Ânforas panatenaicas e paisagens...
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ÂNFORAS PANATENAICAS E PAISAGENS ESTRUTURAIS
Gilberto da Silva Francisco1
RESUMO: Este artigo discute a noção de paisagem relacionada a comportamentos
estruturalmente articulados; dessa forma, paisagens estruturais. O objeto de análise são as
dinâmicas diversas que organizaram comportamentos tradicionais relacionados ao manejo de
um tipo de vaso: as ânforas panatenaicas.
PALAVRAS-CHAVE: Arqueologia clássica, Ceramologia grega, Ânforas panatenaicas, Paisagem
estrutural.
ABSTRACT: This paper deals with the concept of landscape related to structurally organized
behaviors, thus structural landscapes. The object of analysis is the several dynamics which
organized behaviors related to the management of a type of vase: the Panathenaic amphorae.
KEYWORDS: Classical Archaeology, Greek Ceramology, Panathenaic Amphorae, Structural
Landscape.
Atualmente, a noção de paisagem apresenta uma ampla, complexa e
variada carga semântica, distanciando-se da formulação original, razoavelmente
variada,2 mas fixada, sobretudo, no tema e na execução ligada à pintura;3 o que
1 Pós-doutorando MAE/USP; e-mail: [email protected] É o que indica a apresentação do verbete Paisagem em um dicionário inglês-português do século XVIII: “LANDSCAPE, s. vista, o que se descobre de terras, campos, ou de outros objetos distantes; it. Paisagem, paizes, paineis que representaõ arvoredos, prados &c. (...) LANDSKIP, s. idem.” (VIEIRA, 1773, verbete landscape/landskip).3 Em um dicionário do final do século XVIII (Encyclopaedia Britannica; or, a dictionary of arts, sciences, and miscellaneous literature, vol. 13), no longo verbete “Pintura” (p. 589-657), paisagem é apresentada como um gênero de pintura (p. 635-41) e baseia uma especialidade (o pintor de paisagem – p. 636, 639-40). Numa caracterização posterior do conceito, o termo é amplamente situado no campo da pintura na sua descrição: “Paisagem (a terminação -scape nesta palavra responde sufixo alemão -schaft, que é um particípio do verbo schaffen, fazer). O cenário do campo apresentado ao olho; e também, na sua acepção mais comum, uma figura apresentando tal cenário. A paisagem, latu senso, pode, porém, tornar-se alegórica e histórica no seu significado aplicado pelos artistas nos seus termos. O estudo principal do pintor da paisagem é o mundo vegetal, ar, água, pedras e edifícios. A isso ele pode imputar um ideal de beleza e assim elevar sua arte acima da mera pintura topográfica; um termo que pode ser aplicado ao seu trabalho, se ele simplesmente copia sem o refinamento que é apresentado ao seu olho. Uma paisagem pode ser igualmente elaborada em todas as suas partes, observando-se a perspectiva ao ar livre, porque o olho não é necessariamente mais fixo na visualização de uma imagem que em sua observação do cenário natural. As partes de uma figura são vistas em sucessão, tal como as várias partes de uma paisagem presente na natureza” (Landscape (the termination scape in this word answers to the German suffix schaft, which is really a participle of the verb schaffen, to make). The scenery presented to the eye in the country; as also, in its more common acceptation, a picture representing such scenery. A landscape in the latter sense may, however, become allegorical and historical, in the meaning applied by artists to those terms. The chief study of the landscape painter is the vegetable world, air, water, rocks, and buildings. To these he may impart an ideal beauty, and thus elevate his art above mere topographical painting; a term which may be applied to his work, if he merely
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foi bastante ampliado já no final do século XIX pela atuação de geógrafos
alemães que cunharam a ideia de “paisagem cultural” (RUSSO, 1996, p. 38),
tornando o espaço geográfico um elemento constante no debate. Pensando-se
nas unidades constitutivas, as possibilidades foram bastante alargadas e um
continente, uma região, um polo específico relacionado a alguma dinâmica
humana, um bairro, um quarteirão, um conjunto habitacional, uma habitação
(ou até um cômodo) são caracterizados paisagens; ou seja, uma delimitação
situada entre uma perspectiva micro e macroespacial. E essas balizas, elas
mesmas, entram na discussão. Por exemplo, Ralston e Jain (2002) apresentam
uma “paisagem microscópica do próton” e, na descrição de um gás normal,
Emch e Liu (2002, p. 320) dizem que
para [se ter] uma ideia rápida da paisagem microscópica, note que o diâmetro molecular é da
ordem de ≈ 10-8 cm; a distância média entre as moléculas é de ≈ 10-7 cm, de modo que as
moléculas ocupam cerca de um milésimo do volume total do gás.4
Fala-se, ainda, em paisagens microscópicas de tumores, de cânceres;
assim, a paisagem situada no nível das células (ATLAS & BARTHA, 1998, p.
