ana queiroz-tutela extrajudicial de direitos em pernambuco · qualquer outra instituição,...
TRANSCRIPT
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE CINCIAS JURDICAS FACULDADE DE DIREITO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO
TUTELA EXTRAJUDICIAL DE DIREITOS COLETIVOS EM
PERNAMBUCO: Ministrio Pblico, Atividade Autocompositiva e
Compromisso de Ajustamento de Conduta
ANA DE FTIMA QUEIROZ DE SIQUEIRA SANTOS
TESE DE DOUTORADO Direito Pblico
Recife 2007
ANA DE FTIMA QUEIROZ DE SIQUEIRA SANTOS
TUTELA EXTRAJUDICIAL DE DIREITOS COLETIVOS EM
PERNAMBUCO: Ministrio Pblico, Atividade Autocompositiva e
Compromisso de Ajustamento de Conduta
Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao em Direito da Faculdade de Direito do Centro de Cincias Jurdicas da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para obteno do grau de Doutor. rea de concentrao: Direito Pblico Orientador: Professor Doutor Andras Joachim Krell
Recife 2007
Santos, Ana de Ftima Queiroz de Siqueira Tutela extrajudicial de direitos coletivos em Pernambuco: Ministrio Pblico, atividade autocompositiva e compromisso de ajustamento de conduta / Ana de Ftima Queiroz de Siqueira Santos. Recife : O Autor, 2007.
357 folhas; il.
Tese (doutorado)
Universidade Federal de Pernambuco. CCJ. Direito, 2007.
Inclui bibliografia e anexos.
1. Conduta - Ajustamento - Compromisso -
Pernambuco - Brasil. 2. Inqurito civil e ao civil pblica - Pernambuco - Brasil. 3. Interesses ou direitos transindividuais - Proteo - Brasil. 4. Ministrio Pblico -
Poderes - Atribuies - Controle - Pernambuco - Brasil. 5. Resoluo de conflitos -
Mecanismos alternativos jurisdio - Pernambuco - Brasil. 6. Tutela dos direitos
Pernambuco - Brasil. 7. Acesso justia - Pernambuco -
Brasil. 8. Soluo de conflitos - Crtica e interpretao -
Brasil. 9. Ministrio Pblico - Interesses coletivos - Brasil.
10. Justia - Controle - Direitos sociais - Brasil. Ttulo. 342.7 CDU (2.ed.) UFPE
342.8114 CDD (22.ed.) BSCCJ2007-005
A Rori, Bernardo e Amanda, sempre.
AGRADECIMENTOS
minha pequena famlia, agradeo o desprendimento e o auxlio prestado no empreendimento deste projeto. Um apoio que, para mim, ser sempre fundamental. Manifesto especial gratido Professora Mirian de S Pereira, Diretora do Centro de Cincias Jurdicas da Universidade Catlica de Pernambuco, por viabilizar o meu afastamento da docncia pelo tempo necessrio concluso da tese. Dela recebi mais que um crdito, o apoio pessoal e o exemplo de um verdadeiro esprito acadmico. Ao Procurador de Justia Francisco Sales de Albuquerque, na Chefia do Ministrio Pblico do Estado de Pernambuco, por ocasio do preparo da tese, agradeo os licenciamentos possveis e a acolhida estimulante a algumas propostas que lhe foram antecipadas. Procuradora de Justia Janeide Oliveira de Lima, Corregedora Geral do Ministrio Pblico, agradeo a materializao do apoio pesquisa realizada e a abertura de um espao para a objetividade da informao terica em um projeto poltico-institucional. Ao Professor Doutor Andras Krell, sou grata pela orientao serena, segura e por compreender os limites impostos pelas minhas condies de trabalho. Ao Professor Doutor Carlos Alberto de Salles, da Universidade de So Paulo, colega de Ministrio Pblico e grande conhecedor da matria pesquisada, agradeo as indicaes e a remessa de material bibliogrfico, generosamente ofertado. Aos Professores Doutores Joo Maurcio Adeodato e Jos Luciano Oliveira, devo o acertamento metodolgico, oferecido no exame de qualificao mediante observaes precisas e pertinentes. A Clvis tico, tcnico em informtica e servidor da CGMP, agradeo a confeco do programa gerenciador dos dados e o seu processamento. s bibliotecrias do Ministrio Pblico Estadual, Rosa Dalva Rivera de Azevedo, Eulina Pedrosa Arruda, Maria Aparecida Alves Morais, sou grata pela solidariedade e pela disposio incansvel na busca do material bibliogrfico. Ao Bel. Maurcio Leo, pela formatao final do trabalho. Finalmente, o meu reconhecimento e respeito aos promotores de justia que generosamente se dispuseram a conceder entrevistas, doando pesquisa informao preciosa, e por me revelarem seu movimento em direo a um outro projeto de sociedade.
We are modestly more agnostic, believing that there is no particular method of
resolving disputes that is consistently superior to any other. Disputant, disputes and
dispute contexts are too complex to permit any universal declarations. Some
disputes would best be settled one way. Others should be resolved by another
method. Perhaps some ought to be left unresolved
at least initially. We are
persuaded, however, that in all but the rarest of circumstances, the use of force is ill
advised
a blunt, inelegant, and all-too-often-tragic way to address disputes.
Almost without exception, the use of force represents some combination of failure of
skill, a failure of will, or a dearth of creativity on the part of one or more of the
disputants (Michael Moffit and Robert Bordone. The handbook of dispute
resolution, Introduction).
RESUMO
SANTOS, Ana de Ftima Queiroz de Siqueira. TUTELA EXTRAJUDICIAL DE DIREITOS COLETIVOS EM PERNAMBUCO: Ministrio Pblico, atividade autocompositiva e compromisso de ajustamento de conduta. 357 folhas. Tese de doutorado
Centro de Cincias Jurdicas
Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco, Recife-PE.
A pesquisa afere as possibilidades da resoluo extrajudicial de conflitos coletivos no Estado de Pernambuco. No Brasil, o Ministrio Pblico constitucionalmente encarregado da proteo dos interesses da coletividade. O Compromisso de Ajustamento de Conduta corresponde a um acordo criado por lei, visando facilitar o acesso a direitos coletivos. Pode ser usado dentro e fora do processo judicial sob a responsabilidade do Ministrio Pblico e dos rgos pblicos como uma promissora ferramenta de tutela transindividual. Sabe-se pouco, ainda, acerca do modo e do momento de preparao da deciso no mbito de um acordo deste tipo, ou a propsito de suas condies de cumprimento. A pesquisa exploratria e focalizada na atividade do Ministrio Pblico porque ele possui, mais que qualquer outra instituio, experincia e informao a respeito de litigncia de interesse pblico e de solues autocompositivas. Os resultados revelam que este acordo serve proteo diversificada como meio ambiente, sade, educao, consumidor entre outras. Apesar disto, melhores resultados poderiam ser obtidos. H carncia de informao adequada acerca do uso de tcnicas de avaliao e de resoluo conflitiva. Os controles internos acerca de resultados qualitativos e tambm a conduo dos procedimentos decisrios empreendidos nas instncias superiores da instituio se apresentam disfuncionais. Propostas de aperfeioamento de controle de resultados so sugeridas atravs de investimentos em estrutura e pessoal.
Palavras-chave: Direitos coletivos. Resoluo de disputas. Ajustamento de Conduta.
ABSTRACT
SANTOS, Ana de Ftima Queiroz de Siqueira. TUTELA EXTRAJUDICIAL DE DIREITOS COLETIVOS EM PERNAMBUCO: Ministrio Pblico, atividade autocompositiva e compromisso de ajustamento de conduta. 357 folhas. Doctoral Thesis
Centro de Cincias Jurdicas
Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco, Recife-PE.
The research surveys the possibilities of extrajudicial resolution in collective conflicts in the State of Pernambuco. Public prosecution service is constitutionally in charge of the protection of social rights. The so-called Compromisso de Ajustamento de Conduta (translated as Commitment to an Adjustment Behavior), is an agreement created by law, aiming to provide easier access to justice in public interest issues. It can be used inside and outside the courts under the responsibility of the Public Prosecution service and public agencies and it is a promising tool for public dispute processing. It is known little, still, concerning the moment and the ways of preparing a decision in the scope of an agreement of this type, and even less about its protective effects. This preliminary research focuses the activity of public attorneys because they gather experience and information regarding public interest litigation and non-adversarial solutions. The results disclose that this agreement encloses environment, health, education, consumer among other issues. However, better results should be achieved. Technical information concerning the use of techniques of assessment and conflict resolution is needed. The internal controls concerning qualitative results and supervision over institutional behavior in the consensus building process do not work as efficiently as they were expected. Revisional procedures undertaken by the higher stages of appeal in the institution, lack regulation. Proposals to improve quality result controls point out investments in structure and staff.
Keywords: Social rights. Dispute resolution. Agreement.
