analia chernavsky.pdf

9
Texto integrante dos Anais do XVII Encontro Regional de História – O lugar da História. ANPUH/SP- UNICAMP. Campinas, 6 a 10 de setembro de 2004. Cd-rom. Um maestro no gabinete: música e política no tempo de Villa-Lobos Analía Cherñavsky Doutoranda em Música – IA/UNICAMP “O Estádio do Vasco da Gama está vivendo uma tarde inesquecível. 30.000 crianças de nossas escolas tomam parte numa esplêndida demonstração de canto orfeônico, em homenagem ao ‘Dia da Pátria’. Grande massa popular enche as dependências da praça de sports, numa extraordinária vibração cívica. À chegada do Presidente da República, as aclamações estrugiram aos últimos acordes do Hino Nacional.” 1 Sete de Setembro de 1939. Os olhares se voltam para o estádio do Vasco. Além da sufocante presença de toda a imprensa carioca, comparecem à solenidade um sem-número de autoridades civis e militares e até representantes de delegações estrangeiras. Compondo os festejos, o discurso de Getúlio, o desfile dos representantes das Forças Armadas, a “Parada da Mocidade”, o imenso coral orfeônico formado pelas crianças das escolas primárias e secundárias do Distrito Federal, cantando hinos cívicos e proclamando “vivas” ao Presidente. Entre as décadas de 1920 e 1950, marcadas pelo “apogeu do nacionalismo”, grandes líderes políticos em todo o mundo ocidental promoveram mega eventos de massa na busca pela afirmação de um sentimento de união nacional em torno de sua figura. Criavam, nas pessoas que participavam e nas que assistiam a esses espetáculos, uma sensação, ao mesmo tempo, de admiração e de profundo respeito perante o “chefe”, cuja figura, em diversas oportunidades, alcançava um avançado grau de divinização 2 . 1 A NOITE. Rio de Janeiro, quinta-feira, 7 de Setembro de 1939 - ano XXIX - N. 9.906 (1 ª página). 2 Tentando explicar os mecanismos que pautavam o processo de identificação entre comando e comandados, firmados através desses grandes eventos na Alemanha nazista, Alcir Lenharo destacou que “A chave da organização dos grandes espetáculos era converter a própria multidão em peça essencial dessa organização. Nas paradas e desfiles pelas ruas ou nas manifestações de massa, estática, em praças públicas, a multidão se emocionava de maneira contagiante, participando ativamente da produção de uma energia que carregava consigo após os espetáculos, redistribuindo-a no dia-a-dia, para escapar à monotonia de sua existência e prolongar a dramatização da vida cotidiana”. Cf. LENHARO, Alcir. Nazismo. “O triunfo da vontade” . São Paulo: Editora Ática, 1986 (p. 39-40). A organização de grandes corais foi uma das formas mais recorrentes desse tipo de manifestação de massa. Lenharo explicou como a presença de fanfarras e as músicas cantadas pela multidão aumentavam o entusiasmo geral: “Ao cantar Deutschland über alles e Horst Wessel Lied, os hinos oficiais do nazismo, a multidão era tomada pelo sentimento de formar um todo único, um bloco coeso e inquebrantável...”. Idem. Ibidem (p. 41-2).

Upload: rui-goncalves

Post on 18-Dec-2015

7 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • Texto integrante dos Anais do XVII Encontro Regional de Histria O lugar da Histria. ANPUH/SP-UNICAMP. Campinas, 6 a 10 de setembro de 2004. Cd-rom.

    Um maestro no gabinete: msica e poltica no tempo de Villa-Lobos

    Anala Cheravsky

    Doutoranda em Msica IA/UNICAMP

    O Estdio do Vasco da Gama est vivendo uma tarde inesquecvel.

    30.000 crianas de nossas escolas tomam parte numa esplndida

    demonstrao de canto orfenico, em homenagem ao Dia da Ptria. Grande

    massa popular enche as dependncias da praa de sports, numa

    extraordinria vibrao cvica. chegada do Presidente da Repblica, as

    aclamaes estrugiram aos ltimos acordes do Hino Nacional.1

    Sete de Setembro de 1939. Os olhares se voltam para o estdio do Vasco.

