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Texto integrante dos Anais do XVII Encontro Regional de Histria O lugar da Histria. ANPUH/SP-UNICAMP. Campinas, 6 a 10 de setembro de 2004. Cd-rom.
Um maestro no gabinete: msica e poltica no tempo de Villa-Lobos
Anala Cheravsky
Doutoranda em Msica IA/UNICAMP
O Estdio do Vasco da Gama est vivendo uma tarde inesquecvel.
30.000 crianas de nossas escolas tomam parte numa esplndida
demonstrao de canto orfenico, em homenagem ao Dia da Ptria. Grande
massa popular enche as dependncias da praa de sports, numa
extraordinria vibrao cvica. chegada do Presidente da Repblica, as
aclamaes estrugiram aos ltimos acordes do Hino Nacional.1
Sete de Setembro de 1939. Os olhares se voltam para o estdio do Vasco.
Alm da sufocante presena de toda a imprensa carioca, comparecem solenidade
um sem-nmero de autoridades civis e militares e at representantes de delegaes
estrangeiras. Compondo os festejos, o discurso de Getlio, o desfile dos
representantes das Foras Armadas, a Parada da Mocidade, o imenso coral
orfenico formado pelas crianas das escolas primrias e secundrias do Distrito
Federal, cantando hinos cvicos e proclamando vivas ao Presidente.
Entre as dcadas de 1920 e 1950, marcadas pelo apogeu do nacionalismo,
grandes lderes polticos em todo o mundo ocidental promoveram mega eventos de
massa na busca pela afirmao de um sentimento de unio nacional em torno de sua
figura. Criavam, nas pessoas que participavam e nas que assistiam a esses
espetculos, uma sensao, ao mesmo tempo, de admirao e de profundo respeito
perante o chefe, cuja figura, em diversas oportunidades, alcanava um avanado
grau de divinizao2. 1 A NOITE. Rio de Janeiro, quinta-feira, 7 de Setembro de 1939 - ano XXIX - N. 9.906 (1 pgina). 2 Tentando explicar os mecanismos que pautavam o processo de identificao entre comando e
comandados, firmados atravs desses grandes eventos na Alemanha nazista, Alcir Lenharo destacou que
A chave da organizao dos grandes espetculos era converter a prpria multido em pea essencial
dessa organizao. Nas paradas e desfiles pelas ruas ou nas manifestaes de massa, esttica, em
praas pblicas, a multido se emocionava de maneira contagiante, participando ativamente da produo
de uma energia que carregava consigo aps os espetculos, redistribuindo-a no dia-a-dia, para escapar
monotonia de sua existncia e prolongar a dramatizao da vida cotidiana. Cf. LENHARO, Alcir.
Nazismo. O triunfo da vontade. So Paulo: Editora tica, 1986 (p. 39-40). A organizao de grandes
corais foi uma das formas mais recorrentes desse tipo de manifestao de massa. Lenharo explicou como
a presena de fanfarras e as msicas cantadas pela multido aumentavam o entusiasmo geral: Ao cantar
Deutschland ber alles e Horst Wessel Lied, os hinos oficiais do nazismo, a multido era tomada pelo
sentimento de formar um todo nico, um bloco coeso e inquebrantvel.... Idem. Ibidem (p. 41-2).
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Texto integrante dos Anais do XVII Encontro Regional de Histria O lugar da Histria. ANPUH/SP-UNICAMP. Campinas, 6 a 10 de setembro de 2004. Cd-rom.
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No Brasil, desde o incio da dcada de 1920, grande setor da intelectualidade
passou a olhar com simpatia alguns ideais nacionalistas. s vsperas de 1930, essa
ideologia j se havia alastrado e impregnado na mentalidade da maioria dos quadros
fortes da poltica nacional. Esse ano ficou marcado pelo fim da chamada Repblica
Velha e pela ascenso de Getlio Vargas ao poder, representante de setores que h
muito tempo vinham sendo excludos da cena poltica. Sob a bandeira do
nacionalismo, esse novo governo conseguiu arregimentar diferentes frentes que
vinham se configurando na luta pela constituio de um Estado-Nao brasileiro, que
representasse os interesses dos cidados em cada extremo do pas3.
