto nos
valores ideológicos que sustentaram a concepção social acerca da literatura
voltada para crianças e jovens. No Brasil, a modernização ocorrida a partir do
reestabelecimento democrático (1985) também implicou a difusão de novos
valores, mudanças importantes nas formas de vida e um desenvolvimento sem
precedentes dos livros infanto-juvenis. Nesse sentido, nas últimas décadas do
século XX, as narrativas infantis e juvenis passaram a abordar novos temas
87
devido às “mudanças sofridas pela produção editorial de livros para crianças e
jovens” (COLOMER, 2003, p. 104).
As inovações delineadas demandam maior complexidade dos elementos
que configuram o discurso narrativo, o qual se afasta dos pressupostos básicos
“de uma estrutura simples, um ponto de vista onisciente, uma voz narrativa
ulterior e um desenvolvimento cronológico linear” (COLOMER, 2003, p. 176).
Constatam-se “inovações situadas nos temas tratados, no tipo de imaginário,
nos personagens, no cenário narrativo ou na incorporação de recursos não-
verbais”. Com isso, as obras infanto-juvenis tiveram de variar seus temas, tanto
para refletir acerca dos problemas retratando a realidade dos leitores, quanto
para responder à preocupação educativa que, fruto de novas atitudes morais,
debilitava o consenso sobre a preservação da infância e da adolescência como
etapas inocentes, sem contaminações. No entanto, surgem narrativas mais
centradas em “encarar os problemas, do que ocultá-los” (COLOMER, 2003,
p.257). Nesse sentido, a linguagem de Ana Maria Machado pode ser
compreendida como uma leitura contemporânea da obra de Monteiro Lobato.
Além dessa característica comum que perpassa pela obra de ambos,
Ana Maria Machado, assim como seu mestre, sempre evidenciou o valor
atribuído à leitura literária. Em seu ensaio Texturas- sobre leituras e escritos
(2001), Machado revela uma concepção acerca da leitura que acaba por se
tornar o cerne de sua poética, seja nas publicações de natureza ensaística,
seja nos textos literários. É muito comum encontrar em suas histórias
escritores, artistas diversos, obras literárias, teóricos e instituições ligadas às
letras. Além disso, ela insere com frequência em suas obras, ambientes
propícios à leitura como: bibliotecas, salas de aula, quarto de estudo e seus
temas giram em torno da infância, leitura, literatura, criação literária e
construção de personagens questionadoras, por meio das quais a autora cria
condições para que seus leitores reflitam sobre a língua. Temos também
personagens que buscam a autoafirmação e, sempre, passam por processo de
transformação, em geral pela descoberta e pelo conhecimento adquirido a
partir da leitura.
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Em entrevista à pesquisadora e escritora Anna Claudia Ramos,
Machado ratifica a importância da leitura na vida das pessoas, em especial,
para o escritor:
[...] eu acho que essa questão do escritor ser muito leitor foi fundamental pra literatura infantil. Acho que é fundamental na criação. Você vai convivendo, tendo mais intimidade com aquele processo, e isso vai virando um substrato que está ali, aparece, brota.” (MACHADO, 2006, p.37)
Machado afirma que um dos segredos, para ser um bom escritor, é ser
um bom leitor, e, por conhecer bem esse processo, acaba por deixar muito fora
do texto que escreve, relembrando uma frase do escritor Ernest Hemingway:
“O livro deve valer pelo muito que nele não entrou” (RAMOS, 2006, p. 37).