    Alm da sufocante presena de toda a imprensa carioca, comparecem solenidade

    um sem-nmero de autoridades civis e militares e at representantes de delegaes

    estrangeiras. Compondo os festejos, o discurso de Getlio, o desfile dos

    representantes das Foras Armadas, a Parada da Mocidade, o imenso coral

    orfenico formado pelas crianas das escolas primrias e secundrias do Distrito

    Federal, cantando hinos cvicos e proclamando vivas ao Presidente.

    Entre as dcadas de 1920 e 1950, marcadas pelo apogeu do nacionalismo,

    grandes lderes polticos em todo o mundo ocidental promoveram mega eventos de

    massa na busca pela afirmao de um sentimento de unio nacional em torno de sua

    figura. Criavam, nas pessoas que participavam e nas que assistiam a esses

    espetculos, uma sensao, ao mesmo tempo, de admirao e de profundo respeito

    perante o chefe, cuja figura, em diversas oportunidades, alcanava um avanado

    grau de divinizao2. 1 A NOITE. Rio de Janeiro, quinta-feira, 7 de Setembro de 1939 - ano XXIX - N. 9.906 (1 pgina). 2 Tentando explicar os mecanismos que pautavam o processo de identificao entre comando e

    comandados, firmados atravs desses grandes eventos na Alemanha nazista, Alcir Lenharo destacou que

    A chave da organizao dos grandes espetculos era converter a prpria multido em pea essencial

    dessa organizao. Nas paradas e desfiles pelas ruas ou nas manifestaes de massa, esttica, em

    praas pblicas, a multido se emocionava de maneira contagiante, participando ativamente da produo

    de uma energia que carregava consigo aps os espetculos, redistribuindo-a no dia-a-dia, para escapar

    monotonia de sua existncia e prolongar a dramatizao da vida cotidiana. Cf. LENHARO, Alcir.

    Nazismo. O triunfo da vontade. So Paulo: Editora tica, 1986 (p. 39-40). A organizao de grandes

    corais foi uma das formas mais recorrentes desse tipo de manifestao de massa. Lenharo explicou como

    a presena de fanfarras e as msicas cantadas pela multido aumentavam o entusiasmo geral: Ao cantar

    Deutschland ber alles e Horst Wessel Lied, os hinos oficiais do nazismo, a multido era tomada pelo

    sentimento de formar um todo nico, um bloco coeso e inquebrantvel.... Idem. Ibidem (p. 41-2).

  • Texto integrante dos Anais do XVII Encontro Regional de Histria O lugar da Histria. ANPUH/SP-UNICAMP. Campinas, 6 a 10 de setembro de 2004. Cd-rom.

    2

    No Brasil, desde o incio da dcada de 1920, grande setor da intelectualidade

    passou a olhar com simpatia alguns ideais nacionalistas. s vsperas de 1930, essa

    ideologia j se havia alastrado e impregnado na mentalidade da maioria dos quadros

    fortes da poltica nacional. Esse ano ficou marcado pelo fim da chamada Repblica

    Velha e pela ascenso de Getlio Vargas ao poder, representante de setores que h

    muito tempo vinham sendo excludos da cena poltica. Sob a bandeira do

    nacionalismo, esse novo governo conseguiu arregimentar diferentes frentes que

    vinham se configurando na luta pela constituio de um Estado-Nao brasileiro, que

    representasse os interesses dos cidados em cada extremo do pas3.

    O novo governo procurou centralizar as diferentes expresses do nacionalismo,

    angariando o apoio de personalidades provenientes de diversos setores da

    intelectualidade brasileira. Muitos representantes do grupo dos modernistas ligados ao

    ideal nacionalista passaram a perceber esse Estado como um organismo unificador de

    seus anseios e agente essencial na luta pela nacionalizao da cultura e da arte,

    atravs da ao educacional.