343), e também em paisagens do DNA (ácido desoxirribonucleico) e do RNA
(ácido ribonucleico) (FORMOSA, 2003; PROCTOR, 2007 e
COWPERTHWAITE, 2008, p. 10). No outro extremo, encontra-se a paisagem
macroscópica que transita entre unidades como um país (SPENDER & HALL,
1970, p. 39), um planeta (dessa forma, uma paisagem terrestre, marciana,
venusiana – GREELAY, 1994) e até uma galáxia;5 situando-se nesse contexto as
paisagens cósmicas (SUSSKIND, 2006 e ROWAN-ROBINSON, 1979).
copies without refinement what is presented to his eye. A landscape may be equally elaborated in all its parts, with a due observance of aerial perspective, because the eye is not necessarily more fixed in viewing a picture than it is in looking at natural scenery. The parts of a picture are viewed in succession, just as the various parts of a landscape present themselves in nature (BRANDE et al, 1866, verbete Landscape; ver também verbete Landscape gardening). 4 For a snapshot idea of the microscopic landscape, note that the molecular diameter is of the order of ≈ 10-8 cm; the average distance between the molecules is ≈ 10-7 cm, so that the molecules occupy about one thousandth [(10-8/10-7)3] of the total volume of the gas.5 Macroscopic landscape (ver NASA, Understanding the human life).
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Evidentemente, tais termos não são sempre discutidos no seu uso, mas
é interessante pensá-los a partir da apropriação que se faz da ideia de paisagem;
assim, paisagem como unidade espacial delimitada pelo homem; não apenas um
espaço vivido, mas também aquele que é conceitualizado. Além disso, a grande
variedade incidente sobre esse conceito impele a se pensar em uma explicação
imediata para seu uso. Assim, pergunta-se, o que é uma paisagem estrutural? E,
considerando que esse conceito já vem sendo utilizado, é devido pensar sua
adequação na discussão aqui empreendida.
