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Prefácio e primeiro capítulo da série.

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Anita’s

por Rafael Arruda

projeto gráfico e capaCaio Vitor

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Pensamentos confundidos

pela ânsia do meu ser.

Respirar não lhe assegura

de sentimentos carecer.

Marcus Wash

“Apesar de Anita ser linda, não foi apenas por sua beleza que Jeff se viu

atraído. Ele ainda estava vestido com a farda quando ouviu as primeiras

notas soarem. Um som doce e ritmado. Vinha de um corredor ao lado

da lanchonete, uma placa avisava, “Aulas de Piano”. Fechou os olhos

e deixou que a música o conduzisse pelo corredor estreito. Um cheiro

fraco de chá. Podia ouvir o som de um sapato batendo contra o piso para

marcar o compasso. Pela porta entreaberta viu uma garota de pele clara

e cabelos castanho avermelhados. Tocava forte as teclas pesadas do piano

de cauda enquanto uma criança observava atenta, cantarolava algo que

não se podia compreender. Um passo em falso e o ruidoso piso de maneira

destacou sua posição, eram as mulheres as mais terríveis armas do campo

de batalha. A garota, Anita, olhou para ele com os olhos grandes, verdes

e assustados. Jeff saiu apressado.[...]”

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PrefácioAnita’s já foi um lugar clássico, daqueles que tomam nossas boas

lembranças e nos fazem perder, nostalgicamente, a noção de como as coi-

sas podem mudar. Anita era o nome da esposa de Jeff, ex-militar, resolveu

trocar de vida depois da morte da mulher. Abriu um bar. Escolheu um

porão sob o hotel Bahamas, limpou o lugar, envernizou as paredes, as

colunas de madeira nobre e encheu o lugar de mesas e cadeiras de mogno,

a iluminação sempre baixa. Mesas de bilhar, um balcão trabalhado a mão

com a bancada de pedra e uma incrível coleção de discos e bebidas. Os

quadros de mulheres bonitas e inscrições em neon, clássicos da época,

não faltaram. Começou então a colecionar elogios, visitantes ilustres,

fotos com personalidades, bolas e tacos autografados.

Aquele era o meu lugar, minha diversão, algumas vezes até ajudava

Jeff a servir as mesas, e como pagamento ganhava acesso irrestrito ao

pequeno camarim improvisado no dia de apresentações.

As reuniões com os amigos sempre aconteciam lá, e foi no Anita’s que

conheci as pessoas que mais amo hoje em dia. Contudo, como disse logo

no começo, tudo isso já foi.

Com a evolução chegando rapidamente na cidade, Jeff logo ficou para

trás, não admitiu a modernização de diversos aspectos, muito menos da

música. Como poderia deixar de tocar seus discos favoritos em seu próprio

bar? Passou a não admitir tipos estranhos e não servia com a cara de quem

precisava de clientes.

Minhas reuniões continuaram a acontecer ali, ficávamos até tarde

da noite, nos divertíamos com as histórias de cada um, planejávamos a

próxima noite, até que um dia percebemos que há semanas apenas nossas

singulares almas visitavam o lugar, nos demos conta que tínhamos

crescido e que o tempo tinha realmente passado fora daquele apertado

pub. Eu sentia que uma fina poeira de esquecimento repousava sobre

todos os móveis e sobre todos nós.

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A glória do Anita’s tinha chegado ao fim, ou pelo menos era assim

que eu me sentia, um inútil diante da complexidade de sentimentos que

aquele lugar transmitia. Um poço de minha própria antiguidade, um adul-

to jovem com ideias velhas. A bebida parecia rascante demais, o ar parado

demais, a música lenta demais e meus amigos velhos demais. A sombra de

um leve esquecimento, que no fundo era pertinente, escurecia o salão. A

luz que se via não era mais a dos anos de glória, e sim a dos olhos que não

deixaram de sonhar, ou então esqueceram, alheios, do momento de parar.

Eram onze horas do início de mais um inverno, Jeff estava curvado

sobre a bancada com aquele olhar de esperança enevoada de um pó de

giz, aquele mesmo giz que um professor sábio poderia ter descartado há

muito tempo. Eu esperava sentado na mesa que eu conhecia com um

mapa mental detalhado de todos os frisos, um cigarro de menta aceso,

o peso da capa de couro escuro sobre meus ombros e as palavras treina-

das na ponta da língua, inquieta, esperando meus ouvintes, meus velhos

e inesquecíveis ouvintes.

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Cápitulo 1Embalado pelo choro de um saxofone tomava minha terceira dose

de martini, amargamente empolgante, 3 cubos de gelo. A calefação da

caldeira do Hotel Bahamas, o início do inverno que já não prometia mais

nada, o suor gelado do meu copo e minha capa de couro. Estava quase em

transe, percebendo o toque macio de cada temperatura.

– Marcus? Ei… está ai cara?

– Hã? – Meu olhar ainda sem foco reconheceu as feições de Bill.

