anjos do sagrado coração - colleen curran
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Colleen Curan
Anjos do
Sagrado Coração
http://groups.google.com.br/group/digitalsource
EDITORA RECORD
Para mamãe & papai, minha irmã Maggie
& Francis W. Decker
O QUE A GENTE SABIA
gente dançava todos os passos que vocês viviam querendo fazer:
o Deslizado Elétrico, o Y-Diferentão, o Giro da Assanhada. Até
mesmo o Oh! Ah!, apesar de a Juli achar difícil o balançado-
arrasta-o-pé- esquerda-direita.
A gente sabia calcular calorias, combinar as roupas com bandanas
multicoloridas, usar o ferro de passar para aplicar decalques. Era só passar
o ferro sobre eles.
Sabia fazer a bainha das saias oito centímetros acima do joelho.
Sabia preguear o tecido de modo que as saias dos uniformes voassem um
pouco quando a gente caminhava. Como numa dança ou numa cantanelle.
Sabia que nosso colégio era o último só de garotas de Milwaukee.
Astrid sabia como soltar a fumaça de um Lucky Strikc pelo nariz, à
francesa. Um dos garotos da Fenwick ensinou a ela. Com a mão na massa,
acho eu. Astrid.
A gente sabia uma porção de coisas sobre cabelos: escovar, pentear e
frisar. Sabia fazer mechas, pintar, tirar chiclete fora com clara de ovo. Sabia
encaracolar com baby liss e alisar com chapinha. Sabia que cabelo era
muito importante.
Sabia que todo mundo chamava a gente de as Putinhas da Colina.
Juli sabia palavras de sete letras para qualquer coisa. Como madeixa
e terroso. Era campeã de palavras cruzadas. Sério, ela ganhou uns troféus.
A gente sabia que era bonita. Mas a Astrid era a única que falava
isso.
A gente sabia todas as palavras da letra de je t'aime... Moi non plus,
de Serge Giansbourg. "Ele é o indecente da música popular francesa", dizia
a Astrid. "Só para o seu governo!".
A gente sabia apertar unzinho, sabia cheirar cola num lenço
molhado. Eram que nem truques de salão, dessas coisas para a gente se
exibir em festas.
"Sabem", dizia a Astrid, "vocês devem só comprar camisinhas com
non-oxynol-9... Isso mata a AIDS."
A gente sabia que a Irmã St. Joe fumava cigarros escondida no
banheiro dos meninos, já que não havia meninos para dar um flagrante
A
nela.
Sabia que a Juli gostava de arranhar os braços com a ponta
esterilizada de um alfinete de gravata, só que a gente não falava sobre isso.
Todas tinham alguma mania. Nós éramos garotas.
A gente não sabia que não sabia tudo. Não sabia que a nossa vida ia
mudar, que o colégio não ia durar para sempre. Quero dizer, a não ser que a
pessoa morresse.
Mas, a gente sabia de uma coisa. Por exemplo, a gente sabia que
sexo era como dançar. Como o passo do arrastar-o-pé.
A gente sabia que não parava quieta, os pés batendo, enquanto
esperava o telefone tocar.
Algum dia, isso a gente sabia, a gente não ia dançar certinho. Ia pôr o
pé para fora, os cotovelos fora do ritmo, e escapar da porra daquele lugar, o
Anjos do Sagrado Coração, o último colégio só de garotas de Milwaukee.
Mas, por enquanto, a gente só tragava a fumaça e dizia: "Me conta
uma novidade!"
CORRIDA DO DIABO
gente estava lá parada, nós três, Astrid, Juli e eu, entre a mesa de
pingue-pongue e o bar no porão da casa de alguém. Astrid deu uns
tapinhas em seu nariz pontudo com a unha negra, o nariz com
covinhas que dava a seu rosto um ar meio de bicho, meio felino. Ela ergueu
o colarinho, estilo certinho, e deu uma olhadela num garoto que tinha um
jeito sombrio, durão, e bebia uma dose de Jagermeister de um tobogã de
gelo que pingava na pia do bar.
Tínhamos 15 anos. O mundo nem havia começado para a gente, só
que Astrid tinha nos ensinado a olhar o mundo meio que desconfiadas. Ela
desviou os olhos umedecidos e amendoados do garoto Jagermeister e disse:
— Tá bem, certo. Ok, é ele.
O garoto Jagermeister viu e umedeceu a adorável boca rosada. A
jaqueta jeans puída, ele sorriu, debruçou o corpo magro para trás, contra o
secador, e brandiu o punho, como se dissesse: Pode vir!
— Tá a fim desse cara? — perguntou Juli.
E estávamos andando. Passamos fácil e rápido por entre caras
balançando os ombros para trás e para frente, dançando. E passamos junto
de quem estava enganchado, esparramado no sofá xadrez mofado, tirando
sarro.
Como perfeitas damas, avançamos pela lateral até o garoto
Jagermeister. Astrid prendeu um cachinho cor de mel por trás da orelha, e
pediu:
— Ei, dá um gole pra gente! Foi fácil assim.
Putinhas do Sagrado Coração. Era mais ou menos um sussurro, feito
anéis de fumaça soprada, o tipo de coisa que circulava nas festas. Era a
fama que a gente tinha.
— Por que eles têm de dizer isso? — perguntei, brincando com a
bolsa de imitação de couro branco atravessada nos quadris.
— E só botar a boca aqui — ensinou o garoto Jagermeister.
A bebida deslizava pelo tobogã de gelo como se fosse fogo. Astrid
abriu a boca, pescoço para trás, depois a Juli e depois eu. Todas nós com
hálito de bala de licor.
— Conheço você — disse o garoto Jagermeister,
A
— Claro que conhece — replicou Astrid. — A gente está sempre
circulando por aí,
Nós três nos enfiamos no banheiro minúsculo ao lado da cozinha.
Havia pétalas perfumadas por toda a parte. Em cestas e pratos de vidro.
— Porra, se ele é do Fenwick, não dá mesmo. Viu aquela tatuagem
de tigre?
— Ele disse que está chamando os amigos. Um bando inteiro!
— Você está com uma cara feroz! Como fez isso aí nos olhos?
— Olha lá, nada de ficarem bêbadas e me deixarem sozinha — disse
Juli, passando a escova nas franjas despenteadas para afastá-las dos olhos
verde-jade e poder copiar o truque de delineador de Astrid. Ela fez um
borrão de lápis preto que ia até as têmporas.
— Gosto do seu cabelo — disse Astrid, passando os dedos nas
camadas laterais dos meus cabelos descobrindo meu rosto. Pouco cabelo e
fino demais para segurar direito grampos de prata, como os que Astrid
usava atrás das orelhas.
Escutamos uma barulheira de motores de motocicletas, como se
fossem leões lá fora, acima da gente, no pátio.
— Qualquer lugar, menos Metropólis. Sempre acabamos por lá —
disse Astrid, passando a perna por sobre o assento com formato de banana,
na garupa do garoto Jagermeister. Ele estava com uma jaqueta jeans, tinha
cabelos negros arrepiados e um sinal meio grosseiro abaixo do olho
esquerdo. Disse que seu nome era Vance.
— Podem me chamar de Van — disse também.
Os amigos de Van vestiam jaquetas de couro e jeans surrados.
Garotos mais velhos. O louro deu uma risadinha. Tinha marcas de nascença
cor de vinho por toda a cara, como se fossem manchas de dedos ou de tinta.
— Vamos nadar pelados!—disse Van, — Conheço um lugar.
A gente subiu na garupa das motos e foi embora. Disparados, saindo
dos subúrbios, direto para o Centro. Van i;t na frente, com Astrid na
garupa, as pontas louras de seus cabelos revoando para trás como cortinas.
A Cervejaria Miller apareceu, lá junto do rio, o anúncio vermelho em neón
piscando na noite escura como se fosse uma palavra gigantesca
pronunciada por Deus. Era fácil sentir o cheiro do lúpulo, todas aquelas
bactérias fermentando.
— Qual é mesmo o seu nome? — perguntou o meu par, virando-se
para trás, as palavras mastigadas pelo vento.
Deixei as letras do meu nome se perderem no rugido da noite:
— Thisbe.
— Como é?
Os garotos viraram à esquerda entrando nas amplas ladeiras, todas
ruas residenciais, que ficavam em torno do lago salpicado de reflexos
luminosos. Van gritou, lá da frente:
— Corrida do Diabo.
Todos os garotos desligaram os faróis e aceleraram. Juli deixou
escapar outro grito de contentamento. Estávamos deslizando ladeira abaixo,
voando, flutuando sem peso no manto negro do céu noturno.
Van desligou o motor de sua moto no final de uma rua escura e sem
saída, A água do lago batia nas margens sem parar. Estávamos numa noite
de primavera, 21 graus, o último suspiro do verão, e nem era tão tarde
assim.
— Está com medo? — perguntou um dos garotos. — Melhor não ter.
Os bichos podem farejar o medo.
Van tirou a jaqueta e a camisa. Então, seus amigos desprenderam os
fechos de suas botas e tiraram os jeans. A pele deles, branca como giz,
absorveu a luz dos barcos dispostos como cordões de lanternas ao longo da
margem.