LISTA DE GRFICOS
Grfico 01
Tomadores ou compromissrios ................................................................. 259
Grfico 02
Promitentes ................................................................................................. 263
Grfico 03
rea de Tutela Jurdica ............................................................................... 269
Grfico 04
Relao entre pessoas fsicas e jurdicas e tutela transindividual ............... 272
Grfico 05
Relao entre administrao direta e tutela transindividual ....................... 274
Grfico 06
Interesse transindividual Categorias ...................................................... 276
Grfico 07
Modalidade de tutela do direito .................................................................. 278
Grfico 08
Natureza da obrigao assumida................................................................. 280
Grfico 09
Contedo do TAC Clusulas ................................................................. 282
Grfico 10
Cominaes previstas ................................................................................. 283
Grfico 11
Obrigao quanto ao prazo de cumprimento .............................................. 288
Grfico 12
Incidncia de TACs por Regio.................................................................. 292
Grfico 13
Investigao prvia ..................................................................................... 298
Grfico 14
Debate prvio, cronograma/plano de execuo .......................................... 300
Grfico 15
Incidncia de outras tcnicas resolutivas .................................................... 303
Grfico 16 Capacitao em tcnicas de RAD................................................................ 305
Grfico 17 Tcnicas resolutivas utilizadas .................................................................... 308
Grfico 18
Superviso de cumprimento........................................................................ 309
Grfico 19 Etapa de cumprimento ................................................................................. 311
Grfico 20
Resultados de efetivao............................................................................. 313
Grfico 21
Problemas de cumprimento / execuo dos TACs ..................................... 314
Grfico 22
Resultados parciais e problemas de cumprimento ...................................... 316
Grfico 23
Reviso do TAC pelo CSMP ...................................................................... 322
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ACP Ao Civil Pblica
ACPs Aes Civis Pblicas
ADR
AMEPE
Alternative Dispute Resolution
Associao dos Magistrados do Estado de Pernambuco
CC Cdigo Civil
CDC Cdigo de Defesa do Consumidor
CF
CGMP
Constituio Federal
Corregedoria Geral do Ministrio Pblico
CPC
CSMP
Cdigo de Processo Civil
Conselho Superior do Ministrio Pblico
Dec. Decreto
DJ Dirio da Justia
DO Dirio Oficial
ECA
ESMP
IC
Estatuto da Criana e do Adolescente
Escola Superior do Ministrio Pblico
Inqurito Civil
MP Ministrio Pblico
MPPE Ministrio Pblico do Estado de Pernambuco
MS Mandado de Segurana
PA Procedimento Administrativo
PIP Procedimento de Investigao Preliminar
STF Supremo Tribunal Federal
STJ Supremo Tribunal de Justia
TAC
TACs
Termo de Ajustamento de Conduta
Termos de Ajustamento de Conduta
TJPE Tribunal de Justia de Pernambuco
SUMRIO
INTRODUO .......................................................................................................................................................14
PRIMEIRA PARTE: O PROCESSO JUDICIAL DE RESULTADOS E OS RESULTADOS DA PRTICA.................................................................................................................................................................21
1 A TEORIA DA AO CIVIL PBLICA E A TUTELA DOS DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS ...........21
2 A EXECUO ESPECFICA COMO ETAPA DO PROCESSO DE TUTELA TRANSINDIVIDUAL.....33
3 TUTELA JUDICIAL PERNAMBUCANA A DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS EM 1999: RELATRIO E PROGNSTICOS DE UMA PESQUISA.............................................................................46
SEGUNDA PARTE: TUTELA EXTRAJUDICIAL MINISTRIO PBLICO, INQURITO CIVIL E COMPROMISSO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA ...........................................................................51
4 O MINISTRIO PBLICO NA TUTELA EXTRAJUDICIAL DOS DIREITOS .........................................51
5 O INQURITO CIVIL COMO PARADIGMA PROCEDIMENTAL: LONGE DA DIMENSO AUTOCOMPOSITIVA .....................................................................................................................................63
6 O COMPROMISSO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAO DE TUTELA COLETIVA ......................................................................................................70
7 ATIVIDADE REVISRIA: INQURITO CIVIL, PROCEDIMENTOS ADMINISTRATIVOS E TAC....86
8 O CONTROLE INTERNO DA ATIVIDADE EXTRAJUDICIAL DE TUTELA TRANSINDIVIDUAL NO MINISTRIO PBLICO...........................................................................................................................96
9 O TAC COMO TTULOEXECUTIVO JUDICIAL E EXTRAJUDICIAL: A VOLTA JURISDIO..104
TERCEIRA PARTE: OUTRAS DIMENSES TERICAS: DIREITOS PROCURA DE PROCESSOS .........................................................................................................................................................111
10 PLURIPROCESSUALISMO E AUTOCOMPOSIO ................................................................................111 10.1 Acesso justia, Istrumentalidade e uma reviso da Teoria (Geral?) do Processo ....................................111 10.2 Um sistema pluricntrico de acesso justia ...............................................................................................117 10.3 Uma teoria de processo para processos........................................................................................................130
11 TUTELA DOS DIREITOS E REFORMA DO ESTADO: A ALTERNATIVA CONSENSUAL ...............143 11.1 A globalizao como cenrio .......................................................................................................................143 11.2 A constitucionalizao dos direitos ..............................................................................................................148 11.3 A Reforma do Estado e a administrao pblica de consenso ....................................................................157 11.4 A tutela extrajudicial de direitos: o processo administrativo consensual como tcnica resolutiva ............168
12 LITIGNCIA DE INTERESSE PBLICO E EFICINCIA JUDICIAL: A EXPERINCIA NORTE-AMERICANA..................................................................................................................................................176
12.1 Aspectos do sistema de justia norte-americano: o Common Law, a justia adversarial, a equity e as injunctions .....................................................................................................................................................176
12.2 A experincia das injunctions: os desafios da execuo..............................................................................189 12.3 Processo Civil de Interesse Pblico: uma perspectiva para a litigncia complexa ..................................199 12.4 Novas avenidas: poltica decisria, instituies e a crtica das reformas de processo ................................209
13 PROCESSAMENTO DE LITGIOS E TCNICAS RESOLUTIVAS NO PROCESSO EXTRAJUDICIAL..........................................................................................................................................217
13.1 Da crise do processo judicial ao movimento pelos mecanismos alternativos.............................................217 13.2 A evoluo do debate adjudicao judicial versus ADR vista por Owen Fiss ............................................224 13.3 O estado atual da discusso acerca de ADR
Alternative Dispute Resolutions .......................................228 13.4 Processos de adjudicao judicial e de consenso: atividades de preveno, soluo e superviso ............234
13.4.1 Processos de resoluo por adjudicao ...............................................................................................236 13.4.2 Processos consensuais .............................................................................................................................238
QUARTA PARTE ANLISE DE RESULTADOS. SOLUAO EXTRAJUDICIAL ATRAVS DOS TERMOS DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA TACs ............................................................................248
14 HIPTESES DE TRABALHO E DESCRIO DA METODOLOGIA......................................................248 14.1 As hipteses bsicas......................................................................................................................................248 14.2 As hipteses secundrias ..............................................................................................................................249 14.3 Material e mtodos........................................................................................................................................250 14.3.1 Metodologia..............................................................................................................................................250 14.3.2 Amostra ....................................................................................................................................................252 14.3.3 Instrumentos de pesquisa .......................................................................................................................254 14.4 Categorias de anlise ....................................................................................................................................257 14.4.1 Aspectos da formao do TAC e da tutela prestada aos direitos ......................................................257 14.4.2 Aspectos relativos ao procedimento e s atividades de deliberao e soluo .................................258 14.4.3 Aspectos ligados ao cumprimento do ajuste: controle de eficincia e reviso .................................258
15 ANLISE DE RESULTADOS .......................................................................................................................259 15.1 Aspectos da formao do TAC e da tutela prestada aos direitos.................................................................259 15.1.1 Partes celebrantes, compromitente, compromissrio e intervenientes .............................................259 15.1.2 Resultados por rea de tutela material .................................................................................................268 15.1.3 Modalidade da tutela prestada e natureza da obrigao assumida ..................................................278 15.1.4 Formao dos Compromissos de Ajustamento de Conduta...............................................................281 15.2 Aspectos da atividade autocompositiva: procedimento, deliberao e deciso ..........................................290 15.2.1 A atividade administrativo-resolutiva: aspectos investigativo-preparatrios .................................290 15.2.2 A prxis do processo administrativo de investigao/resoluo: o informal funcional ...............292 15.2.3 Procedimento administrativo investigativo ou resolutivo? ................................................................298 15.2.4 Procedimento administrativo e atividade deliberativa .......................................................................299 15.2.5 A necessidade de uma formao para a atividade...............................................................................305 15.3 Aspectos do cumprimento do TAC: reviso e controle de eficincia .........................................................309 15.3.1 Controle da eficincia qualitativa do cumprimento ............................................................................309 15.3.2 Etapas de cumprimento (andamento) e resultados .............................................................................311 15.3.3 Dificuldades de cumprimento ................................................................................................................314 15.3.4 O controle interno pelo processo de reviso perante o CSMP e a ausncia de impugnaes ao
TAC pelos interessados ..........................................................................................................................321
QUINTA PARTE: RECOMENDAES E PROPOSTAS.............................................................................324
16 PROGNSTICOS SOBRE A TUTELA DE DIREITOS ATRAVS DO TAC: CULTURA DE DELIBERAO E AUTOCOMPOSIO ...................................................................................................324
17 PROCEDIMENTO COMO SEQNCIA E POSTURA: VIABILIZANDO O ESPAO DE RESOLUO CONFLITIVA POR MLTIPLAS PORTAS .......................................................................329
18 CONTROLE INTERNO DE EFICINCIA E REVISO DA TUTELA EXTRAJUDICIAL NO MP .......334
19 ESTRUTURAO DA SUPERVISO E ORIENTAO DA ATIVIDADE EXTRAJUDICIAL DOS MEMBROS DO MP ........................................................................................................................................338
REFERNCIAS ....................................................................................................................................................343
ANEXO FORMULRIO DE PESQUISA ....................................................................................................355
14
INTRODUO
A tese representa a continuao de um trabalho numa mesma dimenso
investigativa: a tutela dos direitos transindividuais. Utilizam-se indistintamente as expresses
direitos transindividuais, direitos supra-individuais, direitos metaindividuais ou coletivos lato
sensu, porque assim o faz a teoria existente sobre a matria. A preferncia pelo uso da
expresso direitos coletivos para o ttulo da tese se justifica por ser a mais popular.
Desta vez, contudo, explorou-se o reverso da tutela judicial de carter
atributivo ou da adjudicao judicial, como trata a literatura norte-americana, a prestao
jurisdicional. Buscou-se investigar os resultados de proteo a esses direitos na esfera
extrajudicial atravs do uso de um mecanismo autocompositivo: o Compromisso de
Ajustamento de Conduta. Um mecanismo alternativo jurisdio.
