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ANLISE DO HABEAS CORPUS N 46.525 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIA: RECONHECIMENTO DE ACUSAO GENRICA E ADOO DA TEORIA DA IMPUTAO OBJETIVA.
Renata Jardim da Cunha Rieger 1 Rafael Camparra Pinheiro2
IDC Instituto Desenvolvimento Cultural, Porto Alegre RS
1 Advogada, especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Faculdade IDC, integrante do grupo de estudos de Direito Penal da mesma instituio, sob a coordenao do Prof. Me. Daniel Gerber. E-mail para contato: [email protected]. 2 Advogado, especialista em Direito Pblico pela Faculdade IDC, integrante do grupo de estudos de Direito Penal da mesma instituio, sob a coordenao do Prof. Me. Daniel Gerber.
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Rev. Disc. Jur. Campo Mouro, v. 4, n. 2, p.196-220, ago./dez. 2008.
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ACRDO
Processual penal. Habeas corpus. Homicdio culposo. Morte por afogamento
na piscina. Comisso de formatura. Inpcia da denncia. Acusao genrica.
Ausncia de previsibilidade, de nexo de causalidade e da criao de um risco no
permitido. Princpio da confiana. Trancamento da ao penal. Atipicidade da
conduta. Ordem concedida.
1. Afirmar na denncia que "a vtima foi jogada dentro da piscina por seus
colegas, assim como tantos outros que estavam presentes, ocasionando seu bito"
no atende satisfatoriamente aos requisitos do art. 41 do Cdigo de Processo Penal,
uma vez que, segundo o referido dispositivo legal, "A denncia ou queixa conter a
exposio do fato criminoso, com todas as suas circunstncias, a qualificao do
acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identific-lo, a classificao do
crime e, quando necessrio, o rol das testemunhas".
2. Mesmo que se admita certo abrandamento no tocante ao rigor da
individualizao das condutas, quando se trata de delito de autoria coletiva, no
existe respaldo jurisprudencial para uma acusao genrica, que impea o exerccio
da ampla defesa, por no demonstrar qual a conduta tida por delituosa,
considerando que nenhum dos membros da referida comisso foi apontado na pea
acusatria como sendo pessoa que jogou a vtima na piscina.
3. Por outro lado, narrando a denncia que a vtima afogou-se em virtude da
ingesto de substncias psicotrpicas, o que caracteriza uma autocolocao em risco,
excludente da responsabilidade criminal, ausente o nexo causal.
4. Ainda que se admita a existncia de relao de causalidade entre a
conduta dos acusados e a morte da vtima, luz da teoria da imputao objetiva,
necessria a demonstrao da criao pelos agentes de uma situao de risco no
permitido, no-ocorrente, na hiptese, porquanto invivel exigir de uma Comisso
de Formatura um rigor na fiscalizao das substncias ingeridas por todos os
participantes de uma festa.
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5. Associada teoria da imputao objetiva, sustenta a doutrina que vigora o
princpio da confiana, as pessoas se comportaro em conformidade com o direito, o
que no ocorreu in casu, pois a vtima veio a afogar-se, segundo a denncia, em
virtude de ter ingerido substncias psicotrpicas, comportando-se, portanto, de
forma contrria aos padres esperados, afastando, assim, a responsabilidade dos
pacientes, diante da inexistncia de previsibilidade do resultado, acarretando a
atipicidade da conduta.
6. Ordem concedida para trancar a ao penal, por atipicidade da conduta,
em razo da ausncia de previsibilidade, de nexo de causalidade e de criao de um
risco no permitido, em relao a todos os denunciados, por fora do disposto no art.
580 do Cdigo de Processo Penal. (STJ, HC n 46.525 MT, rel. Ministro Arnaldo
Esteves Lima, j. em 21/3/2006)
Relatrio
Ministro Arnaldo Esteves Lima:
Trata-se de habeas corpus substitutivo de recurso ordinrio, com pedido de
liminar, impetrado em favor de Marcelo Andr de Matos denunciado, juntamente
com outras pessoas integrantes da Comisso de Formatura do Curso de Medicina da
Universidade de Cuiab (UNIC), pela suposta prtica do delito tipificado no art. 121,
3, cc o art. 29, ambos do Cdigo Penal , impugnando acrdo da Primeira
Cmara Criminal do Tribunal de Justia do Estado do Mato Grosso, que denegou a
ordem ali impetrada (HC 11.6622005), nos termos da seguinte ementa (fls. 427428):
Habeas corpus. Homicdio culposo em concurso de pessoas. Afogamento.
Pretendido trancamento da ao penal por ausncia de justa causa. Pretextado
exame aprofundado de provas. Inviabilidade na via eleita. Denncia que preenche
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os requisitos legais. Ausncia de justa causa indemonstrada. Indcios de culpa in
omittendo que autorizam o prosseguimento da ao penal e exigem farta instruo
criminal, respeitados o contraditrio e a ampla defesa.
Impossvel a anlise aprofundada de provas, no augusto mbito do habeas
corpus, visando o trancamento de ao penal que apura a morte de jovem, por
afogamento, em circunstncias no esclarecidas, em confraternizao realizada para
nmero expressivo de pessoas, em que se atribui conduta culposa dos pacientes,
membros da comisso organizadora, pela falta dos cuidados e medidas necessrias
para festa de tamanha magnitude.
