andrea blanco jic 2014 augusto dos anjos

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A fisiopsicologia ubíqua e originária da Dor em Augusto dos Anjos: a construção trágica da antinomia matéria-espírito 1 Augusto produziu uma poética da auto-ficcionalização do “mamífero vetusto” 2 , do sátiro, do filósofo moderno. O poeta da magra Sombra viajante tudo olha, alucina-se, contempla e, na antropofagia poética, a tudo cria. A poesia do eu-lírico Vencido pelo destino da dupla cinza que o aguarda é uma poesia que lança a dor e lacera os ouvidos e as vozes de quem a lê. Como em poesia a forma não se separa do conteúdo, percebemos a inseparável sincronia dos sentidos na unidade mínima do som e na máxima da sintaxe das imagens. Em Augusto dos Anjos, a inextricabilidade da forma-conteúdo e parte-todo faz soar a polifonia da Dor, repercutindo as notas da sofreguidão, do nojo, do medo, do horror, da obsessão, da cisma, da insânia, da insônia, da fome, da sede, do estrangular, do sufocar, etc. Quando com as aspas se vela o discurso do monólogo da Sombra, das cismas do Destino e de uma viagem do Vencido, a revelação ressonante da Dor ainda permanece numa sublevação de seus ecos terríveis, nas impressões mentais-sensoriais dolorosas. Por exemplo, velada a voz da Sombra um outro eu-lírico aparece e finaliza o poema dizendo que, enquanto vivo, “o turbilhão de tais 1 Texto para apresentação oral da JIC - 07/10, Terça, 10-12h:30 - Ordem: 04 - AUDITÓRIO C-2 , por Andrea Luiza Blanco (Orientadora Maria Lucia Guimarães de Faria) 2 Parte IX de Os Doentes: O inventário do que eu já tinha sido Espantava. Restavam só de Augusto A forma de um mamífero vetusto E a cerebralidade de um vencido! 1

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Andrea Blanco JIC 2014 Augusto Dos Anjos

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Page 1: Andrea Blanco JIC 2014 Augusto Dos Anjos

A fisiopsicologia ubíqua e originária da Dor em Augusto dos Anjos: a construção trágica da

antinomia matéria-espírito1

Augusto produziu uma poética da auto-ficcionalização do “mamífero vetusto”2, do sátiro,

do filósofo moderno. O poeta da magra Sombra viajante tudo olha, alucina-se, contempla e, na

antropofagia poética, a tudo cria. A poesia do eu-lírico Vencido pelo destino da dupla cinza que

o aguarda é uma poesia que lança a dor e lacera os ouvidos e as vozes de quem a lê. Como em

poesia a forma não se separa do conteúdo, percebemos a inseparável sincronia dos sentidos na

unidade mínima do som e na máxima da sintaxe das imagens. Em Augusto dos Anjos, a

inextricabilidade da forma-conteúdo e parte-todo faz soar a polifonia da Dor, repercutindo as

notas da sofreguidão, do nojo, do medo, do horror, da obsessão, da cisma, da insânia, da insônia,

da fome, da sede, do estrangular, do sufocar, etc.

Quando com as aspas se vela o discurso do monólogo da Sombra, das cismas do Destino

e de uma viagem do Vencido, a revelação ressonante da Dor ainda permanece numa sublevação

de seus ecos terríveis, nas impressões mentais-sensoriais dolorosas. Por exemplo, velada a voz da

Sombra um outro eu-lírico aparece e finaliza o poema dizendo que, enquanto vivo, “o turbilhão

de tais fonemas acres”3, ditos pela Sombra, há de ferir-lhe “as auditivas portas”. Cito, portanto,

os últimos versos de Monólogo de uma Sombra:

E o turbilhão de tais fonemas acres

Trovejando grandíloquos massacres,

Há de ferir-me as auditivas portas,

Até que minha efêmera cabeça

Reverta à quietação da treva espessa

E à palidez das fotosferas mortas!

1 Texto para apresentação oral da JIC - 07/10, Terça, 10-12h:30 - Ordem: 04 - AUDITÓRIO C-2 , por Andrea Luiza Blanco

(Orientadora Maria Lucia Guimarães de Faria)

2 Parte IX de Os Doentes:O inventário do que eu já tinha sidoEspantava. Restavam só de AugustoA forma de um mamífero vetustoE a cerebralidade de um vencido!3 Monólogo de uma Sombra

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Já no poema “Viagem de um Vencido”, o canto da Natureza exausta, das árvores, causa

ferimentos corporais que parecem maiores que aqueles auditivos do monólogo - cito o trecho:

Às vibrações daquele horrível carme

Meu dispêndio nervoso era tamanho

Que eu sentia no corpo um vácuo estranho

Como uma boca sôfrega a esvaziar-me!

O gaguejo da mente e da fala na sôfrega montagem de imagens é análogo à mácula da

dor. Esbarramos sempre em Augusto com a obsessão de seu cosmos que alimenta

recorrentemente a tentativa de expelir a expressão do mundo, numa combinação imagética

monstruosa. A composição da imagética da decomposição é construída pelos arranjos rítmicos

singulares das proparoxítonas e da decassilábica, características também marcantes do autor.