Sabe-se ainda muito pouco a respeito do que este instrumento de soluo
consensual, um ajuste de comportamento ao que a lei prev, pode produzir em termos de
qualidade protetiva. Menos ainda sobre os instrumentos, os saberes e as reais possibilidades
do espao da soluo acordada, seja ela explorada judicial ou extrajudicialmente para a
resoluo de conflitos. O prprio conflito constitui uma situao considerada indesejvel,
desagregadora, algo que precisa ser afastado quando se d em cada um de ns e em relao
aos que nos cercam. O saber de processo reproduz esta viso. O enfrentamento da dimenso
resolutiva atravs do uso de mecanismos alternativos de soluo permite que, em direito, se
trate o conflito como ele se apresenta: inevitvel, no indivduo e na convivncia. Mais que
acreditar na sua supresso por decreto preciso aprender que se pode gerenci-lo.
A pesquisa se realiza sobre novos paradigmas: a utilizao de dados empricos
como instrumento para uma pesquisa em teoria do processo e as possibilidades
enriquecedoras da troca interdisciplinar.
15
Por isto, foram utilizados, alm da dogmtica jurdica pertinente ao tema,
outros enfoques a adensar um pouco mais a teleologia que o direito processual civil reivindica
para si: garantir um processo materialmente efetivador da tutela dos direitos. A informao
interdisciplinar oferece novas ferramentas explorao dessa expectativa.
Buscou-se aferir o que encerram os Compromissos de Ajustamento de Conduta
tomados pelo Ministrio Pblico (MP) ao rs-do-cho, no concreto. Contextualizou-se a
efetividade como eficincia organizacional, procedimental e comportamental: instituies,
processos e posturas, o instituto do Compromisso de Ajustamento como parte da atividade
extrajudicial do Ministrio Pblico Estadual. Isto significou avaliar, tambm, os
procedimentos resolutivos no judiciais dos quais resultam tais ttulos, a atividade
preparatria, providncias e aptides, controles internos. Em suma, atividade extrajudicial, no
mbito externo e interno.
A abordagem dogmtica foi realizada, por conseguinte, prxis e de acordo
com ela.
Efetuou-se uma reviso crtica da teoria do Inqurito Civil e dos procedimentos
administrativos similares de investigao utilizados pelo Ministrio Pblico Estadual, da
teoria institucional do MP centrada no esquadrinhamento organizacional e no desempenho
dos controles revisionais dirigidos atividade extrajudicial de proteo coletiva.
A anlise do Inqurito Civil, procedimentos investigativos administrativos e da
dogmtica do Compromisso de Ajustamento de Conduta, um segmento terico atravessado
pela perplexidade de uma prtica no-uniformizada, realizou-se por um vis pouco explorado,
representado pela circunstncia de se oferecerem tais processos como sedes preparatrias de
resolues no contenciosas. A distncia mantida deste tratamento at aqui tem resultado em
ambivalncias acerca do uso Inqurito Civil e do uso de procedimentos administrativos
equivalentes. Este alheamento no tem permitido que se afira o que representa, na prtica, a
16
atividade administrativa consensual, hoje sustentada dogmaticamente pelo Direito
Administrativo, o manejo desta atividade pelos membros do MP, resultados de eficincia e
dficits e exerccio de controles. Ainda no possvel saber o tipo de controle que se deseja
efetivar acerca das solues produzidas no mbito de tais procedimentos, principalmente, no
que tange ao alcance e ao momento em que tal controle deve se dar. Os controles
institucionais so mecanismos democrticos, garantias de legitimidade e eficincia.
A organizao estrutural do MP para o exerccio de tais controles avaliada,
portanto, no rastro da incompletude normativa reguladora da atividade extrajudicial. Hoje a
instituio se encontra impossibilitada de acompanhar materialmente resultados de proteo
transindividual atravs do Compromisso de Ajustamento de Conduta.
A incorporao da informao norte-americana em teoria de resoluo de
conflitos e mecanismos alternativos de resoluo de conflitos presta-se a demonstrar a lacuna
epistemolgica que apresenta o tratamento das equivalentes jurisdicionais pelo processo civil.
A abordagem processual brasileira limitada diviso clssica dos modos resolutivos
(autodefesa, autocomposio e heterocomposio), passando ao largo do debate acerca de
tcnicas de processamento de conflitos (dispute processing) e mecanismos resolutivos
alternativos jurisdio (alternative dispute resolutions, as ADRs) que desde os anos oitenta
motivam uma ambiciosa e sofisticada reflexo acadmica nas boas universidades norte-
americanas.
Em que pese a existncia de uma legislao avanada de tutela coletiva no
processo civil brasileiro, ainda no se enfrentam os problemas ligados aos perfis conflitivos e
seu diagnstico, construo do caso concreto, s diferenciaes decorrentes da materialidade
conflitiva e dos partcipes, s ingerncias do pano de fundo, existncia de modernas tcnicas
de resoluo conflitiva e s tcnicas de preveno de uso da sede extrajudicial. Enfim, as
questes que se pem para atender e montar perspectivas qualitativas de resultado.
17
O estudo do processamento de conflitos
dispute resolution processes
e
de tcnicas resolutivas alternativas constitui, ele prprio, um campo investigativo em fase de
assentamento, mesmo em pases nos quais a atividade de produo decisria de h muito
representa um objeto epistemolgico, como nos Estados Unidos. Um estudo a seu respeito
oferece-se como um subsdio valioso para crivar prticas e controles utilizados empiricamente
falta de teoria nacional construda a respeito do tema.
A escassez de informao terica assentada a propsito do tema escolhido
determinou tambm o nvel da pesquisa, realizada de forma exploratria, visando apontar
planos de trabalho, enfoques, direes para a investigao terico-processual, avenidas novas
de investigao.
As recomendaes e propostas alinhadas no ltimo captulo configuram um
elenco de sugestes destinadas ao aperfeioamento estrutural institucional do Ministrio
Pblico para adequ-lo ao desempenho do que parece ser uma vocao nascente, mais que
uma misso, uma atuao fomentadora da democracia e de fruio de direitos. Na esfera do
acordo, um espao convivencialmente mais exigente, refinado e arriscado, a reeducao para
as novas necessidades do direito, o gerenciamento de conflitos e o controle de resultados, no
interior das instituies, parecem ser as pedras de toque neste momento.
O trabalho encontra-se dividido em cinco partes.
A primeira parte cuida dos pressupostos tericos da pesquisa, trazendo uma
aproximao crtica teoria da Ao Civil Pblica com nfase nos limites da execuo
especfica, conceitos e categorias necessrias compreenso dos objetos de investigao.
Traz, ainda, uma descrio sucinta da pesquisa anteriormente realizada para a dissertao de
mestrado da autora, a qual se oferece como justificativa para a escolha dos temas enfrentados
nesta tese de doutorado.
18
A segunda parte versa sobre a dogmtica do tema pesquisado, no que tange
atuao do MP, ao Inqurito Civil e ao Compromisso de Ajustamento de Conduta. Buscou-se,
neste captulo, filtr-la sob o enfoque da pesquisa, ou seja, cotej-la com as demandas da sede
resolutiva extrajudicial e da administrao distributiva de resultados. Esboou-se nesta parte
da tese, luz da teoria institucional do MP, uma dogmtica crtica do controle interno das
atividades resolutivas administrativas.
A terceira parte encerra o que a autora chama de teorias de base, a descrio de
um pano de fundo terico que se oferece construo de uma teoria do processo de feitio
contemporneo: os efeitos da globalizao na Reforma do Estado, o conflito ou disputa, como
objeto epistemolgico, a experincia norte-americana com a resoluo conflitiva como campo
de pesquisa, o impacto desses novos saberes e modos resolutivos no Judicirio, em reformas
judicirias e vice-versa. Enfim, o vicejar de uma teoria do processamento conflitivo e dos
mecanismos alternativos de resoluo.
A quarta parte, Anlise de Resultados, foi dedicada ao relatrio da pesquisa
realizada pela autora. Nela se encontram o tratamento da informao emprica encontrada, a
exposio dos dados e sua anlise a partir da literatura pesquisada. A descrio da
metodologia e das tcnicas de pesquisa utilizadas encontra-se ali tambm situada.
Para esta pesquisa, fez-se uso cumulado de mtodos de procedimento, tcnicas
de pesquisa de documentao direta intensiva atravs da observao participante (experincia
vivida, observao da realidade da prxis), observao direta extensiva, mediante o uso de
formulrio para coleta de dados e de uma anlise de contedos. (MARCONI; LAKATOS,
2001, p. 222-225).
Ainda como procedimento adotado, com base em Estevam dos Santos (2005,
p. 173), foi utilizada pesquisa bibliogrfica, distinguindo-se, como leitura corrente, os
trabalhos de direito processual civil mais aproximados perspectiva deste trabalho, Capelletti
19
(1988, 1993), Fazzallari (2006), Guerra (2003), Proena (2001), Rodrigues (2006) e Salles
(1999, 2003) e uma seleo da literatura norte-americana e inglesa sobre reforma judicial e
uso de mecanismos alternativos de resoluo de conflitos incluindo Cranston (2006), Fiss e
Resnik (2003), Moffitt e Bordone (2005), Riskin e Westbrook (1987), Susskind e Mac
Kearnan (1999), dentre outros menos citados. Para o cotejo de resultados da pesquisa
emprica foram utilizadas outras pesquisas realizadas pela AMEPE (CADERNOS DA
AMEPE, 2004), Sadek, Beneti e Falco (2006) e, ainda, os resultados de pesquisa constante
no relatrio do Plano Estratgico MPPE 2005-2008 (PERNAMBUCO, 2006), como tambm
no Diagnstico do Ministrio Pblico dos Estados. (BRASIL, 2006).
A pesquisa bibliogrfica, como se pode verificar, ocorreu no mbito de uma
perspectiva pouco utilizada no mbito do processo civil, visando contribuir ao adensamento
do conceito de efetividade como eficincia de resultados aplicada teoria do Inqurito Civil e
da Ao Civil Pblica. A sua realizao por si atenderia s exigncias metodolgicas do
Programa de Ps-graduao em Direito, dada a propositura uma abordagem dogmtica nova
sobre o tema. Preferiu-se, contudo, complement-la com os resultados de uma pesquisa
emprica.
A quinta parte foi destinada s concluses e s propostas de trabalho.