O novo governo procurou centralizar as diferentes expresses do nacionalismo,
angariando o apoio de personalidades provenientes de diversos setores da
intelectualidade brasileira. Muitos representantes do grupo dos modernistas ligados ao
ideal nacionalista passaram a perceber esse Estado como um organismo unificador de
seus anseios e agente essencial na luta pela nacionalizao da cultura e da arte,
atravs da ao educacional.
Com o auxlio de um novo programa educativo, cuidadosamente idealizado e
administrado por pessoal competente, Getlio empenhou-se na construo de um
conceito de legitimidade para o seu posto de chefe, adquirido atravs de um
movimento revolucionrio de pouca expresso popular. A preocupao com a
formao e a doutrinao das futuras geraes marcou profundamente os anos
durante os quais se manteve no poder. Nesse contexto, o Ministrio da Educao e
Sade - inicialmente assumido por Francisco Campos, que, em julho de 1934 passou
a pasta para as mos do mineiro Gustavo Capanema - acabou adquirindo um carter
sumamente importante, extrapolando os limites das aes tradicionalmente mantidas
sob sua responsabilidade.
Durante os anos marcados pelo Regime do Estado Novo, processaram-se
mudanas em todos os nveis de ensino, do primrio ao universitrio, passando pelo
secundrio normal e profissionalizante. O Ministrio da Educao e Sade adotara
uma srie de medidas que operavam a renovao do ensino em todo o pas. Esse
conjunto de medidas, do qual destacaram-se o projeto da universidade padro, a 3 Lauerhass sistematizou e organizou algumas das mais importantes bandeiras de luta das vrias
correntes nacionalistas que, no incio da dcada de 1930, uniram-se em torno do governo Vargas. Destas,
seis foram destacadas: 1) a busca da identidade nacional, 2) o impulso patritico, 3) o ataque ao
regionalismo, 4) a exigncia de legitimidade poltica, 5) moralidade e eficincia polticas, e 6) a
preocupao com a justia social. Este autor tambm aponta que cada corrente preocupava-se mais ou
menos com cada uma dessas questes, de acordo com os prprios elementos que definiam o seu
carter. Cf. LAUERHASS JNIOR, Ludwig. Getlio Vargas e o triunfo do nacionalismo brasileiro. Belo
Horizonte: Itatiaia; So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 1986 (p. 23).
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implantao do ensino industrial e a reforma do ensino secundrio de 1942, ficou
conhecido como Reforma Capanema. Em meio a esse esforo reformador, inmeros
livros didticos foram queimados pelas autoridades civis e religiosas preocupadas com
os problemas da famlia brasileira. Sob a mesma justificativa, modificaram-se todos
os programas das disciplinas lecionadas no 1. e 2. graus4. Essas reformas tambm
atingiram os programas e mtodos voltados para a educao artstica de crianas e
jovens. Grande contingente de artistas e educadores apresentaram propostas que
visavam a criao e a reestruturao de instituies de ensino de msica - como a
Escola Nacional de Msica do Rio de Janeiro e o Conservatrio Dramtico Musical de
So Paulo - seguindo um novo modelo, que valorizasse o ensino de um repertrio
nacional e a formao de instrumentistas de cmera e de orquestra.
Heitor Villa-Lobos, compositor brasileiro recm chegado da Europa, tambm
preocupado com a questo da educao musical no Brasil, apresentou ao governo
uma nova proposta para o ensino artstico/musical de crianas. Porm, diferentemente
da maioria, o seu projeto no visava uma reforma no sistema tradicional do ensino
musical, como vinha sendo ministrado nas instituies especializadas do pas.