— Ok... — disse Astrid, e tirou sua pólo Izod. Juli e eu esfregamos
nossos braços nus, olhando. Astrid desprendeu as tiras que prendiam sua
saia em torno da cintura e chutou as sandálias para longe. Havia cerejas em
sua calcinha. — Vocês vão ficar paradas aí? — perguntou ela.
Juli livrou seus ombros bronzeados da camiseta que estava vestindo.
A água estava mais negra do que tinta. Astrid foi entrando até bater
na sua cintura, ergueu os braços magros acima da cabeça e mergulhou. Sua
cabeça emergiu, prateada e molhada, os olhos brilhando:
— Minha nossa — exclamou ela.
Juli deu uma olhada para minha saia jeans e sussurrou:
— É melhor você tirar, senão a Astrid vai ficar uma fera.
— Me dá um tempo! — disse eu, enquanto ia, muito sem graça,
tirando a roupa. Toda encolhida, corri para dentro da água como se puxasse
um cobertor para cobrir meu corpo.
— Mas você é uma gracinha — disse meu motoqueiro. Ele estava
bem junto de mim, na água, um tronco forte com pêlos ásperos e cor de
cobre espalhados no peito como se fosse pêlo de raposa. Sua língua tinha
gosto de batida de pêssego e cigarro. Suas mãos desceram para agarrar
minhas pernas, e eu comecei a dar chutes e a fugir dele, espalhando água.
— Opa! — exclamou ele. — Era só brincadeira. Astrid e eu ficamos
boiando de costas com os dedos dos pés para fora da água escura. A lua
despejava jorros de luz branca.
Juli chegou nadando de peito, a cabeça mal saindo da água,
parecendo mais uma foca. Ela disse:
— A marca de nascença dele é sexy. O que vocês acham? Será que
vai continuar assim para sempre?
— Claro — disse Astrid. — Por que não?
Van passou o braço pelos ombros pálidos de Astrid. A tatuagem
malfeita em seu bíceps pequeno e duro dizia EU ESTOU VIVO.
— Um garoto morreu aqui. Bateu em um bloco de gelo com a moto e
mergulhou direto — disse Van.
— Garota, deixa que eu aqueço você — disse o meu. Sua boca
queimava minha pele.
Tudo se resumia ao céu negro e às estrelas.
— Virem-se e fechem os olhos — disse Astrid quando quisemos sair
da água. Todas nós pingando e tremendo. Os cabelos negros de Juli,
derramando-se feito fumaça por suas costas, eram tão lindos que faziam
qualquer um suspirar.
Luzes bateram na água. Primeiro vermelhas, depois azuis.
— Polícia! — disse Van e disparou num nado livre para a margem.
Corremos em direção às árvores, rindo.
— Mas eu gosto dele. Viu que braços? Parecem cordas grossas, sei lá
— disse Juli.
— Olha só que bobalhões! Que nojo!
— Viu, Thisbe, não foi tão ruim assim, foi?
— Ele esqueceu meu nome. Ficou me chamando de garota.
— Senti a coisa debaixo d'água. Como se fosse um peixe querendo
pular fora.
Van e seus amigos vieram empurrando as motos pela estrada
poeirenta atrás da gente, faróis desligados, até perderem o fôlego. Vi eles
atirando de um para outro um maço de cigarros, como se fosse uma bola
vermelha e branca. Astrid enfiou a camisa de Van para dentro dos jeans
dele; remexeu nos cabelos dele com os dedos.
— Você é bonito. — Ela mordeu a orelha dele. — Bem do jeito que
eu gosto.
— Subam — disseram, e voltamos a toda para o subúrbio,
congelando de tão molhadas.
Em casa, mesmo na cama, bem enrolada nas cobertas, ainda parecia
que estávamos voando, Astrid, Juli e eu, atravessando em chamas a cidade
vazia e sem graça como se fosse um sopro de fogo molhado. Nosso desejo.
Queríamos o mundo. Todo ele, e agora.
COMEMOS E CONTINUAMOS COM FOME
uas colheres de queijo cottage — pediu Astrid à d. Noelle, a
senhora que cuida do almoço e que usa uma rede de cabelo
meio ferrada. Astrid estendeu uma moeda para pagar e disse:
— Você é a maior! Sério!
Juli comeu uma maça verde. Eu mastiguei um chiclete de hortelã. O
almoço só durava trinta minutos no Anjos do Sagrado Coração. A gente
sempre estava com fome, mas éramos bem magras.
A gente gostava de ver nossos ossinhos dos quadris. Gostava de ver
nossas costelas. A cantina era uma barulheira só: as mesinhas esbarrando
umas nas outras, os pratos se batendo na pia, garotas rindo, xingando. E
todas elas ruminando aquele macarrão.
— Vamos — disse Astrid, e passamos o resto da nossa hora de
almoço atrás da Virgem Maria, fumando.
— Putinhas da Colina... Ah, peraí! Quem foi que disse isso ontem à
noite? — Astrid acendeu um cigarro e passou os olhos pelo estacionamento
que se estendia atrás do Sagrado Coração, o chão de asfalto pegando fogo.
— Como é que a putinha se sente no dia seguinte? — brincou Juli.
— Cansada — Astrid bocejou e sacudiu a bunda magra. — A
putinha não quer pensar nisso. A putinha quer tirar uma soneca.
Astrid e Juli caíram na risada, as bocas bem abertas. Riram muito, as
cabeças jogadas para trás, e eu pensei: "Mas onde é que eu estou? Como é
que vim parar aqui?"
Deitada na cama, à noite, meu estômago roncava. Virei de lado e
apertei os joelhos contra o peito. Eu me via ficando cada vez menor, como
uma semente no solo, escuro feito a noite. Aqui estavam as estrelas e a
cidade. Aqui estava o mundo rolando, e lá estava eu, esperando, bem no
fundo, debaixo de tudo.
Pela manha, peguei uma mecha de cabelos louro-avermelhados e
cortei com gilete uma franja em ziguezague por toda a testa; fiz bainha na
minha saia para ela ficar oito centímetros acima do joelho; escureci bem
meus olhos com lápis, como a Astrid fazia. Eu sempre fui uma garota tão
certinha; eu ainda era uma garota certinha. Minha mãe me deu uma olhada
— D
e perguntou:
— Tem certeza que quer ter essa aparência? E eu pergunto a você
por quê, por que não?
TRANSFERÊNCIA
e prometa uma coisa? Sorria. Você nunca sorria no Tomás de
Aquino. Quem sabe foi aí que seus problemas começaram?
Minha mãe me levou de carro para o Anjos do Sagrado Coração na
primeira manha do meu primeiro dia.
Era cedo ainda, uma manhã abafada, quente e úmida de agosto, e a
gente ia com as janelas abertas. Um lado do novo permanente da minha
mãe ficou estufado como penas de perdiz. O olho esquerdo dela ficava
tremendo bem de leve. Se a gente não ficasse olhando, não percebia.
— Falei com as freiras sobre você. — Minha mãe tamborilou os
dedos no volante, ao ritmo da música de Huey Lewis & the News. — Disse
a elas que você era um bocado tímida.
Ajeitei as pregas da minha nova saia de lã. Assenti com a cabeça. Eu
era tímida. E não falava há seis meses e dezessete dias.
— Minha filha não se deu bem no Tomás de Aquino — contou
minha mãe à Irmã Claire, a freira trêmula e de olhos aguados que era
diretora do Anjos do Sagrado Coração, durante minha primeira entrevista.
— O ambiente lá era muito... como devo dizer? — Ela se virou para mim e
riu, um riso de quem quer agradar. — Competitivo, acho eu.
O Tomás de Aquino era uma colméia de prédios de andar único,
meio achatados e de tijolos, junto a um campo de futebol, uma pista de
corrida asfaltada, uma quadra de tênis e uma porção de estacionamentos
sujos, num quarteirão de mato alto, invadido por ervas daninhas, em
Pewaukee, um subúrbio bem afastado, enfiado entre pastos e fazendas
leiteiras no meio de lugar nenhum.
— Agora que estamos nos mudando para Wauwatosa... acho que
deveria contar a você, embora não haja nenhum rancor nessa história, que o
pai de Thisbe e eu estamos nos divorciando. — O olho esquerdo de minha
mãe começou a tremer. Era uma mania nova, aquela contração. Começou
logo que as caixas de mudança chegaram na casa dos sonhos pré-fabricada
e por onde o vento passava à vontade e na qual vivemos com meu pai por
quinze anos. Minha mãe fechou os olhos e pigarreou, embaraçada.
— Achamos que seria conveniente a Thisbe ter um novo começo.
Novo lar. Novos amigos. Nova escola.
— M
A Irmã Claire desembrulhou uma pastilha em forma de losango com
as mãos enrugadas e trêmulas, O cheiro de eucalipto encheu a sala.
— Sabia que escolas só de meninas e manicômios parecem
iguaiszinhos, numa foto aérea? — Irmã Claire sorriu, os olhos úmidos,
cortados de veias azuis soltando um fluido claro, amarelado. — O desenho
arquitetônico. É verdade!
O olho esquerdo de minha mãe estremeceu. Muito de leve, como se
fosse uma pena.
Na minha escola, Tomás de Aquino, o futebol era Deus. li os
jogadores de futebol eram Jesus Cristo. Diga: Aleluia!