Se a denncia preenche os requisitos legais, descrevendo os indcios da
existncia de fato tpico e antijurdico que possa ter decorrido de conduta culposa
dos pacientes, na forma omissiva, no h que se falar em falta de justa causa para o
prosseguimento da ao penal, indemonstrada, desde logo, havendo necessidade de
apurao dos fatos em instruo criminal segura, observados os princpios do
contraditrio e da ampla defesa.
Writ indeferido.
Sustenta a impetrante, inicialmente, falta de justa causa para a instaurao
da ao penal, em face da ausncia do nexo de causalidade entre a morte da vtima e
alguma omisso penalmente relevante que possa ser atribuda ao paciente, sendo os
fatos narrados na denncia caluniosos e tendenciosos, pois alguns jamais ocorreram
e outros no condizem com a verdade.
Afirma, tambm, que "no houve quebra do dever de cuidado por parte do
paciente e de seus colegas, notadamente porque, diante das circunstncias, o evento
era imprevisvel" (fl. 12), sendo que a profundidade da piscina no apresentava risco
para qualquer pessoa adulta, a vtima recebeu os primeiros socorros imediatamente,
a dosagem alcolica em seu sangue no a impediria de ter reao para evitar o
afogamento e ela entrou na piscina por livre e espontnea vontade.
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Assevera, ainda, que "a condio de simples membro da Comisso de
Formatura insuficiente para impingir ao paciente a condio de acusado, pois seria
o estabelecimento de uma culpa em abstrato" (fl. 16), aduzindo que "no h ao
imputvel objetivamente ao paciente (teoria da imputao objetiva), pois a festa
realizada constitui um 'risco juridicamente irrelevante' e, mais que isso, um 'risco
permitido', que no tem qualquer nexo com o curso causal que levou ao resultado"
(fl. 22).
Alega, por outro lado, que a denncia inepta, pois no houve a
individualizao da participao de cada denunciado, no atendendo, portanto, s
exigncias do art. 41 do Cdigo de Processo Penal.
Ao final, requer, em sede de liminar, a suspenso da Ao Penal n 1182004,
com as audincias para interrogatrio marcadas para os dias 26 e 27 de setembro de
2005 e, no mrito, o seu trancamento definitivo.
O pedido formulado em sede de cognio sumria foi por mim deferido
para suspender o andamento da ao penal em relao a todos os denunciados,
membros da referida comisso de formatura, at o julgamento do mrito da presente
impetrao, dispensadas as informaes (fls. 460461).
O Ministrio Pblico Federal, por meio de parecer exarado pelo
Subprocurador-Geral da Repblica Durval Tadeu Guimares, opinou pela
denegao da ordem (fls. 467470).
o relatrio.
HABEAS CORPUS N 46.525 - MT (20050127885-1)
Ementa
Processual penal. Habeas corpus. Homicdio culposo. Morte por afogamento
na piscina. Comisso de formatura. Inpcia da denncia. Acusao genrica.
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Ausncia de previsibilidade, de nexo de causalidade e da criao de um risco no
permitido. Princpio da confiana. Trancamento da ao penal. Atipicidade da
conduta. Ordem concedida.
1. Afirmar na denncia que "a vtima foi jogada dentro da piscina por seus
colegas, assim como tantos outros que estavam presentes, ocasionando seu bito"
no atende satisfatoriamente aos requisitos do art. 41 do Cdigo de Processo Penal,
uma vez que, segundo o referido dispositivo legal, "A denncia ou queixa conter a
exposio do fato criminoso, com todas as suas circunstncias, a qualificao do
acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identific-lo, a classificao do
crime e, quando necessrio, o rol das testemunhas".
2. Mesmo que se admita certo abrandamento no tocante ao rigor da
individualizao das condutas, quando se trata de delito de autoria coletiva, no
existe respaldo jurisprudencial para uma acusao genrica, que impea o exerccio
da ampla defesa, por no demonstrar qual a conduta tida por delituosa,
considerando que nenhum dos membros da referida comisso foi apontado na pea
acusatria como sendo pessoa que jogou a vtima na piscina.
3. Por outro lado, narrando a denncia que a vtima afogou-se em virtude da
ingesto de substncias psicotrpicas, o que caracteriza uma autocolocao em risco,
excludente da responsabilidade criminal, ausente o nexo causal.
4. Ainda que se admita a existncia de relao de causalidade entre a
conduta dos acusados e a morte da vtima, luz da teoria da imputao objetiva,
necessria a demonstrao da criao pelos agentes de uma situao de risco no
permitido, no-ocorrente, na hiptese, porquanto invivel exigir de uma Comisso
de Formatura um rigor na fiscalizao das substncias ingeridas por todos os
participantes de uma festa.
5. Associada teoria da imputao objetiva, sustenta a doutrina que vigora o
princpio da confiana, as pessoas se comportaro em conformidade com o direito, o
que no ocorreu in casu, pois a vtima veio a afogar-se, segundo a denncia, em
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virtude de ter ingerido substncias psicotrpicas, comportando-se, portanto, de
forma contrria aos padres esperados, afastando, assim, a responsabilidade dos
pacientes, diante da inexistncia de previsibilidade do resultado, acarretando a
atipicidade da conduta.
6. Ordem concedida para trancar a ao penal, por atipicidade da conduta,
em razo da ausncia de previsibilidade, de nexo de causalidade e de criao de um
risco no permitido, em relao a todos os denunciados, por fora do disposto no art.
580 do Cdigo de Processo Penal.
VOTO
Ministro Arnaldo Esteves Lima(Relator):
Busca o Ministrio Pblico a responsabilizao criminal dos membros da
Comisso de Formatura mencionada no relatrio, da qual faz parte o paciente, sob a
alegao de que no foram diligentes e no obedeceram s normas de segurana
necessrias para a realizao da festa de confraternizao do Curso de Medicina da
Universidade de Cuiab, onde havia cerca de setecentas pessoas, concorrendo,
assim, para o resultado morte da vtima.