Tratava-se de uma proposta totalmente inovadora: transmitir conhecimentos musicais
atravs de aulas de canto orfenico, transformado em disciplina obrigatria em todas
as escolas pblicas, primrias e secundrias, do Distrito Federal. Atuando em todos os
setores do ensino municipal, o canto orfenico, vigoroso propulsor de energias
cvicas, seria capaz de atingir um nmero muito maior de crianas e,
conseqentemente, de famlias. E foi exatamente essa funo prtica assumida pelo
canto orfenico, servindo como meio propagador de mensagens de motivao
nacional/ufanista, um dos principais motivos que levaram o Governo, empenhado na
construo de uma nova Nao Brasileira, a patrocinar esse projeto, transformando-o
no maior investimento pelo qual o Brasil j passara em termos de educao musical e
artstica.
Em 1932 Vargas assinou um decreto que tornava obrigatrio o ensino de canto
orfenico nas escolas. No mesmo ano, foi criado o Curso de Pedagogia de Msica e
Canto Orfenico e o Orfeo de Professores do Distrito Federal, ambos projetos de
Heitor Villa-Lobos. Realizara-se um esforo concentrado para que aumentasse a
participao popular atravs de canais no convencionais de adeso,
preferencialmente aqueles que traduzissem formas inconscientes de identificao.
Dessa maneira, explica Contier, ...a propaganda dirigida s massas no sentido de 4 Sobre as caractersticas desta reforma, suas intenes, suas vitrias e derrotas, consultar
SCHWARTZMAN, Simon, BOMENY, Helena Maria Bousquet e COSTA, Vanda Maria Ribeiro. Tempos de
Capanema. So Paulo: Paz e Terra/Fundao Getlio Vargas, 2000.
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atra-las para as figuras de Villa-Lobos ou de Getlio Vargas acabou se tornando um
novo recurso bastante eficaz para a sacralizao do conceito de brasilidade nos
campos da msica e da poltica...5.
A arte musical foi diversas vezes utilizada por regimes totalitrios como
mecanismo transmissor de mensagens de carter doutrinrio. Com o auxlio da
linguagem afetiva das artes, busca-se criar um clima propcio para a recepo a
medidas repressoras ou dos mecanismos de dominao. Contier explicou que, atravs
de seu projeto de educao musical, Villa-Lobos procurava aproximar-se das massas,
objetivando incutir-lhes os ideais de civismo, disciplina e ordem6. De acordo com este
historiador, pela primeira vez no Brasil, um grande nmero de pessoas, em coro, teria
entoado marchas e canes cvicas.
Alm de funcionar como um eficiente mtodo de musicalizao infantil em larga
escala, o programa de ensino do canto orfenico implementado por Villa-Lobos
funcionava como inteligente mecanismo de transmisso da doutrina poltica e esttica
oficial do Estado Novo. O prprio Villa-Lobos definia o canto orfenico como um...
...fator poderoso no despertar dos sentimentos humanos, no apenas
os de ordem esttica, mas ainda os de ordem moral, sobretudo os de
natureza cvica. Influi, junto aos educandos, no sentido de apontar-lhes,
espontnea e voluntria, a noo de disciplina, no mais imposta sob a
rigidez de uma autoridade externa, mas novamente aceita, entendida e
desejada. D-lhes a compreenso da solidariedade entre os homens, da
importncia da cooperao, da anulao das vaidades individuais e dos
propsitos exclusivistas...7.
Heitor Villa-Lobos escreveu e reescreveu diversas vezes o seu plano de
ensino. Elaborou programas de educao musical para o Jardim de Infncia, Escolas
Elementares, Elementares Experimentais e Tcnicas Secundrias e programas para
os Cursos de Especializao e Aperfeioamento do Ensino de Msica e Canto
Orfenico. Idealizou e projetou um Departamento Nacional de Msica, um
Departamento Nacional de Msica e Teatro, uma Inspetoria Geral do Canto Orfenico,
um Instituto de Educao Popular Musical, uma Diviso de Educao Cvico-Musical,
e um Curso de Formao de Professores Especializados em Msica e Canto 5 CONTIER, Arnaldo Daraya. Brasil Novo. Msica, Nao e Modernidade: os anos 20 e 30. Tese
apresentada Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para
obteno do ttulo de Livre Docente em Histria. So Paulo, 1988 (v. 1 - parte II - p. 247). 6 Idem. Ibidem. (v. 1 - parte II - p. 237). 7 VILLA-LOBOS, Heitor. Programa do Ensino de Msica. Distrito Federal: Oficina Grfica da Secretaria
Geral de Educao e Cultura, 1937 (Prefcio - p. VII e VIII).