Instrumentaliza o produto das informaes geradas sob um molde prescritivo e propositivo,
um formato bem detalhado, por isto incomum numa parte conclusiva. Considerou-se
inevitvel flexionar a regra metodolgica em virtude da necessidade de se explicitarem as
razes do que ali se encontra sugerido.
As notas de rodap foram reduzidas ao mnimo, reservadas s tradues, todas
elas realizadas pela autora, indicaes bibliogrficas, transcries das normas jurdicas
mencionadas no texto e a explicaes que, se colocadas no corpo da tese, interromperiam o
fluxo do raciocnio desenvolvido.
20
As itlicas servem para realar expresses ou palavras utilizadas em lngua
estrangeira fora dos trechos de citao e para dar nfase a alguma expresso utilizada pela
autora no contexto de um raciocnio. Quando utilizadas pelos autores referenciados, a autora
efetua a ressalva.
21
PRIMEIRA PARTE:
O PROCESSO JUDICIAL DE RESULTADOS E
OS RESULTADOS DA PRTICA
1 A TEORIA DA AO CIVIL PBLICA E A TUTELA DOS DIREITOS
TRANSINDIVIDUAIS
Faz-se necessrio este prembulo para situar dogmaticamente o campo da
pesquisa anterior, o qual servir igualmente a esta que se vai expor, pois ambas se constroem
sobre a mesma base dogmtica: a proteo dos direitos transindividuais e o sistema de defesa
coletiva brasileiro, institudo por dois diplomas legais, a Lei de Ao Civil Pblica (LACP)
7.347, de 24 de julho de 1985 e o Cdigo de Defesa do Consumidor (CDC) (Lei 8.078, de 11
de setembro de 1990).
A tese trata da proteo transindividual com foco no uso de um mecanismo
extrajudicial, o Compromisso de Ajustamento de Conduta. Alinham-se os conceitos ligados
tutela ou proteo judicial transindividual, que serviro para o tratamento da tutela
extrajudicial veiculada por aquele mecanismo autocompositivo. Adota-se para este trabalho a
mesma construo dogmtica utilizada na dissertao de mestrado, agregando-se informaes
novas acerca do processo judicial que serve prestao jurisdicional de direitos
transindividuais, anotando-se que o enfoque emprestado a elas pela autora no envelheceu.
(SANTOS, 1999, p. 1-11, 50-76).
De acordo com Morais (1996, p. 125), so interesses transindividuais aqueles
que
escapam tradio individualstica, se pem como indispensveis vida das pessoas. So interesses que atinam a toda a coletividade. So interesses ditos transindividuais, pois no esto acima ou alm dos indivduos, mas perpassam a coletividade de indivduos e estes, isoladamente.
22
So interesses que, por atingirem coletividades inteiras de pessoas, exigem no
apenas um impedimento de violao, mas uma atividade educativa e promocional.
A preferncia pela terminologia transindividual se deve explicao do
referido para adot-la:
O prefixo trans permite, assim, que possamos apreender a idia de que os interesses debatidos, apesar de comuns (nitrios), tocam imediata e individualmente embora este termo individual no tenha o mesmo contedo excludente de quando est empregado como direito individual, como salientado h pouco
cada componente desta coletividade, ao passo que a consagrao do prefixo meta importa uma perspectiva de algo que esteja alheio e acima do indivduo, sem toc-lo de forma alguma. (MORAIS, 1996, p.126).
Impe-se definir interesses transindividuais como expresses dos chamados
direitos fundamentais. Os direitos fundamentais correspondem ao catlogo de direitos
humanos que so reconhecidos como tais por uma ordem jurdica estatal, atravs de uma
Constituio. So os direitos humanos positivados (ALEXY, 1995, p. 97).
Neste trabalho, ser importante traz-los em sua dupla dimenso: a dimenso
subjetiva, individual, aquela que tradicionalmente lhes empresta a doutrina, e uma dimenso
objetiva, que a dos valores almejados pela comunidade jurdica, com a qual se relacionam os
interesses transindividuais. (GUERRA FILHO, 1996, p. 255-256).
So direitos de primeira gerao os chamados direitos de liberdade
civil e
poltica
aqueles que afirmam a liberdade humana sob o prisma da individualidade e se
caracterizam por autorizar uma resistncia em face do Estado, a exigibilidade de uma
prestao negativa. Os direitos de segunda gerao so direitos prprios da coletividade,
aqueles que demandam uma prestao do Estado para ser implementados, se o modelo
proposto reflete um Estado provedor de bem-estar social. So direitos que se destinam a
efetivar a igualdade no plano coletivo. Os direitos fundamentais de terceira gerao so
aqueles baseados na idia de solidariedade e que se voltam proteo do gnero humano.
Traduzem o direito paz, ao desenvolvimento, ao meio ambiente e por isto envolvem o
direito sade, alimentao adequada, ao trabalho, etc. (MORAIS, 1996, p.162-166).
23
A evoluo histrica da ordem coletiva com a ampliao dos direitos sociais,
erigidos como direitos fundamentais e da tutela de novas categorias de direitos/interesses
evidencia qual a tnica dos conflitos transindividuais. Ela reside na proteo a interesses
difusos. So eles a expresso de pretenses que se dirigem ao reconhecimento de direitos
garantidos na prpria ordem constitucional dos estados contemporneos.
Os chamados novos direitos representam, desse modo, o produto da ampliao
do acervo constitucional de direitos fundamentais e correspondem, aqui, aos chamados
direitos fundamentais sociais, exemplificados os direitos assistncia social, ao trabalho,
moradia, educao como direitos a prestaes. Aclara-se que estes direitos no esgotam o
mbito da categoria jusfundamental dos direitos a prestaes. (ALEXY, 1997, p. 419-420).
Para os fins desse trabalho opera-se com a flexibilizao do conceito de
direitos sociais, com apoio em Krell (2002, p.47-48), que adverte sobre tais distines de
primeira, segunda e terceira geraes (ou dimenses), serem elas meramente graduais. Muitos
direitos fundamentais tradicionais foram reinterpretados como direitos sociais, perdendo
sentido o apego a distines rgidas. O direito constitucional moderno enfatiza que qualquer
direito fundamental, seja ele civil, poltico, econmico, social ou cultural, possui, de igual
maneira, componentes de obrigaes positivas e negativas para o Estado. Juntamente com a
pretenso de se fruir do direito vida, liberdade e propriedade, ao se exigir a absteno da
interferncia do estado, tambm se exige uma dimenso protetiva de atuao por parte do
Estado, exemplificando o autor com servios de polcia, sistema prisional e organizao
judiciria.
A ampliao do discurso constitucionalista a respeito dos novos direitos
mediante o aperfeioamento dos modelos estatais democrticos desdobrou, no direito
processual civil, a discusso sobre estratgias de adequao do sistema de processo a novas
necessidades, designadas por tutela dos direitos.
24
A dogmtica processual (GUERRA 2003, 114-115), ao buscar subsdios na
teoria dos direitos fundamentais, apropriou-se das caractersticas que definem tais direitos
para adequar a estes o processo. O ajuste deveria atender s seguintes peculiaridades:
a) o contedo desses direitos envolve prestaes de trato sucessivo, de realizao
contnua por um tempo mais ou menos longo;
b) a sua violao conduz a uma leso irreparvel ou de difcil reparao;
c) a tutela ressarcitria, pecuniria ou pelo equivalente se afigura inadequada para
o atendimento de tais direitos; eles necessitam de uma tutela especfica,
correspondente sua satisfao in natura
A tutela dos direitos utilizada, em processo civil, como categoria-gnero para
definir a atividade de proteo desenvolvida pelo Estado atravs de um sistema de normas de
criao de direito material, a mais bsica forma de proteo. As normas de direito material, e
se exemplifica, normas que protegem o consumidor e o meio ambiente, prestam tutela ou
proteo legislativa aos direitos. A tutela ou proteo do direito pode tambm ser prestada
jurisdicional ou administrativamente, nisto as atividades se equiparam. Ambas constituem
espcies do gnero tutela dos direitos, modalidades deste. (MARINONI, 2004, p. 145-146).
Tutelar direitos, por conseguinte, constitui atribuio, alis, dever de prestao
entregue ao Estado, em qualquer de suas funes de poder. Garantir o bem da vida atravs da
proteo do ordenamento jurdico como um direito a ser frudo.
Hoje normativamente possvel pedir proteo jurisdicional em face de
condutas ilcitas ou de sua ameaa, contrrias fruio de direitos, com base tambm no
mesmo dever de proteo do Estado, em relao a determinados bens e situaes
imprescindveis para a justa organizao social (normas de proteo sade, aos
consumidores, ao meio ambiente). Cuida-se, alm de reprimir a ocorrncia de danos oriundos
25
da ilicitude, de prevenir a ocorrncia do prprio ilcito para evitar que danos ocorram.
Remover o ilcito secar a fonte dos danos. (MARINONI, 2004, p. 68-69).
Esta perspectiva supe que se impregne o manejo das tcnicas processuais da
materialidade existente na situao conflitiva. As tutelas representam os resultados materiais
que o processo deve operar para atender, concretizar, a fruio de um bem jurdico. O
conceito de tutela dos direitos encerra o novo enfoque epistemolgico processual de
reaproximao entre materialidade e processualidade, abandonado deliberadamente pela
teoria do processo at meados do sculo findo como uma exigncia da etapa de emancipao
de seu objeto cientfico (fase autonomista ou cientfica da cincia processual, separao entre
direito processual e material). (MARINONI, 2004, p. 146-148).
Os novos direitos reclamaram a renovao do tratamento processual das
obrigaes de prestaes de fato, ou tutelas de prestao, que respondem necessidade de
algum obter um fazer ou um dar, que pode ser um pagar, exigindo-se do juzo providncias
de interferncia concreta imediata no mundo ftico, para permitir a efetivao de um direito.
(ARENHART, 2003, p. 97).
Como parte de um movimento pelo reconhecimento do direito proteo,
derivado da dimenso fundamental, foram positivados os direitos ou interesses
transindividuais atravs de um sistema de proteo coletiva previsto na LACP 7.347/85,
complementado e integrado por normas processuais previstas no CDC (Lei 8.078/90).