Bill era um cara esguio, alto e magro. Tinha a pele um tanto pálida,

falta de sol, cada vez tinha que estar mais tempo dentro das salas de aula

para ganhar a mesma coisa. Professor de História. Defensor do Socia lismo.

Cético dos esquemas de controle social. Desenganado pela vida. A mulher

tinha morrido de câncer três anos à traz, uma filha para criar. Os cabe-

los lisos e negros já davam fundo para os brancos, dizia que era charme.

Dois minutos conversando com esta figura e você já não tinha mais ideia

do porque de ter passado tanto tempo acreditando nos outros, a verdade

estava mais perto do que imaginávamos.

– Perdido em pensamentos?

– É. São essas lembranças…

– Lembranças?

– Não parou pra pensar que estamos aqui todas as noites desde que

entramos na faculdade?

– Bem… Eu… – franzindo a testa.

– Não estou reclamando, quer dizer, isso aqui é minha vida. É que…

– É que você reparou que também gostaria de participar de um pro-

grama de perguntas e respostas, ganhar o prêmio máximo e esquecer de

tudo isso aqui, desse frio e dessa gente que te lembra miséria de espírito.

– falou me cortando, sem parar para respirar.

– Isso também. – sorri – Mas o que está me incomodando mesmo são

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todas essas mesmas sensações. É olhar para o bar e enxergar tanta coisa

que eu tenho que tomar aspirinas para voltar pra luz. E depois sair daqui

e olhar para minha casa, meu gato, minha família e… não sentir nada.

– Está vendo aquilo ali? – Bill apontou para uma foto de nossa turma,

pendurado na parede de persona lidades do bar, Jeff fazia questão de nos

deixar lá. – Estamos presos aqui.

Por um momento eu quis achar que aquilo era uma brincadeira. Es-

bocei um leve sorriso, procurando a mesma expressão no rosto de Bill.

Não veio. Foi o suficiente para saber que eu, mesmo sem querer confessar,

estava realmente preso aquele lugar.

Bill se levantou e foi em direção à Jeff. Ele sabia que eu precisava ficar

sozinho, me conhecia melhor do que ninguém.

Não é fácil perceber correntes invisíveis, aquelas que você mesmo

passa e da voltas, selando com um cadeado de lembranças, erros

e acertos, pois quando ela se fecha, você não quer acreditar nesse

passado. Tenho uma boa e uma má notícia. A boa é que você pode

passar a vida inteira dando voltas e selando com cadeados e nunca

perceber. Morrer atônito por não entender a origem do peso em suas

costas. A má é que, se você perceber, estará condenado à procurar pela chave

desses cadeados até achar, porque se não achar, morrerá sufocado por sua

própria alma agoniada por tanto peso. No fundo era quase a mesma coisa,

a diferença está na tensão da busca por significados. Eu percebi. Agora precisava

correr em busca da minha chave.

Reconheci o barulho do salto descendo as escadas. Era Sofia. Nosso

caso, que começara nas aulas de literatura do Instituto de Letras, nunca

teve um fim. Nós dois éramos fugitivos de nosso enevoado compromisso.

Covardes, sabíamos disso. Mas mesmo assim nunca deixamos de aprovei-

tar, tínhamos firmado um pacto silencioso de prazer bilateral, quando a

paixão falava mais alto, tratávamos de dar um jeito o mais rápido possível.

– Senti seu perfume à distância. – provoquei-a.

– Mentiroso. – sorriu.

– Não deixo de pensar nas melhores provocações para te fazer um só

instante da minha vida.

– E eu não deixo de superá-las.

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Aproximou–se lentamente do meu rosto e tocou–o com os lábios.

Senti sua respiração, leve, tocar minha orelha. Arrepiei.

– Não faça isso se não quiser acabar a noite em um quarto do

Bahamas. – ofereci.

– Impressiona-se fácil de mais, Marcus Wash. – dando uma piscadela.

Seguiu para o bar.

Nunca tive palavras suficientes para deixar de gaguejar perto dela.

Como poeta, nunca me permitia ficar sem uma resposta ou um comen-

tário, as palavras sempre me vieram de graça.

Mas com Sofia era diferente, minha boca secava e minha língua

não tardava a dar um nó. Embora eu nunca tenha escrito um poema

descrevendo a pessoa dela, eu sabia que todos os meus versos eram, sem

sombra de dúvidas, desenhos de suas próprias curvas.

Bill e Sofia voltaram para minha minha mesa trazendo copos. Jeff

batizou cada uma das bebidas que vendia ali com o nome de uma mulher.

Nunca revelou se conheceu todas elas, a única certeza que tínhamos era

que a bebida chamada Anita, com toda a certeza, ele possuía, mas não

vendia. Lendas do bar.

– Marcus está confuso, Sofia.

– Não, eu estava apenas pensando… – retruquei para Bill.

– Confuso com o que? – Sofia esboçou curiosidade.

– Voltou a pensar sobre as prisões que o Anita’s nos impõe.

– Bill, eu já disse que… – Sofia segurou minha mão.

– Pode parecer estranho, mas essa ideia não fugiu da minha cabeça,

desde a última vez que conversamos. – Sofia parecia ansiosa.

– Agora os amantes vão compartilhar da loucura? Por favor… Vou

pegar umas torradas. – Bill se levantou e foi de novo ao balcão.

Busquei respostas no olhar de Sofia. Não vieram. Ela ainda não tinha

soltado minha mão e eu era agradecido por isso. Percebi que algo também

a incomodava.

– Fale-me mais. – insisti.

– Marcus, estou tão perdida como você. – ela soubera desvendar

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meu olhar. – Nunca me senti tão sozinha e tão cheia de tudo. Não quero

parecer ima tura… – não pareceria – Mas acho que o Anita’s não é um

porão. É um calabouço.

Mais uma vez, de forma idiota, tentei achar graça. Não havia. Sofia

nunca estivera falando tão sério quanto agora. Eu tremia.

– Está com frio? – perguntou-me.

– Não. Com medo.

Ela fitou meu olhos, quase que como um tiro de raspão.

– Não fique assim. Eu não queria te assustar.

– Você não entendeu. É exatamente assim que eu me sinto. Preso.

Ficamos alguns segundos em silêncio.

– Você me ama? – perguntou.

– Penso que sim. – minha vontade era beijá-la e dizer que era óbvio.

– Mentiroso. – sorriu, sem graça.

Toquei seu rosto e trouxe-o para perto do meu. Brinquei com nossos de-

sejos e por alguns momentos senti nossa respiração se misturar. Ela se afastou.

– O amor é um jogo perdido. – disse–me.

– Não. Nós é que somos um caso perdido. – sorri.

Ela me abraçou jogando todo o peso do seu corpo sobre o meu, pensei

que ela iria chorar. Sofia nunca chorava. Estaria pronto para continuar ali,

suportando-a, o resto da vida. De novo ela se afastou. Éramos covardes.

– Você acha que um dia teremos um outro lugar para nos sentirmos

livres? Que não seja um porão escuro com bebidas?

Fiquei em silêncio. Senti que ela lia meu olhar. Não hesitei, não dessa

vez.

– Sim. E conheço um para irmos agora. – segurei sua mão e levantei.

Ela me seguiu.

Eu sabia que estava mentindo mais uma vez, ela também.

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Nos permitiríamos. Aquela pergunta ficaria entalada dentro de mim até

que eu pudesse dar uma resposta clara para ela. Até que eu pudesse dizer

que a amava sem hesitar.

Saímos do bar deixando Bill para traz, ele saberia se virar, logo

o restante dos nossos chegariam. A portaria do Hotel Bahamas era,

imbecilmente, do lado do Anita’s. Pegamos a chave do famoso 101,

subimos depressa, calados.

Abri e tranquei a porta tão rápido que não há movimento para

descrever. Beijei-a. Um gosto leve e doce que, eu supunha, era veneno.

Deitamos na cama já nos desfazendo das fúteis peças de roupa. Eu

sentia sua pele suave trocar calor com a minha. Arrepiava-me. Sentia seu

lábio fazendo pressão sobre o meu, me devorando. Eu correspondia com

o toque firme por todo o seu corpo, explorando aquela trilha que eu já

conhecia e tanto amava.

Busquei sua nuca e seu pescoço, ela gemeu tranquila. Nossa respiração

ofegava e nublava qualquer raciocínio lógico que poderíamos ter. Não era

para isso que estávamos ali.

Ela arranhava com malícia minhas costas, suspirava com um desejo

intenso o qual eu captava com muita atenção.

Compartilhava com ela meus desejos apenas pela química do contato.

Ela correspondia com precisão. Fitava -me e eu podia perceber seu prazer.

Satisfazia-me.

Tudo o que eu mais queria era senti-la completa em meus braços.

Agia com carinho e cuidado. Usava de força se fosse necessário. Éramos

cúmplices.

Senti que o fim estava próximo e beijei-a com a esperança de vê-la

sorrindo no final, enrubescida.

Compartilhamos de alguns segundos deitados sob o lençol branco, sem

saber quanto tempo passamos ali, até ouvirmos passos firmes pelo andar.

Quando chegou a nossa porta, cessou, procurava ouvir algo. Busquei pela

expressão de Sofia. Tranquila. As batidas na porta foram rápidas e secas.

– Marcus? Sofia? Me desculpe… – era o Bill.

– Bill? – gritei sem saber mais o que dizer.

– É… o Jeff, ele não está bem.

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Na atual conjuntura, não estar bem, poderia ser uma fatalidade. Não

perdi tempo para buscar expressões ou palavras, dessa vez busquei primei-

ro minhas roupas. Jeff precisava de nós.

* * *

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Anita’s é uma publicação do Coletivo Peralta.

Esta edição foi composta nos tipos Lavanderia e Meridien,

e contém 16 páginas no formato 540 x 840 pixels.

Julho de 2012.

Dedico esse projeto aos meus amigos.

Para aqueles que, em meu silêncio,

vêem-se parte disso.

– Rafael Arruda

coletivoperalta.wordpress.com

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