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Análise EuropeiaREVISTA DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE ESTUDOS EUROPEUS
ISSN
21
83-
95
65
● E
SSN
21
83
-80
2X
Maio 2017 | Volume II | Número 3
Análise Europeia REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE ESTUDOS EUROPEUS
Análise Europeia
Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus
Volume II | Número 3
Disponível em: http://www.apeeuropeus.com/revista
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Depósito Legal: 407079/16
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ESSN: 2183-802X
Lisboa: Associação Portuguesa de Estudos Europeus, maio de 2017
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uma ligação de todos os artigos publicados nesta revista, sem pedir autorização prévia da
editora ou do autor. A utilização ou reprodução de fotografias individuais deverá ser autorizada
diretamente pelos titulares dos direitos de autor.
CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS
Capa (de cima para baixo): “An HDR of Foro Romano”, 2012. Ruínas do Fórum Romano, em
Roma, Itália – Viplav Nigam/Flickr; Assinatura do Tratado de Roma, a 25 de março de 1957 –
autor desconhecido/União Europeia. Página 10: John Bruton toma posse como primeiro-
ministro da República da Irlanda, a 15 de dezembro de 1994 – RTÉ Archives.
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ANÁLISE EUROPEIA
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David Gil Gonçalves
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João Moreira
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Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 5
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Fac. Letras – Universidade de Lisboa
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Design gráfico
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Estatuto Editorial
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ESTATUTO EDITORIAL
A revista Análise Europeia foi fundada em 2016 pela Associação Portuguesa de Estudos
Europeus, que detém a sua propriedade e demais direitos de edição e publicação. A
sua fundação nasceu da vontade de criar uma revista científica portuguesa dedicada,
exclusivamente, aos Estudos Europeus, considerando as suas variadas vertentes
enquanto área científica. Assim, a Análise Europeia oferece um espaço, no meio
académico, a todos os alunos, investigadores e professores que desejem publicar os
seus trabalhos de investigação na área dos Estudos Europeus, contribuindo para a
promoção, dignificação e avanço científico da mesma.
A Análise Europeia pretende contribuir para o desenvolvimento da investigação
científica, a promoção de uma reflexão e discussão aprofundada sobre as metodologias
dessa mesma investigação, e a divulgação de informação e conhecimento no âmbito
dos Estudos Europeus. A Análise Europeia visa proporcionar um fórum para o diálogo
multidisciplinar e interdisciplinar de ideias e um quadro de análises teóricas e
empíricas, cobrindo os seguintes tópicos de investigação: História da Integração
Europeia, Filosofia Política e a Ideia de Europa, Economia e Políticas Públicas da União
Europeia, Desenvolvimento e Coesão Social na Europa, Direito da União Europeia,
Demografia e Movimentos Migratórios na Europa, Multilinguismo e Política Linguística
na Europa, a União Europeia no Contexto Internacional, Arte e Cultura Europeia e
Portugal na União Europeia.
A Análise Europeia pretende ser um fórum permanente de discussão, debate e reflexão
sobre a realidade europeia, dando lugar à crítica científica e fundamentada, acolhendo
os trabalhos de alunos, investigadores e professores que se comprometam com o
progresso científico dos Estudos Europeus. A Análise Europeia pauta-se pelos normais
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 7
padrões internacionais de edição, submetendo as propostas de publicação à
arbitragem científica de avaliadores conceituados.
A Análise Europeia é uma publicação semestral, independente e livre, que se identifica
com os mais elevados valores europeus, o respeito pela verdade científica, pela
liberdade de imprensa e pelos princípios deontológicos e a ética profissional, assim
como pela boa fé dos leitores. A Análise Europeia é publicada em suporte digital e de
forma gratuita, contribuindo, desta forma, para uma mais eficaz difusão e promoção
dos Estudos Europeus como área científica, em linha com a sua defesa pelo acesso livre
e universal do conhecimento. Defende, ainda, o pluralismo de opinião, sem prejuízo
desta representar as posições da sua editora, a Associação Portuguesa de Estudos
Europeus.
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 8
ÍNDICE
EDITORIAL
Roma
Pedro Camacho 11
MENSAGEM DO PRESIDENTE DA APEE
Europeístas e otimistas
António Santos 15
ARTIGOS
A estrutura organizacional do Diálogo Energético UE-Rússia:
Uma arquitetura eficaz?
Pedro Camacho
18
União Europeia: Uma breve história do futuro para um
governo dos bens comuns europeu
António Covas
56
Por uma nova responsividade na União Europeia: Repensar a
relação com os cidadãos europeus
David Gil Gonçalves
79
A União Europeia num mundo em mudança: Era Trump 2.0?
Marco Martins 93
A democracia portuguesa e a Europa democrática. Algumas
considerações sobre os problemas, respostas, soluções e
interações: comuns ou distintos?
Pedro Ponte e Sousa
118
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 9
O TTIP (Tratado Transatlântico de Comércio e Investimento)
e as relações transatlânticas (UE-NAFTA)
André Simões dos Santos
142
COMUNICAÇÕES
A Política Comercial Comum à prova no pós-Lisboa - A
competência para a celebração de acordos internacionais de
comércio da União Europeia
Maria João Palma
164
Acordo CETA: O Parlamento Europeu fez a diferença
Pedro Silva Pereira 183
Os novos muros da Europa
Nuno Cunha Rodrigues 198
DISCURSOS
Identidade europeia: Quem são os europeus de hoje?
Carlos Coelho 209
NORMAS
Normas de Publicação 218
Política Editorial 224
“A União Europeia é a invenção
mais bem-sucedida do mundo
para o avanço da paz.”
John Bruton (1947-)
Antigo primeiro-ministro da República da Irlanda
Pedro Camacho
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 11
EDITORIAL
ROMA
Este número homenageia Roma, em comemoração do 60.º aniversário da assinatura
dos Tratados de Roma, a 25 de março de 1957, que criaram a Comunidade Económica
Europeia e a Comunidade Europeia de Energia Atómica. Bélgica, França, Itália,
Luxemburgo, Países Baixos e República Federal Alemã, reunidos na “Cidade Eterna”,
firmaram mais um passo na história da construção europeia, rumo a uma Comunidade
de pessoas e para as pessoas, onde reinasse a paz e o desenvolvimento económico.
Baseada em princípios democráticos, esta Comunidade deu origem à atual União
Europeia, tão desafiada nos tempos que correm, por ameaças internas e externas.
Numa data tão marcante, e perante os sucessos alcançados pelo projeto europeu,
cumpre-nos, agora, não abdicar dele, mas antes contribuir com soluções para o
reformar, preparando para os desafios que se avizinham e aproximando as instituições
dos cidadãos.
Roma é uma das cidades mais importantes no contexto histórico-cultural europeu, pelo
seu elevado contributo ao longo da História Mundial. Não se pode falar das fundações
que sustentam a Europa que hoje conhecemos, sem reconhecer o devido apreço por
uma cidade que, pelo poder que concentrou durante séculos, foi o centro da Europa e,
mesmo, da civilização ocidental. Mesmo na atualidade, volvidos vários séculos,
marcados por guerras, mudanças de regime e lutas pelo poder, Roma mantem-se
incólume, certo que sem o poder de outrora, mas orgulhosamente eterna na sua
resistência milenar.
A influência de Roma na construção da nossa Europa plasma-se em diversos
momentos da História. A civilização romana tem as suas origens com a constituição do
modesto Reino Romano, em 753 a.C., que, cerca de dois séculos mais tarde, evoluiria
Editorial
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 12
para a República Romana, um período que marcou a expansão da civilização romana,
de forma exponencial, pelo continente europeu e além do Mediterrâneo. A sua
hegemonia, consolidada com a instauração do Império Romano em 27 a.C., cobria mais
de 5 milhões de quilómetros quadrados, na sua máxima extensão, desde a Grã-
Bretanha ao Norte de África, da Península Ibérica à Ásia Menor. Nesse sentido, o
Império Romano, ao estender-se por mais de metade do continente europeu, tem sido
encarado como a primeira ideia de uma Europa unida, reunindo diferentes povos sob o
mesmo poder, organização política e valores. É certo que esta conceção em nada é
comparável com a União Europeia que conhecemos hoje, até porque o Império
Romano foi construído sob a égide do belicismo e da assimilação cultural, mas não
deixa de ter fundamento.
Bebendo da civilização grega, os Romanos contribuíram positivamente para a
construção do conceito de democracia. A maioria dos regimes modernos baseiam-se
mais no modelo romano que propriamente o grego; afinal de contas, a República
Romana foi a primeira república existente no mundo e um Estado na sua verdadeira
aceção, cujo poder se encontrava alicerçado nas pessoas e nos seus representantes, e
era chefiado por um líder eleito ou nomeado. Por isso, não é de estranhar que o
conceito de governo republicano de hoje seja inspirado na República Romana. Para
além da organização política, os princípios do direito romano são fonte de inspiração
para o direito moderno na maioria dos países do mundo, como, de resto, é atestado
pelo uso da terminologia latina. De resto, do vasto legado da civilização romana, o
latim encontra-se na base das línguas românicas. Faladas por mais de 800 milhões de
nativos a nível mundial e oficiais em cerca de 70 países, as cinco principais línguas
românicas – espanhol, francês, italiano, português e romeno – são, igualmente, línguas
oficiais da União Europeia.
Com a queda do Império Romano, a Igreja Católica viria a tomar o rumo da História da
cidade. O reconhecimento da doutrina cristã pelo Imperador Constantino e a supressão
das religiões pagãs por Teodósio I pavimentou o caminho para a afirmação do poder
da Igreja Católica no continente europeu, para a qual contribuiu a constituição de
reinos cristãos, cujos monarcas prestavam vassalagem ao Papa, enquanto
Pedro Camacho
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 13
representante máximo de Deus na Terra. Esta vassalagem serviu para a consolidação do
Cristianismo na Europa e do poder temporal do Papa sobre os reinos europeus. Esse
poder, que em diversos momentos da História implicou um imiscuir da Igreja em
assuntos dos Estados, foi perdido em meados do século XIX, no pontificado de Pio IX,
em consonância com a abolição dos regimes monárquicos em vários países europeus
desde então. Apesar da separação entre o Estado e a Igreja ser, felizmente, uma
realidade nos Estados modernos e o direito à liberdade religiosa estar devidamente
consagrado como direito fundamental, é inegável que a matriz judaico-cristã continue
a ser um dos elementos agregadores na Europa, e, aqui, Roma exerceu um papel
determinante pela influência da Igreja Católica no continente durante séculos, não
obstante os cismas que a abalaram.
Este número segue a lógica editorial dos anteriores, ao não restringir-se a uma
temática em específico, atendendo à multidisciplinaridade que carateriza os Estudos
Europeus e garantindo a oportunidade para que todos os interessados possam publicar
o seu trabalho académico numa publicação científica séria e credível. Nessa linha, um
dos nossos grandes objetivos é garantir que todos os estudantes e académicos na área
tenham o mesmo direito de submeter os seus trabalhos para publicação, assegurando
um tratamento imparcial e idóneo durante todo o processo de avaliação.
O presente número conta com seis artigos, que se enquadram, praticamente, no
repensar do projeto europeu e na posição da União Europeia no contexto
internacional. Pedro Camacho apresenta-nos, de forma detalhada, o Diálogo
Energético entre a União Europeia e a Rússia, desde a sua implementação em 2000 até
à suspensão das relações bilaterais em 2014, com uma análise focada na eficácia da sua
estrutura organizacional. António Covas oferece-nos uma viagem sobre o futuro do
projeto europeu, objetivando uma proposta para o governo dos bens comuns europeu,
e atendendo aos desafios que assolam a Europa no momento presente. David Gil
Gonçalves propõe uma reflexão sobre a relação entre as instituições e os cidadãos
europeus, tendo por base o Trilema da Integração Económica de Rodrik e conceitos
basilares como a responsabilidade e a responsividade. Marco Martins enquadra a União
Europeia num mundo em constante mudança, face à nova realidade internacional,
Editorial
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 14
questionando se estamos perante uma nova era ou ordem mundial, ou simplesmente
estamos a assistir a uma regressão. Pedro Ponte e Sousa tece considerações sobre o
conceito de democracia, tentando compreender a legitimidade dos sistemas
democráticos atuais. André Simões dos Santos recupera o Tratado Transatlântico de
Comércio e Investimento (TTIP), descrevendo o seu percurso e refletindo no seu papel
para as relações transatlânticas com os Estados Unidos da América.
Posteriormente, são apresentadas três comunicações. As primeiras duas foram
proferidas na Conferência “Acordo CETA: uma oportunidade para Portugal?”, que teve
lugar no dia 7 de abril de 2017, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
Maria João Palma analisa a Política Comercial Comum da União Europeia após o
Tratado de Lisboa, focando-se na competência desta para a celebração de acordos
internacionais de comércio. Pedro Silva Pereira debruça-se sobre o Acordo CETA,
destacando que o Parlamento Europeu teve um papel crucial nas suas negociações,
fazendo a diferença. Na mesma casa, na Conferência “Luzes e sombras da União
Europeia – 30 anos de Portugal na União Europeia”, em novembro de 2016, Nuno
Cunha Rodrigues denuncia os novos muros levantados na União Europeia e aponta
soluções para restaurar a confiança dos cidadãos europeus nas instituições.
Terminamos com a publicação do discurso proferido pelo eurodeputado, Carlos
Coelho, por ocasião do Colóquio “Identidade(s), Integração e Laicidade na Europa”, em
maio de 2015, na Fundação Calouste Gulbenkian. No seu discurso, o eurodeputado
aborda questões relacionadas com a identidade europeia, refletindo sobre o que são
os europeus de hoje.
Esperamos que este número continue à altura dos nossos prezados leitores, aos quais
agradecemos toda a sua atenção e apoio.
Pedro Camacho
Diretor
António Santos
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 15
MENSAGEM DO PRESIDENTE DA APEE
EUROPEÍSTAS E OTIMISTAS
Passados 60 anos da assinatura do tratado de Roma, o sonho europeu continua sem
rumo bem definido, entre negociações difíceis, diferentes níveis de desenvolvimento
entre países, barreiras culturais e civilizacionais e o contexto global atribulado.
Mais do que nunca a União tem que se definir a si própria e aqueles que a defendem
têm que o fazer com cada vez maior convicção. A atual emergência dos populismos
poderá ter um efeito positivo, isto é uma visão pessoal e otimista, que considero que
faz sentido, porque, cada vez mais, o tema central de debate das diversas eleições nos
Estados-membro prende-se com a sua permanência ou saída da União.
O regresso de ideias radicais, outrora consideradas ultrapassadas e de um preconceito
espelhado no comportamento de um número considerável de eleitores, que não seria
expectável em sociedades consideradas desenvolvidas no século XXI, são fatores
preocupantes, sem dúvida.
Os decisores e cidadãos europeus deverão agora fazer uma análise fria e racional do
passado recente da UE. Devemos perceber que as instituições não transmitiram a
segurança e o equilíbrio necessário às populações, tornaram-se em parte reféns de um
aparelho burocrático sem rosto, considerado como longínquo e ineficiente na
resolução dos problemas essenciais. Ao invés de aliviar e melhorar as condições de vida
dos cidadãos de vários países, trouxeram choques de austeridade que agravaram as
condições socioeconómicas de parte das populações e aumentaram o sentimento de
desconfiança, em vez de o de comunidade.
Certamente que a UE se deve reger sempre pelos princípios fundadores, como o
respeito pela diversidade e liberdade, mas chegou o momento de debater sem tabus e,
Mensagem do Presidente da APEE
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 16
se necessário, alterar as regras do jogo, isto é, caminhar para uma uniformização
política e social. Para isso, devemos refletir se este espaço pode ser também o espaço
de Viktor Orbán, Marine Le Pen e de Janusz Korwin-Mikke. Liberdade de expressão
sempre, e se as populações democraticamente optarem por este tipo de lideranças,
estas terão de ser respeitadas e reconhecidas, mas até que ponto deverão fazer parte
de um projeto com valores com os quais não se identificam?
No Reino Unido, a população optou pela saída, mas na Holanda, Áustria e em entre
outros, a opção foi claramente mais Europa. O mesmo se poderá passar em França, a
expressão popular será provavelmente mais Europa, mas uma Europa cosmopolita e
inovadora.
Voltando ao ponto inicial, o ponto positivo da emergência dos populismos, afirmo-o, é
o facto de os europeístas nunca terem estado tão unidos. Após o Brexit, a vitória de
Donald Trump nos EUA, diversos movimentos alternativos como o “En Marche”,
constituem uma demonstração clara de que o sonho europeu continua, apenas está
em renovação; apesar de não aceitar o populismo, pretende também alterar a política
tradicional.
Devemos também entender que grande parte dos votos nos movimentos anti-UE são
votos de protesto de quem perdeu a esperança. A confiança desses cidadãos deve ser
recuperada e a melhor forma de o fazer passa pela solidariedade e harmonização fiscal,
económica e política entre Estados, de forma democrática e participada. A Europa tem
de ser um espaço transparente e inclusivo. O período atual é difícil, mas a esperança e
o otimismo devem manter-se entre nós, jovens e europeístas, porque é nos momentos
difíceis que precisamos da coragem necessária para tomar decisões históricas.
António Santos
Presidente da Associação Portuguesa de Estudos Europeus
ARTIGOS
A estrutura organizacional do Diálogo Energético UE-Rússia: Uma arquitetura eficaz?
Pedro Camacho
União Europeia: Uma breve história do futuro para um governo dos bens comuns
europeu
António Covas
Por uma nova responsividade na União Europeia: Repensar a relação com os cidadãos
europeus
David Gil Gonçalves
A União Europeia num mundo em mudança: Era Trump 2.0?
Marco Martins
A democracia portuguesa e a Europa democrática. Algumas considerações sobre os
problemas, respostas, soluções e interações: comuns ou distintos?
Pedro Ponte e Sousa
O TTIP (Tratado Transatlântico de Comércio e Investimento) e as relações
transatlânticas (UE-NAFTA)
André Simões dos Santos
A estrutura organizacional do Diálogo Energético UE-Rússia: uma arquitetura eficaz?
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 18
A ESTRUTURA ORGANIZACIONAL DO DIÁLOGO ENERGÉTICO
UE-RÚSSIA: UMA ARQUITETURA EFICAZ?
PEDRO CAMACHO1
RESUMO
A energia é uma das principais componentes das relações bilaterais entre a União Europeia e a Rússia.
Desde a década de 1960, a Rússia, então União Soviética, celebrou os primeiros contratos a longo prazo
para o fornecimento de gás com países europeus. Esta relação, estritamente comercial, evidenciou a
importância do comércio de recursos energéticos para as economias russa e europeia, culminando na
institucionalização da cooperação energética com a criação do Diálogo Energético UE-Rússia, em 2000. O
Diálogo Energético tornou-se no principal fórum de discussão sobre a energia até à suspensão das
relações bilaterais pela UE após a anexação da Crimeia pela Rússia, em 2014. Este artigo descreve a
atividade desenvolvida pelo Diálogo Energético ao longo dos 14 anos da sua atividade, procurando
analisar a eficácia da estrutura organizacional face ao trabalho desenvolvido e aos objetivos estabelecidos.
Palavras-chave: União Europeia, Rússia, Diálogo Energético, Energia, Cooperação energética.
Histórico do artigo: recebido em 01-04-2017; aprovado em 15-04-2017; publicado em 05-05-2017. 1 Investigador no Projeto de Investigação ―A Geopolítica do Gás e o Futuro da relação Euro-Russa -
Geo4Ger‖ (FCT - PTDC/IVC-CPO/1295/2014), desenvolvido pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas –
Universidade Nova de Lisboa e o Instituto Português de Relações Internacionais, com a participação do
Instituto de Defesa Nacional. Mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade Nova
de Lisboa. Lisboa, Portugal. E-mail: [email protected].
Pedro Camacho
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 19
ABSTRACT
The organizational structure of EU-Russia Energy Dialogue: An effective architecture? Energy is one of the
main components of bilateral relations between the European Union and Russia. Since the 1960s, Russia,
then the Soviet Union, has signed the first long-term contracts for the supply of gas with European
countries. This strictly commercial relationship has highlighted the importance of trade in energy resources
for the Russian and European economies, culminating in the institutionalization of energy cooperation with
the creation of the EU-Russia Energy Dialogue in 2000. The Energy Dialogue has become the main arena
for discussion on energy issues until the suspension of bilateral relations by the EU, after the annexation of
Crimea by Russia in 2014. This article describes the activity developed by the Energy Dialogue throughout
the 14 years of its activity, seeking to analyze the effectiveness of the organizational structure vis-à-vis the
work developed and objectives established.
Keywords: European Union, Russia, Energy Dialogue, Energy, Energy cooperation.
_________________________________________________________________________________________________________________
1. INTRODUÇÃO
A produção petrolífera na Rússia, plenamente desenvolvida na segunda metade
do século XX, representou uma solução para o fornecimento energético de alguns
países da Europa Central e de Leste, numa altura em que a Europa, após o duro
processo de reconstrução a partir dos escombros da II Guerra Mundial, tinha vindo a
assistir a um franco desenvolvimento económico. Assim, a década de 1960 marcou o
início das relações energéticas entre a Europa e a Rússia, com a assinatura de vários
contratos com países europeus para o fornecimento de gás natural e petróleo. Estes
contratos eram estabelecidos enquanto acordos bilaterais de longo prazo, que
permitiam a partilha dos riscos e asseguravam o financiamento necessário para o
desenvolvimento da rede de infraestruturas, respeitando as diferenças institucionais
das partes contratantes.
No entanto, dois aspetos alteraram essa dinâmica na década de 1990: a reforma
do mercado russo, em virtude da desintegração da União Soviética, e a liberalização da
indústria petrolífera na União Europeia, com o intuito de se avançar, progressivamente,
para um mercado único de gás. Embora diferindo na sua extensão, a Rússia
implementou medidas para reestruturar o seu setor: o aumento de preços no mercado
A estrutura organizacional do Diálogo Energético UE-Rússia: uma arquitetura eficaz?
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 20
interno, o surgimento de um sistema dual de regulação e a permissão de algum grau
de competição entre as empresas públicas e privadas (Boussena e Locatelli, 2013, p.
182).
Segundo os dados mais recentes, datados de 2015, a produção primária de
crude e de gás natural na União Europeia apenas suprime 11,8 e 30 por cento das
necessidades de consumo desses produtos, respetivamente (Eurostat, 2015). A UE, que
importa 90,9% da sua energia, é obrigada a recorrer a diversos fornecedores no
mercado internacional, entre os quais a Rússia, que exporta 60% do seu crude e 62%
do seu gás natural para a União Europeia (EIA, 2015). Por seu turno, o crude e gás
natural russos representam 27,3 e 30,6 por cento do consumo europeu,
respetivamente, confirmando a Rússia enquanto um dos principais parceiros da União
Europeia. O gás natural é um dos principais recursos energéticos para a União,
confirmando o seu papel no desenvolvimento económico europeu, ao fornecer cerca
de um terço da energia consumida pelos seus principais setores (Eurostat, 2015).
A importância das relações energéticas entre a União Europeia e a Rússia é,
assim, atestada pela sua interdependência: se, por um lado, a primeira depende do
petróleo e do gás natural provenientes da segunda para satisfazer as suas necessidades
energéticas, por outro, a segunda depende do lucro gerado pela sua indústria
petrolífera no decurso das vendas à primeira, que contribuem significativamente para a
riqueza interna. Assim, ambas pretendem manter as suas relações, ainda que num
contexto meramente comercial, por forma a garantirem a sua segurança energética, da
perspetiva do aprovisionamento e da procura, respetivamente. A importância da
energia continuará a representar uma oportunidade para a diplomacia económica,
entre as partes.
Por a energia exercer um papel tão demarcado nas relações bilaterais, as partes
decidiram oficializar e enquadrar a sua cooperação energética ao criarem o Diálogo
Energético em 2000, capaz de acondicionar as diferenças entre as partes, num período
que marcou o início da política russa de renacionalização do seu setor petrolífero e de
gás natural, ao mesmo tempo que a União Europeia continuou a sua política de
Pedro Camacho
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 21
liberalização do setor. O Diálogo Energético tornou-se num fórum de cooperação
bilateral em matéria energética, até então inexistente.
Perante a suspensão das relações bilaterais entre a UE e a Rússia em 2014,
devido à anexação da Crimeia pela Rússia e a manutenção do conflito no leste
ucraniano, consideramos pertinente avaliar a eficácia da arquitetura institucional do
Diálogo Energético, através de uma análise aos objetivos estabelecidos e ao trabalho
desenvolvido ao longo dos seus primeiros 14 anos de atividade. Esta análise foi
realizada com base no trabalho desenvolvido pelos coordenadores do Diálogo até
2005, assim como dos grupos temáticos e do Conselho Consultivo do Gás desde então,
procurando dar resposta à questão que serve de mote ao título deste artigo. A
reduzida literatura a nível internacional sobre a dinâmica institucional do Diálogo
Energético obrigou-nos à leitura e ao tratamento dos documentos oficiais emitidos em
sede do Diálogo Energético.
2. CRIAÇÃO DO DIÁLOGO ENERGÉTICO UE-RÚSSIA
A cooperação energética entre a UE e a Rússia começou a vislumbrar-se com a
assinatura do Acordo de Parceria e Cooperação entre as partes, em 1994. O Acordo
estabelecia as bases legais para o desenvolvimento das suas relações bilaterais em seis
grandes domínios: diálogo político, comércio de mercadorias, atividade empresarial e
financeira, cooperação económica, justiça e assuntos internos e cooperação cultural. A
energia encontra-se enquadrada no domínio da cooperação económica, através das
provisões do artigo 65.º, onde se afirma que ―a cooperação neste domínio realizar-se-á
no âmbito dos princípios da economia de mercado e da Carta Europeia de Energia,
num contexto de integração progressiva dos mercados da energia na Europa,‖
lançando, assim, o ímpeto para o aprofundamento desta matéria pelas partes (JO L 327,
28.11.1997). O acordo entrou em vigor em 1997, com uma duração estipulada de dez
anos2.
2 No entanto, as negociações sobre um novo acordo que o substituísse foram dificultadas pelas relações
bilaterais entre a Rússia e os novos Estados-membros da UE que tinham estado sob o jugo soviético (Light,
2008, pp. 7-8), pelo que o Acordo de Parceria e Cooperação foi renovado numa base anual entre 2007 e a
A estrutura organizacional do Diálogo Energético UE-Rússia: uma arquitetura eficaz?
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 22
Posteriormente, em junho de 1999, a UE emitiu uma estratégia comum para a
Rússia, reconhecendo a importância estratégica das suas relações bilaterais com o país.
A UE afirma que ambas têm ―interesse em permitir que esta se integre num espaço
económico e social comum na Europa‖, contribuindo, para isso, o facto de a UE ser ―o
principal parceiro comercial da Rússia‖, que ―assegura uma parte considerável do
fornecimento de energia da União‖ (JO L 157, 24.6.1999, p. 2). Sobre a energia, o
documento assinala a pretensão da UE em cooperar com a Rússia na reforma do seu
setor e na promoção da ratificação russa do Tratado da Carta da Energia (JO L 157,
24.6.1999, p. 6). Em 2000, a Rússia correspondeu com o seu intuito em colaborar,
através da sua Estratégia a Médio-Prazo para as relações com a UE, desde que esta não
interviesse nos seus assuntos internos e a Rússia mantivesse o direito em salvaguardar
os seus interesses nacionais e os setores entendidos como vitais para a sua economia
(Lynch, 2004, p. 103).
O quadro para o aprofundamento das relações energéticas entre a UE e a
Rússia viria a ser, oficialmente, estabelecido a 30 de outubro de 2000, em resultado da
6.ª cimeira UE-Rússia, considerando a ideia dos seus líderes políticos em ―instituir,
numa base regular, um diálogo sobre a energia que permitirá a realização de
progressos na definição de uma parceria energética‖, tornando-se ―numa oportunidade
para levantar todas as questões de interesse comum relacionadas com o setor‖ (CE,
2000). O seu surgimento ―pretendeu colmatar a lacuna que emergiu da não-ratificação
da Carta da Energia pela Rússia […], tornando-se numa arena para a resolução rápida
de problemas‖ (Romanova, 2014, p. 47). Os principais objetivos do Diálogo são
―melhorar as oportunidades de investimento no setor energético, incluindo a abertura
dos mercados energéticos‖; ―assegurar uma infraestrutura segura e adequada‖; ―facilitar
um crescente uso de tecnologias e fontes de energia amigas do ambiente‖; ―promover
a eficiência e a poupança energética, caminhando para uma economia de baixo
carbono‖ e ―trocar informação sobre iniciativas legislativas‖ (CE, 2016).
A UE pretendia, assim, promover reformas no mercado russo de energia, por
forma a adequá-lo às normas internacionais, tornando-o mais transparente e não-
suspensão das relações bilaterais em 2014, no decurso da anexação da Crimeia pela Rússia e o estalar do
conflito no leste ucraniano.
Pedro Camacho
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 23
discriminatório e criando um ambiente propício à captação de investimento estrangeiro
no setor energético. Dois pontos fulcrais estiveram na agenda: a atualização dos preços
praticados pela Rússia, bastante diminutos face aos preços praticados a nível mundial,
e a diferença na natureza dos mercados internos de energia, onde a UE promove e
constrói um mercado livre e unificado, em contraste com o mercado russo, de caráter
monopolista e influenciado pelo Estado (Genç, 2009, pp. 20-21).
3. OS PRIMEIROS ANOS (2000-2005)
Nos seus primeiros anos (2000-2005), o Diálogo Energético resumia-se aos dois
coordenadores, cada um representando uma das partes, evidenciando a sua natureza
intergovernamental. As suas atividades encontravam-se limitadas à elaboração de
relatórios na véspera das cimeiras bilaterais e do Conselho Permanente de Parceria,
demonstrando que ―nenhuma cooperação regular tinha sido inicialmente estabelecida‖
(Romanova, 2014, p. 47). Neste período, foram estabelecidos dois grupos temáticos
temporários para elaborar a agenda do Diálogo (2001) e a sua reformulação (2005),
embora se encontrassem limitados para a concretização dos seus objetivos (Romanova,
2014, p. 47).
Nesta primeira fase, as discussões do Diálogo centravam-se em três questões
principais: os contratos a longo prazo take or pay, os projetos estratégicos de interesse
comum e o investimento. Em sentido lato, estas discussões objetivavam a garantia da
segurança energética de ambas as partes, do ponto de vista da procura (Rússia) e do
aprovisionamento (UE). No que respeita aos contratos a longo prazo3, reconheceu-se
que a sua existência tem permitido garantir a segurança no fornecimento de gás à
Europa pela Rússia, assim como o investimento necessário para a manutenção e
desenvolvimento das infraestruturas ligadas à produção e transporte dessa fonte
energética (UE-Rússia, 2001, p. 3). A Comissão Europeia frisou que estes contratos são
3 Os contratos a longo prazo take or pay providenciam ―que um comprador deve pagar por quantidades
específicas de energia (gás, por exemplo) a um vendedor, mesmo que o comprador não queira ou não
possa receber essas quantidades‖ (Polkinghorne, 2014, p. 1). Estas condições permitem ―ao vendedor
garantir um fluxo de receitas em termos pré-determinados‖, por forma a possibilitar-lhe o capital
necessário para investir nas infraestruturas (Polkinghorne, 2014, p. 2).
A estrutura organizacional do Diálogo Energético UE-Rússia: uma arquitetura eficaz?
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 24
―indispensáveis‖, pelo que viria encetar os esforços necessários para acompanhar a
situação e assegurar todas as condições, especialmente financeiras, para a sua
manutenção, nos primeiros anos da década de 20004. Ambas as partes negociaram,
ainda, a existência da ―cláusula de destino‖ nos contratos, desejando que esta fosse
emendada ou mesmo suprimida (UE-Rússia, 2002a, p. 2) e sublinharam que os
contratos se enquadrariam no novo mercado interno de gás que estava a ser criado
pela UE (UE-Rússia, 2002b, p. 2).
Estes contratos são vitais para o desenvolvimento da rede. As partes
defenderam novos projetos estratégicos de produção e de transporte de energia,
considerando-os como de interesse comum, e o acesso não-discriminatório às redes de
transporte pela Rússia, por forma a assegurar a eficácia do mesmo. Estes projetos
incluíam os gasodutos Transeuropeu Setentrional e o Yamal-Europe (troço polaco-
bielorrusso), o campo de produção de Shtokman e os oleodutos Burgas-Alexandrópolis
e Druzhba (troço Adria) (UE-Rússia, 2001, pp. 2-3). As partes entenderam ser crucial a
diversificação das rotas de transporte entre si, pelo que deveriam garantir as condições
necessárias para o desenvolvimento destes projetos5. Em 2002, o projeto do gasoduto
do Norte da Europa (Nord Stream6) foi considerado como prioritário, dentro das Redes
Transeuropeias, beneficiando do financiamento europeu para o desenvolvimento de
um estudo sobre o seu impacto ambiental no Mar Báltico (UE-Rússia, 2003, p. 4).
O desenvolvimento destes projetos está intimamente ligado a investimentos de
larga escala, que não dependem exclusivamente dos contratos a longo prazo, mas
também do investimento direto estrangeiro. Estes investimentos são essenciais para
renovar e ampliar a rede de infraestruturas, resolvendo os problemas técnicos
4 A rede de transporte foi alvo de uma monitorização constante para a definição dos projetos prioritários
de atualização e otimização da rede, conduzidas pelas partes e os países de trânsito (UE-Rússia, 2001, pp.
3-4), através do financiamento em cerca de 3 milhões de euros (UE-Rússia, 2004, p. 6). 5 Nesse sentido, foi criada uma equipa especializada para avaliá-los quanto aos requisitos técnicos, ao
financiamento e ao tempo necessário para a sua execução, consultando as partes interessadas. Para além
disso, pretendeu-se que esta equipa garantisse o investimento necessário para os projetos, através de
reuniões com entidades governamentais, instituições financeiras e empresas do setor energético (UE-
Rússia, 2002a, pp. 2-3). O resultado dessa avaliação reconheceu que os projetos são de interesse comum,
recomendando que a lista fosse alargada a outros potenciais projetos, e sugeriu a criação de ―um fundo de
garantia de decisão arbitral‖, que salvaguardasse as partes contratuais quanto aos seus direitos (UE-Rússia,
2002b, p. 1). 6 Gasoduto, operacional desde 2011, que liga diretamente a Rússia à Alemanha pelo mar Báltico, ao longo
de 1 224 km, com uma capacidade de 55 bcm por ano (Nord Stream AG, s.d.).
Pedro Camacho
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 25
resultantes da sua antiguidade e da sua capacidade diminuta para responder à procura
europeia dos hidrocarbonetos russos, e garantir, assim, o seu bom funcionamento
(Genç, 2009, p. 27). Discutiu-se a necessidade de assegurar um ambiente favorável ao
investimento no setor energético, através da eliminação de barreiras legais e fiscais e
da adoção de outros mecanismos de financiamento7, para ―melhorar a produção nos
campos em atividade, atualizar as refinarias de petróleo, construir novas e atualizar
antigas usinas, e otimizar a infraestrutura de transporte de energia‖ (UE-Rússia, 2005a,
p. 4).
A Rússia acordou em implementar medidas para melhorar o quadro normativo
nesta matéria, como a criação de nova legislação e a aplicação das regras necessárias,
nomeadamente no que se refere aos Acordos de Produção Partilhada, a fim de criar
condições para a atração de capital a curto prazo (UE-Rússia, 2001, p. 3). Em 2002,
recordou-se a necessidade de serem criadas propostas para alterar o código fiscal e
demais legislação referente a estes acordos, a fim de ser apreciada na 10.ª cimeira
bilateral a 11 de novembro, para possibilitar ―o acesso não-discriminatório às redes de
transporte de energia,‖ assim como ―a implementação de projetos de energia por
forma a facilitar a atividade empreendedora nos setores da exploração, produção e
transporte de energia, como, por exemplo, através de joint ventures e concessões‖ (UE-
Rússia, 2002a, p. 1).
Com vista a esse objetivo, o Ministério da Economia russo criou um organismo
que ―facilita as relações dos investidores com todos os níveis da administração‖, através
da simplificação de ―procedimentos administrativos e de licenças‖ (UE-Rússia, 2001, p.
4). Em 2004, a Rússia tinha realizado algumas reformas para tornar as oportunidades de
investimento mais competitivas e atrativas, embora algumas empresas do país tivessem
dificuldade na obtenção de financiamento de capital estrangeiro a longo prazo8 (UE-
7 A entrada em vigor do Protocolo de Quioto ofereceu oportunidades para a realização de investimentos
promotores da eficiência, poupança e gestão do consumo energético, para as quais contribuiu uma
estreita ―cooperação nas boas práticas e em tecnologias de energia mais eficientes‖ pela indústria, um dos
principais setores consumidores, atendendo ao clima da subida de preços do petróleo e outras matérias-
primas à época (UE-Rússia, 2005a, p. 4). 8 Com efeito, o investimento ainda enfrentava diversos problemas em 2006, sentindo-se a necessidade de
uma análise mais aprofundada quanto à utilização e exploração dos subsolos, ao enquadramento fiscal e
aos projetos conjuntos (UE-Rússia, 2006a, p. 4).
A estrutura organizacional do Diálogo Energético UE-Rússia: uma arquitetura eficaz?
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 26
Rússia, 2004, p. 4). Por forma a contornar tais dificuldades, foi desenvolvido um estudo
para a criação de um mecanismo de garantias, com o objetivo de reduzir os riscos não-
comerciais dos investimentos (UE-Rússia, 2004, pp. 4-5). Uma ―apropriada partilha do
risco‖ na construção de infraestruturas e o desenvolvimento de campos de produção
foram tidos como elementos fulcrais para assegurar as condições necessárias ao
investimento em projetos desta envergadura (UE-Rússia, 2006a, p. 4). Em 2008, a Rússia
adotou medidas fiscais que visavam estimular o setor petrolífero e comprometeu-se
em criar as regulações necessárias para a implementação da sua nova política de
investimento estrangeiro no setor energético (UE-Rússia, 2008a, p. 5).
4. PRIMEIRA REESTRUTURAÇÃO (2005-2006)
A necessidade de aprofundar as temáticas abordadas no quadro do Diálogo
impeliu à sua primeira reestruturação em 2005, por iniciativa da presidência britânica
do Conselho da UE, no segundo semestre desse ano, que definiu o reforço das relações
com a Rússia como uma das suas prioridades (Government of the UK, 2005). Nesse
sentido, foram delineadas novas linhas orientadoras para o Diálogo Energético, como a
inclusão de grupos temáticos que reunissem oficiais, empresários e académicos,
especializando as suas discussões (Genç, 2009, p. 20). Assim, foram criados quatro
grupos temáticos permanentes: a) Eficiência Energética, b) Infraestruturas de Energia, c)
Investimentos e d) Comércio (Figura 1).
O Grupo Temático sobre Eficiência Energética tinha como objetivo discutir ―a
legislação e regulamentação necessária‖ nesta área, ―as ações para criar ou reforçar as
estruturas e capacidades [a nível] local e regional‖, ―os incentivos económicos e
financeiros para encorajar a eficiência energética‖ e ―as oportunidades oferecidas pelos
mecanismos do Protocolo de Quioto‖ (UE-Rússia, 2005b, p. 1). Em 2006, foram lançadas
as bases para a Iniciativa para a Eficiência Energética, que procurou promover e apoiar
projetos de eficiência energética. No seu primeiro relatório, o grupo efetuou uma
análise sobre o estado da eficiência energética e definiu medidas que a confirmaram
como uma componente importante para a segurança energética, como a criação de
Pedro Camacho
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 27
incentivos fiscais e a implementação de tecnologias eficientes nos edifícios (UE-Rússia,
2006b, pp. 1-6). Para a sua concretização, foi delineado um plano de ação, que incluía a
elaboração de estudos e análises, a preparação de um fundo de investimento e o
estabelecimento de parcerias (UE-Rússia 2006b, 6-9).
Figura 1 – Organograma da estrutura organizacional do Diálogo Energético entre 2005 e 2006. Fonte:
Camacho (2016).
O Grupo Temático sobre Infraestruturas de Energia pretendeu discutir as
infraestruturas existentes para o transporte dos hidrocarbonetos, incluindo a avaliação
de projetos de beneficiação da rede e a proposta de novas rotas estratégicas, assim
como o transporte de petróleo por outras vias para além das condutas e a produção e
interconexão elétrica (UE-Rússia, 2005d, p. 1). Em 2006, emitiu um relatório onde
constatou a interdependência energética entre a UE e a Rússia e avaliou as
infraestruturas existentes e as suas perspetivas de desenvolvimento no futuro, desde a
produção até ao consumo, no que se refere ao gás, ao petróleo e à eletricidade. O
relatório identificou três projetos de interesse comum – Nord Stream, campo de gás
condensado de Shtokman e o Yamal –, e recomendou atividades conjuntas, como a
harmonização dos sistemas de condutas e análises à rede e a futuros investimentos9
(UE-Rússia, 2006d, pp. 4-8).
9 Os trabalhos continuaram com o subgrupo sobre Projetos de Infraestruturas e Comércio de Energia,
enquadrado no Grupo Temático sobre o Desenvolvimento dos Mercados de Energia, que o substituiu em
2007.
A estrutura organizacional do Diálogo Energético UE-Rússia: uma arquitetura eficaz?
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 28
O Grupo Temático sobre o Investimento tinha como objetivo analisar as
necessidades de investimento no setor energético da UE e da Rússia. Para o seu
cumprimento, os trabalhos foram divididos em três subgrupos, cada um destinado a
encontrar soluções para as seguintes questões: ―melhoria do enquadramento legal e
regulatório‖, ―mecanismos para financiar projetos conjuntos‖ e ―otimização fiscal para
atrair investimento‖ (UE-Rússia, 2005c). Os resultados preliminares foram descritos em
relatório, emitido em 2006, expondo em detalhe as condicionantes do setor energético
russo, que confirmariam a urgência de investimento – o risco de esgotamento das
reservas, a degradação das infraestruturas, o aumento do consumo interno e as
exigências do mercado externo – apresentando soluções para ultrapassar estes
obstáculos10 (UE-Rússia, 2006c, pp. 2-4). O grupo sugeriu um ―envolvimento mais ativo
das empresas de energia da UE no setor energético russo‖, por forma a estimular
investimentos estratégicos, que seriam complementados pela execução de outras
ações, como a ―otimização de taxas, tarifas e preços de energia‖ ou a utilização do
fundo de investimentos russo para a execução de projetos de interesse nacional11 (UE-
Rússia, 2006c, pp. 10-11).
Por último, o Grupo Temático sobre o Comércio procurou discutir todos os
produtos energéticos do ponto de vista comercial, definindo como tarefas a realização
de uma análise sobre o comércio energético, a avaliação de possíveis obstáculos ao
mesmo e a elaboração de recomendações para a eliminação desses constrangimentos
(UE-Rússia, 2005e, p. 1). Esta avaliação foi desenvolvida no relatório de 2006, onde as
partes recomendaram a utilização de alguns instrumentos de mercado e o
―desenvolvimento de um diálogo direto entre fornecedores e consumidores‖ no setor
petrolífero. No setor do gás natural, recomendou-se investir na reciprocidade de regras
10
Essas soluções consistiam na ―identificação clara dos depósitos e zonas geográficas sensíveis e
estratégicas‖, ―a classificação das reservas dos recursos naturais de acordo com a metodologia das Nações
Unidas‖, a aplicação de ―princípios de seleção dos candidatos e participantes para a implementação de
projetos energéticos de larga escala‖, a definição ―[d]o âmbito e [d]as condições para a aplicação dos
Acordos de Produção Partilhada‖, a participação de investimento privado e o acesso não-discriminatório à
rede (UE-Rússia, 2006c, pp. 6-7). 11
Apesar da sua curta existência de apenas um ano, os trabalhos foram continuados pelo subgrupo sobre
Investimento, enquadrado no Grupo Temático sobre o Desenvolvimento dos Mercados de Energia, que o
substituiu em 2007.
Pedro Camacho
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 29
e mecanismos entre a UE e a Rússia e na garantia da igualdade no tratamento e no
acesso às oportunidades pelos atores económicos12 (UE-Rússia, 2006e, pp. 2-4).
5. SEGUNDA REESTRUTURAÇÃO (2007-2011)
A segunda reestruturação ocorreu após a interrupção no fornecimento de gás à
Ucrânia em 2006, com o objetivo de fortalecer a orgânica do Diálogo, resultando na
manutenção do grupo sobre Eficiência Energética e a criação de dois novos grupos
temáticos: Estratégias, Previsões e Cenários, e respetivo subgrupo sobre Questões
Económicas da Energia; e Desenvolvimento dos Mercados de Energia, e respetivos
subgrupos sobre Investimento e sobre Projetos de Infraestruturas e Comércio de
Recursos Energéticos, criados em maio de 2008 e que substituíram os restantes grupos
temáticos anteriores, e o grupo Ad Hoc sobre Eletricidade, constituído em 2009. Os
grupos afirmaram-se, assim, como um espaço privilegiado e regular para a discussão
de ideias e a troca de informação entre especialistas, oficiais e empresários de ambas
as partes (Romanova, 2014, p. 48). Assim, até finais de 2011, a orgânica do Diálogo
compreendia os três grupos temáticos (e respetivos subgrupos), hierarquicamente
dependentes dos coordenadores e dos coordenadores delegados, que se encontravam
apoiados por um Secretariado conjunto da Comissão Europeia e do Ministério russo da
Energia (Figura 2).
Com esta restruturação, o Grupo Temático sobre Eficiência Energética foi
reforçado com a definição de novos objetivos: monitorizar o futuro plano de ação
conjunto para a eficiência energética, cooperar em diferentes níveis nas tecnologias de
eficiência energética e na redução da emissão de gases com efeito de estufa, facilitar o
investimento e promover uma ―compreensão aprofundada das abordagens e métodos
para o uso da eficiência energética, como meio para assegurar a segurança do
fornecimento energético numa base sustentável e de custo efetivo‖ (UE-Rússia, 2007b,
p. 1). Nesse ano, foram analisados os dados referentes à eficiência energética de ambas
12
A continuidade dos trabalhos foi assegurada pelo subgrupo sobre Projetos de Infraestruturas e
Comércio de Energia, enquadrado no Grupo Temático sobre Desenvolvimento dos Mercados de Energia,
que o substituiu em 2007.
A estrutura organizacional do Diálogo Energético UE-Rússia: uma arquitetura eficaz?
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 30
as partes e apresentadas duas iniciativas por representantes da UE e do Banco Europeu
para a Reconstrução e o Desenvolvimento, respetivamente: a Plataforma para a
Cooperação Internacional sobre a Eficiência Energética e a Iniciativa para a Energia
Sustentável na Rússia13 (UE-Rússia, 2007a, p. 6).
Figura 2 – Organograma da estrutura organizacional do Diálogo Energético entre 2007 e finais de 2011.
Composição dos grupos temáticos em finais de 2007. Fonte: Camacho (2016).
Em 2008, o grupo elaborou um relatório sobre os desenvolvimentos nesta
matéria pela Rússia e a UE, as atividades implementadas nos planos anteriores e as
atividades programadas para 2008-2009, cuja informação permitiu às partes uma
partilha enriquecedora de informação e experiências para a prossecução da Iniciativa
para a Eficiência Energética (UE-Rússia, 2008a, p. 6). O grupo reuniu-se novamente por
três vezes, até finais de 2009, para discutir o ―desenvolvimento de políticas, estratégias,
legislação e regulamentos sobre eficiência energética e energias renováveis‖ e os
13
A primeira foi estabelecida em 2009 no quadro do G8 (IPEEC, 2016), enquanto a segunda iniciativa
financiou 102 projetos no valor de 2,4 biliões de euros, por forma a permitir uma poupança energética de
9 Mtoe na Rússia (EBRD, 2013).
Pedro Camacho
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 31
diferentes meios de cooperação internacional, assim como para analisar os projetos de
interesse comum concluídos e em estudo14 (UE-Rússia, 2009, p. 8; CE, 2010, p. 23).
Com o advento da crise económica e financeira de 2008, o grupo analisou as
suas consequências para o setor energético, destacando o ―decréscimo no consumo
energético na Rússia e na UE‖, a diminuição dos preços do gás e a flutuação dos
volumes de exportação (UE-Rússia, 2010a, p. 6). O seu trabalho estendeu-se,
igualmente, no apoio ao desenvolvimento de diretrizes para a cooperação bilateral
nesta matéria, através do ―estabelecimento e melhoria de um sistema de monitorização
de gestão e eficiência energética na Rússia‖, do ―desenvolvimento de ferramentas de
apoio financeiro e não-financeiro‖ e da ―certificação e padronização da eficiência
energética‖ entre as partes (CE, 2011, p. 24). Ainda nesse ano, o grupo preparou a sua
contribuição para a Parceria para a Modernização15 e o 10.º aniversário do Diálogo
Energético, com propostas de cooperação relacionadas com a eficiência energética e as
energias renováveis (CE, 2011, p. 24).
O Grupo Temático sobre Desenvolvimento dos Mercados de Energia pretendeu
―promover a confiança e a transparência‖ através da troca de informações, ―promover
uma maior segurança e previsibilidade dos mercados energéticos‖, ―avaliar as possíveis
barreiras ao comércio de energia‖ e ―avaliar os possíveis obstáculos ao investimento na
energia‖ e ―ao desenvolvimento de mercados de energia eficientes‖ (UE-Rússia, 2007c,
p. 2). Na sua primeira reunião, em setembro de 2007, foram discutidos os regulamentos
existentes no mercado, o comércio de produtos nucleares, o investimento e as novas
alterações na legislação implementadas por ambas as partes, destacando-se a iniciativa
europeia na criação de um mercado interno de gás e de eletricidade. Do mesmo modo,
a Rússia informou a UE quanto às suas iniciativas legislativas sobre a energia (UE-
Rússia, 2007a, pp. 3-4).
14
Nesse sentido, o grupo realizou dois seminários em Moscovo, em outubro e dezembro de 2008, sobre a
certificação das energias renováveis e a partilha de boas práticas por empresas do setor (UE-Rússia, 2009,
p. 9). 15
A Parceria para a Modernização foi lançada na 25.ª cimeira em Rostov-on-Don, na Rússia, que decorreu
entre 31 de maio e 1 de junho de 2010. A nova Parceria procurou impulsionar o crescimento e a
competitividade na UE e na Rússia, continuando o trabalho desenvolvido pelos Espaços Comuns, e servir
de plataforma para as negociações do novo acordo bilateral para substituir o Acordo de Parceria e
Cooperação, assinado em 1994. Porém, a Parceria falhou em concretizar o seu objetivo principal.
A estrutura organizacional do Diálogo Energético UE-Rússia: uma arquitetura eficaz?