Narra a denncia que:
H indcios nos autos que revelam que a vtima foi jogada dentro da piscina
por seus colegas, assim como tantos outros que estavam presentes, ocasionando seu
bito.
Sabe-se tambm que os acusados disponibilizaram para os participantes da
festa grande quantidade de bebidas alcolicas, sem o menor controle, assim como
substncias ilcitas, entorpecentes e psicotrpicas, agindo com imprudncia e
negligncia.
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Outrossim, tambm no se preocuparam em obter alvar de autorizao,
necessrio nos casos de realizao de eventos de grande magnitude, visto que
estavam presentes na festa cerca de 700 pessoas.
O crime em comento deve ser enquadrado como crime de homicdio na
modalidade culposa, onde todos os representantes da comisso de realizao de
eventos deram causa ao resultado por imprudncia e negligncia (art. 18, II, CP).
Inicialmente, penso que a afirmao contida na denncia de que "a vtima foi
jogada dentro da piscina por seus colegas, assim como tantos outros que estavam
presentes, ocasionando seu bito", no atende satisfatoriamente aos requisitos do art.
41 do Cdigo de Processo Penal, uma vez que, segundo o referido dispositivo legal,
"A denncia ou queixa conter a exposio do fato criminoso, com todas as suas
circunstncias, a qualificao do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa
identific-lo, a classificao do crime e, quando necessrio, o rol das testemunhas".
Ainda que se admita certo abrandamento no tocante ao rigor da
individualizao das condutas, quando se trata de delitos de autoria coletiva, no
existe respaldo jurisprudencial para uma acusao genrica, que impea o exerccio
da ampla defesa, por no demonstrar qual a conduta tida por delituosa,
considerando que nenhum dos membros da referida comisso foi apontado na pea
acusatria como sendo pessoa que jogou a vtima na piscina.
Nesse sentido so os seguintes precedentes deste Superior Tribunal:
Habeas corpus. Direito processual penal. Crimes contra o meio ambiente.
Trancamento da ao penal. Inpcia da denncia e falta de justa causa parciais.
Ocorrncia.
1. A denncia que, em parte, sobre desatender o artigo 41 do Cdigo de
Processo Penal, no descrevendo a conduta de cada qual dos denunciados, vem
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desacompanhada de um mnimo de prova que lhe assegure a viabilidade, autoriza e
mesmo determina o julgamento de falta de justa causa para a ao penal.
2. Ordem parcialmente concedida. (HC 37.695SP, Rel. Min. Hamilton
Carvalhido, Sexta Turma, DJ de 2692005, p. 464)
Habeas corpus. Direito processual penal. Nulidade. Inpcia da denncia.
Caracterizao.
1. A denncia, na letra do artigo 41 do Cdigo de Processo Penal, deve
conter "a exposio do fato criminoso, com todas as suas circunstncias, a
qualificao do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identific-lo, a
classificao do crime e, quando necessrio, o rol das testemunhas."
2. Violado o estatuto legal de sua validade, pela imputao de participao
isolada, vaga e indefinida, incluidamente estranha s demais acusaes deduzidas,
que impede o exerccio do direito de defesa constitucionalmente assegurado
(Constituio da Repblica, artigo 5, inciso LV), de se ter como manifesto o vcio
que grava a denncia, compromete o processo e obsta o prosseguimento da ao
penal.
3. Ordem concedida. (HC 17.877PB, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, Sexta
Turma, DJ de 1022003, p. 235)
Criminal. HC. Peculato e corrupo passiva. Inpcia da denncia.
Deficincia evidenciada. Liame entre o paciente e as condutas apontadas como
ilcitas no apontado. Ordem concedida.
No obstante o entendimento de que, na hiptese de concurso de agentes,
prescindvel a exata individualizao das condutas dos envolvidos, no se pode
aceitar acusao fundada, basicamente, na condio de delegado do paciente,
poca dos fatos apurados, sem a indicao de consistente liame entre o paciente e as
condutas apontadas como ilcitas.
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Evidenciando-se o apontado prejuzo defesa, que se sujeitava a vagas
acusaes, deve ser reconhecida a inpcia da denncia no que concerne ao paciente.
Ordem concedida para trancar a ao penal em relao ao paciente, por
inpcia da denncia. (HC 16.924SP, Rel. Min. GILSON DIPP, Quinta Turma, DJ de
22102001, p. 340)
Penal. Processual. Ao penal. Falta de justa causa. Inpcia da denncia.
Habeas corpus concedido pela origem. Exame de fatos e provas. Recurso especial.
1. inepta a denncia que, deixando de descrever a conduta do acusado,
bem como os fatos supostamente tpicos a ele imputados, inviabiliza o pleno
exerccio do direito constitucional da ampla defesa.
2. Pretenso de exame de provas estranha ao mbito do Recurso Especial.
Incidncia da Smula 07STJ.
3. Recurso Especial no conhecido. (REsp 201.259SP, Rel. Min. EDSON
VIDIGAL, Quinta Turma, DJ de 2782001, p. 367)
Por outro lado, nos termos do art. 13 do Cdigo Penal, "o resultado, de que
depende a existncia do crime, somente imputvel a quem lhe deu causa",
entendendo-se esta como a "ao ou omisso sem a qual o resultado no teria
ocorrido".