    Com o auxlio de um novo programa educativo, cuidadosamente idealizado e

    administrado por pessoal competente, Getlio empenhou-se na construo de um

    conceito de legitimidade para o seu posto de chefe, adquirido atravs de um

    movimento revolucionrio de pouca expresso popular. A preocupao com a

    formao e a doutrinao das futuras geraes marcou profundamente os anos

    durante os quais se manteve no poder. Nesse contexto, o Ministrio da Educao e

    Sade - inicialmente assumido por Francisco Campos, que, em julho de 1934 passou

    a pasta para as mos do mineiro Gustavo Capanema - acabou adquirindo um carter

    sumamente importante, extrapolando os limites das aes tradicionalmente mantidas

    sob sua responsabilidade.

    Durante os anos marcados pelo Regime do Estado Novo, processaram-se

    mudanas em todos os nveis de ensino, do primrio ao universitrio, passando pelo

    secundrio normal e profissionalizante. O Ministrio da Educao e Sade adotara

    uma srie de medidas que operavam a renovao do ensino em todo o pas. Esse

    conjunto de medidas, do qual destacaram-se o projeto da universidade padro, a 3 Lauerhass sistematizou e organizou algumas das mais importantes bandeiras de luta das vrias

    correntes nacionalistas que, no incio da dcada de 1930, uniram-se em torno do governo Vargas. Destas,

    seis foram destacadas: 1) a busca da identidade nacional, 2) o impulso patritico, 3) o ataque ao

    regionalismo, 4) a exigncia de legitimidade poltica, 5) moralidade e eficincia polticas, e 6) a

    preocupao com a justia social. Este autor tambm aponta que cada corrente preocupava-se mais ou

    menos com cada uma dessas questes, de acordo com os prprios elementos que definiam o seu

    carter. Cf. LAUERHASS JNIOR, Ludwig. Getlio Vargas e o triunfo do nacionalismo brasileiro. Belo

    Horizonte: Itatiaia; So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 1986 (p. 23).

  • Texto integrante dos Anais do XVII Encontro Regional de Histria O lugar da Histria. ANPUH/SP-UNICAMP. Campinas, 6 a 10 de setembro de 2004. Cd-rom.

    3

    implantao do ensino industrial e a reforma do ensino secundrio de 1942, ficou

    conhecido como Reforma Capanema. Em meio a esse esforo reformador, inmeros

    livros didticos foram queimados pelas autoridades civis e religiosas preocupadas com

    os problemas da famlia brasileira. Sob a mesma justificativa, modificaram-se todos

    os programas das disciplinas lecionadas no 1. e 2. graus4. Essas reformas tambm

    atingiram os programas e mtodos voltados para a educao artstica de crianas e

    jovens. Grande contingente de artistas e educadores apresentaram propostas que

    visavam a criao e a reestruturao de instituies de ensino de msica - como a

    Escola Nacional de Msica do Rio de Janeiro e o Conservatrio Dramtico Musical de

    So Paulo - seguindo um novo modelo, que valorizasse o ensino de um repertrio

    nacional e a formao de instrumentistas de cmera e de orquestra.

    Heitor Villa-Lobos, compositor brasileiro recm chegado da Europa, tambm

    preocupado com a questo da educao musical no Brasil, apresentou ao governo

    uma nova proposta para o ensino artstico/musical de crianas. Porm, diferentemente

    da maioria, o seu projeto no visava uma reforma no sistema tradicional do ensino

    musical, como vinha sendo ministrado nas instituies especializadas do pas.

    Tratava-se de uma proposta totalmente inovadora: transmitir conhecimentos musicais

    atravs de aulas de canto orfenico, transformado em disciplina obrigatria em todas

    as escolas pblicas, primrias e secundrias, do Distrito Federal. Atuando em todos os

    setores do ensino municipal, o canto orfenico, vigoroso propulsor de energias

    cvicas, seria capaz de atingir um nmero muito maior de crianas e,

    conseqentemente, de famlias. E foi exatamente essa funo prtica assumida pelo

    canto orfenico, servindo como meio propagador de mensagens de motivao

    nacional/ufanista, um dos principais motivos que levaram o Governo, empenhado na

    construo de uma nova Nao Brasileira, a patrocinar esse projeto, transformando-o

    no maior investimento pelo qual o Brasil j passara em termos de educao musical e

    artstica.

