analize do filme o enigma de kaspar hauser

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O filme “O enigma de Kaspar Hauser” nos faz refletir sobre questões como a aquisição da linguagem e se esta aquisição estaria ligada com as experiências vividas no “mundo físico”, além de outras questões interessantes como até que ponto a linguagem é capaz de alcançar o pensamento? Kaspar Hauser é um rapaz que vive há anos trancado em um quarto escuro, ele jamais saiu de lá, e jamais teve algum tipo de contato social. Por conta destas condições, Kaspar além de não falar também não possui parte de suas funções motoras. The Enigma of Kaspar Hauser (Photo credit: Wikipedia) A partir daí podemos compreender o quanto, não somente o convívio social, mas também experiências simples que vivenciamos desde pequenos em nosso dia a dia, contribuem para o processo de assimilação e assim, desenvolvimento da fala. Mesmo Kaspar saindo da clausura e passando a conviver em sociedade, para ele, nada faz sentido. Para ele, seu quarto é maior que a torre, apenas porque ao se virar, de todos os ângulos, ele ainda pode ver as paredes, já a torre, ao se virar, ela “desaparece”. Outro ponto importante é a questão de como o medo pode ser algo criado, e não um evento natural. Kaspar é atraído por uma vela, mas, após se queimar, aprende que a o fogo machuca e passa a ter medo. Contudo, observamos que mesmo aprendendo a falar e escrever, Kaspar não compreende os signos. Quando nós falamos a palavra cadeira, por exemplo, automaticamente nos vem à cabeça a imagem de uma cadeira, mas para Kaspar isso era impossível, uma vez que ele jamais viu uma cadeira, o que reforça a importância do processo de assimilação, que nada mais é do que um processo cognitivo, que consiste em classificar novos eventos com base em esquemas já existentes. Conclusão O caso de Kaspar Hauser serve para ilustrar o erro básico de uma organização social fundada sobre os princípios do racionalismo positivista. Mostra-nos que a "humanização" do homem, entendida como socialização, não é uma decorrência biológica da espécie, mas conseqüência de um longo processo de aprendizado com o grupo social. Através desse processo, o indivíduo se integra no grupo em que nasceu, assimilando o conjunto de hábitos e costumes característicos desse grupo. Participando da vida em sociedade, aprendendo suas normas, valores e costumes, o indivíduo está se

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uma analise antropológica sobre o filme

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Page 1: Analize Do Filme o Enigma de Kaspar Hauser

O filme “O enigma de Kaspar Hauser” nos faz refletir sobre questões como a aquisição da linguagem e se esta aquisição estaria ligada com as experiências vividas no “mundo físico”, além de outras questões interessantes como até que ponto a linguagem é capaz de alcançar o pensamento?Kaspar Hauser é um rapaz que vive há anos trancado em um quarto escuro, ele jamais saiu de lá, e jamais teve algum tipo de contato social. Por conta destas condições, Kaspar além de não falar também não possui parte de suas funções motoras.The Enigma of Kaspar Hauser (Photo credit: Wikipedia)A partir daí podemos compreender o quanto, não somente o convívio social, mas também experiências simples que vivenciamos desde pequenos em nosso dia a dia, contribuem para o processo de assimilação e assim, desenvolvimento da fala.Mesmo Kaspar saindo da clausura e passando a conviver em sociedade, para ele, nada faz sentido. Para ele, seu quarto é maior que a torre, apenas porque ao se virar, de todos os ângulos, ele ainda pode ver as paredes, já a torre, ao se virar, ela “desaparece”.Outro ponto importante é a questão de como o medo pode ser algo criado, e não um evento natural. Kaspar é atraído por uma vela, mas, após se queimar, aprende que a o fogo machuca e passa a ter medo.Contudo, observamos que mesmo aprendendo a falar e escrever, Kaspar não compreende os signos. Quando nós falamos a palavra cadeira, por exemplo, automaticamente nos vem à cabeça a imagem de uma cadeira, mas para Kaspar isso era impossível, uma vez que ele jamais viu uma cadeira, o que reforça a importância do processo de assimilação, que nada mais é do que um processo cognitivo, que consiste em classificar novos eventos com base em esquemas já existentes.Conclusão

O caso de Kaspar Hauser serve para ilustrar o erro básico de uma organização social fundada sobre os princípios do racionalismo positivista.