Observemos a agonização das imagens expelidas e apreendidas no sofrimento particular da

poética do autor, por exemplo, em três quadras da parte III de “Os Doentes”. Eis:

“Falar somente uma linguagem rouca,

Um português cansado e incompreensível,

Vomitar o pulmão na noite horrível

Em que se deita sangue pela boca!

Expulsar, aos bocados, a existência

Numa bacia autômata de barro,

Alucinado, vendo em cada escarro

O retrato da própria consciência!

Querer dizer a angústia de que é pábulo,

E com a respiração já muito fraca

Sentir como que a ponta de uma faca,

Cortando as raízes do último vocábulo!”

É a “herança horrenda”4 da podridão o motivo incessante da música de Augusto, vívida e

vestida das mais decrépitas carnes, bem como de hidrogênio. A sua voz é a da visão exótica

4 Apóstofre à carne

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sobre uma unidade em fragmentação, sobre a tensão de tudo vindo do parto primitivo das Eras.

Aquele que se fez “poeta da Morte”5, “coveiro do Verso”6, mostra monstruosamente e

dolorosamente a tétrica “anatomia horrenda dos detalhes”7. Esta é uma poesia que nos lembra

que o monstruoso também sinaliza o divino, o Belo surge e nos arrebata imergindo-nos no

grotesco.

Caminhando num “chão profundo”8 de si próprio, o autoficcionalizado Augusto ouve e

molda o coração do mundo em sua guturalidade. O ferro9, as árvores10, o luar11 riem perante as

desgraças que aparecem ao eu-lírico, aquele desgraçado, cujo coração de poeta figura no poema

Vencedor ironicamente; como misterioso prisioneiro, indomável até mesmo pelo domador de

hienas.

O poeta que modulou máculas rubras e trevosas com a língua portuguesa completa o

centenário de morte em novembro. Em sua poética a Dor e a violência da psique e do corpo são

originárias. Seja nas mônadas ou nas moneras, nas pústulas da peste ou nos labirintos das

famílias dos helmintos, há sempre a sôfrega vida em pulsação, nos rudimentares organismos

fenomênicos, na fisicalidade pútrida, nas tensões noumênicas das metafísicas místicas do

pessimismo, budismo e panteísmo. A grandeza citogenética da Dor escarra seu estrume em todas

as engrenagens da poesia. Ao chamado da Dor, o “viajeiro da Extrema-Unção”12 expele a benta e

libertária feição horrenda de um cosmos-agônico, cosmos-Arte do martírio insone do poeta,

“Sonhador do último sonho”13.

Cruzamos na leitura de qualquer poema de Augusto com as altas lutas entre os anelos

imagéticos do místico metafísico e os anseios do fisiologista médico, ambos fervilhando entre si

em inextrincável pathos.

5 Barcarola6 Idem7 Cismas do Destino8 Em Viagem de um Vencido:“Dentro de mim, como num chão profundo, Choravam, com soluços quase humanos, Convulsionando Céus, almas e oceanos As formas microscópicas do mundo!”9 Numa Forja10 Viagem de um Vencido11 Cismas do Destino12 Barcarola13 Idem

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No poema que inaugura a única publicação em vida de Augusto intitulada Eu, uma das

máscaras da poética do autor, a Sombra, diz em seu monólogo: “A simbiose das coisas me

equilibra”. O equilíbrio da simbiose, no entanto, se constrói através da dissonância, pelo

paroxismo sempre autoconsciente do princípio e destino trágico em tudo: a Dor. Princípio e fim,

a Dor se faz mundo poético, a “dor suprema”14 é vazada dos corpos cósmicos, dos “escravos da

coesão”15. É vazada da “absconsa cripta enorme”16, da “cavernosa subconsciência”17 e, como o

remorso, “da fauna cavernícola do crânio”18. Como Édipo, a voz do eu-lírico assume o destino

trágico de um herói: afronta os deslimites do Mistério, os limites do bifronte conhecimento-

desconhecimento, regira simbioticamente em seus “movimentos rotatórios”19, nas engrenagens e

nas danças “dos números quebrados”20, e, sobretudo, assume o ir e vir da “matemática da

morte”21.

A ruptura com a ignorância do âmbito pragmático, ruptura com a antitética univocidade

de “sim ou não”, é o nascimento do trágico-heroico universo poético que, sempre antinômico, se

conduz à unidade ourobórica, no eterno retorno da serpente ouróboros anelada consigo mesma.