Essa preocupação com a leitura é reafirmada em Do mundo da leitura para a
leitura do mundo (2010), no qual Marisa Lajolo discorre acerca da importância
da leitura literária:
É à literatura, como linguagem e como instituição, que se confiam os diferentes imaginários, as diferentes sensibilidades, valores e comportamentos através dos quais uma sociedade expressa e discute, simbolicamente, seus impasses, seus desejos, suas utopias. Por isso a literatura é importante no currículo escolar: o cidadão, para exercer plenamente sua cidadania, precisa apossar-se da linguagem literária, alfabetizar-se nela, tornar-se seu usuário competente, mesmo que nunca vá escrever um livro: mas porque precisa ler muitos. (LAJOLO, 2010, p. 106)
Diante de tais informações fica evidente que a trajetória de Machado foi
marcada pelo caráter construtivo de sua formação leitora. A pesquisadora
Senize Yazlle (2008) afirma:
Fica evidente um trabalho de construção do conhecimento que se inicia na infância, com suas leituras que se multiplicam e vão continuar pelo resto da vida, somado ao fato de que ela ainda experimenta outra modalidade artística – a pintura – como um meio de conhecer e explorar a arte e, com isso, ampliar e aprofundar seu conceito e repertório. Esses dois lados da artista, além de ampliar sua visão, também a auxiliaram na busca do seu tom, de seu estilo, que é, ao mesmo tempo, oralizante e elaborado, uma maneira de desenhar e pintar com palavras. (YAZLLE, 2008, p.145)
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No artigo “A importância da leitura” do livro Silenciosa Algazarra
(2011), como sugere o próprio título, Machado enfatiza os aspectos negativos
gerados pela falta de leitura. A autora defende a tese de que quem não lê não
desenvolve a própria inteligência e vive na ignorância. Além disso, afirma que,
no Brasil, se lê muito pouco, uma vez que a leitura não é considerada
importante. Sem o exemplo de leitura, fica a sensação de que livro é coisa
difícil, trabalhosa, que não compensa o esforço. Para ela, no entanto, é
impossível que uma criança alfabetizada, que tenha acesso a livros bons e
interessantes, não se delicie, uma vez que a curiosidade é instintiva e a
constatação do encantamento, advinda do alimento da imaginação e do prazer
através da leitura, promove a inteligência em atividade. No entanto, é
necessário deixar essa criança à vontade, conforme suas preferências, não
impondo leituras como dever e obrigação, para que elas não fiquem na
defensiva.
Ainda nesse artigo, cita o governo fascista do italiano Mussolini, que
desenvolveu uma reforma educacional propondo dois tipos de educação: um
ensino profissionalizante e técnico, para as camadas de menor poder
aquisitivo; e o ensino humanista, clássico, formativo, que incluía artes, literatura
e filosofia, destinado à classe alta. Com isso, ele visava possibilitar que a base
da pirâmide social adquirisse mais rapidamente as ferramentas de trabalho que
lhe permitiriam ganhar a vida com seus ofícios. Porém, essas “boas intenções”
do governo italiano não convenceu a todos, tanto que Gramsci se rebelou e
defendeu a ideia clara de justiça que também passa pela necessidade de dar
às classes menos favorecidas os elementos para que elas possam conhecer a
si mesmas e se apropriar dos códigos culturais dominantes, libertando-se da
mesmice repetitiva e substituindo-a por um espírito crítico inventivo, capaz de
argumentar, refutar, discutir e formular seus próprios anseios. Assim como
Gramsci, Machado acredita nessa concepção, pois só se consegue uma
educação humanista, quando se permite o contato com as artes em um
contexto em que a literatura desempenhe um papel preponderante. Mas,
obviamente, sem leitura de literatura, tal objetivo não passa de um sonho
distante e impossível. É a autora quem assegura:
90
Toda forma de conhecimento é importante e significativa. Como todas elas, a literatura também tem relevância. Mas, sendo uma arte – e uma arte que utiliza um meio que está ao alcance de todos indivíduos, ou seja, as palavras, a linguagem - , ela é uma forma de conhecimento particular.Permite perceber os aspectos mais sutis da realidade e aos poucos vai habilitando a expressar essa percepção. Pode não ensinar a ver o mundo, porém ajuda a compreender de que maneira ele existe. Mais ainda, possibilita perceber de que outras maneiras diversas essa realidade pode ou poderia existir. Permite entender outras formas de encarar o mundo, mas também, concreta e afetivamente, permite entender as pessoas que o encaram de modo diferente do nosso. (MACHADO, 2011, p.19)
A partir dessas considerações, podemos dizer que, para Ana Maria
Machado, o poder da literatura é maior do que qualquer outra forma de
conhecimento, uma vez que, diante de uma construção imaginária, seja um
romance ou um poema, este tem uma capacidade assombrosa, quase mágica,
haja vista nos fazer viver outra vida, sem que abandonemos a nossa. Ademais,
a literatura possibilita que o leitor se coloque, profundamente, no lugar de
outras pessoas – personagens de obras de ficção, no caso de romances, ou os
estados de espírito mais difusos não necessariamente encarnados em alguém,
no caso dos poemas. A autora menciona que existem outras narrativas que
proporcionam imaginar outras vidas e vivenciar outras realidades psicológicas,
como os filmes ou telenovelas, mas o fato de mostrarem visual e verbalmente o
que está acontecendo, as oportunidades que nos oferecem para o
desenvolvimento da imaginação são mais limitadas. Já na literatura, não é
possível identificar o rosto das personagens, ou os cenários nos quais se
movimentam; a liberdade que a literatura oferece é de outro tipo, pois joga
sobre nossos ombros a responsabilidade e o prazer de completar a obra.