Durante a apresentação do time à torcida do colégio, a gente ficava
batendo os pés na arquibancada, fazendo a maior barulheira. Padre John era
o diretor da escola e o técnico de futebol. Era tão careca quanto uma bola
de bilhar, com o topo reluzente. Gostava de se levantar na arquibancada,
nessas apresentações, endireitar o colarinho de padre e gritar:
— Digam todos! Qual é a principal razão de o Tomás de Aquino ser
melhor que os Falcões Fenwick?
E o colégio inteiro gritava em resposta:
— Porque a gente não abre as pernas!
Os jogadores de futebol faziam um barulho como se losse de trovões,
quando andavam pelos corredores, ensaiando dribles com bolas de
basquete, esmurrando os armários de metal e os alunos calouros.
— Ô, cara! Acho que esse bobalhão aí mijou nas calças. Brett Smith,
o zagueiro e estrela do time, gostava de agarrar as cabeças de calouros
magrelos, ainda meio perdidos pelo colégio, e batê-las com toda força
contra os armários de metal. Tinha a força com ele, o que no colégio é
geralmente confundido com beleza. Tinha olhos cinza-claros, queixo
pontudo, bem delineado, e um sorriso atraente, algo canalha. Ele chamava a
atenção, isso eu admito. O nariz em forma de espátula, quebrado em quatro
pontos, era torto feito um saca-rolhas engraçado e carnudo na cara dele. As
garotas eram doidas por ele.
As garotas eram comíveis ou não-comíveis. Essas eram as opções.
Havia uma lista. Tínhamos cotações. Eu era a número 12, de 142 garotas
calouras. Estaria mentindo se dissesse que não ficava impressionada, nem
surpresa, pela minha cotação. Eu tinha aqueles cabelos louro-avermelhados
que caíam em camadas até os ombros, e ombros largos, de natação. Minhas
pernas eram compridas e magras. Minhas clavículas pareciam angulosas
demais, como se tivessem sido feitas por um carpinteiro, sobressaindo num
suéter com decote em V. Eu não tinha idéia de quem eu era ou do que eu
podia fazer. Ainda assim, quando uma pergunta era feita na sala de aula, as
garotas estouravam suas bolas de chiclete e enrascavam os cabelos nos
dedos, para não parecerem inteligentes demais e, por extensão, não-
comíveis. Quando faziam uma pergunta a uma garota, na sala de aula, ela
apenas piscava.
— Ei, Ruiva! — Brett Smith apoiou uma perna de jeans desbotado
no meu armário. — Qual é a sua?
Enfiei os livros de colégio encapados com papel marrom no armário,
um atrás do outro. Gostava de desenhar durante as aulas naquelas capas
feitas à mão, coisas como histórias em quadrinhos de seres extraterrestres
correndo para todos os lados com as bocas escancaradas.
— Tenho uma surpresa para você. Só para você! — Brett mostrou os
dentes, seu hálito cheirando a pastilha de hortelã. — Me encontra lá no meu
Câmara depois das aulas. Vou mostrar para você.
Era assim que Brett Smith paquerava as garotas no Tomás de
Aquino. E por incrível que possa parecer, funcionava.
Mas fiquei apavorada. Fiquei olhando para ele como se fosse um
extraterrestre de desenho animado com dois chifres saindo da cabeça e uma
boca em forma de um grande O, revirando os miolos atrás de alguma coisa
para responder.
— Tô com coisa demais pra fazer! — disse. — Talvez outra hora.
Brett Smith franziu as sobrancelhas negras e grossas e me deu uma
daquelas olhadas profundas, subindo dos meus tornozelos até o meu peito,
avaliando, decidindo. Ele estourou a bola de chiclete e disse:
— E sua única chance, garota. Você decide,
Ele piscou, fechou meu armário com um chute dado com o calcanhar
de um Reebok e saiu corredor abaixo.
Nunca conheci por dentro o tal Camaro rebaixado e cheio de truques.
Depois disso, eu já era. Viviam pegando no meu pé. Virei pele.
Os amigos do Brett encheram meu armário com vegetais podres que
arranjaram na cantina: bananas pretas e se desfazendo, alfaces murchas,
batatas cobertas de brotos. Atiravam coisas em mim nos corredores,
maçarocas de papel pingando cuspe, pequenos aviõezinhos de papel com
leias garotas nuas desenhadas neles. Deixavam camisinhas usadas em
minha carteira na sala de aula. Atiravam ovos na casa dos meus pais,
colocavam sacos com bosta de gado nos degraus. E gritavam: "Olha a
piranha!" quando eu passava nos corredores.
Eu parei de falar. Quero dizer, não saía uma palavra.
Meus pais se separaram depois de anos de discussões horríveis e
casos extraconjugais etcetera. Minha mãe comprou uma casa colonial em
Wauwatosa, um subúrbio mais antigo e para gente mais bem de vida, a
meio caminho entre a elegante Zona Leste de Milwaukee e as cidadezinhas
de matutos, como Pewaukee. Chegou abril, depois maio e terminei aquele
ano no colégio. Um caminhão da May-flower parou na entrada de veículos
da nossa casa e dois homens vestindo macacões verdes e trazendo caixas de
mudanças entraram na casa, perguntando:
— Onde é que a gente deixa isso aqui?
O olho esquerdo da minha mãe tremeu.
Eu não sabia que todas as garotas entravam no Anjos do Sagrado
Coração pelos fundos, atravessando o pátio, passando pela estátua coberta
de limo da Virgem Maria. Na primeira manhã do meu primeiro dia de aula,
subimos de carro a colina, passamos pelo gramado comprido e inclinado,
passamos pelo convento das freiras, à esquerda do colégio e pela capela, à
direita. Como se fosse uma vila espanhola, o Sagrado Coração ficava
abrigado na colina. A capela tinha um reluzente telhado de cedro, vigas
aparentes e uma janela redonda com um vitral, no qual dois anjos abriam
suas enormes asas. Junto à capela, no prédio principal, no topo do terceiro
andar, havia um belo campanário pendendo sobre o Anjos do Sagrado
Coração como se fosse uma brilhante coroa. No instante em que o vi, soube
que faria qualquer coisa para entrar ali. Minha mãe apertou meu joelho e
disse: — Agora, não se esqueça. Sorria, Thisbe. A Irmã Claire me
apresentou aos professores — o jovem e tímido Padre Flynn, de Teologia,
Madame Smith, com suas bochechas esburacadas, a Irmã St. Joe, dos
lindos olhos de corça, que ensinava Química no terceiro andar numa sala
que, dizia-se, era mal-assombrada.
No almoço, levei meus livros com mãos trêmulas para uma mesa que
estava vazia, ao sol. A minha volta, as garotas estavam rindo e
conversando, fazendo o maior barulho.
— Mas o que é isso? — uma voz grave de garota soou irritada. —
Ei, qual é? Você se sentou na nossa mesa.
A garota usava os cabelos compridos até a cintura, como se fosse um
feixe de trigo, com duas tranças finas, uma de cada lado do rosto. Seus
olhos eram amendoados, bem aparados e pendurados sobre um nariz com
covinhas que dava a seu rosto pequeno e anguloso uma graça inquisitiva,
Um jeito felino. A luz do sol iluminava os fragmentos de poeira em
suspensão, rodopiando em torno dela como se fossem asas de mariposas.
Sua saia xadrez de lã era curta. Ela mudou o peso do corpo de um pé para o
outro. Então, sua boca em formato de fruta recurvou-se para cima, nos
cantos, num sorriso.
— Você é nova na escola, certo? Já ouvi falar de você. Ei, Juli! —
Ela chamou uma pequena garota asiática com sardas no nariz. — Olha aqui
a garota do Tomás de Aquino. Ei... — disse ela, jogando a bolsa de
camurça azul sobre a mesa. — Conhece o Billy Jank? Ele é meu ex. E
aquele idiota ainda está com todos os meus discos do Cramps.
— Eu sou Juli. Essa aí é a Astrid. — Juli estendeu a mão para mim.
Tinha olhos verde-garrafa muito vivos. A pele dela era tão morena e
luminosa que quase brilhava. — Bem-vinda ao Sagrado Coração.
— Qual é mesmo o seu nome, Docinho? — Astrid enfiou uma ponta
da trança loura na boca para umedecê-la.
Pensei em minha mãe. Dei um sorriso e encolhi os ombros,
— Você é uma de nós, agora — sorriu Juli. — As últimas da espécie.
Fiquei remexendo em uma folha arrancada do meu fichado, tentando
parecer indiferente.
— É, você tem o jeito certo — disse Astrid, cravando os olhos nos
meus. — De quem está de saco cheio dessa merda. De tudo, né? Nós
também. — Ela pegou na minha mão e eu senti uma descarga elétrica.
Astrid tinha cheiro de flores do sul, magnólias. — Vamos lá. Vamos fumar
um cigarro lá fora. E você pode contar os podres do meu ex, o Billy. Vem
conosco?
— C-claro — gaguejei. Astrid e Juli não perceberam nada, mas
fiquei espantada de escutar a minha voz outra vez, depois de tanto tempo.
Senti como se fosse um dêjà vu, uma coisa ao mesmo tempo estranha e
familiar.
Fazia muito tempo que eu não tinha amigas.
— Prometo que vai gostar daqui — disse Astrid, passando o braço
dela no meu. — Verdade! É uma droga! Mas mesmo assim é legal.