    Em 1932 Vargas assinou um decreto que tornava obrigatrio o ensino de canto

    orfenico nas escolas. No mesmo ano, foi criado o Curso de Pedagogia de Msica e

    Canto Orfenico e o Orfeo de Professores do Distrito Federal, ambos projetos de

    Heitor Villa-Lobos. Realizara-se um esforo concentrado para que aumentasse a

    participao popular atravs de canais no convencionais de adeso,

    preferencialmente aqueles que traduzissem formas inconscientes de identificao.

    Dessa maneira, explica Contier, ...a propaganda dirigida s massas no sentido de 4 Sobre as caractersticas desta reforma, suas intenes, suas vitrias e derrotas, consultar

    SCHWARTZMAN, Simon, BOMENY, Helena Maria Bousquet e COSTA, Vanda Maria Ribeiro. Tempos de

    Capanema. So Paulo: Paz e Terra/Fundao Getlio Vargas, 2000.

  • Texto integrante dos Anais do XVII Encontro Regional de Histria O lugar da Histria. ANPUH/SP-UNICAMP. Campinas, 6 a 10 de setembro de 2004. Cd-rom.

    4

    atra-las para as figuras de Villa-Lobos ou de Getlio Vargas acabou se tornando um

    novo recurso bastante eficaz para a sacralizao do conceito de brasilidade nos

    campos da msica e da poltica...5.

    A arte musical foi diversas vezes utilizada por regimes totalitrios como

    mecanismo transmissor de mensagens de carter doutrinrio. Com o auxlio da

    linguagem afetiva das artes, busca-se criar um clima propcio para a recepo a

    medidas repressoras ou dos mecanismos de dominao. Contier explicou que, atravs

    de seu projeto de educao musical, Villa-Lobos procurava aproximar-se das massas,

    objetivando incutir-lhes os ideais de civismo, disciplina e ordem6. De acordo com este

    historiador, pela primeira vez no Brasil, um grande nmero de pessoas, em coro, teria

    entoado marchas e canes cvicas.

    Alm de funcionar como um eficiente mtodo de musicalizao infantil em larga

    escala, o programa de ensino do canto orfenico implementado por Villa-Lobos

    funcionava como inteligente mecanismo de transmisso da doutrina poltica e esttica

    oficial do Estado Novo. O prprio Villa-Lobos definia o canto orfenico como um...

    ...fator poderoso no despertar dos sentimentos humanos, no apenas

    os de ordem esttica, mas ainda os de ordem moral, sobretudo os de

    natureza cvica. Influi, junto aos educandos, no sentido de apontar-lhes,

    espontnea e voluntria, a noo de disciplina, no mais imposta sob a

    rigidez de uma autoridade externa, mas novamente aceita, entendida e

    desejada. D-lhes a compreenso da solidariedade entre os homens, da

    importncia da cooperao, da anulao das vaidades individuais e dos

    propsitos exclusivistas...7.

    Heitor Villa-Lobos escreveu e reescreveu diversas vezes o seu plano de

    ensino. Elaborou programas de educao musical para o Jardim de Infncia, Escolas

    Elementares, Elementares Experimentais e Tcnicas Secundrias e programas para

    os Cursos de Especializao e Aperfeioamento do Ensino de Msica e Canto

    Orfenico. Idealizou e projetou um Departamento Nacional de Msica, um

    Departamento Nacional de Msica e Teatro, uma Inspetoria Geral do Canto Orfenico,

    um Instituto de Educao Popular Musical, uma Diviso de Educao Cvico-Musical,

    e um Curso de Formao de Professores Especializados em Msica e Canto 5 CONTIER, Arnaldo Daraya. Brasil Novo. Msica, Nao e Modernidade: os anos 20 e 30. Tese

    apresentada Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para

    obteno do ttulo de Livre Docente em Histria. So Paulo, 1988 (v. 1 - parte II - p. 247). 6 Idem. Ibidem. (v. 1 - parte II - p. 237). 7 VILLA-LOBOS, Heitor. Programa do Ensino de Msica. Distrito Federal: Oficina Grfica da Secretaria

    Geral de Educao e Cultura, 1937 (Prefcio - p. VII e VIII).

  • Texto integrante dos Anais do XVII Encontro Regional de Histria O lugar da Histria. ANPUH/SP-UNICAMP. Campinas, 6 a 10 de setembro de 2004. Cd-rom.