Desse modo, uma vez identificado o resultado, no caso, a morte da vtima,
que constitui elemento indispensvel formulao tpica do homicdio culposo,
imprescindvel relacion-lo com a ao realizada pelo agente, mediante um vnculo
causal, cuja ausncia acarreta a impossibilidade de imputao.
Na hiptese dos autos, no restou demonstrada a presena do nexo de
causalidade na acusao feita pelo Ministrio Pblico, no sentido de que os
denunciados so responsveis pelo homicdio culposo ocorrido, por no terem sido
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diligentes, deixando supostamente de obedecer s normas de segurana necessrias
para a realizao da festa.
A ausncia do nexo causal se confirma na assertiva constante da prpria
denncia, ao dizer que, "considerando-se a profundidade, altura e o biotipo da
vtima, a percia concluiu tambm que a piscina no apresentava riscos para uma
pessoa em condies normais independentemente de saber ou no nadar, assim
como as condies apresentadas pela vtima baseadas na dosagem alcolica no
impediriam a mesma de reagir para evitar o afogamento, concluindo que a mesma
afogou-se em virtude de ter ingerido substncias psicotrpicas" (fls. 6566).
Portanto, infere-se da narrao da pea inicial acusatria que houve
consentimento do ofendido na ingesto de substncias psicotrpicas. Em casos
tais, ocorre a excluso da responsabilidade, pois se trata de autocolocao em risco,
consoante afirma abalizada doutrina (D'VILA, Fbio Roberto. Crime Culposo e a
Teoria da Imputao Objetiva. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 71).
Desse modo, o fato de a vtima ter vindo a bito em razo da ingesto de
substncias psicotrpicas no tem relao direta com a conduta dos acusados, o que
afasta a possibilidade de aplicao da teoria da imputao objetiva.
oportuno ressaltar as palavras do 2 voto vogal integrante do acrdo (fl.
440):
Portanto, nesse aspecto h que se dizer que se a vtima sofreu o acidente
porque estava drogada, infelizmente o fez spont prpria, no havendo qualquer
elemento nos autos que pudesse incriminar ao menos um dos membros daquela
infeliz Comisso de Formatura! De se ressaltar ainda que nem mesmo que a vtima
estava drogada se pode afirmar, porque a percia no realizou o exame de urina
necessrio para se verificar se ela se utilizara ou no de drogas. Eis o laudo pericial:
"Em funo da falta de um histrico clnico e da coleta de urina (exame de uso de
substncia psicotrpica) da vtima, no foi possvel identificar a causa do
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afogamento nas condies existentes" (fls. 102). E a culpa de tal exame no ser
realizado no dos pacientes. Nesse aspecto tambm a concluso : se frasco de
lana perfume foi encontrado no local, que culpa teria a comisso? Ser que se
esperaria que os pacientes ficassem na portaria fazendo revista nos convidados para
apreender possveis drogas? isso que se espera de uma Comisso de Formatura?
Com todo o respeito a resposta no! Ento, quem trouxe a droga? Se ao menos uma
das testemunhas ouvidas houvesse apontado um membro, pelo menos, da comisso,
ainda poderamos falar de indcios. Mas isso no ocorreu. Ento, se a droga foi
motivo da morte da vtima, e tambm isso no se sabe, que nexo de causalidade
haveria entre a conduta dos estudantes e o fato em si? Nenhum...
Segundo leciona Damsio de Jesus, "A imputao objetiva requer uma
relao direta entre a conduta e o resultado, e que a afetao jurdica se encontre em
posio de homogeneidade com o comportamento primitivo, inexistindo quando
aquele (evento) vem a ser causado, em fase posterior, pelo prprio sujeito passivo,
terceiro ou fora da natureza (resultado tardio)" (O risco de tomar uma sopa. Revista
Sntese de Direito Penal e Processual Penal, n 16, out-nov2002, p. 11).
No mesmo sentido:
... necessrio precisar se h uma relao de risco entre a conduta e o
resultado produzido, i. e., h que se determinar, sob o aspecto normativo, se o risco
criado pelo sujeito o mesmo que se realizou na produo do resultado, ou, em
outros termos, se o evento pode ser explicado pela violao da norma de cuidado,
uma vez que, se a norma infringida no guarda relao com o resultado, este no
imputvel. Se no existe a relao risco-resultado, a questo se resolve em termos de
tentativa ou atipicidade. Com outras palavras, indeclinvel a verificao ex post
facto se o fim de proteo da norma incriminadora violada tinha realmente a
destinao de impedir a produo de um resultado normativo como o provocado
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pelo agente. O evento jurdico deve ser plasmado pelo risco causado pelo autor. Se
produzido por outros riscos, como pela conduta de um terceiro, pela prpria vtima
ou por fora da natureza, h excluso da imputao objetiva" (Daz, Claudia Lpez.
Introducion a la imputacin objetiva. Bogot: Centro de Investigaciones de Derecho
Penal y Filosofia del Derecho, Universidad Externado de Colombia, 1996, p. 49 e 174.
Apud JESUS, Damsio de. O risco de tomar uma sopa. Revista Sntese de Direito
Penal e Processual Penal, n 16, out-nov2002, p. 11)
Ainda que se admita a existncia de relao de causalidade entre a conduta
dos acusados e a morte da vtima, luz da teoria da imputao objetiva, necessria
a demonstrao da criao pelos agentes de uma situao de risco no permitido,
no-ocorrente, na hiptese, uma vez que invivel exigir de uma Comisso de
Formatura um rigor na fiscalizao das substncias ingeridas por todos os
participantes de uma festa.