Passamos pelas outras garotas, nós três, Astrid, Juli e eu, rindo e
conversando, passamos pela vitrina dos troféus, pelo salão dos sêniores,
pelo quadro emoldurado da Virgem Maria e seu belo coração à mostra. E
fomos lá para fora, à luz do sol, onde os grilos esfregavam as patas,
cantarolando, onde os pássaros abriam as asas e disparavam através do céu
da cidade. Onde tudo parecia brilhante, reluzente e, finalmente,
alegremente vivo.
... E VOCÊ VAI RECONHECER A GENTE PELO
COMPRIMENTO DA SAIA
Anjos do Sagrado Coração foi originalmente duas escolas. O
Anjos Sagrados costumava ser no centro, na Rua Lakeshore, onde
as garotas usavam saias xadrez. Mas o número de matrículas caiu,
quase desapareceu. Quem é que ainda ia querer estudar numa escola só de
garotas? Assim, trouxeram todas as garotas do Anjos Sagrados para o
Sagrado Coração, que era um mundo.
Como o Sagrado Coração era o único colégio só de garotas em
Milwaukee, a gente vinha de todos os cantos da cidade. Juli tinha de rodar
quase 50 quilômetros, lá de sua mansão na elegante Zona Leste; Astrid
caminhava 18 quarteirões da casa feiosa da mãe dela no rancho, e meu pai,
mesmo ele e minha mãe estando divorciados, ainda me pegava na nova
casa colonial da minha mãe, dizendo:
— Puxe essa saia só um pouco para cima e ela vira um cinto.
No mais, nosso relacionamento era estritamente limitado aos oito-
minutos-e-meio do caminho de carro até o Sagrado Coração, em
Wauwatosa, nenhum dos dois falando muito.
Todo mundo chamava a gente de as Putinhas da Colina, Astrid, Juli
e eu, mas a gente nem ligava para isso. Saias xadrez de lã, todas tínhamos
de usá-las, oito centímetros acima do joelho. As freiras sempre ameaçavam
medir com régua, desmanchar as bainhas, mas nunca fizeram nada disso.
Era só comprar duas saias de lã e você estava feito. Blusas brancas
oxford e suéteres, podendo escolher: azuis ou vermelhos. Lã de cashmere,
angorá, ragweed ou moletons do shopping, com as etiquetas impressas
neles, exibindo marcas populares como Outback Red, Forenza, Benetton,
Express.
A personalidade se revelava nos detalhes. As garotas do
Clube de Economia Doméstica, todas de óculos de armações claras,
que usavam saias longas, tipo senhora, soltas entre os joelhos. Ou as
Gêmeas Malvestidas, Martha e Suzanne, ambas do penúltimo ano, que
usavam presilhas com fitas nos cabelos e desenhavam rostinhos sorridentes
em seus mínimos tartãs.
— Deus do céu! — exclamou Astrid.
As garotas no Sagrado Coração usavam o cabelo com permanente,
O
reto, encaracolado, comprido, curto, plissado com rolinhos, Princesa Di,
punk-rock, com mechas, ou assimétrico. Na maioria, estavam sujos,
enfiados dentro de um boné de beisebol ou balançando soltos num rabo-de-
cavalo.
Até mesmo as meias, a rigor, poderiam expressar estado de espírito
ou a posição política de uma aluna. Garotas esportivas usavam meias
soquete, daquele tipo com bolas de cores pastel na borda, saltando de uma
aula para outra. Garotas certinhas preferiam meias na altura do joelho,
numa trinca de cores: vermelho, branco e azul-marinho, e somente a ponta
lisa de seus joelhos bronzeados espiava para fora, como milho que a gente
acabou de tirar a palha. Malhas, lãs, meias estampadas: tudo queria dizer
alguma coisa. Meias-calças para as garotas puritanas, meias de lã para as
piedosas, as futuras freiras. Havia garotas que usavam meias de ski com
sandálias Birkenstock mesmo quando nevava apenas de leve.
— Hippies — dizia Astrid, brincando com o medalhão de prata da
Virgem que se alojava na cavidade rasa onde suas clavículas se
encontravam. — Pelo amor de Deus, onde é que está meu iivro de
Economia Doméstica?
— Puta que o pariu, que merda. Nunca vou conseguir chegar no
sétimo período.
— Aqui, tome isto. São pílulas para emagrecer. Com receita. Meu
pai arranjou para mim — Juli sorriu e ajeitou os óculos de raso de
tartaruga.
— Você está parecendo Miss Scarlet, daquele jogo de tabuleiro —
disse Astrid.
— Jura?
— Pode me passar dois desses troços espertos, irmãzinha.
Os corredores estremeciam com a zorra do intervalo entre as aulas.
As portas dos armários batendo, as combinações dos cadeados de plástico
girando, livros caindo no chão, aquele cheiro de pó de giz e perfume por
toda parte. Astrid passou uma escova nos emaranhados cabelos cor de
trigo, beijou os dedos e tocou o retrato desbotado de joan Jett rasgado de
Uma revista, que ela guardava pendurado no armário.
— Cuidado com a Irmã Mary Pat, ela está de olho. Me tirou dois
pontos por minha saia estar curta demais. Puxa... já!
Juli espalhou sua franja negra com as unhas pintadas em rosa-
flamingo-berrante.
Éramos fiéis ao nosso jeito de vestir. Punk-uniforme. Meias arrastão
por baixo das saias do uniforme de colégio, botas pretas militares, camisas
oxford abertas no pescoço e nos punhos.
Juli começou a usar um escapulário no pescoço; ela gostava de ter
uma imagem chamativa da Virgem entre os seios. Então, começamos a
imitá-la: escapulários, rosários, até mesmo os crucifixos que tínhamos —
tiramos para fora toda essa lixarada que estava guardada desde a nossa
Primeira Comunhão e começamos a usá-la toda de uma vez. Fazíamos um
barulhão pelos corredores, coisas chocalhando, a música das contas.
Quinn Catherine e sua melhor amiga, Taliferro Moss, vestiam
jaquetas jeans sobre suéteres. Passavam rimei azul na parte de cima dos
cílios e verde na de baixo. Usavam bolsas em formato de lua crescente da
Jordache debaixo do braço; moravam em Lakeshore Drive, em mansões de
tijolos com vista para o lago; seus pais eram ricos. Eram as garotas mais
populares no colégio. Meio metidas, mas mesmo assim...
Quinn Catherine e Taliferro Moss gostavam de seguir Astrid e a mim
pelos corredores, sussurrando nas nossas costas:
— O que as Putinhas da Colina estão vestindo hoje? Elas passaram o
dedo, sentindo a barra esfiapada de nossas blusas e silvaram:
— Minha nossa! Quem vocês pensam que são? Astrid girou no
calcanhar da bota com biqueira reforçada e disse:
— Foda-se, irmãzinha! Que invejosa!
Éramos garotas com saias xadrez, barulhentas e irritantes, rodando
de carro com as janelas abertas. Boas alunas, todos os anos entrando para o
quadro de honra, apesar de nossa fama. Éramos boas beijando, nada mal
dançando, rápidas com as mãos. Desesperadas e perigosas. Um tanto
perdidas, é claro. Todo mundo sabia disso.
Éramos garotas que pensavam não ser nada além disso: uma força,
uma chama, um milhão de terminais nervosos elétricos com apetite e sem
medo.
PUNIÇÃO
NOME: Juli Sung
DATA: 2 de setembro de 1987
INFRAÇÃO: Saia curta demais. Ver sra. Noe em Economia Doméstica para
baixar a bainha.
AVISO AOS PAIS
PONTOS PERDIDOS: 2
METRÓPOLIS
as primeiras noites que saí com Astrid e Juli foi mais ou menos
assim:
Nos vestimos de punk na casa da Juli. Meias arrastão por baixo
das saias dos uniformes, Doc Martens até os joelhos em nossos pés. Astrid
puxou o cabelo para o lado e fixou-o desse jeito com spray. Juli desfez as
franjas. Eu usei dois cintos com tacheado prateado, bem baixos nos quadris.
Entramos dentro do Audi cor-de-limão de Juli e nos mandamos do
subúrbio.
Nas noites de quinta-feira na Metrópolis, só serviam refrigerante. Na
segunda, era rock clássico, e era quando os hippies ficavam dançando em
círculo, acompanhando com movimentos da boca a letra de Freebird. Na
terça, tocavam as Hair Bands; quartas, as 40 Mais. Mas as quintas eram
nossas noites favoritas; era a noite do New Wave All Ages.
Luzes de neón cortavam a noite: METRÓPOLIS. Astrid, Juli e eu
pedimos três refrigerantes e nos empoleiramos junto a uma parede feito
falcões, observando tudo. Aquela agitação toda à nossa volta e dentro da
gente, tudo muito excitante e um pouco assustador.
— E até um lance fácil, quando a gente se acostuma — disse Astrid.
— Olha só!
Escolha o cara no meio da multidão, disse ela. Qualquer um que
atraia seu olhar: o garoto com aquele piercing prateado atravessando o
septo, aquele que revira as mãos como se fossem asas quando dança, o
delinqüente que está usando uma corrente comprida prateada saindo do
bolso, com a carteira pendurada.
— Olhos azuis. Eu queria um garoto de olhos azuis.