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 32
Estas questões continuaram a pautar as reuniões seguintes, priorizando-se a
troca de informação sobre as novas iniciativas legislativas e o seu impacto nos
mercados internos das partes, considerando ―o tratamento dado aos investidores
estrangeiros‖ e a possibilidade de convergir as normas regulatórias para impulsionar a
competitividade (UE-Rússia, 2008a, p. 5). Em 2009, essas tarefas foram estendidas para
a obtenção de ―informação sobre o desenvolvimento de mercados energéticos
regionais na Europa‖, a análise das ―perspetivas para a criação de um mercado único de
eletricidade na UE e na Comunidade dos Estados Independentes‖ e das consequências
da ―crise financeira no desenvolvimento dos mercados de energia‖ (UE-Rússia, 2009,
pp. 7-8).
O Subgrupo sobre Investimento foi criado em maio de 2008, almejando a troca
de informações sobre as tecnologias disponíveis e a identificação de oportunidades de
investimento para melhorar a eficiência energética (UE-Rússia, 2008a, pp. 4-6). Em
2009, o subgrupo definiu as principais linhas orientadoras do seu trabalho (CE, 2010, p.
23), discutindo o investimento à luz dos desenvolvimentos no setor energético, como o
Terceiro Pacote de Energia da UE16 e as leis russas sobre os subsolos e os setores
estratégicos (UE-Rússia, 2010b, p. 3), bem como elaborar recomendações para o
encontro do 10.º aniversário do Diálogo (CE, 2011, p. 24) e o Roteiro para a
Cooperação Energética até 2050 (UE-Rússia, 2011b, p. 4).
O Subgrupo sobre Projetos de Infraestruturas e Comércio de Recursos
Energéticos procurou discutir ―propostas para atualizar a lista conjunta de projetos
prioritários de infraestruturas de interesse comum e tomar em consideração a
necessidade de atualizar as infraestruturas existentes‖ (UE-Rússia, 2008a, p. 5). O grupo
reuniu-se pela primeira vez em 2010, onde foram debatidos e discutidos o estado dos
oleodutos e gasodutos (atuais e planeados), os vários programas e estratégias ligados
à energia17 e as iniciativas legislativas da UE, como o regulamento sobre a segurança
no aprovisionamento do gás (UE-Rússia, 2010a, p. 10; CE, 2010, p. 23). No tocante ao
16
O Terceiro Pacote de Energia consiste num pacote legislativo da União Europeia para tornar o seu
mercado interno de energia mais eficaz, por forma a criar um mercado único do gás e da eletricidade.
Entrou em vigor em 2009. 17
Como o Programa Energético Europeu para o Relançamento, as redes transeuropeias de energia e as
Redes Europeias de Operadores de Redes de Transportes para a eletricidade e gás.
Pedro Camacho
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 33
comércio de recursos energéticos, o subgrupo seguiu as indicações oferecidas pelo
relatório do anterior Grupo Temático sobre Comércio, ressalvando que a otimização
das facilidades ao serviço da exportação, as operações swap e a diminuição de
restrições quantitativas incrementariam as trocas comerciais e permitiriam o
desenvolvimento das negociações sobre a relação entre fornecedores e consumidores
(UE-Rússia, 2010a, p. 8; CE, 2011, p. 24; CE, 2012, p. 21).
O Grupo Ad Hoc sobre Eletricidade teve como propósito ―elaborar
recomendações e propostas sobre os mecanismos de coordenação para as
organizações de infraestruturas no setor elétrico da UE e da Rússia‖ (UE-Rússia, 2010b,
p. 3). A sua primeira reunião decorreu a 20 de outubro de 2010 com o propósito de
discutir o estado atual e o futuro dos mercados elétricos e a operação conjunta das
partes nos sistemas energéticos (UE-Rússia, 2010b, p. 3).
O Grupo Temático sobre Estratégias, Provisões e Cenários enquadrou todos os
assuntos relacionados com as previsões e os cenários energéticos, as prioridades
estratégicas e as oportunidades da relação energética entre a UE e a Rússia (UE-Rússia,
2007d, p. 3). O seu trabalho incidiu em duas vertentes. A primeira prendeu-se com a
partilha ―de visões e a preparação de propostas para o desenvolvimento de estratégias,
previsões e cenários da energia,‖ garantindo, assim, ―um nível de coerência‖ no seu
desenvolvimento, que contribuísse para o bom funcionamento do setor. A segunda
consistiu em prestar ―assistência na promoção da troca de informação e monitorização
do sistema para assegurar a melhoria na transparência e confiança mútua nas questões
relacionadas com a energia,‖ que permitissem uma ―identificação atempada‖ e uma
―análise conjunta dos potenciais problemas‖ e das ―questões críticas atuais da procura
e do aprovisionamento de energia‖18 (UE-Rússia, 2008a, p. 2).
O grupo reuniu-se pela primeira vez em setembro de 2007, onde a Rússia
apresentou os dados mais recentes sobre a energia e a sua intenção de elaborar uma
nova estratégia energética até 2030, que prevê um aumento das exportações de
petróleo e gás natural para a UE, enquanto esta, por seu turno, apresentou o seu mais
recente plano de ação para a política energética, o Plano de Ação sobre Segurança
18
Para tal, o grupo foi auxiliado pela disponibilização de dados dos serviços de estatísticas da Rússia e da
UE, da Agência Internacional de Energia e de empresas do setor (UE-Rússia, 2008a, p. 3).
A estrutura organizacional do Diálogo Energético UE-Rússia: uma arquitetura eficaz?
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Energética e Solidariedade, que ressalvava a importância da segurança no
aprovisionamento energético (UE-Rússia, 2007a, pp. 2-3). Em 2008, o grupo discutiu os
cenários e previsões para o setor energético, tendo contribuído para a discussão uma
linha-base para os cenários e a apresentação de dois cenários inovadores (perante a
subida dos preços dos hidrocarbonetos e a descida da taxa de crescimento do PIB),
desenvolvidos pela parte russa. As partes consideraram, também, a harmonização das
suas estratégias energéticas, definindo como assuntos de interesse comum as
condições atuais de produção e consumo, as opções disponíveis para o
desenvolvimento do setor, o mercado de gás, a segurança no fornecimento de gás
russo à Europa e as perspetivas no fornecimento de petróleo russo, atendendo às
tendências mundiais (UE-Rússia, 2008b).
Em 2010, o grupo reuniu-se para discutir a nova estratégia energética russa
para 2030, as previsões da Comissão Europeia e outras entidades para a energia até
2030, o impacto da crise económica e financeira e a cooperação com o Grupo Temático
sobre a Eficiência Energética (CE, 2010, p. 23). Como resultado deste último ponto, as
partes acordaram que seria necessário aprofundar a discussão em torno do aumento
da eficiência energética até 2050, o impacto das medidas tomadas nesse sentido e o
tratamento de dados (UE-Rússia, 2010c, pp. 1-2). No ano seguinte, o grupo organizou
três reuniões para a troca de dados sobre as estratégias energéticas da Rússia e da UE
para os anos seguintes (UE-Rússia, 2011b, p. 4) e a preparação de um relatório sobre o
novo Roteiro para a Cooperação Energética UE-Rússia até 2050 (CE, 2012, p. 21).
O Subgrupo sobre Questões Económicas da Energia foi criado em dezembro de
2008, no decurso da reunião do Diálogo Energético de outubro de 2007, com a
finalidade de esclarecer e analisar os seguintes tópicos: previsões de consumo
energético, prioridades das estratégias energéticas da UE e da Rússia, resultados e
oportunidades da cooperação energética, e a troca de informações e de sistemas de
monitorização (UE-Rússia, 2007a, p. 3). O trabalho a desenvolver visava analisar a
procura de petróleo e gás natural pela UE e a capacidade da Rússia em satisfazê-la até
2030, bem como as necessidades de investimento (UE-Rússia, 2008a, p. 3). O subgrupo
reuniu-se pela primeira vez a 17 de fevereiro de 2009, onde foi acordada a realização
Pedro Camacho
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 35
de estudos comparativos sobre o impacto da crise financeira (CE, 2009, p. 20). A UE
―facultou à parte russa e a especialistas independentes informação detalhada sobre
métodos, instrumentos e um modelo de estudo do desenvolvimento da indústria
energética,‖ tendo sido, igualmente, consideradas as atividades de várias entidades
(Agência Internacional de Energia, Eurogas e Universidade de Grenoble) e a informação
fornecida pela Universidade de Atenas quanto a modelos de estudos energéticos
(PRIMES, PROMETHEUS e GEM-E3).
Posteriormente, foi apresentado o esboço da Estratégia para a Energia da Rússia
até 2030, que suscitou várias dúvidas aos presentes quanto às diretrizes dos cenários,
aos seus objetivos e prioridades e às linhas orientadoras da estratégia sobre a indústria
elétrica (UE-Rússia, 2009, pp. 5-6). Em 2010, os trabalhos prosseguiram com ―a análise
de informação substancial relacionada com cenários, previsões e modelos‖ sobre a
situação energética. Esse trabalho, detalhado em três relatórios, auxiliou o grupo
temático na sua avaliação sobre as políticas e estratégias energéticas da UE e da Rússia
(UE-Rússia, 2010c, p. 2).
6. TERCEIRA REESTRUTURAÇÃO (2011-2014)
Em 2010, foi anunciada a terceira restruturação, em virtude da interrupção ao
fornecimento de gás à Ucrânia no início do ano anterior. A restruturação introduziu três
mudanças no mapa institucional do Diálogo. A primeira afetou a distribuição dos
grupos temáticos, que passaram de três para quatro: a) Eletricidade e b) Energia
Nuclear, que substituíram o grupo sobre o Desenvolvimento dos Mercados de Energia;
c) Mercados de Energia e Estratégias, e respetivos subgrupos sobre Cenários e
Previsões e as Relações UE-Rússia até 2050, que substituíram o grupo sobre Estratégias,
Previsões e Cenários e o seu subgrupo; e d) Eficiência Energética e Inovação, que
resulta de um reforço do anterior grupo sobre a Eficiência Energética. A segunda
introduziu a Parceria para a Modernização no quadro do Diálogo, pela sua pretensão
em transformar a Rússia numa economia de inovação, para a qual contribuiria, de
sobremaneira, o desenvolvimento dos mercados de energia elétrica e nuclear. A
A estrutura organizacional do Diálogo Energético UE-Rússia: uma arquitetura eficaz?
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 36
terceira instituiu o Conselho Consultivo do Gás, como grupo de apoio aos
coordenadores do Diálogo (Romanova, 2014, p. 49). As alterações foram estabelecidas
em 2011 e entraram em vigor no final desde ano (Figura 3).
Figura 3 – Organograma da estrutura organizacional do Diálogo Energético entre finais de 2011 e 2014.
Fonte: Camacho (2016).
O Grupo Temático sobre Eficiência Energética e Inovação prosseguiu a troca de
informações sobre quadros legislativos e regulamentares, ―compartilhando a
experiência, o conhecimento e a cooperação em projetos de eficiência energética,
poupança de energia, fontes de energia renovável [e] queima de gás.‖ (CE, 2013, p. 22).
Reuniu-se pela primeira vez em abril de 2012 para discutir a implementação do plano
de trabalho e reforçar a cooperação bilateral sobre a eficiência energética e energias
renováveis, discussão que prosseguiu na segunda reunião em outubro desse ano (CE,
2013, p. 22). Em 2014, o grupo discutiu a legislação da UE para ―a rotulagem
energética, a eficiência energética dos edifícios, os requisitos de conceção ecológica e a
promoção das energias renováveis‖ (UE-Rússia, 2014, p. 6).
O Grupo Temático sobre Mercados de Energia e Estratégias reuniu-se pela
primeira vez em março de 2012 para discutir o fornecimento de gás durante a onda de
frio no início do ano, a redução nos volumes transportados pelo Druzhba, as reformas
Pedro Camacho
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 37
russas no setor e a coordenação do trabalho sobre o Roteiro para a Cooperação
Energética UE-Rússia até 2050, cujos trabalhos prosseguiram na reunião seguinte, em
julho (CE, 2013, p. 21). Em novembro, preparou a organização do sétimo Conselho
Permanente de Parceria Energética19 (CE, 2013, p. 21). Em 2013, o grupo discutiu os
desenvolvimentos nos setores energéticos da UE e da Rússia, assim como o programa
nacional russo para a eficiência energética e o desenvolvimento energético até 2020
(UE-Rússia, 2014, p. 5).
Aquando da sua criação, foram constituídos dois subgrupos: a) Subgrupo sobre
Cenários e Previsões e b) Subgrupo sobre as Relações UE-Rússia até 2050. O primeiro
reuniu-se pela primeira vez em junho de 2012, e apoiou os trabalhos do Conselho
Consultivo do Gás para discutir o consumo do gás na UE, em outubro do mesmo ano
(CE, 2013, p. 22). O segundo foi criado após a reforma estrutural de 2011, embora não
haja qualquer registo da sua atividade nos relatórios do Diálogo Energético. Em 2014,
este subgrupo foi extinto e substituído pelo Grupo de Monitorização para o Roteiro até
2050.
O Grupo Temático sobre Eletricidade foi criado em 2011, não tendo reunido em
2012. Nos relatórios seguintes, não existe qualquer informação acerca das atividades
deste grupo. O Grupo Temático sobre Energia Nuclear reuniu-se pela primeira vez em
outubro de 2012 para discutir e estabelecer os seus objetivos e o seu plano de trabalho
(CE, 2013, p. 22). Em 2013, o grupo discutiu a ―segurança das instalações nucleares
europeias e russas existentes e previstas com base nos resultados dos testes de stress‖,
a proposta de alteração da diretiva europeia relativa à segurança e ―as possibilidades
de partilhar mais informações sobre testes de stress e ações de acompanhamento‖ (UE-
Rússia, 2014, pp. 6-7).
A maior inovação na estrutura organizacional foi a criação do Conselho
Consultivo do Gás, que se diferenciava por ser um mecanismo de apoio ao trabalho
desenvolvido pelos coordenadores e os grupos temáticos, segundo uma filosofia de
19
O Conselho Permanente de Parceria não integrava a estrutura do Diálogo, mas podia estabelecer linhas
orientadoras para o mesmo. De caráter flexível, o Conselho reunia o Alto Representante, os Comissários ou
os ministros da presidência rotativa do Conselho (pela UE) e os ministros russos. As suas reuniões ocorriam
várias vezes por ano, consoante as temáticas abordadas: negócios estrangeiros, ambiente, investigação,
energia e liberdade, segurança e justiça (ESPO, 2013).
A estrutura organizacional do Diálogo Energético UE-Rússia: uma arquitetura eficaz?
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 38
trabalho que promovia a discussão transparente e independente. Foi constituído em 24
de fevereiro de 2011, por sugestão do Ministério russo da Energia, após a reunião dos
coordenadores do Diálogo, ―para avaliar as tendências futuras no setor do gás, a fim de
reduzir os riscos e aproveitar as oportunidades em matéria de cooperação‖ (UE-Rússia,
2011a, p. 1). Os seus objetivos consistiam em ―avaliar os desenvolvimentos dos
mercados do gás‖, ―avaliar o desenvolvimento da produção, procura e transporte de
gás‖, ―avaliar o desenvolvimento de perspetivas de fornecimento e de consumo‖ e
―discutir aspetos relacionados com estruturas de mercado e infraestruturas‖ (UE-Rússia,
2011a, p. 1). A sua existência foi tida como crucial para ―evitar conflitos e mal-
entendidos sobre o gás nas relações entre a Rússia e a UE‖ (UE-Rússia, 2012a, p. 4).
O Conselho era composto por um total de 34 membros, distribuídos de forma
igual por ambas as partes, dentre oficiais governamentais e de organizações
internacionais, especialistas, empresários e académicos (UE-Rússia, 2012e). Cada parte
nomeava um orador que copreside o Conselho, que coordenavam as suas atividades e
eram apoiados por um representante do Ministério russo da Energia e da Direção-Geral
da Energia da Comissão Europeia, que copresidiam cada encontro do Conselho. Os
assuntos a serem tratados correspondiam aos definidos no plano anual de trabalhos
(UE-Rússia, 2011a, p. 2).
As suas reuniões ocorriam a cada trimestre para discutir e avaliar as relações
UE-Rússia referentes ao gás, em três vertentes distintas: ―questões correntes‖, como o
funcionamento dos mercados do gás; ―implicações a curto e longo prazo‖ para as
infraestruturas da rede; e ―possíveis tendências a longo prazo‖ na produção e
fornecimento de gás (UE-Rússia, 2011b, p. 2; UE-Rússia, 2011c, p. 1). Os resultados de
cada encontro materializavam-se em conclusões ou recomendações sobre as
perspetivas futuras do Diálogo e o trabalho a ser desenvolvido pelos grupos temáticos
(UE-Rússia, 2011a, p. 1). O Conselho reuniu-se pela primeira vez a 17 de outubro de
2011, em Viena, para definir a sua orgânica e o seu plano de trabalho (UE-Rússia,
2011c, p. 1). Na segunda reunião, a 24 de janeiro de 2012, foram realizadas
apresentações sobre os setores energéticos russo e europeu e apresentada a primeira
Pedro Camacho
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 39
agenda a longo prazo para as relações UE-Rússia em relação ao gás (UE-Rússia, 2012c,
p. 1).
Os seus trabalhos foram subdivididos em três grupos de trabalho: 1 - Cenários
Energéticos e o Roteiro para a Energia 2050, 2 - Mercados de Gás e 3 - Infraestruturas.
O Grupo de Trabalho 1 surgiu das reservas quanto aos cenários do Roteiro, após terem
sido notadas diferenças entre os vários cenários e previsões sobre o gás, que, embora
não fossem determinantes, poderiam gerar desconfiança e incerteza entre os
investidores (UE-Rússia, 2012c, p. 1). O seu principal objetivo consistiu em elaborar uma
proposta para o capítulo sobre o gás do Roteiro UE-Rússia até 2050, que se encontrava
em discussão ao mais alto nível, com o apoio do Grupo Temático sobre Mercados de
Energia e Estratégias (UE-Rússia, 2012b, p. 2). O grupo orientou a sua discussão em
torno dos três principais riscos para as relações bilaterais sobre o gás: procura e
aprovisionamento, onde foram considerados dois cenários de declínio e de aumento na
procura de gás russo pela UE; infraestruturas e regulação, em que foi debatido o
interesse da Gazprom na mudança dos pontos de entrega; e políticos, sobre a possível
discriminação da UE em relação ao gás russo e a motivação política de ambas as partes
nos termos comerciais das suas políticas energéticas (UE-Rússia, 2013, pp. 1-2).
O Grupo de Trabalho 2 surgiu da necessidade de prosseguir com as consultas a
especialistas sobre a implementação do Terceiro Pacote de Energia da UE. Os objetivos
desta linha de trabalho compreendem a continuação dessas consultas e a análise das
principais questões do mercado russo de gás (UE-Rússia, 2012c, p. 2). As principais
linhas de discussão relacionaram-se com a segurança no fornecimento e na procura, os
preços, a capacidade de transporte e as possíveis consequências do Terceiro Pacote de
Energia para o mercado russo (UE-Rússia, 2012b, pp. 3-4).
Finalmente, o Grupo de Trabalho 3 focou-se na ―promoção de novos projetos
de infraestruturas de gás‖, na ―elaboração de critérios para definir os projetos de
interesse comum entre a Rússia e a UE‖, na elaboração de ―recomendações sobre o
conteúdo das provisões quanto à infraestrutura eficiente e mutuamente aceitável do
novo acordo internacional UE-Rússia‖, na garantia ―da segurança e confiabilidade da
infraestrutura de gás existente‖ e na ―discussão de custos, benefícios e viabilidade geral
A estrutura organizacional do Diálogo Energético UE-Rússia: uma arquitetura eficaz?
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 40
(incluindo tarefas associadas) de um potencial de serviço europeu de distribuição de
gás‖ (UE-Rússia, 2012d, p. 3). Apesar do sucesso das discussões levadas a cabo pelos
grupos de trabalho, as atividades programadas para 2014 foram suspensas.
7. QUARTA REESTRUTURAÇÃO (2014)
A última alteração à orgânica do Diálogo ocorreu em 2014, resultante da
remoção da Parceria para a Modernização da estrutura, devido à perda da sua
importância no quadro das relações bilaterais entre a UE e a Rússia, e a conversão do
subgrupo sobre as Relações UE-Rússia até 2050 no Grupo de Monitorização para o
Roteiro até 2050, uma vez que a função do subgrupo de preparar o documento findou
com a sua aprovação em março de 2013. Assim, em 2014, o Diálogo Energético
encontrava-se alicerçado em (Figura 4):
a) Dois coordenadores, representando cada uma das partes – o Comissário
Europeu para a Energia e o Ministro russo da Energia. Reuniam-se regularmente e
tinham como função coordenar e definir as linhas de orientação do trabalho
desenvolvido pelo Diálogo. As suas atividades, que se resumiam a meros encontros
bilaterais até dezembro de 2008, incluíam a definição da agenda e recomendações aos
grupos temáticos e a discussão de assuntos transversais (CE, 2009, p. 21). Os
coordenadores eram apoiados por dois coordenadores delegados, cada um
representando a UE e a Rússia.
b) Os quatro grupos temáticos resultantes da anterior reestruturação,
copresididos por um elemento representante de cada uma das partes. O seu objetivo
era apoiar e aprofundar a parceria energética, contribuindo para a sua estabilidade e
durabilidade, através de um trabalho orientado por programas de médio a longo prazo
e submetidos à aprovação dos coordenadores do Diálogo (UE-Rússia, 2007a, p. 3). Para
o cumprimento dos seus objetivos, reuniam-se regularmente e podiam ser apoiados
por subgrupos especializados, sendo diferenciados os seus propósitos e atividades.
c) Um grupo de monitorização para o Roteiro UE-Rússia até 2050.
d) O Conselho Consultivo do Gás e os seus grupos de trabalho.
Pedro Camacho
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 41
Figura 4 – Organograma da estrutura organizacional do Diálogo Energético desde 2014. Composição dos
grupos temáticos em 2014. Fonte: Camacho (2016).
Apesar destas alterações terem entrado em vigor em 2014, o Diálogo
Energético nunca funcionou segundo estes moldes, em consequência da suspensão
das relações diplomáticas entre a UE e a Rússia. Esta suspensão deve-se à anexação da
Crimeia pela Rússia a 18 de março desse ano, pela celebração de um tratado que
oficializou a anexação da península ucraniana pela Rússia, após um referendo no
território dois dias antes, em que 96,7% votaram pela integração da Crimeia na
Federação Russa (Somin, 2014; BBC, 2014). Estes acontecimentos intensificaram
protestos pró-russos na zona leste da Ucrânia desde então, especialmente nas regiões
de Luhansk e Donetsk (OSCE, 2017). A maioria da comunidade internacional condenou
expressamente a Rússia pelo seu papel no desenrolar da situação e pela anexação da
Crimeia, não reconhecendo a legitimidade dos atos e defendendo a integridade do
território ucraniano (ONU, 2014), uma vez que o referendo e a posterior anexação do
território ucraniano violam o direito internacional e a Constituição da Ucrânia (Marxsen,
2014, pp. 380-389).
A estrutura organizacional do Diálogo Energético UE-Rússia: uma arquitetura eficaz?
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 42
8. CONCLUSÕES
Ao longo deste artigo, procurámos detalhar o percurso prosseguido pelo
Diálogo Energético UE-Rússia, durante os seus 14 anos de atividade. O Diálogo,
instituído em 2000 para aprofundar a cooperação energética entre as partes, sofreu
sucessivas reformas à sua estrutura organizacional, principalmente devido às
interrupções no fornecimento de gás à Ucrânia em 2006 e 2009. Contudo, as relações
bilaterais foram interrompidas em 2014, no decurso da situação crítica na Ucrânia, pelo
que nos cumpre analisar se a sua estrutura organizacional foi eficaz no
desenvolvimento da cooperação energética entre a UE e a Rússia.
Ao analisarmos o Diálogo Energético quanto à sua estrutura, verificamos que
este encontrou-se limitado na sua atividade. A praticabilidade e a dinâmica do Diálogo
estiveram restringidas durante os primeiros quatro anos da sua existência. As suas
atividades consistiram em duas reuniões anuais dos dois coordenadores, que
discutiram alguns assuntos importantes sem qualquer resultado prático. A estrutura
resumia-se, ela própria, aos coordenadores, apoiados por administrativos, sem
qualquer pessoal especializado que materializasse as metas do Diálogo, através da
elaboração, execução e avaliação de estratégias, projetos e políticas energéticas. A
satisfação dessa necessidade viria a ocorrer somente em 2005, com a constituição de
grupos temáticos para discutirem e analisarem assuntos específicos, reunindo técnicos
especializados sob um plano de trabalho pré-definido. Consideramos, assim, que os
primeiros quatro anos revelaram dificuldades para o estabelecimento de um diálogo
mais abrangente e representaram um sério obstáculo ao desenvolvimento de uma
agenda objetiva, com capacidade para responder a desafios e necessidades das partes.
As sucessivas reorganizações institucionais a partir de 2005 assinalaram a falta
de solidez das bases do Diálogo Energético, prejudicando o cumprimento da sua
agenda. Sem perder a matriz intergovernamental, o Diálogo sofreu quatro alterações
na sua orgânica em apenas nove anos. Duas dessas alterações surgiram na sequência
das interrupções ao fornecimento de gás russo à Ucrânia em 2006 e 2009. Este facto
assinala a insuficiência das alterações de 2005 e de 2007 em conseguirem arquitetar, no
Pedro Camacho
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 43
seu quadro institucional, uma estratégia de prevenção ou de contenção das
consequências de uma futura interrupção ao fornecimento de gás, que viria a ser
colmatada com a instituição do Mecanismo de Alerta Rápido.
À parte destas considerações, as alterações podem oferecer uma leitura positiva
sobre a dinâmica do Diálogo, denunciando a maleabilidade da estrutura organizacional
para se adaptar às circunstâncias e às necessidades do presente. Nós consideramos
que, apesar das duas primeiras reorganizações não terem impedido os cortes no
fornecimento de gás, simbolizaram a especialização dos trabalhos do Diálogo e
estabeleceram as bases para a estrutura organizacional atual.
As discussões decorridas no Diálogo Energético não tiveram transposição ou
influência direta no processo de tomada de decisão da UE ou da Rússia, embora
tenham produzido alguns efeitos na aplicação de diretrizes legislativas pelo governo
russo para melhorar a política fiscal e o acesso ao investimento. Foram várias as
temáticas abordadas no quadro deste diálogo, destacando-se o investimento e o papel
dos contratos a longo prazo na garantia do mesmo, os projetos estratégicos de
interesse comum, a eficiência e a eficácia energética, o desenvolvimento dos mercados
energéticos, a definição de estratégias a longo prazo, a análise de cenários e previsões
sobre padrões de produção e de consumo, e a segurança energética. Estas discussões
confirmaram o papel determinante do Diálogo na promoção da comunicação entre as
duas partes sobre a energia, contrapondo com a opacidade da década de 1990, e
beneficiaram do trabalho desenvolvido pelos grupos temáticos, pelo Centro
Tecnológico e pelo Conselho Consultivo do Gás, cujo leque de atividades estimulou a
pluralidade de opiniões e argumentos, tais como reuniões, conferências e workshops.
A descontinuidade do Conselho Consultivo do Gás significou um retrocesso na
dinâmica do Diálogo Energético e hipotecou parte do trabalho já desenvolvido. O
estabelecimento deste mecanismo foi um sucesso para o desenvolvimento das relações
entre as partes, afirmando-se como um espaço privilegiado para a discussão sobre o
gás nas suas mais variadas vertentes, reunindo regularmente os mais diversos
especialistas, num ambiente quase académico. Essa caraterística permitiu o
desenvolvimento das suas atividades de forma transparente e independente,
A estrutura organizacional do Diálogo Energético UE-Rússia: uma arquitetura eficaz?
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 44
fornecendo análises importantes para a concretização das ações desenvolvidas pelo
Diálogo. Apesar da sua curta existência de dois anos, o Conselho foi uma das iniciativas
mais bem-sucedidas deste diálogo, pelas suas realizações e pelo ambiente de trabalho
gerador de cooperação. Embora a sua extinção não seja clara, nós consideramos que
espelha a deterioração das relações bilaterais no quadro do Diálogo Energético. A sua
extinção prejudicou o impacto positivo que o trabalho desenvolvido no
aprofundamento das relações bilaterais sobre o gás, essencial para a beneficiação e
atualização das infraestruturas na Rússia.
O reduzido nível de transparência e de consistência no acesso à informação
acerca das atividades desenvolvidas pelo Diálogo Energético tiveram um impacto
negativo. O Diálogo foi uma excelente oportunidade para a UE desmitificar receios e
perceções sobre a Rússia, principalmente como fornecedor fiável de energia para a
Europa. Embora as atividades promovidas por este diálogo tenham-se intensificado
após a segunda reestruturação, a qualidade da informação disponível e a sua
divulgação junto dos cidadãos europeus foram muito modestas e quase impercetíveis.
Exemplo disso é a página ―oficial‖ do Diálogo, enquadrada na página institucional da
Comissão Europeia, cujos conteúdos são reduzidos e não se encontram completos,
detetando-se vários documentos em falta, incluindo os relatórios anuais que
sumarizam as atividades desenvolvidas. Não se compreende como a UE não consegue
facilitar e promover o livre acesso a essa documentação a todos os cidadãos, quando
esse é um dos principais traços distintivos da UE.
Assim, qualquer cidadão que deseje compreender a dinâmica e o trabalho
desenvolvido pelo Diálogo desde a sua implementação, enfrenta dificuldades no
acesso à informação, que se encontra dispersa por várias páginas institucionais ou
condicionada a um pedido formal aos serviços e organismos da UE. Para além disso, a
informação veiculada nesses documentos é parca e omissa em diversos aspetos,
relevando um certo secretismo sobre as discussões ocorridas. A exceção à regra foi o
Conselho Consultivo do Gás, cujas discussões são detalhadamente explicadas nos seus
relatórios, disponibilizados na íntegra com os termos de referência do Conselho e
outros documentos.
Pedro Camacho
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 45
A exclusão dos países de trânsito da mesa das discussões não contribuiu para a
eficácia do Diálogo Energético. A participação dos países de trânsito, nomeadamente a
Bielorrússia e a Ucrânia, deveria ter sido equacionada aquando da criação do Diálogo,
por serem peças fundamentais nos fluxos energéticos entre o fornecedor e os
consumidores, neste caso a Rússia e os Estados-membros da UE. O transporte de gás
natural e petróleo russos para a Europa depende, em larga medida, da passagem pela
Bielorrússia e a Ucrânia e das suas infraestruturas. Embora as partes tivessem
consciência deste facto e de que a manutenção e a atualização da rede de
infraestruturas nos países de trânsito fossem fulcrais para a segurança energética, estes
não tiveram nenhuma oportunidade de se expressarem em sede do Diálogo. Fora
deste, as iniciativas europeias em facultar um enquadramento legal único para as suas
relações energéticas com a Rússia e os países de trânsito falharam, devido à Rússia ter
recusado as disposições da Carta Europeia de Energia e do Tratado da Carta da Energia
e a sua integração na Política Europeia de Vizinhança e na Comunidade de Energia.
Consideramos que o Diálogo deveria ter encetado reuniões multilaterais com os
países de trânsito ou mesmo integrá-los, embora esta última opção seja pouco
plausível, permitindo que tivessem uma voz mais ativa sobre os investimentos e
projetos de interesse comum e garantindo um possível enquadramento para a
resolução de disputas sobre o fornecimento de gás. Este poderia ter evitado as
interrupções na Ucrânia ou, em última instância, contribuído para uma suavização mais
célere das suas consequências. Neste aspeto, consideramos que o Diálogo foi incapaz
de prever, conter ou solucionar essas falhas, revelando as fraquezas da sua
organização, que, inclusivamente, impeliram para algumas das reformas estruturais,
como referimos, e a criação do Mecanismo de Alerta Rápido. Além disso, consideramos
que os países de trânsito foram, deliberadamente, excluídos de qualquer diálogo ou
enquadramento comum para a energia, por forma a manter um espaço de influência
comum, resultando numa contínua disputa entre a UE e a Rússia sobre essa mesma
influência (como o caso da Ucrânia), ou garantir a influência pós-soviética da Rússia
sobre algumas ex-repúblicas socialistas soviéticas (como o caso da Bielorrússia).
A estrutura organizacional do Diálogo Energético UE-Rússia: uma arquitetura eficaz?
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 46
Estas condicionantes internas tiveram um impacto negativo na concretização e
alguns dos objetivos estabelecidos pelo Diálogo. Poucas realizações advieram das
discussões sobre o investimento, apenas reconheceu-se os contratos take or pay como
o baluarte de qualquer investimento na rede, mantendo-se os seus principais trâmites
inalterados (como a cláusula de destino) e sem capacidade para responder aos desafios
eminentes da Rússia, devido à falta de capital necessário para incrementar a sua
capacidade de produção e de transporte. Este aumento é essencial para a Rússia dar
resposta às necessidades de um mercado energético crescente e exigente.
A garantia de segurança e a adequação técnica das infraestruturas revelou-se
insuficiente, apesar de ter sido previsto o financiamento necessário para a elaboração
de um projeto de modernização. No respeitante ao aumento na utilização de energias
renováveis e tecnologias amigas do ambiente na Rússia, a UE procurou que essa
participasse no combate global às alterações climáticas, uma das grandes bandeiras da
UE, mas também garantisse um maior volume de petróleo e gás natural para
exportação. Assim, uma maior proporção de energias limpas na produção energética
permitiria à Rússia ter uma maior quantidade de gás natural e petróleo para responder
à procura externa. Este objetivo contribuiria para a garantia da segurança energética da
UE, ainda que não tenha surtido o efeito desejado. Apesar de ter sido um tema
sobejamente debatido e da intenção em desenvolver projetos e planos para a sua
implementação, não foram concretizadas ações concretas que significassem uma maior
proporção das energias renováveis na Rússia.
Contudo, verificamos que o Diálogo Energético se tornou num fórum para as
várias discussões sobre a energia, através dos seus grupos temáticos e dos grupos de
trabalho do Conselho Consultivo do Gás, permitindo o intercâmbio de ideias sobre os
projetos legislativos. A UE e a Rússia utilizaram-no como plataforma para apresentarem
as suas mais recentes iniciativas sobre estratégias, políticas e legislação para a energia.
Contribuiu, com sucesso, na promoção da eficiência e da poupança energética pelo
estabelecimento de diretrizes, a elaboração de relatórios de monitorização energética e
a programação de várias ações que se concretizaram em projetos concretos e
exequíveis. Este sucesso prende-se com o baixo nível de politização e de compromisso,
Pedro Camacho
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 47
pois as discussões em torno das estratégias e propostas legislativas não tinham caráter
vinculativo e os projetos de eficiência energética não contrariavam a política energética
da Rússia, ao beneficiar e garantir financiamento para as suas infraestruturas.
Em suma, e perante o exposto, consideramos que a arquitetura institucional do
Diálogo Energético revelou-se ineficaz para a concretização da sua missão. Ainda
assim, o Diálogo Energético foi o expoente máximo do aprofundamento das relações
energéticas, representando uma oportunidade para enquadrar a energia na relação
bilateral UE-Rússia, com particular enforque para o petróleo e o gás natural pela sua
importância para ambas as economias. Deste modo, o Diálogo simbolizou a vontade
da UE e da Rússia em convergirem os seus mercados energéticos, reunindo diversos
oficiais, técnicos, empresários e académicos ao mais alto nível, permitindo-lhes a
discussão de variadas matérias sobre a energia e a realização de atividades e projetos
que contribuíssem positivamente para os mercados energéticos da UE e da Rússia.
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União Europeia: Uma breve história do futuro para o governo dos bens comuns europeu
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UNIÃO EUROPEIA: UMA BREVE HISTÓRIA DO FUTURO PARA
UM GOVERNO DOS BENS COMUNS EUROPEU
ANTÓNIO COVAS1
RESUMO
A integração europeia é um bom exemplo de aplicação de uma teoria dos comuns, embora esta perspetiva
não seja muito habitual. Estamos, porém, convencidos de que a via do federalismo cooperativo é uma
excelente aproximação a esta teoria dos bens comuns ou colaborativa, como agora se diz. 60 anos depois
do tratado de Roma e num ano, 2017, em que tudo pode acontecer, inclusive, uma “tragédia dos comuns”,
decidimos que há motivos suficientes para fazer uma breve viagem ao futuro do projeto europeu e
desenhar um decálogo dos “comuns europeus”, como guião para o próximo programa governativo da
União Europeia.
Palavras-chave: Integração europeia, Comuns europeus, Federalismo cooperativo.
ABSTRACT
European Union: A brief History of the Future for a government of European commons. It is not a very usual
outlook, but from the political point of view, the European integration is a good application of the
commons based theory. Besides, we are also convinced that the cooperative federalism method is an
excellent approach to this theory. In 2017, and 60 years after the Treaty of Rome, everything seems again
at stake, that is why we decided to make a small journey to the future of the European project and, for that
purpose, to redesign the European commons catalogue for the next European government.
Keywords: European integration, European commons, Cooperative federalism.
Histórico do artigo: recebido em 18-04-2017; aprovado em 26-04-2017; publicado em 05-05-2017.
Publicação a convite do Conselho Editorial. 1 Professor Catedrático da Faculdade de Economia da Universidade do Algarve e Membro do Centro de
Investigação sobre Espaço e Organizações. Faro, Portugal. E-mail: [email protected].
António Covas
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 57
1. INTRODUÇÃO
Em 2017, comemoramos os 60 anos do tratado de Roma que criou a
Comunidade Económica Europeia (CEE). É uma data plena de simbolismo. Em primeiro
lugar, por assinalar um dos mais longos períodos de paz na Europa. Em segundo lugar,
por coincidir com a primeira saída de um Estado-membro da União Europeia e logo o
Reino Unido. Em terceiro lugar, por marcar, pela primeira vez, que as relações
transatlânticas já não são o que eram. Finalmente, porque 2017 é o ano de todas as
eleições europeias, algures entre o acaso e a necessidade, algures entre a vaga
populista europeia e a desafeição pelas instituições europeias.
Para o efeito, vamos realizar duas curtas viagens ao projeto europeu. A primeira,
ao passado recente para recordar o lado federal da construção europeia. A segunda,
para fazer uma brevíssima viagem ao futuro através de uma pequena incursão pelos
“comuns europeus”, que aqui expomos sob a forma de uma proposta de governo dos
bens comuns europeus (Covas, 2015; 2016).
2. UMA BREVE HISTÓRIA DO PASSADO RECENTE
A ideia de Federação de Estados-Nação não é nova (Delors referiu-a em 1994),
pois inscreve-se na grande tradição do projeto europeu, do método Monnet e da sua
política de pequenos passos. A ideia base tem sido, sucessivamente, denominada de
federal, comunitária ou unionista, mas, na sua origem, está sempre o mesmo princípio
nuclear, a saber, a precedência do duplo soberano nacional (os povos e os estados)
sobre as instituições europeias, seja qual for o nível de soberania partilhado já atingido.
Dentro deste princípio nuclear e em função das necessidades, das crises e das relações
de poder, a ideia de “mais ou menos federação” varia, historicamente, em redor das
atribuições e competências transferidas (princípio da subordinação material aos
tratados das competências de atribuição), dos processos de tomada de decisão
(formação da unanimidade e das diferentes maiorias) e dos mecanismos de
União Europeia: Uma breve história do futuro para o governo dos bens comuns europeu
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 58
accountability e controlo de subsidiariedade no que respeita à implementação das
políticas europeias.
2.1. UMA FEDERAÇÃO DE ESTADOS-NAÇÃO NÃO É UM ESTADO FEDERAL
Tomo como acertadas as palavras do Ex-presidente da Comissão Europeia
durante o seu discurso sobre “o estado da União”, proferido no dia 12 de Setembro de
2012 no Parlamento Europeu. Na altura, o Presidente da Comissão Europeia fez um
apelo à criação de uma Federação de Estados-Nação. Eis alguns excertos do seu
discurso:
Não tenhamos medo das palavras, precisamos de avançar no sentido de uma
Federação de Estados-Nação, mas não de um super-Estado .
Na era da globalização, a agregação de soberanias significa mais poder, não
menos. Nestes tempos conturbados não devemos deixar a defesa da nação nas mãos dos
nacionalistas e dos populistas.
Uma união económica e monetária genuína e profunda pode ser iniciada ao
abrigo dos atuais tratados, mas só poderá ser concluída se forem introduzidas alterações
aos tratados. Comecemos, pois, agora, mas tenhamos presente nas nossas decisões de
hoje o horizonte necessário para o futuro.
E deverá ser lançado um amplo debate em toda a Europa. Um debate que deverá
realizar-se antes da convocação de uma convenção e de uma conferência
intergovernamental. Um debate que tenha verdadeira dimensão europeia.
Já não estamos no tempo em que a integração europeia era feita por
consentimento implícito dos cidadãos. A Europa não pode ser tecnocrática, burocrática,
nem mesmo diplomática. A Europa tem de ser cada vez mais democrática.
Não devemos permitir que os populistas e nacionalistas estabeleçam uma agenda
negativa. Espero que todos os que se consideram europeus estejam presentes neste
debate. Porque, ainda mais perigoso do que o ceticismo dos anti-europeus é a indiferença
ou o pessimismo dos pró-europeus.
António Covas
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 59
Não temos que pedir desculpa pela nossa democracia, pela nossa economia social
de mercado, pelos nossos valores de coesão social, respeito pelos direitos humanos e
dignidade humana, igualdade entre homens e mulheres, respeito pelo nosso ambiente. As
sociedades europeias, com todos os seus problemas, contam-se entre as mais dignas da
história da humanidade e devemos ter orgulho disso.
Gerações anteriores à nossa ultrapassaram desafios ainda maiores. Cabe agora a
esta geração demonstrar que está à altura desta responsabilidade. Hoje, tal significa
tornar a União capaz de enfrentar os desafios da globalização.
O federalismo político estava na moda no princípio dos anos cinquenta do
século passado. Para vincar a diferença da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço
face à organização do Conselho da Europa, Jean Monnet afirmava: “Nada é possível
sem os homens, nada é duradouro sem as instituições, quem não trouxer o método
não faz avançar os problemas”. Tal como ainda hoje, o Reino Unido anunciava, na
altura, em comunicado de imprensa, a impossibilidade da sua participação em tal
organização supranacional.
Apesar do federalismo pragmático de Jean Monnet, a euforia federalista
acabaria por fazer fracassar duas outras tentativas, a Comunidade Europeia de Defesa e
a Comunidade Política Europeia. A causa próxima é a guerra da Coreia e a iminência de
uma terceira guerra mundial, razão pela qual os EUA levantaram a questão controversa
do rearmamento alemão. Depois deste duplo abandono, as consequências eram
previsíveis. Nenhum tipo de federalismo iria, doravante, ocupar a boca de cena. As
novas Comunidades Europeias de 1957 (Comunidade Económica Europeia e
Comunidade Europeia da Energia Atómica) deixaram cair o modelo da Alta Autoridade
com poderes supranacionais. Tinha acabado a primeira fase do processo de construção
europeia, a fase federalista. A economia passaria, doravante, a ocupar o palco principal
do processo de integração.
Daí para cá a história é conhecida. Uma pequena incursão histórica por seis
décadas de construção europeia permite-nos perceber nela três grandes períodos e
três filosofias de integração. O período que decorre entre o fim da Segunda Grande
União Europeia: Uma breve história do futuro para o governo dos bens comuns europeu
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 60
Guerra (1945) e o fim da Guerra Fria (1989), marcado por uma filosofia de integração
funcionalista, jurídico-económica e tecnocrática, no quadro mais geral das relações
bipolares definidas pelas duas grandes superpotências. O período vertiginoso que
decorre entre a queda do muro de Berlim (1989) e o momento de ratificação do
tratado constitucional (2005), marcado por uma filosofia de integração mais
voluntarista, política e institucionalmente, seja na adoção de uma moeda única, na
definição de uma política externa e de segurança comum, na implementação de uma
cooperação policial e judicial em matéria penal ou, finalmente, no grande objetivo do
alargamento. Finalmente, o terceiro período, que se inicia com o veto de França e
Holanda (2005) ao tratado constitucional, com passagem pelo tratado de Lisboa, e, por
fim, a grande crise sistémica de 2008, marcado pelo regresso do
intergovernamentalismo, a multiplicação das cimeiras europeias e o espetáculo
político-mediático dos encontros informais do diretório franco-alemão.
Em todos estes “saltos” o contexto histórico é determinante. Foi quase sempre
assim nos últimos sessenta anos. Não são, geralmente, os tratados que determinam a
política europeia, são, antes, os acontecimentos que desencadeiam os rearranjos
político-institucionais.
Este percurso é, desde o princípio, marcado pela eterna oposição entre as duas
principais correntes ou filosofias de integração que, até hoje, acompanham o processo
de construção europeia. As correntes de inspiração federalista, com várias tonalidades,
partilham uma visão unitária e integracionista que pode conduzir ou não à criação de
um estado federal europeu ou de características marcadamente federais. As correntes
de inspiração intergovernamental, também com várias intensidades, partilham uma
visão mais aberta e cooperativa do processo de integração, assente em regras,
processos e procedimentos, mais do que em burocracia e legislação.
Salientámos, no início, que a Federação de Estados-Nação não é um Estado
Federal. Vale a pena, por isso, regressar, mais uma vez, aos inspirados princípios
federativos (Covas, 2002, p. 51) e marcar os traços distintivos do nosso entendimento
da ideia de federação:
a) Uma federação deve recusar a ideia de hegemonia;
António Covas
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 61
b) Uma federação deve renunciar ao espírito de sistema;
c) Uma federação não conhece problemas de minorias,
d) Uma federação promove a diversidade;
e) Uma federação repousa sobre o princípio da complexidade;
f) Uma federação privilegia as pessoas e os grupos.
Para perguntar, afinal, quem tem medo destes princípios? Talvez todos aqueles
que ambicionam condicionar a entidade política democrática em que a União se
tornará progressivamente, em benefício dos cidadãos europeus e contra os grupos de
interesse que a procuram utilizar em nome do imperativo da racionalização dos
interesses antes operada pelos Estados nacionais. Para eles, é, também, um imperativo
agitar o espantalho do demónio federalista que identificam com uma nova servidão
burocrática de um Super-Estado, de acordo com uma malévola política constitucional
que seria promovida pelo unitarismo unionista de inspiração jacobina. Ficaria, assim,
criada a dogmática anti-federal, muito mais fácil de “vender” do que aqueles belos
princípios teóricos da retórica federal.
2.2. A QUADRATURA DO CÍRCULO EUROPEU
Dito isto, o que o apelo do Ex-Presidente Durão Barroso parece querer dizer é
que o empirismo e o incrementalismo europeus, sendo uma condição necessária, não é
uma condição suficiente para lidar com o processo de globalização e o “regime
globalitário”. O passo seguinte não significa, porém, dar “um golpe constitucional” no
projeto europeu e criar um Super-Estado Federal, burocrático e autocrático que seria,
tarde ou cedo, capturado pelos grupos de interesses europeus e multinacionais. O que
está em causa não é um Estado Federal criado por um Ato Constitucional e mudando a
ordem dos soberanos, mas, antes, o lançamento de algumas âncoras federais que
assegurem uma linha de rumo consistente, de médio e longo prazo, ao projeto
europeu, por exemplo, um BCE multi-objetivos, um orçamento com dimensão e
União Europeia: Uma breve história do futuro para o governo dos bens comuns europeu
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 62
funções federais e um tesouro com funções de estabilização (obrigações de
estabilidade) e mutualização da dívida europeia (obrigações de crescimento).
O que temos hoje é um discurso dominante, de matriz neo-mercantilista e neo-
liberal onde tudo ou quase tudo é transacionável neste gigantesco sistema de vasos
comunicantes que é a economia-mundo. Nesta economia-mundo as dificuldades de
ajustamento seriam apenas transitórias. A liberdade de circulação de mercadorias,
serviços, pessoas e capitais encarregar-se-ia, por ajustamentos sucessivos, de promover
os equilíbrios necessários. Estaríamos, assim, face a movimentos sequenciais de
dilatação-contracção da economia-mundo, numa espécie de economia natural, que
nasce, cresce e morre.
Nesta economia-mundo e neste mundo plano (Friedman, 2008) o território foi
abolido e a turbulência doméstica é uma história menor. Cada país vive o seu ciclo de
vida, mais ou menos adaptado, a turbulência deve-se a erros de gestão e pilotagem
cometidos por governos e administrações incompetentes. A começar pelo Estado-
nacional, “o grande pecador”.
Na narrativa dominante, que tem sido também a narrativa europeia, o
“ajustamento português” é inevitável e necessário, devido à dívida acumulada. Ele
“obriga-nos” a desinvestir agora para formar poupança e voltar a investir mais à frente.
De algum modo, a empobrecer agora para voltar a crescer mais tarde, supostamente
em melhores condições e mais duradouramente. Em síntese, estamos a assistir a uma
verdadeira batalha económica entre fatores móveis e fatores imóveis, recaindo o
esforço de ajustamento, essencialmente, sobre os segundos. Nesta narrativa neo-
mercantilista e neo-liberal, a grande recessão de 2008-2009 avisa-nos de que a
globalização hegemónica continuará a fazer as suas vítimas, a empobrecer parcelas
crescentes dos territórios nacionais e a seduzir os mais incautos, desequilibrando
perigosamente a relação entre expetativas e recursos dos diversos grupos domésticos
em presença.
Se a equação globalização-federação é o maior de todos os desafios que
enfrenta a Federação de Estados-Nação, no atual contexto o maior perigo é a sua
contra-face, isto é, a equação protecionismo-nacionalismo. Uma verdadeira quadratura
António Covas
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 63
do círculo num sistema político indeterminado onde o número de incógnitas é superior
ao número de equações.
Em 2017, vivemos novamente “uma tragédia dos comuns” que pode ser
expressa do seguinte modo: por um lado, sem inspiração federal não há ambição
suficiente para reformar duradouramente a União Europeia, por outro, sem a ambição
dos propósitos e dos objetivos não é realizável uma modernização das instituições que
seja verdadeiramente reformista e mobilizadora.
Para cumprir este programa de longo alcance, a Federação Europeia de
Estados-Nação deve cumprir dois princípios essenciais de reciprocidade: o crescimento
económico duradouro é um bem comum inestimável para todas as regiões do mundo
que se devem concertar para o efeito, por outro lado, todo o ajustamento deve ser
realizado simetricamente, isto é, ao mesmo tempo por redução de despesa dos países
deficitários e aumento de despesa dos países excedentários. Esse ajustamento deve ser,
igualmente, concertado. Assim se garante uma estabilização mais curta e um regresso
ao crescimento económico também mais rápido. Se assim não for, sem uma correção e
regulação muito fortes da atual globalização hegemónica, não há políticas domésticas
europeias e nacionais que resistam a estas disfunções macroeconómicas. Em
consequência dessas disfunções, baixam a eficácia, eficiência, equidade e efetividade
das políticas públicas.