Ademais, uma eventual falta de atendimento aos pressupostos necessrios
para a organizao da festa por parte da Comisso de Formatura est fora dos
limites do que a doutrina denomina de risco juridicamente relevante, caracterizando
um risco permitido, isto , um risco geral da vida, pois, conforme registrado no
primeiro voto vogal, " fato corriqueiro, de todos sabido, que h uso e abuso de
substncias entorpecentes nas festas promovidas por jovens, inclusive e
principalmente no mbito universitrio, em todo o pas" (fl. 447).
Portanto, de acordo com Selma Pereira de Santana:
... a tradicional observao da relao causal naturalstica passa a constituir o
primeiro momento na apurao da imputao objetiva. Uma vez constatado o
vnculo causal, o passo seguinte ser a verificao da existncia de critrios de
natureza normativa, consistentes eles na criao ou incremento de um perigo no
permitido, que se materializa na leso a um bem juridicamente tutelado, dentro do
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alcance do tipo, uma vez que as normas s podem coibir condutas que gerem ou
aumentem riscos no permitidos a bens juridicamente tutelados (Atualidades do
delito culposo. Boletim IBCCrim, So Paulo, vol. 10, n. 114, p. 6, maio 2002. Apud
JESUS, Damsio de. Momento de verificao da presena da imputao objetiva. In
Revista do Tribunal Regional Federal da 1 Regio, n 02, ano 16, fev.2004, p. 37).
Ainda como ensina Claus Roxin:
...a imputao ao tipo objetivo pressupe que no resultado se tenha realizado
precisamente o risco proibido criado pelo autor. Por isso, est excluda a imputao
objetiva, em primeiro lugar, se, ainda que o autor tenha criado um perigo para o
bem jurdico protegido, o resultado normativo produziu-se, no como efeito desse
perigo, mas sim em conexo casual com o mesmo. (Derecho Penal: Parte Geral, v. I,
p. 373. Apud JESUS, Damsio de. O risco de tomar uma sopa. Revista Sntese de
Direito Penal e Processual Penal, n 16, out-nov2002, p. 11)
Associada teoria da imputao objetiva, sustenta tambm a doutrina que
vigora o princpio da confiana, segundo o qual as pessoas se comportaro em
conformidade com o direito, enquanto no existirem pontos de apoio concretos em
sentido contrrio, os quais no seriam de afirmar-se diante de uma aparncia
suspeita (pois se trata de um critrio vago, passvel de aleatrias interpretaes), mas
s diante de uma reconhecvel inclinao para o fato. (ROXIN, Claus. Teoria da
Imputao Objetiva. In Revista Brasileira de Cincias Criminais, ano n 9, abril-junho
de 2002, Ed. Revista dos Tribunais, pp. 11-31, p. 14)
Desse modo, no caso concreto, no poderia a Comisso de Formatura prever
o comportamento da vtima, que, conforme consta da prpria denncia, somente
veio a afogar-se acidentalmente em virtude de ter ingerido substncias psicotrpicas,
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comportando-se de forma contrria ao direito, inexistindo indicao na denncia de
que aparentemente isso pudesse ser antevisto.
De outro ngulo, vale destacar a doutrina do j citado professor Claus Roxin,
o qual sustenta que s imputvel aquele resultado que pode ser finalmente
previsto e dirigido pela vontade. Logo, os resultados que no forem previsveis ou
dirigveis pela vontade no so tpicos. "Equipara-se a possibilidade de domnio
atravs da vontade humana (finalidade objetiva) criao de um risco juridicamente
relevante de leso tpica de um bem jurdico. Esse aspecto independente e anterior
aferio do dolo ou da culpa". (Apud PRADO, Luiz Regis. Teoria da Imputao
Objetiva do Resultado: Uma Abordagem Crtica. Revista dos Tribunais, ano 91, vol.
798, abril de 2002, pp. 447448).
Assim, luz da citada doutrina, antes e independentemente de se aferir a
culpa dos denunciados, constata-se a inexistncia de previsibilidade do resultado,
o que acarreta a atipicidade da conduta e o conseqente trancamento da ao
penal.
A matria j foi tratada por esta Corte em caso semelhante, assim ementado:
Recurso em habeas corpus. Homicdio culposo. Afogamento. Culpa
presumida e responsabilidade penal objetiva. Inexistncia. Trancamento da ao
penal. Recurso provido.
A responsabilidade penal de carter subjetivo, impedindo o brocardo
nullun crimen sine culpa que se atribua prtica de crime a presidente de clube social e
esportivo pela morte, por afogamento, de menor que participava de festa privada de
associada e mergulhou em piscina funda com outros colegas e com pessoas adultas
por perto. Inobservncia de eventual disposio regulamentar que no se traduz em
causa, mas ocasio do evento lesivo.
Recurso provido. (RHC 11.397SP, Rel. Min. Jos Arnaldo da Fonseca, Quinta
Turma, DJ de 29102001, p. 219)
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Pelo exposto, concedo a ordem impetrada para trancar a ao penal em
relao a todos os denunciados, com base no art. 580 do Cdigo de Processo Penal,
em razo da inpcia da denncia, por fazer acusao sem um mnimo de
individualizao das condutas dos acusados, bem como em razo da atipicidade da
conduta narrada, pela ausncia de previsibilidade, de nexo de causalidade e de
criao pelos pacientes de um risco no permitido.
como voto.3
3 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponvel em: < http://www.stj.gov.br/SCON/jurisprudencia/ doc.jsp?livre=46525&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=2>. Acesso em: 12 ago. 2008.