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Orfenico, alm do Conservatrio Nacional de Canto Orfenico, que acabou sendo
criado pelo Decreto-lei No. 4.993, de 26 de novembro de 1942, e no qual ocupou o
cargo de diretor at 1947.
Apesar da grande envergadura atingida por esse projeto de educao cvico-
artstico-musical, a maioria dos estudos realizados sobre a vida e a obra de Heitor
Villa-Lobos, pouco se refere a essa dimenso de sua atuao - como ele mesmo a
define - em prol do levantamento do nvel artstico e da Independncia da Arte no
Brasil8. Esses trabalhos concentram sua ateno principalmente na dimenso esttica
de sua produo musical. Em algumas dessas obras o projeto de educao cvico-
artstica e a realizao dos grandes concertos de canto orfenico sequer so citados.
Esse tipo de texto de carter apologtico9, procura, de certa maneira, ao no tocar na
dimenso poltico-ideolgica da obra villalobiana, construir e reiterar a memria de um
Villa-Lobos descompromissado com questes desse teor, alheio ao contexto poltico e
social no qual projetou-se a sua produo artstica. Os pressupostos dessa bibliografia
esto relacionados a uma determinada concepo de arte que envolve
transcendncia, pureza, sublimao, etc., carter que certamente exclui a
possibilidade de uma discusso da obra inserida num contexto histrico definido. Em
alguns casos, o carter desses textos tambm pode estar apoiado em uma certa
cumplicidade, onde se revela uma crena compartilhada entre bigrafo e biografado
nos ideais nacionalistas que se buscavam perpetuar.
Dentre os estudos que se dedicaram a uma apreenso mais apurada da
dimenso educacional na obra de Heitor Villa-Lobos, podemos destacar os trabalhos
de Jos Miguel Wisnik10, Arnaldo Contier11, Renato Mazzeu12 e Paulo Gurios13. Cada
um destes autores procurou, a seu modo, entender as relaes estabelecidas, entre
8 VILLA-LOBOS, Heitor. O ensino popular da msica no Brasil. Rio de Janeiro: Oficina Grfica da
Secretaria Geral de Educao e Cultura/Departamento de Educao do Distrito Federal, 1937 (p. 10). 9 Como os trabalhos de Vasco Mariz, Lisa Peppercorn e Anna Stella Schic, por exemplo. Cf. MARIZ,
Vasco. Heitor Villa-Lobos: compositor brasileiro. Rio de Janeiro: Servio de Publicaes/Ministrio das
Relaes Exteriores/Diviso Cultural, 1949; PEPPERCORN, Lisa. Villa-Lobos. Rio de Janeiro: Ediouro,
2000; e SCHIC, Anna Stella. Villa-Lobos o ndio branco. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1989. 10 WISNIK, Jos Miguel. Getlio da Paixo Cearense. Em Msica. So Paulo: Brasiliense, 1982. 11 CONTIER, Arnaldo Daraya. Brasil Novo. Msica, Nao e Modernidade: os anos 20 e 30. Tese
apresentada Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para
obteno do ttulo de Livre Docente em Histria. So Paulo, 1988. 12 MAZZEU, Renato Brasil. Heitor Villa-Lobos: questo nacional e cultura brasileira. Dissertao de
Mestrado apresentada ao Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Estadual de
Campinas. Campinas, SP: [s.n.], 2002. 13 GURIOS, Paulo Renato. Heitor Villa-Lobos: o caminho sinuoso da predestinao. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2003.