— Um fortão. Com músculos! Como aquele ali. — Astrid esfregou
as costas contra a parede atrás dela, fumando.
A música me excitava e eu tentava acompanhar o ritmo com a
cabeça, enquanto Astrid dizia:
— Lá vai ela...
No subsolo, em um enorme salão quadrado aberto, adolescentes
dançavam, saltando ao ritmo da música. A fumaça pairava em torno deles,
mãos no alto e cabelos esvoaçando. Havia fachos de luz atravessando o
assoalho, jogando borrões iluminados sobre um garoto de cabelo desfeito,
N
os olhos melancólicos de um azul celeste perfeito.
Astrid disse que a gente devia se aproximar sozinha e dizer alguma
coisa bem simples.
— Gosto dos seus sapatos.
— Você toca na banda?
— Legal essa tatuagem — e — Oi!
Você também podia perguntar: "Sabe que horas são?" ou "Posso
perguntar uma coisa a você?" e depois não fazer pergunta nenhuma.
Você podia dançar ou ficar parada lá. Fazer uma concha com a mão
tapando o ouvido dele para falar bem de pertinho, e com uma ótima
desculpa por causa da música a toda altura. Como uma droga, como um
anzol, a maneira como você ia querer tocar nele, levemente, esfregando a
perna no jeans dele.
E ele ia dizer:
— Obrigado —, talvez, — Como você se chama? Ou então:
— Quer dançar? E depois:
— Já vi você — e — Conheço você — e — Quer ir para um lugar
mais sossegado?
— Posso ir com você? — e — Como você cheira bem. Como é
mesmo o seu nome?
Você ia dançar, se movimentar cheia de malícia, o braço por sobre o
ombro dele. Ele ia enfiar o rosto em seu pescoço, fuçando, E esse primeiro
toque seria um pouco mais ou um pouco menos do que você estava
pedindo. A pele dele, muito doce, cheirosa, com perfume de almíscar. Ele
iria virar você suavemente pelo quadril, primeiro para a direita, depois para
a esquerda. Depois, aquele olhar hipnótico de adolescente, transfixado e
faminto seria cravado em você. Lambendo os lábios antes de falar,
escolhendo as palavras com cuidado, surpreso, mesmo sendo a velha
história de sempre. Pode chamar de uma variação sobre o mesmo tema,
tudo o que ele decidir dizer:
— Quer beber alguma coisa? — ou — Você precisa de alguma coisa
para beber?
— Estava olhando você — ou — Você estava me olhando? — Você
dança bem — e — Ei, não vá embora. Ele seria quase lindo, esse garoto.
Olhos tão azuis quanto um vaso de cristal azul.
Depois, ele diria:
— Conheço um lugar — e — Conheço um cara. Você me deixa
ligado! Suas amigas também podem vir — e — Vamos dar o fora daqui.
E, sempre, em algum momento, a isca infalível, o tiro certo, a aposta
sem erro:
— Você é tão bonita! Sabe como você é bonita? Astrid disse:
— É aí que as coisas começam a ficar interessantes, Docinho. Olha
só o que você faz.
Você pode levar ele para um canto, para o banheiro, para o corredor.
Havia um sofá de couro meio derrubado, no qual era fácil a gente se enfiar.
Uma coisa sem jeito, tipo febril, mãos em todo canto, puxando o seu jeans.
Ele ia respirar no seu rosto, na sua boca. Os olhos dele bem fechados, e
você lá, mais do que apenas um pouco assustada, tentando parar de tremer.
Você o beijaria, de leve, tentando se acalmar, apalpando a pele úmida e
pegajosa do pescoço dele, roçando os lábios na parte de trás de sua Orelha
macia cor de limão. Então, antes que você sequer saiba o nome dele, as
mãos dele arregaçariam a sua blusa, e você se encolheria com um
sobressalto.
Respire fundo. Outra vez.
Se o rosto dele parece perto demais, a pele dele quente, quase
queimando ao toque, se ele assustar você, se você sentir que está perdendo
o controle, se não souber o que fazer — um garoto, com o mesmo desejo
dos seus 15 anos —, então poderia dizer: "Peraí um instante!" e "Pára um
segundo!".
Astrid não aprovaria, mas fazer o quê? No escuro, os encobertos
olhos azuis dele se tornariam negros. Ele abriria e depois fecharia a boca,
tentando respirar.
— Ora, qual é? — sussurraria ele. — Você não vai me deixar na
mão.
Mas você já teria ido embora, cambaleando corredor abaixo,
procurando suas amigas.
— Ah, minha nossa! — exclamaria o cara de olhos azuis. — Mas
que merda!
Você procuraria suas amigas no salão de dança, no bar, nos
banheiros femininos. Juli, na porta, estaria paquerando o segurança. Ele era
grande e negro e, quando flexionava os músculos, inchados como
cantalupos, ela riria.
— Astrid? Procura lá na sala escura.
A sala escura era pequena, uma sala sem janelas com luzes negras
que tornavam o branco dos dentes de todo mundo púrpura, a pele branca
como a barriga de um tubarão. Haveria adolescentes esparramados pelo
chão. Um garoto com gorro de tricô estaria separando fileirinhas numa
mesa de canto bamba e as aspiraria com um bullet de prata. Uma garota
num top sem mangas estaria rindo com tanta força que seu nariz começaria
a sangrar.
Astrid estaria lá de pé, as costas contra a parede, enroscada com o
delinqüente que usava uma longa corrente prateada saindo do bolso. Sua
corrente balançaria para cá e para lá, ao ritmo do seu corpo se movendo
sobre ela. Eles ficariam abrindo e fechando as bocas, sem produzir som,
trocando a respiração de um para o outro sem receios. Ela curvaria as
costas, oferecendo a ele o pescoço pálido, seu eu. Seus cachos louros se
revolveriam como algas no fundo da água. O rosto dele suado contra o
dela. Seus olhos, seus lábios, seus cabelos. Tudo isso sob os dedos dela,
agitando-se.
Digam para mim que isso não é nada. Digam que não é coisa
nenhuma. Digam para mim. Está tudo bem.
UMA ENTREVISTA COM UMA ALUNA
DO SEGUNDO ANO DO ANJOS
DO SAGRADO CORAÇÃO
gente conhecia todas as revistas para adolescentes e folheava
todas elas, só de brincadeira: Teen, Seventeen, TM.
— Olhem só isso aqui — exclamou Astrid, virando as páginas
brilhantes e rindo.
Eu estava surpresa com a rapidez que me entendi com elas, indo para
a casa da Astrid ou da Juli, todo dia depois do colégio e ficando por lá para
ler matérias como "Cabelos que garotos adoram", ou para responder a
questionários como "Qual é a sua estratégia para conquistar garotos?".
Líamos colunas de conselhos, entrevistas, dicas de beleza, notícias de
moda, diários de namoros, horóscopos. Eram estúpidos e a gente sabia
disso, então começamos a fazer nossos próprios questionários:
P: Qual é o seu nome?
R: Ah, é Astrid Thornton.
P: Qual é o seu colégio?
R: Qual você acha que é, Docinho? Minha nossa! Quanta onda!
P: O que carrega na mochila?
R: Agenda Clairefontaine. Só uso Clairefontaine. Uma Caneta tinteiro, uma
daquelas lapiseiras mecânicas. Delineador de olhos Shiseido cor Black
Dog, um batom Lip Smacker vermelho-morango. Um maço de Kools da
minha mãe só com três cigarros. Pra ninguém filar.
P: Qual sua peça de vestuário favorita?
R: Fácil. Minhas botas Doe Martens de biqueira reforçada.
P: Que fita está no seu aparelho de som exatamente agora?
R: Histoire de Melody, de Serge Gainsbourg. É, bem... muito velha e fica lá
o tempo todo. Ele foi perseguido porque pôs a filha para cantar sobre
sexo. Ele é tão imoral. Eu amo Serge Gainsbourg.
A
P: Comida favorita?
R: Biscoitos Thins e Oreos, cerejas ao Maraschino, chocolate.
P: Lugar preferido para fazer compras?
R: Gosto deles todos. Limited, Express. Mas, prefiro o Outback Red ao
Forenza, Benetton ao Outback Red. Bem, sabe? O Thrift...
P: Sua idéia de luxo?
R: Um maço inteiro de cigarros e um tanque cheio de gasolina. Minhas
amigas comigo prontas pra tudo, nós todas emboladas no carro.
P: O que prefere fazer quando não está no colégio?
R: Coffe Trader: só sentar no bar e ficar olhando. Dançar na Metro. Rodar
de carro por aí, escutando Erasure, acho. E você sabe de mais alguma
coisa para se fazer?
P: O que você fez na noite de sábado?
R: Bebi Amaretto e rolei colina abaixo com Brian Parker. Fiquei com
manchas de grama na minha blusa toda e minha mãe quer saber de onde
vieram.
P: Se fosse ver um analista, seria por quê?
R: Por angústia da influência. Hum!
P: A mais difícil lição que teve de aprender?
R: Nada é o que parece.
P: A coisa mais sexy num homem?
R: Mãos. Toda vez, é o que me atrai. Não consigo nem olhar para um
homem com mãozinhas de menina.
P: Maior desejo?
R: Que a minha mãe deixe meu padrasto, Padgett. Que ela encontre alguém
legal. Alguém que não fique me agarrando com aqueles dedos nojentos.