Estamos em 2017, um ano eleitoral em três países europeus fundadores
(Holanda, França e Alemanha), eleições marcadas pela ascensão dos partidos e
movimentos populistas e anti-europeus. Na “ordem europeia” vivemos em autêntico
estado de emergência nos países da Europa do Sul, onde uma grave crise de
ajustamento colide frontalmente com uma grave crise de crescimento. A primeira é
marcada pela consolidação orçamental, recapitalização bancária e pela
“desalavancagem” do crédito concedido. A segunda é marcada pela emergência do
segundo mundo, pela desindustrialização e deslocalização do investimento europeu e
pela lentidão, no plano interno, de reformas estruturais efetivas, que protejam o
Estado-Providência e o modelo social europeu.
União Europeia: Uma breve história do futuro para o governo dos bens comuns europeu
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 64
2.3. OS SETE DESAFIOS DA UNIÃO POLÍTICA EUROPEIA
Neste contexto e no plano europeu, a futura “Federação Europeia de Estados-
Nação” terá pela frente uma agenda política sobrecarregada e sete grandes desafios, a
saber:
1.º desafio: o poder geopolítico de um ator global como a União Europeia. É o
regresso em força da história, da geografia e do equilíbrio de poderes ao
cenário europeu continental. Como lidar com “a frente externa” e o regime
globalitário e escapar ao seu determinismo sistémico, ao mesmo tempo que, no
plano interno, estamos a braços com taxas anémicas de crescimento?
2.º desafio: o equilíbrio de poderes entre as instituições europeias e os Estados
nacionais. Em que medida a criação de uma “Federação Europeia de Estados-
Nação” afeta o equilíbrio de poderes entre as instituições europeias e os
Estados nacionais, entre a democracia europeia e o Estado pós-nacional, em
presença de uma situação de emergência social e económica? Entre o
unilateralismo alemão, o diretório franco-germânico, a balcanização continental,
ainda há espaço para uma Federação Europeia?
3.º desafio: a coesão económica e a assimetria da política macroeconómica. Em
que medida o “Estado-exíguo” e a sua frágil política económica podem
assegurar os “mínimos democráticos” face às baixas taxas de crescimento de
pequenas economias abertas, em fase intermédia de desenvolvimento, como a
portuguesa, e em que medida essa exiguidade é contrabalançada pela política
económica da Federação?
4.º desafio: a geopolítica interna da União, o fluxo de imigrantes e refugiados. O
alargamento ao leste europeu mudou o paradigma da integração europeia, a
União a 15 é muito diferente da União a 28; a história reencontrou-se com a
geografia, a heterogeneidade e a diferenciação acentuaram-se, a repartição de
poderes ficou mais disputada, a ambição tornou-se mais difusa, os meios
disponíveis mais escassos e a segurança coletiva cada vez mais próxima da
António Covas
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 65
segurança interna; a este panorama, junte-se o fluxo de imigrantes e refugiados
e teremos uma sociologia política interna em overbooking permanente e plena
de interesses difusos e contraditórios.
5º desafio: a coesão social e o emprego nas sociedades nacionais e europeia.
Face ao declínio da velha ordem industrialista e à emergência da sociedade do
conhecimento e da revolução digital, está em causa o velho “Estado-
Providência”, pelo menos tal como o conhecemos hoje; como reorganizar o
modelo social europeu e em que medida a União é um território apropriado
para uma “sociedade previdente” e para uma institucionalização complementar
de “fiscalidade, proteção social e segurança interna”, onde se inclui também o
debate sobre o rendimento básico universal?
6.º desafio: a coesão territorial ou o fundamento para uma doutrina regionalista
europeia. O que está em causa é saber se “o mundo é plano”, isto é, se as
pessoas, e os territórios-lugares onde vivem, são, definitivamente, variáveis
endógenas do sistema mercantil dominante ou, pelo contrário, se o sistema
político, constituído por pessoas, territórios e instituições, garante “os mínimos
democráticos” da coesão territorial e, neste contexto, se a União Europeia é um
quadro político apropriado para favorecer o desenvolvimento e a cooperação
de euro-regiões e euro-cidades no interior do espaço da Federação.
7.º desafio: o capital simbólico necessário à legitimidade da Federação Europeia.
A União Europeia não tem sido capaz de se “inscrever” no plano simbólico-
cultural e no quotidiano dos cidadãos. Enquanto tal não acontecer, os Estados-
membros ficam reféns desse sentimento de orfandade europeia dos seus
cidadãos. Sem a esperança do futuro e do futuro como política, a União
Europeia ficará prisioneira dos seus critérios economicistas e financeiros de
curto prazo. Se a Federação Europeia não for capaz de devolver a confiança e a
esperança aos cidadãos europeus, recriando, para o efeito, o espaço público
europeu, o crescimento dos movimentos populistas na Europa irá colocar-nos à
beira de uma nova “tragédia dos comuns”.
União Europeia: Uma breve história do futuro para o governo dos bens comuns europeu
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 66
Seja como for, já se percebeu que a aventura europeia prosseguirá por um
caminho estreito e sinuoso, entre a utopia, a necessidade e a contingência. Vejamos o
que nos reserva o próximo futuro.
3. UMA BREVE HISTÓRIA AO FUTURO DO PROJETO EUROPEU
Sem seguir de perto os cinco cenários propostos pelo Presidente Juncker no
Livro Branco da Comissão Europeia (Comissão Europeia, 2017), preferimos, nesta
circunstância, seguir o nosso próprio caminho e fazer algumas reflexões em redor dos
“bens comuns europeus” e de uma proposta de programa de governo dos comuns da
Federação Europeia, aquilo que designamos aqui como “o programa da 3.ª via
unionista” (Covas, 2016), no quadro de uma espécie particular de federalismo
cooperativo para a construção do projeto europeu (Covas, 2016, p. 242).
A integração europeia é, ela própria, um caso particular de construção de bens
comuns com o alto patrocínio dos Estados nacionais. Vale a pena enunciá-los porque
andam um pouco esquecidos: a paz duradoura entre os povos europeus, os direitos de
uma dupla cidadania, as liberdades inerentes à democracia liberal e ao comércio livre,
os benefícios da economia social de mercado, o Estado de direito social e a regulação
das atividades, os valores da moderação política, a tolerância cultural, a neutralidade
religiosa, uma imprensa livre e o papel nuclear da comunicação social no acesso ao
espaço público.
3.1. UM MODELO DE GOVERNAÇÃO DOS COMUNS PARA A UNIÃO POLÍTICA
EUROPEIA
No livro sobre a contingência europeia (Covas, 2016), abordámos o federalismo
cooperativo com a designação de “3.ª via unionista”, numa linha intermédia e
moderada de reforma institucional que, todavia, está prisioneira, tudo leva a crer, dos
“novos órfãos de Estado”, os partidos radicais e nacionalistas que surgem um pouco
por todo o lado em consequência da aplicação severa pela União Europeia, e o
António Covas
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 67
Eurogrupo em especial, do chamado “princípio da realidade”, que não é outra coisa
senão o europeísmo ideológico da “austeridade virtuosa” como corolário lógico da
relação de poder hoje existente.
Não obstante o “otimismo da vontade”, estamos aparentemente num impasse,
pois há uma contradição interna a funcionar que gera e alimenta continuamente
movimentos e partidos radicais e populistas, não apenas nos extremos do espectro
partidário mas, também, no interior dos partidos mais convencionais onde as alas
eurocéticas fazem sentir a sua insatisfação e inquietação. A discussão sobre o Brexit
não poderia ser mais eloquente a este propósito. Mas, o mesmo se passa em
praticamente todos os Estados do sul do Mediterrâneo.
Todavia, e não obstante o impasse em que nos encontramos, ou talvez por
causa dele, estamos cada vez mais convencidos de que, doravante, devido à dimensão
continental e transcontinental do território europeu, a verdadeira reforma institucional
da União Europeia terá, provavelmente, de ocorrer no terreno organizacional do
federalismo cooperativo através de um padrão governativo adequado à conexão de
macrorregiões que reagrupam Estados-nações (a península Ibérica) ou, mesmo, regiões
de diferentes Estados-Nações (o arco Atlântico). Por isso, vai sendo tempo de refletir
sobre a passagem do centralismo comunitário para um padrão de governação em rede,
coligando espaços descentralizados de integração regional e sub-regional. No fundo,
estamos a respeitar o princípio de subsidiariedade, reconhecendo-se, nuns casos, a
supremacia do regime internacional, noutros casos da integração regional, noutros
casos, ainda, da cooperação interregional descentralizada, sendo certo que a
multiplicação de experiências regionais de integração constitui uma excelente base de
partida para ancorar o neo-multilateralismo e o neo-regionalismo e, por via deles, a
governança europeia e global. Esta é a nossa visão de um poder mais policontextual e
policêntrico que coloca em comunicação os Estados, as regiões, as cidades, os
territórios-rede (Covas e Covas, 2014; 2015).
Este paradigma policontextual e policêntrico lidam bem com os bens comuns
que faz parte do nosso “otimismo da vontade”. Todavia, é quase certo que a União
Europeia e os seus agentes principais continuarão a funcionar e a representar no
União Europeia: Uma breve história do futuro para o governo dos bens comuns europeu
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 68
labirinto institucional de Bruxelas, em jogos de poder nem sempre edificantes,
alimentados pelo calculismo dos parceiros e dos grupos de interesses e, em última
instância, pelas incontornáveis razões de Estado, agora reforçadas com os mais
recentes “radicais e órfãos de Estado”. Estamos em 2017, em compasso de espera, nas
vésperas das eleições francesas e tudo ainda pode acontecer, porém, acreditando que a
razão prática e o espírito dos comuns acabarão por fazer vencimento de causa para lá
do lado muddling through em que se converteu a negociação europeia.
3.2. UM ATO ÚNICO EUROPEU PARA UM GOVERNO DOS BENS COMUNS
EUROPEU
Não obstante o compasso de espera, cremos que o espírito dos comuns pode
ser avançado desde já. Em termos formais, a nossa proposta pode ser abordada por via
de um Ato Único Europeu, uma vez que se trata, sobretudo, de dar maior eficácia e
consistência funcional ao edifício já construído. O decálogo que se refere de seguida é
um programa governativo de geometria variável que a negociação política irá
concertando. Trata-se de uma proposta muito moderada de governo dos bens comuns
europeu.
Em primeiro lugar, não aprovamos o unitarismo unionista e o uso abusivo de
uma política tecno-burocrática com cobertura constitucional. Consideramos, porém, ser
possível sustentar uma soberania partilhada no quadro de uma constituição sem
Estado, por exemplo uma convenção, e aceitar uma dinâmica institucional que nos
conduza, por sucessivos rearranjos formais e materiais, de um tratado internacional até
uma constituição de um tipo novo, que não se confunda com as tradicionais
constituições nacionais. E será sempre uma dinâmica nos dois sentidos. A “dinâmica
convencional” da Federação Europeia de Estados-Nação será ascendente e
descendente, de acordo com o princípio de subsidiariedade, e aqui ela distingue-se,
claramente, de uma eventual constituição dos Estados Unidos da Europa. Podemos,
pois, concluir que:
António Covas
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 69
1) A Europa não será uma democracia orgânica nem uma democracia
adversatorial na linha de um Estado-Nação, mas uma democracia deliberativa e
regulatória sui generis. O Ato Único Europeu pode estabelecer e aprofundar os
termos dessa democracia deliberativa.
Em segundo lugar, se a União Europeia não evoluir, a breve prazo, para uma
Federação de Estados-Nação, aprendendo, de resto, com a experiência prática do
federalismo cooperativo alemão (a tese da europeização da Alemanha) e, em vez disso,
continuar a exercitar a prática sinuosa das cimeiras e dos diretórios
intergovernamentais em que a Alemanha desempenha, claramente, um papel
hegemónico (a tese da germanização da Europa), então, não surpreenderá que, no
quadro do regime globalitário dominante, possamos voltar à política de potência e ao
xadrez do equilíbrio de poderes, à semelhança de outras conjunturas históricas como a
Mitteleuropa (século XIX) ou a Ostpolitik (anos 60 do século XX). De onde se conclui
que:
2) Sabemos que não há uma relação direta entre estrutura e resultado. Está em
causa a governação multiníveis do federalismo cooperativo, subsidiário e
descentralizado, um bem comum de um valor inestimável. O Ato Único pode
estabelecer os termos e condições desta subsidiariedade europeia e da sua
organização político-administrativa multi-níveis.
Em terceiro lugar, o modelo social europeu é uma aquisição e um marco
cultural e civilizacional das sociedades democráticas europeias; independentemente da
sua racionalização, deve ser encarado como um ativo social de valor inestimável e,
como tal, ser posto ao serviço da política de crescimento e emprego da Federação,
como instrumento estrutural de preparação e lançamento dessa política e não como
complemento avulso e contingente de medidas nacionais de gestão conjuntural dos
mercados de trabalho. De onde se retira que:
3) A economia social de mercado e os benefícios regulatórios do Estado de
direito social são bens comuns de um valor inestimável para o modelo social
União Europeia: Uma breve história do futuro para o governo dos bens comuns europeu
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 70
europeu. Um Ato Único Europeu pode estabelecer os termos e condições de
um instrumento estrutural europeu para o crescimento e o emprego
duradouros, sobretudo se pensarmos nas profundas implicações sociais da
revolução digital.
Em quarto lugar, face à interdependência e complexidade da economia europeia (e
das economias nacionais) no contexto da globalização, a política monetária comum
(PMC) não pode ficar refém de escolas de pensamento, de posições dogmáticas
nacionais, de estatutos e procedimentos das instituições monetárias atuais, sob pena
de pôr em risco não apenas a saúde da economia europeia mas, sobretudo, das
economias mais frágeis da União, cuja equação monetária é estruturalmente
incompatível com a situação vigente que é de moeda única sem união monetária e sem
política monetária comum. De onde se conclui que:
4) A transição para uma estrutura monetária federal tem por objetivo,
justamente, completar e finalizar o quadro da UEM e colocar a sua política
económica ao serviço das economias mais frágeis da Federação sem prejudicar
a sua estabilidade; para interagir com os instrumentos da política orçamental, a
Europa terá de fazer o caminho que a levará progressivamente até ao banco
central multi-objetivos da Federação Europeia. O Ato Único Europeu pode
estabelecer os termos dessa transição.
Em quinto lugar, estamos cada vez mais próximos do limiar que separa a
política económica da União da política económica da Federação. Nesta, a equação da
política económica afirma a simultaneidade entre estabilização e crescimento por via
de uma política de crescimento própria da Federação. Esta simultaneidade da política
económica da Federação é materializada por três alterações políticas fundamentais que
requerem modificações dos tratados: o alargamento das missões do BCE (a política
monetária da Federação), a dimensão e a conexão do orçamento ao nível da atividade
económica (a política orçamental da Federação) e a mutualização da dívida pública
António Covas
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 71
realizada pelo Tesouro da Federação (a política financeira da Federação). De onde se
conclui que:
5) A Europa terá de fazer o caminho que a levará progressivamente de uma
política económica intergovernamental até à política económica federal da
União, em especial no que diz respeito à dimensão, estrutura e financiamento
do orçamento (recursos próprios) e sua conexão com o nível de atividade
económica (estabilizadores, saldo orçamental e dívida federal). O Ato Único
Europeu pode estabelecer os termos e condições dessa transição orçamental.
Em sexto lugar, enquanto não existirem orientações políticas precisas e uma
doutrina acerca da arquitetura espacial da União, enquadrada por uma estratégia de
crescimento global, as políticas nacionais, regionais e locais, movidas por overbooking
territorial, tenderão a ser extremamente disputadas, permitindo, por essa via, alimentar
os regionalismos de vária índole à procura de legitimidade autonomista. Julgamos que
essas orientações poderiam ser devidamente abordadas no quadro de uma Federação
de Estados-Nação e no âmbito de um New Deal de inspiração federal, com base na
formação e integração de redes de Euro-regiões e Euro-cidades. O ponto de equilíbrio
regional é muito variável e as sucessivas “aberturas” anunciadas pela União Europeia
criam várias linhas vermelhas no interior da União Europeia; sem um forte efeito de
perequação territorial e vários automatismos de reequilíbrio espacial esses
regionalismos autonomistas ganharão um capital de queixa acrescido. De onde se
retira que:
6) Para uma verdadeira doutrina regionalista e territorialidade europeia deverão
contribuir um BCE multi-objetivos, um orçamento de características federais,
um tesouro ou uma agência europeia de mutualização da dívida federal e um
Banco Europeu de Investimentos (BEI) com capitais reforçados que, em
conjunto, poderiam emitir obrigações de crescimento visando a construção de
uma territorialidade verdadeiramente europeia. Um Ato Único Europeu pode
estabelecer os termos e as condições dessa perequação territorial e regional.
União Europeia: Uma breve história do futuro para o governo dos bens comuns europeu
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 72
Em sétimo lugar, na sociedade dos riscos globais e sistémicos, dos efeitos
indesejáveis e dos danos colaterais, marcada pela regra de ouro do capitalismo
financeiro, a saber, “privatizar o benefício e socializar o prejuízo”, em que medida pode
a Federação Europeia de Estados-Nação construir não apenas uma política de
mitigação de danos, mas, sobretudo, uma ética prática da legitimidade política e social
fundada na prevenção do risco global, por um lado, e na precaução do risco moral, por
outro, de modo a evitar a maldição e a consumação da “tragédia dos comuns”? De
onde se conclui que:
7) A Europa pode congregar uma acrescida legitimidade política e ética (e
financeira) aos olhos do cidadão europeu se for capaz de construir “uma
doutrina dos riscos sistémicos” e, nesse propósito, conceber um mecanismo de
mutualização para prevenir, abordar e cobrir os grandes riscos. Os termos e as
condições deste mecanismo europeu de cobertura dos riscos globais podem
ser estabelecidos por um Ato Único Europeu.
Em oitavo lugar, à medida que o risco geopolítico global vai crescendo e
impondo uma verdadeira consciência dos limites, a política externa federal, em todas as
suas dimensões, assumirá uma relevância incontornável e tornar-se-á um dos principais
núcleos de política pública da futura União Política Europeia. Basta olhar à volta da
fronteira europeia para perceber o alcance do risco geopolítico que aí se acumula e as
repercussões significativas que os fatores de origem externa terão na emergência de
novas conjunturas de crise no plano interno da União Europeia e dos seus Estados
membros. De onde se conclui que:
8) A Europa precisa de rever com urgência todos os seus instrumentos de política
externa, segurança e defesa e respetiva cobertura financeira. O risco
geopolítico elevado tem um impacto político e orçamental muito significativo
nas prioridades da União Política Europeia, desde a crise dos refugiados à
política energética, desde a política comercial até à cooperação para o
desenvolvimento. Está em causa a reputação internacional e regional do ator
europeu e a sua capacidade para fazer alianças em vários quadrantes. O Ato
António Covas
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 73
Único Europeu pode estabelecer os termos e condições de várias “cooperações
estruturadas e reforçadas” nesta matéria, muito em especial no que diz
respeito à cooperação para o desenvolvimento das várias regiões
mediterrânicas e sub-saarianas.
Em nono lugar, a Europa das Euro-regiões e Euro-cidades congrega um
potencial de “crescimento distribuído” ainda por explorar, no preciso momento em que
assistimos a uma autêntica revolução no universo digital e na cultura tecnológica e
virtual, instrumentos fundamentais para a promoção e regulação de uma economia das
redes colaborativas e criativas. Esta será, seguramente, uma das missões essenciais da
União Política no século XXI, não apenas no âmbito do mercado único digital, mas,
sobretudo, no contexto mais amplo de uma genuína sociedade colaborativa e dos
novos direitos de cidadania. De onde se conclui que:
9) O patrocínio de uma sociedade e de uma economia colaborativas como
fundamento da União Política Europeia é uma tarefa fundamental para a
afirmação da sociedade civil do século XXI; o Ato Único Europeu pode
estabelecer os termos e as condições de acesso e regulação do novo espaço
público digital, já para não falar da grande batalha que se avizinha, aquela que
se disputará entre o “digital proprietário e o digital livre”.
Finalmente, em rota de colisão e contrastando com o bem comum do
crescimento distribuído que designámos de “sociedade e economia colaborativas”, a
União Política Europeia terá de lidar com o hipercapitalismo das grandes plataformas
tecnológicas e do crescimento desigual. A experiência recente diz-nos que que elas
continuarão a abusar da sua posição dominante e a colocar em risco o acesso, o uso e
a privacidade da nossa vida quotidiana. Nas plataformas tecnológicas e nas redes
sociais elas agirão como verdadeiras indústrias extrativas de dados pessoais que a
seguir os algoritmos transformarão em perfis de consumo para serem vendidos a
empresas terceiras. De onde se conclui que:
União Europeia: Uma breve história do futuro para o governo dos bens comuns europeu
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 74
10) O cidadão-consumidor da era digital precisa de ser defendido do
comportamento predador destes superpoderes. De nada serve construir a
legitimidade do projeto europeu a partir da sua aparente e visível
megalomania, da sua crescente omnipresença, que nos esmaga e sufoca, do
seu racionalismo ofensivo e da imponência da sua ordem burocrática que nos
ofuscam e irritam, se a Federação Europeia não for capaz de criar uma
procuradoria-geral que nos proteja desses superpoderes. O Ato Único Europeu
pode estabelecer os termos e condições dessa criação, um bem comum
inestimável para reafirmar a legitimidade do projeto europeu.
Enunciámos o decálogo dos bens comuns europeus. Estamos em 2017, na
ressaca de uma grande crise sistémica do capitalismo, sem projeto nem futuro, com um
crescimento anémico europeu e à espera de um profeta ou de uma ordem nova pós-
eleitoral. Nestes tempos, de equívoco da identidade e do seu poder, ficcionar uma
identidade europeia é uma tarefa praticamente votada ao insucesso. Com efeito, nos
tempos que correm, a identidade europeia não se enuncia ou anuncia como
transcendência política ou institucional, mas como experimentação quotidiana, em
resultado de uma política modesta, levada a cabo por uma grande diversidade de
poderes e saberes, todos eles imbuídos do interesse público, porventura em ordem
caótica e mais do que permitiria a razão pretensiosa, unificadora, do interesse geral ou
o iluminismo tecnocrático de um eurocrata. Por isso, não surpreenderá, também, que a
desobediência civil possa explodir em todas as direções, não apenas como poder
micro-identitário, mas como movimento de indignação e rejeição (Innerarity, 2016).
4. NOTAS FINAIS
Para terminar, três notas finais. A primeira nota, para reportar, na política
europeia, um paradoxo muito pertinente em plena laboração. Por um lado, o que é
visível no projeto global e europeu é a perda de centralidade do Estado e a sua
capacidade de configurar a sociedade. Assistimos a uma espécie de dessacralização da
António Covas
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 75
política-estado, um tédio por essa política-estado como parte da normalidade
democrática, embora saibamos, também, que há mais política para lá desta “política
normal”. Por outro lado, a radicalização populista da política doméstica recupera o
Estado central como se estivéssemos “órfãos de Estado”. De repente, “todas as
modernidades” parecem querer entrar em rota de colisão. A história, a geografia e os
territórios estão de regresso. Voltámos em força à geopolítica. A política europeia
poderá oscilar, doravante, num espaço a três dimensões composto por uma política
doméstica mais radicalizada, macrorregiões europeias em formação e uma geopolítica
continental alargada para o mediterrâneo sul e oriental. É certo, a política europeia é
demasiado institucionalista e não gosta manifestamente da geopolítica, mas esta virá.
A segunda nota, para reportar os tópicos principais do que fica dito, em jeito de
síntese final:
Em primeiro lugar, e dada a geopolítica do próximo futuro, é quase certo que
os impulsos mais fortes para a reforma da União Europeia virão do exterior. Os
exemplos abundam: a Rússia e a Ucrânia, o Médio Oriente, a Turquia, o Norte
de Africa, mas, também, o Brexit e a Trumpolitics, para citar apenas os principais;
Em segundo lugar, este impulso exterior implica que haja um movimento de
reforma importante em direção da política externa, segurança e defesa (PESD)
em todas as suas dimensões, onde se incluem os refugiados, mas, também, a
política energética;
Em terceiro lugar, esta dimensão externa tem fortes implicações na política
interna europeia e em particular na reconfiguração da UEM; as regras
orçamentais do Semestre Europeu (SE), do Pacto de Estabilidade e Crescimento
(PEC) e do Tratado Orçamental (TO) podem ser objeto de uma revisão de
conjunto e ser acompanhadas pelo alargamento dos recursos próprios, a
mutualização parcial das dívidas soberanas, a criação de um fundo monetário
europeu (FME) e uma revisão global dos instrumentos financeiros europeus de
apoio ao investimento;
União Europeia: Uma breve história do futuro para o governo dos bens comuns europeu
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 76
Em quarto lugar, a criação de uma procuradoria europeia para a criminalidade
financeira é um bom sinal, conjuntamente com legislação europeia em matéria
de offshores, de combate à evasão e fraude fiscais e mais e melhor
harmonização fiscal;
Em quinto lugar, uma nota importante a propósito do Brexit, tem a ver com o
que poderíamos designar “a teoria do precedente”, isto é, a escolha de uma
linha dura de negociação apenas para impedir ou condicionar novos pedidos de
saída; se tal acontecer será sempre um mau princípio de negociação;
Em sexto lugar, uma nota, igualmente, importante a propósito da teoria da
“Europa a várias velocidades”; a perceção imediata, sobretudo para os países do
leste europeu, é a de “uma teoria dos clubes” ressentida como discriminatória;
seria preferível uma via de “integração diferenciada e inclusiva” de acordo com
o ritmo e a vontade própria de cada Estado-membro.
Uma terceira nota, finalmente, para reportar o modus procedimental que se
seguirá, sobretudo numa conjuntura politicamente congestionada e não conhecendo
nós a correlação de forças em presença no final do ano de 2017. De acordo com os
tratados europeus, o policy-process de uma revisão poderá comportar: uma revisão
ordinária (artigo 48.º, n.º 2 do Tratado da União Europeia (TUE)), uma revisão
simplificada (artigo 48.º, n.º 6 do TUE), as cooperações reforçadas (artigo 20.º e artigos
42.º a 46.º do TUE e artigos 326.º a 334.º do Tratado sobre o Funcionamento da União
Europeia); de resto, há sempre a possibilidade de obter acordos intergovernamentais
realizados fora dos tratados, uma prática que tem sido usada com alguma frequência
em momentos anteriores. Neste sentido, não surpreenderia uma abordagem muito
pragmática de revisão, sem a necessidade de convocar uma conferência
intergovernamental, pelo menos nesta fase que coincidirá com as negociações do
Brexit. Sem prejuízo de uma negociação ulterior mais extensa, poderemos ter, desta
vez, uma revisão simplificada dos tratados, algumas cooperações estruturadas e
reforçadas e, eventualmente, um ou outro acordo fora dos tratados. As áreas objeto de
negociação serão o espaço de liberdade, segurança e justiça, a união económica e
António Covas
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 77
monetária e a política externa, de segurança e defesa, onde, de resto, os exemplos de
“excecionalidade” já existem.
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David Gil Gonçalves
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 79
POR UMA NOVA RESPONSIVIDADE NA UNIÃO EUROPEIA
REPENSAR A RELAÇÃO COM OS CIDADÃOS EUROPEUS
DAVID GIL GONÇALVES1
RESUMO
Este artigo revisita a dicotomia entre os domínios intergovernamental e comunitário, que marcaram todo o
processo de integração europeia. Considerando o Trilema de Rodrik sobre a integração económica, são
revistas as respostas institucionais fornecidas pela União Europeia durante a crise financeira. O foco
principal deste esforço recai em como estes desenvolvimentos se relacionam com a dicotomia referenciada
e se há alguma solução para a mesma. Analisando as responsabilidades e comportamento da Comissão
Europeia, bem como o poder insuficiente do Parlamento Europeu, é evidente que a União Europeia
necessita de uma maior responsividade face às pretensões dos seus cidadãos. A criação de tais
mecanismos pode ser uma opção decente para reforçar essa relação e fornecer respostas mais adequadas.
Palavras-chave: União Europeia, Integração, Trilema, Executivo, Responsabilidade e Responsividade.
Histórico do artigo: recebido em 30-03-2017; aprovado em 15-04-2017; publicado em 05-05-2017. 1 Membro do Conselho Editorial da Revista Análise Europeia. Mestrando em Ciência Política pela Faculdade
de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa. Lisboa, Portugal. E-mail: [email protected]
Por uma nova responsividade na União Europeia
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 80
ABSTRACT
For a new responsiveness in the European Union: Rethinking the relationship with the European
citizens. This article revisits the dichotomy between intergovernmental and community domains, which
marked the whole process of European integration. According to Rodrik‟s Trilemma of economic
integration, it reviews the institutional responses provided by the European Union during the financial
crisis. The main focus relies on how such developments relate to the referenced dichotomy and if there is
any solution for it. By analyzing the Commission‟s responsibilities and behavior as well as the European
Parliament‟s lack of actual power, it is clear that the European Union needs further responsiveness towards
its citizens. Creating such mechanisms may be a decent option to invigorate that relationship and to
provide more adequate responses.
Keywords: European Union, Integration, Trilemma, Executive, Responsibility and Responsiveness.
_________________________________________________________________________________________________________________
1. INTRODUÇÃO
O período histórico mais recente está invariavelmente associado à emergência
de partidos populistas e do ceticismo em relação à União Europeia. A ausência de uma
resposta comum convincente e a perda de influência da esfera nacional têm sido
exploradas por movimentos nacionalistas, que reclamam o direito de autogoverno
perante a incapacidade de Bruxelas. Uma das primeiras manifestações bem-sucedidas
partiu da Grã-Bretanha, que após o sucesso da campanha pelo Brexit, se encontra em
negociações formais para o abandono do projeto europeu. Entre as imposições
decorrentes da situação económica, marcada por uma anémica e vagarosa
recuperação, e da polémica estratégia em relação aos refugiados provenientes da
guerra na Síria, o populismo foi-se alimentando do descontentamento popular.
A baixa participação eleitoral e falta de entusiasmo dos cidadãos revela alguma
dissonância entre o projeto e as pretensões daqueles que procura servir. Através de
metodologia qualitativa, o artigo procura justificar de que forma esta tensão tem vindo
a aumentar e como pode ser corrigida. Para tal, foi incluído o contributo de Rodrik –
precursor na sistematização analítica sobre a tensão entre integração económica e o
Estado soberano – onde se esclarecem as vantagens e desvantagens dos rumos
David Gil Gonçalves
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 81
escolhidos: a gestão dos valores democráticos e, em simultâneo das órbitas
intergovernamental e comunitária. De seguida, são recuperadas análises fundamentais
sobre os desenvolvimentos institucionais que procederam a crise económica, bem
como revista a sua influência na atualidade. Como agravante, acrescenta-se o conflito
entre a esfera da responsabilidade governativa e a representatividade, com a primazia a
recair sobre a primeira. No cenário europeu, a sua divisão é óbvia, com a Comissão
Europeia e o Parlamento Europeu a repartirem tarefas, mas incapazes de produzir os
resultados desejados. Posto isto, repensar esta relação pode ser fundamental para
reverter o afastamento da esfera pública e o défice democrático – agravado pelo
carácter urgente da crise económica.
2. O INESCAPÁVEL TRILEMA DA INTEGRAÇÃO ECONÓMICA
Dani Rodrik, economista e professor na Universidade de Harvard, dedicado
sobretudo a economia política, desenvolveu uma teoria sobre o rumo da economia
mundial, considerando o fenómeno da globalização mediante três variáveis de difícil
coordenação: a integração económica, os ideais de Estado Soberano e os valores
democráticos (Figura 1). Segundo o autor, um dos fatores será sempre negligenciado,
isto é, seremos confrontados com a impossibilidade de optar por mais do que dois
destes. A promoção de uma conformidade política, jurídica e económica entre todos os
países destitui a importância do Estado, restringido pelas normas acordadas. No
sentido inverso, surge a possibilidade de reforçar o poder individual dos países,
conseguido através da resistência à globalização e harmonização económica. Já a
manutenção do sistema atual, assegura a continuidade do Estado soberano, ainda que
sujeito às pressões da economia internacional, o que prejudica a participação cívica e a
própria qualidade democrática (Rodrik, 2007). Ainda que inicialmente tecida para uma
escala distinta, esta proposta adequa-se por completo ao cenário europeu. Assim, a
pressão da integração, incompleta depois do aprofundamento precipitado de
Maastricht; as reivindicações nacionalistas, alarmadas pela perda de soberania; e a
insatisfação popular, devido a um desempenho económica aquém das expetativas, são
Por uma nova responsividade na União Europeia
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 82
os três fatores equivalentes aos apresentados por Rodrik. Daqui podem emergir três
desfechos:
Figura 1 – Trilema de Rodrik. Fonte: Rodrik (2007).
A. A primeira hipótese depende do compromisso entre os Estados-membros para
encaminhar o projeto europeu ao nível seguinte, ou seja, uma federação
democrática. Para isso, novas competências devem ser transferidas para o
domínio comunitário, capazes de assegurar o sucesso a longo prazo do projeto.
Para funcionar corretamente, a União Europeia necessita de uma união política,
orçamental e fiscal, caso contrário as culturas económicas divergentes
resultarão em crises cíclicas (Soromenho-Marques, 2014). Ao incremento de
responsabilidades acrescentam-se os necessários métodos de legitimação,
capazes de assegurar a aproximação do projeto aos cidadãos que deve servir.
Nesse sentido, uma das soluções apontadas passa pelo reforço do Parlamento
Europeu, uma organização diretamente eleita e responsável por defender os
interesses da população (Moury, 2016). Apesar de conjugar tanto a preservação
dos valores democráticos como a integração económica, esta alternativa
representa uma ameaça à ideia de Estado soberano, uma conceção que
emergiu do Tratado de Vestefália, e que a maioria não está disposta a
abandonar.
B. Uma outra alternativa baseia-se num recuo estratégico da integração
económica da União Europeia. Deste modo, cada Estado poderia manter a sua
autonomia e soberania enquanto garantia a manutenção dos valores
David Gil Gonçalves
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 83
democráticos. As instituições europeias perderiam competências, o que significa
que lhes seria exigida uma menor responsabilização – ou pelo menos uma
manutenção dos débeis mecanismos atuais. Assistir-se-ia à reversão da lógica
de transferência de competências para a União Europeia, o que significa o
fortalecimento do âmbito interno, ainda que sujeito a um prolongado
procedimento. Além da burocracia decorrente da reposição de relações
bilaterais entre países cessantes, acrescenta-se uma imprevisível resposta das
economias nacionais, condicionadas pela diminuição considerável no comércio
e, especialmente, a extinção do Euro. Mais importante, a falta de um projeto
comum, capaz de unificar os países europeus, poderia significar a regressão
para a instabilidade e o belicismo. A integração económica foi a solução para
trazer prosperidade e paz para a Europa, razão pela qual reverter o processo
seria uma aposta imprudente.
C. A última opção representa a manutenção do status quo, ou seja, uma tentativa
de equilibrar as valências quer da integração económica, quer da soberania
nacional. O termo colete-de-forças dourado2 remete-nos para uma realidade
onde o financiamento é acessível, facilitando a gestão pública, ainda que a
capacidade de decisão seja constrangida. No entanto, quanto mais restringida é
a palete de opções disponíveis, menor é a diferença entre governo e oposição,
um fenómeno que descredibiliza os partidos políticos (Mair, 2009). A existência
de um quadro legal e institucional prévio implica o cumprimento de várias
diretrizes, algumas responsáveis por interferir com o programa político ou com
a ideologia subjacente a determinado partido. No caso europeu, o Pacto de
Estabilidade e Crescimento (PEC), que prevê uma harmonização das finanças
públicas dos Estados-membros, estabelece limitações quer à dívida pública
(60% do PIB), quer ao défice orçamental (3%). Na verdade, o Tratado sobre o
Funcionamento da União Europeia estabelece que o Banco Central Europeu não
está autorizado a adquirir diretamente a dívida dos Estados-Membros (artigo
2 “Golden straitjacket”
Por uma nova responsividade na União Europeia
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 84
123.º). Além disso, de acordo com o artigo 127.º, o Banco Central Europeu deve
centrar-se na estabilidade dos preços (evitando uma inflação superior a 2%), o
que constitui uma barreira clara a políticas monetárias expansivas (Soromenho-
Marques, 2014). Esta solução pode potenciar o plano económico e a integração,
mas compromete a ligação entre a população e o governo.
A crise económica viria a forçar a União Europeia a adotar uma das vias
apresentadas, uma decisão que seria altamente influenciada pelo enquadramento
institucional prévio, mas que nem por isso deixou de ser controverso. Para isso, convém
compreender a evolução e comportamento das instituições europeias.
3. INTEGRAÇÃO EUROPEIA: CRISE ECONÓMICA, RESPOSTAS INSTITUCIONAIS E
DÉFICE DEMOCRÁTICO
Prestes a completar 10 anos, a crise financeira de 2007 viria a ser responsável
por revelar as insuficiências, até então mascaradas, da União Económica e Monetária.
Como reflete Soromenho-Marques (2014), a política monetária, até então força motriz
da confluência europeia, transformou-se no fator de fragmentação e conflito entre os
países da Zona Euro. A decisão de adotar uma moeda comum sem assegurar a
convergência real das várias economias, sem proceder à criação de mecanismos de
partilha de riscos, sem um orçamento comunitário adequado e com uma estrutura
política insuficiente, revelou-se imprudente. Assim, quando as dificuldades começaram
a emergir, a solidariedade, sempre retoricamente confirmada, mas (até então) nunca
empiricamente testada, dissipou-se. Pressionada, mas desprovida dos mecanismos
necessários, a União Europeia foi obrigada a apresentar medidas não convencionais.
Adiante, inauguramos uma revisão do comportamento das principais
instituições europeias perante este cenário devastador. A literatura sugere duas
respostas diferentes; uma focada no desenvolvimento dos órgãos intergovernamentais,
outra enfatizando a redefinição de instituições supranacionais. Embora geralmente
apresentadas como pontos de vista antagonistas, as teorias podem ser articuladas. De
David Gil Gonçalves
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 85
facto, ambas denunciam não só a relutância dos Estados-membros em transferir mais
responsabilidades para o domínio da União Europeia, mas também a forma como isso
forçou a procura de caminhos alternativos.
Puetter (2012) destaca o papel do Conselho da União Europeia e do Conselho
Europeu, e defende que só estes podem combinar o poder político para implementar
as decisões com o conhecimento para lidar com as contingências da crise económica.
Assim, a predisposição dos atores políticos em dialogar e cooperar, fomentada pela
incerteza e pela urgência, resultou no aumento dos métodos informais de deliberação.
Teoricamente, essas abordagens permitem que os participantes estejam longe do
escrutínio dos média, o que significa mais honestos e relaxados. Os advogados desta
metodologia argumentam que o ambiente restrito promove eficiência, consenso e
compromisso entre os participantes. Reuniões como o Eurogrupo, onde os ministros
das Finanças se reúnem sob a liderança do seu homólogo holandês, Jeroun
Dijsselbloem, funcionam como uma extensão do âmbito intergovernamental (Puetter,
2012). Contudo, a impossibilidade de aceder às declarações de cada representante e ao
que foi discutido – e em que circunstâncias – representa uma falta de transparência e,
consequentemente, uma diminuição global da qualidade da democracia.
Por outro lado, Bauer & Becker (2014) defendem que deste cenário resultou,
pelo contrário, no reforço da esfera supranacional, isto é, da Comissão Europeia. A
instituição centrou-se na implementação da legislação, em vez de a agendar ou propor,
e assumiu um papel crucial na governação económica. Agora, devido principalmente à
pertença ao conselho da Troika, lidera as negociações e a monitorização dos
empréstimos, examina as tendências macroeconómicas e a gestão orçamental,
coordena as políticas de cada país de acordo com o Pacto de Estabilidade e
Crescimento e supervisiona o sector financeiro (Bauer & Becker, 2014). Além disso, o
Banco Central Europeu, responsável pela política monetária da Zona Euro, também
desempenhou um papel acrescido mediante as dificuldades económicas. Procurou
reinterpretar as suas próprias competências, o que ditou uma postura mais interventiva,
mais política e menos influenciada pelas bases jurídicas – prestou auxílio a troco de
reformas estruturais (Schmidt, 2016). A legitimidade de ambas as instituições
Por uma nova responsividade na União Europeia
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 86
concentrou-se no seu output, isto é, nos resultados que apresentavam. Essa lógica
visava validar o exercício de funções, mas enfrentava um obstáculo imponente: as
pretensões dos Estados-membros eram antagónicas. Nesse momento, a participação
da Troika significou um conflito de interesses e é, por isso, particularmente controversa.
Como adverte Moury (2016), o papel destas instituições não é clarificado: teoricamente
estão designadas para representar e defender os interesses da União, embora a missão
enquanto Troika os torne agentes dos países credores. Essa legitimidade degradou-se
de forma proporcional às tensões verificadas no seio da Zona Euro.
Em suma, independentemente do timbre dos desenvolvimentos institucionais,
houve um duplo afastamento do cidadão da esfera política europeia. Por um lado, a
componente intergovernamental concentrou-se em contributos tecnocráticos através
de métodos mais informais e menos transparentes (ex: Eurogrupo), longe da esfera
pública, enquanto no domínio supranacional, as principais instituições (Banco Central
Europeu e Comissão Europeia) desempenharam funções além das estabelecidas, sem
que quaisquer mecanismos de responsividade ou accountability fossem adicionados. As
decisões tomadas não refletem a opinião pública nem estão sujeitas a um escrutínio
eficaz por parte desta ou do próprio Parlamento Europeu, que se vê excluído do
processo de reforço institucional. Este défice democrático e representativo foi, em
última instância, o resultado das grosseiras, urgentes e pouco esclarecedoras soluções,
destacadas para emendar as lacunas de uma União Económica e Monetária ainda hoje
por completar (Soromenho-Marques, 2014; Moury, 2016).
Em virtude dos resultados institucionais discutidos atrás, é clarividente que a
aposta europeia se baseou numa governança multinível, capaz de assegurar que
nenhuma das instâncias é obrigada a recuar – o correspondente à terceira opção da
teoria de Rodrik, o colete-de-forças dourado. Assim, a União Europeia sobrevive, ainda
que dependente da prevalência constante dos Estados-membros, através do papel
acrescido dos executivos nacionais no processo decisório. Porém, tal como a
experiência recente demonstra, este rumo implica o sacrifício da qualidade da
democracia e uma alienação dos cidadãos em relação às decisões que, posteriormente,
os afetam. Para tal conclusão, importa consultar o resultado dos inquéritos do
David Gil Gonçalves
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 87
Eurobarómetro, nomeadamente em relação à perceção da população quando
questionada sobre a valorização da sua opinião ao nível europeu. Além da elevada
disparidade, destaca-se a média da União Europeia, claramente negativa (Figura 2).
Figura 2 - Respostas à pergunta “A sua voz conta na União Europeia?”, no estudo do Eurobarómetro sobre
a opinião pública, em dezembro de 2015 (valores em percentagem). Fonte: Comissão Europeia (2015).
4. RESPONSIVIDADE E RESPONSABILIDADE
Para a análise que nos interessa, ambos os conceitos assumem a sua conotação
mais vulgar. Por responsividade entende-se o tradicional elo entre governo e cidadãos,
onde o primeiro está incumbido de escutar, valorizar e procurar satisfazer os interesses
dos últimos, uma lógica que jaz na base da democracia representativa. Já a
responsabilidade remete-nos para o cumprimento das normas estabelecidas e
compromissos assumidos, isto é, se o comportamento de determinado ator é conforme
com o plano jurídico, político e moral. Esta apetência, próxima da noção de
profissionalismo, é particularmente relevante para conquistar a confiança de órgãos
exteriores, que avaliam a seriedade e competência através destas manifestações.
A capacidade de assegurar, em simultâneo, respostas concretas às demandas
populares e a administração do Estado foi uma valência na ascensão dos partidos
políticos. Desta forma, a legitimidade do governo era garantida pela saudável
proximidade com a população – o seu exercício político baseava-se na opinião pública.
Por uma nova responsividade na União Europeia
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 88
Contudo, segundo Mair (2009), esta complementaridade entre representatividade e
responsabilidade não se verifica nas democracias ocidentais modernas. Os partidos no
poder, de forma deliberada ou coagida, têm deslocado o seu foco sucessivamente para
a esfera da responsabilidade, menosprezando a qualidade da representação. Perante a
necessidade do governo em lidar com instâncias superiores e de cumprir com
compromissos internacionais, são os parlamentos que assumem esse vínculo com a
população – o que, apesar de tudo, reflete um afastamento entre os inputs dos
cidadãos e o output governamental.
Para este artigo, não nos interessa estudar intensivamente as razões desta
tendência, mas sim extrapolar a teoria para a escala europeia e compreender como é
duplamente influente. Em primeiro lugar, o poder executivo de cada Estado é
simultaneamente incrementado e restringido: em virtude da presença nas extensões
intergovernamentais da União Europeia, o governo assume a representação dos
interesses do seu país e tem o privilégio de definir a agenda nacional em função da
ordem de trabalhos europeia; contudo, está sujeito a um conjunto de opções limitado
pela própria inclusão no projeto europeu. Se o último caso nos relembra
imediatamente as consequências do colete-de-forças dourado de Rodrik, as vantagens
do executivo são também a diminuição da função parlamentar. Muito embora o
governo deva representar os interesses nacionais, estes ficam dependentes da postura,
ideologia e agenda do partido. Assim, a responsividade, uma preocupação secundária
do governo, é ainda subjugada pela arquitetura institucional europeia, que não
contempla um maior envolvimento dos parlamentos nacionais. Veja-se a situação
portuguesa resultante das eleições legislativas de 2015, onde um governo minoritário,
correspondente a 32,31% dos votos, assume esta responsabilidade por si só. Isto
significa que, apesar do apoio parlamentar de outros grupos políticos, o monopólio da
representação nacional no Conselho da União Europeia e no Conselho Europeu é
atribuído apenas ao governo, mesmo que se trate de uma minoria.
Porém, as consequências não se extinguem aqui. No âmbito europeu a divisão
entre responsabilidade e responsividade é esclarecedora e até deliberada: a Comissão
Europeia, a instituição que mais se aproxima de um executivo, limita-se às
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responsabilidades, enquanto o Parlamento Europeu, diretamente eleito pelos cidadãos,
trata de responder às suas pretensões. Uma análise singela parece indicar a
permanência da dicotomia apresentada, ainda que efetivamente controlada, visto que
cada instituição se dedica a uma das dinâmicas descritas. No entanto, a União Europeia
é uma das principais vítimas deste cenário: mesmo após o incremento das suas
competências, o Parlamento Europeu tem um poder inferior se comparado com os
homólogos nacionais, o que se traduz numa relativa fragilidade da representatividade
(Moury, 2016). Aliás, esta é uma das justificações para a baixa afluência às eleições
europeias: o cidadão não sente que o parlamento é capaz de assegurar as suas
reivindicações, e questiona-se sobre a finalidade do seu voto. Portanto, a
responsividade é um instrumento que depende da perceção e comportamento de
ambas as partes: se a instituição sente que tem de responder ao eleitorado e se este
sente que as suas pretensões são ouvidas e, mais importante, se reconhece capacidade
ao respetivo órgão para as defender. Posto isto, vislumbram-se duas possíveis
alternativas: o reforço das competências atribuídas ao Parlamento Europeu e a
introdução do sufrágio direto na eleição do Presidente da Comissão Europeia.
A prudência recomenda-nos apostar no reforço do Parlamento Europeu, não só
por garantir a manutenção da tendência mais recente, mas também pelo défice de
competências que o Parlamento Europeu ainda demonstra. Além de, em alguns temas
decisivos, se manter uma instância consultiva no processo legislativo, não está
habilitado a escrutinar as atividades decorrentes do Tratado sobre a Estabilidade,
Coordenação e Governança (ou Pacto Orçamental), uma vez que este se apresenta
como uma expressão do direito internacional e não europeu. No entanto, a julgar pelos
desenvolvimentos no período histórico mais recente – a negligência da esfera
parlamentar mediante o incremento de competências dos restantes domínios – esta
transferência seria dolorosa e sujeita a vários entraves, nomeadamente devido ao
complicado quadro jurídico com o Pacto Orçamental. Registe-se, ainda, que a falta de
harmonia legal tornaria mais árdua a estratégia do parlamento, descrita por Moury
(2016), onde, a troco de resultados imediatos, é o próprio que estimula o seu
empowerment. Embora prolongada, esta abordagem revelou-se proveitosa para o
Por uma nova responsividade na União Europeia
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 90
Parlamento Europeu, que renegociou sucessivamente o seu peso institucional a partir
do momento em que lhe foi garantida alguma influência. Recorrendo a um exemplo da
autora, a introdução de poderes orçamentais em 1975 permitiu que o Parlamento
Europeu congelasse fundos para obter poderes adicionais de controlo (Moury, 2016).
No entanto, o crescente ceticismo em relação à União Europeia exige uma
resposta mais célere e assertiva. Desta forma, argumentamos que acrescentar um elo
eleitoral entre população e Comissão Europeia pode ser o método mais eficaz para
combater essa descrença. O seu responsável máximo, o Presidente da Comissão, é visto
como um dos principais rostos do projeto e, por isso, responsabilizado pelo rumo
deste, muito embora inúmeros outros fatores estejam presentes nas decisões. Esta
eleição, não só cria o elo de responsividade entre a instituição e a população, como
reforça a legitimidade da mesma em atuar. Uma Comissão Europeia eleita repartiria a
representatividade com o Parlamento Europeu, tornar-se-ia diretamente escrutável
pelo seu exercício político e teria argumentos superiores quando forçada a negociar.
Esta proposta assegura a essencial mutualidade na perceção entre instituição e
cidadãos, previamente descrita.
5. CONCLUSÃO
Um dos principais desafios da União Europeia é reforçar a sua relação com os
cidadãos e, com isso, corrigir a crescente desconfiança que se tem verificado. Depois de
recuperado o trabalho de Dani Rodrik sobre a relação entre integração económica,
estado soberano e valores democráticos, é inequívoco que a estratégia escolhida se
concentrou numa forma de governo multinível, com Estados-membros e União
Europeia a repartirem funções. Contudo, esta promove a alienação dos cidadãos do
processo decisório, contribuindo para o ceticismo descrito.