Em uma descrição da estrutura geológica do território da França,
Pinchemel apresenta os seguintes dados:
Nos Pirineus, a paisagem estrutural mais comum é o resultado da combinação de faixas do
calcário urgoniano, por vezes reforçada por dolomitas jurássicos (em Béarn), com longos vales
subsequentes abertos, seja mais baixo nos xistos aptianos ou na marga liássica e beuper ofítico.6
Calcário urgoniano, dolomitas jurássicos, xistos aptianos, margas
liássicas, beuper ofítico são termos que descrevem elementos da sequência de
camadas geológicas desde o período jurássico até o cretáceo; ou seja, estão
relacionados a formações situadas entre 200 e 65 milhões de anos passados. A
estrutura, dessa forma, está ligada ao longo e lento processo de organização das
camadas geológicas e à formação de cadeias montanhosas.7 É interessante
notar, nesse sentido, que a partir de um universo cronológico bem mais
modesto, a estrutura, relacionada à ideia de longa duração, conforme Braudel
na sua tese de 1947, é situada no âmbito do meio físico, remontando a longos
processos caracterizados por lentíssimas mudanças ativamente mediadas por
dinâmicas ambientais. Entretanto, o debate avançou, e mesmo Braudel em
6 In the Pyrenees the most common structural landscape is the result of the combination of bands of Urgonian limestone, sometimes reinforced by Jurassic dolomites (in Béarn), with long subsequent vales opened either in Lower Aptian shales or in Liassic marl and ophitic beuper (PINCHEMEL , 1969, p. 52).7 O termo “paisagem estrutural” é aplicado, ainda, nas artes visuais, estabelecendo-se uma clara derivação do sentido geológico. Por exemplo, a paisagem montanhosa de Aix em Provence, sobretudo o Monte Santa Vitória, pintado exaustivamente pelo pintor francês Paul Cézanne, também foi chamado de “paisagem estrutural” (ver NATIONAL Australia Bank, 1986, p. 41); assim como a pintura Structural landscape (acrílico sobre cartão) do artista polonês Elzbieta Przepiorkowska, que estabelece o mesmo paralelo.
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1958, em um artigo que discutia conceitualmente a ideia de longa duração,
propõe uma abrangência de seu domínio para além do referencial geográfico,
alcançando as esferas da cultura e das mentalidades, o que foi reforçado e
desenvolvido por Vovelle (1990, p. 89) ao discutir as interfaces entre as
diferentes dimensões durativas do tempo. É possível, assim, pensar em
estruturas além das geográficas e paisagens estruturais relacionadas a essa
dimensão da experiência humana no planeta.
A ideia de paisagem estrutural é também amplamente utilizada para
descrever a solidez de edificações no âmbito da Arquitetura. E, ainda aqui,
encontra-se outro paralelo com a perspectiva da estrutura na discussão de
Braudel. A metáfora da solidez, da coerência temporal que Braudel utiliza
remete a esse campo. Ele diz:
Os observadores do social entendem por estrutura uma organização, uma coerência, relações
suficientemente fixas entre realidades e massas sociais. Para nós, historiadores, uma estrutura é,
indubitavelmente, um agrupamento, uma arquitetura; mais ainda, uma realidade que o tempo
demora imenso a desgastar e a transportar (BRAUDEL, 1986, p. 14).
A partir disso, pensa-se na paisagem estrutural como espaço delimitado
relacionado a ações humanas estruturalmente articuladas, por vezes até
condicionando-as, ao menos parcialmente.
* * *
É a partir dessa perspectiva que, aqui, será acompanhada brevemente a
trajetória das ânforas panatenaicas,8 e a discussão sobre as paisagens estruturais
justifica-se pelo conjunto de situações tradicionais às quais esse tipo de objeto
estava ligado. Sua trajetória pode ser observada a partir de três contextos
básicos: o próprio da produção e aqueles relacionados à sua inserção primária
(o uso previsto) e secundária (necessariamente posterior ao primário e não
previsto).
Sua produção era feita nas oficinas áticas, sobretudo aquelas do
Cerâmico, o bairro de artesãos contíguo à principal necrópole ateniense e à
8 Para as ânforas panatenaicas, ver Bentz, 1998 e Francisco, 2012.
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porta dupla (o Dípilon) de onde saía a procissão panatenaica. Entretanto, pode-
se pensar em uma projeção espacial bem mais ampla, se considerarmos os
diálogos artesanais que condicionaram em grande parte a produção de ânforas
panatenaicas na perspectiva diacrônica. Um exemplo bastante claro é a figura
da Atena Promachos (ver figuras 1-7). Quando ela começa a ser produzida
sobre ânforas panatenaicas, esse esquema figurativo já era utilizado para
determinado tipo de figuração da deusa em vários pontos do chamado Mundo
Grego; revelando que tal formulação figurativa nas ânforas panatenaicas
respondia a um amplo diálogo artesanal não delimitado nas oficinas áticas
(FRANCISCO, 2012, p. 50-1); o que parece ter acompanhado boa parte da
história dessa produção; já que, ainda no século IV a.C., é possível observá-lo
em outro contexto: a aproximação figurativa entre a Atena das ânforas
panatenaicas e outras cunhadas sobre moedas de Roma, Sicília, Macedônia,
Ática, Fasélis, Alexandria, Cílica, e em alguns reinos indo-gregos (ver fig. 8-
10).