A escritora acredita que, durante o processo de leitura de literatura, o
texto e o leitor estabelecem um pacto inconsciente, no qual o leitor é convidado
a suspender sua descrença e a embarcar em outro mundo. Trata-se de outra
dimensão, que não é a sua realidade cotidiana, mas ajuda a iluminá-la:
Depois da leitura, o leitor volta a essa realidade transformado. Tal efeito não se consegue apenas com uma atitude passiva, mas com um trabalho mental e imaginário ativo, intenso, por vezes dificultoso: a atividade intelectual que permite a construção imaginária simultânea de outros roteiros possíveis, paralelos ao que se está lendo. (MACHADO, 2011, p. 20)
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Ainda nesse ensaio, Machado cita o escritor argentino Jorge Luis
Borges, que se referiu à literatura com uma metáfora: jardim de caminhos que
se bifurcam. A cada encruzilhada, o leitor tem que se decidir para onde vai,
imaginando a personagem, criando as situações, acreditando ou não naquilo
que é colocado pelo próprio narrador. A cada nova frase, novos caminhos são
lançados ao leitor, novas escolhas imaginárias e também novas encruzilhadas.
A autora apresenta, também, o ponto de vista de Umberto Eco, que desenvolve
a ideia de Borges, pois apenas um jardim não dá conta da riqueza de
possibilidades abertas pela leitura de literatura. Assim, compara a leitura com
um passeio pelos bosques da ficção, induzidos pela estratégia do autor, que
nos oferece todas as tentações atraentes de um caminho cheio de desvios,
mas que apresenta infinitas belezas ao longo do percurso rumo ao seu
objetivo, estruturalmente concebido, embutido no texto:
Com esse mecanismo em ação, os textos literários por um lado nos dão uma imensa liberdade de irmos para onde quisermos e bem entendermos, enquanto, por outro, nos dão uma segurança inconsciente de que não ficaremos perdidos lá dentro. Podemos experimentar o que quisermos enquanto lemos, mas não vamos naufragar nem nos perder na floresta. Acabaremos chegando a um refúgio. (MACHADO, 2011, p.21)
Com isso, nota-se que, para Machado, esse movimento duplo, de
construção de sentido e exploração, compõe a parte intrínseca da leitura como
atividade. Ou seja, joga-se com um mecanismo duplo e simultâneo, pois de um
lado trata-se de uma oportunidade de libertação da imaginação com todo o seu
potencial, considerando todo seu patrimônio, tudo que existe, existiu ou poderia
existir; enquanto de outro lado, busca-se o sentido, encarnando o desejo de
alguma unificação lógica daquelas imagens segundo uma intenção racional.
Essa tensão, que se instaura entre a tendência contrativa de elaboração de
significados e a tendência expansiva compreendida como aquela que
apresenta infinitas possibilidades, é a companhia permanente da leitura
literária. É evidente que não nos damos conta de tais movimentos, devido ao
prazer que tal ato nos proporciona.
Ana Maria Machado se utiliza de alguns autores que se valem de
metáforas para exemplificar as ideias prazerosas que a leitura literária pode
92
proporcionar: Borges disse que imaginava o paraíso como uma biblioteca
infinita; Clarice Lispector chamou o prazer da leitura de felicidade clandestina;
Virgínia Woolf confidenciou que, às vezes, achava que o céu deveria ser uma
longa leitura contínua, da qual a gente nunca se cansasse. Além disso, enfatiza
e incentiva a importância da leitura dizendo:
[...] a leitura de bons livros, além de toda a força da experiência estética vivida, de intenso conteúdo emocional, nos dá algo extraordinário: ensina a tolerância a cada indivíduo e nos facilita o convívio com a diversidade cultural e social. (MACHADO, 2011, p. 27)
Outra ideia que Machado (2011, p. 32) defende neste ensaio gira em
torno da intimidade que os professores devem ter com a leitura, pois só assim
serão capazes de desempenhar bem sua função social, buscando nos livros
“alimento para seu espírito e complemento da informação e dos conhecimentos
que possam adquirir por outros meios”. Afirma que só através da leitura as
novas gerações terão acesso aos conhecimentos adquiridos e preservados por
seus ancestrais, uma vez que isso é herança a que todos temos direito.