Durante o conturbado período da crise económica, resultante da Grande
Recessão iniciada em finais da década anterior, as respostas providenciadas foram
altamente condicionadas pelo quadro institucional precedente, uma União Económica
e Monetária disfuncional. A impossibilidade de corrigir estas lacunas a longo prazo
David Gil Gonçalves
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 91
(completando a construção gradual da federação europeia), ditou um conjunto de
transformações pouco convencionais e ambíguas, que se traduziu na manutenção da
dicotomia entre a dinâmica intergovernamental e comunitária, com ambos os
espectros a demonstrarem expansões nas suas competências. Todavia, este processo
não foi acompanhado por um reforço do escrutínio popular, o que conduziu a um
défice democrático.
Como agravante, a deslocação do ónus da representação dos executivos para
parlamentos só promoveu distância ainda maior da população. Os governos nacionais,
únicos representantes de cada Estado junto da União Europeia, demitiram-se da
responsividade perante o eleitorado nacional, delegando a tarefa para parlamentos
incapazes de participar regularmente na estrutura europeia. Além disso, a divisão à
escala europeia entre ambas as vertentes revela-se insuficiente para satisfazer os
cidadãos, o que exige a introdução de um mecanismo capaz de incrementar a
responsividade.
Posto isto, propomos a eleição direta do Presidente da Comissão Europeia
como forma de contrariar essa divisão e assegurar a satisfação do eleitorado europeu.
A responsividade seria partilhada entre o âmbito parlamentar e executivo europeu,
obrigando este último a corresponder às expectativas populares, mas, em simultâneo,
garantindo-lhe maior legitimidade. Recuperando o contributo de Rodrik (2007), esta
alternativa visa promover o vértice dos valores democráticos, corrigindo a tendência
que nos acompanha desde a crise económica. A tipologia destas alterações, ainda que
alusiva a estruturas federais, não representa uma ameaça vincada à soberania nacional
– visa, sobretudo, reconciliar a noção de responsividade com os objetivos do projeto
europeu.
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Marco Martins
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 93
A UNIÃO EUROPEIA NUM MUNDO EM MUDANÇA
ERA TRUMP 2.0?
MARCO MARTINS1
RESUMO
A presente análise visa compreender como a União Europeia se enquadra nesta nova realidade
internacional, na sequência das eleições norte-americanas para Presidente, tendo revertido a escolha em
Donald Trump, em detrimento da sua adversária Hillary Clinton. Importa, assim, compreender como a
União Europeia se posicionará nas relações internacionais, readaptando a sua política externa, defesa e
segurança, para além das consequências do Brexit, necessitando de reencontrar o seu caminho e o seu
projeto em nome da construção europeia e de seus valores democráticos, identitários e culturais num
mundo em mudança, com o surgimento de novos atores, desde os BRICS ao ciberespaço, desafiando todo
o legado imanente da Paz de Vestefália. Estaremos perante uma nova era, uma nova ordem mundial ou
apenas numa regressão entre novos e velhos tempos?
Palavras-chave: União Europeia, Estados Unidos da América, BRICS, ordem mundial.
Histórico do artigo: recebido em 18-04-2017; aprovado em 26-04-2017; publicado em 05-05-2017.
Publicação a convite do Conselho Editorial. 1 Professor da Universidade de Évora. Diretor da Comissão Executiva e de Acompanhamento da
Licenciatura em Relações Internacionais. Investigador do Centro de Investigação de Ciência Política (CICP,
FCT). Doutor em Relações Internacionais pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. Auditor em
Política Externa Nacional pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros. Évora, Portugal. E-mail:
[email protected]. This study conducted at CICP, Excellent (UID/CPO/00758/2013), University of Minho and
supported by the Portuguese Foundation for Science and Technology and the Portuguese Ministry of
Education and Science through national funds.
A União Europeia num mundo em mudança. Era Trump 2.0?
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 94
ABSTRACT
The European Union in a changing world. The Trump Era 2.0? The present analysis aims to understand how
the European Union fits into this new international reality following the US presidential election, having
reversed the election in Donald Trump, to the detriment of his adversary Hillary Clinton. It is therefore
important to understand how the European Union will position itself in international relations, by adapting
its foreign, defense and security policies, in addition to the consequences of Brexit, needing to rediscover
its way and its project in the name of European construction and its democratic, identity and cultural values
in a changing world, with the emergence of new actors from the BRICS to cyberspace, defying the entire
immanent legacy of Westphalia Peace. Are we facing a new era, a new world order, or just a regression
between old and new times?
Keywords: European Union, United States of America, BRICS, world order.
_________________________________________________________________________________________________________________
1. INTRODUÇÃO: UMA EUROPA EM READAPTAÇÃO?
A Alta Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de
Segurança, Federica Mogherini, em 2016, apresentou ao Conselho Europeu a Estratégia
Global para a Política Externa e Segurança da União Europeia. O presente documento
revela a posição oficial numa particular conjuntura, quer ao nível da Europa, quer
internacionalmente. No quadro europeu, ocorre num momento de elevada tensão
política, social, ideológica e económica, entre os Estados-membros, para além do Brexit
e do impacto negativo que o mesmo possa ter, não só internamente por aspetos que
se prendem com questões económicas, mas naquilo que representa simbolicamente,
como uma espécie de fracasso do projeto europeu e na sua incapacidade de manter a
unidade e a coesão internas em nome de uma identidade e de um passado. Na esfera
internacional, realçamos toda a entourage das eleições norte-americanas para
Presidente, e do brotar de uma nova forma de se realizar política e projetar as
ambições de um Presidente para a arena internacional.
Na verdade, a eleição de Trump marca o início de uma nova etapa das relações
internacionais, da procura do reequilíbrio das potências, nomeadamente entre os
Estados Unidos, a Rússia e a República Popular da China, permanecendo possivelmente
Marco Martins
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 95
a União Europeia (UE) como o fiel da balança nessas relações triangulares, Trump-
Putin-Xi Jinping.
De facto, a estratégia apresentada por Federica Mogherini realça os principais
valores da UE e do seu sistema em assuntos securitários e de defesa, enquanto ator das
relações internacionais, num mundo incerto e em evidente caminho para uma mudança
paradigmática. Importa, destacar o momento sensível que a presente Europa atravessa,
concretamente nos cenários de opções políticas e da continuidade da ameaça terrorista
no seu território. A referida estratégica traduz a natureza idealista e aspiracional em
nome da construção europeia, na sequência da Segunda Guerra Mundial, por forma a
evitar que uma nova guerra irrompesse e dizimasse novas vítimas. A opção pela via
idealista, ao invés de seguir a realista, retrata uma vontade expressa de optar para um
outro caminho e, sobretudo, de reaproximar os cidadãos europeus em identidade,
valores, democracia e segurança. É evidente que as estratégias nacionais no seio de
cada Estado-membro tendem a surgir no quadro realista, possuindo um caráter
vinculativo, alinhadas às opções políticas, de governo e, claramente, em consonância
com a defesa do interesse nacional, enquanto entidades soberanas, com hino,
bandeira, território e fronteira.
Contudo, a UE necessita de dar um novo rumo, designadamente na esfera das
ligações entre Estados-membros e os seus cidadãos como um todo e não na sua forma
singular, no reconhecimento e articulação ao nível externo. Num momento de viragem
e de transição das políticas mundiais, a UE, estrategicamente, deve assentar as suas
opções, interligando o doméstico com o externo, numa lógica de liberdade,
democracia e integração. Federiga Bindi (2010, pp. 36-37) recorda a posição de Tony
Blair, Reino Unido, e de Jacques Chirac, França, ao negociarem secretamente assuntos
relacionados com a defesa da UE, tendo como resultado a Declaração de Saint-Malo a
4 de dezembro de 1998, a qual incentivava a UE a deter um papel preponderante na
arena internacional, sendo, para isso, indispensável possuir uma certa autonomia e
forças militares credíveis para responder eficazmente às crises internacionais que
pudessem advir. Os Estados Unidos, na altura, não detiveram outra alternativa, a não
ser a de aceitação, porém, impondo determinadas condições, como: (1) não desligar a
A União Europeia num mundo em mudança. Era Trump 2.0?
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 96
Política de Segurança e Defesa da Europeia da NATO; (2) não duplicar as capacidades;
(3) não discriminar junto de Estados não-membros da NATO. Precisamente, na
sequência do 9/11 e dos atentados de Madrid (2004) e de Londres (2005), a UE iniciou
um diálogo político no quadro do contraterrorismo com os Estados Unidos, Rússia,
Índia, Paquistão, Austrália e Japão (Bindi, 2010, p. 38) nas esferas da prevenção,
proteção, perseguição e resposta, em sintonia com as convenções e protocolos das
Nações Unidas.
Daí que seja necessário revitalizar a defesa europeia para responder aos
desafios do presente século XXI, como, por exemplo: (1) previsibilidade real de crises
económicas no espaço europeu e mundial; (2) fragmentações e divisões internas no
quadro ideológico; (3) os efeitos da Primavera Árabe, que ainda se fazem sentir, ora por
vagas migratórias, ora pela instabilidade política e societal na Líbia, Egito e Tunísia; (4) a
instabilidade no Médio Oriente, a par do surgimento do Estado Islâmico (Daesh); (5) os
sucessivos ataques terroristas, não só em solo europeu, como à escala global, tendo
provocado a morte de milhares de seres humanos; (6) o exponencial fluxo migratório
resultante de conflitos junto às fronteiras europeias, na zona do Mediterrâneo, como o
caso da Síria e da Turquia.
Neste contexto, importa analisar e verificar se de facto esta União Europeia não
atingiu os seus próprios limites ou se de entre os Estados-membros, no quadro da
segurança e defesa: por um lado, a Alemanha, que no seu Livro Branco evidencia
prioridades estratégicas defensoras da imperatividade de uma cooperação estruturada
e uma europeização da indústria de defesa para além de se criar um quartel-general
operacional civil/militar e, por outro lado, a França, que considera impensável que os
Estados-membros possam agir à margem da NATO. Nesse sentido, a Alemanha e a
França pretenderam e defenderam a criação de um quartel-general a 27, assumindo
aqui o Brexit, para missões e operações neste setor da defesa e segurança, pela
cooperação reforçada entre a NATO e a UE, perante a imprevisibilidade do cenário
mundial, onde os BRICS procuram assumir cada vez mais um papel preponderante e
alternativo ao domínio dos Estados Unidos no mundo.
Marco Martins
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 97
Por último, refira-se que esta estratégia idealista reabre objetivos que, de certo
modo, estariam estipulados pelo então Tratado de Lisboa, sendo a sua implementação
imperativa e vital para reforçar a ação da UE, quer no seu território, quer no mundo, em
concreto no reequilíbrio do vínculo transatlântico, das potências, no papel dos BRICS e
no surgimento de novos atores das relações internacionais.
2. A RELEVÂNCIA GEOESTRATÉGICA DOS BRICS NA ARENA INTERNACIONAL
O surgimento dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) na arena
mundial, não só se deveu à Goldman Sachs, pela voz de Jim O’Neill no seu relatório
Building Better Global Economic BRICs (2001), na procura de uma alternativa que
respondesse à nova dinâmica e realidade internacional, ainda para mais coincidente
com os ataques terroristas em território norte-americano no 9/11, como também se
pretendeu introduzir na agenda global de investimentos a ideia da potencialidade
económico-financeira dos BRICS. Ora, mais tarde, a recessão económica de 2008/2009
veio outorgar aos BRICS um papel da maior importância face aos Estados Unidos e à
Europa, demonstrando a sua capacidade de resposta em tempo de crise global, além
do sustentável crescimento económico (O’Neill, 2013).
Nesse sentido, a partir da década de 2010, os BRICS optaram, enquanto
estrutura informal, por se agruparem politicamente, admitindo a África do Sul na
qualidade de novo membro. Precisamente, Jacob Zuma, Presidente de África do Sul,
participou na cimeira dos BRICS em Sanya, na República Popular da China, afirmando
este estatuto (Pipper, 2015). Quanto à inclusão sul-africana, esta consistiu em
referenciar geopoliticamente a importância deste país para África e, sobretudo, por
constituir uma das economias de maior e potencial desenvolvimento. A partir desta
cimeira do Forum dos BRICS, reposicionaram-se cinco países, em interligação, para
conceber uma espécie de plataforma de cooperação internacional nas esferas do
comércio, da política e da cultura, numa ótica de rivalidade para com o Fundo
Monetário Internacional e o domínio do campo ocidental nessa matéria, deslocando
dessa forma o eixo FMI – Ocidente para BRICS – global (Westcott, 2014).
A União Europeia num mundo em mudança. Era Trump 2.0?
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 98
Recorde-se a esse título, o surgimento do G20 em 2009 que levou à
substituição do G7/8 ao incluir precisamente os BRICS e constituindo, porventura, o
agrupamento de países num fórum da maior importância quanto à deliberação em
matéria de governação económica internacional. Nessa ótica, importa sublinhar que os
BRICS se posicionam no campo das relações internacionais, quer económica, quer
politicamente, nomeadamente enquanto atores políticos, cujo foco da sua projeção
consiste em possibilitar que a ordem mundial vigente tenha um rumo alternativo para
sair da esfera de influência hegemónica dos Estados Unidos.
Aliás, a partir da convergência política, decidiu-se proceder ao lançamento de
um banco, o Banco de Desenvolvimento dos BRICS, cuja sede se encontra em Xangai,
projeto acordado na quinta Cimeira em Durban, África do Sul, a 27 de março de 2013 e,
efetivamente, fundado a 15 de julho de 2014, aquando da sexta cimeira, em Fortaleza,
Brasil, com um fundo de moeda de reserva de cerca de 100 mil milhões de dólares e
um capital de igual montante. Este Banco tem por função financiar projetos
relacionados com infraestruturas e que contribuam para o desenvolvimento
económico, em alternativa ao Banco Mundial e ao FMI. Sublinhe-se que no quadro das
infraestruturas a prioridade é concedida às áreas da educação, saúde, direitos das
mulheres, alterações climática, entre outras, para além de focar-se em setores
produtivos, nomeadamente o investimento em energia.
Por conseguinte, pela concretização de cimeiras anuais e da criação do Banco,
os BRICS reforçam o seu posicionamento a uma nova escala, a global, cujo efeito se
produz numa aproximação diferenciada ao desenvolvimento e no relacionamento em
eixo, Sul-Sul (Patrício, 2007), favorável em certa medida ao Brasil, para além da
coexistência e da necessária convergência nos seguintes fatores: (1) contribuir para a
estabilidade e o crescimento doméstico; (2) reforçar a participação em fora
internacionais no quadro multilateral e regional, como por exemplo junto da
Organização Mundial de Comércio (OMC); (3) pressionar o alinhamento das políticas
do Banco dos BRICS, em nome de um desenvolvimento sustentável; (4) promover a
democratização e a transparência na gestão deste banco, contribuindo pelo respeito
dos Direitos Humanos, o impacto social e o ambiente (Watson, 2013).
Marco Martins
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 99
Na perspetiva de Coning (2015, pp. 171-174), o princípio de respeito mútuo
pela soberania e integridade territorial, conforme expresso na Carta das Nações Unidas,
confere o princípio regulador em matéria de Direito Internacional na corrente ordem
mundial. Todavia, um dos fatores interessantes a destacar no quadro dos BRICS reside,
paralelamente, em matéria de soberania e integridade territorial, no caráter, ora
conservador, ora reacionário, dependendo do contexto de sua utilização, pendendo em
termos de escudo protetor pelos regimes em cada um destes estados, em caso de
resistência ao criticismo internacional por alegados abusos de violação aos Direitos
Humanos. Torna-se, consequentemente, na evidência de uma crescente tensão entre
estes estados e a comunidade internacional, por questões de comportamento e
respeito ao Direito Internacional, em parte resultante da pressão emanada pelo
Ocidente na adoção de políticas económicas liberais, o que incita à possibilidade de
manipular a conduta em política internacional para se manter uma aparente imagem
de não violação desses mesmos direitos ou soberania.
Contudo, este interesse político vai além do campo económico, sem, porém, se
desconectar do mesmo. Pelo contrário, os interesses dos BRICS enquanto atores
políticos (Kobayashi-Hillary, 2007) confundem-se com assuntos de índole económica,
sendo, por exemplo, imperativo para este grupo o reconhecimento de facto de que os
países em desenvolvimento sejam tratados enquanto parceiros em igualdade de
circunstâncias e direitos, em nome da sua afirmação na arena global (Nel, 2010). Diga-
se de passagem, o compromisso dos BRICS em nome dos Direitos Humanos e do
respeito da soberania emerge, em parte, pelo desenvolvimento e projeção dos
instrumentos emanados das instituições e/ou instrumentos financeiros extra e intra-
BRICS. Acresce, todavia, que em termos de soberania, todos os BRICS, excetuando a
África do Sul, encontram-se em disputas territoriais (Coning, 2015, p. 173).
Por norma, as contendas em matéria de soberania e de respeito pelos Direitos
Humanos, para além da questão dos aspetos ligados às alterações climáticas, geram,
face a este princípio de interferência, tensões entre cada um dos BRICS. Importa referir
o empenho no compromisso destes estados em direitos humanos, políticos, civis,
sociais e económicos. O Brasil segue-os nos seus assuntos domésticos e externos; a
A União Europeia num mundo em mudança. Era Trump 2.0?
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 100
África do Sul promove com empenho a promoção social, a justiça e a segurança
humana; em contraste a Rússia, a República Popular da China e a Índia, assumem
outras posições morais.
Nessa matéria, a Rússia advoga que o respeito pelos Direitos Humanos difere
dos seus princípios e características históricas, a Índia tende a não aceitar o conceito de
responsabilidade de proteção, para além de se comprometer em Direitos Humanos ou
integridade territorial. Assim, surge uma flexibilização intra-BRICS, assumida em cada
um dos seus vetores de política externa, manifestando positivamente os aspetos de
proteção aos valores e Direitos Humanos, desde que domesticamente não haja
qualquer tipo de interferência.
Todavia, o “pacto” assumido entre os BRICS de não-agressão mútua e na base
legal de igualdade entre os estados torna-se no aspeto de maior sensibilidade ou
senão naquele que possa comprometer ou ferir a unidade deste grupo, bastando para
tal, anunciar a perspetiva chinesa da sua fronteira com a Índia, ou do Japão para com a
China, além do espaço marítimo como ameaça à liberdade e segurança de navegação;
ou ainda, na ótica de Moscovo, da interferência da China no tocante à Geórgia em
2008, ou da abstenção no Conselho de Segurança por parte da China, referente à
anexação da Crimeia em 2014.
Além disso, os BRICS inseridos nesta nova dinâmica das relações internacionais,
ao interagiram enquanto grupo e apresentarem linhas objetivas de intervenção em
todas as áreas da economia, da política internacional ao comércio, projetam para a
comunidade internacional, leia-se Ocidente, um grupo cujos desafios convergem no
tocante à cooperação e trocas comerciais e, sobretudo, funcionando como plataforma
de futuros investimentos, garantido ao Ocidente a capacidade de resistência a ameaças
ou crises económicas, refletindo uma ordem policêntrica, onde a UE, apesar de em
momentos de crise, constitui um ator fundamental.
Marco Martins
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 101
3. UNIÃO EUROPEIA - BRICS: VETORES ESTRATÉGICOS
Um dos principais vetores estratégicos do papel da UE nas relações
internacionais baseia-se na sua integração económica, posicionando-se na qualidade
de parceiro estratégico, expressando para o efeito uma economia robusta a seguir aos
Estados Unidos. A UE tem vindo a aproveitar o seu motor económico para reforçar a
sua componente política na arena mundial, concretamente junto dos seus vizinhos no
Mediterrâneo e além-fronteiras, pela promoção, não só de questões de segurança
interna/externa, mas, também, do desenvolvimento em simultâneo das suas estruturas
institucionais. Estas últimas visam a dinamização da cooperação e das trocas comerciais
a nível global, através do multilateralismo, de forma a proteger-se de eventuais crises
intra e extraeuropeias (Keukeleire, 2011).
Atualmente, a relação UE-BRICS permite observar a realidade vigente de um
outro prisma, em termos de poder, dado a UE deter pela sua natureza a capacidade de
se posicionar e de gerar mudanças no ambiente externo, leia-se no espaço
extraeuropeu. Segundo Keukeleire (2011), a particularidade das relações da UE com os
BRICS expressam-se, não só na sua vertente de poder relacional, soft power ou até
mesmo hard power, sobretudo em coerção, conflitos e crises, mas também pela
estrutura de poder, ou seja, com competência para influenciar as estruturas políticas,
económicas e jurídico-legais junto de países terceiros.
Portanto, a UE representa um instrumento por excelência junto dos BRICS,
regional e mundialmente, ao procurar promover mudanças estruturais, contribuindo,
por conseguinte, para o desenvolvimento da economia liberal e posicionar-se
favoravelmente pela afirmação da democracia pluralista. Contudo, sublinhemos que a
UE, apesar de expressar e possuir aspirações de alterações no ambiente externo,
concretamente como uma plataforma para influenciar as políticas domésticas e as
estruturas societais, termina por não usufruir de tal projeção internacional, ora por
problemas de ordem intraeuropeia, ora por colidir com aspetos interligados à
soberania e Direitos Humanos.
A União Europeia num mundo em mudança. Era Trump 2.0?
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 102
Precisamente, a tendência verificada por obedecer ao princípio da não-
interferência em assuntos internos suscita, dessa forma, uma posição ambivalente,
nomeadamente no tocante às relações entre Moscovo-Pequim-UE, por incluir matéria
respeitante à violação dos Direitos Humanos, das minorias ou de assuntos de elevada
sensibilidade relacionadas com questões de segurança internacional, energéticas e de
combate ao terrorismo. Tradicionalmente, Moscovo e Pequim terminam por rejeitar
críticas ou as intenções por parte da UE com assuntos de índole interna. Se por um
lado, de acordo com Shambaugh (2008), aceitam-se acordos em que prevaleçam
reformas socioeconómicas e assistência técnica, por outro lado, recusa-se o diálogo,
nomeadamente as autoridades de Pequim, em fomentar o caminho para uma
sociedade democrática e pluralista respeitante dos Direitos Humanos.
Todavia, segundo Matlary (2004, 141-143), o modelo enfatizado pela UE em
política externa revela a aplicação da utilização do poder da legalização, em normas
internacionais, na procura de legitimar a sua ação. É evidente que, a par dessa
legitimação de certos standards aplicados a regimes onde os Direitos Humanos
constituem prática de violação, suscita interpretações díspares da distinção entre as
formas correta e a incorreta, o que naturalmente poderá privilegiar certos regimes em
detrimento de outros, concretamente na hierarquia das potências, condicionando a
consolidação do desenvolvimento democrático, que pode não acompanhar a
velocidade do setor económico num mundo globalizado e interdependente. A
interrogação que se coloca consiste em dissecar a ligação do conceito de legitimidade
com os Direitos Humanos, introduzindo-se, nesse aspeto, a diplomacia coerciva para
obter resultados na justificação da ação política da UE em nome do interesse nacional,
de cada um dos Estados-membros. A afirmação da identidade europeia na promoção
das suas convicções em matéria de Direitos Humanos acaba por se justapor aos
interesses do individual ao coletivo, reforçando igualmente a sua esfera de influência
enquanto ator político.
No quadro da construção da identidade da UE e dos BRICS torna-se evidente a
sua edificação em nome, não de uma convergência ou partilha identitária política,
económica e cultural, mas do resultado da acumulação de diferentes posições e papeis
Marco Martins
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 103
assumidos na governança global. Reitera-se a incapacidade dos BRICS lograrem,
positivamente, resultados no G20 ou na Organização Mundial de Comércio, apesar da
contínua cooperação e do desenvolvimento de redes de ligação, de interações
resultantes do desenvolvimento cooperativo (Duggan, 2015, pp. 20-22).
Importa referenciar a procura de uma identidade própria na necessidade de
respostas eficazes aos desafios que se vão apresentando entre ambas as partes, UE-
BRICS, sobretudo em matéria de segurança internacional e na redefinição da agenda
global imposta pela comunidade internacional. Neste contexto, a UE não possui uma
relação específica com os BRICS, derivado da sua diferença, para além de
representarem um grupo não formal ad hoc em processo de desenvolvimento e de
afirmação. Importa sublinhar que no seio dos próprios BRICS, a perceção respeitante à
UE revela-se negativa, de uma estrutura em declínio com dificuldades em resolver os
seus problemas, o que vem confirmar, sem margem de dúvida, a importância da
concretização de parcerias estratégicas (Keukeleire, Bruyninckx, 2011, pp. 400-402).
É incontestável que os BRICS, enquanto economias emergentes, desafiam a UE
e aos seus Estados-membros em nome do reforço do seu posicionamento na arena
internacional, nomeadamente da sua crescente e célere importância para travar o
eurocentrismo vigente na política externa e na vontade de governança global.
4. A UE, POLÍTICA EXTERNA, SEGURANÇA E DEFESA: UNIDADE NA DIVERSIDADE
A definição e a projeção de uma política externa europeia junto dos BRICS
reproduzem o passo fundamental concretizado de um modelo inicial de cooperação
para a criação progressiva de parcerias estratégicas. Tendo em consideração que a
segunda metade do século XX é a era da integração regional, em processos comerciais,
económicos e institucionais. O modelo original europeu reflete um projeto que, na sua
essência, vai além da integração económica regional ou das diferentes etapas na
edificação de um mercado comum e da zona de moeda única, a zona Euro, de livre
circulação de bens, serviços e mobilidade individual.
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A prossecução de uma sólida e gradual política comum, externa, monetária e de
segurança requer uma integração sólida que prime pela consolidação das diferentes
políticas, identidades, valores e culturas, respeitando a soberania de cada Estado-
membro, nas suas relações intra e extraeuropeia. Nesta ótica extraeuropeia, a UE
procura gerir as suas relações externas, deslocando a sua esfera de influência para além
das suas fronteiras e da zona natural mediterrânica (Yvars, 2010, pp. 274-80). A
globalização facilitou o posicionamento da UE no mundo, nomeadamente em
identificar os seus nichos competitivos de investimento para reforçar e adquirir
vantagens domésticas.
Presentemente, tendo por efeito o imperativo de manutenção do equilíbrio
regional para fazer face a novas crises, desde o terrorismo às sucessivas vagas
migratórias em consequência da guerra na Síria e à instabilidade em dois flancos, África
e Médio Oriente, a UE responde através da execução de uma política externa multi-
vetorial que faça face a um duplo desafio: por um lado, o reforço do pragmatismo e,
por outro lado, da garantia de estabilidade do contínuo processo de integração
regional e internacional. Para Susanne Gratius (2011), a UE é multilateral pela sua
natureza e vocação, expressando a partilha de soberania enquanto ator coletivo único,
no prosseguimento e concretização das suas aspirações, pela redução do
comportamento unilateral e incrementando os aspetos prendidos ao direito
internacional e ao princípio de negociação de igualdade, além de um evidente
empenho junto do sistema internacional numa ordem mundial multipolar, onde os
Estados Unidos tentam manter o seu posicionamento de superpotência.
Ora, na análise de Tiersky (2010, pp. 1-13), a influência da UE na política
internacional obedece a três tipos de poder: soft power, hard power e transformative
power. Enquanto hard power significa coerção e optar pela guerra, pela paz ou pela
imposição de sanções perante um conflito internacional, soft power traduz o lado
oposto, pretendendo influenciar outros países a optar pela decisão que seja de maior
conveniência para a parte interessada, prevalecendo a cooperação pela força da
atratividade e da cooptação, traduzido em vantagens económicas e/ou política de
inclusão. Por seu turno, transformative power reflete o poder de alargamento e das
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relações especiais que levam a reformas consideráveis e conduzem a mudanças
políticas substanciais junto daqueles governos que queiram ou pertencer à UE ou
retirar vantagens económicas.
Daí que Taylor (2010, pp. 133-59) defenda a posição vencedora da UE no
processo de globalização ao lograr conquistar um lugar no comércio mundial,
constituindo, a par dos Estados Unidos e da República Popular da China, um dos
maiores parceiros e intervenientes do comércio internacional desde 2004, em resultado
do aumento das suas exportações para além das regiões periféricas. Além disso, Taylor
acrescenta, no panorama das relações externas a UE, a negociação das parcerias
estratégicas com múltiplos países, entre os quais os BRICS, México, Japão, Canadá,
União Africana, ASEAN e Mercosul, formando uma rede comercial, de cooperação, e,
sobretudo, de acordos de ajuda extensível aos países da Europa Oriental e do
Mediterrâneo, através da Política Europeia de Vizinhança e do Acordo Euro-
Mediterrânico, estabilizando as suas fronteiras externas e comprometendo os parceiros
com base no mercado da UE, como um meio que vise garantir a segurança e o respeito
pelos Direitos Humanos.
Com efeito, Renard (2016) destaca, em termos de parcerias estratégicas, aquelas
ligadas ao setor da segurança, na tentativa de a UE marcar a sua posição na qualidade
de ator “global” securitário. Neste contexto, a Estratégia Europeia Externa de Segurança
de 2003 e a Estratégia Europeia Interna de Segurança de 2010 identificam as ameaças
que a UE deverá enfrentar, sendo de destacar as seguintes: (1) terrorismo, por perdas
humanas e colocar toda a Europa em risco; (2) proliferação de armas de destruição
maciça, sendo a maior ameaça ao território europeu; (3) conflitos regionais; (4) crime
organizado; (5) estados falhados; (6) setor securitário energético; (7) alterações
climáticas; e (8) cibersegurança.
De todas as ameaças evidenciadas por parte da UE, aquelas que de facto
representam e traduzem um maior grau de vulnerabilidade são o terrorismo e os
ataques cibernéticos. Tal cenário leva a um reforço da cibersegurança por causa do
hacking e especialmente da espionagem, o que revela particularmente a radicalização
desta época, assim como a preocupação em torno do crime organizado, existindo cerca
A União Europeia num mundo em mudança. Era Trump 2.0?
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 106
de 3600 organizações ativas em território europeu, implicando atividades criminosas
desde o tráfico de estupefacientes às consequências financeiras e humanas.
Como salienta Bickerton (2011, pp. 103-105), o setor da defesa traduz a
construção do sentimento democrático, dado surgir como uma agente da
democratização da UE, ou seja, o conceito de legitimidade democrática pressupõe uma
maior capacidade de integração, quer em termos de performance, quer em participação
e/ou identidade. As áreas da defesa e segurança implicam uma ligação agregada entre
o doméstico e o externo, traduzindo na realidade as limitações políticas cujo efeito se
sentirá em termos de défice democrático.
O reconhecimento da relação entre o doméstico e o externo transpõe a
performance da capacidade de conduta da UE na sua política externa e de defesa, quer
em ambiente de ameaça, quer de agressão. Todo este sentimento reflete a visão de um
estado em relação à sua capacidade de proteção e de resposta na aplicação dos
direitos fundamentais ou no papel político por parte de quem governa. Sublinhemos
que a UE, pela congregação das diferentes áreas de cooperação no âmbito da
segurança e defesa, tem dado primazia aos aspetos de proteção interna de cada um
dos Estados-membros.
4.1. UMA POLÍTICA EXTERNA EUROPEIA MULTI-VETORIAL
Ora, na verdade, o desenvolvimento da cooperação externa expressa o
progresso real da convergência dos diversos interesses nacionais defendidos por cada
Estado numa eficácia interna no seu todo para prover segurança à Europa no seu todo.
Assim, MacKenzie e Zwolski (2013) denotam o papel da UE no seu relacionamento
extra-UE, em particular com os Estados Unidos, por constituir um parceiro estratégico e
interlocutor fundamental na garantia do reequilíbrio regional e mundial. Nesse sentido,
Léonard e Kaunert (2013) inserem esse quadro cooperativo em ambiente pós-9/11 na
vigilância e na adoção de medidas passíveis de conter a ameaça terrorista constante,
sem prejudicar as relações bilaterais com as restantes potências ou parceiros. O
desenvolvimento da política externa da UE compreende a adoção de instrumentos de
Marco Martins
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 107
contra-terrorismo, como intensificar a cooperação nos diferentes setores da partilha de
informação na comunidade de intelligence.
A capacidade de soft power da UE introduzida na sua política externa tem
ajudado a reduzir a esfera de influência de países, como a Rússia, que observa a Europa
enquanto unidade em erosão ou em fragmentação, em consequência da sua expansão
aos antigos satélites da ex-União Soviética, da rejeição do projeto constitucional e das
dificuldades de garantir a estabilidade financeira entre os países mediterrânicos,
Portugal, Espanha, Itália e Grécia. Acresce, todavia, o sentimento populista e anti-
integração em cada um dos Estados-membros, junto de partidos que visam quebrar
todo o processo geo-histórico do processo de construção europeia.
Paralelamente, emergem problemas ligados à energia (Rússia) e ao
investimento (China), nomeadamente nos pontos de acesso e passagem dos oleodutos
e gasodutos em território europeu, dividindo as posições entre os Estados-membros,
leia-se aqui o delineamento geopolítico, South Stream (Wijk, 2015, pp. 119-34),
assumindo de igual forma nexos de recursos globais, resultante da complexidade das
mútuas dependências (a) energéticas, (b) hídricas, (c) alimentares, (d) de recursos
minérios e (e) de recursos do solo.2
De facto, segundo um estudo por parte da Rand Corporation é possível
estabelecer uma medição precisa quanto à capacidade de poder de um Estado, neste
caso pela análise de 3 variáveis: (1) PIB, que dependendo do grau de riqueza, é possível
partir de um quadro negocial positivo; (2) inovação, no sentido de ser necessária para a
obtenção de prosperidade e de modernizar o equipamento militar; e (3) capacidade
militar convencional. A conjugação destas variáveis pode decidir a definição da política
externa de um Estado, aqui neste caso da UE no seu todo. Tal posição revela-se
decisiva na projeção do poder nas relações internacionais e, concretamente, na
execução com sucesso da política externa (Tellis, 2000). Precisamente, de acordo com
Hill e Wong (2011), o processo de definição da política externa europeia envolve, na
sua complexidade, a coordenação entre diversos tipos de estados, assimetricamente,
2 O South Stream consiste num projeto, em curso, de gasoduto pan-europeu para ligar a Rússia à Europa
ocidental, passando pelo Mar Negro, Bulgária, Sérvia, Itália e Áustria, permitindo à Gazprom contornar a
Ucrânia enquanto pais de trânsito (Fillippov, 2016).
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das pequenas às grandes potências, para além da persistência das políticas externas
levadas a cabo por cada país a título soberano e individual.
Esta europeização das políticas externas traduzida numa única implica
procedimentos, atitudes e posições políticas comuns que se identifique com a
identidade alicerçada nos seguintes aspetos (Hill e Wong, 2011, pp. 210-12): (a) uma
posição comum, quer formal, quer informal; (b) essas posições comuns podem causar,
por vezes, dificuldades nas relações bilaterais ou nas políticas domésticas; (c) tentativas
de prosseguir as prioridades nacionais, não exclusivamente, através dos meios de ação
coletiva da UE; e (e) subscrição positiva dos valores e dos princípios expressos pela UE
na sua atividade internacional, na partilha de uma imagem e de uma identidade.
Aliás, Hill e Wong (2011, p. 220) consideram como passíveis de promover a
europeização das políticas externas domésticas os seguintes fatores: (1) o papel das
instituições; (2) a socialização; (3) uma liderança eficiente; (4) os federadores externos;
(5) as políticas de escala; (6) a legitimação do papel à escala global e, por último, (7) a
identidade geocultural. Evidencia-se que, somente com a conjugação de todos estes
princípios, a UE deterá a capacidade plena de determinar a sua política externa em
matéria de segurança e defesa a uma só voz, caso contrário, dificilmente responderá às
incertezas do sistema internacional ou ultrapassará determinados obstáculos quanto ao
futuro em termos de integração.
O sistema europeu de produção de política externa consiste, evidentemente, na
interação, por um lado, entre os ambientes internos e externos, e, por outro lado, na
relação das estruturas nacionais com a institucional da UE. Trata-se, pela própria
natureza do sistema, de uma dinâmica inseparável e evolutiva, no comportamento e na
capacidade dos estados enquanto atores das relações internacionais no processo de
defesa dos seus interesses nacionais e securitários.
Para mais, a evolução da integração europeia não pode ser reduzida apenas à
capacidade militar e ao poder económico, mas deverá considerar os campos da política
externa, da segurança, da defesa e, sobretudo, na coordenação de todos estes fatores,
de forma a estabelecer e a garantir a sua capacidade de resposta, mantendo
internamente a sua unidade e coesão. Ora, consequentemente, na perspetiva de
Marco Martins
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 109
Monteleone (2016), a garantia da paz e segurança em todo o período de Guerra Fria e
de Coexistência Pacífica entre os dois blocos (por um lado, os Estados Unidos e NATO,
e, por outro lado a União Soviética e o Pacto de Varsóvia), deveu-se, por certo, ao
consenso intraeuropeu gerado e aos esforços de resposta a uma só voz, para que não
se repetisse uma nova guerra mundial, de causas europeias e de consequências
mundiais, evidenciando-se uma correlação entre a coesão e o sentimento identitário
coletivo europeu.
4.2 A UE PERANTE UMA NOVA ORDEM MUNDIAL: VELHOS TEMPOS, NOVOS
TEMPOS?
Deste modo, afirma-se que se vivem novos tempos em velhos tempos, onde
afinal não se espera uma mudança de sistema, mas uma regressão evolutiva do atual,
reafirmando o sistema vestefaliano, do poder soberano, da hierarquia das potências. A
única diferença constitui no surgimento do novo elemento na condução dos destinos
de uma nação: o ciberespaço.
Assim, no quadro da política externa europeia, de acordo com Hill e Wong
(2011, p. 227), só existem 5 possibilidades: (1) ignorar aquilo que coletivamente tem
vindo a ser realizado e procedido, tendo por base a independência da diplomacia
tradicional; (2) ativamente opor-se ou obstruir a tentativa de criação de posições
comuns; (3) tentar a utilização da política externa europeia na promoção específica em
nome de propósitos nacionais, i.e., uploading; (4) procurar um consenso maioritário
através da formulação de políticas institucionais, ou seja, downloading; ou (5) promover
a interação com os parceiros da UE, quer como um todo, quer por meio de múltiplos
grupos e intensificação das relações bilaterais, i.e., crossloading. É evidente que um
governo na formulação da sua política externa, e, neste caso concreto, numa ordem de
caminho incerto, enfrenta a realidade para além das suas fronteiras e o seu ambiente
doméstico.
Nesta nova era Trump 2.0, que se iniciou com a eleição de Donald Trump, onde
os seus tweets ganharam um domínio absoluto, não na definição da política externa
A União Europeia num mundo em mudança. Era Trump 2.0?
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 110
norte-americana, mas sim na sua execução, gerando ansiedade e, sobretudo, um novo
fenómeno, o das fake news. Os Estados Unidos surgem assim neste jogo de xadrez
mundial enquanto superpotência, onde, como refere Nuno Rogeiro (2017, p. 17), se
suspeita de que o inimigo do Presidente Trump é a sua própria pessoa, ou seja, o
programa. O discurso da investidura de Donald Trump no dia 20 de janeiro de 2017
abre uma época de transição sem precedentes na história das relações internacionais.
Dessa maneira, Trump apresenta um discurso sob a inspiração de dois dos antigos
Presidentes, Ronald Reagan (1981-1989) e John Kennedy (1961-1963), encontrando
dois estilos sobejamente diferentes, mas complementares, entre uma ligação com o
país e a ambição nacional da projeção dos Estados Unidos na arena mundial.
Politicamente, aguarda-se que Trump concretize políticas domésticas para
agradar, num primeiro momento, o seu eleitorado, num estilo conservador e
autoritário, para a seguir apresentar, no plano externo, uma espécie de détente com o
seu rival dos tempos da Guerra Fria, entenda-se a Rússia, optando no combate ao
terrorismo por uma estratégia de hard power. Este será acompanhado por investimento
considerável na defesa e de uma nova escalada armamentista nuclear e convencional,
dando sinais da necessidade de readaptar os papeis da NATO e das Nações Unidas,
visto os mesmos retratarem uma época passada e não contemporânea.
Na opinião de Richard Haass (2017), tendo em consideração todas estas
recentes mudanças no ambiente internacional, desde os Estados Unidos aos BRICS,
passando pela UE e a Rússia, gera-se um novo redesenhar da configuração do
equilíbrio mundial, nomeadamente por não ser passível de considerar que apenas o
respeito pela soberania e a sua complementaridade no sistema de balança de poderes
darão resposta a este modelo operacional. Destarte, este autor defende que se vive
numa ordem mundial 2.0 que resulta de mais de quatrocentos anos sob a Paz de
Vestefália. A ordem mundial 1.0 consistiu naquela que foi alicerçada em torno da
proteção e das prerrogativas dos Estados, sendo, desse modo, inadequada aos tempos
vigentes, em consequência da globalização. Praticamente, nada é local, tudo passou a
uma escala global, desde o turismo às doenças infectocontagiosas, para além de que
Marco Martins
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 111
qualquer conflito interno seja passível de se tornar internacionalizável, como bem
salienta Adriano Moreira.
Apesar disso, não se trata somente de garantir a soberania, ao contrário,
evidencia-se a imperatividade de cada estado responder às obrigações dos outros,
aqui, introduzindo-se o conceito de obrigação da soberania, em contraponto com a
responsabilidade desta em atuar num mundo interconectado e interdependente,
envolvendo as principais potências, como a China, a França, a Alemanha, a Índia, o
Japão, a Rússia e o Reino Unido, para além do papel que a UE, o G-20 ou as Nações
Unidas possam desempenhar. Nesta ordem mundial 2.0, serão indispensáveis consultas
e conversações, entre outras, em matéria de saúde global, alterações climáticas e
ciberespaço ou, ainda, respeitante a ações de prevenção para travar a proliferação
nuclear e armamentista, bilateral e multilateralmente, por forma a obter os apoios
requeridos para evitar o caminho do descontrolo e de violência.
Nessa ótica, a UE, de acordo com Gariup (2009, pp. 192-93), ao considerar a
Política Europeia de Segurança e Defesa como um sistema de inclusão e de resposta a
crises e/ou conflitos internacionais sem prejudicar o campo de ação da NATO, mas sim
funcionando em complementaridade, está dotada de capacidade para enfrentar esta
nova ordem mundial, a que Haass introduz como 2.0, por assegurar a possibilidade de
desenvolvimento na operacionalidade progressiva das suas capacidades de
intervenção, estrategicamente num papel pivot da Europa.
A existência de problemas e responsabilidades partilhadas nesta Ordem 2.0
revela uma componente central de comprometimento no comportamento em relação
ao poder das principais potências (Estados Unidos, Rússia e UE) respeitante ao
equacionamento da sobrevivência por interesse mútuo e da garantia do princípio de
uma segurança comum. Esta aproximação na ótica de Buzan e Lawson (2015, pp. 300-
04) leva a assumir, na agenda da segurança nacional de cada potência, uma atuação
em nome da segurança com, e não mais da segurança contra, tendo por ameaças
comuns as alterações climáticas, o ciberespaço e toda a sua envolvente dos hackers à
ciberguerra, a proliferação de armas de destruição maciça, o espaço e, sobretudo, a
economia global.
A União Europeia num mundo em mudança. Era Trump 2.0?
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 112
Com efeito, para Buzan e Lawson (2015, pp. 306-10), este modo de associar o
poder em resultado desta realidade, alude-se ao surgimento de novos atores das
relações internacionais, substituindo o tradicional domínio ocidental, ao garantir a
projeção de outras formas de organização, do surgimento de ideias que provocaram o
aparecimento de outras realidades sociais. Tudo isto, induz repensar a segurança e a
defesa, especificamente em ambiente de incerteza decorrente do novo modus operandi
da administração Trump, personalizada e centrada no homem de negócios Trump,
entre novos e velhos tempos das relações internacionais.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS: A UE E O FIM DA ORDEM VESTEFALIANA?
A UE encontra-se num processo decisivo respeitante à prossecução do seu
projeto de construção, não só respeitando o espírito de unidade e de coesão, como
também, realçando a imperatividade da garantia de uma identificação identitária junto
da população que une todos Estados-membros. Neste contexto, o legado histórico do
velho continente europeu traduz uma riqueza imensurável neste mundo
contemporâneo, onde se assiste a uma dinâmica crescente e volátil de transformação
global. Transformação esta em aceleramento e em ambiente de contínua incerteza,
pela interdependência crescente, aludida providencialmente pelo Padre Teilhard de
Chardin em O Fenómeno Humano (1955), no qual o decisor político, quem governa, é
colocado em confronto global para além das tradicionais fronteiras físicas e da inclusão
do instrumento ciberespaço, que cada vez mais se apresenta na qualidade de um novo
“ator” das relações internacionais, outorgando a possibilidade de manipulação não só
da informação ou da produção de fake news, como da capacidade de alterar à distância
o rumo de um país, de uma região, de um continente, de um mundo, rumo a
consequências devastadoras para o bem comum da humanidade. Esta complexidade
crescente introduzida por Teilhard de Chardin assume que divergência não é oposição,
mas ao contrário, convergência na continuidade da evolução sem rutura, onde o
passado se cruza com o futuro (Maltez, 2014, p. 89), entre as ações da política e da
humanidade.
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Assim, se abre o caminho de um novo tempo, o do fim da ordem da Paz de
Vestefália, concebida em 1648, pondo fim à Guerra dos Trinta Anos, e alicerçando um
equilíbrio das soberanias, em nome da não-ingerência, inaugurando o moderno
sistema internacional, aclamado e reforçado na sequência do Congresso de Viena de
1815 e, finalmente, pela mão do Tratado de Versalhes de 1919. Todavia, o mundo de
hoje, representa o legado de um passado, de um tempo de outrora, de uma Europa
ainda por existir e sair fora do espectro de falsas consciências, de visões deformadas do
mundo. A UE depara-se numa encruzilhada na prossecução do seu projeto de
integração e na contribuição para a edificação de um mundo melhor, onde o Brexit e
todos os processos eleitorais internos de cada Estado-membro adquirem um outro
significado.
Por último, importa denotar a importância dos Estados Unidos, pela voz de
Trump, naquilo que consistirá em matéria de política externa, segurança e defesa,
realçando o seu papel diplomático, económico e militar, no quadro da aliança atlântica,
bem como da segurança europeia. As incertezas provenientes da própria personalidade
de Trump implicam, indiretamente, uma redefinição e readaptação da UE no
planeamento, negociação e implementação da política externa, concretamente em
áreas sensíveis como: (1) o futuro do compromisso entre os Estados Unidos e a NATO;
(2) a possibilidade de um rapprochement entre os Estados Unidos e a Rússia, entre
Trump e Putin, o que pode reduzir a área de atuação da UE; (3) a incerteza da dinâmica
das relações sino-americanas, concretamente, sobre Taiwan; (4) as renegociações
nucleares com o Irão, o que reduz o interesse norte-americano em retirar o Presidente
sírio, Bashar al-Assad; (5) a redução da proliferação de armamento nuclear em países
como o Japão, Arábia Saudita e Coreia do Sul; (6) a questão da fronteira dos Estados
Unidos e o seu controlo das migrações; (7) em nome do contra-terrorismo, o
incremento das operações de vigilância, pela Five Eyes Alliance (FVEY) – Austrália,
Canadá, Nova Zelândia, Reino Unido e Estados Unidos; (8) o aumento do investimento
na defesa e segurança dos Estados Unidos na ordem dos 300 mil milhões de dólares
para um período de quatro anos; e (9) o futuro das eleições em França e no que
respeita os acordos de comércio livre, como o Transatlantic Trade and Investment
A União Europeia num mundo em mudança. Era Trump 2.0?
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Partnership (TTIP) e o Trans-Pacific Partnership (TPP) (Black, Hall, Cox, Kepe and
Silfversten, 2017).
Por conseguinte, o Brexit e a vitória de Trump traduzem a abertura de novos,
velhos tempos em regressão, com níveis de imprevisibilidade sem paralelo, a par da
contínua ameaça terrorista em território europeu, o que vem pressionar o encontro de
uma estratégia europeia capaz de dar resposta a estes novos desafios na política
externa, na segurança e na defesa, tal como no novo modelo a adotar no
relacionamento Reino Unido-UE.
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A democracia portuguesa e a Europa democrática
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A DEMOCRACIA PORTUGUESA E A EUROPA DEMOCRÁTICA.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE OS PROBLEMAS,
RESPOSTAS, SOLUÇÕES E INTERAÇÕES:
COMUNS OU DISTINTOS?
PEDRO PONTE E SOUSA1
RESUMO
Neste trabalho procuraremos perceber a história do conceito de democracia, e aprofundar os princípios
fundamentais das experiências políticas que nos são mais próximas (o caso português e a arquitetura
europeia), tentando alcançar quais as causas do atual desdém pelos preceitos democráticos e falta de
legitimidade dos sistemas democráticos ocidentais. Deste modo, centrar-nos-emos no futuro e
governabilidade das democracias, entre os valores fundamentais das sociedades, as preferências
individuais e os interesses coletivos, bem como as principais preocupações da Sociologia, Ciência Política e
Relações Internacionais ao analisar tal conceito. Faremos assim uma revisão de autores como André Freire,
José Manuel Leite Viegas, Carlos Leone ou António Teixeira Fernandes, em busca de esclarecer mitos
comuns acerca do funcionamento da democracia (e comprovar se estes são verdadeiros ou não), ao
mesmo tempo que se salientam uma série de condições essenciais para um bom funcionamento da
sociedade democrática (e se explica como melhorá-los), com uma ênfase reforçada nas questões de
cidadania, nas disputas naturais de luta pelo poder, e, sobretudo, nas questões de justiça, igualdade e
liberdade (sobretudo em termos de direitos sociais e políticos), sem as quais não podemos falar
verdadeiramente de democracia.
Palavras-chave: democracia, cultura política europeia, participação cívica e política.
Histórico do artigo: recebido em 30-10-2016; recebido após revisão em 02-12-2016; aprovado em 26-01-
2017; publicado em 05-05-2017. 1 Doutorando em Estudos sobre a Globalização pela Universidade Nova de Lisboa. Investigador no
Instituto Português de Relações Internacionais. Lisboa, Portugal. E-mail: [email protected].
Pedro Ponte e Sousa
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 119
ABSTRACT
The Portuguese democracy and the democratic Europe. Some considerations about the problems, answers,
solutions and interactions: common or dissimilar? In this paper we seek to understand the history of the
concept of democracy, and deepen the fundamental principles of political experiences that are closest to
us (the Portuguese case and European integration process) trying to recognize the causes of the current
discontent for democratic principles and lack of legitimacy of the Western democratic systems. Thus, we
will focus on the future and governability of democracies, among society’s fundamental values, individual
preferences and collective interests, as well as major concerns from Sociology, Political Science and
International Relations to analyze this concept. Thereby we will review authors like André Freire, José
Manuel Leite Viegas, Carlos Leone or António Teixeira Fernandes, seeking to clarify common myths about
the functioning of democracy (and to see if these are true or not), while stressing a number of essential
conditions for the proper functioning of a democratic society (and explaining how to improve them), with
an enhanced focus on citizenship issues, disputes on the natural interest over power, and emphasizing
issues of justice, equality and freedom (especially in terms of social and political rights), without which we
cannot really talk about democracy.