Ora, o debate atual sobre tais formulações figurativas de Atena insiste
em uma explicação baseada na ideia de representação. Assim, essas figuras de
Atena sobre moedas seriam representações de uma estátua de culto em Pella, a
Atena Alkis ou Alkidemos (TZOUVARA-SOULI, 1996, p. 499). Por outro lado,
propõe-se que tal figura teria sido criada originalmente na produção de ânforas
panatenaicas e, posteriormente, copiadas por motivos não conhecidos, na
cunhagem de tais moedas (BARRINGER, 2003, p. 244). A cronologia desses
objetos indica que esta segunda proposta é mais provável; posto que as figuras
de Atena com esse aspecto arcaizante sobre as ânforas panatenaicas já ocorria
em meados do século IV a.C. e apenas a partir do final do século IV a.C. sobre as
moedas citadas (Idem).
Entretanto, mais do que localizar o ponto de origem, tais figurações
indicam um consistente diálogo artesanal que se desenvolveu não apenas no
âmbito da ornamentação desses vasos. Sua forma insere-se nesse diálogo entre
artesãos antigos. A bibliografia insiste que a forma das ânforas panatenaicas
tenha sido apropriada de dois tipos de ânfora de transporte do século VIII-VI
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a.C. (a ânfora SOS ou da ânfora à la brosse – VALAVANIS, 1986, p. 454, n. 4),
dadas as similaridades formais (ver fig. 11); entretanto, novamente o debate é
focado na busca da origem de determinado conteúdo, a despeito de sua
contextualização. Ora, se se pensar na função desses vasos (objetos para
armazenamento e transporte de líquidos), percebe-se que ânforas com formas
bem diferentes, mas com função similar, apresentam um elemento recorrente: a
relação entre o diâmetro do bojo e do pescoço. O pescoço dos vasos de
transporte são, geralmente, bastante estreitos em relação ao bojo; e há uma
proporção básica entre 1 para 1/3 e 1 para 1/5 entre o diâmetro do bojo e do
pescoço. Relação que marcou consistentemente a produção de ânforas
panatenaicas e que é perceptível em ânforas de transporte produzidas em vários
pontos do Mediterrâneo desde o século VIII a.C. até o período romano (ver fig.
12-13).
Ainda sobre a função, a inscrição ton athenethen athlon, presente na
maioria das ânforas panatenaicas (ver fig. 1, para um exemplo),9 é interpretada
como um tipo de controle do conteúdo, o óleo panatenaico; o que pode ser
aproximado das variadas inscrições e estampas que compunham vasos de
transporte desde o período micênico até o período romano, indicando
mecanismos de controle e informações sobre proveniência e (ou) destino do
conteúdo (ver fig. 14-18). Bem, o potencial conteúdo, neste caso, é o óleo
panatenaico. E, pensando-se na sua ampla disseminação no Mediterrâneo
antigo, revela-se outro elemento tradicional: a demanda pelo óleo e sua
circulação. Os mais antigos vestígios de oliveiras na região da Grécia remontam
ao neolítico; mas não é possível estabelecer uma ligação com a experiência de
cultivo identificada posteriormente em Creta, situados no terceiro milênio a.C.,
contexto no qual é identificada a exportação de óleo; por exemplo, ao Egito
(DALBY, 2003, p. 239 e SALLARES, 1991, p. 304-9).