O telefone tocou.
— Um instantinho aí — disse Astrid, e rolou na cama. Seu cabelão
de sereia desciam pelas costas e quase chegavam até o cinto de lona aberto
no short do exército. — Restaurante Chinês Panda — disse ela ao telefone,
com uma ridícula imitação de sotaque chinês, as sílabas embaralhadas. —
Ei, a gente estava falando mesmo em você. — Com a boca, ela fez: Van, e
revirou os olhos azuis-marinhos brilhantes. Ficou brincando com o
medalhão da Virgem Maria que tinha em seu colar.
Eu queria tanto ser a Astrid que às vezes essa vontade escapava de
mim como um suspiro. O poder dela, a força. O rosto anguloso, felino,
aquele lindo cabelão, tão cheio. Só de ficar perto dela minha pele se
arrepiava como se tivesse levado um choque elétrico.
Astrid dormia numa cama com dossel, coberta por uma colcha de
algodão. Sua mãe deixava um cobertor rosa de cetim na extremidade da
cama para as noites mais frias. O cetim rosa, franzido, se mexia feito água
sob meus dedos. As paredes dela eram cobertas de pôsteres do The Clash e
do Violent Femmes, deixados ali por uma irmã mais velha que se mudara
para a faculdade, em Madison.
A casa de Astrid no rancho era pequena, menor que a mansão de Juli
na Zona Leste, e até mesmo que a casa colonial da minha mãe. A casa de
Astrid era lá para dentro do lado miserável de Wauwatosa, onde os garotos
escoravam seus carros nas entradas de veículos com blocos de concreto e a
maioria das mulheres trabalhava de garçonete ou como manicures. A casa
de um andar de Astrid no rancho era confortável e desarrumada como um
quarto de estudantes de faculdade, com o padrasto dela, Padgett, roncando
no sofá só de cuecas e camiseta. Mas Astrid preferia o luxuoso quarto de
Juli no terceiro andar ou zorrear na Metrópolis, na Coffee Trader, até
mesmo na Goerge Webb, então raramente a gente estava por lá.
— Certo, a gente se vê, então — disse Astrid e desligou. — OK,
onde é que a gente estava? — perguntou, agitando as tranças junto aos
seios e voltando para mim seu rosto limpo, cheio de expectativa.
P: Mau hábito?
R: Roer as unhas até sangrar.
P: O que admira nos outros?
R: Um instante. Certo! Senso de humor. Bom gosto para moda.
Autoconfiança. Você sabe...
P: Se pudesse mudar alguma coisa em você, o que seria? R: Meu nariz
romano, Eu cortaria um pouco dele e o poria para cima, arrebitado na
ponta, feito o seu.
P: O cara perfeito. Na sua opinião. Descreva.
R: Jean-Paul Belmondo em Acossado. Na cena do quarto, com aquele rosto
arrebentado de boxeador. O cara do Duran Duran, não o cantor. Todo
aquele cabelo eriçado e a camisa aberta.
P: Descreva seus movimentos dançando.
R: Dança sueca de garota ABBA. Com um pouco de John Travolta.
P: O melhor livro que já leu?
R: A república, de Platão.
P: Na sua mesinha-de-cabeceira?
R: Uma máquina de escrever cor de rosa. Uma garrafa de água mineral,
sempre. Você já pode adivinhar o resto.
P: Como a sua mãe descreveria você?
R: Com muito potencial. Precisando cortar o cabelo, Mas o que ela pensa
de verdade é: minha nossa, como ela fala.
P: Se você pudesse ter um superpoder, qual seria?
R: Gostaria de voar.
P: É mesmo?
R: É, eu queria voar.
A IGREJA DE DEB SCOTT
ntes de nós, houve outra.
Deb Scott cheirava cola. Comia anfetamina. Fumava haxixe, em
vez de cigarros, Deb Scott era a maior, a über, a mais
malcomportada das garotas malcomportadas.
Astrid e Juli falavam o tempo todo dela. Todas as garotas do Anjos
do Sagrado Coração também.
— Deb Scott foi pega no galpão da pista de corrida agarrada com um
garoto do Fenwick.
— Ela agarrou o Padre Flynn no carro dele, um dia. Só para assustá-
lo.
— Teve um dia que Deb Scott roubou uma caminhonete e passou
bem pelo meio do milharal do Shumacker e ficou dirigindo em círculos.
Um prejuízo de três mil dólares. Juro, foi verdade!
— Deb Scott nunca chegava na escola antes do meio-dia. E às vezes
só depois das duas. E os professores nunca diziam nada de tanto pavor que
tinham dela. Ela dava uma desculpa qualquer e eles sabiam que era
mentira.
Havia uma legião de garotos de Fenwick com quem Deb Scott saíra.
Ela catava qualquer um perambulando na Zona Sul, caras com jeito bruto,
olhar malvado, cabelo moicano. Ela fazia amor com eles e os jogava fora.
Ninguém conseguia segurar Deb Scott; não por muito tempo.
Na maior parte do tempo, Deb Scott dirigia Corvettes, ou um Monte
Cario amassado. Tinha vezes que ela amarrava os livros na traseira de uma
Norton azul com uma tira de couro. Saía acima do limite de velocidade na
noite escura, seus braços apertados em torno do peito peludo de algum
garoto. Era o que diziam.
Deb Scott fumava haxixe do lado de fora, junto à Virgem, nos
intervalos das aulas. As garotas subiam até a saída de ventilação da
biblioteca para ver Deb Scott escapar furtivamente para fora até a estátua
da Virgem Maria. Ela abria a cortina negra de suas franjas mal-cortadas e
puxava tragadas pequenas e assoviadas do cigarro de haxixe que havia
enrolado e que guardava em sua mochila. Usava uma faixa no pulso com
pontas prateadas e não ligava para porra nenhuma.
— Deb Scott era tão filha-da-puta — dizia Astrid, retirando dois fios
A
de contas de rosários do pescoço e enrolando-os em torno do pulso — que
não tinha medo de coisa nenhuma.
— Deb Scott foi para o Dorothea Dix. Por comer vidro. Dá para
acreditar? — Juli contou para nós.
— Ah... — resmungou Astrid. — Foi só o haxixe.
— Mas você não ia fazer isso, ia?
— Escutei dizer que ela estava saindo com um homem casado, uma
época — disse Juli. — Um sujeito rico que não queria deixar a mulher. Deb
ficou puta da vida.
Diziam que Deb Scott certa vez fugiu da cidade com um Hell's Angel
e foi até Chicago, onde os tiras a prenderam pedindo esmola na Michigan
Avenue. Daí, mandaram ela de volta para casa. As garotas diziam que uma
vez ela se meteu nos bastidores de um show do Prince e encontrou o cara
num robe estampado púrpura. Entraram num quarto, trancaram a porta e
não saíram mais de lá.
Imagine só.
— Eu quase comeria vidro pelo Prince — disse Juli, e todas caímos
para trás de tanta risada,
Deb Scott dançava até tarde da noite na Metrópolis com seus braços
finos e pálidos por sobre a cabeça. Ela chupou um cara durante uma sessão
da meia-noite no Oriental. Deb Scott começou a girar em círculos no meio
da noite num restaurante que ficava aberto a noite inteira, como se estivesse
doida.
— A irmã mais velha de Quinn Catherine viu Deb Scott numa festa,
certa vez — contou Juli. — Disse que a Deb Scott estava sentada num sofá
esfarrapado com um bando de bagunceiros do Fenwick. Eles entornaram
fixador num trapo velho e apertaram na cara da Deb Scott. Quando tiraram,
a boca da Deb estava vermelha como se ela tivesse levado um soco.
Tudo isso foi cinco, seis anos antes do nosso tempo, quando Deb
Scott estudava no Sagrado Coração, quando havia dois colégios só de
garotas em Milwaukee, e não somente um. Deb Scott invadiu o Anjos
Sagrados através do campo de hóquei, correndo com seu bastão de hóquei
erguido acima dos ombros e gritando Atacar!
No último ano, Deb Scott começou a faltar às aulas à tarde. Então,
passava um dia ou dois sem vir e sem se incomodar de telefonar avisando.
As pessoas contavam que a tinha visto lá pela cidade. No banheiro do
Metrópolis, pagando um boquete em algum cara. Quatro da manhã no
restaurante George Web, sentada no bar, sozinha, atando as pontas de sua
franja negra.
— Já era muito rodada — diziam as garotas mais antigas — Assim
parecia.
Então, uma manhã dessas, no começo do inverno, quando as ruas
estavam brancas do sal, Deb Scott não apareceu na escola. As garotas que
ficavam de olho nela lá no poleiro da biblioteca esperaram um bocado, mas
nada de ela vir. Havia apenas o vento erguendo lufadas de neve e fazendo-
as rodopiar em torno dos pés nus da Virgem Maria.
— Sem mais nem menos, Deb Scott desapareceu. Ninguém sabe dela
— disse Astrid, acendendo um Kool.
Alguém começou a fazer pichações. Primeiro, na parede de tijolos da
sacristia. Depois, nas janelas do ginásio. Sempre do lado de fora, nas
paredes do Anjos do Sagrado Coração, e eram coisas embaraçosas de
aparecerem em público. DEB SCOTT ESTÁ MORTA, era o que dizia
numa caligrafia enlouquecida. DEB SCOTT ESTÁ MORTA por todas as
paredes do Sagrado Coração. Até que Fritz, o zelador vesgo, passou tinta
impermeável por cima com um rolo.