Keywords: democracy, European political culture, civic and political participation.
_________________________________________________________________________________________________________________
1. INTRODUÇÃO
A democracia, ideia tão estruturante da vida política moderna e conceito com
séculos de história, é, todavia uma conceção que, até entre pensadores políticos que
normalmente se têm como fundadores da mesma, causou polémicas e divergências
(Canfora, 2007)2. Confundindo-se com conceitos como república, liberdade, justiça ou
participação cívica, esta ideia dos Gregos, «as primeiras pessoas (…) a criar Estados
somente como comunidades de cidadãos onde a administração e as políticas eram o
2 É particularmente relevante para o trabalho a que aqui nos propomos a seguinte citação do mesmo
autor: «Eis, portanto, que se começa a compreender a gaffe dos autores do preâmbulo da Constituição
europeia. Baseados numa informação de tipo escolar, (…) eles sabiam que “a Grécia inventou a
democracia”. (…) Provavelmente, procuraram primeiro entre os pensadores políticos (Platão e Aristóteles) e
devem ter ficado estupefactos ao constatarem que nas suas obras (…) a democracia é motivo constante de
polémica, tendo sido mesmo no caso da República de Platão alvo de uma polémica feroz.» (Canfora, 2007,
p. 23).
A democracia portuguesa e a Europa democrática
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 120
direito e o dever desses cidadãos» (Ehrenberg, 1950, p. 515)3, vem até hoje,
transformada e alterada, sendo necessário esclarecer alguns equívocos e aclarar o seu
funcionamento. Proferida tantas vezes no dia a dia, falta compreender - não só no
âmbito nacional, mas também de fenómenos que ultrapassem tais fronteiras, em
particular no processo de construção europeia - as suas características (e problemas),
especificidades e dificuldades partilhadas por estes países4. Por fim, procurar-se-á
perceber que grandes dúvidas pairam hoje sobre a democracia e de que alterações,
atenções e soluções necessita para sobreviver.
Esta forma de governo, reproduzida para os tempos modernos pelas revoluções
Inglesa (século XVII), Americana e Francesa (finais do século XVIII), trouxe a liberdade e
igualdade (que funcionaram, porém, de forma muito diferente em cada uma destas
instituições, em cada um destes tempos históricos), bem como a discussão entre
sistemas eleitorais e tipos de sufrágio (universal versus censitário) para os nossos dias,
num momento em que, depois das lutas liberais e democráticas, após ferozes lutas de
classes para alcançar o poder político, encontramos, pelo menos no Ocidente,
democracias estáveis, baseadas em parlamentos onde também aí os partidos têm certa
solidez no tempo (vejam-se a generalidade dos parlamentos da Europa Ocidental). Mas
não podemos esquecer que «a democracia (…) é, com efeito, um produto instável: é o
predomínio (temporário) (…) de instâncias igualitárias, mais ou menos coroadas de um
sucesso duradouro» (Canfora, 2007, p. 297), sendo um conceito reclamado
correntemente por todos, quer sejam Estados socialistas ou capitalistas, autoritários,
populares ou liberais. Para além disso, e entre a natural dúvida entre aprofundar os
atores individuais ou as instituições da classe política para perceber os processos
políticos do presente (Cotta, 2008), há que notar a dificuldade que é aprofundar os
princípios fundamentais da experiência política que nos é mais próxima, sem cair em
julgamentos ou entendimentos de senso comum.
Fazendo-se aqui um aparte para explicar afirmações que fizemos mais acima, se,
por um lado, se vê o século XX marcado pela vitória de um tipo particular de
3 Tradução nossa.
4 Atendendo em particular a que «o vínculo conceptual Grécia-Europa-Liberdade tem uma história muito
longa» (Canfora, 2007, p.27).
Pedro Ponte e Sousa
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 121
democracia, a democracia liberal5, e esta possa ser hoje vista como a única forma
legítima de governo, o fim desse período e o início do século XXI é marcado, de igual
forma, por um desinteresse cada vez maior pelos partidos tradicionais, ao mesmo
tempo que partidos populistas, antissistema ou de extrema-direita ganham peso, em
particular por toda a Europa, mesmo até antes da crise financeira internacional ou da
crise das dívidas soberanas (embora tais acontecimentos fizessem com que aquelas
dinâmicas se alastrassem até se tornarem uma preocupação para grande parte dos
europeus). Seria a democracia direta uma alternativa? Será ainda possível encontrar
uma “vontade geral”, uma noção de povo, com um mínimo de unidade e distinguível,
ou um “bem comum”, ou, pelo contrário, só através do autointeresse é que os
indivíduos participarão na tomada de decisões da comunidade? Quais «a[s] orige[ns]
do atual desapreço a atingir as instituições democráticas, bem como da exuberante
crise de legitimidade das democracias ocidentais» (Mouffe, 2006, p. 8)?
Como já vimos, todos os regimes (mesmo as monarquias) procuram
recorrentemente provar a todos a igualdade de todos os seus cidadãos face à lei. Até
certo ponto,
nem a caracterização legal do regime como "monarquia" representa qualquer
empecilho a essa cultura política moderna por excelência que assente na igualdade
de todos perante a lei. Neste mundo político moderno, os verdadeiros adversários
destes valores republicanos foram erradicados: monarquias absolutas ou teocracias
(mesmo electivas) são-nos estranhas São igualmente reais e legitimadas, decerto,
mas não pertencem à visão do mundo que constitui as sociedades modernas
(Leone, 2008, p. 81).
Procuram mostrar-se constitucionais e parlamentares, estando assim mais
próximas do sistema de governo democrático moderno e dos ideais republicanos na
sua prática diária. Todavia, estamos aqui mais centrados no futuro e governabilidade
das democracias, entre os valores fundamentais das sociedades, as preferências
5 Referimo-nos aqui, à semelhança de Mouffe (2006), ao modelo liberal-democrático em oposição a uma
democracia mais directa/deliberativa.
A democracia portuguesa e a Europa democrática
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 122
individuais e os interesses coletivos. A tirania é o principal móbil para tais
preocupações, atendendo a que só o formalismo e o legalismo dos nossos regimes
políticos e sistemas de governo nos permitem gerir os conflitos diários da vida social
de forma eficaz, assegurando a manutenção e a segurança desta sociedade. No pior
dos cenários, esta estrutura do poder político permite-nos, sempre que necessário,
substituir os seus detentores por outros sem que haja lugar ao exercício de violência
física. Os conflitos do dia a dia que surgem para a sua resolução deverão ser sempre a
prioridade de tal sistema, atendendo à prática e aos princípios políticos gerais da
comunidade. Assim, serão vários os autores que, acertadamente, defenderão que «o
essencial da democracia está na sua limitação tanto de poderes de governo como de
atribuições políticas» (Leone, 2008, p. 84), que evitará autoritarismos, e que
esse esquecimento, seja ele feito em nome de valores e de políticas de Esquerda
ou de Direita (ou “acima” dessa divisão) tem por efeito a destruição dos ganhos
políticos (…) de séculos de combates e de reflexões, o afastamento da cultura de
tolerância que sustenta o civismo democrático e, consequentemente, o benefício
(…) da democracia (Leone, 2008, p. 84).
2. O CASO PORTUGUÊS
A sociedade portuguesa está centrada de forma inevitável no momento de
grande incerteza económica e, também, político-social, que se vive no presente. Mas
um certo desencanto pelos partidos políticos e um sentimento de falta de resposta das
instituições aos problemas da sua população, são indicadores que se pressentiam já
antes da crise económica e financeira que marca a atualidade nacional. As taxas de
abstenção têm vindo a aumentar de forma consistente desde as primeiras eleições
livres e, até redutos que se teriam como mais salvaguardados de tal desinteresse, como
será o caso das eleições para as autarquias locais, atingiram máximos já em 20136.
Note-se que falamos de um momento em que um grande número de autarcas não se
podia recandidatar, pelo que a imprevisibilidade dos resultados seria, logo à partida,
6 Todas as estatísticas aqui referidas, salvo informação em contrário, são provenientes de Pordata (2014).
Pedro Ponte e Sousa
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 123
maior; mas também das eleições para os órgãos governativos que se encontram mais
próximos dos cidadãos votantes, verdadeiramente nas suas áreas de residência. Apesar
de serem comummente referidas as questões de inflação do número de inscritos nos
cadernos eleitorais, há quem exponha esta situação explicando quadros teóricos para a
abstenção e participação políticas (Freire, 2000): a abstenção por desinteresse ou
isolamento (geográfico ou social); a participação sem grande interesse, por dever; a
participação por interesse na prática política; e a abstenção como ato de recusa da
legitimidade ao sistema. Embora obviamente não possamos aqui detalhar sobre cada
um destes fatores, veja-se que os recursos educacionais, a integração e prestígio sociais
ou as ocupações profissionais são normalmente tidos como indicadores de maior ou
menor participação política. Assim, será desconfiança ou desinteresse? André Freire
apontava, há dez anos, que «apesar de o fenómeno continuar a ser mais rural e
periférico, (…) estes elementos vêm perdendo relevância, ou seja, tem crescido a
abstenção nos concelhos mais urbanizados (e semiurbanizados), escolarizados,
terciarizados, com maior peso dos jovens e secularizados» (Freire, 2000, p. 142).
Não poderemos, certamente, apontar os recursos educacionais (atualmente, os
mais elevados de sempre no país) como a causa para tal fenómeno. Releva-se ainda a
preocupação, nomeadamente para os decisores políticos e os partidos no sistema, de
uma democracia portuguesa relativamente jovem, sobretudo quando comparada com
outras da Europa Ocidental. Se é certo que uma atomização social (o inverso da
integração social, discutido acima) é absolutamente visível, é verdade que também é
um fenómeno transnacional, visível em todos os continentes. Saliente-se de novo que
em Portugal, especificamente, estes problemas não têm sido geralmente contrapostos
com (propostas de) soluções do género da de uma democracia direta ou
tendencialmente mais direta, mas caracterizam-se, de forma simples, apenas pela baixa
participação nos processos eleitorais (e, até, especificamente nos referendos,
nomeadamente sobre a regionalização e a legalização do aborto).
Assim, daqui para a frente interessa-nos particularmente compreender as
maiores dificuldades da democracia portuguesa, nomeadamente as surgidas no
próprio seio da atividade política e onde esta possa, por si própria, propor soluções
A democracia portuguesa e a Europa democrática
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 124
efetivas. Tentaremos, olhando para o passado histórico e para os demais estudos já
efetuados, ajudar a tal tarefa. Partiremos, neste momento e essencialmente, da análise
da recente obra de José Manuel Leite Viegas et al., A Qualidade da Democracia em
Debate. Deliberação, Representação e Participação Políticas em Portugal e Espanha.
Olharemos com particular atenção para os capítulos sobre deliberação democrática,
tolerância política, significados ideológicos, sintonia ideológica entre deputados e
eleitores, associativismo e novas formas democráticas de participação dos cidadãos.
Parecem-nos temas de extrema relevância para este texto, por motivos que
explicaremos em seguida.
Quanto às atitudes políticas sobre a participação dos cidadãos e associações
voluntárias, com um inquérito a uma amostra representativa da população portuguesa,
mostrou-se haver grande grau de aceitação da participação política de grupos
minoritários e estigmatizados, à participação de candidaturas independentes à
Assembleia da República e à participação dos cidadãos e associações nos processos de
decisão política, embora tal audição sistemática possa (segundo dois terços dos
inquiridos) ser um impedimento da ação governativa. Quanto à discussão política, os
dados indicaram que os indivíduos discutem com pouca frequência assuntos políticos,
tema que surge muito mais significativamente em discussões da esfera privada do que,
por exemplo, com colegas de trabalho ou estudo. Usam-se poucas técnicas de
persuasão, sendo tal discussão sobretudo para troca de ideias mais do que
convencimento do outro. Os debates televisivos foram tidos como mais esclarecedores
do que os realizados na Assembleia da República, havendo uma percentagem
significativa de indivíduos que acompanha diariamente os acontecimentos políticos
nacionais. Por fim, quase metade dos inquiridos afirmou nunca ter mudado a sua
opinião depois de assistirem a um debate político na televisão – o que poderá
desvendar dificuldade em aceitar os argumentos do outro. Portanto, e em suma,
retenham-se como preocupantes a fraca discussão de assuntos políticos e a prática da
persuasão, baixo apreço aos argumentos apresentados, bem como, no que tocou à
audição de parlamentares, os partidos mais pequenos gostariam de ter mais
oportunidades de voz, embora não cedam tão facilmente nas suas posições. Foi
Pedro Ponte e Sousa
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 125
salientada a importância da audição de personalidades da sociedade civil (qualificada,
e, sobretudo, plural); e que as diferenças programáticas e ideológicas eram menos
acentuadas quando há menor pressão dos media (Viegas, et al., 2010c).
Quanto aos significados dos campos ideológicos da esquerda e da direita, os
portugueses posicionaram-se entre os europeus ocidentais com mais baixos níveis de
reconhecimento da dimensão esquerda-direita. Tanto quanto aos temas tradicionais da
divisão esquerda-direita (distribuição ou concentração da riqueza, privatizações, defesa
dos serviços públicos, mais ou menos impostos, proximidade a sindicatos ou ao
patronato) quanto aos novos temas de divisão entre uma “nova-esquerda” e uma
“nova-direita” (participação dos cidadãos nas decisões públicas, orientações quanto à
autoridade, casamento homossexual, família tradicional, proteção do ambiente,
qualidade de vida, imigração, etc.), a maioria dos portugueses não os conseguiu
associar à esquerda ou à direita. Provaram-se ainda estatisticamente correlações entre
estes resultados e baixos níveis de exposição aos media, educação ou interesse pela
política (ou seja, aqueles que não conseguiam identificar os temas com a relativa
ideologia tinham estas características). Conseguimos identificar um grupo (de certa
forma significativo) que normalmente está associado ao discurso "os partidos políticos
criticam-se uns aos outros mas na realidade são iguais" (Guedes, 2012), algo que
poderá ter sido acentuado pelo «défice de clareza das alternativas, sobretudo entre os
dois grandes partidos» (Freire e Belchior, 2010). Por outro lado, reconhecendo-se que a
representação parlamentar exige alguma coincidência de interesses entre
representantes e representados, os deputados apresentaram um autoposicionamento
na escala esquerda-direita mais extremado que o do respetivo eleitorado, o que é,
contudo, concordante com pesquisas europeias similares. Os deputados, mostrou-se,
têm também boa perceção da posição dos respetivos partidos e dos seus eleitores.
Estes últimos são mais críticos que os deputados quanto ao funcionamento da
democracia – a economia funciona mal, o sistema político é indeciso e não ajuda a
manter a ordem (Belchior, 2010).
Quanto à participação social e política, se os dados já existentes mostravam
Portugal como o país com níveis mais baixos de participação associativa (só superior
A democracia portuguesa e a Europa democrática
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 126
aos países do Leste europeu), e como tendo maior participação em associações de
integração social (solidariedade social, religiosas, recreativas e culturais) do que as
voltadas para deliberação na esfera pública (ambientais, de consumidores e defesa da
paz e direitos humanos), não surgiram alterações de monta, particularmente quanto a
associações de novos valores sociais ou às associações com maior presença no espaço
público, em tendência contrária ao resto da Europa. Os cidadãos parecem mais
disponíveis para participações pontuais em causas que lhes dizem respeito, mais
através das tecnologias e menos participação continuada (Viegas, et al., 2010b). Por
fim, poderá apresentar-se como nova forma democrática de participação dos cidadãos
os orçamentos participativos. Esta experiência, já levada a cabo em várias autarquias
portuguesas, tinha, no caso do Brasil e dos primeiros projetos, objetivos de favorecer
os cidadãos mais carenciados e democratizar as instituições, tornar a gestão pública
mais transparente para o cidadão comum, e, finalmente, desenvolver novos tipos de
relações entre governantes e governados (embora estas experiências tenham tido,
pelos vários pontos da Europa onde foram aplicadas, resultados muito díspares)
(Fernández e Fortes, 2010)7.
Atendendo às soluções para tais desafios que até aqui apresentámos, para
António Teixeira Fernandes,
é preciso atuar, quer ao nível das instituições políticas, pela descentralização,
regionalização e revigoramento do poder autárquico, quer ao nível da sociedade
civil, desenvolvendo a chamada “democracia consociativa”8. Os principais objetivos
a atingir são a participação, a inclusão social e política e a diminuição das
7 Um exemplo de um bom estudo comparativo sobre a matéria é: Sintomer, Y., Herzberg, C. e Allegretti,
G., 2012. Aprendendo com o Sul: O Orçamento Participativo no Mundo – um convite à cooperação global.
Diálogo Global, 25. Alemanha: Engagement Global gGmbh. Disponível em:
http://www.ces.uc.pt/myces/UserFiles/livros/1097_DialogoGlobal_25pt.pdf [consultado pela última vez em
3 março 2014]. 8 Segundo António Teixeira Fernandes (2004, p.38), “democracia consociativa” é uma noção «assente no
poder negocial e na procura de acordos entre os diferentes segmentos ou subculturas de uma mesma
comunidade política, de forma a impedir que as divisões subculturais, no seu autofechamento, gerem
conflitos graves. (…) Nele se associam o pluralismo cultural e o pluralismo político. (…) Consubstancia uma
tendência para a busca de soluções pacíficas, com vista a tornar compatível a diversidade de crenças, de
valores e de interesses. (…) O governo é constituído por uma coligação que integra os principais dirigentes
políticos, as decisões são tomadas por unanimidade, a sua presença nos órgãos de decisão obedece à lei
da proporcionalidade e cada subcultura goza de competência para tratar dos assuntos que lhe dizem
exclusivamente respeito.
Pedro Ponte e Sousa
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 127
desigualdades, sem as quais não poderá haver uma democracia plena (Viegas,
2004a, p. 1).
Portanto, atacando a concentração de poder político e económico e as limitações
que causa tal concentração ao bom funcionamento da democracia; já para Augusto
Santos Silva,
a participação a nível local (…) bem como nos processos interativos de acumulação
e de transmissão de experiências entre os agentes sociais, vão configurar uma nova
“sociedade civil”, (…) [não] em oposição ao poder político. (…) Vem a fortalecer o
espaço público, [e] incentiva a participação, o desenvolvimento e, por inerência, o
aprofundamento democrático (Viegas, 2004a, pp. 1-7).
Assim, a estes desafios de reforma e aprofundamento da democracia,
pretendemos dar exemplos concretos e respostas materiais e exequíveis para um maior
comprometimento (engagement) com o regime democrático liberal do presente –
desenvolvimento, transparência e afirmação da sociedade civil nas esferas política e
social; renovação social, tolerância e separação dos poderes, contra a ameaça de
poderes autoritários ou da tecnocracia, mas também sem uma totalização do social –
havendo espaço para o político, sem cair na socialização ou na privatização do Estado.
3. A EUROPA
A democracia liberal (a par das noções invioláveis de propriedade) deixou de ser
negociável no final do século XX. O sistema de governo ocidental venceu e a utilidade
e o poder individuais foram elevados ao expoente máximo da convivência entre as
gentes. Todavia, alguns autores já se davam conta, bem antes de estes fenómenos se
darem, de que
no que pode ser considerado o mercado político mundial, as preferências dos
consumidores estão a mudar rapidamente. Nós no Ocidente continuamos a ter a
A democracia portuguesa e a Europa democrática
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 128
mesma preferência predominante por uma “sociedade livre”, mas os outros dois
terços do mundo – as nações comunistas e as recém-independentes, países
subdesenvolvidos que nem são comunistas nem democracias liberais – tornaram-
se agora efetivos consumidores globais, e estão a procurar algo completamente
diferente. Se nós acreditamos na soberania do consumidor temos que estar
preparados para deixar que a nova procura efetiva tome o seu curso e admitir que
tem reivindicações legítimas morais (Macpherson, 1990, p. 3)9.
Desta forma, apesar da ideia comum, prospectivava-se uma competição entre
sociedades, ou melhor, entre sistemas de governo, mesmo depois do fim da Guerra
Fria e do choque de superpotências.
Entretanto, a Europa fazia o seu caminho no processo de integração. Desde o
fim da Segunda Guerra Mundial, em numerosos instrumentos e instituições, a partilha
de decisões, o diálogo e o consenso e, de forma crescente, a delegação de uma parte
da soberania dos estados, foram conseguidos gradualmente, quer fosse para preservar
a paz e segurança da região, facilitar o comércio e o desenvolvimento da economia de
forma mais lata e executar a gestão do apoio financeiro americano à Europa destruída
(Plano Marshall). Mas o processo de construção de uma Europa “unida na diversidade”
começou a mostrar fragilidades com as convulsões nos Balcãs na década de 90 e
durante o processo de constitucionalização europeia onde, em vez de se equilibrar a
federalização preservando a voz dos pequenos países,
o dia a dia demonstra que as grandes prioridades dos Estados membros mais
poderosos tendem frequentemente a impor-se aos restantes e isso só não
acontece mais pelo facto de, não raramente, se verificarem contradições
bloqueantes entre esses mesmos Estados. A deriva para o diretório, seria, assim,
cada vez mais inevitável, e a introdução das votações por maioria qualificada, no
quadro das novas “estratégias comuns” (…) tenderia ainda a agravar este cenário.
Retomando um velho clássico, dir-se-ia que essa visão tende a considerar que a
União funciona como o conselho de administração dos interesses comuns dos
países dominantes na Europa (Costa, 2002, pp. 49-50).
9 Tradução nossa.
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Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 129
Há, portanto, quem defenda que tal entrega de soberania debilitou estes países
e tornou-os mais sujeitos à especulação, porque não atendeu aos problemas de
Estados mais pequenos. No entanto, se a cultura política europeia é marcada pelo
projeto de integração, republicanismo e democracia, formas de ditadura antigas serão
mais facilmente afastadas, mas formas modernas poderão ressurgir quando, por
exemplo, se tomam medidas automáticas de suspensão dos direitos de voto de
Estados membros da União Europeia (UE) devido a incumprimentos financeiros, num
“estado de exceção” que significa «o primado da economia sobre a política, e sobre o
Direito (…) [e] desvalorizar os instrumentos interestatais até aqui desenvolvidos (…) em
favor de agentes e interesses económicos transfronteiriços» (Leone, 2012, pp. 75-76).
Desta forma, temos um conjunto de autores apologistas de um certo
igualitarismo, tanto da democracia como dos processos de integração dos Estados, ao
mesmo tempo que «as elites políticas italianas encontraram-se assim entrincheiradas
entre uma forte estratégia de voice franco-alemã, difícil de desafiar (…) e o apoio das
elites tecnocráticas à política da União Económica e Monetária, em particular» (Cotta,
2008, p. 233)10. Ministros com muita experiência política, mas pouca experiência em
carreiras burocráticas, bem como um número elevado de ligações a grupos de
interesses, normalmente cargos de administração em grupos económicos (Cotta, 2008,
pp. 108-114), poderá ser um indicador de uma baixa circulação das elites, fechadas em
si mesmas, e não apenas do poder político, mas bem imbrincadas com o poder
económico (mas, curiosamente, nem tanto com as burocracias dos seus Estados).
Teremos assim uma elite que, apesar de não muito distante dos interesses da massa
governada (por exemplo, no que toca aos sentimentos europeístas), não se renova,
causando uma lenta e gradual degradação da classe política mas também do sistema
político. Para além disso, podemos notar essa aproximação das elites políticas às
económicas pela perda de
grande parte do controlo sobre as políticas de segurança (…), [sobre] boa parte das
políticas internas [e assim] as elites do após-guerra haviam perdido muita da sua
10
Esta é uma análise feita particularmente a pensar no caso italiano, mas que assenta bem à generalidade
dos países europeus, e sobretudo ao caso português.
A democracia portuguesa e a Europa democrática
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 130
legitimidade. (…) Começaram a ter que contar com outros atores decisionais
externos à arena nacional, mas também com uma comunidade política bem mais
ampla do que aquela em que tinham conquistado a sua posição de autoridade
(Cotta, 2008, p. 219).
Se existe quem alegue que a limitação das políticas redistributivas e, com esta,
uma cada vez menor confiança dos cidadãos nas instituições democráticas, eram factos
relevantes mas que não perigavam o funcionamento da democracia11, não será bem
assim no presente, com a atual crise económica e financeira que assola a Europa. De
forma mais premente, vêm a ser chamadas cada vez mais instituições de representação
política onde cada vez menos cidadãos se reveem (como na concertação social e nos
sindicatos). Tais associações ganham espaço mediático ao mesmo tempo que
diminuem os seus membros. Para além disso, os Estados têm cada vez mais o seu
campo de ação limitado (seja por normas internacionais ou transferências de
elementos adstritos à atividade de Estados soberanos para a competência de
Organizações Internacionais), mas têm muitas vezes sentimentos contraditórios quanto
a tal perda de poder. Contudo, os assuntos de política externa, cooperação
internacional, inserção internacional do país no mundo, integração europeia são ainda
pouco discutidos na opinião pública, ou porque tidos como consensuais
(nomeadamente, entre os partidos normalmente chamados a formar governo, e aqui
atendendo particularmente ao caso português) ou porque demasiado longínquos ou
com difíceis alternativas para serem mudados. Assim, se o debate político sai
claramente restringido e empobrecido, a participação política é ainda mais baixa
(novamente, dando como exemplo o caso português) no caso das eleições europeias,
mesmo em momentos importantes dos processos de alargamento.
11
Veja-se o caso de Viegas, et al. (2010a, p. 2): «a abertura dos mercados, a globalização, a diminuição de
poderes dos Estados nacionais foram fatores que agiram no sentido de impor limites às políticas
redistributivas, que estiveram na base da legitimação funcional das democracias representativas do pós-
guerra. Mas as limitações a estas políticas, desde a década de 70 do século passado, nunca puseram em
causa a estabilidade profunda das democracias, (…) [e se o] distanciamento e, mesmo, decréscimo da
confiança dos cidadãos face às instituições políticas (…) suscitam preocupação sobre o funcionamento das
instituições democráticas, (…) não prenunciam nenhum tipo de rotura.»
Pedro Ponte e Sousa
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 131
Ao mesmo tempo, emergem os tais partidos populistas, antissistema ou de
extrema-direita por boa parte da Europa. Veja-se o caso do United Kingdom
Independence Party (UKIP), já tido como o terceiro partido do Reino Unido e com um
sucesso crescente no que toca ao antieuropeísmo ou ao fechamento das fronteiras aos
imigrantes. O mesmo acontece com o partido de Marine Le Pen e a sua Frente
Nacional, na França. O problema é ainda mais sério quando, a par da abstenção
crescente pela Europa neste tipo de eleições, o poder das instituições europeias
(nomeadamente quanto às que possuem uma natureza democrática) é cada vez maior
(simultaneamente reforçando a democracia europeia mas limitando em parte a ação
das instituições democráticas nacionais) – note-se que grande parte do ordenamento
jurídico é já decidido nessas instâncias e depois transposto para os Códigos nacionais.
Ao mesmo tempo em que se propõem estratégias com planos de ação e
desenvolvimento detalhados, com objetivos de tornar a UE na zona do mundo mais
competitiva, com mais emprego e mais coesa, os europeus veem, como já expusemos
acima, várias Europas de diretório, um Parlamento Europeu com um funcionamento
muito complexo (com várias clivagens que o atravessam) mas, sobretudo, a falta de um
povo europeu, que não parece estar a formar-se. A lógica nacional (e, muitas vezes, da
política nacional e do alegado “interesse nacional”) continua a funcionar e, pior ainda, a
imperar, tanto no discurso como na prática.
Ronald Inglehart analisava, há mais de 30 anos, estatísticas europeias12 sobre a
satisfação perante a vida relacionada com uma democracia estável ou desenvolvimento
económico. Nos países com democracias mais recentes a satisfação perante a vida é
normalmente mais baixa, sendo também que, normalmente, quanto maior o
desenvolvimento económico, maior a satisfação perante a vida. Mas note-se ainda que
Portugal está no último lugar de ambos os indicadores, sendo que, em geral, Espanha,
Grécia e França são os restantes países com piores resultados, pelo menos atendendo à
Europa Ocidental (Inglehart, 1988).
Há uma série de novos fenómenos que têm alterado o funcionamento das
democracias, nomeadamente das europeias. Autores reconhecem que os índices de
12
Note-se todavia que outros países desenvolvidos, como o Japão ou a África do Sul, também constavam
das estatísticas analisadas.
A democracia portuguesa e a Europa democrática
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 132
confiança social (confiança generalizada no outro, ainda que desconhecido) estão a
decrescer largamente (sendo que fatores como a ausência de conflitos radicais, a
homogeneidade étnica, a eficiência e eficácia governamental, o nível geral de bem-
estar social ou a prosperidade económica foram alguns dos encontrados para
compreender esses índices) – embora seja difícil depreender se esta é uma causa da
crise da democracia, ou uma consequência (Newton, 2004); o papel das associações
nas democracias liberais, não só na velha questão de formação cívica e política dos
indivíduos, mas também contribuindo para a deliberação democrática e consequente
implementação das decisões políticas, com efeitos institucionais largamente positivos
(Warren, 2004); a intervenção das Organizações Não Governamentais numa nova
governança nacional e supranacional, embora estas possam ser tidas como pouco
representativas democraticamente, para além de ser necessária uma maior
compreensão da sua coordenação com todos os agentes sociopolíticos (Burns, 2004);
baixos níveis de exclusão na participação da vida pública de indivíduos pertencentes,
de forma geral, a diferentes grupos sociais pela Europa (embora apresentando valores
muito distintos, sobretudo quanto aos extremos ideológicos), e, mais significativo
ainda, com resultados que têm melhorado significativamente (Viegas, 2004b); de que
continua a ser essencial que os eleitores consigam identificar mais facilmente a
dicotomia esquerda-direita, em particular num mundo globalizado que levou a
significativas transformações no Estado-providência, e ainda mais relevante no
contexto da construção dos órgãos políticos e institucionais europeus (Freire, 2004); de
que novos modelos de participação política e eleitoral apelando à consciência e
deliberação individual estão a aparecer e poderão reforçar-se (referendo), embora
dificultados pelo facto de que nem todos os cidadãos dominarem as implicações
possíveis ou prováveis de questões deveras específicas. Ao mesmo tempo, é relevante a
afinidade partidária ou a posição do governo na altura do referendo em causa para as
referências que os cidadãos têm quando votam (Kriesi, 2004); por fim, e,
provavelmente, de forma mais importante, note-se que a realidade social está em
constante mutação e reconstrução e, assim, a mudança dos grupos sociais e do próprio
indivíduo são presságios essenciais de que não há um “fim da política” ou um “não há
Pedro Ponte e Sousa
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 133
alternativa”; há apenas projetos políticos que poderão reavivar e fazer ressurgir a
política ou torná-la cada vez mais invisível ao cidadão comum e incompatível com os
seus interesses – mas também torná-la inalcançável e imutável para este (Lopes, 2004).
4. VISÕES ATINENTES A AMBOS OS PROPÓSITOS DE ANÁLISE
As relações sociais têm sempre o poder, transformador dos indivíduos, como
uma das suas dimensões, e um consenso geral racional é pouco compatível com os
valores plurais dos indivíduos. Mais ainda, o poder político tem uma natureza própria
onde, todavia, os modelos democrático e republicano deverão perceber que uma
perfeita unidade e transparência entre todos os atores é impossível – mas onde a
legitimidade do poder é ainda um fundamento essencial para a ação do Estado. A
política consiste em tentar controlar e conter hostilidades e antagonismos, próprios das
relações entre os homens – mas assegurando que tal “unidade” não erradica tais
fenómenos, mas onde o outro, mais do que ser destruído, deve ser “combatido”. As
ideias devem estar no centro do debate. Condescendência ou indiferença não podem
existir quando nos defrontamos com opositores legítimos. O combate é legítimo,
porque ambos os competidores lutam, dentro do quadro da democracia liberal, pelos
princípios de igualdade e liberdade (Mouffe, 2006, p. 27). A discordância faz parte de
uma confrontação absolutamente normal onde os pactos, a persuasão e a conversão
também são relevantes – as paixões (e o conflito) não podem ser erradicadas do
debate (de forma autoritária ou em prol da razão), mas mobilizadas em favor de
propósitos democráticos, numa sociedade com valores que são, evidentemente, plurais.
Cada uma
das diversas conceções de cidadania que correspondem às diferentes
interpretações dos princípios ético-políticos: liberal-conservadora, social-
democrata, neoliberal, radical-democrática, etc. (…) propõe a sua própria
interpretação do “bem comum”, e tenta implementar uma forma diferente de
hegemonia (Mouffe, 2006, p.29).
A democracia portuguesa e a Europa democrática
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 134
Só nessa disputa funcionará o sistema democrático – evitando confrontos
coletivos de identidade e a apatia e desapreço pela atividade política, mas constatando
também que a racionalidade como único princípio é impossível no âmbito político. E é
essa contestação democrática que mantem as instituições e uma democracia pluralista.
Vamos ainda, em seguida, debruçar-nos sobre alguns elementos, essenciais e
estruturantes, para que uma democracia se sustente e opere adequadamente.
Se os media ocupam hoje um lugar fundamental na nossa sociedade, esse lugar
é central ainda no que toca ao poder destes «sobre os políticos e as instituições
políticas à escala nacional e mundial», segundo alguns autores, «provocando uma
perigosa perversão no funcionamento da democracia» (Correia, 2006, p. 9). De um
«instrumento de luta pelo poder e de exercício do poder – palco quase exclusivo do
confronto político e do combate» (Correia, 2006, pp. 14-15), nota-se uma subordinação
cada vez maior aos interesses económicos, tanto destes como até do próprio poder
político13, sendo que as revelações ou investigações operadas pelos meios jornalísticos
não conseguirão (por muito que o tentem) alterar o essencial das políticas nem a
natureza do sistema. Assim,
a concentração da propriedade em poderosos grupos económicos contribui para o
estreitamento do pluralismo de opiniões, (…) controla o debate no espaço público
(…) subordinando-o aos interesses ideológicos, económicos e políticos do poder
d[esses] grandes grupos (Correia, 2006, p. 113).
Tal estado de coisas, torna o debate e a democracia mais pobres e frágeis,
acentuando discriminações, consensos artificiais (reduzindo as opiniões discordantes),
etc.. Outros autores salientam o papel moderno das empresas nas guerras e na
formação das políticas externas, atendendo meramente ao interesse privado e ao lucro
– «o poder empresarial moldou o interesse público à sua própria capacidade e
necessidade» (Galbraith, 2006), criando a sua própria verdade, a maior parte das vezes
13
O autor ainda comenta: «O poder do jornalismo e da informação está a ficar cada vez mais subordinado
aos interesses económicos. Este facto reflete a nova hierarquia de poderes na nossa sociedade. O poder
político passou a estar submetido ao poder económico, e os media (…) não têm senão um poder delegado,
concedido e gerido pelo poder económico dominante».idem, p. 112.
Pedro Ponte e Sousa
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 135
bem distante da realidade. O aclamado bem comum pode então ser um mero interesse
ou benefício próprio das elites de uma sociedade.
Quanto às elites, se é verdade que há um século apenas as famílias de classe
alta por todo o mundo tinham assegurada a sua segurança pessoal e um bom
tratamento aquando das dificuldades próprias da vida em sociedade – hoje essas
“seguranças” foram contrapostas, de certa forma, pelo terrorismo (nacional e
internacional) ou o risco de sequestro. Mas a existência de um governo estável
dependerá ainda assim, para alguns, de uma elite minimamente unificada, capaz de
conduzir a uma certa liberdade política e eleitoral, o que torna difícil a mera transição
«direta de regimes instáveis e iliberais para democracias estáveis e liberais» (Higley,
2010, pp. 138-139), como tantas vezes propagado no Ocidente. Vendo uma sociedade
livre e igualitária como utópica, propõem, contudo, manter-se no topo de tal sociedade
superestratificada como um estrato justamente superior dessa sociedade. Mas a noção
de que um povo deseja efetivamente uma democracia liberal, de forma ingénua e não
atendendo às circunstâncias locais, tem levado a uma «perene incapacidade das
democracias liberais se estabilizarem em número significativo fora do Ocidente»
(Higley, 2010, p. 148). Tornar pessoas desiguais em pessoas iguais pela mera imposição
de um conjunto de regras, acaba, naturalmente, por não dizimar tais desigualdades.
E assim chegamos à questão dos direitos sociais e políticos, à justiça, igualdade
e liberdade. Existirá, hoje, nas nossas sociedades (ou terá, em tempos, existido
efetivamente) uma participação livre e igual de todos os cidadãos (Reis, 2012)? Em
particular, aquando do uso da força pelo Estado contra reivindicações populares, até
que ponto a estabilidade governamental e a garantia dos direitos individuais não se
esgotam nessa ação? A igual liberdade em democracia ou os compromissos públicos
sobre direitos sociais e políticos são a única forma de separar divisões internas e fazer
crescer o projeto democrático. O exercício da liberdade por todos os homens, no
espaço público, a par de uma igualdade que não seja meramente formal, são condições
igualmente essenciais para a construção de uma democracia. A lei (atendendo à justiça
e, de certa forma, à razão), limitando os próprios governos, é a única forma de limitar
despotismos (de qualquer dos atores políticos), que «destr[uiría] tanto as condições
A democracia portuguesa e a Europa democrática
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 136
sociais e políticas de igualdade e de liberdade no âmbito interno quanto violam a
própria conceção de humanidade» (Reis, 2012, p. 117). Recusar obedecer a leis injustas
seria, até segundo Tocqueville, uma obrigação do homem, nomeadamente quando,
numa democracia sempre em construção, os princípios e a ação perderem para os
procedimentos e a gestão, esvaziando a democracia, igualdade e liberdade (Reis, 2012).
Compreenda-se ainda que, no que toca à exclusão social, as eleições são um momento
chave para que os líderes a considerem como uma prioridade, esboçando políticas
sociais que promovam, de facto, a justiça social. Sem que tal trabalho ocorra, «toda a
pessoa excluída pode significar um debilitamento das bases sociais de uma
comunidade afetando diretamente o sentimento de solidariedade social dos membros
dessa comunidade» (Umpiérrez, 2012, p. 262), danificando a democracia de tais
sociedades, já que promove injustiças, num sistema de desigualdade de oportunidades,
e gera pobreza, bem como muitos outros tipos de adversidades, privando os indivíduos
das suas plenas capacidades e empobrecendo (diminuindo mesmo) as suas vidas. O
Estado de Bem-Estar é o principal sistema nas sociedades avançadas para impedir
contradições, desigualdades e servidões no interior de um território – de outra forma,
«a sociedade cairia em situação de geral conflitualidade e de alguma anarquia»
(Fernandes, 1997, p. 401). Estabilizando a sociedade, cria expectativas em largas
camadas da sociedade, debilita as razões para o conflito social e, portanto, leva à
cooperação entre classes e facilita o crescimento económico e a segurança social (pela
razões acima vistas) – tudo isto, pelo menos, parcialmente. Ao contrário do que esse
mesmo autor refere mais adiante, é a segurança de uma assistência, quando necessária,
que produz independência e autonomia, e não uma tutela, libertando os governados e
não os oprimindo – pelo menos, àqueles desprovidos dos meios necessários para uma
vida digna.
A igualdade “de uma coisa qualquer”, como afirma Amartya Sen, está na moda
entre autores e atores políticos, quer estes defendam a justiça distributiva ou o seu
inverso. Se, de facto, «a estrutura institucional da prática contemporânea da
democracia, em larga medida, é o produto da experiência vivida na Europa e na
América» (Sen, 2010, p. 427) ao longo dos últimos séculos, no que será uma realização
Pedro Ponte e Sousa
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 137
ocidental, as diferentes formas de ver a justiça (libertária, igualitária, utilitarista)
deveriam, de forma unificada, procurar resolver pontos de vista divergentes para evitar
assuntos de somenos importância e tratar das grandes questões de (in)justiça global. O
primado da liberdade não pode, para Sen, colocar-se acima dos direitos básicos e
essenciais das pessoas, das suas necessidades – diferentes entre pessoas, lugares,
classes, etc..
Sendo a democracia argumentação pública, e o seu conteúdo de certa
racionalidade pública, a prática democrática deverá evitar o preconceito e dar origem à
mudança, acabando de urgência com uma série de ocorrências que envergonham ou
deveriam envergonhar (profundamente) sociedades modernas e desenvolvidas pelos
quatro cantos do mundo. Do controlo do capitalismo para um desenvolvimento
efetivo, permitindo a segurança humana, os direitos do homem mas, sobretudo, para
que o sucesso da democracia seja real, no concreto funcionamento das instituições
políticas e sociais. Os direitos humanos deverão estar na base de toda a legislação,
apresentando-se (como já discutimos acima acerca de outros autores) como
liberdades, fomentando a felicidade, o bem-estar e as capacidades enquanto dão a
oportunidade às pessoas de se tornarem os motores da sua liberdade. É, para nós, um
dever assegurar a liberdade e interesses de quem vê os seus direitos violados, incluindo
os seus direitos económicos e sociais – indispensáveis para uma verdadeira justiça
mundial, libertando o homem das suas privações e promovendo a qualidade de vida
numa sociedade que se quer, degrau a degrau, mais justa.
Por fim, os períodos de “exceção”, cada vez mais invocados para todo o tipo de
circunstâncias, não podem significar que ações fora da lei passem a ser então
justificáveis. Passar tais ações de clandestinas para legais será o próximo passo que,
todavia, a própria democracia, com os mecanismos que construiu e os próprios valores
que a fundaram e mantêm, tentará impedir. «A nenhuma Constituição se pode pedir
que fique de braços cruzados perante a sua própria destruição, deixando de usar as
armas do Direito contra aqueles que, servindo-se das regras do jogo democrático,
pretendem suprimir a democracia» (Otero, 2001, p. 272). À dignidade da pessoa
humana, liberdade individual e igualdade dos cidadãos não podem ser abertas
A democracia portuguesa e a Europa democrática
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 138
exceções nos procedimentos da ação governativa, sob pena de estarmos a cair num
regime de sub-humanidade, tornando qualquer tipo de democracia ilegítima e
inviabilizando a justificação de “soberania popular”. Portanto, a separação dos poderes
e os direitos fundamentais só podem ser reforçados, e o escrutínio da opinião pública
feito de forma séria, para que a democracia não seja uma figura de estilo mas o espaço
natural de abertura, transparência, discussão e boas práticas. Só a ação dentro dos
limites democráticos permitirá que a democracia continue, efetivamente, a ser uma
democracia.
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O TTIP e as relações transatlânticas (UE-NAFTA)
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 142
O TTIP (TRATADO TRANSATLÂNTICO DE COMÉRCIO E
INVESTIMENTO) E AS RELAÇÕES TRANSATLÂNTICAS (UE-
NAFTA)1
ANDRÉ SIMÕES DOS SANTOS2
RESUMO
A relação entre Estados Unidos da América e União Europeia foi pautada pelas boas relações e cooperação
euroamericana nos primórdios do projeto europeu, num cenário de devastação pós-Segunda Guerra
Mundial. Estas são duas das maiores superpotências produtivas do globo, com volumes de comércio e
capitais tão relevantes que se equivalem em escala a organizações continentais como o MERCOSUL (na
América do Sul) ou a ASEAN (Associação de Nações do Sudeste Asiático). É num contexto de 43% da
produção mundial, 1/3 do comércio mundial e com um PIB anual de cerca de 750 biliões de euros (dados
de 2014) que se vislumbrava um acordo de associação iniciado em 2013, que constituiria a maior zona de
livre comércio de sempre, intitulada de TTIP (Tratado Transatlântico de Comércio e Investimento). As
negociações, não obstante envoltas num secretismo inicial com pouca abertura por parte dos órgãos
comunitários, focaram-se essencialmente numa maior liberalização do mercado e respetivas trocas
comerciais, implementadas na adoção de novas regras e legislações (levantamento de barreiras
alfandegárias), em que a grande maioria dos contornos eram desconhecidos, mas que, em poucos anos de
conversações, conheceram os seus primeiros contratempos.
Palavras-chave: TTIP; Comércio Transatlântico; Comércio da União Europeia; Comércio dos Estados
Unidos da América; Política europeia e internacional.
Histórico do artigo: recebido em 30-03-2017; aprovado em 15-04-2017; publicado em 05-05-2017. 1 O presente artigo é o produto de uma coletânea de escritos e comunicações, que tiveram por base uma
composição de 2015, do mesmo autor, sob avaliação à unidade de Mestrado EU Foreign Policy da FSES -
Universidade Comenius, Eslováquia. 2 Licenciado em Estudos Europeus. Universidade Comenius, Eslováquia e Universidade de Coimbra.
Coimbra, Portugal. E-mail: [email protected].
André Simões dos Santos
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 143
ABSTRACT
The TTIP and the Transatlantic relations (EU-NAFTA). United States and European Union have been
economically brought together since European Union’s creation. In a worldwide basis, both are the biggest
economic superpowers in physical size, trade volume and capital, even against other organizations of
countries based on bilateral and multilateral agreements in different regions of the world, such as
MERCOSUR (South America) or ASEAN (Asia). Both are responsible for 43% of the world’s production, 1/3
of the world trade and a GDP over 750 billion euros. Its unification process, started in 2013, would
constitute the biggest free trade external agreement area ever built, called ―Transatlantic Trade
Partnership‖ (TTIP). However, the negotiations were shrouded in an initial secrecy with little openness by
the EU bodies, focused essentially on further market liberalization and trade, implemented in the adoption
of new rules and legislation (elimination of customs barriers), whose the outlines were unknown, but
facing, in a few years of talks, their first setbacks.
Keywords: TTIP; Transatlantic trade; European Union’s trade; United States trade; European and
International Politics.
_________________________________________________________________________________________________________________
1. INTRODUÇÃO
A União Europeia (UE) e os Estados Unidos da América (EUA) convergiram
economicamente e de forma plenamente oficial a partir do ano de 2013. Num
panorama global de proliferação do comércio internacional, constituem-se como duas
das maiores superpotências económicas, tanto em volume de trocas como de capitais,
logrando serem maiores em escala que quaisquer outros países ou outras associações
de Estados, baseadas em tratados bilaterais ou multilaterais. São conjuntamente
responsáveis, direta ou indiretamente, por cerca de um terço do comércio global e um
volume de negócios superior a 750 biliões de euros.3 O seu processo de unificação
durante o périplo da administração de Barack Obama conheceu avanços significativos,
possuindo como pressupostos a construção da maior área de comércio livre alguma
vez construída, com potencial de maior preponderância para as hostes europeias: o
TTIP (Tratado Transatlântico de Comércio e Investimento) ou simplesmente nomeado
de TAFTA.
3 Dados consolidados do Banco Mundial (2014).
O TTIP e as relações transatlânticas (UE-NAFTA)
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 144
A presente investigação propõe-se a estudar de forma objetiva, clara e
transversal, não exclusiva aos estudos da Europa, quais os seus hipotéticos efeitos, bem
como os prós e contras que poderiam vir a existir na eventualidade da sua constituição.
Sublinhando que, quer na generalidade das Relações Internacionais (RI), quer nas
relações económicas hodiernas, nada é realizado ao acaso, pelo que impõe-se atestar,
de forma clara e independente, quais seriam os reais benefícios da Europa com a
persecução desta estratégia que se efetivou. Irá olhar-se para todo o movimento de
iniciativa social ―bottom-top‖, que se gerou ao redor do enredo institucional UE, e
julgar-se-ão os proveitos ao nível das finanças, benefícios sociais (criação de emprego,
manutenção de condições básicas de vida), produtividade, impulso e
empreendedorismo das empresas europeias, política interna e externa e políticas de
segurança na globalidade de quatro diferentes capítulos historicamente sequenciados.
Sublinha-se que a Europa já possuía, à data, uma parceria exclusiva e bilateral com o
Canadá: o CETA (Comprehensive Economic Trade Agreement), concluído em 2014 e
recentemente aprovado pelo Parlamento Europeu (PE) a 15 de fevereiro de 2017,
simbolizando uma manifestação das constantes boas relações entre a União e os países
da América do Norte.4
Após abordagem e julgamento de todos os pontos e exposição de todas as
ideias contidas, uma síntese conclusiva procurará respostas a questões delicadas que
justifiquem todo o âmbito apreciativo da tese a abordar. Referir-se-á quão
significativos estes avanços poderiam ser para a prossecução da robustez da UEM
(União Económica e Monetária) na Europa, um dos mais importantes pilares do projeto
comunitário. A universalidade das relações entre UE e EUA-NAFTA servirá de base para
aprofundar os aspetos negativos e positivos do acordo em si, comprometendo-se este
escrito a, assim sendo, analisar estrita e profundamente o que cada uma das partes
aportaria à outra, face aos benefícios que poderia vir futuramente a colher ou se, em
alternativa, os benefícios seriam mútuos e de escalas semelhantes.
4 Ver sítio online da Comissão Europeia sobre o CETA, em http://ec.europa.eu/trade/policy/in-focus/ceta/.
André Simões dos Santos
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 145
2. POLÍTICA EXTERNA DA UNIÃO EUROPEIA E PUJANÇA INICIAL
Enquanto organização pioneira nas Relações Internacionais, a UE dispôs de
inúmeras fases de embalo na sua história que fizeram consolidar, com relativo sucesso,
o seu estatuto político, pese embora o balanço favorável do peso de alguns dos
Estados que a compõem nessa medida. O seu mérito revela-se nas poucas décadas em
que emergiu, desde uma posição de organização regional modesta para uma
incontornável referência política que se reflete na complexidade dos seus processos, no
emaranhado das suas organizações e na amplitude de ação das suas políticas (Xavier,
2013, pp. 51).
Sendo o Mercado Comum Europeu uma das maiores potências produtivas e
económicas mundiais, conferindo à União Europeia um estatuto de ―gigante
económico‖, era indiscutível que esta deveria inclusivamente crescer na afirmação
política e internacional como resposta ao conturbado período de recessão económica e
financeira mundial da última década. Apesar de disporem de importância central, os
proveitos económicos deverão ser suplantados por outros indicadores mais relevantes
geradores de confiança interna e externa a longo prazo, nomeadamente o sucesso das
políticas externas, o prestígio na qualidade de ator internacional e a assunção da sua
própria segurança (Bretherton e Vogler, 2006, pp. 62).5 É neste enquadramento que o
TTIP se inseriu, numa Europa necessária de afirmação externa (materializada nas várias
adendas comunitárias perpetuadas pelo Tratado de Lisboa), de apoio norte-americano
primordial e de necessidade premente de crescimento transversal.