Assim, o vaso em seu aspecto estético, prático e seu conteúdo, tudo isso
pode ser situado em um ambiente de práticas tradicionais nas quais a
9 Ver Hannah, 2001; para uma discussão sobre o significado desse tipo de inscrição nas ânforas panatenaicas. Ver, ainda, Francisco, 2012, p. 257-65; para um levantamento das inscrições sobre as ânforas panatenaicas.
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premiação nos jogos panatenaicos foi inserida. E a paisagem descrita por tais
práticas estruturou-se em uma perspectiva macro, aqui chamada de regional:
maior que Atenas, maior que a Ática e, por vezes, maior que o Mundo Grego;
alcançando uma grande projeção no Mediterrâneo. É o que indica, por exemplo,
o mapeamento da difusão das ânforas panatenaicas a partir dos locais de
achado, compreendidos em uma longitude entre a Ásia Menor e a Itália e uma
latitude entre o Mar Negro e o Norte da África (ver fig. 19); chamando a
atenção, casos como o da Etrúria, que não pertencia ao chamado Mundo Grego
e cujos habitantes não podiam participar dos Jogos Panatenaicos. Mas, mesmo
com isso, é um dos locais de achados mais numerosos de ânforas panatenaicas
fora da Grécia continental.
Como visto, a produção, o uso e a deposição dos vasos panatenaicos,
todos esses elementos importantes para a observação da trajetória de um tipo,
foram amplamente condicionados por uma paisagem estrutural que respondia
aos contornos do Mediterrâneo. Entretanto, a situação é mais complexa que
isso; já que todos esses aspectos eram também condicionados por um interesse
específico concentrado, por mais de 500 anos, à atuação da pólis ateniense.
Eram as demandas do festival panatenaico que promoveram a materialização
desse tipo de premiação e o controle inicial de seu conteúdo. Dessa forma, vale
observar a perspectiva micro, aqui entendida como local.
Como visto, havia uma ampla projeção desses objetos; mas,
quantitativamente falando, o local com achados mais numerosos é Atenas:
quase 50% do total.10 Ora, há, com isso, claramente uma coerência forte entre
polo de produção, espaço de uso primário e de imobilização desses objetos. Mais
que isso, pensando-se em uma trajetória para além do contexto sistêmico, o
quadro de coerência é ratificado pela forte consistência desses objetos que ali
permaneceram em contexto arqueológico, e onde foram encontrados, o mesmo
local de ressignificação como objetos de museu – não mais o vaso relacionado
ao universo da premiação, mas um documento ou objeto de arte. Ou seja, uma
trajetória milenar consistentemente estruturada em Atenas, onde as ânforas
10 Para a distribuição quantitativa por locais de achado, ver FRANCISCO, 2012, p. 18-9.
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panatenaicas foram produzidas, utilizadas em um evento específico, onde elas
foram depostas e passaram mais de 2 mil anos sob a terra ou no interior de uma
tumba; onde, ainda, elas foram encontradas, limpas, catalogadas, descritas,
colocadas em uma exposição ou reserva técnica. É a experiência em Atenas,
nesse sentido, que apresenta aparentemente a paisagem estrutural mais sólida
ligada à trajetória das ânforas panatenaicas.
A interpretação dessa paisagem estrutural é complexa; já que o maior
número de ânforas panatenaicas encontradas em Atenas não indica
necessariamente um grande interesse em mantê-las ali. Dizer isso parece
repetir, ao avesso, o engano de Julia Martha que, no final do século XIX, ao
interpretar os pouquíssimos achados então na Grécia, dizia que “parece então
que em Atenas não se interessava pelas ânforas [panatenaicas], porque se
acreditava que não valia à pena conservar tais vasos […]”.11 A dinâmica das
escavações em Atenas (ainda incipiente em vários espaços importantes como a
Ágora, a Acrópole e o Cerâmico) não permitia a apresentação de uma colocação
tão definitiva sem ao menos se pensar na dinâmica dos achados. No cenário
atual, apesar dos inúmeros achados e de certa clareza sobre o universo
documental, deve-se ainda agir com cautela. Assim parece que a interpretação
desses números deve ser feita considerando-se a discussão sobre o registro
arqueológico, a quantidade e qualidade dos objetos, a dinâmica das escavações e
das publicações desses objetos e indícios de seu uso em contexto sistêmico.