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Villa-Lobos e o governo Vargas, discutindo o papel da msica como veculo
propagador de um discurso poltico definido sob as bases do Estado centralizador e
totalitrio, que projetava um Estado uno que falasse em nome de todos os brasileiros,
que se identificasse com a prpria Nao Brasileira. Estes quatro autores concordam
em pelo menos um ponto: a obra educacional e as grandes concentraes orfenicas
idealizadas e concretizadas pelo maestro acabaram se encaixando dentro de um
projeto poltico que visava a promoo de Getlio Vargas, como Chefe do Governo, e
do Estado Novo, como Regime.
O primeiro ponto que chamou a nossa ateno dentro dessa temtica, foi,
justamente a questo da construo de uma determinada memria de Heitor Villa-
Lobos. Como foi dito anteriormente, a despeito dos largos anos de ativa participao
junto ao poder constitudo, trabalhando no majestoso programa de ensino de msica e
canto orfenico, grande parte da historiografia procurou construir a imagem de um
Villa-Lobos ingnuo politicamente, preocupado apenas com questes de ordem
esttica, completamente desvinculado de qualquer ideologia poltica definida. Nesse
processo, elegeram-se alguns elementos de sua personalidade e de sua trajetria
artstica para serem destacados e outros para serem esquecidos na composio da
personagem ntegra, imagem que acabou sendo cristalizada com o passar dos anos. Compreendida e alienada essa memria fictcia, que apresenta um Villa-Lobos
poltica e ideologicamente ignorante e desvinculado de responsabilidades sociais, e
partindo, portanto, do pressuposto de um Villa-Lobos cidado, dotado de um
pensamento poltico e ideolgico e, considerando que as relaes entre o maestro e o
governo Vargas tornaram-se estreitssimas, especialmente a partir da instituio do
Estado Novo, voltamo-nos para uma segunda questo: de que maneira era
estabelecido o dilogo entre as duas partes? Quais os mecanismos que norteavam as
relaes entre maestro e Estado?
De um modo geral, os trabalhos historiogrficos que focalizaram o Estado
Novo e a sua relao com os artistas e com o meio artstico privilegiaram as teses de
cooptao ou de constrangimento desses artistas em relao ao Regime e/ou ao seu
Chefe. Tais teses aceitam que essas personagens atuaram publicamente ao lado de
Getlio porque acreditavam que este ato constitua um dever em benefcio da Nao,
ou porque qualquer chamado do Chefe era considerado irrecusvel14. Outros autores
entendem que a cooptao de artistas, jornalistas, intelectuais, etc., praticada no
14 Neste grupo alinham-se os trabalhos de MATOS, Cludia Neiva de. Acertei no milhar: malandragem e
samba no tempo de Getlio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982; NAVES, Santuza C. O violo azul:
modernismo e msica popular. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1998; e KRAUSCHE, Valter. Msica Popular
Brasileira. Da cultura de roda msica de massa. So Paulo: Editora Brasiliense S. A., 1983.
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Estado Novo, manifestou-se na forma de uma onda de corruptibilidade que varreu
praticamente todos os setores criativos da sociedade brasileira15.
As teses que defendem que o relacionamento estabelecido entre artistas e
Estado Novo era mediado pelo uso da cooptao ou do constrangimento, onde o ato
do convencimento encerra uma matriz ideolgica ou mesmo comercial, vo na mesma
direo dos argumentos que defendem uma postura inocente ou inconsciente desses
artistas em relao ao projeto poltico do Regime ao qual serviram. Ambas teorias
procuram afastar uma possvel responsabilidade desses artistas como reiteradores e,
ao mesmo tempo, construtores adjuntos das bases ideolgicas que sustentavam o
Governo, legitimando-o atravs da linguagem sensorial e afetiva das artes.