Os anos iniciais das negociações gozavam de um otimismo contagiante de
parte a parte que superavam quaisquer entraves que pudessem vir a surgir (sendo um
dos mais relevantes o levantamento das barreiras alfandegárias, uma das ambições-
base do acordo, por instância) (Berden et al., 2009, pp. 14). Se, por um lado, os
europeus viam com bons olhos os proveitos económicos, os norte-americanos não
poderiam perder a oportunidade de constituírem um outro mercado de livre comércio
e investimentos além dos que já possuía. Especialistas na análise às relações
5 Neste ensaio inaugurador sobre a política externa europeia, infere-se que três elementos constituem o
nível de actorness de qualquer potência nas relações internacionais: oportunidade, presença e capacidade.
O TTIP e as relações transatlânticas (UE-NAFTA)
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 146
transatlânticas realçaram que ―na eventualidade de bem-sucedido, o TTIP prometia ser
um avanço político, estratégico e económico incontornável bem como significativo das
aproximações relacionais entre ambos os atores no presente e nas décadas porvir‖
(Hamilton, 2014, pp. 25-39).
Com efeito, a generalidade das previsões iniciais apontava para que os maiores
ganhos da UE se prendessem com a perceção de que outros Estados constituiriam o
sucesso da sua política externa em comparação com as anteriores décadas,
materializando-se no mesmo. De forma resumida, o tratado contribuiria, por exemplo,
para o acesso facilitado da UE a produtos energéticos (já que os EUA são uma
incontornável potência energética global, não esquecendo que possui fragilidades
neste capítulo devido à crispação das relações com a Rússia sobre a questão da
Crimeia, desde 2014). De entre as motivações, destacou-se, inclusivamente, a ambição
partilhada de ―superar a crise económica e financeira de 2007-2008 a fim de gerar
crescimento e postos de trabalho para cidadãos‖, nos quais se perspetivavam ganhos
superiores a cem mil milhões de euros por ano para a UE, beneficiando do facto de
ambas as potências serem investidores recíprocos (Parlamento Europeu, 2013, p. 561).
Não obstante algumas críticas sociais que serão explanadas adiante, ficou
relativamente claro que, em praticamente todo o processo de negociação do TTIP, a UE
e os seus organismos se incumbiram de tratar o mesmo com suma e constante
importância ao nível comunitário, sem quaisquer interferências interessadas de
Estados-membros, o que, à partida, será salutar para a transparência e democracia
europeias. Idealmente, as suas relações sairiam impulsionadas, reforçadas e elevadas a
um nível mais cooperante com o tratado, não apenas nos espectros financeiro e
económico, mas, sobretudo, cultural e político. Esta seria uma oportunidade ímpar para
estabelecer pontes mais firmes com uma potência de força indiscutível, que
gradualmente levaria ao aumento do prestígio internacional da Europa, sendo inclusive
uma estratégia atrativa para os líderes europeus, de forma a colmatar todos os
malefícios sentidos desde os adventos da estabelecida (mas não-afirmada) política
externa europeia nos últimos vinte anos.
André Simões dos Santos
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 147
Em 2013 e estabelecendo o que vinha sido discutido desde 2011, os governos
da União (pela via do Conselho) forneceram um mandato à Comissão Europeia (CE)
para que negociasse o TTIP fornecendo-lhe, igualmente, diretrizes específicas a
cumprir, executando um dos avanços do Tratado de Lisboa: o de negociar acordos
comerciais internacionais em nome dos Estados-membros (Conselho da União
Europeia, 2013). Embora relativamente limitada através dessas normas, a posição da CE
prova-se independente. Inicialmente, seria necessário envidar esforços para ultrapassar
as complexas questões burocráticas, legislativas e culturais que afastavam um eventual
pacto entre EFTA e NAFTA, em específico ―determinadas regras estranhas à
ambivalente regulação económica, tais como significativas barreiras para o comércio
transatlântico‖ (Lucarelli e Fioramonti, 2010, p. 22). O otimismo, crença e perseverança
em obter um entendimento imperava em ambas as partes, observando-se a referida
pujança dos meses iniciais de negociações no número de reuniões em 2013 (três) e na
generalidade de capítulos abordados. É relevante destacar que outros agentes, como
empresas de auditoria independentes, organizações de consumidores e outras fações
da sociedade civil, tiveram relevo na continuação do processo negocial.
Dado que tanto a UE, como os EUA, são importantes e ativos membros da OMC
(Organização Mundial do Comércio), e dado o acordo de que já dispõe (CETA), o TTIP
seria ele mesmo um importante complemento para empresários de ambos os
continentes estabelecerem relações económicas fortificadas (Mildner e Schmucker,
2013, p. 3). Além disso, constituiu-se como altamente desafiante à afirmação da
atuação económica da UE no panorama comercial mundial, sendo uma forma de
consolidação interna, mas não exclusiva ao continente europeu (Cooper, 2014, p. 2). A
própria arquitetura comunitária e constructos políticos da UE provaram-na robusta a
posições de inferioridade, já que, a dado momento das conversações, o facto de serem
difundidas notícias relativas a escutas a líderes europeus e mundiais por parte dos
Serviços de Informação norte-americanos, abalaram o pacto e aumentaram o tom de
crítica dos indivíduos europeus à cooperação euroamericana. O reforço do papel do PE,
saído do Tratado de Lisboa em 2014, permitiu que as instituições europeias, ―usando o
seu controlo democrático e supervisão funcional, defendendo os direitos de
O TTIP e as relações transatlânticas (UE-NAFTA)
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 148
informação relativos às conversações da parceria UE-EUA‖, provocassem uma
importante mudança de postura negocial europeia, que a beneficiou e, em simultâneo,
obrigou os norte-americanos a ceder transversalmente numa panóplia de exigências
(Wessel e Takács, 2015, p. 17).
(xiii) (…) o consentimento definitivo do Parlamento Europeu ao acordo TTIP
poderá ser posto em perigo enquanto as atividades de vigilância em massa dos EUA
não forem completamente abandonadas e não se encontrar uma solução adequada
para os direitos de privacidade de dados dos cidadãos da UE (...) (Resolução
P8_TA(2015)0252 do Parlamento Europeu, 2015).
Mais do que a oportunidade, a UE percecionou internamente e deu-se a ser
percecionada externamente como um ator económico e comercial relevante e fê-lo
valendo-se da sua presença exponencial no sistema internacional (através de diversos
tratos bilaterais e multilaterais) e da sua capacidade própria (força dos seus Estados-
membros), concluindo-se que não se poderá encontrar outro ator nas RI com uma
postura tão suis generis quanto esta instituição comunitária. A ambição profícua das
partes foi o principal combustível para os avanços das discussões que ocorreram de
parte a parte e se plasmaram nas realizações efetuadas nos anos de 2013 e 2014, anos
de inequívocos avanços transatlânticos. Os anos seguintes trouxeram uma melhor
delineação daquilo que poderia vir a ser o acordo final (que se afigurava como um
dado adquirido), à medida da necessidade de aprofundamento de dossiês e, por
conseguinte, da aparição dos primeiros contratempos documentais e temporais.
3. CONTRIBUIÇÕES DO TTIP PARA A UNIÃO EUROPEIA
A responsabilidade por um negócio de imponente envergadura económica,
política e cultural fez com que, de forma visível, ele fosse zelado com o maior dos
cuidados por parte dos europeus e com acrescida prevenção por parte dos norte-
americanos, atendendo à importância e delicadeza de alguns dos tópicos. Faz,
portanto, todo o sentido procurar atestar o que poderia o tratado trazer à União
André Simões dos Santos
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 149
Europeia, aos seus Estados-membros e aos respetivos cidadãos, sendo essa,
porventura, a maior questão que se levantou a todos os académicos sobre esta
parceria. Acima de questionar quem sairia tendencialmente beneficiado, impera-se
inquirir que contribuições e que riscos poderiam surgir para uma Europa
economicamente debilitada e se esses eventuais riscos foram tidos em consideração
pelos responsáveis europeus.
Estudos-pivot, direta ou indiretamente ligados a instituições europeias,
revelaram que o TTIP seria propício às quedas de preços de bens importados pela
Europa aos Estados Unidos (como consequência da remoção das tarifas alfandegárias),
acabando por estar disponíveis a preços mais competitivos para os europeus. Pesquisas
académicas independentes apresentaram, contudo, resultados mais modestos, que
transmitem incerteza e amplitude estatística, servindo esse facto como referência
motivacional para que o presente artigo procure respostas mais definitivas e tangíveis
nos próximos parágrafos.
Entre vários exemplos, o estudo de Raza (2014) mostra que os indicadores de
riqueza Produto Interno Bruto (PIB) na Europa a 28 e PIB per capita iriam somente
aumentar ―entre 0.3% e 1.3%‖. As taxas de desemprego iriam permanecer praticamente
inalteradas ou, no máximo, reduzir-se-iam em 0,42 pontos percentuais, sendo que as
exportações da UE iriam aumentar ―entre 5% e 10%‖. Todos estes efeitos seriam a
longo prazo e apresentar-se-iam, na sua opinião, num período entre uma a duas
décadas (Raza, 2014, p. 4).
Ao que à agricultura diz respeito, esta poderia ter sido uma excelente
ferramenta complementar para as relações económicas existentes entre os dois blocos,
já que dados de março de 2017 demonstram que as instituições comunitárias possuem
uma política de exportações agrícolas bem consolidada, refletindo-se em constantes
superavit anuais desde inícios da década de 2010 nesse capítulo (Comissão Europeia,
2017b). Este facto iria obviamente implicar mais abertura e desregulação normativa, o
que por si só seria uma fonte de vantagens, por um lado, e de desvantagens, por outro,
a serem exploradas no capítulo subsequente.
O TTIP e as relações transatlânticas (UE-NAFTA)
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 150
Podem encontrar-se debilidades negociais da União Europeia no que é relativo
à falta de cláusulas energéticas: o contratempo já referido das relações UE-Rússia e
NATO6-Rússia em relação à questão da península da Crimeia, desde inícios de 2014, fez
com que a Europa repensasse a Rússia como um dos seus maiores fornecedores
energéticos e dos quais se encontra mais dependente. Desse modo, a União não se
precaveu em incluir, desde logo, cláusulas de salvaguarda energética com os EUA
enquanto ator preponderante no mercado energético, de forma a ultrapassar essas
debilidades, situação para a qual a Alta Representante da União para os Negócios
Estrangeiros e a Política de Segurança, Federica Mogherini, alertou aquando da sua
reunião em 2014 com o Secretário de Estado norte-americano, John Kerry, em
dezembro de 2014. Na eventualidade de ser uma realidade desde o início das
conversações, esta teria sido uma ―jogada de mestre‖ por parte da UE no específico
―jogo de xadrez‖ da geopolítica global, protegendo a sua posição estratégica.
As intervenções de líderes políticos europeus e americanos refletiam as boas
relações que mostravam o ambiente positivo reinante de elogios e compromissos de
parte a parte, sendo patente que o eventual acordo as veio aproximar ainda mais. Sem
embargo, é digno de ressalva que o TTIP traria várias outras vantagens para a
globalidade da política externa da UE: em primeiro lugar, seria um excelente método
para promover a marca ―made in EU‖ num mercado como o da NAFTA e, por
conseguinte, procurar alargar essa promoção aos vastos parceiros comerciais com os
quais os EUA possuem relações. Em segundo lugar, adivinha-se que fosse consolidar
em pleno as relações com a América do Norte (recorde-se o existente negócio com o
Canadá – CETA) a outros níveis que não exclusivamente o económico e comercial.
Em terceiro lugar, colaboraria para a prossecução da visão externa da Europa e
da UE como potência económica ou ator chave para o comércio nas RI, comprovado
pela fortificação da sua posição em instituições como a OMC ou o Banco Mundial.
Finalmente, iria, por sua vez, constituir-se como um teste à robustez interna da União
enquanto ator capaz preservar as suas políticas internas, apesar dos pactos com
terceiros. Refiram-se somente a Política Agrícola Comum e outras políticas
6 Organização do Tratado do Atlântico Norte.
André Simões dos Santos
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 151
comunitárias dos setores da agropecuária e fabril, que poderiam ter dois resultados
possíveis: por um lado, ter um grande sucesso nas exportações para os EUA ou, por
outro, sofrerem um forte revés devido à competitividade de preços dos produtos
americanos pelo fim dos protecionismos alfandegários, já que é um dos maiores
produtores mundiais do setor agropecuário (Cassard et al., 2014, p. 8).
No decurso analítico do assunto sob um prisma tendencialmente crítico e
menos moldado aos cânones do pensamento europeu, rapidamente surge a
consciencialização da forma como a cultura, a política e a própria sociologia podem
moldar o mundo físico e as próprias relações entre Estados, sendo que este acordo, e,
em particular, os EUA enquanto país, são exemplos pródigos disso: as fortes perceções
internas e externas dos norte-americanos na qualidade de superpotência hegemónica,
suportadas por décadas de unipolaridade global e aliadas a fortes posturas na mesa
das negociações são produtos culturais que se constituem como valiosos instrumentos
no processo de bargaining em favor dos norte-americanos, contribuindo para que
sejam eles próprios a tomar as rédeas dos acordos em detrimento dos interesses de
terceiros. A política externa e o TTIP em particular não são exceção, conquanto os seus
efeitos e resultados serem, no geral, mais preocupantes para cidadãos em solo
europeu, denotando um índice superior de transparência democrática digno de registo
em virtude de a Europa ser, em geral, uma potência normativa (Manners, 2002, p. 241).
Se porventura o pacto fosse assinado e não tivesse maior pendor acrescido para os
EUA, ele seria, assim, um feito considerável por parte dos europeus e um revés para os
norte-americanos, tendo em conta as respetivas reputações das suas políticas externas.
Sobressai, de igual modo, que a forma como este tratado foi apresentado aos
respetivos cidadãos, em particular aos europeus, não se revelou feliz, já que foi exposto
com demasiada relevância e aquando do apogeu de uma das maiores recessões de
que há memória. Acima do que foi descrito pelas agências europeias nos diversos
comunicados, notas de imprensa e relatórios oficiais, o pensamento geral vislumbrava
o acordo como determinante para a resolução dos problemas de vária ordem que se
prolongavam, o que, como se pode antever, foi politicamente perigoso na
eventualidade (não comprovada) de se tratar meramente de uma estratégia persuasiva.
O TTIP e as relações transatlânticas (UE-NAFTA)
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 152
Ainda assim, ele foi apresentado como tendo caraterísticas integralmente positivas que
foram e são objeto de desconfiança por parte de críticos (Felbermayr et al., 2013).
Em síntese, atendendo às diversas adições que o negócio poderia acrescentar à
União Europeia, o trabalho introduziu como novidade nos estudos externos e das
relações transatlânticas a consciencialização do cidadão em torno das questões
políticas e da importância que desenrola nos diversos processos no seio da União
Europeia atualmente, mesmo indiretamente ou por representação. Respeitando essa
noção e compreendendo que algumas fações da sociedade civil se aglomeraram numa
forma de protesto a ele (como será apresentado em capítulos adiante), os cidadãos
possuem legitimidade de questionarem se de facto esta estratégia persuasiva não terá
sido realizada para ocultar eventuais resultados negativos a apresentar em tempos
futuros (Fröhlich, 2012, p. 344).
4. CONTRATEMPOS E IMPASSES DO TTIP
4.1. MARCADO PELA CRÍTICA
As referidas críticas ao Acordo Transatlântico de Comércio e Investimento
aglomeraram-se à escala da sua mediatização, nomeadamente por fações de índole
nacional e/ou conservadora, a partir do ano de 2013, que dividiram a sociedade civil.
Adotando um ponto de vista mais ou menos europeísta e concordando ou não com as
decisões tomadas por líderes europeus relativamente a objetivos de política interna e
externa, existiram fações de índole liberal (concordantes do acordo) ou de índole
conservadora (discordantes) que defendiam a primazia do mercado interno europeu.
Capítulos como a resolução de litígios, necessidade de reformulação da ISDS
(Investor-state dispute settlement) e sugestões de um sistema arbitral de investimento
mais transparente foram algumas das fronteiras em que as partes inicialmente
esbarraram. Uma das questões que a Europa necessitou de se colocar a si mesma foi se
estaria preparada política, económica e culturalmente para, no timing correto, partilhar
uma parte do seu vasto mercado com uma outra superpotência mundial. Os piores
André Simões dos Santos
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 153
cenários apontavam para que os ganhos não conseguissem suplantar os esforços
realizados pela UE e pelos seus países, principalmente as camadas de micro e
pequenos produtores ou comerciantes que poderiam perder a sua já pequena quota
de mercado para grandes cooperativas multinacionais, algo que este acordo viria a
legitimar.
Fazendo parte de inúmeras iniciativas por parte da sociedade civil, os ativistas
da Stop TTIP agregaram cerca de três milhões de assinaturas de cidadãos europeus a
pedir o fim das negociações, tanto do TTIP, como do CETA, e entregaram-nas à CE.7
Encontram-se impregnados a este movimento vários ideais e motivos, estando entre os
mais marcantes a ideia de que o tratado gerou descrédito a uma significativa parte das
populações e, por conseguinte, teria de ser travado usando o papel representado dos
cidadãos no PE. As razões podem variar: alegava-se que iria danificar a produtividade
do Mercado Comum e que seria ―uma ameaça para a democracia e para o princípio de
direito‖ e que seria ―negativo para produtores, trabalhadores, serviços e consumidores‖.
Apresentaram estudos cujos resultados, não só iam contra as conclusões dos estudos
de entidades europeias (de criação de cinquenta mil empregos a cada bilião de euros
de trocas) (Comissão Europeia, 2013), como, sobretudo, previam a degradação do
status quo da empregabilidade, uma vez que essa percentagem ainda viria a descer
vertiginosamente em regiões menos competitivas industrialmente, cujo setor principal
fosse a agropecuária. Indo ainda mais além, alegavam que as alterações de paradigma
produtivo na Europa iriam permitir a entrada a produtos agrícolas geneticamente
modificados (OGMs), abrindo uma ―caixa de Pandora‖ para um fenómeno que poria em
risco a saúde pública dos cidadãos que, face a isto, passaram a defender produtos de
origem integralmente biológica (permacultura). Assim sendo, concebiam que todo este
trato iria resultar numa menor soberania alimentar para os europeus, em detrimento da
promoção das grandes multinacionais agrícolas com sede nos EUA.
A preservação das regulações legais domésticas sem recorrer ao
estabelecimento de mercados comuns e falta de abertura à exportação também não
seriam características positivas para a Europa, para as suas empresas e cidadãos, sendo,
7 Ver sítio online do STOP TTIP, em https://stop-ttip.org/?noredirect=en_GB.
O TTIP e as relações transatlânticas (UE-NAFTA)
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 154
em alternativa, um perigo para a estagnação do mercado comum como um dos pilares
no qual se baseou toda a construção europeia (Rudloff, 2014, pp. 7-8).
Também Joseph Stiglitz (norte-americano galardoado com o prémio Nobel da
Economia em 2001) forneceu o seu testemunho sobre as ameaças para europeus e,
sobretudo, para norte-americanos, devido à desvirtuação do tratado em questão que
segue, na sua opinião, o interesse das grandes corporações americanas e europeias.
Stiglitz referia-se diretamente às cláusulas ISDS (Resolução Estado-Investidor)8
integrantes do TTIP, que iriam, daí em diante, permitir a multinacionais de ambas as
partes terem possibilidade legal de processar os Estados que interferissem ou
procurassem criar regulações contra si, ao passo que os Estados não teriam o mesmo
enquadramento, não sendo para eles possível processar essas mesmas corporações em
semelhantes. Estas condições legais desfavoráveis permitiram à CE apresentar uma
reforma a estas cláusulas, para constituir ―um mais moderno e mais transparente
sistema de arbitragem de investimento, que, além de proteger empresas, permita
igualmente a defesa de legislação e regulação por parte dos Estados‖ (Comissão
Europeia, 2017c). Ora, a esmagadora maioria das empresas transnacionais que Stiglitz
menciona (em várias das suas entrevistas em 2014 e 2015) possuem as suas sedes nos
EUA ou dependem diretamente do seu mercado. Evidenciando estas condicionantes,
afirma-se, portanto, que um eventual acordo iria beneficiar as grandes multinacionais e,
por consequência, todo o comércio americano de forma adicional, já que os seus
proveitos económicos seriam taxáveis dentro do seu território em detrimento do
europeu, devido ao número de empresas que são direta ou indiretamente dependentes
do mercado norte-americano, ao ser maior. Apesar de ser um entreposto apetecível e
valioso para as mesmas, a Europa não era, nem é, de momento, mais importante
estrategicamente que os Estados Unidos da América e este fator deveria ser objeto de
reflexão e de atenuações refletidas no TTIP, se aplicável, por parte das entidades
europeias.
É crível que este acordo não teria caraterísticas inteiramente positivas nem
inteiramente negativas, como de parte a parte se pretendeu fazer crer, havendo lugar à
8 Medida que à partida daria primazia jurídica a multinacionais em casos judiciais frente a Estados.
André Simões dos Santos
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 155
distribuição dos prós e dos contras pelos envolvidos. Contudo, as críticas apontadas a
produtos cancerígenos podem considerar-se plausíveis dado que os EUA possuem
políticas exponencialmente mais abertas ao uso de químicos na agricultura em
comparação com a UE (política REACH – Registration, Evaluation, Authorization and
Restriction of chemicals).9 Tendo em conta que os relatórios oficiais da CE previam uma
―uniformização dos antigos e atuais sistemas de regulação de químicos da UE e dos
EUA‖, seria de prever que este seria um capítulo em que a União teria algumas
dificuldades em resolver por, até à data, possuir uma legislação mais restrita à
utilização de químicos que o seu parceiro de negócio, significando que a eventual
uniformização descrita nas narrativas da CE poderia ser permeável a procedimentos
menos seguros que os vigentes (Comissão Europeia, 2014).
Às supramencionadas alegações de ―falta de transparência‖ das instituições
europeias envolvidas a fundo no processo negocial, sobretudo devido à não divulgação
de documentos ou informações sobre o mesmo, como resposta e numa situação difícil
em que todos os detalhes ou eventuais trunfos não deveriam ser divulgados sob pena
de colocar em perigo a sustentabilidade de um acordo, a União Europeia e as suas
instituições aprovaram, em dezembro de 2015, o acesso de eurodeputados a
documentos confidenciais. Apesar disso, todos os documentos de carácter confidencial
foram invariavelmente divulgados pela Greenpeace dos Países Baixos no início de maio
de 2016, sob nome de TTIP leaks, demonstrando a avidez dos europeus em conhecer
todos os desenvolvimentos dos quais são particulares interessados.
4.2. IMPASSES NEGOCIAIS
Em poucos anos de conversações, o Tratado Transatlântico de Comércio e
Investimento passou rapidamente desde a descrita ―pujança negocial‖ até um outro
período de estagnação e impasse das negociações, que se verifica na
contemporaneidade desta produção científica. Os anos de 2015 e 2016 ditaram uma
menor mediatização do tema e o arrastamento de diversas discussões em torno de um
9 Ver sítio online da Comissão Europeia sobre a Política ambiental REACH, em
https://echa.europa.eu/regulations/reach.
O TTIP e as relações transatlânticas (UE-NAFTA)
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 156
maior número de encontros em 2015 e 2016 (cerca de quatro por ano), que
proporcionaram um atual estado que não terá tido em consideração os hediondos
esforços que se lhe antecederam, bem anteriores à oficialização em 2013. Com efeito,
de forma a combater essas mudanças irreconhecíveis e ao efetuar uma calendarização
apertada das negociações com EUA no ano de 2016, indiciou-se a grande vontade das
instituições europeias em obter um resultado positivo e se aglutinarem à volta do
mesmo caminho, facto que demonstra a vontade da UE em não deixar cair este dossiê.
O ambiente internacional presente, quer na Europa, quer na América, foi também
significativamente mais perigoso que o existente nos inícios da década de 2010. Todas
estas indubitáveis condicionantes devem ser consideradas sob forma de concluir que a
mudança do ambiente e das prioridades devem mudar igualmente as ações a serem
tomadas.
O state of play de abril de 2016 (estado das negociações) revelou que, nesse
ano, foram envidados esforços para acelerar o acordo através de reuniões ainda mais
frequentes, já que dos 25 a 30 capítulos possíveis ainda existiam cerca de 17 que se
encontravam incompletos ou com urgência de serem discutidos. Alguns progressos
foram-se realizando, nomeadamente em capítulos como as medidas facilitadoras de
exportação a Pequenas e Médias Empresas (PME), a eliminação de tarifas alfandegárias,
avanços nos serviços digitais, concorrência e resolução de litígios state-to-state. Era
visível que as previsões temporais para a sua efetivação estariam erradas, havendo
ainda um considerável caminho a percorrer para alcançar um entendimento furtuito.
De entre os três relatórios divulgados entre março e maio de 2016, os relatórios das
rondas de negociações (12.ª e 13.ª rondas) foram pouco conclusivos e pouco
detalhados, deixando bastante a desejar sob o ponto de vista da informação
permanente (frequentemente exigida pelos cidadãos e sociedade civil europeias, como
testemunhou o capítulo anterior). Os traços fornecidos sobre quais os assuntos em que
havia ou não acordo e quais as partes proponentes revelaram-se, por conseguinte,
superficiais.
A última ronda de negociações concreta até à data desta publicação deu-se
entre os dias 3 e 7 de outubro de 2016, a 15.ª ronda de negociações, mantidas em
André Simões dos Santos
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 157
Nova Iorque. Com um programa extremamente vasto e, assim, ambicioso, propôs-se a
abordar temas como os acessos ao mercado, componentes regulatórias e legislação de
vária ordem, procurando ambas as partes fazer na mesma grande parte da
consolidação da área regulatória e composição de negociações, algo que à partida terá
sido realizado, plasmando-se no respetivo relatório (Comissão Europeia, 2016a).
Gráficos fornecidos pela Comissão Europeia refletem o esfriamento das exportações no
espaço abordado, em particular no capítulo dos índices do volume de trocas (Comissão
Europeia, 2016b).
O último documento revelador de entendimentos oficiais foi relativo à área da
saúde e regulação farmacêutica (GMP’s), divulgado pela Comissão Europeia no mês de
março de 2017, não contendo, porém, nenhuma referência de se integrar no âmbito do
TTIP (Comissão Europeia, 2017a). Por sua vez, o último arquivo de relevância
significativa foi o comunicado conjunto sobre o state of play de janeiro de 2017, sendo
vago e não conclusivo, já que apenas apresentou as características positivas e
realizações do passado agregadas a este tratado, não se referindo, em nenhum
momento, a quaisquer diretrizes a elaborar para o ano de 2017 ou seguintes ou para a
conclusão do mesmo, seja ao nível do avanço e aprofundamento das negociações, seja
na discussão de conteúdos, deixando no ar a suspeição de não existência de futuro.
Novas temáticas de carácter mais premente para a Europa como o terrorismo, a
escalada da questão dos refugiados ou o Brexit ocuparam a agenda das preocupações
europeias e todos estes são fatores que aumentaram o tom de desconfiança com que
o TTIP era visado, não sendo índices animadores para altos responsáveis europeus.
Não obstante a última reunião entre a chanceler alemã Angela Merkel e o
presidente norte-americano Donald Trump, em Washington, como forma de procurar
aproximar as partes e relembrar a centralidade da questão transatlântica, a campanha
do atual chefe de administração dos EUA para as eleições (não esquecendo que nas
mesmas era considerado um outsider político) baseou-se em dúbias narrativas nas
quais se incluiu a necessidade de mudança na ação política, quer interna como externa.
Desse modo, advinha-se que a prioridade de aproximação internacional da nova
administração americana seja, no momento, realizada a outras potências que não a
O TTIP e as relações transatlânticas (UE-NAFTA)
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 158
União Europeia, cenário que a confirmar-se constitui-se como uma novidade de
atuação face à que tinha sido apanágio das diversas administrações americanas nas
décadas transatas. Isto rompe com um padrão político normativo vigente desde os
finais da Segunda Guerra Mundial (com o apogeu na Guerra Fria), em que as relações
com a Rússia foram definitivamente cortadas e o apoio à agregação da Europa foi uma
importante prioridade para os norte-americanos, paradigma esse que se vislumbra ser
alterado ou, no limite, retardado. Não esquecendo que as relações com EUA devem ser
salvaguardadas pelo seu envolvimento na NATO e pela importância central das
exportações para a estabilidade da economia europeia, a postura da UE e dos seus
líderes como principal parte interessada deve, assim, pautar-se pelo estudo do modus
operandi a adotar pela administração Trump nos meses que se seguem, face aos
projetos de associação comercial, adaptando-se e esperando pacientemente uma
resolução presidencial americana face ao TTIP.
5. SÍNTESE CONCLUSIVA
O vazio de documentação útil, cuidada e hodierna que não se apresentassem da
autoria de interesses políticos acoplados tornou, certamente, alguns dos propósitos
iniciais deste trabalho mais desafiantes. O escrito revelou-se heterogeneamente
inovador, não somente em procurar perguntas úteis e pertinentes mas, sobretudo, em
encontrar as suas respostas nos mais vastos espectros da temática, deslocando-se
desde os mais peculiares até aos mais próprios do senso comum, e abrindo, em
simultâneo, ao leitor novas perspetivas pelo esmiuçamento exaustivo das cláusulas e
peripécias conhecidas do Tratado Transatlântico de Comércio e Investimento.
É apropriado dizer-se que através do processo de introspeção adotado para a
observação final entre vantagens/desvantagens, este estudo foi ao encontro das suas
expetativas com relativa distinção, já que, na prática, as aclamadas caraterísticas
positivas do acordo (se bem sucedido) poderiam efetivamente ultrapassar eventuais
resultantes negativas, significando assim que o acordo com os EUA poderia ter
cumprido os seus propósitos. Isto representaria uma lufada de ar fresco para todo o
André Simões dos Santos
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 159
Mercado Comum Europeu e para a consolidação do projeto comunitário como um
todo, não esquecendo a elevada centralidade da resultante deste negócio para a
prossecução das boas relações entre europeus e os Estados Unidos da América. É, de
igual modo, um tema paradigmático das alterações que uma nova liderança política
(em particular a de uma superpotência global como os EUA) pode significar para toda a
geopolítica internacional, estendendo-se colateralmente a outros atores das RI.
Em suma, o Tratado Transatlântico de Comércio e Investimento pode e deve
ser-se considerado como bem preparado, bem debatido e protótipo de uma
revigorada atitude negocial da União Europeia, finalmente demonstrativa do potencial
da sua política externa. Porém, e como este artigo observou, o período internacional
em que se inseriu e a conjuntura política global tornaram-no difícil de implementar e
os últimos acontecimentos fizeram com que o processo estagnasse por falta de
iniciativa e urgência americanas, sendo que também a UE focou atenções em assuntos
mais prementes e já descritos. A inexistência de desenvolvimentos relevantes, de
reuniões oficiais efetivas e o atual silêncio gritante das plataformas de informação
comunitárias alimentam a eventualidade real de atingir bom porto. Embora as relações
não sejam ameaçadas, um não-acordo é uma hipótese deveras negativa para a
consolidação da ligação transatlântica com a NAFTA, que o acordo com o Canadá
firmou, tendo em conta anos vindouros, concluindo-se como uma recessão posicional
da política externa para todos os envolvidos e, em especial, para a da União Europeia.
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COMUNICAÇÕES
A Política Comercial Comum à prova no pós-Lisboa - A competência para a
celebração de acordos internacionais de comércio da União Europeia
Maria João Palma
Acordo CETA: O Parlamento Europeu fez a diferença
Pedro Silva Pereira
Os novos muros da Europa
Nuno Cunha Rodrigues
A Política Comercial Comum à prova no pós-Lisboa
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 164
A POLÍTICA COMERCIAL COMUM À PROVA NO PÓS-LISBOA –
A COMPETÊNCIA PARA A CELEBRAÇÃO DE ACORDOS
INTERNACIONAIS DE COMÉRCIO DA UNIÃO EUROPEIA1
MARIA JOÃO PALMA2
RESUMO
O alargamento do âmbito da política comercial comum da União Europeia a outros domínios além dos
relacionados com o comércio internacional de mercadorias iniciou-se com a entrada em vigor do Tratado
de Nice, em 2003. A partir dessa altura passaram a estar incluídos na competência exclusiva da União
Europeia (UE) a celebração de acordos internacionais relacionados com o comércio de serviços ou os
aspetos comerciais da propriedade intelectual. Estas novas competências contribuíram para alargar e
reforçar o papel da UE como ator na arena do comércio internacional. A globalização alterou a forma
como o comércio mundial passou a ser encarado, articulando-o com outras realidades conexas e que o
agilizam. Isso explica a competência adquirida pela UE com o Tratado de Lisboa (2009) relativa ao
Investimento Direto Estrangeiro. O Parecer 2/2015 do TJUE sobre o Acordo UE/Singapura irá contribuir
para clarificar a questão da articulação das competências entre a UE e os Estados-membros no que se
refere à celebração dos acordos de comércio da nova geração.
Palavras-chave: Política Comercial Comum, Investimento Direto Estrangeiro, Tratado de Lisboa, Parecer
2/2015 do TJUE.
Histórico do artigo: recebido em 15-04-2017; aprovado em 26-04-2017; publicado em 05-05-2017.
Publicação a convite do Conselho Editorial. 1 O presente artigo é baseado na nossa intervenção subordinada ao título: ―O Parecer 2/2015 do TJUE e a
competência para a celebração dos modernos acordos de comércio‖ – proferida no âmbito do Seminário:
―Acordo CETA: uma oportunidade para Portugal?‖, que teve lugar a 7 de abril de 2017, na Faculdade de
Direito da Universidade de Lisboa. 2 Licenciada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa - FDUL (1992); Pós-graduada
em Estudos Europeus pelo Instituto Europeu da FDUL (1993); LLM College of Europe, Bruges, Bélgica
(1996); Mestre em Direito pela FDUL (1998); Docente da FDUL (1993-2009); Consultora Jurídica do
Ministério da Economia (1998-2015); Assistente Convidada do Curso de Estudos Europeus da Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa (2009-2015). Doutoranda em Ciências Jurídico-Económicas na FDUL
(desde 2016). Lisboa, Portugal. E-mail: [email protected].
Maria João Palma
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 165
ABSTRACT
The Common Commercial Policy under challenge after Lisbon – the EU’s competence for the conclusion of
international trade agreements. The enlargement of the scope of the Common Commercial Policy beyond
external trade of goods started with the entry into force of the Treaty of Nice, in 2003. From that moment
on, domains such as the conclusion of international agreements relating to trade of services and
commercial aspects of intellectual property were covered by the European Union (EU) exclusive
competence. These new competences contributed to enhancing and strengthening EU´s role as an actor at
the international trade arena. Globalization impacted on international trade, articulating it with related
areas such as international direct investment. That explains the acquisition of this new competence by the
UE with the Treaty of Lisbon (2009). Opinion 2/15, which concerns the EU´s competence to conclude a Free
Trade Agreement (FTA) with Singapore, will contribute to clarify the relation between national
competences and the EU´s competence concerning the celebration of the new generation of international
trade agreements.
Keywords: Common Commercial Policy, Foreign Direct Investment, Lisbon Treaty, Opinion 2/2015 CJEU.
_________________________________________________________________________________________________________________
1. A POLÍTICA COMERCIAL COMUM DA UE – DE ROMA A LISBOA
O Tratado de Lisboa3 é o culminar de um moroso e complexo caminho em
torno da configuração das competências da UE, em especial, no que se refere à Política
Comercial Comum (PCC). O seguidismo das matérias cobertas pelos Acordos GATT (47)
e OMC (94) é evidente4: pretende-se que a UE funcione como a voz única no plano do
comércio mundial de forma a acomodar os ditames da globalização. Nessa medida, a
regulação deixa de respeitar apenas ao comércio limitado às mercadorias (Tratado de
Roma, 1957), para incluir outros aspetos como sejam, o comércio dos serviços, os
aspetos comerciais da propriedade intelectual (Tratado de Amesterdão, 1997 e Tratado
de Nice, 2003), fazendo notar um paralelismo entre a regulação do comércio no plano
mundial e o protagonismo que a UE assume através da PCC. Com o Tratado de Lisboa,
3 Em vigor a partir de dezembro de 2009.
4 O Acordo GATT (General Agreement on Tarifs and Trade) tem por objeto a liberalização do comércio de
mercadorias no plano mundial. O Acordo OMC acenta em três pilares: GATT (mercadorias); GATS (General
Agreement on Trade in Services) e TRIPS (Trade Related Aspects of Intelectual Property).
A Política Comercial Comum à prova no pós-Lisboa
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 166
a UE dá um passo adiante relativamente à OMC ao incluir na esfera da regulação do
comércio externo o investimento direto estrangeiro5.
2. A COMPETÊNCIA DA UE PARA A CELEBRAÇÃO DE ACORDOS INTERNACIONAIS
DE COMÉRCIO – TENSÕES NO PÓS-LISBOA
A abrangência dos temas incluídos nos acordos internacionais de comércio da
Nova Era (inter alia, CETA, TTIP, UE/Singapura)6 estaria na origem, porém, de
controvérsia relativamente à competência para a celebração desses acordos - se a UE
per se, ou se a UE conjuntamente com os vários Estados-membros - a vaexata questio
da mixity.7 8
5 O Acordo TRIMS (Trade Related Investment Measures), anexo aos Acordos OMC, refere-se, apenas, à livre
circulação de capitais conexa com a livre circulação de mercadorias. 6 Na doutrina, Pedro INFANTE MOTA designa estes acordos de Mega-regionais, pois são ― …
suficientemente grandes e ambiciosos para influenciar as regras do comércio e os fluxos comerciais para
além das respetivas áreas de aplicação” - ―Os Acordos Mega-Regionais”, in União Europeia, Reforma ou
Declínio, Coordenação e Introdução de Eduardo Paz FERREIRA, ed. Veja, 2016, p. 381. 7 Tratámos esta questão no nosso ―A Proteção do Investimento Estrangeiro – uma Nova Política Europeia‖,
publicado no nº 1 desta Revista (2016), p. 124 e segs. 8 Sempre que o objeto dos acordos internacionais ultrapasse as competências exclusivas da UE,
envolvendo, também, competências dos Estados-membros, quer sejam partilhadas entre estes e a UE, ou
reservadas aos Estados-membros, ou inclusivamente uma combinação dos três tipos de competências
(exclusivas da UE, partilhadas entre a EU e os Estados-membros e reservadas aos Estados-membros), tais
acordos devem ser conjuntamente celebrados pela UE e pelos Estados-membros (acordo misto). Por
celebração entenda-se não só o ato formal da assinatura do acordo mas, também, a própria negociação
dos seus termos. Nestes casos, os Estados-membros mandatam a Comissão para negociar em seu nome,
surgindo esta, na condução das negociações, dotada de um duplo mandato outorgado pelos Estados-
membros e pela UE. Esta condução da negociação pela Comissão permite maximizar a influência coletiva
da UE e dos Estados-membros. O ato formal de assinatura exige, porém, a intervenção de todos os
proponentes, i.e.., Estados-membros e Conselho em nome da UE, sendo que, a ratificação dos parlamentos
nacionais será necessária nos termos das Constituições dos vários Estados-membros e, reportar-se-á às
partes do acordo onde residam essas competências (partilhadas ou dos Estados-membros).
A figura do acordo misto é fruto de uma construção jurisprudencial, maxime, através do Parecer 1/94, de
15 de novembro de 1994, onde o TJUE apreciou a competência da, à data, Comunidade Europeia e dos
Estados-membros para a celebração dos acordos que instituíram a Organização Mundial do Comércio
(OMC), tendo concluído pela sua natureza mista. Sobre o conceito de acordo misto, vide, MARISE
CREMONA – ―External Relations of the EU and the Member States: competence, mixed agreements,
international responsibility and effects of international law‖, European University Institute working papers,
Law º 2006/22, http://ssm.com7abstract=963316. Entre nós, vide, MARIA LUÍSA DUARTE – A Teoria dos
poderes implícitos e a delimitação de competências entre a União Europeia e os Estados-membros, Lex,
Lisboa, 1997, p. 600.
No texto dos Tratados pode apenas encontrar-se uma alusão aos acordos mistos no 2º parágrafo do n.º 6
do artigo 133º do TCE introduzido pelo Tratado de Nice (―… Os acordos assim negociados são celebrados
conjuntamente pela Comunidade e pelos Estados-membros), tendo a mesma desaparecido com a revisão
efetuada com o Tratado de Lisboa que suprimiu este parágrafo.
Maria João Palma
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 167
Recorde-se que, o Acordo CETA9 seria o pioneiro num feixe de Acordos do pós-
Lisboa. As negociações seriam iniciadas em maio de 2009, e concluídas em setembro
de 2014, tendo o acordo sido, entretanto, assinado pela UE e pelo Canadá, a 30 de
outubro de 2016. O percurso até aqui seria, porém, turbulento.
Em paralelo às negociações do Acordo CETA decorriam as negociações relativas
a outros acordos (supra), nomeadamente, o Acordo UE/Singapura.
A Comissão, em 10 de julho de 2015, submeteu o Acordo UE/Singapura ao TJUE
para obtenção de um Parecer sobre a competência exclusiva ou mista para a
celebração do acordo (Parecer 2/2015)10, ao abrigo do artigo 218º, n.º 11 do TFUE,
defendendo a competência exclusiva da UE para a celebração do mesmo11.
Entretanto, a julho de 2016, a Comissão declarou que o Acordo CETA seria um
acordo misto, pese embora, sublinhamos, se tratasse de um acordo idêntico ao
UE/Singapura pela abrangência das matérias12 e a tese perfilhada por aquela em defesa
Hodiernamente, os acordos mistos tem vindo a assumir uma importância fulcral na implementação da
PCC. Por esse facto, entendemos que o tratamento dos acordos mistos pelos Tratados devia ser
recuperado e ampliado numa próxima revisão dos Tratados – por um lado, a definição de acordo misto
deveria ser introduzida nos Tratados nos artigos iniciais do TFUE (Título I – as categorias e os domínios de
competências da União); também a respetiva tramitação deveria ser expressamente regulada –
necessidade de duplo mandato outorgado pelos Estados-membros e pelo Conselho em nome da União à
Comissão Europeia, a quem continuaria a competir a negociação de ambos em nome da unidade da
representação externa da UE; ao Parlamento Europeu competiria a aprovação do acordo por parecer
favorável onde incumbiria, entre outras, a função de verificação do acordo à luz do artigo 21º do TUE; por
fim, a determinação expressa da necessidade de aprovação unanime do acordo por todos os Estados-
membros, em momento posterior à assinatura pelos membros do Conselho, nos termos das respetivas
Constituições.
Importante, também, esclarecer no corpo do Tratado que o princípio da subsidiariedade (artigo 5º do TUE)
regula o exercício das competências partilhadas no que se refere ao direito derivado mas não tem
aplicação no que se refere ao exercício das competências externas, assim se compreendendo a
necessidade da utilização da fórmula dos acordos mistos quando estejam em causa competências
partilhadas (infra). 9 Em 2015, a UE importava bens do Canadá no valor correspondentes a 28.3 biliões de euros e exportava
35.2 biliões de euros, valores que se calcula aumentem para mais de 20% quando o acordo entrar
definitivamente em vigor. Cfr. www.europarl.europa.eu/news/en/news.../ceta-meps-back-eu-canada-trade-
agree. 10
O TJUE irá pronunciar-se a 16 de maio de 2017. 11
Saliente-se que, a Comissão poderia ter submetido o Acordo CETA à apreciação do TJUE ao invés do
Acordo UE/Singapura, uma vez que as negociações se tinham iniciado em primeiro lugar no caso do CETA
e, na altura, os pressupostos para apresentar o caso ao TJUE estavam reunidos relativamente a ambos os
acordos. Em nosso entender, o acordo UE/Singapura terá sido usado com caso teste, prosseguindo as
diligências necessárias à entrada em vigor provisória do CETA. 12
Há quem na doutrina identifique um ―Modelo Invisível‖ de Acordo de proteção do Investimento pela UE
face ao clausulado similar que trespassa os Acordos em negociação, Vide, M. BUNGENBERG and A.
REINISCH – ―The anatomy of the Invisible EU Model BIT in The Journal of World Investment and Trade,
(2014), 15, p. 375.
A Política Comercial Comum à prova no pós-Lisboa
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 168
da competência exclusiva da UE no Parecer 2/2015 relativamente à totalidade das
matérias cobertas pelo acordo UE/Singapura. A Comissão enveredaria, destarte, por
uma hábil estratégia de recuo, no CETA, propugnando a entrada em vigor provisória do
acordo apenas relativamente às matérias da competência exclusiva da UE13. Nesta
medida, a entrada em vigor definitiva do Acordo CETA irá depender da ratificação de
todos os parlamentos nacionais e regionais dos vários Estados-membros (cerca de 38),
sendo que, sublinhe-se, cada um destes parlamentos disporá de ―poder de veto‖ para
chumbar o acordo na íntegra, invocando, para o efeito, razões de competência
nacional14.
Entretanto, em outubro de 2016, sucede-se um conjunto de situações que
aumentaram a pressão em torno da celebração do Acordo CETA: a 5 de outubro, o
Conselho aprova uma Decisão no sentido da entrada em vigor provisória do Acordo
CETA15. Porém, a 13 de outubro, o Tribunal Constitucional Federal Alemão pronuncia-
13
Técnica anteriormente utilizada, por exemplo, relativamente ao Acordo UE/Coreia do Sul (supra), o
primeiro dos acordos da ―segunda geração‖ de zonas de comércio livre, incluindo comércio, serviços,
propriedade intelectual e outros assuntos relacionados com o comércio (concorrência, assuntos sociais). O
Acordo UE/Coreia do Sul foi assinado a 6 de outubro de 2010, tendo entrado em vigor provisoriamente a 1
de julho de 2011, e de forma definitiva a 13 de dezembro de 2015. Vide http://eur-lex.europa.eu/legal-
content/PT/TXT/PDF/?uri=OJ:L:2015:307:FULL&from=EN e http://www.consilium.europa.eu/en/documents-
publications/agreementsconventions/agreement/?aid=2010036. De referir outros casos de acordos que
entraram provisoriamente em vigor, à semelhança do UE/Coreia do Sul: UE/Colômbia, UE/Peru e UE
Ucrânia, e onde não houve tanta polémica como no caso dos acordos atuais. Tratando-se de acordos cuja
negociação fora iniciada no pré-Lisboa e, não sendo o âmbito da PCC tão abrangente, a mixity assumia-se
de modo mais nítido. 14
No sentido de que a não ratificação por parte de um Estado-membro derruba o acordo na íntegra,
pronunciou-se a Advogada Geral Sharpston nas Observações apresentadas no Parecer UE/Singapura, ainda
pendente no TJUE, ponto 568 (supra). Entendemos, porém, ser defensável uma posição mitigada, segundo
a qual, a não ratificação do acordo por parte de um Estado-membro só poderá derrubá-lo, no seu todo,
caso se considere que o acordo foi negociado numa lógica single undertaking, o que caberá,
eventualmente, ao TJUE determinar no âmbito da sua atividade interpretativa, em caso de discórdia (artigo
218º, nº 11 do TFUE). Prevalecendo o entendimento segundo o qual a lógica negocial que presidiu à
negociação do acordo não foi a de single undertaking, uma eventual não ratificação por parte de um
Estado-membro não será impeditiva da convolação em definitiva da vigência provisória do acordo, dando-
se, para o efeito, um aproveitamento do acordo relativamente às matérias de competências exclusivas da
UE, às quais os Estados-membros deram o seu aval enquanto membros do Conselho. Tal convolação da
vigência provisória em definitiva dar-se-á mediante uma nova decisão do Conselho e nova concordância
da parte contrária no acordo, in casu, o Canadá. Tal decisão só será possível após obtenção de parecer
favorável do PE, desta vez por imposição do TFUE e não decorrente de mera prática, como no caso da
vigência provisória. A decisão do Conselho obedecerá, em princípio, à regra da maioria qualificada, nos
termos do Artigo 207º do TFUE, embora a prática tenha ditado a regra do consenso para a aprovação dos
acordos comerciais no Conselho. 15
Vide, Decisão do Conselho (10974/16), de 5 de outubro de 2016, contendo a enumeração das
disposições que serão aplicadas provisoriamente, http://data.consilium.europa.eu/doc/document/ST-
10974-2016-INIT/pt/pdf.
Maria João Palma
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 169
se, num processo com carácter de urgência, em sentido favorável à entrada em vigor
do acordo CETA a título provisório mas sujeita a certas condições16. Como mais
significativas dessas condições, salientamos a entrada em vigor limitada às
competências exclusivas da UE17 e à possibilidade de a Alemanha poder denunciar
unilateralmente o Acordo CETA no caso de a decisão final do TC vir a ser desfavorável à
entrada em vigor definitiva do acordo, uma vez que este irá pronunciar-se,
posteriormente, no que se refere, nomeadamente, ao Tribunal de Investimento18.
As tensões em torno do Acordo CETA atingem um pico a 18 de outubro de
2016, quando o Parlamento Regional da Valónia, (Bélgica), recusou dar o seu
consentimento ao Governo belga para a ratificação do Acordo. A assinatura seria
adiada, por duas semanas, vindo a ocorrer a 28 de outubro de 2016, após a Comissão
ter negociado diretamente com aquela pequena região19. Daqui resultou, entre outros
pontos, o compromisso de que o CETA será acompanhado de um instrumento de cariz
obrigatório no sentido de que não incluirá qualquer mecanismo privado de
arbitragem20.