— Precisei dar três mãos, sabia?
— Deb Scott não morreu — afirmou Astrid. — Nunca vai morrer.
Astrid orava no altar de Deb Scott. E distribuía esmolas em memória
de Deb Scott. Ela cortou sua saia para ficar do tamanho da saia de Deb
Scott, cortou seu cabelo como o dela, que cresceu depressa, mais depressa
talvez que o de Deb Scott, a pior das garotas de toda a história. Astrid
acreditava na fama dela. Acreditava que Deb Scott estava atravessando o
país na garupa de uma Norton rugidora e azul. Deb Scott com seus cabelos
negros. Deb Scott com seus olhos azuis embaçados.
E BARRY ERA O NOME DELE, OH!
Preparatório Fenwick era nosso colégio-irmão. Ficava no centro
da cidade, onde as ruas eram estreitas e próximas umas das outras,
num prédio de tijolos com escadas de incêndio em ferro pintado de
amarelo serpenteando pela fachada abaixo e pelas laterais. Raramente os
víamos, até que, em setembro último, Astrid conheceu Barry. Astrid disse:
— Barry tem um desvio de septo. Ou pelo menos tinha. Agora é só
uma espécie de cicatriz. Acho muito sexy.
— Os braços do Barry são do tamanho de postes telefônicos.
Grandes, bem como eu gosto.
— Barry tem prática.
— Não ria, Barry me chama de Sexy Sexona de Sexville. Já disse para
vocês não rirem.
— Barry telefonou na noite passada.
— Barry mora em Lakeshore Drive. Vocês devem colá para baixo,
junto do lago. Ele contou que arranja um barril de cerveja toda primavera e
dá uma festa. Ele quer que a gente apareça.
— Ele me mordeu. Bem aqui. — Ela apalpou uma marca púrpura no
ombro. — Ai! — gritou. — Mas, bem, não foi pra valer.
— Barry falou que Ronald Reagan está a serviço das merdas das
grandes empresas.
— Ele tem uma voz! Meu Deus! Fica sussurrando no meu ouvido
como se fosse Mickey Rourke ou coisa assim. Juro que é absolutamente
verdade.
— Barry disse que eu sou emocionalmente aleijada. Mas, de resto,
tudo muito bem. Ora, que diabo isso quer dizer?
— Ele não gosta de quem fuma. Diz que uma garota que fuma tem
problemas sexuais. — Astrid fez uma pausa e acendeu um Kool. — Mas
que besteirada, não é?
— Acho que o Barry não vai gostar dessa camisa. E cheia de
babados, parece roupa do Prince.
— Ele não telefonou. Por que diabo não telefonou?
— A gente assistiu Goonies na noite passada. Não tenho idéia do que
aconteceu.
— O Barry dirige um BMW azul-bebê com assentos aquecidos. Ele
O
me deixa brincar no rádio, quando está dirigindo.
— Barry diz que gosta do Fenwick. Que ele não gostaria de estudar
numa escola com garotas. "Elas tiram a atenção da gente", disse ele. E
depois a gente trepou até cair no sono.
— Barry é ítalo-germânico, acho. Mas a mãe dele vive fazendo carne
assada.
— Ele masca Clorets.
— Ele às vezes diz: "Você me dá vontade de fazer alguma coisa má."
— O pai do Barry é vice-presidente da Miller Brewing. Saber do que
eu estou falando, não sabe? Grana!
Ele beija de um jeito depravado. Olhe só. O Barry me deu este
broche — disse Astrid, se metendo no Audi cor de limão de Juli e abrindo
seu casaco militar. Bem ali, espetado através de seu casaco com capuz e
zíper, estava o brasão do Fenwick que Barry lhe dera, com formato de uma
tocha flamejante. Nós exclamamos:
— Uau!
Quando finalmente o conhecemos, Barry estava parado num
estacionamento em frente ao 7-Eleven com seus amigos do Fenwick.
Estava vestindo um casaco do Fenwick, com uma letra F, couro branco e lã,
sobre uma simples calça jeans velha e desbotada. Estava com aquele
enorme e carnudo braço dele encaixado em torno do pescoço de Astrid,
como se fosse um torno.
Do jeito que ela falava dele, pensei que fosse, sei lá, Um deus, sabe?
— sussurrou Juli.
O que há de tão especial em um jogador de futebol do Fenwick com
permanente?
Mais tarde, Astrid telefonou e disse:
— Barry faz uma coisa. Quando ele se deita todo em cima mim e
deixa o peso solto como se fosse uma tonelada de tijolos, diz: "Isto aqui é
um teste. Eu estou morto e você tem de sair de baixo de mim." E eu não
consigo, não consigo nem respirar. Mas eu amo isso. Muito maluco, minha
nossa!
O SAQUINHO DE CHÁ DE BARRY
uas semanas depois que Astrid conheceu Barry, fomos parar na
entrada do campo de futebol do Fenwick, com camisas oxford
brancas e estreitas gravatas cor-de-rosa.
— É como Adam Ant e sua banda — debochou Juli. — Uma
insurreição, certo?
Escutamos a banda desfilar tocando marchinhas,
— É para eles entrarem no clima. — Astrid acendeu um Kool com a
guimba de outro.
Do portão, só se podia enxergar as costas das pessoas, vestindo
agasalhos com capuzes, sentadas nas arquibancadas. Daí, de instante em
instante, um punhado de garotos com malhas vermelhas e capacetes
brancos corria para a esquerda, depois para a direita, como se fossem
flechas em ziguezague cortando a noite.
— Que coisa chata! — Juli bocejou. — Tão homossocial. Todos
esses chutes. Esse negócio de gente amontoada. Você sabe o que está por
trás, não sabe?
Nunca íamos a jogos de futebol. Era uma questão de honra. Mas
Astrid queria ver Barry. Assim, ficamos esperando do lado de fora do
campo, compramos algodão-doce de um quiosque, sentamos no capo de um
Mazda amarelo e ficamos escutando o jogo no escuro.
— Aí vem eles! — Os olhos de Astrid se acenderam feito fogo. Os
Falcões Fenwick passaram trotando por nós, em fila única, indo para o
chuveiro — Phillip, Todd, Tyler, Barry — todos correndo por entre o
labirinto de carros, os capuzes sobre as cabeças como se fossem asas de
besouros. As luzes se apagaram no campo de futebol e ficamos sentadas,
rindo, na escuridão.
— Ei, garotas. — Os apertados cachos de cabelo de Barry
escapavam da gaiola de plástico de seu capacete com listas vermelhas e
brancas. — Esperem um pouco. A gente já volta.
Jogadores de futebol iam sempre aos mesmos lugares: Kopp's
Custard, o Taco-Bell drive-thru. Entramos na traseira dos carros deles e
deixamos que nos levassem a um lugar que conheciam, onde uma borda
arenosa se projetava sobre a margem do Lago Michigan, como uma pista
de aterrissagem, escondida da estrada por uma fileira de pinheiros com
poucos galhos. Fizeram fogueiras com galhos arrancados pelo vento e, na
D
hora em que chegamos lá, o fogo já estava crepitando alto, toda aquela
madeira amontoada como se fosse uma pilha de membros. Um enorme
aparelho de som enfiado na areia tocava uma mistura desagradável de
Whitesnake, Van Halen e Air Supply. Eu me sentei junto a Astrid e Juli
num dormente de ferrovia um pouco acima do fogo. Bebemos coolers de
vinho e ficamos vendo os garotos do Fenwick comer a comida que haviam
trazido.
— Me dá um desses hambúrgueres! Estou morrendo de fome!
— Ei, você com o cachecol na cara, devagar. Deixe um pouco para
as damas.
— Quem? Que damas? — disse rindo um jogador da defesa de nariz
enorme. Quando Barry o derrubou, afundou os ombros dele na poeira,
rosnando, o piadista guinchou: — Ei, é só brincadeira.
Jogadores de futebol me deixam nervosa, me lembram o Brett Smith,
do Tomás de Aquino, o rosto grande e bonito. Esses garotos são tão
grandes que não podem evitar ficar esmagando tudo à volta deles.
— Acho que esta noite... Barry e eu... vocês sabem, né?
Bebíamos em goles pequenos os nossos coolers de vinho e
perambulávamos pelo cobertor de grama. Os jogadores de futebol engoliam
suas cervejas de um gole só e esmagavam as latinhas na testa como se
fossem latas falsas de shows de mágica.
— É como um ritual de acasalamento — sussurrou Juli, — Não
parece tão horrível se a gente vê dessa maneira.
Contornamos a fogueira e sentimos o calor em nossos rostos.
— Ei, Ruiva — chamou um dos atacantes. — Eu queria afogar meu
saquinho de chá numa garotinha como você.
Era um garoto enorme e, quando chegou por trás de mim e enfiou o
rosto no meu pescoço, seu hálito cheirava a queijo. Tentou agarrar meu
cotovelo para me apertar junto a ele, mas eu escapei num pulo, derramando
minha bebida rosada em seu casaco com a letra da escola.
— Meu Deus, garota, o couro. — Ele me deu um tapa, afastando-me.