Desde as primeiras intervenes de Villa-Lobos junto ao Governo de Vargas
at o fim do Estado Novo, as relaes entre ambos foram estreitando-se cada vez
mais, medida em que, tanto a figura do chefe poltico quanto a do compositor
ganhavam destaque no cenrio nacional e internacional. Enquanto Getlio Vargas
passara de mero representante do Governo Provisrio a glorioso Chefe da Nao
Brasileira, Villa-Lobos, de jovem compositor talentoso e desconhecido, transformara-
se no maior expoente da msica no Brasil, representante em todo o mundo do melhor
daquilo que era produzido em termos de msica sria, e mentor do mais avanado
mtodo de educao musical em mbito nacional.
Percebemos que o relacionamento estabelecido entre Governo e compositor
gerava benefcios para ambos lados. Prestgio e glria foram divididos pelas
personagens, cada qual distinguindo-se em seu mbito de atuao. Aes foram
planejadas visando conquistas para um e para outro lado. Notamos a existncia de
uma espcie de negociao ou relao de trocas pautando esse relacionamento e
conformando um verdadeiro jogo de foras entre as partes. Dentro desse jogo
existem duas esferas de poder, onde cada um dos agentes atinge, de modo
15 Segundo Nelson J. Garcia ...escritores, jornalistas, artistas, professores, juristas que se manifestavam
favoravelmente ao regime, eram nomeados para cargos pblicos ou recebiam subvenes e auxlios
diversos. Cf. GARCIA, Nelson J. O Estado Novo: ideologia e propaganda poltica. A legitimao do
Estado autoritrio perante as classes subalternas. So Paulo: Edies Loyola, 1982 (p. 116). Atravs
dessa cooptao o Governo era poupado de contestaes, mantendo o clima de consenso e de
uniformidade ideolgica que se buscava criar, explica Garcia. Buscando justificar os favores adquiridos via
cooptao, esses intelectuais procuravam argumentos fundados em libis nacionalistas, como apontou
Miceli: Pelo que diziam, o fato de serem servidores do Estado lhes concedia melhores condies para a
feitura de obras que tomassem o pulso da Nao e cuja validez se embebia dos anseios de expresso da
coletividade e no das demandas feitas por qualquer grupo dirigente. Cf. MICELI, Srgio. Intelectuais e
classe dirigente no Brasil (1920-1945). So Paulo/Rio de Janeiro: Difel/Difuso Editorial S. A., 1979 (p.
159).
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especfico, o seu objeto: a massa. No espao de interseco entre as duas esferas
ou seja, quando a atuao de Villa-Lobos e a de Vargas caminham em um sentido
comum ampliam-se os benefcios para ambos16.
Durante os quinze anos nos quais Villa-Lobos se manteve ligado ao servio
pblico, o governo de Vargas foi sofrendo contnuas transformaes, e o Regime foi
assumindo uma nova roupagem. O programa de educao cvico-musical tambm foi
adquirindo novas caractersticas operacionais e ideolgicas, medida em que
aumentava o poder de deciso do maestro. Nos primeiros anos, como
Superintendente do Ensino Musical e Artstico da Secretaria de Educao, a sua
atuao - direta - dava-se somente no mbito do Distrito Federal. Sua ao
educadora reportava-se diretamente Prefeitura do Rio de Janeiro. Quando assumiu
a organizao das grandes concentraes orfenicas passou a tratar diretamente com
o Ministrio da Educao e Sade e com Getlio Vargas. J no final de sua carreira de
funcionrio pblico, na direo do Conservatrio Nacional de Canto Orfenico, tornou-
se responsvel pela formao de todos os professores habilitados a ministrar essa
disciplina em todas as escolas e colgios pblicos do pas. A partir de 1937, com a
implementao do Estado Novo, as concentraes orfenicas passaram a ser
realizadas com uma maior freqncia, transformando-se no pice dos festejos nos
dias de festa nacional, compartilhando o mesmo espao e o mesmo momento com a
orao do Chefe da Nao.
Apesar do bom relacionamento estabelecido entre Villa-Lobos e as autoridades
polticas do pas entre as dcadas de 1930 e 1940, ao analisarmos todo o perodo no
qual este msico serviu ao governo, aplicando o seu plano de educao cvico-
musical, percebemos, em alguns momentos, dissonncias ou pequenos
descompassos entre a ao do maestro e a do prprio Estado. Em parte, essas
dissonncias surgiram devido s transformaes atravessadas pelo Regime. Em
parte, ao aumento da influncia e do poder de deciso do maestro em relao a uma
srie de assuntos relacionados a civismo, prpria organizao das concentraes
orfenicas, etc. Esses momentos de descompasso, em primeira instncia, trazem a
tona um Villa-Lobos independente em aes e decises, ajudando-nos a entender a
16 Particularmente visvel no caso do maestro Heitor Villa-Lobos, este tipo de relao pode ser estendido
s relaes estabelecidas entre o Estado Novo e inmeros outros artistas que se fizeram conhecidos
como colaboradores do Regime. Alm de Francisco Mignone e Souza Lima, uma srie de msicos
populares foram identificados pela historiografia como artistas ligados ao Regime. Nomes como os de Ari
Barroso, Carmem Miranda, Heitor dos Prazeres, Catulo da Paixo Cearense, etc. esto presentes em um
grande nmero de obras que tematizaram as relaes entre o Estado Novo e a msica e os msicos
brasileiros.
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cooptao ideolgica desses agentes culturais no perodo do Estado Novo como
apenas uma das formas assumidas por esse tipo de relao. Percebemos que Villa-
Lobos adotara um relacionamento diferenciado com o Governo, partindo de outros
princpios, entendido como uma relao de trocas, apesar de reconhecer a existncia
de um franco sentimento de comunho ideolgica entre as partes. Em geral, nesses
momentos de incongruncia de aes por parte de artista e Governo, notamos uma
grande confluncia de vozes. Elementos representantes de diversos setores da
sociedade manifestam a sua opinio e aumentam a sensao de dissonncia. Para
cada caso, abre-se um leque de interpretaes possveis.
Dois momentos especficos chamam a nossa ateno dentro da trajetria
pblica de Heitor Villa-Lobos, nos quais notamos a manifestao de pequenas
dissonncias entre a voz do maestro e a do governo, ouvidas, de dentro e de fora do
organismo estatal. A primeira dissonncia manifestou-se por ocasio do esforo
coletivo - envolvendo autoridades civis e militares, nomes ligados educao e s
artes - instaurado pelo processo de reviso, padronizao, fixao e oficializao do
Hino Nacional Brasileiro. Para realizar esta tarefa foram formadas diversas comisses
de carter heterogneo com o intuito de que fossem representadas as opinies de
diversos setores da sociedade. Heitor Villa-Lobos participou de, praticamente, todas as
comisses. As discusses estenderam-se durante anos. As comisses foram
mudando e Villa-Lobos permanecendo. A sua voz sendo ouvida por sobre todas as
outras... Outro momento de quebra da harmonia tradicional pode ser percebido
durante as prvias para a concentrao orfenica comemorativa do Dia da Ptria, no
ano de 1943. Uma das peas escolhidas por Heitor Villa-Lobos para fazer parte do
repertrio a ser interpretado em coro pelas crianas a Dana da Terra foi
considerada imoral por alguns setores da sociedade. O prestgio do maestro e a boa
reputao de todo um programa educacional foram colocados a prova, exatamente
num dos momentos altos desse programa, representado pela recente instituio do
Conservatrio Nacional de Canto Orfenico.
Atravs de um entendimento mais amplo dessas questes, discutindo algumas
semelhanas e diferenas notadas entre o discurso e as aes do governo e do
maestro, trazemos tona aspectos que podem apontar novos caminhos interpretativos
para o mundo das relaes estabelecidas entre Getlio e Villa-Lobos ou, em termos
mais amplos, entre o Estado Novo e os artistas que lhe deram cor, sabor e som...