A poética de Augusto caminha infinitamente, para usar as palavras de Nietzsche, ao “encontro,

simultaneamente, da sua dor suprema e da sua esperança suprema”22. Dói a respiração sufocada

da alma, coisa divina presa na carne humana. Estrangulada em “intracefálica tortura”23,

provocada pelos pensamentos e visagens, dói a alma repleta de Ideias e Forças, cativa

prometeicamente no destino de um corpo de palavras convulsivamente condenadas, como a

14 Poema Negro: “Ao terminar este sentido poemaOnde vazei a minha dor supremaTenho os olhos em lágrimas imersos...”15 Numa Forja16 Numa Forja17 Idem“Era o ruído-clarão, - O ígneo jato vulcânico Que, atravessando a absconsa cripta enorme De minha cavernosa subconsciência (...)”18 Monólogo de uma Sombra19 Idem20 Cismas do Destino 21 Alucinação à Beira-Mar22 Em A Gaia Ciência, Aforismo 26823 Monólogo de uma Sombra

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Ideia, ao “molambo da língua paralítica”24. Dói a esperança suprema de estarem as palavras

destinadas à corporificação da Arte, da lira que “reviverá” “dando emoção à pedra”25.

Há, nesta poética - além da profunda dor da carne pertencente à ruína - um influxo da Dor

sulcado nos sumos da mineralidade, há como que uma cosmo-agonia telúrica. O poema diz:

“Ah! Por que desgraçada contingência

À híspida aresta sáxea áspera e abrupta

Da rocha brava, numa ininterrupta

Adesão, não prendi minha existência?!”

O desejo mórbido do eu-lírico de se pregar morto na rocha brava é ao mesmo tempo

egoísta, nostálgico e solidário. A linguagem imagina este abraço do morto à “terra

convulsionada”, talha uma imanência na sintaxe e na seleção necessariamente sobreposta de

palavras em “desgraçada contingência”. Palavras estateladas em vibrantes e proparoxítonas,

numa existência ríspida de quatro encontros consonantais e diversas oclusivas, inimigas da

sublimidade etérea de uma carne intacta. Soa-nos a Dor nas tantas qualidades da pedra, se realiza

pela imaginação a queda e fragmentação que leva propriamente o corpo do cadáver à

“ininterrupta adesão”. Esse trecho selecionado torneia o retorno constante da linguagem poética

anjosiana à desfragmentação fágica26 e à reunião tensa feita pela terra ou pelo verme, esse

operário das ruínas.

A unidade da poética estudada possui a tensa respiração e iluminura das imagens de

elementos vivos nel mezzo del camin do morto. Numa “monotonia genial” – expressão precisa

com que Bachelard distingue a “unidade de sonho” na obra de Edgar Allan Poe – a imaginação

revê incessantemente esses elementos vivo-mortos e cria o prenúncio de uma sôfrega respiração

dialética que nunca cessa.

A consciência dessa dialética é extremamente agônica e angustiosa, mas produtiva e

originária. A consciência do poema que se faz como mundo plasmador de cadáveres, túmulos e

de suas lápides produz o constante nascimento de um sonho desperto às dores do Mundo, e

24 A Idéia25 “Quando eu for misturar-me com as violetas,Minha lira, maior que a Bíblia e a Fedra,Reviverá, dando emoção à pedra,Na acústica de todos os planetas!” (Parte V de Os Doentes)26 A noção do fagismo é um ponto trabalhado por Lúcia Helena em A cosmo-Agonia de Augusto dos Anjos

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profundamente solidário, pois a Arte realiza pelo sonho da imaginação o Último Número das

cousas. A eterna mágoa nos carmes estranhos de Augusto é o sofrimento das entranhas do

mundo. O poema é esse sonho escrito pela mão peçonhenta da Morte, de seu poeta eleito.

A essência da arte é ser ela a experiência de um outro mundo em emergência: o mundo

poético. Este se cose na mortalha, na respiração da alucinação, se pinta em “quadro de

aflições”27, dos “monstros sombrios”28, do “machucamento das insônias”29 “na agonia de tantos

pesadelos”30. É a arte essa experiência espectadora e autora do Último Número, da “dança dos

números quebrados”31. A arte que, tal qual a pantera-Ingratidão, assistiu ao enterro da “última

quimera”32, e é ela também que “viu a Dor chorando”33.

A poesia da Dor forjada por Augusto é “reduto de Maldição”34 onde se ouve a voz

própria do Mistério, do Nada, da Esfinge ou da sereia. Essa arte se constrói como existência de

eterno retorno da imagem e da sensorialidade sonora terríveis, motivos que seduzem os viajantes

no meio do horizontal mar - espaço já inóspito àquele que tem sede - convocando-os à

verticalidade poética da viagem catabática do sonho e da imaginação, viagem perigosa e infernal,

pelo complexo “canto sem história...sua voz igual à voz das Dores todas do mundo”35.

27 Queixas Noturnas28 Idem29 Cimas do Destino, Parte III30 Poema Negro31 Cismas do Destino32 Versos Íntimos33 Queixas Noturnas34 Barcarola35 Idem: “Que é que ela diz?!

Será uma/ História de amor feliz?Não! O que a sereia dizNão é história nenhuma.É como um requiem profundoDe tristíssimos bemóis…Sua voz é igual à vozDas dores todas do mundo.

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