Para ela, o patrimônio literário pode ser compreendido enquanto textos
que expressam experiências individuais com uso artístico de linguagem,
capazes de despertar identificações emocionais e projeções psicológicas entre
leitor e escritor, e, com isso, suscitar novas perguntas, fazer crescer, levá-los a
discordar de aceitações passivas, buscando significados:
A criança, portanto, merece ter contato também com literatura – seja com narrativas, seja com poesia. Precisa ter condições de tomar posse de seu quinhão dessa herança. E seu direito. A educação tem o dever correspondente: a obrigação de capacitar o aluno a um dia se aproximar de qualquer obra e fazê-la sua. Incluindo as obras literárias – as tais obras que guardam sentidos múltiplos, que não se prendem a uma única interpretação, que permitam o incrível fenômeno de parecer ter significados diversos a cada encontro. (MACHADO, 2011, p. 37)
Afirma que os leitores devem “habitar” os livros, pois são plenos e cheios
de significados, nutrindo-se de ambivalências e rupturas. Ao mergulharem no
simbólico, levantam novas questões, sugerindo caminhos inexplorados e
pedindo criatividade por parte do leitor. O próprio ato da leitura exige que se
cruzem fronteiras, porque brotam de uma dinâmica profunda de rompimento de
93
barreiras, desencadeando um mecanismo que impulsiona para frente: “força a
mergulhar fundo, leva-nos a nos colocarmos no lugar dos outros – de uma
forma como só a arte consegue fazer” (MACHADO, 2011, p. 57). Ressalta, no
entanto, que nem todos os livros são capazes de cruzar tais fronteiras,
criticando, desta forma, os livros “utilitários”:
Literatura infantil imaginativa, não pedagógica e didática. Livros que, além de cruzarem fronteiras se erguem entre culturas e indivíduos, tenham, antes disso, sido capazes de cruzar fronteiras internas, dentro do autor, entre o coração e a mente. Livros que lidem com a realidade como parte da experiência da arte, não do aprendizado. (MACHADO, 2011, p. 56)
Ressaltando que o acesso de crianças e jovens à literatura não é algo
simples, visto implicar o domínio de uma ferramenta preciosa para lidar com
uma linguagem que, muitas vezes, pode parecer um tanto intimidante: a
poética de Machado, faz menção à pergunta de Roman Jakobson: “Que é que
faz de uma mensagem verbal uma obra de arte?”. E, respondendo, afirma que
isso está na função específica da linguagem poética. Considerando essa
informação, podemos afirmar que, para Machado, a linguagem poética não é
gerada a partir de escolhas de palavras ou expressões, mas na maneira como
é empregada.
4.1 O valor da leitura literária
É indispensável ler criticamente, ou seja, ler sem adotar atitude reverente, mas sem discordar de tudo. Também é conveniente ler de maneira contextualizada, isto é, "vivendo" a época, não pretendendo encontrar atitudes contemporâneas em acontecimentos passados. Ler bem é ficar mais tolerante e mais humilde, aceitar a diversidade, dispor-se a tolerar a divergência. (MACHADO, 2002, p. 19)
Em Como e por que ler os clássicos universais desde cedo (2002),
Machado discorre sobre seu trajeto de leitura, mostrando-se como leitora
voraz, sempre disposta a aventurar-se por novos horizontes através de
personagens e narrativas instigantes. No primeiro capítulo, a autora define
94
alguns pontos que orientam o leitor ao respeito pelo seu posicionamento
acerca da leitura. O primeiro refere-se à leitura: na acepção da autora, ler não é
um dever, mas sim um direito. Logo, descarta qualquer possibilidade de prazer
em uma leitura que se efetiva a partir da obrigação como motivação primeira.
Como consequência desse ato, os resultados podem ser catastróficos para o
leitor, gerando repulsa imediata por qualquer tipo de livro. Como já
mencionado, em relação aos clássicos, salienta o seu caráter atemporal: um
clássico nunca sai de moda e o acesso à obra clássica pode se dar a partir de
outras materialidades, como as adaptações cinematográficas, teatrais ou
outras formas que tornem o clássico mais “degustável” ao novo leitor.
No segundo capítulo, ela se refere à leitura literária como um direito que
todos temos e que se soma a uma determinação de ler como forma de
resistência. Outro fator atraente que Machado menciona na leitura consiste na
decifração, ou exploração daquilo que é tão novo que parece difícil e, por isso
mesmo, oferece obstáculos e atrai com intensidade.