    5

    Orfenico, alm do Conservatrio Nacional de Canto Orfenico, que acabou sendo

    criado pelo Decreto-lei No. 4.993, de 26 de novembro de 1942, e no qual ocupou o

    cargo de diretor at 1947.

    Apesar da grande envergadura atingida por esse projeto de educao cvico-

    artstico-musical, a maioria dos estudos realizados sobre a vida e a obra de Heitor

    Villa-Lobos, pouco se refere a essa dimenso de sua atuao - como ele mesmo a

    define - em prol do levantamento do nvel artstico e da Independncia da Arte no

    Brasil8. Esses trabalhos concentram sua ateno principalmente na dimenso esttica

    de sua produo musical. Em algumas dessas obras o projeto de educao cvico-

    artstica e a realizao dos grandes concertos de canto orfenico sequer so citados.

    Esse tipo de texto de carter apologtico9, procura, de certa maneira, ao no tocar na

    dimenso poltico-ideolgica da obra villalobiana, construir e reiterar a memria de um

    Villa-Lobos descompromissado com questes desse teor, alheio ao contexto poltico e

    social no qual projetou-se a sua produo artstica. Os pressupostos dessa bibliografia

    esto relacionados a uma determinada concepo de arte que envolve

    transcendncia, pureza, sublimao, etc., carter que certamente exclui a

    possibilidade de uma discusso da obra inserida num contexto histrico definido. Em

    alguns casos, o carter desses textos tambm pode estar apoiado em uma certa

    cumplicidade, onde se revela uma crena compartilhada entre bigrafo e biografado

    nos ideais nacionalistas que se buscavam perpetuar.

    Dentre os estudos que se dedicaram a uma apreenso mais apurada da

    dimenso educacional na obra de Heitor Villa-Lobos, podemos destacar os trabalhos

    de Jos Miguel Wisnik10, Arnaldo Contier11, Renato Mazzeu12 e Paulo Gurios13. Cada

    um destes autores procurou, a seu modo, entender as relaes estabelecidas, entre

    8 VILLA-LOBOS, Heitor. O ensino popular da msica no Brasil. Rio de Janeiro: Oficina Grfica da

    Secretaria Geral de Educao e Cultura/Departamento de Educao do Distrito Federal, 1937 (p. 10). 9 Como os trabalhos de Vasco Mariz, Lisa Peppercorn e Anna Stella Schic, por exemplo. Cf. MARIZ,

    Vasco. Heitor Villa-Lobos: compositor brasileiro. Rio de Janeiro: Servio de Publicaes/Ministrio das

    Relaes Exteriores/Diviso Cultural, 1949; PEPPERCORN, Lisa. Villa-Lobos. Rio de Janeiro: Ediouro,

    2000; e SCHIC, Anna Stella. Villa-Lobos o ndio branco. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1989. 10 WISNIK, Jos Miguel. Getlio da Paixo Cearense. Em Msica. So Paulo: Brasiliense, 1982. 11 CONTIER, Arnaldo Daraya. Brasil Novo. Msica, Nao e Modernidade: os anos 20 e 30. Tese

    apresentada Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para

    obteno do ttulo de Livre Docente em Histria. So Paulo, 1988. 12 MAZZEU, Renato Brasil. Heitor Villa-Lobos: questo nacional e cultura brasileira. Dissertao de

    Mestrado apresentada ao Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Estadual de

    Campinas. Campinas, SP: [s.n.], 2002. 13 GURIOS, Paulo Renato. Heitor Villa-Lobos: o caminho sinuoso da predestinao. Rio de Janeiro:

    Editora FGV, 2003.

  • Texto integrante dos Anais do XVII Encontro Regional de Histria O lugar da Histria. ANPUH/SP-UNICAMP. Campinas, 6 a 10 de setembro de 2004. Cd-rom.