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INTRODUO
No julgamento do Habeas Corpus n 46.525, o Superior Tribunal de Justia
trancou ao penal que tramitava contra integrantes da Comisso de Formatura do
Curso de Medicina da Universidade de Cuiab (UNIC), pela prtica, em tese, de
homicdio culposo. Na exordial acusatria, abordou-se que havia indcios de que a
vtima fora jogada na piscina por seus colegas e que os acusados no foram
diligentes e no obedeceram s normas de segurana necessrias para a realizao
do evento.
O acrdo traz uma vasta fundamentao doutrinria e jurisprudencial. E a
sua anlise possibilita uma discusso atual e necessria sobre importantes institutos
do direito penal e processual penal.
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2 DENNCIA VAGA E IMPRECISA: AGRESSO AO ART. 41 DO CDIGO DE
PROCESSO PENAL E AOS PRINCPIOS DO DEVIDO PROCESSO LEGAL, DA
AMPLA DEFESA E DO CONTRADITRIO
Em um primeiro momento, analisou-se, com acuidade, a problemtica da
acusao genrica. Nesse contexto, trancou-se a ao penal ao constatar-se que a
denncia desrespeita o art. 41 do Cdigo de Processo Penal e inviabiliza o exerccio
da ampla defesa.
O art. 41 da Lei Adjetiva Penal prev que a inicial acusatria conter,
sempre, a exposio do fato criminoso, com todas as suas circunstncias, a
qualificao do acusado ou esclarecimento pelos quais se possa identific-lo, a
classificao do crime e, quando necessrio, o rol de testemunhas.
A forma verbal utilizada pelo Legislador nesse dispositivo (conter) indica o
carter cogente da norma processual. , portanto, vedado o oferecimento de
denncias que no demonstrem a conduta tida como delituosa.
Apenas uma descrio detalhada do fato criminoso na pea vestibular
possibilita o devido processo legal de garantias e o exerccio do contraditrio e da
ampla defesa. E isso no ocorreu no caso ora em anlise. A denncia recaiu sobre
uma pluralidade de sujeitos (os integrantes da Comisso de Formatura) sem
descrever minimamente a participao de cada um. Nessa senda, foi adequado o
trancamento da ao penal pelo Superior Tribunal de Justia, evitando-se o
prosseguimento de uma ao temerria que afrontava gravemente os postulados
processuais constitucionais no Estado Democrtico de Direito.
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3 A ATIPICIDADE DA CONDUTA E A TEORIA DA IMPUTAO OBJETIVA
Em um segundo momento, analisou-se a atipicidade da conduta narrada na
exordial acusatria. Aqui, verifica-se a maior vantagem do acrdo, qual seja, trazer
a discusso sobre a moderna doutrina da imputao objetiva para os Tribunais
Superiores brasileiros4.
Como cedio, desde a edio da Lei n 7209/84, responsvel pela reforma
na Parte Geral do Cdigo Penal, a doutrina majoritria afirma que o finalismo a
teoria adotada pelo Ordenamento Jurdico Brasileiro. Esta teoria constitui-se, vale
dizer, em verdadeira ferramenta de sistematizao do direito penal e representa um
progresso com relao ao causalismo.
Diversos juristas entendem que a adoo do finalismo inviabiliza a aplicao
da teoria da imputao objetiva5. Ocorre que, giza-se, o intrprete no est adstrito
ao comprometimento do Legislador com esta ou aquela doutrina, no havendo,
portanto, bice para aplicao da teoria da imputao objetiva no Ordenamento
Jurdico Brasileiro. Ademais, so as tcnicas interpretativas da realidade que
conduzem a atividade legiferante (e judicante) e no o contrrio, sob pena de se
estagnar o desenvolvimento jurdico-acadmico e, conseqentemente, scio-cultural.
Mais, a teoria finalista e a da imputao objetiva no so incompatveis. Esta
corrige" aquela. A teoria da imputao objetiva reformula a tipicidade objetiva
consagrada pelo finalismo, ameniza o rigor da teoria da equivalncia dos
4 Importante salientar que a deciso no necessitaria adentrar na discusso acerca dos axiomas que norteiam a teoria da imputao objetiva. Isso porque a atipicidade da conduta flagrante pela ausncia de culpa por parte dos denunciados, o que fundamental para a consolidada teoria finalista (culpa, tecnicamente, caracteriza-se pela ausncia de previsibilidade subjetiva de um resultado objetivamente previsvel, situao que, in casu, resta totalmente afastada, haja vista a impossibilidade de previso do resultado por parte dos denunciados e de qualquer pessoa consciente). Entretanto, exatamente a que reside a importncia da deciso. Rompendo com paradigmas at ento absolutos, o julgamento do presente habeas corpus inaugura, ao menos de forma cristalina, a recepo da moderna teoria da imputao objetiva pelos Tribunais Superiores brasileiros. 5 Neste sentido: TJRS, Embargos de Declarao n 70018883355, 2 Cmara Criminal, rel. Marco Aurlio de Oliveira Canosa, Julgado em 09/08/2007 TJRS, Apelao Crime n 70009953985, 2 Cmara Criminal, rel. Marco Aurlio de Oliveira Canosa, j. em 30/11/06.
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antecedentes causais e exige, para o tipo objetivo, alm da conexo naturalstica, a
necessidade de que essa conexo, segundo critrios de poltica criminal, seja
imputada ao sujeito como obra sua. Nesse contexto, a teoria da imputao objetiva
d inegvel seguimento linha evolutiva garantista que se exterioriza nos degraus
galgados desde Beling, com a insero do tipo penal de garantia (tipo descritivo),
passando por Mayer (ratio cognoscendi) e Mezger (ratio essendi), at a insero do
elemento finalstico da ao por obra de Welzel (positivismo teleolgico).