Essa atividade é feita da busca de um prazer sempre crescente, num patamar cada vez mais alto, lentamente construído com delicadeza, sensibilidade e empenho. Instala-se, entre leitor e texto, uma troca interativa, num jogo sedutor. Freud demonstrou como a curiosidade e a vontade de saber são vizinhas do instinto sexual – daí sua capacidade tentadora, sua força irresistível. Ítalo Calvino mostrou como um bom livro acende em que o lê um permanente desejo de seguir sempre adiante, em busca da construção de sentido, vivido ao final como um grande momento de gozo e distensão – e como esse trajeto é prazeroso. Retoma, assim, a ideia de Roland Barthes quando o francês insistia em se referir à “paixão pelo sentido” e defendia a existência de uma “erótica do texto” (MACHADO, 2002, p.21-22)
Para ela, todas essas considerações reafirmam que se trata de um jogo
a dois, pois, ao se referir ao clássico, afirma que “quando lemos um clássico,
ele também nos lê, vai nos revelando nosso próprio sentido, o significado do
que vivemos”. Ao se referir às obras clássicas, cita Ítalo Calvino:
Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual. [...]
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Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes). (CALVINO, 1993 apud MACHADO, 2002, p. 23)
No terceiro capítulo “Entre gregos e troianos”, a autora discorre acerca
da importância de ler essas obras, além da permanência em sua integridade.
Citando a Ilíada e Odisseia, de Homero, além de outros autores como
Sófocles, Ésquilo, Eurípides, Sócrates, Platão e Aristóteles:
Guardada por tanto tempo e reconhecida como um tesouro da humanidade, a cultura grega antiga sempre despertou o entusiasmo de leitores apaixonados, em diferentes épocas históricas. São uma fonte inesgotável, onde sempre podemos beber. Para muita gente eles são os mais fascinantes de todos os clássicos. Provavelmente são os que marcariam toda a cultura ocidental. (MACHADO, 2002, p. 26)
Ela também menciona a genialidade de Monteiro Lobato ao se referir às
adaptações da mitologia grega para crianças, consistindo uma via de mão
dupla entre o Sítio do Pica-pau Amarelo e a Grécia Antiga. Criando uma
excelente forma de iniciação infantil a esse universo, a leitura desses livros
funciona como um verdadeiro curso de mitologia clássica na intimidade.
No capítulo seguinte, ao se referir à leitura da “Sagrada Escritura”,
afirma que, da mesma forma que ocorre com a mitologia grega, os sinais da
passagem desses textos pela nossa cultura são incontáveis. Nesse caso, não
se trata mais de uma profusão de deuses ou de uma sucessão de monstros,
transformações inesperadas ou guerreiros capazes de feitos prodigiosos. A
Bíblia fala a seus leitores de um Deus único, e conta a história de um povo, os
hebreus:
A meninada tem o direito de ouvir ou ler alguns dos mais famosos relatos bíblicos, mesmo que a família não pretenda fazer dessa experiência uma forma de ensinamento religioso ou de transmissão de valores. De qualquer maneira, é uma passagem de bastão: transmissão de conhecimento enriquece a cultura geral da pessoa. (MACHADO, 2002, p. 38)
Em cada capítulo, Machado seleciona as obras a partir dos critérios mais
variados: As narrativas de viagem, Os contos de Fada, As histórias que
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eternamente são reescritas e que constantemente conquistam o interesse dos
jovens, Histórias Marítimas. Também faz referência a autores como Alexandre
Dumas (Os três Mosqueteiros), Artur Conan Doyle (Sherlock Holmes), Robert
Louis Stevenson (A ilha do tesouro), Jack London (O Lobo do Mar), H. Riger
Haggard (As minas do Rei Salomão), Fenimore Cooper (O último dos
Moicanos), Edgar Rice Burroughs (Tarzan), Melville (Moby Dick), Edgard Allan
Poe (“William Wilson”), Rudyard Kipling (O Livro da Selva), Defoe (A Família
Robinson), Tolkien (O Senhor dos Anéis), William Shakespeare (Romeu e
Julieta), Michel Zevaco (Os ardaillans), e outros. Ao elencar e discorrer sobre
as obras de acordo com esses critérios, Machado apresenta bagagem cultural
e memória de leitura imponente.