O CDC normatizou definies para os interesses transindividuais difusos e
coletivos, objetivando delinear o mbito do exerccio daquilo que se chamou de defesa
coletiva (artigo 81, pargrafo nico).1
1 Artigo 81
A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vtimas poder ser exercida em juzo individualmente, ou a ttulo coletivo. Pargrafo nico A defesa coletiva ser exercida quando se tratar de: I
Interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste Cdigo, os transindividuais de natureza indivisvel, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstncias de fato; II Interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste Cdigo, os transindividuais de natureza indivisvel de que
26
Arenhart (2003, p. 159) registra que o sistema de proteo transindividual
atravs da Lei da Ao Civil Pblica, segundo a doutrina, dividiu em dois tipos de aes a
defesa desses interesses, designando de Ao Civil Pblica, a defesa de interesses difusos e
coletivos e de ao civil coletiva a defesa de interesses individuais homogneos, instituindo-
se dois microssistemas. Assim, a LACP no trata de uma nica ao, mas de um conjunto
aberto de aes do qual se pode lanar mo e que se pode encaixar numa s categoria rotulada
de Ao Civil Pblica. o que se extrai do texto mesmo do artigo 83 do CDC, ao dispor que,
para a defesa dos direitos e interesses protegidos naquele Cdigo, so admissveis todas as
espcies de aes capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela. A prxis, de fato, no
distingue a nomenclatura e trata tais aes pelo gnero. A Ao Civil Pblica tambm
designada por ao coletiva, o que seria, ao ver de Mazzilli (1995, p. 27-28), a designao
tecnicamente mais correta.
O intuito do legislador ante as dificuldades conceituais que cercam os
interesses transindividuais foi, de fato, oferecer amplos critrios de balizamento para a
identificao desses interesses.
Esboa-se um breve comentrio sobre cada uma destas categorias para
viabilizar a compreenso das informaes que viro a seguir.
A maior parte dos interesses transindividuais de grande amplitude, que so os
interesses difusos, emana do texto constitucional. Fiorillo (1995, p. 176) exemplifica como
reveladores de interesses difusos o princpio da igualdade de todos perante a lei, o direito
vida digna; o uso da propriedade; a higiene e a segurana do trabalho; a educao; o incentivo
pesquisa e ao ensino cientfico e amparo cultura; sade; o meio ambiente natural; o
interesse do consumidor; a proteo ao patrimnio cultural; a famlia, criana, adolescente e
idoso e, mesmo, algumas regras vinculadas comunicao social.
seja titular grupo categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrria por uma relao jurdica base; III Interesses ou direitos individuais homogneos, assim entendidos, os decorrentes de origem comum;
27
A preeminncia dos direitos ou interesses difusos tem razes quantitativas e
qualitativas. O carter abrangente e fluido dos interesses difusos empresta a esta categoria um
amplssimo espectro e justifica a sua predominncia na maior parte das demandas coletivas.
Eles pertencem a segmentos indeterminados da sociedade, a tutela a ser prestada sempre vem
a amparar um contingente maior de pessoas. A necessidade de maior proteo que apresentam
esses direitos difusos
vista do risco de serem deixados a descoberto por inapropriveis,
permanentemente, a um grupo social, e por serem essenciais qualidade de vida leva a que
a sua proteo seja perseguida preferencialmente e se apresente a mais significativa.
(MORAIS, 1996, p. 154).
da natureza desses interesses possibilitar um alto grau de conflituosidade (a
conflituosidade mxima uma de suas caractersticas). A intensa litigiosidade surge pela
discutibilidade das pretenses, das escolhas que os interesses difusos representam. No h, no
trato com interesses difusos, parmetro jurdico para justificar uma escolha axiolgica, o certo
e o errado. Exemplifica-se essa conflituosidade mxima: a proteo dos recursos florestais
conflita com os interesses da indstria madeireira e com os interesses dos lenhadores
mantena dos seus empregos; a interdio da construo de um aeroporto supersnico, que
fere os interesses dos moradores da localidade, mas atende aos interesses da construo civil,
o interesse na preservao de casas antigas contraria interesses de incorporadores
imobilirios... (MANCUSO, 1994, p. 79-80).
A teleologia da proteo difusa radica-se fortemente no modelo estatal de bem-
estar social, reconhecendo-se, desde os estudos iniciais de Cappelletti e Garth (1988, p. 29), a
dificuldade em transformar a tutela jurdica sobre interesses e direitos difusos para apoiar
cidados contra governos, os consumidores contra os comerciantes, o povo contra os
poluidores, os locatrios contra os locadores, os operrios contra os patres (e os sindicatos)
[...] em vantagens concretas para pessoas comuns. A grande indagao no mundo inteiro a
28
mesma: como proceder para fazer valer esta nova ordem de interesses reconhecida
formalmente? A pergunta ainda faz sentido ao ser repetida, passadas algumas dcadas.
No Brasil, a proteo dos interesses difusos foi ampliada pela doutrina muito
alm das questes clssicas de meio ambiente, direito do consumidor ou patrimnio cultural.
Yoshida (1998, p. 759-760) ilustra a ampliao ao escrever que esta tutela
deve alcanar os novos conflitos de massa, notadamente na rea social, que reivindicam no apenas melhoria de condies, mas, para os excludos, o prprio acesso aos direitos sociais bsicos, entre os quais, o direito moradia, sade, alimentao, ao trabalho, educao, segurana, previdncia e assistncia sociais, ao lazer.
Sobre tal ampliao, Morais (1996, p. 143) adota o mesmo sentido.
Ao lado dos interesses ou direitos difusos encontra-se a categoria dos
interesses coletivos stricto sensu. Os interesses coletivos, diferentemente dos interesses
difusos, tm a marca da determinabilidade do grupo de pessoas a que pertence. Eles se
diferenciam dos difusos por causa da determinabilidade das pessoas que os detm, seja
atravs da relao jurdica base que as une [...] seja por meio do vnculo jurdico que as liga
parte contrria [...]. (BENJAMIM, 1995, p. 95).
Os interesses coletivos strictu sensu que apresentam, assim, certa capacidade
de organizao para atuar, compem os grupos sociais, corpos intermedirios da sociedade
civil: sindicatos, associaes, famlia, partidos polticos etc. (MANCUSO, 1994, p. 51).
O reconhecimento da existncia dos interesses individuais homogneos atravs
desta modalidade de ao se deu por via da Lei 8.078/90
CDC (artigo 81, pargrafo nico,
inciso III), gnese que se impe pela natureza mesma desta categoria, ou seja, um interesse
transindividual criado por fico jurdica. Por serem, de fato, interesses individuais, a
transindividualidade, ou seja, a nota coletiva latu sensu que se lhes empresta artificial e
acidental. Opera-se apenas por criao legal e por razes pragmticas (eficincia e economia
processuais, etc.). As suas caractersticas so: transindividualidade artificial,
determinabilidade dos sujeitos, a divisibilidade, um ncleo comum de questes de fato e de
29
direito a unir os sujeitos, irrelevncia da unanimidade social, organizao-tima vivel,
reparabilidade direta, com recomposio pessoal do bem lesado. (BENJAMIM, 1995, p. 96).
Esses direitos, por serem, efetivamente, direitos individuais de massa, recebem
do CDC, um tratamento distinto dos direitos transindividuais coletivos e difusos. Emprestou-
lhes o legislador consumerista um instrumento autnomo de proteo, que se designou por
ao civil coletiva, disciplinada a partir do artigo 91 do mesmo diploma. A leitura do Captulo
II do Ttulo III do CDC
Das Aes Coletivas para a defesa de interesses individuais
homogneos
demonstra como o modelo de atuao retrospectiva e de funo ressarcitria
encontra-se enraizado na cultura processual. Observe-se que, apesar de ser um ferramental
distinto, a ao coletiva de tutela individual homognea busca outorgar a condenao
genrica do causador de um fato danoso, permitindo, em segundo momento, o pagamento dos
prejuzos individualmente experimentados pelos indivduos substitudos na ao. Um tnus,
como se v, essencialmente ressarcitrio. Essa ao , efetivamente, a representao nacional
da class action for damages norte-americana, disciplinada pela regra 23 das Federal Rules of
Civil Procedure daquele sistema, francamente inspirada naquela espcie de demanda.
(ARENHART, 2003, p. 160-161).
Admite-se, hoje, a partir de uma interpretao sistemtica luz dos princpios
constitucionais, especialmente o princpio do acesso justia previsto no artigo 5., inciso
XXXV, CF, a utilizao de qualquer forma de tutela, repressiva ou preventiva, admissvel no
direito brasileiro, ampliando-se a proteo de direitos ou interesses individuais homogneos.
(Ibidem, p. 168-169).
A ampliao da proteo jurdica para superar meras pretenses ressarcitrias
justifica-se em face da gravidade das situaes fticas que o conceito de interesses individuais
homogneos vem de abrigar. Conflitos entre pais e estabelecimentos de ensino em torno de
mensalidades escolares; aqueles que envolvem as empresas pblicas gerenciadoras do sistema
30
de transporte virio urbano, concedentes do servio de linhas de nibus municipais, as
empresas concessionrias e os usurios deste tipo de transporte no municpio, s para ficar
com exemplos mais conhecidos.
A definio legal dada aos interesses coletivos, difusos e individuais
homogneos, aos quais se destina a tutela coletiva prevista na LACP, no artigo 81 do CDC,
contribuiu para que se assentassem as notas caractersticas bsicas de cada categoria e, assim,
facilitar o seu manuseio e identificao pelos operadores do direito. Estas constituem, porm,
clusulas gerais, sempre sujeitas a divergncias sobre contedo e diferenas entre si.
A identificao de cada categoria perde algo de sua importncia formal no
plano ftico da existncia-utilidade, pois eles so, em realidade, feitos de uma nica matria: a
massa de pretenses e aspiraes inerentes sociedade como um todo ou aos grupos de
indivduos que a compem. importante repisar que o que existe entre eles uma diferena
de intensidade, de grau, de agregao . No plano ftico eles se manifestam sempre numa
relao de mtua interao, de modo que uma mesma situao ftica sempre d ensejo a mais
de uma possibilidade de tutela judicial diante de pretenses de natureza coletiva e difusa e
eventualmente, tambm, individual homognea. (MANCUSO, 1994, p. 112, 136).
A expresso defesa coletiva ou defesa coletiva de direitos ser utilizada na
acepo adotada pelo CDC artigo 81, 1, para designar a defesa dos direitos transindividuais
atravs do processo judicial, observando-se, contudo, que o contexto instaurado pelo sistema
do CDC, foi criado sob a perspectiva do uso de uma tutela jurdica complementar, por via
judicial e extrajudicial.
Tanto assim que se incorporou o Compromisso de Ajustamento de Conduta,
uma forma de proteo autocompostiviva e por isto no-judicial, a direitos transindividuais no
bojo da LACP (artigo 115, CDC), ao incluir os pargrafos 4., 5. e 6. ao artigo 5. da lei
31
mencionada. Ao assunto voltar-se- por ocasio da anlise do sistema extrajudicial de defesa
coletiva abordado na segunda parte desta tese.
Em abono a esta leitura vale anotar que Watanabe (In GRINOVER et al, 2004,
p. 781), um dos autores do CDC, em comentrio ao mencionado artigo, adverte que o uso dos
instrumentos processuais institudos pelo sistema funcionar mais pela sua virtualidade do
que pela sua efetiva utilizao , pressupondo a possibilidade da emancipao da sociedade
civil, com maior participao e conscincia, na qual mecanismos informais e no oficiais de
resoluo de conflitos de interesses sejam mais atuantes e eficazes do que meios formais e
oficiais.
A Lei n 7.347/85 (LACP) instituiu inicialmente a tutela aos interesses difusos
e coletivos, de forma restrita, sendo esta posteriormente ampliada a todo e qualquer interesse
difuso e coletivo pela edio do CDC (Lei n 8.078/90), o qual dedicou todo o ttulo VI,
adaptao da Lei 7.347/85, especialmente a uma tutela mais ampla a interesses difusos.
(FIORILLO, 1995, p. 170).2
A Ao Civil Pblica fundamentalmente regida pelo conjunto formado pela
Lei 7.347 e pelo CDC. Na verdade no se trata de uma nica ao, mas de um conjunto aberto
de aes de que se pode lanar mo sempre que estas se apresentem adequadas para a tutela
desses direitos coletivos (ARENHART, 2003, p. 159). Nesse sentido, claramente estabelece o
artigo 83 do CDC: Para a defesa dos direitos e interesses protegidos por este cdigo so
admissveis todas as espcies de aes capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela .
Este artigo autoriza a ampliao do rol de aes cabveis com base na LACP,
vinculando ao sistema de tutelas por ela criado, na dico de Nery Jnior, qualquer ao que
seja necessria
para a adequao e efetiva tutela desses mesmos direitos (NERY JNIOR;
NERY. 2003, p. 1.355).
2 Artigo 21 da LACP: Aplicam-se defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabvel, os dispositivos do Ttulo III da Lei que instituiu o Cdigo de Defesa do Consumidor.
32
Seja qual for a pretenso material que veiculem como aes ideolgicas,
exigem as suas finalidades sociais e coletivas que os institutos e conceitos da cincia
processual, bem como as garantias clssicas do processo, passem a se conformar s
peculiaridades dos conflitos de massa que encerram. (GRINOVER, 1986, p. 23). Em outras
palavras, a chancela legislativa visando concretizar o acesso a esses direitos por via judicial
interdita restries quanto ao direito de ao.
A funo jurisdicional exercitada no mbito das Aes Civis Pblicas visa
efetivar objetivos sociais corporificados na legislao constitucional e infraconstitucional,
dirigindo-se, para isto, no apenas ao particular, mas ao Estado, para que cumpram a lei
abstendo-se ou prestando deveres considerando-se, inclusive, a possibilidade da captura ou
cooptao das agncias ou rgos pblicos por interesses privados. (SALLES, 2003, p. 56-
57).
33
2 A EXECUO ESPECFICA COMO ETAPA DO PROCESSO DE TUTELA
TRANSINDIVIDUAL
Os processualistas costumam apontar dois aspectos que marcam a dificuldade
de efetivao de direitos atravs do exerccio da execuo por ttulo, seja por meio de um
processo executivo autnomo
a ao executiva proposta com base num ttulo executivo
extrajudicial , seja no interior do processo sincrtico, no qual a atividade de satisfao de
um direito reconhecido, antecipada ou definitivamente, se consuma em um mdulo executivo,
no interior de um mesmo processo, em uma nica relao processual.
O primeiro aspecto relaciona-se com uma cultura de produo do saber de
processo ainda avessa a pesquisas sistemticas sobre a atuao do direito processual sobre a
prtica, conduzindo-se as propostas de reforma da lei processual pela doxa (opinio) e no
pela episteme (conhecimento). Muitas inferncias tericas resultam da observao pessoal
realizada pelos profissionais do foro e numa crena desmedida no poder das reformas
legislativas, convico que representa um paradoxo, quando se conhece a fora que a prxis
tradicional desempenha num sistema de processo. Ignora-se, outrossim, a implicao
inevitvel entre o direito processual e a estrutura do Estado em que ele se insere e as tenses
internas que as modificaes tpicas trazem ao sistema processual, pelo fato de serem
imprevisveis as suas repercusses sobre o sistema do Cdigo de Processo como um todo.
(FOWLER, 2001, p. 189-192; MOREIRA, 1997, p. 82-84).
O segundo aspecto da crise da dogmtica da execuo consubstancia-se na
tradicional dificuldade em se tratar a atividade de efetivao prtica do direito reconhecido,
das providncias e tcnicas necessrias sua fruio, como atividade jurisdicional
propriamente dita. O ato de jurisdicionar, pela prpria tradio romano-cannica, sempre
esteve vinculado atividade de conhecer e certificar situaes de fato, declar-las o
34
magistrado como situao de proteo jurdica. A atividade executiva por tradio era
entregue autoridade privada, como ensina Dinamarco. (2000a, p. 34-35):
A execuo era realizada por autoridade privada e apenas controlada ligeiramente pelo magistrado. Esse controle era provocado pelo credor, atravs do exerccio da actio judicati. Decorridos infrutiferamente os trinta dias aps a condenao ou o reconhecimento da dvida (tempus judicati), era o devedor levado presena do magistrado e ali, se ele no se rebelasse contra a pretenso do adversrio, era feita a addictio, ou seja, a sua adjudicao ao credor para que ele a principiasse. Nessa hiptese, ou seja, nada se alegando em favor do devedor, exauria-se a a funo do magistrado e o resto far-se-ia por atos exclusivos do exeqente [...] a idia de jurisdio no ia alm dos poderes que tem o juiz no processo de conhecimento, no sendo jurisdicional a atividade executiva.
A estes aspectos se poderia ajuntar um terceiro, na verdade um dficit cultural
a ser contornado atravs da incorporao da experincia e da dogmtica de pases que seguem
a tradio jurdica do common law. No modelo anglo-americano, a atividade executiva nunca
foi estranha atividade jurisdicional ou adjudicatria, comprometendo-se o juiz com a
ocorrncia material do resultado do julgamento. Tal dficit se revela especialmente diante das
novas exigncias que carrega a atividade executiva em relao ao desempenho da atividade
jurisdicional, no Brasil, um herdeiro do modelo romano-germnico. Ali, a execuo, foi,
historicamente, reduzida atividade de declarao de direitos, atravs do longo processo de
construo do saber processual referido centralmente ao contedo romano de jurisdio. Na
origem, a atividade jurisdicional no se compatibilizava com qualquer tipo de atividade
efetivadora ou de emisso de ordem e se destinava a servir a litgios de natureza privada,
atravs dos esquemas e princpios do processo privado da actio, no perodo do direito romano
designado como ordo iudiciorum privatorum. (BAPTISTA DA SILVA, 1997, p. 47).
O direito anglo-americano foi quem levou adiante a outra face remedial do
direito romano negligenciada pelo direito europeu continental, o legado dos interditos, atos
executrios, praticados pelos pretores, com carter publicstico, mediante o uso do poder de
imperium. Por via dos interditos os pretores ordenavam a prtica ou a absteno de certos atos
35
ou a adoo de determinados comportamentos. (BAPTISTA DA SILVA, 1997, p. 9-10).3
O
legado jurisdio de equity, dentro da qual se decretam os provimentos injuncionais (ou
injunctions) representa a experincia mais interessante a avaliar do prisma do direito coletivo
brasileiro, que se afina ao movimento de aproximao contempornea das duas principais
famlias jurdicas do ocidente.
O molde do processo judicial que realiza tutela a direitos no patrimoniais
constitui, tambm e inevitavelmente, uma referncia ou padro, para a evoluo de outros
processos resolutivos coexistentes, no que respeita a seqncia ritual, estratgias de
desenvolvimento e diagnstico do conflito (cognio), implemento de mecanismos e tcnicas
de deciso (gerenciamento e superviso, efetivao, em suma, execuo). Por esta razo,
serve o conhecimento dogmtico-processual a uma tese acerca de eficincia resolutiva
extrajudicial na medida em que as peculiaridades da sede alternativa o permitem.
A descrio do sistema processual de tutela especfica como instrumental de
acesso a direitos transindividuais tem o propsito de aclarar quo difcil se apresenta aos
operadores jurdicos o uso de tcnicas processuais exigentes ao juiz e especialmente rduas na
aplicao. A existncia de um aparato normativo, representado por uma teoria processual rica
em justificativas analticas desafiada por um contexto de implementao extremamente
trabalhoso e por uma precariedade que inibe resultados satisfatrios, consoante j assinalava a
pesquisa realizada pela autora em 1999. (SANTOS, A.,1999).
Salles (1999, p. 231e 242) caracteriza a atividade executiva pelo fato de se
dirigir obteno de resultados prticos consubstanciados na realizao dos direitos expressos
3 No cabe, numa tese acerca de eficincia de mecanismos extrajudiciais, alongar-se em digresses acerca da influncia do direito romano-cannico na tradio das duas principais famlias jurdicas ocidentais, representadas pelo sistema continental ou romano-germnico (Europa, Amrica Latina, alguns pases da sia, frica, Oriente Mdio) ou, ainda, civil como os chamam os autores anglo-saxes) e pelo sistema de common law ou do direito comum, (vigorante no Reino Unido e pases que receberam influncia do direito ingls). Na literatura processual brasileira destacam-se os trabalhos de Ovdio Baptista da Silva que tracejam a construo do sistema processual civil segundo o paradigma do racionalismo moderno, a partir dos institutos oriundos da tradio romano-germnica, o desenvolvimento das categorias de jurisdio, da sentena condenatria e da dicotomia cognio
execuo atravs do aperfeioamento procedimento ordinrio (1997) e (2004). Para um olhar anglo-americano sobre a tradio jurdica romano-germnica consultar Merryman (1989).
36
na sentena ou no ttulo extrajudicial. Trabalha o autor com o conceito ampliado de execuo
(...) englobando todos os atos que tenham por finalidade a satisfao da obrigao contida
num ttulo .
A teoria da execuo especfica define, no plano normativo, a tutela
jurisdicional prestada na tutela especfica pela preventividade, por uma orientao prognstica
voltada proteo futura e pela vocao a uma atividade continuativa. A primazia da
especificidade exige a aprendizagem do manejo de remdios e providncias que produzam o
cumprimento exato da obrigao assumida e do resultado correspondente. A compensao
pecuniria no o destino da tutela jurisdicional do direito (SALLES, 2005, p. 90).
O processo que veicula uma ao de execuo especfica se define como um
processo de estrutura procedimental complexa, na qual se conjugam, em justaposio, a
atividade de certificao do direito do autor e se declarado tal direito, numa etapa posterior, a
atividade executiva, providncias de satisfao do direito do credor. A um processo desse
feitio, que tem como funo precpua preparar o provimento de um ttulo executivo4, chama-
se processo de prevalente funo executiva ou processo sincrtico. Ao resultado prtico
concreto produzido no mundo emprico atravs desse processo, como qualquer outro processo
de execuo, denomina-se tutela executiva. (GUERRA, 2003, p. 30-33).
O modelo de ao previsto no artigo 84 do CDC destina-se a produzir o
cumprimento de obrigaes de fazer ou no fazer, na forma prevista em lei, mas tambm
prev que, na impossibilidade de obter este cumprimento, garantir-se-, resultado prtico
4 Com Dinamarco (2000a, p. 456-457) define-se o ttulo executivo como ato ou fato jurdico legalmente dotado da eficcia de tornar adequada a tutela executiva para a possvel satisfao de determinada pretenso. Ele torna adequadas as medidas de execuo forada para a atuao da vontade da lei. Ainda quando o ingresso em juzo seja necessrio para obter o bem almejado, s se tem legtimo acesso s vias executivas quando a pretenso estiver amparada por um ttulo executivo.
37
equivalente. Espera-se, desse modo, que o processo assegure a fruio plena e tempestiva do
direito certificado. 5
Os provimentos judiciais que carregam essas tutelas tm natureza
mandamental (um mandamento ou ordem judicial de cumprimento obrigatrio, sob meio
coercitivo) e executiva lato sensu (determinao de realizao concreta do direito com ou sem
a colaborao do ru); so tcnicas que veiculam a meta da alterao a ser produzida no
mundo real. (ARENHART, 2003, p. 97-98).
O cumprimento de obrigaes de fazer, no fazer e entregar coisa, veiculado
pelo sistema de tutelas especficas, permite fazer uso das tcnicas de tutela mandamental e
executiva, podendo o juiz combin-las sucessiva ou simultaneamente, sem necessidade de
modificao formal do provimento, sem se cogitar de afronta ao princpio da inalterabilidade
do provimento judicial final, previsto no artigo 463 do CPC. (AMARAL, 2006, p. 76). 6
Avalia, ainda, Amaral (ibid., p. 76-77) acerca dos efeitos mandamentais e
executivos independentemente da modificao formal das decises judiciais:
Trata-se de uma instabilidade virtuosa da deciso eis que se reconhece a sua adaptabilidade e maleabilidade frente a eventual resistncia ao seu cumprimento, verificada no plano real. Assim, por hiptese, o juiz que determina a uma indstria que instale filtro para evitar a poluio do ar, sob pena de multa diria (tcnica de tutela mandamental), pode, sucessivamente, caso no obedecida a ordem judicial, determinar atos de sub-rogao (tcnica de tutela executiva) tais como o fechamento da indstria ou a instalao por terceiros do referido equipamento
exemplo de aplicao sucessiva das tcnicas de tutela mandamental e executiva; ou ainda, o magistrado que determina a entrega de coisa certa sob pena de multa diria pode, simultaneamente, determinar a busca e apreenso do bem
exemplo de aplicao simultnea das tcnicas ora apontadas.
5 Artigo 84. Na ao que tenha por objeto o cumprimento da obrigao de fazer ou no fazer, o juiz conceder a tutela especfica da obrigao ou determinar providncias que assegurem o resultado prtico equivalente ao do adimplemento. 1. A converso da obrigao em perdas e danos somente ser admissvel se por elas optar o autor ou se impossvel a tutela especfica ou a obteno do resultado prtico correspondente. 2. A indenizao por perdas e danos se far sem prejuzo da multa (artigo 287 do CPC). 3. Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficcia do provimento final, lcito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou aps justificao prvia, citado o ru. 4. O juiz poder, na hiptese do 3. ou na sentena, impor multa diria ao ru, independentemente do pedido do autor, se for suficiente ou compatvel com a obrigao, fixando prazo razovel para o cumprimento do preceito. 5. Para a tutela especfica ou para obteno do resultado prtico equivalente, poder o juiz determinar as medidas necessrias, tais como busca e apreenso, remoo de coisas e pessoas, desfazimento de obra, impedimento de atividade nociva, alm de requisio de fora policial. 6 Artigo 463: Publicada a sentena o juiz s poder alter-la: I
para lhe corrigir, de ofcio ou a requerimento da parte, inexatides materiais, ou lhe retificar erros de clculo; II por meio de embargos de declarao.
38
Faz-se uma digresso para associar este tipo de processo (de execuo
especfica) ao sistema de tutelas executivas que compe o Cdigo de Processo Civil de 1973
do qual o sistema de tutela judicial transindividual se serve subsidiariamente. O sistema
positivado em 1973 originalmente seguiu o desenho do Cdigo de Processo Civil Alemo
(ZPO) do final do Sculo XIX, com base na tipologia das obrigaes, divididas em obrigaes
de dar dinheiro (pagar quantia), dar coisa diversa e fazer (e no fazer). E a cada um desses
tipos elaborou um procedimento executivo especfico, tendo tipificado, em cada um dos
procedimentos especficos, o meio ou os meios executivos cabveis. (GUERRA, 2003, p. 62,
grifos do autor). 7
Adota-se aqui, ainda com Guerra (2003, p. 65), um conceito ampliado para o
termo jurdico, obrigao, objetivando o uso no contexto da tutela executiva:
suficiente e mesmo fundamental que o interprete redefina o termo legal obrigao , sempre que ocorrente no contexto da tutela executiva como
significando toda e qualquer imposio de conduta a algum em benefcio de outrem, qualquer que seja a origem da imposio, no plano do direito material: estritamente legal, contratual, responsabilidade por ato ilcito, direito de famlia, sucesses, direito real, etc.
O legislador processual de 1973 optara por um sistema tpico de tutela
executiva do que resultou o princpio da tipicidade dos meios executivos, significando isto
que a disponibilizao dos meios executivos reduzia-se s opes ofertadas pelo legislador.
Em outras palavras, o legislador restringira inovaes no uso de meios executivos pelo juiz da
execuo mediante o apego a escolhas normativas por ele pr-ordenadas.
A partir de 1994, com a introduo do modelo processual sincrtico no artigo
461 para as obrigaes de fazer, ampliado posteriormente com a reforma do CPC para as
obrigaes de entregar coisa, atravs da Lei 10.444/2002, rompeu-se a orientao geral do
princpio da tipicidade prevista legislativamente para tais hipteses. O legislador reformista
7 As disposies do CPC aplicam-se subsidiariamente ao processo que instrumentaliza uma ao civil pblica, por fora de dispositivo expresso na prpria Lei 7.347/1985, Lei da Ao Civil Pblica. Artigo 19 : Aplica-se ao civil pblica, prevista nesta lei, o CPC, aprovado pela Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973, naquilo em que no contrarie suas disposies.
39
incorporou a flexibilidade do modelo processual de tutela a direitos transindividuais para as
obrigaes de fazer, no fazer e de entregar coisa. Generalizou-se com isto um padro de
execuo efetivador, centrado no envolvimento e na responsabilidade judiciais sobre
resultados materiais e na legitimao de provimentos de antecipao contra a
intempestividade da jurisdio, municiando a magistratura dos instrumentos de coero
necessrios consecuo de resultados de tutela efetiva. 8
Guerra (2003, p. 67) destaca que as alteraes promovidas em 1994 e 2002
romperam com o princpio da tipicidade dos meios executivos na medida em que o 5.,
autorizou o juiz a adotar medidas asseguradoras da satisfao especfica da obrigao, sem
que tais medidas estivessem expressamente previstas em lei. A essa abertura
discricionariedade judicial, o legislador instrumentalizou com a previso das chamadas
medidas necessrias, que representam o vnculo do comprometimento judicial com a
efetividade do sistema de tutelas especficas, consoante do mencionado artigo 461 do CPC.
Este praticamente reproduz a letra do artigo84 do CDC, de redao similar.
No que tange ao aspecto mais relevante da reforma, para os temas da tese, a
ltima etapa de alteraes ao CPC consumou-se atravs da Lei 11.232, de 22 de dezembro de
2005, que estabeleceu no interior do processo de conhecimento, uma fase de cumprimento e
revogou dispositivos relativos execuo fundada em ttulo judicial, para provimentos
judiciais que condenam ao pagamento de quantia. (MITIDIERO, 2006, p. 3).