Com isso, para esta doutrina ps-finalista, nem todo o processo causal
interessa ao Direito Penal e nem todo o nexo causal implica um nexo jurdico. A
tradicional anlise mecnico-natural passa a constituir apenas o primeiro momento
na apurao da imputao objetiva: presente o vnculo causal, parte-se para um
segundo momento, em que se verifica a existncia de critrios eminentemente
normativos6. Em outras palavras, a constatao da causalidade um limite mnimo,
mas no suficiente, para a anlise da tipicidade, o que se mostra extremamente
pertinente e necessrio na atual sociedade comunicacional, de riscos maximizados e
inerentes s atividades humanas cotidianas.
Falta, ainda, verdade, um lineamento preciso quanto aos elementos
fundamentais da teoria. Verificam-se importantes divergncias entre os seus
principais defensores, e isso dificulta a aplicao de seus institutos, gerando
instabilidade doutrinria e jurisprudencial. Na deciso ora em anlise, confirmando
o diagnstico, explicitam-se a falta de sistematicidade, a confuso entre os
postulados da teoria da imputao objetiva e da teoria finalista e, principalmente, a
confuso aplicativa dos prprios institutos reitores da teoria da imputao objetiva.
Destaca-se, contudo, que se concorda com a deliberao final, qual seja, a
atipicidade da conduta narrada na exordial acusatria. Apesar disso, discutir-se- a
melhor forma de tratar os institutos dessa teoria que, de certo modo, reestruturou o
prprio conceito analtico de crime. No se pretende (apenas) fomentar discusso de
6 D'VILA, Fbio Roberto. Crime Culposo e a Teoria da Imputao Objetiva. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 41.
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mero academicismo penal; visa-se, especialmente, a possibilitar o influxo de idias
que tornem o direito aplicado um instrumento mais gil e justo em futuras decises,
capaz de fazer de cada causa jurdica uma verdadeira luta poltica7 de
reconhecimento do direito fundamental ao processo justo e de vedao da
responsabilizao objetiva do direito penal do autor, de tristes lembranas.
O ideal analisar a imputao objetiva sob o ngulo da imputao do
comportamento e do resultado8. Aquela consiste em comprovar que a conduta
responde aos parmetros normativos gerais do tipo objetivo. Essas caractersticas
gerais concretizam-se em trs instituies dogmticas, a saber: risco permitido,
proibio de regresso e imputao ao mbito de responsabilidade da vtima.
Entende-se que elas no podem ser analisadas isoladamente, mas sim em
verdadeiras escalas sucessivas. A ordem de exame, como alerta Cncio Meli,
responde a uma classificao progressiva do mais genrico ao mais especfico; eis
que, em cada uma das instituies, vo se inserindo mais dados do contexto do
comportamento analisado. A comprovao sucessiva dessas escalas conduz, em caso
negativo (no h risco permitido, nem proibio de regresso e nem imputao ao
mbito de responsabilidade da vtima), afirmao da tipicidade do
comportamento9 .
Uma vez verificada a tipicidade da conduta, deve-se averiguar se o resultado
produzido normativamente imputvel ao sujeito como obra sua. Verifica-se, aqui,
se o resultado est no mbito de proteo da norma.
7 BAUMAN, Zigmunt. Comunidade: a busca por segurana no mundo atual. Traduo de Plnio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p. 73 e ss. 8 Conforme referido, a teoria da imputao objetiva no apresenta linearidade entre seus principais autores. Claus Roxin entende que tudo converge imputao do resultado. Gnther Jakobs e Cncio Meli, por sua vez, conferem maior importncia imputao do comportamento. Nesse sentido, conferir: ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. Trad. Lus Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. JAKOBS, Gnther. A imputao objetiva no Direito Penal. Trad: Andr Luis Callegari. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. MELI, Manuel Cncio e CALLEGARI, Andr Luis. Aproximao Teoria da Imputao Objetiva no Direito Penal. Revista da AJURIS. Porto Alegre, ano XXXI, n 95, set. 2004, p. 341 364, p. 347 9 MELI, Manuel Cncio e CALLEGARI, Andr Luis. Op. cit., p. 347
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Apenas depois disso, devem ser analisados os elementos subjetivos do tipo.
A imputao objetiva, ressalta-se, no prescinde da anlise desses elementos.
Reconhece-se, apenas, que o problema valorativo anterior teoria do dolo e da
culpa. A m inteno do sujeito no relevante, nesta teoria, enquanto no haja a
realizao de um tipo penal objetivo, caracterizado, reitera-se, pela produo ou
incremento de um risco no permitido ou no tolerado pelo ordenamento
jurdico e realizao desse risco no resultado efetivamente causado.
Na deciso, essa sistemtica no foi observada, o que dificulta, em parte, o
entendimento dos argumentos trazidos e pode ter gerado alguma confuso entre os
institutos. Aps citar-se que no foi demonstrado o nexo de causalidade entre a
conduta narrada e o resultado produzido, referiu-se que a vtima pode ter se
autocolocado em risco, pois possivelmente ingerira substncias psicotrpicas.
Abordou-se que o fato de ter vindo a bito em razo da ingesto das substncias
psicotrpicas no tem relao direta com a conduta dos acusados.
A fundamentao vlida, mas, ressalta-se, apenas porque os jovens no
foram acusados de ter jogado a vtima na piscina. A acusao limitou-se falta de
diligncia e de obedincia s normas de segurana necessrias para a realizao do
evento.
O instituto de autocolocao em perigo (ou atribuio ao mbito de
responsabilidade da vtima) opera nos casos em que o titular de um bem jurdico
(vtima) empreende conjuntamente com outro (autor) uma atividade que pode
gerar a leso deste bem. A relevncia do comportamento da vtima decorre do
direito liberdade, constitucionalmente consagrado no art. 5, II.
A doutrina refere que essa autonomia acarreta uma preferente atribuio de
responsabilidade em relao aos possveis danos causados a seus bens e interesses10.
Em outras palavras, quando as conseqncias so assumidas volitiva e
integralmente pelo prprio agente que as padece, mediante sua prpria conduta, no
10 KREBS, Pedro. Teoria jurdica do delito: noes introdutrias: tipicidade objetiva e subjetiva. Barueri, SP: Manole, 2006. p. 140-143.
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se deve imputar essas conseqncias quele que tenha participado na criao ou
incremento do risco11.
Nesse contexto, mesmo que restassem provados o nexo causal e a criao de
um risco pelos acusados, a vtima teria atribuio preferente de responsabilidade,
pois provavelmente utilizara substncias entorpecentes. Reitera-se que, se os jovens
fossem acusados do constrangimento de atirar a vtima na piscina, tornar-se-iam
garantes e assumiriam um dever de proteo. Nesta hiptese, a imputao ao mbito
de responsabilidade da vtima no seria legtima12.
Posteriormente, referiu-se, no acrdo, que os acusados no criaram um
risco no permitido, uma vez que invivel exigir de uma Comisso de Formatura
um rigor na fiscalizao das substncias ingeridas por todos os participantes de uma
festa. Ademais, fato corriqueiro, de todos sabido, que h uso e abuso de
substncias entorpecentes promovidas por jovens, inclusive e principalmente no
mbito universitrio em todo o pas.
De forma aparentemente contraditria com a afirmao acima transcrita,
aplicou-se, na deciso, o princpio da confiana. Aduziu-se que, no caso concreto,
no poderia a Comisso de Formatura prever o comportamento da vtima, que,
conforme consta da prpria denncia, somente veio a afogar-se acidentalmente em
virtude de ter ingerido substncias psicotrpicas, comportando-se de forma
contrria ao direito, inexistindo indicao na denncia de que aparentemente isso
pudesse ser antevisto..
O princpio da confiana significa que, apesar da experincia de que outras
pessoas cometem erros, se autoriza a confiar em seu comportamento correto, desde
que no existam indcios de que assim no ir ocorrer. E, de acordo com a premissa
do acrdo (de que normal a utilizao de substncias entorpecentes), havia
indcios de que a vtima (e todos os demais participantes da festa) poderiam usar
drogas.
11 TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000. p. 232-233. 12 MELI, Manuel Cncio e CALLEGARI, Andr Luis. Op. cit., 353-354
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Ora, ou corriqueira a utilizao de substncias entorpecentes e era
provvel que a vtima utilizasse, ou no corriqueira e no era provvel a utilizao
pela vtima. Neste ponto, o acrdo parece ter pecado pela falta de coerncia.
Refora-se, contudo, que isso no ocorreu pelo fato de no haver, na denncia,
descrio da participao dos membros da comisso no fato que ocasionou a morte
da vtima.
Por fim, a deciso trata, ainda, da previsibilidade da conduta, que atinente
aos elementos subjetivos do tipo. Em sendo verificadas excludentes da tipicidade
objetiva, a teoria da imputao objetiva prescinde dessas discusses.
Em suma, pareceu acertada a concluso acerca da ausncia de nexo causal
entre a conduta e o resultado. Em havendo esse nexo, a melhor soluo a
imputao ao mbito de responsabilidade da vtima, sendo inadequadas as
discusses acerca do princpio da confiana e dos elementos subjetivos do tipo.
Por fim, importa ressaltar que somente o debate jurdico, poltico e
acadmico ser capaz de minimizar as objees teoria ps-finalista da imputao
objetiva, de inegvel contribuio teoria do delito. Por certo, a jurisprudncia
ptria sobre o tema ainda est em fase embrionria, tecendo consideraes iniciais
sobre o assunto. Entretanto, imperioso evoluir, fazendo-se abordagens mais amplas
capazes de encampar o verdadeiro ideal de desvalor do resultado, to caro aos
imperativos de liberdade na sociedade de riscos (ps)moderna.
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4 REFERNCIAS
BAUMAN, Zigmunt. Comunidade: a busca por segurana no mundo atual. Traduo de Plnio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponvel em: < http://www.stj.gov.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=46525&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=2>. Acesso em: 12 ago. 2008. D'VILA, Fbio Roberto. Crime Culposo e a Teoria da Imputao Objetiva. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. JAKOBS, Gnther. A imputao objetiva no Direito Penal. Trad: Andr Luis Callegari. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. KREBS, Pedro. Teoria jurdica do delito: noes introdutrias: tipicidade objetiva e subjetiva. Barueri, SP: Manole, 2006. MELI, Manuel Cncio e CALLEGARI, Andr Luis. Aproximao Teoria da Imputao Objetiva no Direito Penal. Revista da AJURIS. Porto Alegre, ano XXXI, n 95, set. 2004, p. 341 364. ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. Trad. Lus Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000.
Enviado: 28/08/08 Aceito: 31/12/08 Publicado: 31/12/08