    6

    Villa-Lobos e o governo Vargas, discutindo o papel da msica como veculo

    propagador de um discurso poltico definido sob as bases do Estado centralizador e

    totalitrio, que projetava um Estado uno que falasse em nome de todos os brasileiros,

    que se identificasse com a prpria Nao Brasileira. Estes quatro autores concordam

    em pelo menos um ponto: a obra educacional e as grandes concentraes orfenicas

    idealizadas e concretizadas pelo maestro acabaram se encaixando dentro de um

    projeto poltico que visava a promoo de Getlio Vargas, como Chefe do Governo, e

    do Estado Novo, como Regime.

    O primeiro ponto que chamou a nossa ateno dentro dessa temtica, foi,

    justamente a questo da construo de uma determinada memria de Heitor Villa-

    Lobos. Como foi dito anteriormente, a despeito dos largos anos de ativa participao

    junto ao poder constitudo, trabalhando no majestoso programa de ensino de msica e

    canto orfenico, grande parte da historiografia procurou construir a imagem de um

    Villa-Lobos ingnuo politicamente, preocupado apenas com questes de ordem

    esttica, completamente desvinculado de qualquer ideologia poltica definida. Nesse

    processo, elegeram-se alguns elementos de sua personalidade e de sua trajetria

    artstica para serem destacados e outros para serem esquecidos na composio da

    personagem ntegra, imagem que acabou sendo cristalizada com o passar dos anos. Compreendida e alienada essa memria fictcia, que apresenta um Villa-Lobos

    poltica e ideologicamente ignorante e desvinculado de responsabilidades sociais, e

    partindo, portanto, do pressuposto de um Villa-Lobos cidado, dotado de um

    pensamento poltico e ideolgico e, considerando que as relaes entre o maestro e o

    governo Vargas tornaram-se estreitssimas, especialmente a partir da instituio do

    Estado Novo, voltamo-nos para uma segunda questo: de que maneira era

    estabelecido o dilogo entre as duas partes? Quais os mecanismos que norteavam as

    relaes entre maestro e Estado?

    De um modo geral, os trabalhos historiogrficos que focalizaram o Estado

    Novo e a sua relao com os artistas e com o meio artstico privilegiaram as teses de

    cooptao ou de constrangimento desses artistas em relao ao Regime e/ou ao seu

    Chefe. Tais teses aceitam que essas personagens atuaram publicamente ao lado de

    Getlio porque acreditavam que este ato constitua um dever em benefcio da Nao,

    ou porque qualquer chamado do Chefe era considerado irrecusvel14. Outros autores

    entendem que a cooptao de artistas, jornalistas, intelectuais, etc., praticada no

    14 Neste grupo alinham-se os trabalhos de MATOS, Cludia Neiva de. Acertei no milhar: malandragem e

    samba no tempo de Getlio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982; NAVES, Santuza C. O violo azul:

    modernismo e msica popular. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1998; e KRAUSCHE, Valter. Msica Popular

    Brasileira. Da cultura de roda msica de massa. So Paulo: Editora Brasiliense S. A., 1983.

  • Texto integrante dos Anais do XVII Encontro Regional de Histria O lugar da Histria. ANPUH/SP-UNICAMP. Campinas, 6 a 10 de setembro de 2004. Cd-rom.

    7

    Estado Novo, manifestou-se na forma de uma onda de corruptibilidade que varreu

    praticamente todos os setores criativos da sociedade brasileira15.

    As teses que defendem que o relacionamento estabelecido entre artistas e

    Estado Novo era mediado pelo uso da cooptao ou do constrangimento, onde o ato

    do convencimento encerra uma matriz ideolgica ou mesmo comercial, vo na mesma

    direo dos argumentos que defendem uma postura inocente ou inconsciente desses

    artistas em relao ao projeto poltico do Regime ao qual serviram. Ambas teorias

    procuram afastar uma possvel responsabilidade desses artistas como reiteradores e,

    ao mesmo tempo, construtores adjuntos das bases ideolgicas que sustentavam o

    Governo, legitimando-o atravs da linguagem sensorial e afetiva das artes.