É interessante notar, quanto à questão do registro arqueológico, que
estudos sobre material lítico lascado na pré-história revelam uma grande
quantidade de vestígios em sítios-oficina (espaços onde alguns instrumentos de
pedra eram produzidos), mais que nos locais de uso primário e secundário. 12
11 Il paraît qu’alors à Athènes on ne faisait aucune attention aux amphores, parce qu’on croyait que ces vases ne valaient pas la peine d’être conservés […] (MARTHA, 1877, p. 174).12 O “sítio-oficina” é caracterizado, geralmente, por uma grande quantidade de material relacionado à produção (debitado e ferramentas) e uma comum ausência de vestígios de habitação, quando não há articulação de atividades variadas (produção e habitação, por exemplo) no mesmo espaço. Para a caracterização do sítio-oficina, ver Bureau of Land Management, 1982, p. 132. Para a sua descrição breve na caracterização de alguns sítios líticos, ver Guidon, N.; Felice, G. & Lima, C. F. M., s/d, p. 149; Revista de pré-história, Volumes 1-4. Universidade de São Paulo, Instituto de Pré-história., 1979, p. 31; Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, Vol. 15-16. Universidade de São Paulo, 2005, p. 171.
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Assim, parece, quanto mais distante (espacialmente e temporalmente) do
contexto da produção, menos consistente quantitativamente é a presença desses
objetos. No caso de Atenas, essa situação poderia ser observada na deposição de
um grande número de ânforas panatenaicas no Pompeion, na região do Dípilo,
sobretudo no século IV ao II a.C., época em que provavelmente esse espaço era
utilizado para o armazenamento dos vasos panatenaicos. Ou seja, conjuntos de
vasos imobilizados em situação, pode-se dizer, “pré-primária”.
Mas também é possível identificar grupos numerosos de ânforas
panatenaicas utilizadas em contexto secundário. É o que revela o caso de
Alcibíades, general, político e atleta de expressão em Atenas, que teve seus bens
colocados à disposição da pólis ateniense em 414/3 a.C., conforme inscrição IG
I3 422. Na lista de seus bens à venda, há indicado um conjunto de 102 ânforas
panatenaicas, provavelmente obtidas de uma só vez, conforme indicam as
balizas cronológicas. Nesse caso, por interesse do atleta vencedor (Alcibíades),
manteve-se, em Atenas, um conjunto grande de vasos panatenaicos
provavelmente relacionados ao óleo obtido mediante sua vitória na prova de
corrida de carro. Vale dizer, não há outro registro tão claro da preservação de
um conjunto tão numeroso mantido por interesse do atleta vencedor.