— Fique calma — sibilou Astrid.
— Detesto jogadores de futebol — sussurrei em resposta.
— Não me faz passar vergonha, certo? — pediu Astrid, seus grandes
olhos azuis-marinhos agora com expressão muito séria.
Os Falcões Fenwick colidiam de peito uns nos outros, como bodes
em luta, bebiam suas latinhas de cerveja e rugiam ao luar. Um receptador
grandalhão passou adiante uns cogumelos. A gente os punha na boca e
mastigava o suco amargo, escuro feito sujeira. Comecei a rir com a cabeça
pra trás, e meus dentes pareciam brilhar feito estrelas.
Astrid pegou minha mão, e depois Juli. Dançamos diante do fogo,
movendo as mãos pelas laterais do corpo, erguendo os braços acima da
cabeça. Os dedos de Astrid fechavam-se em torno do meu pulso como um
bracelete, como uma correia me conduzindo num círculo com ela e Juli. Os
cabelos negros de Juli caíram como uma cascata em minhas mãos.
Estávamos rindo e dançando. Astrid movia seus quadris, e nós também
começamos a remexer os nossos. Dançávamos junto das chamas, sentíamos
o calor do fogo em nossas costas. Astrid, Juli e eu dançávamos juntas,
dançávamos uma para a outra. Vivíamos uma para a outra, respirávamos
uma em função da outra, protegíamos uma à outra contra o nosso caminho
desconhecido.
— Olhe só pra você — disse Astrid, sorrindo. — Olhe só pra nós.
Fechamos os olhos, dançando, deixando os jogadores de futebol
entrarem em nosso círculo, depois empurrando-os para fora. A lua ardia de
tão branca. Estávamos felizes. O que mais poderíamos querer?
Então, eu estava viajando lá no alto, como uma corda sendo esticada
pela lua. Era como se meus pés não estivessem tocando o chão.
Os garotos estavam parados atrás de nós em fila, ficavam apenas
sorrindo, rindo. Estenderam as mãos para nos tocar, mas a gente apenas ria
e dançava. Como poderiam nos machucar? Como poderiam nos tocar,
quero dizer, de verdade? Se era sempre só Astrid, Juli e eu?
Barry parou bem atrás de Astrid, afastou seus cachos cor-de-mel de
um ombro e mordeu seu pescoço.
— Ei, Olhos Brilhantes — disse ele. — Quero dizer uma coisa a
você. Venha cá. Venha.
Astrid alisou o broche anarquista negro em sua gravata rosa e sorriu.
Ela sussurrou:
— Volto já.
— Claro que volta — disse Juli, sorrindo.
Barry colocou sua pata nas costas dela, abaixo da cintura, e conduziu
Astrid para a penumbra das bétulas. A floresta escura engoliu inteiramente
os dois.
Juli e eu dançamos.
— Olhe só para você — disse Juli.
— Não, olhe para você — respondi eu.
Mais tarde, eu estaria segurando os cabelos de Juli enquanto ela
vomitava junto da margem.
— Não conte nada para a Astrid, falou? — pediu ela. Juli sentou-se
na areia e apalpou os arranhões finos como fios de linha riscando todo o
seu pulso.
— Como é que você faz isso? — perguntei.
— Sabe o que meu pai diz? — perguntou Juli. — Que a identidade é
a crise da adolescência.
Então, rolou para o lado e colou o rosto na areia fria e molhada. A
água aproximou-se, quebrando em ondas, mil filamentos prateados
chocando-se contra a margem.
Na tarde do dia seguinte, estávamos fumando atrás da Virgem.
— O que aconteceu com o Barry? — perguntou Juli. Astrid abaixou
a cabeça e disse:
— É coisa só minha, certo?
Ela ergueu o zíper para ocultar o medalhão da virgem em sua
corrente de prata e sorriu para mim, desafiante:
— Além disso, você não ia ter nem idéia do que eu estaria falando,
não é, Docinho? Ou teria?
QUÍMICA
azíamos experiências no terceiro andar. Óculos de proteção e luvas
de borracha. As capas de nossos livros de estudo diziam A química e
você.
A Irmã St. Joe, a freira mais jovem no Anjos do Sagrado Coração, a
que usava o cabelo num corte rente, tipo malicioso, à Ia Dorothy Hamill,
ensinava ciências exatas: Física, Biologia e Química.
— Ao contrário do que a igreja diz, existe de tudo, Estou falando de
sexo — falava a Irmã St. Joe. Ela era tão baixinha que mal aparecia por trás
do pódio. Usava um crucifixo de prata no pescoço, com uma pérola
perfeita, do tamanho da cabeça de um alfinete, no centro. — A efemérida
vive apenas uma hora. Caracóis romanos fazem preliminares. Há uma
mosca fêmea que suga o conteúdo do corpo do macho depois do sexo.
O laboratório de Química se estendia até o comprimento de duas
salas na parede sul do andar de cima. Todas as janelas davam vista primeiro
para o milharal junto do colégio, depois para o cemitério dos soldados, bem
atrás dele sentávamos em antigas carteiras com tampo inclinado,
encaixadas em bancos bambos, negros, de vinil.
Houve uma vez em que Catherine McKenner esfregou por engano
cloreto de sódio em seus olhos e a Irmã St. Joe levou-a correndo para lavar
os olhos.
— Está queimando — gritava Catherine.
Há perigo aqui; moderado, mas existe.
Subíamos as regras do método científico: hipótese, procedimentos,
observação, análise, conclusão.
Astrid saiu correndo do laboratório de Química para a aula de
educação física depois da escola. Batendo portas e rindo.
— Você gosta de ser perseguida? — perguntou Barry, quando a
prendeu contra a mesa da Irmã St. Joe. — Conte! Você gosta disso? Quer
ficar com medo, garotinha? Quando soprava o vento, o terceiro andar do
Anjos do Sagrado Coração uivava como se estivesse possuído.
— Registros com defeito — dizia sempre a Irmã St. Joe. Mas
sabíamos a verdade.
Havia boatos, histórias sobre uma garota. Juli a vira primeiro. Juli foi
logo ficar com um armário no terceiro andar. O pior andar, o mais longe de
F
tudo e, para piorar, mal assombrado.
Vi uns cabelos negros, uma saia gasta e rasgada lá em cima, junto da
vitrina dos troféus. Seus dedos quase tocando no vidro. — Foi o que Juli
nos contou. — No instante seguinte, somente vento gelado e mais nada.
Rimos para espantar o medo, achando que Juli estava apenas doidona
com Xanax.
Numa região plana como esta, você fica totalmente entregue aos
elementos, mais vulnerável que casca de ovo. Hastes de trigo de pelo
menos um metro de altura eram achatadas pelo frio. Todo mundo falava a
respeito da sensação térmica:
— A gente tem a sensação térmica de 12 graus negativos.
Então, como não começar a ver coisas? Uma vez que se tenha a
hipótese, é necessário prová-la. Nosso procedimento: uma operação secreta
em meados de outubro. Pelo menos, pensávamos que fosse.
— Mas que merda, você pode me dar uma mão aqui ou não? —
pediu Astrid, rindo, enganchando uma perna no ombro de Barry e
estendendo a mão para a cortina rasgada da sala de Economia Doméstica
no Anjos do Sagrado Coração,
— Calma aí. Cuidado — sussurrou Barry para o seu amigo, o Atum
Grande, um jogador de defesa enorme com um desajeitado rabo-de-cavalo.
— É melhor você parar de ficar olhando debaixo da saia da minha garota,
seu sacana, ou vai ganhar um pontapé.
O irmão mais novo de Atum Grande, Atum Pequeno, um garoto
baixo, de cabelos crespos com uma jaqueta de flanela, estava parado sob o
vento, rindo, cobrindo a boa com a mão e disparou, com voz rouca:
— Idiota!
Ele me pegou olhando para ele e deu uma piscada.
— Certo, estou quase alcançando. — Astrid ergueu os braços acima
da cabeça e enfiou-se pela janela. Vimos as solas de seus sapatos
desaparecerem. Juli a seguir, depois eu.
Barry e os Atuns ficaram tremendo, assoprando as mãos.
Meteram-se pela janela com um estrondo, como se tivessem caído
sobre latas de lixo, rasgando a cortina pela metade.
— Merda!
— Shhh!
— Cala a boca!
— Acho que arrebentei um tendão. Shh, venha cá. Por aqui.
Astrid puxou uma lanterna negra da sua sacola de camurça azul e
saiu guiando a gente.
O colégio gemia à noite. A cantina fedia a macarrão, maças e
gordura queimada de hambúrguer. Luzes vermelhas, piscavam no final dos
corredores nos sinais de SAÍDA. Fomos andando sobre o assoalho de
placas de linóleo em fila única.
— Aqui — sussurrou Astrid, escancarando a porta para as escadas.
— Vamos subir até o último andar. Os passos pesados dos garotos do
Fenwick ecoavam pelas escadas.
— Ei, lindinha! — disse o Atum Pequeno, pegando minha mão. —
Qual é o seu nome?
— Thisbe — respondi, gostando do toque e também aterrorizada,
enfiando as mãos dentro dos bolsos do pulôver de zíper. — Mas todo
mundo me chama de Docinho. Fica Docinho, então. E Docinho gosta de
sanduíche de atum? — perguntou ele rindo.
— