análise auto-retrato m.bandeira

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Auto-Retrato Provinciano que nunca soube Escolher bem uma gravata; Pernambucano a quem repugna A faca do pernambucano; Poeta ruim que na arte da prosa Envelheceu na infância da arte, E até mesmo escrevendo crônicas Ficou cronista de província; Arquiteto falhado, músico Falhado (engoliu um dia Um piano, mas o teclado Ficou de fora); sem família, Religião ou filosofia; Mal tendo a inquietação de espírito Que vem do sobrenatural, E em matéria de profissão Um tísico profissional. Mafuá do Malungo, 1948.

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Análise do poema Auto-retrato de Manuel Bandeira

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  • Auto-Retrato

    Provinciano que nunca soube

    Escolher bem uma gravata;

    Pernambucano a quem repugna

    A faca do pernambucano;

    Poeta ruim que na arte da prosa

    Envelheceu na infncia da arte,

    E at mesmo escrevendo crnicas

    Ficou cronista de provncia;

    Arquiteto falhado, msico

    Falhado (engoliu um dia

    Um piano, mas o teclado

    Ficou de fora); sem famlia,

    Religio ou filosofia;

    Mal tendo a inquietao de esprito

    Que vem do sobrenatural,

    E em matria de profisso

    Um tsico profissional.

    Mafu do Malungo, 1948.

  • AUTO-RETRATO

    Manuel Bandeira

    Quando se l o poema pela primeira vez, aparentemente no h uma preocupao com a forma,

    os versos at parecem ser livres, organizados em uma nica estrofe, prximos da prosa. Mas, em uma

    segunda leitura mais apurada, percebe-se que os versos so metrificados em oito slabas poticas, com

    a acentuao na 4 e 8 slabas na maioria dos versos. As rimas so toantes e internas, como gravata e

    faca, religio, inquietao e profisso, e rimas toantes externas como dia e famlia, sobrenatural com

    profissional. Alm disso, v-se o recurso do enjambement, quando um verso continua no seguinte.

    Outro recurso estilstico utilizado a pontuao, o uso de ponto e vrgula na enumerao das

    caractersticas do poeta divide o poema em seis partes. Aliterao em p/b/s e assonncias em am/an/n

    tambm marcam a preocupao com a forma no poema.

    Os recursos formais utilizados no poema chamam a ateno para o que diz o contedo, pois o

    poeta constri um auto-retrato caricatural, onde o contedo contraditrio a apresentao dos versos.

    A ironia e contradio contidas no poema tambm so recursos estilsticos da poesia, formando um

    jogo interativo entre contedo e forma, que so contrrios. como se fosse uma brincadeira, em que

    o eu-lrico, nesse caso, o prprio Bandeira falando sobre si mesmo, faz aluso a um tipo de poeta que

    no dos melhores, mas ao mesmo tempo demonstra domnio total da forma e das palavras.

    Para se entender a ironia, a brincadeira do poeta, preciso entender o contexto da obra em que

    foi publicada. O poema faz parte do livro Mafu do Malungo, que por si s j denota o tom ldico e

    jocoso em que os poemas dessa obra foram escritos. O ttulo da obra sugere uma brincadeira entre

    amigos, um divertimento no fazer potico. Esta obra foi impressa por Joo Cabral de Melo Neto na

    Espanha, em sua tipografia manual. Aps vrias correspondncias trocadas entre os poetas, Joo

    Cabral pede a Bandeira que envie alguns poemas para que ele possa publicar em sua tipografia. Ento,

    Bandeira envia os poemas que compem as trs partes da obra: Jogos onomsticos, Lira do Brigadeiro

    e Outros poemas. Auto-retrato faz est em Outros poemas. Joo Cabral participou da edio dos

    poemas, fazendo sugestes e alteraes em alguns deles, com a permisso do autor.

    Nos primeiros versos, Bandeira caracteriza sua origem e posio social, mas apesar de

    apresentar de onde vem, ele no se sente um verdadeiro pernambucano, est deslocado da posio de

    maior status (referncia a gravata) e tambm no sabe lidar com o menor status (a faca). Assim, o poeta

    se coloca margem, ao no definir claramente sua identidade social. Ele no se desliga da provncia

    de que veio, mas tambm no se identifica com o sujeito desta origem. Na continuidade do poema, ele

    traz caractersticas negativas a si prprio, como poeta ruim, que no desenvolveu um bom trabalho

    na arte da prosa, ironizando o uso do verso livre to em evidncia no movimento modernista e de que

  • ele fez muito uso. Fala tambm das crnicas, que so de menor importncia que o resto de sua obra

    potica, pois no foi com elas que conseguiu espao, com elas no obteve o sucesso esperado. Aqui o

    poeta zomba de sua prpria fama e faz referncia direta a sua obra, pois publicou Crnicas de

    Provncia do Brasil, em 1937, contendo 47 crnicas sobre o Brasil da primeira metade do sculo XX.

    Na sequncia do poema, o poeta fala de suas falhas no meio artstico, novamente de modo

    irnico, pois ao no se tornar um arquiteto como o pai sonhava devido doena, tornou-se arquiteto

    das palavras, compondo-as de forma to engenhosa, que muitas de suas poesias foram escolhidas por

    msicos e transformadas em canes, justamente por terem um qu de musical em seus versos. O piano

    engolido citado no poema faz referncia direta a seus dentes, ele prprio se considerava um dentuo

    pela aparncia que tinham, e assim mais uma caracterstica do poeta apresentada para compor o

    retrato, a caricatura dele, de forma bem humorada.

    Os prximos versos esto diretamente relacionados a sua vida pessoal. Bandeira ficou sem

    famlia muito cedo, em um espao curto de anos ele perdeu a me, a irm que o cuidava na doena, e

    por fim o pai, que era de grande estima para ele e com quem tinha uma relao muito forte. Quando o

    poeta se v sozinho e doente, quase como um invlido, como ele prprio se define, no lhe resta mais

    nada, nem filosofia nem religio. A falta de ter em que acreditar, a desesperana e a descrena no

    sobrenatural o tornam inquieto, e para acalmar tal inquietao, ele se faz um tsico profissional,

    utilizando sua doena como um apoio ou motivo para a sua produo literria.

    Em Auto-retrato, Bandeira constri e desconstri a imagem do poeta que foi, em uma

    linguagem bem humorada, formando uma caricatura. Em certos versos, ele duro com si mesmo, e a

    encontram-se ento a ironia, o humor e a zombaria que se do pelos exageros com que ele se define.

    um discurso onde figura a ambiguidade, h a construo e a desconstruo, a ironia e a caricatura, a

    forma e o contedo, a seriedade e o humor. Em resumo, so as memrias de um poeta sobre como ele

    prprio se via, apresentadas em poema, mostrando seu domnio com as palavras e a forma, com os

    recursos estilsticos e contedo, tomando um assunto para muitos banal, um exemplo de arte potica.