Diferente disso, o caso de Teaios de Argos, por exemplo, que levou seus
vasos panatenaicos cheios de óleo para Argos depois de sua vitória no segundo
quartel do século V a.C. na prova de luta (pale), conforme indica Píndaro
(Nemeanas 10, 35), contrasta com o cenário de achados na região: não há
nenhum registro de ânfora panatenaica encontrada em Argos. Há identificado,
ainda, o caso de outro vitorioso na corrida de carro, Nicágoras, que, como
parece, teria levado consigo para Rodes alguns vasos panatenaicos (foram
identificados cerca de 14); nada próximo dos mais de cem vasos indicados como
posse de Alcibíades, considerando que, nos dois casos, o ganhador da prova de
corrida de carro deveria obter algo estimado em mais de cem vasos cheios de
óleo. Tais colocações, claramente, são referências frágeis, pois há, de um lado, a
indicação de um conjunto pouco após sua obtenção no século V a.C. (o caso de
Alcibíades) e, de outro, a verificação a partir de achados mais de mil anos depois
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(os casos de Teaios e de Nicágoras). Entretanto, a ausência de achados em
Argos, por exemplo, é, pelo menos, indicativa.13
A partir disso, pensa-se que a manutenção desses objetos (vasos cheios
de óleo que poderiam compor um conjunto com massa equivalente a mais de 5
toneladas para uma única premiação – o caso da corrida de carro) seria mais
fácil em Atenas, dado o deslocamento interno; ou seja, um traslado por terra,
mas de curta distância. No caso dos vencedores provenientes de cidades mais
distantes, o deslocamento dessa massa bastante expressiva poderia ser um
problema. É preciso notar que a produção, preparação e deslocamento inicial da
premiação no contexto das Panateneias era relacionada à atuação da pólis
ateniense, que poderia mobilizar uma grande quantidade de energia mecânica
(animal ou humana). Depois disso, seu deslocamento era de responsabilidade
do atleta e, pensar em uma comercialização do óleo ali mesmo em Atenas indica
um cenário coerente a uma possível dispersão mais difusa. A questão é que,
mesmo condicionados por uma paisagem estruturalmente constituída que
impelia tais vasos cheios de óleo a viajarem a pontos distantes do Mediterrâneo,
eles permaneceram em grande número na região onde foram produzidos e
utilizados em contexto “pré-primário”, primário e secundário.
Entretanto, na outra ponta do processo, depois de seu alheamento
milenar, tais objetos foram alvo de nova movimentação. É o que indica a
primeira notícia de achado de um vaso panatenaico encontrado por um viajante
francês em Trípoli em 1712. Claude Lemaire encontrou um vaso ao qual chamou
de urna (pois era preenchido com restos mortais) e o levou para a França. Vaso
que hoje está desaparecido. Esses deslocamentos estavam ligados à constituição
de coleções que, desde o Renascimento, vinham sendo amplamente compostas
por objetos reencontrados em escavações não sistemáticas e por leigos em
vários pontos do Mediterrâneo. Entretanto, pode-se perceber certa coerência da
permanência entre local de achado e de nova imobilização desses objetos: fala-
se da dos museus articulados a sítios arqueológicos.
13 Para os casos de Alcibíades, Teaios e Nicágoras, ver Francisco, 2012, p. 114-5.
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A maior parte dos vasos panatenaicos compõe coleções de cidades ou
países nos quais foram encontrados. E, nesse sentido, os achados em Atenas
ratificam a paisagem estrutural ali constituída. As leis de proteção das
antiguidades gregas de 1932, ratificada em 2002, impedem a saída desses
objetos do solo grego.14 E, articulando-se à lógica dos museus de sítios, essa
paisagem estrutural parece consolidar-se. Por exemplo, o sítio com achados
mais numerosos, o Cerâmico em Atenas, apresenta o museu com o maior
número de objetos inventariados (cerca de 20 %).15 Assim, relacionado à região
da produção, do armazenamento desde o século IV a.C., da imobilização em
várias tumbas, consolida-se a paisagem estrutural mais precisa e mais restrita
desse tipo de objeto. Pode-se mesmo dizer que a maior parte dos vasos
panatenaicos conhecidos se afastou poucos quilômetros do espaço onde foram
produzidos.
14 Paras as leis de proteção das antiguidades gregas, desde o século XIX, ver Treves & Pineschi, 1997, p. 249-50. Para as leis 5351 (de 1932) e 3028 (de 2002), ver Valavanis & Delevorrias, 2007, p. 30.15 Para o levantamento quantitativo de vasos panatenaicos em museus em vários países, ver Francisco, 2012, p. 204-10.
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Fig. 1. Ânfora panatenaica (face com a figura da deusa Atena), Londres, Museu Britânico, inv. B 130 – ver Francisco, cat. 1.