    Desde as primeiras intervenes de Villa-Lobos junto ao Governo de Vargas

    at o fim do Estado Novo, as relaes entre ambos foram estreitando-se cada vez

    mais, medida em que, tanto a figura do chefe poltico quanto a do compositor

    ganhavam destaque no cenrio nacional e internacional. Enquanto Getlio Vargas

    passara de mero representante do Governo Provisrio a glorioso Chefe da Nao

    Brasileira, Villa-Lobos, de jovem compositor talentoso e desconhecido, transformara-

    se no maior expoente da msica no Brasil, representante em todo o mundo do melhor

    daquilo que era produzido em termos de msica sria, e mentor do mais avanado

    mtodo de educao musical em mbito nacional.

    Percebemos que o relacionamento estabelecido entre Governo e compositor

    gerava benefcios para ambos lados. Prestgio e glria foram divididos pelas

    personagens, cada qual distinguindo-se em seu mbito de atuao. Aes foram

    planejadas visando conquistas para um e para outro lado. Notamos a existncia de

    uma espcie de negociao ou relao de trocas pautando esse relacionamento e

    conformando um verdadeiro jogo de foras entre as partes. Dentro desse jogo

    existem duas esferas de poder, onde cada um dos agentes atinge, de modo

    15 Segundo Nelson J. Garcia ...escritores, jornalistas, artistas, professores, juristas que se manifestavam

    favoravelmente ao regime, eram nomeados para cargos pblicos ou recebiam subvenes e auxlios

    diversos. Cf. GARCIA, Nelson J. O Estado Novo: ideologia e propaganda poltica. A legitimao do

    Estado autoritrio perante as classes subalternas. So Paulo: Edies Loyola, 1982 (p. 116). Atravs

    dessa cooptao o Governo era poupado de contestaes, mantendo o clima de consenso e de

    uniformidade ideolgica que se buscava criar, explica Garcia. Buscando justificar os favores adquiridos via

    cooptao, esses intelectuais procuravam argumentos fundados em libis nacionalistas, como apontou

    Miceli: Pelo que diziam, o fato de serem servidores do Estado lhes concedia melhores condies para a

    feitura de obras que tomassem o pulso da Nao e cuja validez se embebia dos anseios de expresso da

    coletividade e no das demandas feitas por qualquer grupo dirigente. Cf. MICELI, Srgio. Intelectuais e

    classe dirigente no Brasil (1920-1945). So Paulo/Rio de Janeiro: Difel/Difuso Editorial S. A., 1979 (p.

    159).

  • Texto integrante dos Anais do XVII Encontro Regional de Histria O lugar da Histria. ANPUH/SP-UNICAMP. Campinas, 6 a 10 de setembro de 2004. Cd-rom.

    8

    especfico, o seu objeto: a massa. No espao de interseco entre as duas esferas

    ou seja, quando a atuao de Villa-Lobos e a de Vargas caminham em um sentido

    comum ampliam-se os benefcios para ambos16.

    Durante os quinze anos nos quais Villa-Lobos se manteve ligado ao servio

    pblico, o governo de Vargas foi sofrendo contnuas transformaes, e o Regime foi

    assumindo uma nova roupagem. O programa de educao cvico-musical tambm foi

    adquirindo novas caractersticas operacionais e ideolgicas, medida em que

    aumentava o poder de deciso do maestro. Nos primeiros anos, como

    Superintendente do Ensino Musical e Artstico da Secretaria de Educao, a sua

    atuao - direta - dava-se somente no mbito do Distrito Federal. Sua ao

    educadora reportava-se diretamente Prefeitura do Rio de Janeiro. Quando assumiu

    a organizao das grandes concentraes orfenicas passou a tratar diretamente com

    o Ministrio da Educao e Sade e com Getlio Vargas. J no final de sua carreira de

    funcionrio pblico, na direo do Conservatrio Nacional de Canto Orfenico, tornou-

    se responsvel pela formao de todos os professores habilitados a ministrar essa

    disciplina em todas as escolas e colgios pblicos do pas. A partir de 1937, com a

    implementao do Estado Novo, as concentraes orfenicas passaram a ser

    realizadas com uma maior freqncia, transformando-se no pice dos festejos nos

    dias de festa nacional, compartilhando o mesmo espao e o mesmo momento com a

    orao do Chefe da Nao.