A saga continua quando, a 21 de dezembro de 2016, a Advogada Geral
Sharpston apresenta as Observações no âmbito do Parecer 2/2015 (supra), no sentido
da competência mista do Acordo UE/Singapura, por razões que são, assim o
entendemos, mutatis mutandis, aplicáveis ao Acordo CETA. Assim, no caso de o TJUE vir
a partilhar o entendimento da Advogada Geral e se pronunciar pela competência mista
16
A ―yes but‖ decision‖ http://www.osborneclarke.com/insights/ceta-update-german-constitutional-court-
allows-provisional-application-of-ceta/. Para um comentário crítico, vide, JELENA BAUMLER – ―Yes, but …-
for now! The German Federal Constitutional Court´s judgement on CETA‖. em
http://worldtradelaw.typepad.com/ielpblog/2016/10/jelena-b%C3%A4umler-on-the-german-federal-
constitutional-courts-judgment-on-ceta-.html. 17
O TC Alemão enumerou as disposições cuja entrada em vigor provisória não seria possível,
concretamente, capítulos 8 e 13 (proteção de investimento incluindo o sistema de resolução de litígios e o
portfolio), capítulo 14 (transporte marítimo), capítulo 11 (reconhecimento mútuo de qualificações
profissionais) e o capítulo 23 (comércio e trabalho). Desta enumeração resulta que, o TC Alemão
considerou, indiretamente, o acordo CETA, como sendo misto. 18
O Tribunal Federal Constitucional Alemão deverá pronunciar-se a título definitivo, em 2018, altura em
que apreciará o CETA nos seus termos substantivos. 19
Vide https://www.theguardian.com/commentisfree/2016/nov/14/wallonia-ceta-ttip-eu-trade-belgium. 20
É conhecida a polémica em torno do recurso à arbitragem privada nos litígios entre investidores
privados e o Estado de acolhimento. Uma resenha dessa argumentação pode ser encontrada no artigo de
RICARDO DO NASCIMENTO FERREIRA – ―A Judicialização do Sistema de ISDS no TTIP‖, in, Revista
Internacional de Arbitragem e Conciliação, Almedina, Vol. VIII, 2015, p. 114. Vide, ainda, MAUDE BARLOW E
RAOUL MARC JENNAR – ―O flagelo da arbitragem internacional‖, Le Monde diplomatique, 01.02.2016.
A Política Comercial Comum à prova no pós-Lisboa
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 170
do acordo UE/Singapura, tal decisão constituirá um ―padrão‖ aplicável ao feixe de
Acordos em negociação, com todo o peso institucional que isso acarreta,
nomeadamente, a necessidade de aval dos cerca de 38 parlamentos nacionais e
regionais dos vários Estados-membros, para a entrada em vigor definitiva desse
conjunto de acordos21.
A 15 de fevereiro de 2017, o Acordo CETA mereceu parecer favorável do
plenário do Parlamento Europeu, possibilitando, assim, a entrada em vigor provisória
na parte referente à competência exclusiva da EU. O Acordo aplicar-se-á
provisoriamente a partir do primeiro dia do segundo mês após a data em que ambos
os lados tenham notificado a outra parte de que completaram todos os passos internos
necessários22, o que os membros do Parlamento Europeu calculam que ocorra a partir
de 1 de abril de 2017.
3. POLÉMICA EM TORNO DA ENTRADA PROVISÓRIA EM VIGOR DOS ACORDOS
COMERCIAIS – CONSIDERAÇÕES DE IURE CONDENDO
O Tratado regula a entrada em vigor provisória dos acordos internacionais no
artigo 218º, nº 5 do TFUE, determinando: ―O Conselho, sob proposta do negociador,
adota uma decisão que autoriza a assinatura do acordo e, se for caso disso, a sua
aplicação provisória antes da respetiva entrada em vigor”23. A este respeito, importa
referir, em primeiro lugar que, a obtenção do parecer favorável por parte do PE para a
entrada em vigor provisória dos acordos comerciais não resulta do Tratado mas da
prática institucional, precedente iniciado com o Acordo UE/Coreia do Sul (supra),
prática que consideramos merecedora de acolhimento constituinte numa futura revisão
dos Tratados. Em termos práticos, as disposições que são consideradas ―aptas‖ a entrar
21
Sufragamos as considerações sobre os acordos mistos tecidas por JELENA BAUMLER quando refere:
―What became again apparent is that the whole idea of a “mixed agreement is a nightmare for all involved,
i.e.., the EU and its organs, the Member States, the European people and the courts that have to deal with the
construction”, op. cit. 22
Assim determina o artigo 30º.7, nº 3 do Acordo CETA que prevê a possibilidade de aplicação provisória
do mesmo. 23
A versão inglesa do nº 5 aponta no mesmo sentido: “The Council, on a proposal by the negotiator, shall
adopt a decision authorising the signing of the agreement and, if necessary, its provisional application before
entry into force.‖ (nosso sublinhado).
Maria João Palma
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 171
em vigor são plenamente eficazes e, nessa medida, a concordância do PE é
absolutamente essencial.
Por outro lado, importa sublinhar que, o Tratado é omisso quanto à entrada em
vigor provisória ―parcial” do acordo, o que permite duas interpretações possíveis: ou
adotar a máxima a maiore ad minus (quem pode o mais pode o menos), de onde
retiramos a possibilidade de entrada provisória apenas de uma parte do acordo24; ou a
interpretação, segundo a qual, de que a fragmentação dos acordos quanto à sua
vigência não terá sido desejada pelos redatores dos Tratados que terão entendido os
acordos como um todo25. Ora, tendo em consideração a recente vaga de entradas em
vigor provisórias de acordos de comércio da UE cujo critérios para eleição das ―partes
ou disposições‖ do acordo à vigência prévia tem sido a fronteira competencial
(competências exclusivas da UE versus mistas)26 e, tendo em consideração as
controvérsias que tal fronteira coloca27, seria conveniente, de iure condendo, introduzir
no Tratado critérios que permitissem, por um lado, disciplinar tal escolha, onde, entre
outras, notamos a dificuldade de identificação das competências nacionais por omissão
de listagem no corpo do Tratado28, e, por outro lado, a inclusão de previsão que regule
as consequências da não ratificação por um ou mais Estados-membros: ou o ―chumbo‖
integral do acordo, ou em alternativa, a convolação da provisoriedade em vigência
definitiva da parte referente às competências exclusivas da UE. A convolação deverá ser
sujeita a parecer favorável do Parlamento Europeu, a quem incumbirá, também neste
momento, a verificação do artigo 21º do TUE.
24
Seguindo esta leitura aberta, a UE, no exercício do ius tractum e nos termos do artigo 25º da Convenção
de Viena, de 23 de maio de 1969, opta, alinhada com a parte terceira, pela vigência provisória parcial ou
total do acordo. 25
Tendo os redatores do Tratado estabelecido um regime próprio, desviante da abertura do artigo 25º da
Convenção de Viena. 26
Nas competências mistas englobamos os casos em que às competências exclusivas da UE se somam a
reservadas aos Estados-membros e/ou partilhadas entre a EU e os Estados-membros (supra). 27
No que se refere ao CETA, por exemplo, a enumeração das competências partilhadas feita pelo Conselho
(nota 15) não é necessariamente coincidente com a enumeração feita pelo TC Alemão (nota 17). 28
O Tratado de Lisboa introduziu uma lista taxativa das competências exclusivas no artigo 3º do TFUE e
uma lista enunciativa das competências partilhadas no artigo 4º do TFUE. Julgamos útil um exercício que
equacione a inclusão de uma listagem enunciativa das competências nacionais, sempre com o respaldo
cautelar do virtuoso princípio da competência por atribuição, i.e.., garantindo-se que apenas pertencem à
UE as competências (expressa ou implicitamente) atribuídas.
A Política Comercial Comum à prova no pós-Lisboa
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 172
A este respeito, cumpre referir que, desde o Tratado de Lisboa que a PCC
passou a estar sob a égide das disposições gerais relativas à ―Ação Externa da União‖29,
onde se inclui o artigo 21º do TUE que estabelece que, a União deve ―promover em
todo o mundo: a democracia, o Estado de Direito … a dignidade humana …” (nº 1), mas
também, “assegurar um elevado grau de cooperação em todos os domínios das relações
internacionais” (nº 2), a fim de, inter alia, “(d) apoiar o desenvolvimento sustentável, nos
planos económico, social e ambiental dos países em desenvolvimento, tendo por objetivo
erradicar a pobreza; (e) incentivar a integração de todos os países na economia mundial,
inclusivamente através da eliminação progressiva dos obstáculos ao comércio
internacional; (f) contribuir para o desenvolvimento de medidas internacionais para
preservar e melhorar a qualidade do ambiente e a gestão sustentável dos recursos
naturais à escala mundial, a fim de assegurar um desenvolvimento sustentável”.30
A verificação do cumprimento destes requisitos deve imperar ao longo de todo
o processo de negociação dos acordos internacionais de comércio, com ênfase para o
momento do parecer favorável por parte do Parlamento Europeu, quer quando seja
proferido relativamente a todo o acordo, quer nas situações excecionais de entrada
provisória ―parcial‖ do acordo em vigor, quer relativamente à entrada em vigor
definitiva em caso de convolação31.
Entendemos, também, que essa verificação incumbe aos parlamentos nacionais,
sobretudo na fase de ratificação, tal justificando uma maior participação e envolvência
dos mesmos durante a fase negocial dos acordos32 .
29
O artigo 207º do TFUE determina, in fine: ―A política comercial comum é conduzida de acordo com os
princípios e objetivos da ação externa da União”. 30
O artigo 21º do TUE inclui disposições cujo cumprimento em sede de celebração de acordos
internacionais de comércio determinam a remissão para bases jurídicas dos Tratados onde primam as
competências partilhadas, inter alia, em matéria social e ambiental. Os acordos de comércio assumem ou,
mesmo, devem assumir, objetivos que vão além da mera liberalização do comércio. Assim, em virtude da
submissão da PCC ao artigo 21º do TUE, os acordos de comércio da Nova Era são tendencialmente de
competência mista. 31
A entrada provisória parcial deve colocar em perspetiva a possibilidade de fazer o conjunto do acordo
evoluir para o cumprimento das obrigações contidas no artigo 21º do TUE. Por outro lado, em caso de
convolação será necessário que as ―partes ou disposições do acordo‖ que são deixadas cair não sejam
consideradas essenciais ao cumprimento dos ditames do artigo 21º do TUE. 32
A este respeito, uma nota sobre a necessidade de reforço do papel da Assembleia da República no
processo de negociação dos acordos internacionais que caberá introduzir na Lei de acompanhamento,
apreciação e pronúncia pela Assembleia da República no âmbito do Processo de Construção da União
Maria João Palma
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 173
Num mundo globalizado, o comércio não pode ser uma questão tratada de
forma isolada – a liberalização do comércio interage com outras áreas – laborais,
sociais, ambientais – cuja boa vizinhança deve ser escrutinada pelos parlamentos
europeu e nacionais33.
Resta, ainda, saber como irão decorrer os processos de ratificação nos vários
parlamentos nacionais numa época em que existe viva discussão sobre estes acordos34,
nomeadamente, as críticas levantadas pela sociedade civil no sentido de que os
acordos apenas cuidam do comércio deixando à margem, ou regulando de modo não
imperativo, as questões sociais, laborais e ambientais, e, por outro lado, qual será o
sentido da pronúncia do Tribunal Constitucional Federal Alemão, em 201835.
Em suma, pelo melindre envolvido, a entrada em vigor provisória dos acordos
internacionais alicerçada na destrinça entre diferentes tipos de competências é
merecedora de um exercício da pena do legislador constituinte.
4. ACOMPANHAMENTO DO PROCESSO NEGOCIAL DOS ACORDOS
INTERNACIONAIS DE COMÉRCIO PELOS PARLAMENTOS NACIONAIS
O Protocolo relativo à Aplicação dos Princípios da Subsidiariedade e da
Proporcionalidade e o Protocolo relativo ao papel dos Parlamentos nacionais na União
Europeia (anexos com o Tratado de Lisboa, 2009) assumem o papel conjunto de
agilizar a gestão do exercício das competências partilhadas entre a UE e os Estados-
membros, apelando aos bons ofícios dos parlamentos nacionais a quem atribuem o
papel de ―árbitros‖ em matéria de aprovação de direito derivado da UE, sendo omissos
no que se refere à celebração de acordos internacionais, mormente acordos mistos.
Europeia, Lei nº 43/2006, de 25 de agosto, com as alterações introduzidas pela Lei nº 21/2012, de 17 de
maio, mormente quando em presença de um processo negocial de um acordo misto (vide, infra, ponto 4). 33
O artigo 21º do TUE foi gizado para determinar a necessária acomodação da ação externa da UE, onde
se incluiu a PCC, ao desenvolvimento sustentável nos planos económico, social, ambiental e a irradicação
da pobreza mundial. 34
A decisão de saída unilateral do TTP (Acordo de Parceria Transpacífico) pelos EUA, a 23 de janeiro de
2017, também produzirá os seus efeitos a este nível. Entretanto, o TTIP não fez parte da agenda do
Presidente Trump e a UE ―congelou‖ as negociações relativas ao mesmo, de acordo com Cecilia
Malmstrom - Conferência sobre o Acordo CETA, Palácio Foz, Lisboa, 23 de março de 2017. 35
A questão da constitucionalidade do Acordo CETA está também pendente no Conseil constitutionnel
français, recours nº 2017-749 DC, esperando-se uma decisão ainda no Verão de 2017.
A Política Comercial Comum à prova no pós-Lisboa
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 174
Cumpre esclarecer que, o princípio da subsidiariedade é aplicável apenas no
que se refere ao direito derivado, onde o exercício das competências é ditado por um
jogo de exclusão, ou seja, a competência só será exercida no patamar da UE ―… se e na
medida em que os objetivos da ação considerada não possam ser suficientemente
alcançados pelos Estados-membros, tanto ao nível central como ao nível regional e local,
podendo contudo, devido às dimensões ou aos efeitos da ação considerada, ser mais bem
alcançados ao nível da União” (artigo 5º do TUE).
No caso do exercício da competência externa, i.e., relativa à celebração de
acordos internacionais, estamos perante não um jogo de exclusão mas um jogo de
acumulação – i.e, perante uma competência partilhada, quer os Estados-membros, quer
a UE têm de estar envolvidos no exercício da competência, ou seja, desde a outorga do
mandato negocial à Comissão que deve ser conjunta (duplo mandato), até à celebração
do acordo internacional que também o deve ser. A definição de acordo misto e
respetiva tramitação não resulta do Tratado mas da jurisprudência do TJUE (maxime,
Parecer 1/94) e da prática institucional que a dinamiza36.
Esta ausência de regulação da figura dos acordos mistos no corpo dos Tratados
acabou por se refletir, também, nos referidos Protocolos que apenas cuidam da gestão
das competências mistas no plano interno.
Se essa ausência se afigura correta no que se refere ao Protocolo sobre o
Princípio da Subsidiariedade, i.e., a falha não está no Protocolo mas no artigo 5º do
TUE que não refere que a subsidiariedade não é princípio regulador do exercício das
competências externas – já o mesmo não se poderá afirmar relativamente ao Protocolo
sobre o Papel dos Parlamentos Nacionais, uma vez que o papel por estes
desempenhado é importante, quer no que concerne ao direito derivado da UE, quer no
que se refere à celebração dos acordos internacionais da UE que envolvam
competências mistas, sendo que neste caso compete-lhes a ratificação do acordo, com
poder de veto (supra).
Tal poder ―capital‖ determina, em nosso entender que, os parlamentos
nacionais devam estar envolvidos no processo negocial dos acordos internacionais
36
Questões que sugerimos supra sejam reguladas pelos Tratados, i.e.., a definição e a tramitação dos
acordos mistos.
Maria João Palma
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 175
mistos. Porém, o Protocolo sobre o Papel dos Parlamentos Nacionais refere ad
abundantiam o acompanhamento que os parlamentos nacionais deverão fazer dos
―projetos de atos legislativos‖ – que, note-se, são enviados diretamente aos parlamentos
nacionais pelos proponentes – omitindo qualquer referência ao acordos internacionais
onde estejam em causa competências mistas, ainda que feita sob o resguardo da
organização e prática constitucional própria de cada Estado-membro.37 38
Por seu turno, a Lei de acompanhamento, apreciação e pronúncia pela
Assembleia da República no âmbito do Processo de Construção da União Europeia, Lei
nº 43/2006, de 25 de agosto, com as alterações introduzidas pela Lei 12/2012, de 17 de
maio, enfatiza o papel da Assembleia da República no que se refere à verificação da
aplicação do princípio da subsidiariedade do direito derivado pelos parlamentos
nacionais, fazendo apenas uma singela referência a um dever de informação do
Governo à AR relativamente a projetos de acordos ou Tratados a concluir pela UE ou
entre Estados-membros no contexto da UE – vide, alínea a) do nº 1, do artigo 5º.
Também a redação do nº 4 do artigo 5º nos parece não enfatizar o papel de
relevo dos acordos mistos ao dar como exemplo de deliberação de maior impacto para
Portugal a transposição de diretivas39.
Tendo em consideração a dignidade e implicações das competências nacionais
envolvidas nos acordos mistos, parece-nos que seria pertinente introduzir uma
referência expressa aos mesmos no artigo 4º - Meios de acompanhamento e
apreciação – afirmando, destarte, expressamente, um papel pró-ativo da AR nesta
sede40.
37
Aparece apenas uma referência a ―outras questões‖ no Preâmbulo. 38
Enfatize-se que, o Protocolo não é aplicável apenas a direito derivado, vide, o artigo 1º que se refere a
documentos de consulta. O título II sobre cooperação parlamentar também é omisso no que tange a
acordos internacionais. 39
Artigo 5º, nº 4: ―O Governo apresenta à Assembleia da República, no 1º trimestre de cada ano, um
relatório sucinto que permita o acompanhamento da participação de Portugal no processo de construção da
União Europeia, devendo aquele relatório informar, nomeadamente, sobre as deliberações com maior
impacto para Portugal tomadas no ano anterior pelas instituições europeias e as medidas postas em prática
pelo Governo em resultado dessas deliberações, com particular incidência na transposição de diretivas”. 40
Sem prejuízo das regras de reserva ou confidencialidade que vigorem para o processo negocial.
A Política Comercial Comum à prova no pós-Lisboa
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 176
Mais do que um direito a ser informada (artigo 5º) deve assistir, de modo claro
e inequívoco, um direito ao acompanhamento e apreciação dos acordos mistos, por
parte da AR (artigo 4º)41.
À guisa de conclusão, o exercício disciplinador aflorado pelo artigo 133º, nº 6
do TCE (Tratado de Nice)42 deveria ser retomado e desenvolvido incluindo respetivos
reflexos no corpo legislativo nacional – as consequências de um ―veto‖ no patamar
nacional de um acordo misto são demasiado severas para deixar a participação e
envolvimento dos parlamentos nacionais, ao longo do processo negocial, sem um
enquadramento expresso que agilize tal envolvimento.
5. O PARECER 2/2015 DO TJUE – POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES
A polémica em torno das competências para a celebração dos modernos
acordos de comércio (exclusividade versus mixity) deverá será aclarada pelo TJUE
através do Parecer 2/201543.
Através do pedido de Parecer interposto a 22 de setembro, de 2015, ao abrigo
do artigo 218º, nº 11 do TFUE44, a Comissão questionou o TJUE sobre a competência
para a celebração do acordo UE/Singapura45, da seguinte forma:
41
É certo que esse direito pode ser enquadrável no parágrafo 4 que dispõe: ―A Assembleia da República ou
o Governo podem ainda … suscitar o debate sobre todos os assuntos e posições em discussão nas instituições
europeias que envolvam matéria da sua competência”. Todavia, pela sua importância, consideramos que a
referência aos projetos de acordos que envolvam competências nacionais deveria ser expressa e não
resultar apenas do enquadramento numa disposição residual. 42
Recorde-se o artigo 133º, n.º 6 do TCE na parte em que referia o regime dos acordos mistos em sede de
PCC: ―… os acordos no domínio do comércio de serviços culturais e audiovisuais, de serviços de educação,
bem como de serviços sociais e de saúde humana, são da competência partilhada entre a Comunidade e os
seus Estados-membros, pelo que a sua negociação requer, para além de uma decisão comunitária tomada
nos termos do disposto no artigo 300º, o comum acordo dos Estados-membros. Os acordos assim negociados
são celebrados conjuntamente pela Comunidade e pelos Estados-membros.” (o sublinhado é nosso). Estes
serviços passariam, com o Tratado de Lisboa, para a esfera da competência exclusiva da UE, alteração que
levou à supressão da referência ao regime dos acordos mistos. A figura mantem, porém, atualidade para
matérias não abrangidas pelo artigo 207º do TFUE mas relevantes em termos de acordos de comércio
(infra). 43
A pronúncia do TJUE irá ter lugar a 16 de maio deste ano. 44
Este processo permite a qualquer Estado-membro, ao Parlamento Europeu, ao Conselho ou à Comissão
obter o parecer do TJUE sobre a compatibilidade de um acordo entre a UE e um país terceiro com os
Tratados. Em caso de parecer negativo do TJ, o acordo deve ser alterado (ou revistos os Tratados) antes de
poder entrar em vigor.
Maria João Palma
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 177
A União tem a competência necessária para assinar e celebrar por si só o
acordo de comércio livre com Singapura? Mais concretamente,
— que disposições do acordo são da competência exclusiva da União?
— que disposições do acordo se inserem na competência partilhada da
União?; e
— existe alguma disposição do acordo que seja da competência exclusiva
dos Estados-membros?
A Comissão alicerçou o seu pedido de apreciação nas dúvidas manifestadas,
especialmente pelos Estados-membros, relativamente ao âmbito e à natureza da
competência da União no que diz respeito a certas disposições do acordo
UE/Singapura, em particular as relativas à proteção do investimento estrangeiro, aos
serviços de transporte, à propriedade intelectual, à transparência e ao desenvolvimento
sustentável. O pedido de parecer dirigido ao TJUE destina-se a esclarecer se a União
dispõe de competência necessária para assinar e celebrar este acordo per se ou se será
necessária uma celebração conjunta pela UE e pelos Estados-membros.
De modo sumário, as posições assumidas pelos vários intervenientes podem
retratar-se do seguinte modo: a Comissão Europeia defendeu a competência exclusiva
da UE relativamente a todo o acordo. O Parlamento Europeu concordou em termos
gerais com a Comissão. O Conselho e os Governos de todos os Estados-membros que
apresentaram observações escritas consideraram que a UE não pode celebrar o acordo
por si só, uma vez que certas partes do acordo estão abrangidas pela competência
partilhada entre a UE e os Estados-membros e, mesmo, inclusivamente pela
competência exclusiva dos Estados-membros46.
Pela questão teórica envolvida – competência para a celebração de um acordo
da UE com terceiros, em matéria de comércio externo e aspetos conexos, e pela
simetria do posicionamento das diferentes instituições e dos Estados-membros
45
A 20 de setembro de 2013, a UE e Singapura rubricaram o texto de um acordo de comércio livre, sem a
participação dos Estados-membros. 46
Apresentaram observações escritas todos os Estados-membros, com exceção da Bélgica, Croácia, Estónia
e Suécia. Entretanto, a Bélgica apresentou observações orais. Vide, Tribunal de Justiça da União Europeia,
Comunicado de Imprensa nº 147/16, Luxemburgo, 21 de dezembro de 2016.
http://curia.europa.eu/jcms/jcms/p1_269097/fr/.
A Política Comercial Comum à prova no pós-Lisboa
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 178
(Comissão versus outros), este pedido de Parecer assemelha-se ao Parecer 1/94 relativo
à competência da UE para a celebração dos Acordos OMC. Tal simetria prenuncia,
assim cremos, uma decisão simétrica do TJUE… uma pronúncia favorável à mixity…
A complexidade jurídica é terreno fértil para a realpolitik – a escolha das bases
jurídicas têm, por vezes, subjacente uma batalha pelo poder entre a UE e os Estados-
membros - optar pela competência exclusiva dá poder à UE e retira aos Estados-
membros e, a Comissão Europeia assumiu-se, aqui, a protagonista na disputa47.
A questão central deste Parecer é, pela sua novidade e importância, a
competência relativa ao investimento estrangeiro, cuja inclusão no âmbito da PCC, com
o Tratado de Lisboa, tem suscitado vivo interesse por parte da doutrina48, em especial,
no que se refere ao investimento em carteira, ou de portfolio, e à resolução de litígios
relativamente a todo o investimento (direto ou indireto)49.
Entretanto, a Advogada Geral Sharpston apresentou as suas conclusões a 31 de
dezembro de 2016, concluindo que o acordo UE/Singapura terá de ser celebrado
conjuntamente pela UE e pelos Estados-membros50.
47
Vide, ANDRÉS DELGADO CASTELEIRO – ―In realpolitik terms, the discussion on whether a certain
agreement should be mixed or not hides a battle for power between the EU (mostly the European
Commission) and the Member States. As mixed agreements give more power to the Member States (often
more than they are constitutionally entitled to), it seems rather logical that the EU Commission would like to
restrict their use to the bare minimum. This is the underlying conflict in Opinion 2/15: if the Court decides
that the EU-Singapore FTA falls within the EU’s exclusive competence, the EU would be able to conclude the
agreement alone. If, on the contrary, the CJEU decides that the FTA does not only cover areas of EU exclusive
competence, but also shared competence, or even Member States´ exclusive competence, the agreement will
be concluded jointly by the EU and its Member States”, in “Opinion 2/15 on the scope of EU external trade
policy: some background information before next week´s hearing”, in
http://eulawanalysis.blogspot.pt/2016/09/opinion-215-on-scope-of-eu-external.html. 48
A questão foi por nós anteriormente analisada, vide, MARIA JOÃO PALMA – ―A nova Política Europeia de
Investimento Estrangeiro decorrente do Tratado de Lisboa: o Regulamento Grandfathering e a articulação
entre a competência da União Europeia e as competências remanescentes dos Estados-membros‖, in
Revista Internacional de Arbitragem e Conciliação, Almedina, Vol. VIII, 2015, p. 83 a 110 e MARIA JOÃO
PALMA – ―A proteção do investimento estrangeiro – uma Nova Política Europeia?‖, in Revista Análise
Europeia, nº 1, 2016, p. 124 a 134,
www.apeeuropeus.com/uploads/6/6/3/7/66379879/palma_maria_joão__2016_.pdf.
Em ambos os artigos defendemos o entendimento segundo o qual apenas o investimento direto se
encontra coberto pelo âmbito do artigo 207º do TFUE, devendo afirmar-se uma competência partilhada no
que concerne ao investimento de portfolio. 49
Percebe-se a sensibilidade da questão quando pensamos no foro competente para dirimir um litígio
respeitante a um ato praticado por um Estado no exercício dos seus poderes soberanos, maxime,
expropriação, gerador de danos na esfera jurídica do investidor. 50
Vide
http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=186494&pageIndex=0&doclang=en&m
ode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=324328.
Maria João Palma
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 179
De particular interesse sublinhar que, Sharpston considera competência
partilhada a relativa ao portfolio, assim afastando a tese da Comissão segundo a qual a
competência exclusiva para tal tipo de investimento, muito embora refira não encontre
a sua base jurídica no artigo 207º do TFUE, encontrá-la-ia no artigo 63º do TFUE de
onde a Comissão, numa posição desviante da jurisprudência do TJUE retira uma
competência externa exclusiva implícita que descobre numas supostas ―regras comuns”
contidas nesse normativo (infra)51.
Também de distinguir o paralelismo que Sharpston estabelece ao nível das
competências sobre resolução de litígios relativos a investimento estrangeiro,
identificando uma competência exclusiva externa implícita para a resolução de litígios
relativa ao IDE, e uma competência externa partilhada implícita em matéria de litígios
no que se refere ao investimento indireto52.
Uma nota critica para o facto de Sharpston não ter identificado uma
competência reservada aos Estados-membros em matéria de expropriação – maxime,
no que se refere às regras sobre resolução de litígios53.
5.1. ALINHAVO DAS PRINCIPAIS QUESTÕES TÉCNICO-JURÍDICAS QUE O TJUE
ENFRENTA NO PARECER 2/2015
De modo esquemático, e para poder determinar se o acordo UE/Singapura é,
ou não, um acordo misto, será, em nosso entender, importante que o TJUE assuma
uma posição sobre as seguintes questões:
51
A tese da Comissão vai ao arrepio da jurisprudência do TJUE afirmada, inter alia, no AETR, Open Skies e
Parecer 2/03, onde o TJUE considerou que as competências externas implícitas pressupõem o exercício
prévio da competência, ou seja, a aprovação de regras comuns contidas em direito derivado. Acresce
referir que o artigo 63º do TFUE regula a liberdade de capitais que se insere no mercado interno, matéria
que segundo o artigo 4º do TFUE é de competência partilhada. Em suma, a Comissão pretende retirar de
uma competência partilhada expressa uma competência exclusiva implícita – ora, não é esta a lógica que
preside ao princípio do paralelismo de competências. 52
As competências implícitas assentam numa lógica de matemática pura da qual Shapston soube bem
extrair as consequências. As competências externas implícitas assentam numa lógica de funcionalidade e
são o reflexo das competências internas em que se baseiam. Na doutrina, vide, entre nós, MARIA LUíSA
DUARTE – ―A teoria dos poderes implícitos e a delimitação de competências entre a União Europeia e os
Estados-membros‖, Lisboa, Lex, 1997. 53
Sobre a natureza reservada aos Estados-membros de certas competências em matéria de investimento
estrangeiro, vide, MARIA JOAO PALMA (2015), p. 95.
A Política Comercial Comum à prova no pós-Lisboa
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 180
1. O artigo 207º do TFUE ao referir o investimento direto estrangeiro inclui o
investimento de carteira?54
2. Qual a natureza jurídica do artigo 345º do TFUE55 – base jurídica ou norma
travão? A Comissão sustenta que o artigo 345º não impede a UE de aprovar
normas sobre expropriação. Tal afirmação não determina, porém, que esse
normativo assuma as virtualidades de base jurídica, ora não havendo base
jurídica no Tratado – estamos perante uma competência de reserva nacional56.
3. Pode o artigo 63º do TFUE ter as virtualidades pretendidas pela Comissão e
nele poderem encontrar-se ―regras comuns‖57 para daí extrair uma competência
implícita para a celebração de um acordo internacional em termos exclusivos no
que se refere ao portfolio? De acordo com jurisprudência constante, as ―regras
comuns‖ encontram-se no direito derivado que implementa os Tratados e não
no corpo do Tratado58.
4. Em termos de litígios sobre investimento, deverá estabelecer-se um
paralelismo de competências? Para tal, o TJUE deverá considerar que a
regulação dos litígios é funcional às regras substantivas e, assim, considerar que
os litígios relativos a competências exclusivas da UE são de competência
exclusiva desta, ao passo que a regulação dos litígios relativos a competências
partilhadas, são de competência partilhada entre a UE e os Estados-membros.
5. Importante também seria, embora possa considerar-se que extravasa o
âmbito da pergunta colocada, que o TJUE se pronunciasse, como fez a
advogada geral, sobre a competência para a revogação dos BITs anteriormente
celebrados pelos Estados-membros com o parceiro do novo acordo. Deve o
54
Parece consensual que não. 55
O artigo 345º do TFUE afirma: ―Os Tratados em nada prejudicam o regime da propriedade nos Estados-
membros”. 56
De acordo com o princípio da competência por atribuição – artigo 5º, nº 2 do TUE: “… a União atua
unicamente dentro dos limites das competências que os Estados-membros lhe tenham atribuído nos Tratados
para alcançar os objetivos fixados por estes últimos. As competências que não sejam atribuídas nos Tratados
pertencem aos Estados-membros”. 57
Vide, artigo 3º, nº 2 do TFUE que constitucionaliza a jurisprudência do TJUE sobre competências
exclusivas. Tal normativo não dispensa, porém, os esclarecimentos contidos nas decisões pretorianas em
que o mesmo se baseia, nomeadamente, o que deva ser entendido por ―regras comuns‖. 58
Refira-se que, sendo o princípio do paralelismo das competências um desvio ao princípio da
competência por atribuição, o mesmo deve ser interpretado de modo restrito, o que vai contra a tese da
expansão da jurisprudência do TJUE pretendida pela Comissão.
Maria João Palma
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 181
princípio da substituição atuar de modo automático, determinando a
caducidade dos acordos anteriores ou os Estados-membros mantêm a
competência para revogar os acordos como uma competência nacional (tese
Sharpston)?59
6. Na mesma linha de raciocínio da questão anterior, seria importante que o
TJUE se pronunciasse sobre as consequências que poderão advir do veto por
um parlamento nacional na fase da ratificação.
6. CONCLUSÃO
Olhando para o emaranhado de posições resultante deste percurso de avanços
e recuos, e considerando a prossecução de objetivos ―além comércio‖ ditados pela
sujeição da política comercial comum aos objetivos da Ação Externa da União,
decorrentes do Tratado de Lisboa (artigo 21º do TUE), entendemos que, à guisa de
conclusão, deveria ser assegurado um maior diálogo entre a UE e os seus cidadãos,
nomeadamente, mediante uma maior envolvência dos parlamentos nacionais ao longo
do próprio processo de negociação dos acordos internacionais a celebrar pela UE que
incluam competências do foro nacional e/ou partilhadas entre a UE e os Estados-
membros e não apenas na fase da ratificação, o que os Tratados não asseguram
devidamente.
A posição a tomar pelo TJUE, no Parecer 2/2015, sobre o Acordo UE/Singapura
será crucial para o feixe de acordos em negociação por parte da UE, uma vez que
sendo o clausulado dos mesmos muito idêntico urge clarificar a questão nevrálgica das
competências para a celebração dos acordos. Enfatize-se que, uma pronúncia favorável
à mixity legitima uma necessidade de maior participação dos parlamentos nacionais no
processo negocial dos modernos acordos de comércio.
59
O automatismo da substituição parece resultar do artigo 3º do Regulamento Grandfathering
(Regulamento UE nº 1219/2012, de 12 de dezembro de 2012). Entendemos, porém que, para caírem os
BITs os Estados-membros devem ser outorgantes no acordo no exercício de uma competência nacional.
A Política Comercial Comum à prova no pós-Lisboa
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 182
Uma Europa transparente e cuidadora dos direitos sociais, ambientais, laborais,
será, seguramente, mais robusta e resistente a futuros Brexits60: a União Europeia
precisa de se reconciliar, a breve trecho, com os seus cidadãos…
60
A 29 de março de 2017 seria acionado o artigo 50º do TUE (saída) pelo Reino Unido.
Pedro Silva Pereira
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 183
ACORDO CETA: O PARLAMENTO EUROPEU FEZ A DIFERENÇA1
PEDRO SILVA PEREIRA2
RESUMO
O presente artigo visa analisar a temática da influência do Parlamento Europeu na orientação do processo
negocial do Acordo Económico e Comercial Global entre a União Europeia e o Canadá, vulgarmente
denominado de CETA. Em particular, destaca-se uma matéria em que a pressão exercida pelo Parlamento
Europeu foi determinante: a exigência da eliminação do sistema de arbitragem privada (doravante, ISDS).
O ISDS trata-se de um mecanismo para a resolução de litígios entre os investidores e os Estados que data
de finais da década de 60, tendo, entretanto, generalizado-se a ideia de que este sistema padecia de vários
problemas. Assim, após a conclusão das negociações do CETA, e em virtude da pressão do Parlamento
Europeu e da opinião pública, o “velho ISDS” foi substituído por um sistema público de arbitragem,
designado de Investment Court System. Para se compreender o motivo de a larga maioria dos deputados
europeus ter considerado este acordo merecedor de um voto favorável, importa ter presente que a versão
final do texto submetido a votação é substancialmente diferente daquele que constava das suas versões
iniciais. Na introdução, o artigo em referência apresenta o enquadramento jurídico do papel do
Parlamento Europeu na negociação e ratificação dos acordos comerciais celebrados pela União Europeia e
descreve, de seguida, os termos da intervenção do Parlamento Europeu no caso concreto do CETA. No
contexto deste último ponto, o artigo aborda, num primeiro momento, os temas da transparência e da
participação da sociedade civil e, num segundo momento, relata o processo de eliminação do sistema
privado de ISDS no CETA. Por último, conclui-se com a avaliação sumária das oportunidades que o acordo
CETA representa para a União Europeia e, sobretudo, para Portugal.
Palavras-chave: CETA, Parlamento Europeu, transparência, arbitragem (ISDS), sistema de arbitragem
pública (ICS).
Histórico do artigo: recebido em 03-05-2017; aprovado em 04-05-2017; publicado em 05-05-2017. 1 Este artigo tem por base a intervenção proferida na Faculdade de Direito de Lisboa, no dia 7 de abril de
2017, no decurso da Conferência “Acordo CETA: uma oportunidade para Portugal?”, organizada pelo
Instituto Europeu, o Centro de Investigação de Direito Europeu, Económico, Financeiro e Fiscal e o Instituto
de Direito Económico, Financeiro e Fiscal da Faculdade de Direito de Lisboa, em parceria com a Embaixada
do Canadá e a Secretaria de Estado dos Assuntos Europeus. 2 Mestre em Direito (Ciências Jurídico-Políticas) e Assistente da Faculdade de Direito de Lisboa, é Deputado
ao Parlamento Europeu onde integra a Comissão de Comércio Internacional. Lisboa, Portugal. E-mail:
Acordo CETA: O Parlamento Europeu fez a diferença
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 184
ABSTRACT
CETA: The European Parliament made the difference. This article examines the influence of the European
Parliament in driving forward the negotiation process of the Comprehensive Economic and Trade
Agreement between the European Union and Canada (CETA). In particular, it highlights that it was the
pressure of the European Parliament that made all the difference on a crucial point: the request to remove
the private arbitration system (ISDS). The ISDS is an Investor-State dispute settlement mechanism that
dates back to the late 1960’s. However, there is, and rightly so, a growing awareness of problems stemming
from these kind of systems. After the formal conclusion of the CETA negotiations, and in reaction to
pressure from the European Parliament and public opinion, the "old ISDS", that was included in the
preliminary versions of the agreement, was replaced by a public arbitration system, called Investment Court
System (ICS). As a consequence, the final text put to a vote in the European Parliament was substantially
different from the initial versions, which is why a clear majority of MEPs supported the final agreement. In
the introduction, this article starts by setting out the legal rules guiding the role of the European
Parliament in the negotiation and ratification of trade agreements concluded by the European Union.
Subsequently, it describes the terms of the European Parliament's intervention in the case of CETA. Here,
the article focuses firstly on the topics of transparency and participation of civil society. Secondly, it sets
out how the private ISDS system was removed and it was replaced by the ICS in CETA. Finally, a brief
assessment is made of the opportunities that the CETA agreement represents for the European Union and,
above all, Portugal.
Keywords: CETA, European Parliament, transparency, Investor-State Dispute Settlement (ISDS), Investment
Court System (ICS).
_________________________________________________________________________________________________________________
Depois de quase 8 anos de um longo e difícil processo negocial3, o Acordo
Económico e Comercial Global entre a União Europeia e o Canadá, conhecido pela sigla
CETA (Comprehensive Economic and Trade Agreement), foi finalmente aprovado na
sessão plenária do Parlamento Europeu de 15 de fevereiro de 2017. Apesar da intensa
polémica que marcou o debate público sobre o assunto, a assembleia representativa
dos cidadãos europeus aprovou o acordo por uma maioria expressiva: 408 votos a
favor, 254 contra e 33 abstenções. Para perceber porque é que uma tão clara maioria
3 As negociações entre a UE e o Canadá iniciaram-se em maio de 2009 e foram formalmente dadas como
concluídas em 26 de setembro de 2014. A versão final do acordo, porém, só foi assinada, com importantes
alterações, na Cimeira UE-Canadá de 30 de outubro de 2016.
Pedro Silva Pereira
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 185
dos deputados europeus considerou este acordo merecedor de um voto favorável é
preciso ter presente que, graças à pressão política do próprio Parlamento Europeu e da
opinião pública, a versão final do texto submetido a votação é substancialmente
diferente da que constava das suas versões iniciais, incluindo a polémica versão que as
duas partes declararam como “fechada” em 26 de setembro de 2014, data em que
oficialmente anunciaram o encerramento das negociações.
De modo a tornar compreensível como é que se chegou aqui, será útil começar
por recordar, brevemente, o enquadramento jurídico da intervenção decisiva do
Parlamento Europeu na negociação e ratificação dos acordos comerciais celebrados
pela União Europeia. A essa luz, daremos conta dos termos da intervenção do
Parlamento Europeu no caso concreto do CETA e destacaremos, de modo particular, o
problema da transparência das negociações e a questão da influência do Parlamento
na orientação do processo negocial, designadamente quanto ao ponto crítico em que a
pressão do Parlamento Europeu fez toda a diferença: a exigência da eliminação do
sistema de arbitragem privada, conhecido pela sigla ISDS (Investor-to-State Dispute
Settlement), mecanismo tradicionalmente previsto neste tipo de acordos para a
resolução dos litígios entre os investidores e os Estados. Finalmente, deixaremos ainda,
em tom assumidamente positivo, uma avaliação sumária das oportunidades que o
acordo CETA representa para a União Europeia e, sobretudo, para Portugal.
Terminaremos resumindo as nossas conclusões em breves notas finais.
1. O PAPEL DO PARLAMENTO EUROPEU NA NEGOCIAÇÃO DOS ACORDOS
COMERCIAIS: O CASO DO CETA
Como é sabido, o Parlamento Europeu desempenha, desde o Tratado de Lisboa,
um papel muito relevante, e até decisivo, no processo de negociação e ratificação dos
acordos comerciais internacionais celebrados pela União Europeia. Na verdade, não só
a Comissão Europeia, a quem compete conduzir a negociação em cumprimento do
mandato conferido pelo Conselho, tem a obrigação de manter o Parlamento Europeu
Acordo CETA: O Parlamento Europeu fez a diferença
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 186
informado em todas as fases do processo4, como qualquer acordo comercial só pode
entrar em vigor depois da aprovação do Parlamento Europeu5. Poderia, é certo, tratar-
se de uma mera formalidade, destituída de real alcance político, mas não é o caso: o
Parlamento Europeu provou que leva muito a sério este seu “poder de veto” quando
decidiu rejeitar, em 2012, o famigerado acordo ACTA (Acordo Comercial Anti-
contrafação).
Compreende-se, a esta luz, que o Parlamento Europeu tenha seguido muito de
perto, e logo desde o início, as negociações comerciais com o Canadá, tal como se
compreende que a Comissão Europeia tenha feito um investimento considerável na
prestação de informação aos deputados europeus, seguindo depois com especial
atenção as tomadas de posição do Parlamento ao longo do processo.
O acompanhamento do CETA pelo Parlamento Europeu processou-se,
essencialmente, através da comissão parlamentar competente - a Comissão do
Comércio Internacional (INTA) - e do grupo de trabalho (monitoring group)
especificamente constituído no âmbito dessa comissão para monitorizar o processo do
CETA. Especialmente importante foi a resolução do Parlamento sobre o futuro das
relações comerciais entre a União Europeia e o Canadá aprovada em junho de 2011,
numa fase ainda relativamente inicial das negociações. Esta muito oportuna resolução
condicionou significativamente os desenvolvimentos posteriores6. Além disso, ao longo
das negociações o Parlamento teve sempre uma intervenção muito intensa: realizou 16
reuniões e debates na Comissão do Comércio Internacional sobre o CETA
(frequentemente com a participação de representantes da sociedade civil), promoveu
13 reuniões do grupo de trabalho (normalmente, antes e depois de cada ronda
negocial) e organizou 2 delegações de deputados europeus ao Canadá, bem como 1
encontro sobre estas negociações entre deputados europeus e deputados dos
parlamentos nacionais.
4 Artigo 218(10) do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).
5 Artigo 218(6) TFUE.
6 In http://www.europarl.europa.eu/sides/getDoc.do?pubRef=-//EP//TEXT+TA+P7-TA-2011-
0257+0+DOC+XML+V0//PT.
Pedro Silva Pereira
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 187
Como já se referiu, a 15 de fevereiro de 2017 o Parlamento aprovou a versão
final do CETA7, mas isso não significou – longe disso – a conclusão deste processo.
Sendo tratado como “acordo misto”, por envolver competências das instituições
europeias e dos órgãos de soberania nacionais, o CETA só entrará plenamente em
vigor depois da ratificação por todos e cada um dos Estados-membros da União
Europeia, nos termos dos respetivos procedimentos constitucionais (o que em diversos
casos implica a aprovação não apenas pelos parlamentos nacionais, mas também
regionais8). Consequentemente, o processo deverá prolongar-se ainda por alguns anos.
Neste quadro, também a nossa Assembleia da República será chamada, em breve, a
debater e votar o texto do CETA.
Entretanto, como é prática comum, a aprovação do CETA pelo Parlamento
Europeu abriu caminho para a sua aplicação provisória, já a partir de 1 de julho de
2017, no que diz respeito às disposições referentes às competências exclusivas da
União, salvo as que foram expressamente excluídas dessa aplicação provisória,
designadamente as respeitantes à proteção do investimento (incluindo o próprio
sistema de arbitragem pública, ou Investment Court System) e ao chamado
investimento de carteira (portfolio investment), o que atinge também os preceitos
relacionados do capítulo sobre serviços financeiros.
Quanto à intervenção do Parlamento Europeu, deve sublinhar-se que a
aprovação do CETA não encerra as suas tarefas: segue-se a importante missão de
acompanhar a implementação do acordo, a começar já pela sua aplicação provisória.
2. A NEGOCIAÇÃO DO CETA: UM PROBLEMA DE TRANSPARÊNCIA?
Apesar da justa reclamação de mais transparência nas negociações dos acordos
comerciais, tem de reconhecer-se que é em certa medida inevitável, até para o sucesso
do processo negocial, um certo grau de reserva no diálogo entre as partes. Como bem
se compreende, não é pensável que as rondas de negociações internacionais, em
7 Na ocasião, vários grupos políticos apresentaram propostas de resolução com tomadas de posição sobre
o CETA, mas nenhuma foi aprovada. 8 Segundo os serviços do Parlamento Europeu, o CETA terá de ser ratificado por pelo menos 38
parlamentos nacionais e regionais da UE.
Acordo CETA: O Parlamento Europeu fez a diferença
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 188
matérias muitas vezes sensíveis, possam decorrer em público, com cada uma das
movimentações das partes a ser sublinhada por uma “claque” ruidosa, seja ela de
apoiantes ou de adversários. Seja como for, deve dizer-se que as negociações do CETA
estiveram longe de ser “secretas”: a Comissão Europeia, como já se disse, prestou
atempadamente a informação devida ao Parlamento Europeu e ao Conselho após cada
ronda de negociações; tanto a Comissão como o Parlamento promoveram numerosos
debates com a participação da sociedade civil em que foram prestados esclarecimentos
vários e até o próprio mandato de negociação do CETA, conferido pelo Conselho à
Comissão Europeia, acabou por ser tornado público (embora só em dezembro de
2015). Finalmente, desde que as negociações foram formalmente dadas como
“concluídas”, em setembro de 2014, o texto do acordo (que veio a sofrer
posteriormente diversas alterações) foi publicado no sítio Web da Direcção-Geral do
Comércio da Comissão Europeia, permitindo um debate informado na sociedade civil
sobre o verdadeiro teor da proposta a ser submetida à aprovação dos parlamentos.
É certo que o processo negocial com o Canadá não decorreu de forma tão
aberta como as negociações do TTIP (Transatlantic Trade and Investment Partnership)
com os Estados Unidos da América, onde a pressão da opinião pública e do
Parlamento Europeu acabou por forçar soluções em matéria de transparência sem
precedentes na negociação de acordos comerciais. Seria importante, sem dúvida, que
tais inovações fossem generalizadas e plenamente assumidas pela Comissão Europeia
como um novo padrão de transparência a cumprir na negociação deste tipo acordos.
Contudo, mesmo que não se tenham adotado no caso do CETA todas as melhores
práticas introduzidas na negociação do TTIP, não restam dúvidas de que o grau de
transparência alcançado representou um progresso assinalável face ao que era a
prática da Comissão Europeia num passado não muito distante.
3. A INFLUÊNCIA DO PARLAMENTO EUROPEU NA VERSÃO FINAL DO CETA: A
ELIMINAÇÃO DO SISTEMA DE ARBITRAGEM PRIVADA (ISDS)
Pedro Silva Pereira
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 189
Ao longo das negociações do CETA, o ponto mais controverso e que mais
mobilizou as atenções da opinião pública foi, sem qualquer dúvida, o relativo ao já
mencionado sistema de resolução de litígios entre os investidores e os Estados,
conhecido pela sigla ISDS, no âmbito do capítulo da proteção do investimento. E foi
justamente aí que mais se fez sentir a influência política do Parlamento Europeu na
construção da versão final do acordo. Essa, aliás, é uma história que merece ser
contada.
Como é sabido, o sistema ISDS está longe de ser uma realidade nova9. Desde
finais da década de 60, os países da União Europeia assinaram cerca de 1400 tratados
bilaterais em matéria de investimento, a maioria dos quais com países desenvolvidos e
quase todos incluindo um mecanismo de ISDS para resolução dos litígios entre os
investidores e os Estados. Embora não se possa falar de um modelo uniforme de ISDS -
já que o regime previsto nos diversos acordos apresenta diferenças assinaláveis - estes
sistemas de resolução de litígios têm em comum o constituírem mecanismos de
arbitragem privada, em que, normalmente, cada uma das partes indica um árbitro e
ambas, por comum acordo, designam o terceiro.
Contudo, desde a década de 90, e ainda mais nos últimos anos, generalizou-se
a consciência de que estes sistemas de arbitragem privada previstos nos acordos de
investimento padeciam de vários problemas. No plano processual, destacava-se o sério
risco de conflito de interesses dos árbitros, a falta de transparência do processo e de
publicidade das decisões e a imprevisibilidade quase total das decisões arbitrais,
nomeadamente por falta de um sistema de recurso uniformizador da jurisprudência.
No plano substantivo, contestava-se, sobretudo, a forma imprecisa como se assegurava
aos investidores um tratamento “justo e equitativo”, bem como o direito a
indemnização em caso de “expropriação indireta”. No seu conjunto, e à luz de alguns
casos mais mediáticos, estas regras passaram a ser vistas como sérias ameaças para o
poder dos Estados introduzirem novas regulamentações em nome do interesse público,
em particular nos casos em que a intervenção dos poderes públicos pudesse pôr em
9 Portugal tem vários tratados bilaterais de investimento com países terceiros que incluem ISDS, embora
nenhum com o Canadá. V. lista destes acordos em
http://investmentpolicyhub.unctad.org/IIA/CountryBits/169.
Acordo CETA: O Parlamento Europeu fez a diferença
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 190
causa as “legítimas expectativas” de lucro dos investidores protegidas por assustadores
direitos de indemnização.
Deve reconhecer-se que a Comissão Europeia, bem consciente destes
problemas e do debate público sobre o assunto que se avolumou no quadro da
discussão do TTIP, conseguiu negociar com o Canadá, logo numa versão preliminar do
CETA do início de 2014, algumas melhorias relevantes no mecanismo de ISDS. Essas
melhorias incidiram, sobretudo, em matérias como o conflito de interesses dos árbitros,
a transparência dos procedimentos, a prevenção de abusos do sistema por via de
queixas manifestamente infundadas e a definição de conceitos como os já referidos
“tratamento justo e equitativo” ou “expropriação indireta”. Do mesmo modo, para
reforçar a salvaguarda do direito a regular em nome do interesse público, tornava-se
claro que os tribunais arbitrais não teriam o poder de determinar a anulação ou a
revogação de quaisquer medidas legislativas, embora sem prejuízo do direito a
indemnização dos investidores. Por outro lado, enunciava-se a possibilidade de a União
Europeia e o Canadá estabelecerem no futuro uma instância de recurso das decisões
arbitrais.