Fig. 2. Placa de bronze recortada, final do século VII, início do VI a.C., Prov.: Templo “geométrico” de Dreros; Heracleion, Museu Arqueológico, Inv.: 2273 [LIMC (verbete Atena, fig. 68)];
Fig. 3. Estatueta de bronze, segundo quartel do século VII a.C., alt.: 15 cm, Prov.: Olímpia, Olímpia, Museu de Olímpia, Inv.: 4500 [LIMC (verbete Atena, fig. 69); Bandinelli, 1976, fig. 124];
Fig. 4. Estatueta de bronze ática (?), final do século VII a.C., Prov.: Ática, Zurique, Coleção Bührle [LIMC (verbete Atena, fig. 70)];
Fig. 5. Estatueta de bronze, segunda metade do século VI a.C., Prov.: Messênia, Mariemont, Museu de Mariemont, Inv.: B 31 [Faider-Feytmans, G. (1952) Les antiquités du musée de Mariemont. 86 G 54, pl.
31]; Fig. 6. Estatueta de bronze, segunda metade do século VI a.C., Atenas, Museu Nacional [DE RIDDER, A.
(1896) Catalogue des bronzes trouvés sur l’Acropole d’Athènes, n. 789 m]; Fig. 7. Estatueta de bronze, c. 480-470 a.C., Prov.: Atenas (Acrópole), Atenas, Museu Arqueológico
Nacional, Inv.: 6447 [ROLLEY, Cl. (1967) Les bronzes. 4, n. 42, pl. 12; LIMC (verbete Atena, fig. 146)] (todas sem escala).
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Fig. 8. Regiões de incidência da figura de Atena Alkis, Promakhos, Palladium e Minerva.
Fig. 9. (esquerda) Atena promakhos de ânfora panatenaica helenística (363/362 a.C.), Eretria, Archa-eological Museum;
Fig. 10. (direita) Moedas helenísticas com figura de Atena promachos: (acima, à esquerda) Octóbulo de prata, Siracusa, 278–276 a.C., Pirro, rei de Épiro; (acima, à direita) Tetradracma de prata, Alexandria,
305/4-282 a.C., Ptolo-meu I; (baixo) Atena Alkis: Tetradracma de prata, Macedônia, 277–239 a.C., Antigonus II Gonatas.
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Fig. 11. (esquerda) Ânfora “SOS”, início do século VI a.C., prov.: Vulci, alt.: 67,5 cm, Pensilvânia MS 562; b. (meio) Ânfora à la brosse, século VI a.C., alt.: 60 cm, Atenas, Ágora 1501-2-3; c. (direita) Ânfora
“protopanatenaica”, c. 570, Bolonha-sobre-o-Mar 592.
Fig. 12. Ânforas de transporte variadas: ânfora de Samos, primeira metade do século VI a.C. (a), ânfora ática (à la brosse), século VI a.C. (b), ânfora de Quíos, século VII a.C. (c), ânforas romanas Dressel 3 (d),
20 (e) e 34 (f).
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Fig. 13. Gráfico de relação entre a medida do bojo (maior) e do pescoço (menor), a maioria transitando entre 1 para 1/3 e 1 para 1/5 (faixa hachurada).
Fig. 14. Vaso inscrito (em Linear B) para transporte de vinho e óleo, c. 1300 - c. 1190, Kadmeion, Thebes – três nomes: dois nomes de pessoas e um nome de lugar, segundo Mountjoy, 2001, p. 74.
Fig. 15 e 16. Detalhes de jarro de transporte (parte alta com inscrições em Linear B); (acima) encontrada em Eleusis, (abaixo) encontrada em Tebas – alturas: c. 40 cm.
Fig. 17. Vaso de transporte (inscrição em etrusco). Fig. 18. Estampilha de alça de ânfora grega de transporte.
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Fig. 19. Locais de achado de ânforas panatenaicas.
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