Com relação a "como" ler o romance instigado pelo título, Machado
registra a sua orientação desde o viés da intelectualidade: ler os clássicos
universais deve ocorrer desde uma perspectiva crítica. O leitor não deve
concordar nem reprovar tudo, mas sim ler criticamente a obra sem jamais
lançar um olhar contemporâneo sobre um texto escrito e publicado em outro
tempo, aceitando e compreendendo o texto como produto de um tempo ao qual
a visão contemporânea de mundo não constituiu. Ana Maria Machado semeia,
sobretudo, leitores críticos e flexíveis no processo de leitura, o que faz de seus
ensaios uma contribuição indispensável para a formação de novos leitores.
Estamos diante de uma escritora que revela seu projeto literário pelo
valor dado à leitura literária, que é manifestado de várias formas dentro de sua
criação ficcional e crítica, não se limitando somente nas obras mencionadas
nesta pesquisa. Dentro de todo trabalho de Machado, encontramos desde
temas que retratam de forma criativa fatos cotidianos ligados ao universo da
criança, e que são tratados com seriedade, até emprego de múltiplos recursos
linguístico-expressivos, tal como a versatilidade da linguagem literária e a
humanização do leitor. Além disso, muitos são os recursos que se revelam em
sua obra, a exemplo do diálogo, que confere dinamismo às narrativas, do
emprego de termos e expressões inusitadas, dos poemas e cantigas de roda,
trovas populares e trava-línguas, brincadeiras e lúdicos jogos poéticos com
frequentes alusões à cantigas e poemas que resgatam costumes e festejos da
tradição popular, proporcionando ritmo e musicalidade aos seus textos.
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A crítica Laura Sandroni reflete sobre as obras de Machado afirmando
que “seus livros revelam uma linguagem inventiva, uma temática original, além
de uma profunda compreensão do mister de escritor integrado à cultura de seu
povo e, simultaneamente, arauto de novos tempos” (apud BASTOS, 1995, p.
115). A desconstrução de estereótipos, reforçada pela força questionadora das
personagens, revela o caráter revolucionário da obra da autora. Além disso, a
voz do discurso feminino vai, ao longo desse processo, ganhando força com
um sentido de igualdade perseguido pelo respeito à diferença. Em um artigo
sobre a obra Trança de História, Neuza Ceciliato de Carvalho reflete sobre o
projeto estético-ideológico da autora:
Seus textos literários são seu testemunho de uma época, onde a mulher, a mãe, a professora, a cidadã e a escritora se fundem para revelar os conflitos humanos do momento em que vivemos. No seu modo de compor está a sua ideologia, no seu estilo está o seu testemunho, na sua escolha técnica está a sua visão de mundo e a sua concepção de literatura e de leitor infantil e juvenil. (CECILIATO, 2004, p. 71)
Com isso, podemos perceber que Ana Maria Machado metaforiza a sua
trajetória de leitora, independente, “navegando contracorrente”. Vivências de
Machado com a avó Ritinha, que “era uma biblioteca oral”, foram conferidas a
ela como herança, o que posteriormente se refletiu em seu papel de escritora.
Segundo ela, tanto a prosa de Mário de Andrade como a poesia de Manuel
Bandeira, dentre tantos outros, confirmam que a criação literária do século XX
é perpassada pela influência oralizante das primeiras vozes literárias ouvidas
na infância. Vale lembrar Walter Benjamin (1995, p. 268): “a experiência
transmitida oralmente é a fonte de que hauriam todos os narradores” e, por
extensão, os escritores e poetas.
Em todos os textos da autora, é possível notar o trabalho com a
linguagem, a desliteralização que aproxima seu discurso oral do cotidiano, uma
vez que isso proporciona imediata identificação de seu leitor com a
personagem. Em Livros infantis como pontes entre gerações (2004), a
escritora discorre acerca desse assunto:
[...] um acervo vindo oralmente da noite nos tempos e passando de uma geração para outra em sucessivas pontes, vai aos poucos se construindo um legado. Uma vez sedimentado, esse patrimônio
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passa a exigir rupturas e reinvenções que ao mesmo tempo o contestem e reconfirmem – em novas vozes e novos tons, para que possa ser retransmitido também de forma renovada, com o acréscimo de experiências originais. (MACHADO, 2004, p. 61)
Além disso, estamos diante de uma escritora que encara com seriedade
o papel do escritor frente às questões sociais que está inserido. Em Do mundo
da leitura para a leitura do mundo, Marisa Lajolo (2010, p. 17) afirma que
“uma obra literária é um objeto social muito específico”. Como objeto social, o
texto literário, mesmo não tendo o propósito de veiculação de ideologia, acaba
por fazê-lo, pois, qualquer que seja um discurso, é sempre uma instância de
poder, já que o texto é a visão de mundo do escritor. Bakhtin, em Estética da
criação verbal (1997), lembra a falta de inocência dos discursos, inclusive o
literário, haja vista enredar fatos históricos, sociais, antropológicos, culturais,
econômicos e políticos, construindo, através de uma teia metafórica, a malha
narrativa, da qual veicula, consciente ou inconscientemente, a visão de mundo
de seu autor.