Mostra-nos que a "humanização" do homem, entendida como socialização, não é uma decorrência biológica da espécie, mas conseqüência de um longo processo de aprendizado com o grupo social.

Através desse processo, o indivíduo se integra no grupo em que nasceu, assimilando o conjunto de hábitos e costumes característicos desse grupo. Participando da vida em sociedade, aprendendo suas normas, valores e costumes, o indivíduo está se socializando, reprimindo suas características instintivas e animais e desenvolvendo as sociais e culturais, fazendo, assim, a "passagem da natureza para a cultura," aprendendo a ver com os "óculos sociais," tornando-se, como nos disse C. Dickens, "um animal de costumes."

Kaspar Hauser nunca se transformou nesse animal de costumes; no máximo, poderia ser visto como "domesticado" pela sociedade da época.

Alguém como Kaspar Hauser que enxergava, mesmo na escuridão, e que ouvia os "gritos do silêncio" (coisas inconcebíveis para o homem "civilizado"), não poderia ser visto como "normal."

Mesmo tendo aprendido a andar, falar e escrever e apesar de haver internalizado símbolos de comportamentos, Kaspar Hauser nunca seria considerado um "igual" pela comunidade de Nuremberg, pois sua história de vida estava inevitavelmente marcada pelo estigma da rejeição.Assim, é possível perceber que o fato de Kaspar Hauser não ter sido inserido na vida social como qualquer outro ser humano o impossibilitou de desenvolver, não apenas a linguagem,

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mas também a consciência de si. Quando encontrado ele não possuía noção de identidade, visto que é no contato com o outro que o ser humano se constrói e percebe-se como ser único e, ao mesmo tempo, como parte do mundo que o cerca. Consequentemente, mesmo depois que aprendeu a andar, a sentar-se à mesa e a falar, toda complexidade que envolvia a língua, seus signos, símbolos e até própria vida também não lhe fazia sentido como fazia para os outros seres humanos. De acordo com Sapir: “A linguagem é uma grande força de socialização, provavelmente a maior que existe. Com isso não queremos dizer apenas o fato mais ou menos óbvio de que a interação social dotada de significado é praticamente impossível sem a linguagem, mas que o mero fato de haver uma fala comum serve como um símbolo peculiarmente poderoso da solidariedade social entre aqueles que falam aquela língua”.De acordo com o filme, Hauser sobreviveu, porque alguém o alimentou durante os anos em que ficou isolado. Sob esta perspectiva, o homem não vive sozinho, é um ser que precisa do outro para viver e que está em constante construção, o que significa que, ao longo de toda a sua vida, está apto a aprender.

Kaspar Hauser, desde a mais tenra idade, foi privado do convívio social. A partir daí sua triste trajetória nos aponta muitos resultados obtidos por sua privação cultural, pelo não desenvolvimento de sua linguagem. O fato de ter vivido muito tempo isolado de outras pessoas (até mesmo seu alimento era deixado à noite, quando dormia) trouxe a Kaspar Hauser graves conseqüências em sua formação como sujeito, como indivíduo.

Quando Kaspar é retirado do cativeiro e mesmo muito tempo depois, já com a linguagem desenvolvida é possível perceber através de seu olhar atônito, o espanto, o estranhamento frente à paisagem, frente às pessoas e suas reações.