Apesar destas melhorias, nem o Parlamento Europeu se mostrou convencido,
nem pareceram ficar convencidos um número apreciável de cidadãos e múltiplas
organizações da sociedade civil. Esse desagrado manifestou-se de forma expressiva na
consulta pública sobre o sistema de ISDS promovida pela Comissão Europeia em março
de 2014. Embora essa consulta pública tenha decorrido no âmbito do TTIP, o modelo
de ISDS efetivamente submetido à discussão foi o referido modelo “melhorado”
constante da versão preliminar do CETA do início de 2014.
Em resposta à contestação recebida durante a consulta pública, a própria
Comissão reconheceu que a reforma do ISDS proposta no âmbito do CETA estava
aquém do necessário em quatro aspetos, todos eles essenciais: salvaguarda do “direito
a regular”, funcionamento dos tribunais arbitrais (transparência e regras de conflitos de
interesses), relação com as vias judiciais internas e mecanismo de recurso das decisões
arbitrais. Todavia, tendo entretanto as negociações com o Canadá sido formalmente
dadas como “concluídas”, em dezembro de 2014, a Comissão Europeia considerou o
Pedro Silva Pereira
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 191
assunto encerrado no quadro do CETA, remetendo os necessários aperfeiçoamentos
para outros acordos comerciais e uma futura revisão do acordo que acabava de ser
negociado.
Esta posição da Comissão Europeia enfrentou uma clara oposição da maioria do
Parlamento Europeu, em particular do Grupo Socialista e Democrata, cujo voto era
decisivo para a aprovação final do acordo. Para o Parlamento, do reconhecimento das
fragilidades da reforma do ISDS decorria uma consequência obrigatória: o CETA não
podia ser aprovado com um sistema de resolução de litígios ainda largamente
tributário dos vícios do “velho ISDS”. Mas a posição do Parlamento não se ficou por
aqui e às fragilidades reconhecidas pela Comissão acrescentou uma outra: o “ISDS
reformado” era ainda, afinal, um sistema de arbitragem privada. No entender do
Parlamento, seria impossível superar os graves riscos de parcialidade e conflito de
interesses nas decisões arbitrais sobre o direito a regular enquanto os próprios
investidores privados continuassem a participar na nomeação dos árbitros. Dito de
outro modo: não bastava reformar o ISDS, era preciso acabar com ele.
Esta posição do Parlamento enfrentou, como seria de esperar, uma fortíssima
resistência da Comissão, que se mostrou relutante em reabrir negociações substantivas
com o Canadá sobre o capítulo do investimento. Todavia, o Parlamento Europeu, que
por várias formas chegou a ameaçar com a rejeição do CETA, fez valer a sua força e
obrigou a Comissão a, na prática, reabrir negociações sobre esta matéria, beneficiando
também da circunstância de ter ocorrido em 2015 uma mudança de Governo no
Canadá, agora liderado pelo primeiro-ministro liberal Justin Trudeau. Assim, em
fevereiro de 201610, na sequência de uma proposta da Comissão (na linha da
apresentada em setembro de 2015 no âmbito das negociações do TTIP), a União
Europeia e o Canadá acordaram em eliminar do CETA o sistema de ISDS e consagrar
um novo sistema de resolução de litígios entre os investidores e os Estados: o
Investment Court System (ICS).
10
A revisão jurídica do CETA terminou em 29 de fevereiro de 2016.
Acordo CETA: O Parlamento Europeu fez a diferença
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 192
Pode dizer-se que, ao contrário do velho sistema de arbitragem privada ISDS, o
ICS é, essencialmente, um sistema público de arbitragem11: os árbitros serão
designados pelas partes signatárias do CETA, a União Europeia e o Canadá, e já não
pelos investidores privados; esses árbitros, juízes profissionais e independentes, com
mandatos de cinco anos renováveis por uma única vez, ficam sujeitos a reforçadas
normas éticas e a um rigoroso código de conduta12; o sistema assenta num tribunal
permanente de primeira instância com 15 juízes13, já não em colégios arbitrais
constituídos ad hoc; está agora previsto um tribunal de recurso14, que antes
simplesmente não existia; densifica-se o controlo de admissibilidade das queixas, quer
do ponto de vista da legitimidade dos agentes quer do ponto de vista do fundamento
do pedido e, finalmente, garantem-se procedimentos mais transparentes,
designadamente graças à realização de audiências públicas e à publicação de peças
processuais15.
No domínio substantivo, o capítulo de investimento do CETA reforça
igualmente a garantia do direito dos governos introduzirem novas regulamentações
em defesa do interesse público16, não apenas tornando claro que uma decisão arbitral
não pode, em circunstância alguma, obrigar uma entidade pública a alterar um ato
legislativo, mas, sobretudo, negando de forma expressa a existência de qualquer direito
de indemnização pelo simples facto de um investidor alegar que uma nova
regulamentação prejudicou as suas expectativas de lucro.
O “Instrumento Comum Interpretativo”, que a União Europeia e o Canadá
fizeram anexar ao texto do CETA 17 - e que veio dar garantias adicionais de preservação
11
Refira-se que, face a algumas questões que foram suscitadas, os serviços jurídicos do Parlamento
Europeu emitiram, em junho de 2016, um parecer, que é público, onde se conclui que o ICS é inteiramente
compatível com os Tratados Europeus. A Bélgica vai solicitar um parecer ao Tribunal de Justiça da União
Europeia sobre a mesma questão. 12
Artigo 8.30 do CETA. 13
Segundo o artigo 8.27 (2) do CETA, o Comité Misto CETA irá nomear quinze membros do tribunal. Cinco
juízes devem ser cidadãos nacionais de um Estado-membro da União, cinco devem ser nacionais do
Canadá e cinco devem ser cidadãos nacionais de países terceiros. 14
Artigo 8.28 do CETA. 15
Artigo 8.36 do CETA. 16
Artigo 8.9 do CETA. 17
Em virtude do artigo 30.1 do CETA e em conformidade com o artigo 31º da Convenção de Viena sobre o
Direito dos Tratados, o “Instrumento Comum Interpretativo” deve ser considerado como parte integrante
do acordo CETA.
Pedro Silva Pereira
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 193
dos princípios e valores europeus, nomeadamente em matéria de segurança alimentar,
proteção da saúde, dos consumidores e do ambiente, e direitos sociais e laborais -
esclarece, de forma inequívoca, que nenhuma das disposições do CETA pode ser
interpretada de modo a restringir o pleno direito das partes legislarem no sentido de
salvaguardar o interesse público.
Beneficiando do facto de o ICS ter ficado excluído da aplicação provisória do
CETA, a Comissão Europeia e o Canadá acordaram (Declaração anexa nº 36) trabalhar
em conjunto para introduzir, ainda, alguns aperfeiçoamentos adicionais neste sistema,
nomeadamente em relação aos critérios e procedimentos para a seleção dos juízes, aos
requisitos éticos a que os mesmos ficarão sujeitos, às condições de acesso ao ICS pelas
pessoas singulares e pelas pequenas e médias empresas e à organização do
mecanismo de recurso.
A eliminação do “velho ISDS”, e mesmo da ideia de um “ISDS reformado”, foi,
sem qualquer dúvida, a mais importante conquista do Parlamento Europeu no âmbito
das negociações do CETA. Um sucesso que será, porventura, pouco conhecido, mas
que é fundamental para compreender o voto favorável do Parlamento à versão final do
acordo e para fazer prova de que o Parlamento Europeu soube dar ouvidos às
preocupações dos cidadãos. A verdade é que o Parlamento fez uso de todo o seu
poder político para vencer enormes resistências e forçar a renegociação de um acordo
comercial que se dizia “fechado”, conseguindo que fosse consagrada, já na 25ª hora,
uma solução bastante mais satisfatória18.
O novo sistema de arbitragem pública consagrado no CETA, o ICS, é já
considerado uma referência exemplar para a negociação de futuros acordos comerciais
e é visto como uma etapa importante para a criação de um tribunal multilateral de
investimento - que deverá constituir, a prazo, o órgão jurisdicional responsável pela
resolução de litígios entre os investidores e os Estados, provavelmente no âmbito da
Organização Mundial do Comércio.
18
As exigências posteriormente feitas pela região belga da Valónia, num derradeiro braço-de-ferro que
adiou por alguns dias a assinatura do CETA, limitaram-se, no que ao ICS diz respeito, a desenvolver as
exigências que já tinham sido feitas pelo Parlamento Europeu e a obter garantias e esclarecimentos
adicionais.
Acordo CETA: O Parlamento Europeu fez a diferença
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 194
4. CETA: UMA OPORTUNIDADE PARA A UNIÃO EUROPEIA E PARA PORTUGAL?
Para a União Europeia, o CETA é um acordo comercial e de investimento de
enorme importância estratégica, mais até do que estritamente económica. É evidente
que a dimensão da economia canadiana, embora não negligenciável, não tem o poder
de fazer a diferença no desenvolvimento da muito maior economia europeia. Isso
mesmo, aliás, está bem patente nos estudos de impacto económico que foram
realizados19. Mas, num momento em que sopram fortes os ventos do protecionismo, a
partilha de princípios e valores entre a União Europeia e o Canadá confere uma
extraordinária oportunidade de estabelecer um acordo comercial progressista, capaz
de garantir a salvaguarda dos serviços públicos e de elevados padrões de proteção
ambiental e social, constituindo-se como uma referência exemplar para toda uma nova
geração de acordos comerciais. E é exatamente isso que é o CETA: um acordo
comercial progressista como nenhum outro alguma vez celebrado.
Por outro lado, este é também um acordo economicamente equilibrado, que
cria novas oportunidades de acesso ao mercado canadiano - incluindo o mercado
descentralizado de contratos públicos - que são vitais para as empresas europeias
crescerem e criarem emprego.
Para os interesses económicos de Portugal, o CETA é um acordo especialmente
importante. Atualmente, mais de 1220 empresas portuguesas exportam para o Canadá,
90% das quais são pequenas e médias empresas. E 12.000 postos de trabalho em
Portugal apoiam-se nas exportações para o Canadá20. Embora não exista um estudo de
impacto específico do CETA na economia portuguesa, estes números terão certamente
tendência a subir, até porque Portugal tem uma significativa margem de crescimento
no Canadá, onde reside uma importante comunidade portuguesa21.
Quatro componentes do acordo são especialmente importantes para Portugal:
19
Estima-se que o CETA poderá resultar num aumento de 23%, ou 26 mil milhões de euros, nas trocas
comerciais bilaterais de bens e serviços e num crescimento do PIB da UE em 12 mil milhões por ano. 20
Dados da DG Comércio. 21
Cerca de 550 mil portugueses e lusodescendentes vivem no Canadá.
Pedro Silva Pereira
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 195
Primeiro, a eliminação de praticamente todas (99%) as tarifas
aduaneiras logo a partir do primeiro dia da aplicação provisória do
acordo (prevista para 1 de julho de 2017), o que favorece em muito
os nossos setores tradicionais de exportação hoje prejudicados por
ruinosos picos tarifários22.
Segundo, a proteção23 de 20 produtos alimentares tradicionais
portugueses24 (num total de 145 indicações geográficas
europeias25), o que irá favorecer, sobretudo, as pequenas e médias
empresas e deve ser considerado como um progresso muito
significativo porque o Canadá tradicionalmente opunha-se ao
próprio conceito de indicações geográficas europeias.
Terceiro, o acesso das empresas europeias ao mercado de contratos
públicos a todos os níveis da administração do Canadá (províncias,
territórios e municípios, para além da maioria das agências
governamentais e das empresas estatais)26.
22
Existem hoje picos pautais em produtos como têxteis-lar, calçado, cutelaria, produtos cerâmicos e
mobiliário. Por exemplo, a taxa aduaneira entre o Canadá e a UE é de 17% para os artigos de têxteis-lar.
Nos produtos agrícolas, ultrapassado o período de phasing out, serão eliminadas as tarifas sobre 92% das
linhas tarifárias em bens como preparados de frutas e legumes, assim como vinhos e bebidas espirituosas.
O CETA exclui da liberalização pautal o setor dos ovos e das aves de capoeira e oferece acesso limitado ao
mercado para vários produtos sob a forma de contingentes pautais (caso da carne de porco, de vaca, do
milho doce e do trigo comum para a UE; e caso dos laticínios para o Canadá). 23
Concretamente, trata-se da proteção contra imitações ou tentativas para induzir o consumidor em erro
quanto à verdadeira origem de um produto. O acordo entre a UE e o Canadá, de 2004, sobre o comércio
de vinhos e de bebidas espirituosas, já pôs fim à utilização genérica de denominações europeias,
protegendo nomeadamente as denominações portuguesas Porto e Madeira. 24
Azeite de Moura, Azeite de Trás-os-Montes, Azeite do Alentejo, Azeite da Beira Interior, Azeite do Norte
Alentejano, Azeite do Ribatejo, Pera Rocha do Oeste, Ameixa d’Elvas, Ananás dos Açores/ S. Miguel,
Chouriça de carne de Vinhais, Linguiça de Vinhais, Chouriço de Portalegre, Presunto de Barrancos, Queijo
Serra da Estrela, Queijos da Beira Baixa, Queijo de Castelo Branco, Queijo Amarelo da Beira Baixa, Queijo
Picante da Beira Baixa, Salpicão de Vinhais. Queijo S. Jorge (proteção parcial). O CETA prevê a possibilidade
de adicionar nomes de outros produtos agrícolas de alta qualidade no futuro. 25
Há bem mais do que 145 indicações geográficas registadas no plano europeu, mas muitas delas não são
exportadas para fora da União e portanto não relevam para este tipo de acordo. 26
Estima-se que o mercado de contratos públicos das províncias canadianas valha duas vezes mais do que
o mercado federal.
Acordo CETA: O Parlamento Europeu fez a diferença
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 196
Quarto, a facilitação da mobilidade dos prestadores de serviços
europeus, a par de um novo enquadramento para futuros acordos
sobre reconhecimento mútuo de habilitações profissionais27.
Em suma, os setores portugueses do vinho, calçado, confeção, fileira da casa,
cortiça e produtos alimentares (como o queijo e o azeite) poderão beneficiar
consideravelmente de novas oportunidades de negócio proporcionadas pela entrada
em vigor do CETA. Por outro lado, e como sublinhado pela Câmara de Comércio e
Indústria Portuguesa (CCIP), espera-se que Portugal possa também conquistar novas
posições no mercado canadiano em sectores como o farmacêutico, o automóvel, as
tecnologias da informação ou as energias renováveis. Importante é que os empresários
portugueses estejam atentos a estas novas oportunidades.
NOTAS FINAIS
A concluir, importa dizer que o CETA é um acordo que inaugura uma nova
geração de acordos comerciais, mais progressista e mais atento à salvaguarda do
interesse público, do ambiente e dos direitos sociais. Tem uma enorme importância
estratégica para a União Europeia porque estabelece um novo padrão para as relações
comerciais, mais exigente e mais consentâneo com os valores europeus, que se espera
possa servir de referência para o futuro do comércio internacional, em direção a uma
globalização mais regulada.
Como assembleia representativa dos cidadãos europeus, o Parlamento cumpriu
a sua missão no caso do CETA: deu ouvidos às preocupações da sociedade civil e fez
valer a sua força para conseguir o que já parecia impossível - a eliminação do ISDS, a
consagração de um novo sistema público de arbitragem (o ICS) e o respeito por valores
tão importantes como a salvaguarda do “direito a regular” em nome do interesse
27
O CETA inclui disposições sobre a entrada e a estadia temporária de pessoas singulares na UE e no
Canadá, facilitando a mobilidade de prestadores de serviços contratuais, investidores, profissionais
independentes, bem como de outros visitantes com finalidades empresarias. Será também mais fácil a
entrada e estadia temporária de prestadores de serviços em profissões reguladas (por ex. prestadores de
serviços jurídicos, contabilísticos, arquitetónicos). O CETA estabelece, ainda, um quadro geral para a
negociação de acordos sobre reconhecimento mútuo de qualificações profissionais (por ex. arquitetos,
engenheiros).
Pedro Silva Pereira
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 197
público. Consequentemente, o Parlamento Europeu deu voto favorável à versão final
do CETA, tal como teria certamente votado contra as versões anteriores que ainda
mantinham, embora retocado, o “velho ISDS”. Valeu, pois, a pena. Tal como valeu a
pena o Tratado de Lisboa confiar ao Parlamento Europeu um papel decisivo na Política
Comercial Comum.
Para Portugal e para as empresas portuguesas, este acordo abre, sem dúvida,
interessantes oportunidades. Oxalá sejam bem aproveitadas.
Os novos muros da Europa
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 198
OS NOVOS MUROS DA EUROPA1
NUNO CUNHA RODRIGUES2
RESUMO
Passados trinta anos desde a adesão de Portugal às então Comunidades Europeias e sessenta anos desde
a celebração do Tratado de Roma, a União Europeia enfrenta a construção de “novos muros”, físicos,
económicos e políticos, erguidos discretamente ao longo dos anos, que ameaçam o futuro desta região. O
artigo descreve os “novos muros da Europa” e expõe, no final, soluções para restaurar a confiança dos
cidadãos nas instituições europeias.
Palavras-chave: União Europeia, crise, refugiados, União Económica e Monetária, valores democráticos.
ABSTRACT
The new walls of Europe. Thirty years after the accession of Portugal to the European Communities and
sixty years since the Treaty of Rome, the European Union faces the construction of "new walls", physical,
economic and political ones, erected discreetly over the years, that threaten the future of this region. The
article describes the "new walls of Europe" and sets out, in the end, solutions to restore public confidence
in the European institutions.
Keywords: European Union, crisis, refugees, Economic and Monetary Union, democratic values.
Histórico do artigo: recebido em 27-01-2017; aprovado em 15-04-2017; publicado em 05-05-2017.
Publicação a convite do Conselho Editorial. 1 Comunicação efetuada no dia 14 de novembro de 2016, na Conferência “Luzes e sombras da União
Europeia – 30 anos de Portugal na União Europeia”, organizada pelo Instituto Europeu da Faculdade de
Direito da Universidade de Lisboa que se realizou na Fundação Calouste Gulbenkian. 2 Professor Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e Vice-Presidente do Instituto
Europeu da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Lisboa, Portugal. E-mail:
Nuno Cunha Rodrigues
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 199
Decorridos trinta anos sobre a adesão de Portugal às então comunidades
europeias, suscita-se uma nova interrogação. Há, de facto, “novos muros” na Europa? A
minha resposta é irrestritamente afirmativa.
Como é reconhecido, a Europa construiu-se entre luzes e sombras, acalmias e
sobressaltos, progresso e regressão. A referência a “novos muros” da Europa abrange
não apenas os muros físicos recentemente construídos como forma de impedir o
acolhimento de refugiados mas, igualmente, outras barreiras (económicas, políticas e
legislativas) erguidas discretamente ao longo dos anos.
Na verdade, os Estados membros nunca consensualizaram o modelo de
construção e desenvolvimento da Europa. A dialética fazia-se entre os que sonhavam
com um modelo pan-europeu e os que preferiam uma Europa enquadrada nos
grandes movimentos geoestratégicos; os que trabalhavam para a integração e os que
apostavam na decisão intergovernamental; os que punham o acento tónico no
federalismo e os vigilantes das soberanias nacionais.
A efetivação das liberdades económicas e a inclusão, no acervo comunitário, de
direitos fundamentais e da esfera de cidadania que fermentara, durante séculos, nas
culturas europeias, pareciam ter transformado a Europa numa fortaleza, pela pujança
de uma identidade que reunia o progresso, o desenvolvimento e as garantias que
definem uma Comunidade de Direito. Uma fortaleza no sentido da realização de
equilíbrios em que a paz, o bem estar e a cultura se tornam elementos cruciais para a
afirmação da dignidade da pessoa. Uma fortaleza que une, não divide; que tem as
portas abertas para quem quer entrar ou sair; e que se impõe aos outros pela força da
razão, nunca pela razão da força.
Foi assim que a União Europeia se foi alargando, umas vezes pelos seus
dinamismos naturais, outras para restaurar fronteiras e corrigir alianças e alinhamentos
que tinham sobrado dos conflitos que ensombraram todo o século XX.
Também a liberdade de circulação tinha sido apregoada como primeiro sinal de
uma Europa dos povos.
Os novos muros da Europa
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 200
Porém, aos primeiros abalos, que logicamente atingiram, em primeiro lugar, os
Estados periféricos, a coesão vacilou.
Os decisores de Bruxelas renderam-se ao peso e à eficácia de estratégias
intergovernamentais, rapidamente protagonizadas por directórios, e permitiram que se
substituísse o discurso elíptico, mas cauteloso, até então utilizado, por soluções
impactantes que pareciam ter ficado para trás com a queda do muro de Berlim.
Depois, a Europa do derrube do muro de Berlim e da Carta dos Direitos
Fundamentais, não prestou atenção às intervenções de alguns (poucos) líderes
nacionais e resignou-se à construção de muros destinados a impedir a passagem de
refugiados.
Na Hungria, um muro atravessa a fronteira com a Sérvia, num total de 175
quilómetros. Na Grécia, foi erguida uma vedação com 12,5 quilómetros, junto à aldeia
de Nea Vyssa. Em Calais, um muro com 1,5 quilómetros protegia, até há pouco, a
“selva”, monumento ao desprezo e à humilhação. Na Bulgária, há um muro que separa
parte do país da Turquia, com 30 quilómetros edificados e um projeto que acrescentará
mais 130 quilómetros.
Outros Estados, de que é exemplo a Dinamarca, optaram por soluções menos
fraturantes e publicaram, ou propõem-se publicar, normas que proíbem a permanência
de refugiados.
Paradoxalmente, os muros estão a ser construídos em países de trânsito. O que
também significa que os países de destino (nomeadamente a Alemanha, o Reino Unido
e os países nórdicos) não são observadores desinteressados.
O que fez a União Europeia?
Celebrou, com a Turquia, um acordo sobre refugiados cujos termos, decorrido
mais de meio ano, ainda não são suficientemente conhecidos. Supostamente, a Turquia
aceitará a devolução das pessoas que viajarem clandestinamente do seu território para
a Grécia. Por cada cidadão sírio devolvido à Turquia, a União Europeia permitirá a
entrada legal de um refugiado desta nacionalidade. Em termos simples, troca-se um
refugiado legal por um refugiado ilegal, abstraindo-se do conceito de legalidade e dos
Nuno Cunha Rodrigues
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 201
mecanismos de controlo que estão na base deste abstruso e surpreendente esquema
de troca direta. Adicionalmente, a União Europeia comprometeu-se a: reabrir, em
dezembro de 2016, o dossiê relativo à adesão da Turquia (compromisso de pouca
monta dado o histórico de avanços e recuos da questão Turca…); a liberalizar a
concessão de vistos; a realizar duas cimeiras de alto nível por ano; e, por fim, a pagar à
Turquia 6 mil milhões de euros, a título de ajuda aos refugiados existentes naquele
país.
A União Europeia paga, deste modo, um preço de boa consciência, mantém os
refugiados longe da vista e faz vista grossa ao Direito Internacional, especificamente à
proibição de expulsão de refugiados, prevista nos artigos 32.º e 33.º da Convenção de
Genebra.
Ao fundo da tragédia, emerge o retrato dos refugiados que permanecem na
Turquia, em condições inumanas, condenados a um tempo sem rumo e sem esperança,
quando não despejados no cemitério do Mediterrâneo. Segundo a Human Rights
Watch, cerca de 1,4 milhões de crianças sírias em idade escolar encontram-se neste
momento na Turquia e aí não frequentam qualquer estabelecimento de ensino.
Note-se que o discurso político manipula habilidosamente os factos apelando,
aqui, à questão da emigração irregular. Mas não se trata, porém, de emigração
irregular.
Trata-se de refugiados.
Como referiu o Alto Comissário da Organização das Nações Unidas para os
Refugiados, Filippo Grandi, “91% dos que chegam à Grécia são sírios, iraquianos e
afegãos que fogem de um conflito e de perseguições inomináveis”.
O ideal Europeu parece, assim, estar a descer aos infernos. À beira do precipício,
a Europa protege a sua zona de conforto negociando pequenos gestos.
Aconteceram coisas parecidas nos tempos que precederam a segunda grande
guerra. Nessa altura, também foram anunciados e entregues a tecnocratas anónimos
planos vagos e agendas improváveis.
Os novos muros da Europa
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 202
A verdade, porém, é que os novos muros coexistem com antiquíssimos muros,
invisíveis para os olhos mas, nem por isso, menos perturbadores. Erguem-se nas
capitais de alguns Estados e adquirem estatuto em Bruxelas. Materializam-se numa
complexa teia de normas e princípios que a eurocracia trata como assunto doméstico.
A finalidade é assegurar um modelo que, independentemente das formas e dos rituais,
confie a directórios e, tendencialmente, a um só Estado membro, a definição das
políticas e a gestão do quotidiano.
Os tempos de exceção servem magnificamente para, a pretexto da emergência
e de uma aparente incapacidade de sobrevivência dos países periféricos no mundo dos
grandes, erguer barreiras e multiplicar controlo. As palavras titubeantes e contraditórias
da Comissão Europeia apenas traduzem a sua natureza de decisor de segunda linha.
Mas há ainda o Tratado intergovernamental sobre Estabilidade, Coordenação e
Governação (TECG), que inclui o Pacto Orçamental, a revisão do Pacto de Estabilidade e
Crescimento e o Six-Pack e Two-Pack. Recorde-se, a propósito destes (novos)
instrumentos jurídicos, uma frase proferida por um funcionário anónimo da Comissão
Europeia citado pelo The Economist, em 30 de setembro de 2010, a propósito da
reforma do Pacto de Estabilidade e Crescimento: “We are now like communist central
planners. We know everything.”
O novo enquadramento orçamental aprovado pela União Europeia vive de
conceitos indeterminados como “preço ou custo concorrencial”, “saldo estrutural” ou
“dívida do setor público e privado” e privilegia uma dimensão repressiva dos
desequilíbrios macroeconómicos. Esta situação de liberdades económicas vigiadas traz
para a ribalta a questão da legitimidade democrática na construção europeia e utiliza-a
em diferentes e contraditórios planos. Abriu-se a porta para que a Comissão Europeia
possa limitar e recentrar as soberanias nacionais, ao intervir a priori num plano de
definição das políticas orçamentais macroeconómicas e microeconómicas dos Estados
membros.
Nuno Cunha Rodrigues
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 203
Esta faculdade, que interfere nas propostas de orçamento de cada Estado
membro, está a agudizar as tensões existentes no interior dos Estados e a produzir
efeitos fraturantes, como ficou demonstrado com o Brexit.
Os discursos moralizantes sucedem-se. No caso da Alemanha, com o
argumento da impossibilidade de promover um crescimento homogéneo da economia
europeia, que legitimaria a necessidade de deixar sair os Estados que não conseguem
acompanhar o crescimento económico.
Um discurso com um elevado potencial anestesiante, pois os países do sul da
Europa parecem continuar iludidos pelas baixas taxas de juro e pela estabilidade
cambial induzida pelo Euro. O velho princípio “no taxation without representantion”
passou a ser apenas isso: um velho princípio.
O processo democrático no domínio orçamental foi capturado, sem custos
aparentes, pelas instituições europeias, que não têm de enfrentar a responsabilidade
política pelas suas ações. Federalizou-se, por esta via, o domínio orçamental sem uma
equivalente federalização política. Aprofundou-se, consequentemente, o mal-estar,
pelo definhamento das soberanias dos Estados.
A domesticação da opinião pública é agora feita com recurso à ameaça do
maior dos males, uma espécie de compra da paz em que, de um lado, estão os Estados
submersos por uma dívida impagável e, do outro, os grandes senhores do capital e da
finança.
A crise financeira desencadeada em 2007, na ausência de respostas simples e
eficazes, deu lugar ao pensamento complexo e a teses que procuram explicar as causas
(objetivo comum às análises historicistas) em vez de encontrarem os modelos que
melhor podem assegurar a manutenção da despesa pública numa economia em
degradação com consequente redução de receitas fiscais.3
3 Enumerando dados estatísticos comprovativos deste entendimento, cfr. De Grauwe, P., Why a tougher
stability and growth pact is a bad ideia. Disponível em www.voxeu.org.
Os novos muros da Europa
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 204
Alguém disse que a resposta à crise não pode estar em propostas que nascem
do receio dos mercados e não do amor à Europa. É tão exato quanto
desnecessariamente literário. Diz-se, com verdade, que falta pensamento alternativo.
Importaria, por isso, revisitar o atual modelo de União Económica e Monetária
que, erroneamente, assentou em políticas orçamentais pró-cíclicas, no falso
pressuposto da existência de uma zona monetária ótima e que falhou
estrondosamente perante a crise financeira e os choques económicos assimétricos que
gerou.
Seria, porém, necessário, fazer os diagnósticos sem reincidir em avaliações que
cultivam métodos paternalistas de análise, também aqui traduzidos em muros que
separam os Estados indisciplinados e os Estados bons alunos…
Aquilo que, no início da vigência do Euro, parecia ser um processo natural de
convergência económica, política e social, não resistiu à primeira grande crise financeira
e resulta, agora, num processo de divergência a todos os níveis.
É então tempo de refletir sobre o modelo económico europeu. A escolha incide
entre, por um lado, o chamado modelo social europeu presente nas Constituições da
maior parte dos Estados membros e as conceções neo liberais que nem sempre
oferecem uma grelha coerente de postulados e de leitura.
Não será sem regulação que se enfrentarão os problemas. Mas não será
também com a aprovação de um quadro jurídico meramente repressivo que se
conseguirá debelar e ultrapassar crises financeiras e os desafios da construção
europeia.
Há, todavia, outras situações em que os decisores europeus erguem muros de
silêncio por não saberem ao certo como agir. Veja-se o que se passa na Hungria:
i) O Tribunal Constitucional foi proibido de se pronunciar sobre o conteúdo
das leis e de invocar jurisprudência anterior, o que lhe retirou, na prática, a
possibilidade de escrutinar os poderes legislativo e executivo;
ii) Limitou-se a liberdade de imprensa o que culminou, em outubro deste ano,
com o encerramento do principal jornal diário;
Nuno Cunha Rodrigues
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 205
iii) O Banco Central passou a estar sob tutela política, ao arrepio do disposto
no Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE);
iv) A Constituição passou a prever referências à religião ou à "utilidade social"
dos indivíduos como condição necessária do respeito pelos seus direitos
sociais;
v) Foi suprimida, na Constituição, a palavra "República" para definir o sistema
político do país;
vi) Reformaram-se compulsoriamente os juízes acima dos 62 anos;
vii) Entre mais de quinhentas medidas, criminalizou-se a homossexualidade e
os sem-abrigo e atacaram-se os direitos das mulheres.
Esta situação já tinha sido apreciada, em parte, em 2012, pelo Parlamento
Europeu, na sequência da aprovação de um relatório elaborado pelo eurodeputado
português Rui Tavares. Nesse relatório, eram avançadas propostas no sentido de
estabelecer um “mecanismo para garantir o respeito dos valores comuns da União
Europeia” por meio da criação de uma “Comissão de Copenhaga" destinada a viabilizar
a continuidade dos denominados Critérios de Copenhaga de democracia e Estado de
Direito a exigir aos países candidatos à União.
Mas a União Europeia nada fez. Preferiu recordar periodicamente e de forma
obstinada, os “critérios de convergência” económicos ou os critérios da dívida e do
deficit que devem ser respeitados pelos Estados membros. Prefere discutir, durante
semanas a fio, se Portugal teve mais uma décima ou menos uma décima de deficit
orçamental.
A verdade é que ganhou foros de cidadania o artigo 50.º do Tratado da União
Europeia (TUE) que o Reino Unido pretende invocar para abandonar a União Europeia,
como vimos anteriormente.
Quanto ao artigo 7.º do TUE, nos termos do qual o Conselho pode verificar a
existência de um risco manifesto de violação grave dos valores referidos no artigo 2.º
por parte de um Estado membro, o silêncio disfarça a inércia. Recordo que este artigo
impõe “o respeito pela dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade,
Os novos muros da Europa
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 206
do Estado de direito e do respeito pelos direitos do Homem, incluindo os direitos das
pessoas pertencentes a minorias”. Caso entenda verificada a violação de alguns destes
princípios, o Conselho pode “decidir suspender alguns dos direitos decorrentes da
aplicação dos Tratados ao Estado membro em causa, incluindo o direito de voto do
representante do Governo desse Estado membro no Conselho”. Recorde-se o
precedente da Áustria e a iniciativa então adotada pelo conselho de ministros europeu.
Apesar de tudo, os tempos eram outros. Há vozes a clamar no deserto? Há.
Ainda recentemente, o Ministro dos Negócios Estrangeiros do Luxemburgo
suscitou a questão, acusando o governo húngaro de “violações massivas” dos valores
fundamentais da União Europeia e exigindo que a Hungria seja suspensa ou até
expulsa porque, e estou a citar, “é a única hipótese que temos para proteger a coesão e
os valores da União Europeia”. Acrescentou ainda Jean Asselborn: “A Hungria já esteve
mais longe de começar a ordenar que [as tropas] abram fogo contra os refugiados”
concluindo que os “muros húngaros estão a ficar cada vez mais altos, mais compridos e
mais perigosos.”
Será que a Europa, que soube enfrentar regimes totalitários ao longo do século
XX, não sabe agora, no século XXI, enfrentar regimes populistas e nacionalistas,
construídos sobre frágeis democracias e se intimida perante estes? Estaremos,
lentamente, a afastar-nos do ideal democrático em que assenta a União Europeia?
Como restaurar a confiança dos cidadãos nas instituições europeias?
Distinguiria medidas de natureza política e medidas de natureza económico
financeira. As primeiras implicam o reforço da autoridade política da União, uma efetiva
accountability e o restabelecimento da confiança mútua entre Estados membros,
tornando visíveis, aos olhos dos povos da Europa, os benefícios da integração. A título
de exemplo, é fundamental incrementar a interação com os parlamentos nacionais,
protegendo os espaços de subsidiariedade e permitindo, dessa forma, um
aprofundamento do processo político e económico baseado em escolhas dos cidadãos.
No âmbito das medidas de natureza económico-financeira, a tendência
centrípeta de atração de poderes, por parte da União Europeia, deve ser temperada
Nuno Cunha Rodrigues
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 207
com o reforço dos meios financeiros para que, em tempo de crise, seja possível
prosseguir verdadeiras políticas redistributivas, inerentes ao projeto de solidariedade
necessário à promoção de uma certa ideia de identidade europeia. O que implica,
necessariamente, o reforço do orçamento da União Europeia bem como a adoção de
políticas financeiras lógicas e coerentes que responsabilizem os Estados membros,
nomeadamente no que se refere a políticas comerciais. Inscreve-se nesta rubrica a
atenção a casos, como aquele que ocorre na Alemanha, de superavit da balança
comercial que são penalizadores para outros Estados membros, no contexto do
mercado interno, por produzirem efeitos de assimetria económica e disfuncionalidades.
Será igualmente de ter em conta a urgência de olhar para a competitividade da
economia de Estados mais afectados pela crise, como Portugal.
Não se trata propriamente de inovar. Estávamos neste debate quando,
subitamente, no verão passado, sopraram ventos inquietantes do outro lado do
Atlântico. Foram observados como fait divers e como caricatura de uma absoluta
improbabilidade. Tornaram-se agora realidade. Há novíssimos muros à espreita, agora
também do outro lado do atlântico.
É, assim, tempo de revisitar os pais fundadores e o espírito que animou os
diferentes movimentos, encontros e associações surgidos no pós-guerra – como os
Encontros Internacionais de Genebra (1946) ou o Congresso de Haia (1948) –, todos
defensores de uma ideia de unidade europeia forjada no diálogo de culturas, fundada
em valores éticos e humanistas, numa Europa que congrega singularidades que a
distingue de outros continentes.
Decorridos trinta anos desde a adesão de Portugal às (então) comunidades
europeias, a Europa aproxima-se de um tempo novo em que refletir e agir é
necessário…
DISCURSOS
Identidade europeia: Quem são os europeus de hoje?
Carlos Coelho
Carlos Coelho
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 209
IDENTIDADE EUROPEIA: QUEM SÃO OS EUROPEUS DE HOJE?
DISCURSO DO DEPUTADO AO PARLAMENTO EUROPEU, CARLOS COELHO
Por ocasião do Colóquio “Identidade(s), Integração e Laicidade na Europa”,
que teve lugar nos dias 11 e 12 de maio de 2015, na Fundação Calouste
Gulbenkian, em Lisboa.
RESUMO
Este discurso ensaia uma resposta à pergunta “Quem são os Europeus de hoje?”, apresentando algumas
conclusões. O ponto de partida é o reconhecimento da diversidade e as assimetrias demográficas,
económicas, sociais, religiosas. Nota também que a Identidade Europeia se faz mais por oposição do que
por adesão e que, apesar da instituição da cidadania europeia, a identidade nacional permanece mais
forte. No entanto, conclui-se que os Europeus partilham cada vez mais preferências comuns, receios
comuns, escolhas comuns. E, por isso, apesar da perceção de que não o são, a realidade sugere que os
europeus são cada vez mais europeus.
Palavras-chave: identidade europeia, cidadania europeia, religião na Europa.
ABSTRACT
European Identity: Who are the Europeans today? This speech attempts to answer the question “Who are
the Europeans of today?” pointing at some conclusions. The starting point is the acknowledgement of the
European demographic, economic, social and religious diversity, also recognizing that the European
identity is conceived more by opposition to something rather than adherence. It is also pointed out that,
despite the creation of European citizenship, national identities remain stronger. Nonetheless, it is
concluded that Europeans share increasingly more their preferences, fears and choices and therefore,
despite a contrary perception, Europeans are becoming more Europeans.
Keywords: European identity, European citizenship, religion in Europe.
Identidade europeia: quem são os europeus de hoje?
© Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2017 210
Pergunta-se: "quem são os europeus de hoje?"
Sei bem que a Europa é mais do que a União Europeia. Mas para responder à
pergunta, insisto, por facilidade, na identificação entre as duas realidades. Assim, a
Europa de que falo é sobretudo a União Europeia.
Somos 500 milhões, com tendência a diminuir e a envelhecer.
A Comunidade começou com seis países (França, Alemanha, Itália, Bélgica,
Luxemburgo e Países Baixos) e alargou-se sucessivamente a nove, dez, doze, quinze,
vinte e cinco, vinte e sete e os atuais vinte e oito Estados membros.
Num debate em Estrasburgo no plenário do Parlamento Europeu, o primeiro-
ministro italiano, Matteo Renzi, afirmou que, se a Europa quisesse fazer uma selfie,
estaria a fotografar uma tia envelhecida. E há alguma verdade nesta caricatura. Os
europeus são mais mulheres que homens e mais velhos que jovens. As faixas etárias
mais elevadas representam a maior parte dos cidadãos europeus.
A evolução demográfica é agravada pela baixa taxa de natalidade, o que gera
aliás uma perplexidade económica e social. É frequente assistirmos em alguns países a
um grande crescimento da sua população mais jovem, com assinaladas dificuldades em
encontrar respostas suficientes no mercado de trabalho. Na Europa, nem o facto de a
população jovem diminuir faz com que o desemprego juvenil seja menos preocupante.
Temos um elevado nível de desemprego juvenil. Se o desemprego é sempre um
drama social, uma alta taxa de desemprego jovem confronta-nos com problemas sérios
relativos ao futuro da Europa. E esse desemprego não é só excessivo como é
assimétrico. Há uma enorme diferença entre os 7% de jovens desempregados na
Alemanha com os 50% na Grécia ou em Espanha.
Com 28 Estados membros, somos uma Europa maior, mais forte mas mais
dividida e com mais disparidades.
Um exemplo são as línguas oficiais. Hoje, no Parlamento Europeu, temos vinte e
quatro línguas de trabalho que correspondem às vinte e quatro línguas oficiais da
União Europeia.
Carlos Coelho
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 211
Não era por acaso que, quer Francisco Lucas Pires, quer Vasco Graça Moura
(duas referências do pensamento e da cultura que infelizmente já não estão entre nós
mas deixaram uma marca no Parlamento Europeu que prestigiou Portugal), falavam
sempre nas culturas europeias sublinhando o plural.
E isto remete-nos para a questão da Identidade Europeia.
Relembro as palavras de Eduardo Lourenço que afirmou a «cosmopolita e
indefinível identidade europeia».
É uma identidade que é mais evidente por contraposição, quando a
confrontamos com identidades que lhe são externas. Sentimo-nos mais europeus
quando estamos em África, na Ásia, nas Américas ou em qualquer outro canto do
mundo. E somos reconhecidos como europeus por esses povos. Por vezes olham-nos
com inveja, outros com ressentimentos e outros ainda, com malícia. Dizem-nos que
temos "tiques" europeus ou "manias" europeias. Enfim... somos europeus.
Diria, portanto, que é claro que existem europeus fora da Europa, mas não
estou tão certo que existam europeus na Europa. Porque, quando estamos na Europa,
não nos definimos como europeus. Somos Portugueses, Franceses, Espanhóis, Alemães,
etc.
Temos de reconhecer que, nesta nossa Europa comum, a identidade
nacional é muito mais forte do que a identidade europeia.
É verdade que criámos juridicamente a Cidadania Europeia, mas ela não é
verdadeiramente sentida e assumida pelos cidadãos europeus. Só 26% se consideram
convictamente cidadãos europeus e 39% confessam-se "em grande medida" cidadãos
europeus. Ou seja: apenas metade dos europeus se reconhecem cidadãos da Europa e
um terço declaram de forma clara que não se sentem cidadãos da União. No podium
dos menos europeus encontramos a Bulgária, a Itália, a Grécia, Chipre, o Reino Unido e
a Hungria. Quer Portugal, quer a França encontram-se no meio da tabela. Por sinal,
Portugal um pouco mais europeu do que a França...
Identidade europeia: quem são os europeus de hoje?
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E se podemos "medir" a concretização prática dessa cidadania europeia temos
um bom aferidor: a taxa de participação nas eleições para o Parlamento Europeu. Ora,
ela tem vindo a descer progressivamente e o ano passado teve o valor mais baixo de
sempre: só 42% dos europeus foram às urnas e, em Portugal, esse valor foi de 33%.
Valorizamos porém conquistas da União Europeia.
Valorizamos a paz, a livre circulação de pessoas, bens, serviços e capitais, o Euro,
o programa Erasmus e o Modelo Social Europeu.
Com todas as crises e dificuldades, o Modelo Social Europeu é a expressão do
esforço que fazemos no apoio social. A União Europeia representa só 7% da população
mundial, tem 22% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial e é responsável por 50% da
despesa social de todo o mundo. Isso diz bem do nível de bem-estar na Europa, mas
também dos desafios que coloca à nossa competitividade.
Somos uma Europa que encoraja e facilita a mobilidade e isso tem contribuído
para nos conhecermos melhor e para o aumento da tolerância entre os europeus. Em
vinte anos, o número de europeus a viverem e trabalharem noutro Estado membro que
não aquele onde nasceram, triplicou. Eram cerca de 5 milhões em 1995 e são hoje mais
de 13 milhões.
Três milhões de europeus já beneficiaram do programa Erasmus. Esta iniciativa,
referida de forma excelente pelo Comissário Carlos Moedas na mensagem gravada que
ouvimos no início deste debate, é um enorme sucesso. Hoje falamos na "geração
Erasmus". Enquanto que no primeiro ano de existência do programa (1987/1988) foram
apoiados pouco mais de 3 200 estudantes, em 2012/2013 foram 200 000 os estudantes
apoiados e 55 000 os estágios concedidos. E aqui também há uma maioria de mulheres
(60%).
Os europeus descobriram também novas estruturas familiares, que resultam de
escolhas pessoais e da mudança de hábitos culturais, mas também do aumento do
número de divórcios. Em Portugal, em 1960 havia um divórcio por cada 100
casamentos. Em 2012, eram 73 divórcios por cada 100 casamentos. Esta tendência,
embora de uma forma menos gritante, repete-se um pouco por toda a Europa. Entre
Carlos Coelho
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 213
1960 e 2012, a Bélgica passou de 7 para 67, a Holanda de 6 para 49 e a Dinamarca de
18 para 55.
Na religião já fomos mais homogéneos.
Hoje os europeus definem-se como: 48% Católicos; 12% Protestantes; 8%
Ortodoxos; 4% outros cristãos; 2% Muçulmanos; 1% outras religiões (judeus, budistas,
hindus, etc.); 7% Ateus; e 16% Agnósticos.
Muitos europeus acreditam em Deus, outros acreditam que existe um espírito
superior, mas não se revêem numa figura divina e outros não acreditam de todo. O
país menos crente é a França com 40% de ateus. O mais crente é Malta onde 94%
acreditam em Deus. Em Portugal, 70% acreditam em Deus, 15% acreditam num espírito
superior e 12% são ateus.
Os europeus defendem a liberdade religiosa mas também a liberdade de
expressão.
Infelizmente e num passado recente, as notícias mais vistas são de clérigos que
pregam o fundamentalismo: são imãs radicais que pregam o ódio e o jihadismo; são
cristãos fundamentalistas que organizam queimas do Alcorão; são rabis que publicam
doutrina a considerar que matar árabes não é pecado. Parece que vivemos um
retrocesso civilizacional, que recuámos séculos e que está outra vez na moda essa coisa
horrível que é matar em nome de Deus.
E há fenómenos europeus comuns.
Permitam-me citar cinco:
1 - A racionalidade na pertença
A despeito de haver opiniões diferentes sobre a natureza da Europa, todos os
Estados parecem preferir estar dentro da União Europeia. Há uma noção de proteção. E
que o interesse de cada um é melhor defendido dentro da União. Mesmo quando o
discurso se radicaliza. Veja-se o que aconteceu na Grécia. As sondagens no dia da
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eleição previam (e bem, porque acertaram) a vitória do Syriza. As mesmas sondagens
revelaram que entre 70% a 80% do povo grego queria continuar no Euro. Esta
racionalidade é, na minha opinião, um dos embaraços do atual governo grego que
sabe que, se romper a corda, arrisca-se a perder grande parte da sua base eleitoral.
2 - A radicalização da vida política
Assistimos à proliferação (e ao sucesso eleitoral) de diversos partidos radicais,
xenófobos, racistas e/ou eurofóbicos. O United Kingdom Independence Party (UKIP) no
Reino Unido, só elegeu um deputado devido ao sistema maioritário mas é hoje o
terceiro partido britânico, com mais de 12% dos votos. A Frente Nacional em França
aparece nalgumas sondagens como o primeiro partido francês. Também o Aurora
Dourada na Grécia, o Jobbik na Hungria, o Partido do Povo na Dinamarca, o Partido da
Liberdade na Áustria, o Partido da Liberdade na Holanda, o Movimento Cinco Estrelas
na Itália, aão alguns (entre muitos outros) exemplos que alastram por essa Europa fora.
3 - A intolerância que coloca em causa os valores europeus
Esta intolerância regista-se relativamente a diversos fenómenos tais como:
• A imigração de países terceiros, que 57% dos europeus vê como uma
realidade negativa e apenas 35% como positiva;
• O valor da Liberdade, muitas vezes secundarizado face a exigências
securitárias;
• A proteção de dados, por vezes reduzida a privilégio dispensável;
• O valor da vida, quando responsáveis políticos europeus sugerem que não
se deviam salvar vidas no Mediterrâneo para não criar um "pull-factor".
4 - A pulverização dos parlamentos
Se é verdade que o sistema maioritário inglês escondeu as consequências dessa
realidade no Reino Unido, olhemos para as sondagens na nossa vizinha Espanha e para
a realidade comum na grande maioria dos Estados membros e até no Parlamento
Europeu: verifica-se a erosão eleitoral dos partidos considerados do mainstream e o
Carlos Coelho
Análise Europeia - Revista da Associação Portuguesa de Estudos Europeus 2 (3) 215
surgimento de novos atores, tornando mais difíceis e complexas as soluções estáveis
de governo.
5 - Interdependência das economias
Não é apenas evidente nos sistemas económico e financeiro, como gera
consensos europeus relativamente a objetivos comuns:
• 73% dos europeus concordam com a necessidade de uma política
energética comum;
• 71% com uma política comum de imigração;
• 61% com a aplicação de dinheiro público para estimular a economia;
• 58% com o tratado de livre comércio entre a União Europeia e os Estados
Unidos da América;
• 51% com a re-industrialização da Europa.
Mas há também Receios Comuns:
• Nos últimos doze meses, opiniões pessimistas ultrapassaram as otimistas
no que se refere à evolução da economia europeia;
• O impacto da crise económica no emprego divide os europeus: enquanto
metade considera que já ultrapassámos o pior, outra metade receia que o
pior esteja ainda para vir;
• O crescimento da imigração é visto como um receio, como atrás já referi.
Minhas senhoras e meus senhores,
Parece-me, assim, claro que, a despeito de não nos sentirmos europeus ou não
conseguirmos definir o que isso é, somos cada vez mais europeus, parecidos nas
escolhas, nas preferências e nos receios.
E há um espaço de ambiguidade entre o que já não somos e o que não
sabemos se queremos ser, bem traduzido nas palavras de Eduardo Lourenço que lhe
peço emprestadas para terminar a minha intervenção:
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A Europa real é uma coleção de identidades que já não têm nem a capacidade
de se viver plenamente como nações nem a força de querer e imaginar a
futura Europa como uma nova espécie de nação
Muito obrigado.
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4.2. Quadros
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horizontais interiores e exteriores, ficando ao critério do(s) autor(es) a inclusão de
linhas verticais interiores e exteriores.
4.3. Abreviaturas e siglas
A utilização de abreviaturas e siglas deve ser restringida ao máximo. A designação
completa à qual se refere uma abreviatura ou uma sigla deve preceder de uma primeira
indicação destas no texto (ex.: Organização das Nações Unidas (ONU)), a não ser que se
trate de uma unidade de medida padrão (ex.: m (metros)). Não devem ser utilizados
pontos nas siglas (ex.: UE em vez de U.E.).
4.4. Números
Os números, quando não forem seguidos por unidades de medida, deverão ser
apresentados por extenso, de primeiro a décimo e de um a dez (inclusive), e por
algarismos a partir deste último número. As unidades de milhar devem ser separadas
por um espaço (ex.: 1 500).
4.5. Citações
As citações pouco extensas (até 3 linhas) devem ser incorporadas no texto, entre aspas.
As citações mais longas serão recolhidas e formatadas em letra de tamanho inferior ao
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do texto (tamanho 10), sem aspas, com um avanço de parágrafo de 1 cm à esquerda e
à direita. Todas as citações de autores estrangeiros devem ser traduzidas, salvo casos
especiais que justifiquem citar-se o original.
As interpolações são identificadas por meio de parênteses retos [ ], enquanto que as
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