A pesquisadora Anna Cláudia Ramos (2006, p. 17) escreve que
Machado é uma grande pensadora sobre a leitura e o fazer literário, uma vez
que seus ensaios abordam “aspectos fundamentais sobre a democratização da
leitura de literatura em nosso país e sobre os processos de criação”, e que o
faz através de uma “escrita leve e acessível, quase um bate-papo com o leitor”.
Com isso, concluímos que tanto os textos ficcionais, quanto os textos
críticos, configuram o valor da leitura do literário no projeto estético da autora.
Enquanto a criação literária privilegia o lúdico, os ensaísticos primam à
precisão, pois, conforme ela mesma afirma: “a clareza de conceitos não deve
se esconder atrás da obscuridade dos termos”, afinal “um especialista não
deve abrir mão do rigor e da exatidão dos conceitos quando está examinando o
assunto que estuda” (MACHADO, 2004, p.80-81). Essa assertiva condensa, na
relação entre criação literária e crítica, uma postura reflexiva que se transforma
em metanarrativa, correndo paralela aos textos ficcionais da autora e
alicerçada pelos mesmos valores intrínsecos a eles: feminino, tradição, político
e universal.
99
CONCLUSÃO
Esta pesquisa procurou estabelecer a relação entre a produção literária
e a produção crítica de Ana Maria Machado, verificando como ambas se
apoiam em aspectos semelhantes, cujos valores podem ser definidos em:
feminino, tradição, político e universal. Concluímos, portanto, que o primado
desses valores colabora com o surgimento de um projeto literário cujo foco é a
crença no valor formador da literatura.
Para chegarmos a tal proposta, buscamos, em um primeiro momento,
demonstrar através de seus ensaios, revelações que Machado faz sobre seu
primeiro contato com a leitura, bem como a importância do ato leitor na sua
vida. Ao traçar sua história, ela demonstra que os livros fizeram parte de sua
formação de maneira prazerosa e natural, além de ser a principal responsável
por sua formação. Em muitos dos seus ensaios, ela tematiza assuntos
polêmicos para o campo da leitura, sua importância desde a tenra idade,
exemplificando com acontecimentos de ordem pessoal, o que faz toda a
diferença já que abre um espaço para a intimidade e não hierarquiza os lugares
de autor e leitor.
Em um segundo momento, demonstramos o que ela almeja com sua
produção literária e crítica. Para tanto, utilizamos a ficção e crítica
paralelamente, a fim de analisar como os diálogos entre ambas as práticas
tornam-se semelhantes. Com isso, apontamos o feminino, a tradição, a política
e a universalidade como valores que norteiam o projeto literário dessa autora,
além de serem os elementos motivadores para sua produção.
Assim, focamos na presença do feminino em sua criação e em seus
ensaios, e, embora nesta pesquisa, tenhamos elegido Bisa Bia Bisa Bel e A
audácia dessa mulher, em muitas outras obras da autora é possível também
identificar esse elemento. Observamos que o feminino atua na obra de
Machado no sentido de encaminhar o leitor para emancipação da mulher
quando apresenta personagens femininas correndo atrás de seus objetivos e
não se curvando aos conceitos preestabelecidos e/ou preconceituosos, que se
arrastam por séculos. Estamos diante de um valor que prima pela ação
transformadora da leitura, constituindo o projeto de uma escritora militante que
persevera na busca de uma nova realidade, de uma nova ordem para a
100
atuação da mulher na sociedade. Como exemplo disso, temos a construção de
suas personagens, que anseiam pela igualdade e pela justiça no contexto que
se encontram.