Através do filme podemos fazer uma reflexão sobre o papel da cultura, o papel da linguagem em vários aspectos. Para Kaspar Hauser todas as frases são vazias de significado porque não viveu e experiência da linguagem nas relações intersubjetivas. A única exceção a princípio era a palavra cavalo que, para ele, tinha algum significado porque um cavalinho de madeira era sua única companhia no cativeiro. O vazio de significado que as frases têm para ele comprova ou demonstram de algum modo o que Habermas postulou a partir da virada lingüística e pragmática e refuta a idéia cartesiana sobre a apreensão mental do conhecimento e a desvinculação do homem em relação aos outros para chegar a esse fim. Se a teoria de Descartes se confirmasse, Kaspar conseguiria saber de todas as coisas, pois o mundo poderia ser conhecido sem a dependência de uma relação com ele ou com os outros homens.

O processo vivenciado por Kaspar vai de encontro à visão de Habermas porque exemplifica parte das idéias que este último postulou acerca da individuação.

Se pensarmos no conceito de insubstituibilidade no processo de individuação, podemos afirmar que Kaspar se sente insubstituível? Pelo menos a princípio, não. Não sabia, no começo, dizer nada de si mesmo. Mais tarde, com o desenvolvimento da linguagem, ele fará uso do pronome “eu”, ou falará de si, de sua vida. Mesmo assim, Kaspar demonstra sentir-se totalmente excluído, não reconhecido pelos outros. Com o decorrer da trama, Kaspar sofre um atentado e termina assassinado, bruscamente anulado em sua humanidade.

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Passando ao conceito de autocompreensão, podemos afirmar também que seria impossível para Kaspar conhecer a si mesmo enquanto estava no cativeiro, pois somente podemos saber quem somos a partir de relações intersubjetivas. Por não possuir linguagem nesse período, ele não poderia conhecer a si mesmo ou sequer pensar, refletir sobre a situação que vivenciava. O pensamento é vazio de conteúdo pela ausência da linguagem. Mais tarde, já com a linguagem mais desenvolvida passará a escrever suas memórias em uma busca, uma construção dessa autocompreensão.

Pensando na autorealização, podemos afirmar com certeza que Kaspar jamais alcançou esse estado, pois não foi permitido a ele idealizar ou concretizar projetos de vida que pudessem ser reconhecidos pelos outros. Com o desenvolvimento da linguagem, Kaspar passa a perceber que o que interessava aos demais eram os enigmas em torno de sua história pessoal e não por sua pessoa.

No princípio da trama, quando Kaspar Hauser é levado aos policiais nos é dado perceber que o fato de não falar, não reagir frente a nenhuma espécie de estímulo é o suficiente para que não possa ser imputado por seus atos quaisquer que fossem. Como Kaspar Hauser poderia passar pelo processo de autodeterminação se foi privado de conhecer a si mesmo e de ser sociabilizado com relação às normas de conduta e os limites estabelecidos entre as pessoas? Impossível sem a linguagem, sem as experiências entre os sujeitos. Ao adquirir a linguagem será levado a tentar compreender as normas, os rituais vigentes naquela sociedade (ida à igreja e à festa, por exemplo) mas tudo é sempre muito difícil para ele.

Nesse filme podemos perceber a estreita relação entre língua, pensamento, conhecimento e a própria construção social da realidade. Sobre a construção social da realidade, um dos diálogos entre Kaspar Hauser e seu protetor nos permite saber que no cativeiro ele não era capaz de sonhar e, depois, fora dele, inicialmente confundia sonhos e realidade. Até mesmo a diferenciação entre sonhos e realidade é construída por meio da linguagem e das relações.

Kaspar não pôde participar dos acordos lingüísticos acerca do mundo. Se nossa capacidade de conhecer o mundo está intimamente ligada à nossa capacidade de interagir, Kaspar não tinha como conhecer o mundo antes da linguagem. A ele foi dado percorrer um caminho inverso: a interação sempre precária depois do cativeiro o leva a um processo de conhecer sempre turvo por se basear em fatos que não pôde experienciar. Sem passar pela práxis, Kaspar Hauser passa a conhecer o mundo através da linguagem, mas, mesmo assim, este mundo lhe parecerá sempre estranho, sempre envolto em uma cortina.