8 Artigo 461. Na Ao que tenha por objeto o cumprimento da obrigao de fazer ou no fazer, o juiz conceder a tutela especfica da obrigao ou, se procedente o pedido, determinar as providncias que assegurem o resultado prtico equivalente ao do adimplemento. 1. A obrigao somente se converter em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossvel a tutela especfica ou a obteno do resultado prtico correspondente. 2. A indenizao por perdas e danos dar-se- sem prejuzo da multa (artigo 287). 3. Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficcia do provimento final, lcito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou mediante justificao prvia, citado o ru. A medida liminar poder ser revogada ou modificada, a qualquer tempo, em deciso fundamentada. 4. O juiz poder, na hiptese do pargrafo anterior ou na sentena, impor multa diria ao ru, independentemente de pedido do autor, se for suficiente e compatvel com a obrigao, fixando-lhe prazo razovel para o cumprimento do preceito. 5. Para a efetivao da tutela especfica ou a obteno do resultado prtico equivalente, poder o juiz, de ofcio ou a requerimento, determinar as medidas necessrias, tais como a imposio de multa por tempo de atraso, busca e apreenso, remoo de pessoas e coisas, desfazimento e obras e impedimento de atividade nociva, se necessrio com requisio de fora policial. 6. O juiz poder, de ofcio, modificar o valor ou a periodicidade da multa, caso verifique que se tornou insuficiente ou excessiva.
40
A execuo por ttulo judicial permite agora, para as obrigaes de fazer dar e
entregar coisa e tambm para as obrigaes de pagamento de quantia certa, a superao da
autonomia do processo da execuo e a troca dos embargos do devedor por mera impugnao,
o que possibilita a atuao imediata dos meios executivos com a suspenso do procedimento
executivo apenas em carter excepcional. (YARSHELL, 2006, p. 330).
A ltima reforma, segundo Mitidiero (2006, p.2-3) abole a dicotomia existente
entre o procedimento de cognio e de execuo, cujo valor prtico, para juristas como Pontes
de Miranda, era quase nenhum. Em suas prprias palavras:
[...] apenas em homenagem arquitetura inicial do cdigo de Processo Civil se mostra possvel aludir ainda a processo de conhecimento . A rigor, a Lei 11.232/2, de 2005, d lugar a um processo misto, sincrtico, em que se encontra junto cognio, a efetivao ou a execuo do julgado, espcies do gnero cumprimento da sentena , consoante a nova terminologia legal. Efetiva-se a ordem (artigo461, CPC); executa-se o preceito (artigos 461-A e 475-I, CPC), com o que se logra cumprir deciso jurisdicional.
O modelo processual de relativizao entre atividades executivas e de
cognio, incorporado pelas reformas processuais de 1994 e 2002, que veicula a execuo de
uma tutela especfica, como Salles (1999, p.236) j enfatizara, experimenta um significativo
deslocamento de poder da fase de conhecimento para a de execuo . Isto demanda o
aumento da capacidade judicial de implementar decises e uma intensificao da atividade
cognitiva, no sendo outra a razo pela qual a relativizao do binmio cognio execuo
afigura-se essencial para instrumentalizar medidas e providncias necessrias. A execuo
passa a colocar-se como plo orientador do processo de modo a possibilitar, mesmo na fase
de conhecimento, a antecipao de resultados de alcance dos fins processuais.
Gize-se o desempenho judicial neste processo de jurisdio de tutela
especfica, como de gesto. O juiz no mais como emissor de ordens abstratas, mas um
decididor de alternativas tendentes realizao de resultados prticos. Numa etapa executiva
para implementar concretamente a vontade da lei, reabrem-se discusses numa verdadeira
instruo com amplo contraditrio, visando apurar situaes relacionadas a providncias
41
necessrias fruio do direito consagrado num ttulo. A atividade executiva exige um juiz
envolvido com resultados materiais numa etapa implementadora que carrega caractersticas
peculiares, como a outorga de responsabilidades a rgos auxiliares, providncia incomum em
nosso sistema de justia e o desempenho de atividades de superviso e acompanhamento
prolongado das atividades satisfativas do direito. (SALLES, 1999, p. 232-235).
Um outro aspecto que marca este tipo de execuo um forte componente
tcnico, pluralidade de sujeitos direta ou indiretamente envolvidos, elevado nmero de fatores
a serem considerados na situao ftica e a contingncia da situao concreta sobre a qual
incidiro os atos executrios. (GRECO, 2001, v. II, p. 518).
A essencialidade dos direitos tutelados em processos de execuo especfica e
a complexidade do processamento recomendam que o juiz no abandone a sorte da etapa
executiva do processo ao credor, devendo, aps citado o executado e com apoio no 5. do
artigo 461 (correspondente ao 5. do artigo 84 do CDC), nomear, se no constar do ttulo,
um administrador judicial, pessoa fsica ou entidade pblica ou privada, para definir, em
prazo curto, o plano de execuo. Este representa o conjunto de providncias que
oportunizaro ao credor a fruio do seu direito. As partes sero ouvidas a respeito, o plano
ser aprovado pelo juiz e posto em execuo pelo devedor, sob a superviso desse mesmo
administrador ou de quem o juiz nomear. A tutela permite o uso analgico de outros
procedimentos como o artigo 677, que dispe sobre a administrao de estabelecimento
comercial, industrial ou agrcola em fase de penhora e os artigos 719 e seguintes do CPC, que
dispem sobre administrador de imvel ou empresa para gerenciar usufruto dado ao credor,
para definir os rumos do procedimento. (Ibidem, p. 519-520). Na esteira do uso analgico de
solues supervisoras assinaladas ao juiz na execuo, Assis (2006, p.230) e Talamini (2001,
p. 275-279) sugerem como paradigma a figura do interventor ou fiscal, institudo na Lei
42
8.884/94, com direitos e deveres previstos no mesmo diploma legal, administrador que far
cumprir as estipulaes traadas pelo rgo Judicirio.
Salles (2005, p. 95-96) acentua o aspecto estratgico que assume a atividade de
execuo, a qual se transforma num conjunto de atos a serem modelados pela combinao de
diversas alternativas no uso de remdios executrios. Ou seja, planejamento e estratgias
remediais para cada caso, durante a etapa executiva do processo.
O modelo da execuo especfica obriga a assimilar o papel importante que
assume a vontade do devedor, do obrigado, em relao ao xito da tutela entregue ao credor.
O devedor da prestao goza de uma posio de fora diante do que se pede
dele. A tutela do direito se encontra firmemente vinculada deliberao do devedor de
aquiescer em fazer. A induo dessa vontade no sistema judicial repousa na descoberta de
formas de coero que dissuadam o devedor de cometer ou prosseguir no ilcito ou a cumprir
a determinao judicial representativa da prestao devida. No processo judicial a tnica das
tcnicas de produo satisfativa centram-se na coero dirigida pessoa
tcnicas de
coero in personam
que incidem sobre a pessoa do devedor, para compeli-lo a obedecer
ao provimento judicial. (SALLES, 2005, p. 91).
No por outra razo os provimentos de tutela especfica, dirigidos a induzir
uma prestao in natura, supem a emisso de ordem judicial com a agregao de comandos
explcitos dirigidos ao ato de cumprimento e tcnica de induo pronta obedincia, a
imposio de multa
ou astreintes
(artigo 84, 4. do CDC similar ao artigo 461, 4.,
CPC). A sistemtica de tutelas especficas assim descrita no sistema brasileiro, a qual se
substitui coero da vontade do devedor mediante o constrangimento fsico de sua pessoa
nos moldes da medida executiva do contempt of court (priso do devedor) nos pases do
common law, esbarra no srio obstculo da carncia de meios financeiros do destinatrio da
ordem, destitudo de patrimnio penhorvel. Por conseguinte, h que se considerar a sua
43
eficincia em termos de ameaa, coero psicolgica, como uso potencial. (ASSIS, 2006, p.
222-223).
Desde a consumao da reforma de tutela especfica pela Lei 10.444/2002,
englobando as obrigaes de fazer, no fazer e entregar coisa, vm os processualistas mais
crticos refletindo sobre os seus efeitos abreviadores e simplificadores.
As crticas de Guerra (2003, p. 73-81), dirigidas reforma processual realizada
at o advento da Lei 10.444/2002, pontuam os impasses que cercam a execuo da tutela
especfica:
a) os obstculos prestao efetiva de direitos por via da tutela executiva no se
encontram de forma alguma associados durao do processo executivo,
qualquer que seja a sua disciplina, e sim inadequao dos meios executivos
previstos em lei, em determinadas situaes concretas. A teoria processual
negligencia em identificar e tentar solucionar esses obstculos que resistem,
inclusive, ao processo sincrtico;
b) os processualistas deixam em segundo plano e sem tratamento adequado a ao
executiva direta, ajuizada em virtude de um ttulo executivo extrajudicial, no
se justificando tal preterio porque, embora sem quantificao segura, esses
ttulos configuram talvez a maior parte das tutelas executivas;
c) a teoria processual desconhece que a durao excessiva do processo de
execuo se deve, em grande parte, a falhas estruturais, ausncia de um
aparelhamento judicirio adequado, excesso de demandas executivas e mesmo
m atuao do juiz na aplicao das regras do prprio Livro II do CPC;
d) ignoram os reformistas que no se pode abolir um processo de execuo
apenas modificar sua forma (transformando-o numa etapa do modelo
sincrtico) e que a prestao executiva jamais poder ser instantnea, em
44
homenagem ao devido processo legal. O mdulo processual executivo nessas
aes de tutela especfica constitui uma seqncia de atos em contraditrio, s
vezes de cumprimento muito complexo;
e) se os juizes carecem de aperfeioar sua formao de modo a permitir aplicar
corretamente as normas em vigor, extraindo delas o melhor possvel, as
reformas processuais tero sempre alcance limitado;
f) a generalizao do modelo de ao executiva lato sensu, entendida como
processo com predominante funo executiva, e a crena na eliminao do
processo execuo ignoram o carter prtico da tutela jurisdicional executiva e
afastam-se do ncleo da questo que encerra proteo devida ao credor;
g) no h um paradigma terico-dogmtico adequado