    Apesar do bom relacionamento estabelecido entre Villa-Lobos e as autoridades

    polticas do pas entre as dcadas de 1930 e 1940, ao analisarmos todo o perodo no

    qual este msico serviu ao governo, aplicando o seu plano de educao cvico-

    musical, percebemos, em alguns momentos, dissonncias ou pequenos

    descompassos entre a ao do maestro e a do prprio Estado. Em parte, essas

    dissonncias surgiram devido s transformaes atravessadas pelo Regime. Em

    parte, ao aumento da influncia e do poder de deciso do maestro em relao a uma

    srie de assuntos relacionados a civismo, prpria organizao das concentraes

    orfenicas, etc. Esses momentos de descompasso, em primeira instncia, trazem a

    tona um Villa-Lobos independente em aes e decises, ajudando-nos a entender a

    16 Particularmente visvel no caso do maestro Heitor Villa-Lobos, este tipo de relao pode ser estendido

    s relaes estabelecidas entre o Estado Novo e inmeros outros artistas que se fizeram conhecidos

    como colaboradores do Regime. Alm de Francisco Mignone e Souza Lima, uma srie de msicos

    populares foram identificados pela historiografia como artistas ligados ao Regime. Nomes como os de Ari

    Barroso, Carmem Miranda, Heitor dos Prazeres, Catulo da Paixo Cearense, etc. esto presentes em um

    grande nmero de obras que tematizaram as relaes entre o Estado Novo e a msica e os msicos

    brasileiros.

  • Texto integrante dos Anais do XVII Encontro Regional de Histria O lugar da Histria. ANPUH/SP-UNICAMP. Campinas, 6 a 10 de setembro de 2004. Cd-rom.

    9

    cooptao ideolgica desses agentes culturais no perodo do Estado Novo como

    apenas uma das formas assumidas por esse tipo de relao. Percebemos que Villa-

    Lobos adotara um relacionamento diferenciado com o Governo, partindo de outros

    princpios, entendido como uma relao de trocas, apesar de reconhecer a existncia

    de um franco sentimento de comunho ideolgica entre as partes. Em geral, nesses

    momentos de incongruncia de aes por parte de artista e Governo, notamos uma

    grande confluncia de vozes. Elementos representantes de diversos setores da

    sociedade manifestam a sua opinio e aumentam a sensao de dissonncia. Para

    cada caso, abre-se um leque de interpretaes possveis.

    Dois momentos especficos chamam a nossa ateno dentro da trajetria

    pblica de Heitor Villa-Lobos, nos quais notamos a manifestao de pequenas

    dissonncias entre a voz do maestro e a do governo, ouvidas, de dentro e de fora do

    organismo estatal. A primeira dissonncia manifestou-se por ocasio do esforo

    coletivo - envolvendo autoridades civis e militares, nomes ligados educao e s

    artes - instaurado pelo processo de reviso, padronizao, fixao e oficializao do

    Hino Nacional Brasileiro. Para realizar esta tarefa foram formadas diversas comisses

    de carter heterogneo com o intuito de que fossem representadas as opinies de

    diversos setores da sociedade. Heitor Villa-Lobos participou de, praticamente, todas as

    comisses. As discusses estenderam-se durante anos. As comisses foram

    mudando e Villa-Lobos permanecendo. A sua voz sendo ouvida por sobre todas as

    outras... Outro momento de quebra da harmonia tradicional pode ser percebido

    durante as prvias para a concentrao orfenica comemorativa do Dia da Ptria, no

    ano de 1943. Uma das peas escolhidas por Heitor Villa-Lobos para fazer parte do

    repertrio a ser interpretado em coro pelas crianas a Dana da Terra foi

    considerada imoral por alguns setores da sociedade. O prestgio do maestro e a boa

    reputao de todo um programa educacional foram colocados a prova, exatamente

    num dos momentos altos desse programa, representado pela recente instituio do

    Conservatrio Nacional de Canto Orfenico.

    Atravs de um entendimento mais amplo dessas questes, discutindo algumas

    semelhanas e diferenas notadas entre o discurso e as aes do governo e do

    maestro, trazemos tona aspectos que podem apontar novos caminhos interpretativos

    para o mundo das relaes estabelecidas entre Getlio e Villa-Lobos ou, em termos

    mais amplos, entre o Estado Novo e os artistas que lhe deram cor, sabor e som...