A tradição também é um fio norteador de seu projeto literário, uma vez
que se delineia na figura do contador de histórias, resgatando, assim, as
próprias origens de Machado, que, por ter ouvido muitas histórias quando
criança, aprendeu a valorizar esse contador responsável pela perpetuação das
raízes, reafirmando a cultura, o processo geracional que a mantém. Com isso,
evidenciamos o valor da tradição, pautada no popular, nas crenças e
movimentos culturais. Esse elemento é notado em muitas obras de Machado,
embora tenhamos elegido apenas De fora da arca, Bisa Bia Bisa Bel,
História meio ao contrário e Do outro lado tem segredos, além dos ensaios.
A fim de ampliarmos os valores à obra, observamos aspectos
fundamentais à escritora militante e politizada, que escreve em prol da leitura
literária. Para isso, elegemos também o elemento político como valor
identificado em sua crítica e ficção. Trata-se de uma literatura que denuncia
através de seus textos, sejam eles dirigidos ao público infantil ou ao público
adulto, os abusos de poder e a realidade político social de um país que
desconhece seus reais problemas, ou seja, a falta de responsabilidade pelo
contato com os livros. Aqui, utilizamos como ficção História meio ao contrário
e Era uma vez um tirano e não é demais mencionar as palavras da própria
autora:
Só a possibilidade de leitura de literatura, distribuída pelo maior número possível de cidadãos, poderá reforçar a coletividade diante da manipulação do mercado, dos interesses políticos, dos fundamentalismos religiosos, das ambições pessoais de ditadores. Sociedades que já são letradas há muito tempo têm anticorpos intelectuais mais desenvolvidos para enfrentar esses novos males. Sociedades menos acostumadas à leitura ficam muito mais vulneráveis e expostas. Aproximar as crianças de bons textos é também uma forma de fortalecer defesas e cuidar do futuro. (MACHADO, 2011, p. 44 e 45)
Além desse, outro valor eleito, nesta pesquisa, foi a universalidade, uma
vez que destacamos aqui os contos de fadas, exemplificado com História
meio ao contrário e A Princesa que escolhia. Para Ana Maria Machado, a
permanência desses contos comprova a sua universalidade, permitindo o
101
aproveitamento de um gênero que se tornou o mais fecundo da cultura popular.
Algumas de suas criações ficcionais, como é o caso das eleitas nesta
pesquisa, continuam contando essas histórias, porém com outra roupagem:
Como esses contos tradicionais são os clássicos infantis mais difundidos e conhecidos, a gente sabe que pode se referir a eles e piscar o olho para o leitor, porque conhece o universo de que estamos falando. Fica possível, então, fazer paródias aos contos de fadas e brincar com esse repertório, aprofundando uma visão crítica do mundo a partir de pouquíssimos elementos. Mas para que esse jogo literário possa funcionar plenamente, para que o humor seja entendido e a sátira seja eficiente, é indispensável que o leitor localize as alusões feitas, identifique o contexto a que elas se referem e seja, então capaz de perceber o que está fora de lugar na nova versão. (MACHADO, 2002, p.81)
Mais uma vez, temos o político como transformador e direcionador das
mudanças e o universal, como mantenedor da cultura e do que é comum entre
os homens. Por meio de um discurso fortemente enraizado na política
brasileira, o universal é o elo que aproxima os seres e as necessidades
humanas.
Tais elementos, resgatados em ambos os capítulos, nortearam o que
chamamos de projeto literário de Ana Maria Machado, cuja base é a crença no
poder formador e transformador da leitura literária. Estamos diante de uma
escritora que traz esse valor manifestado de várias formas dentro de sua
criação ficcional e crítica, não se limitando somente às obras mencionadas
nesta pesquisa.
Dentro de todo trabalho de Machado, encontramos desde temas que
retratam de forma criativa fatos cotidianos ligados ao universo da criança com
seriedade, até o emprego de múltiplos recursos linguístico-expressivos, tal
como a versatilidade da linguagem literária e a humanização do leitor. Além
disso, muitos são os recursos que se revelam em sua obra, a exemplo do
diálogo que confere dinamismo às narrativas, do emprego de termos e
expressões inusitadas, dos poemas e cantigas de roda, trovas populares e
trava-línguas, brincadeiras e lúdicos jogos poéticos com frequentes alusões a
cantigas e poemas, que resgatam costumes e festejos da tradição popular,
proporcionando ritmo e musicalidade ao texto. Ler Ana Maria Machado é entrar
em contato com esse universo da leitura de forma ativa, porque, uma vez
estando lá, não é mais possível deixar de refletir sobre ele.
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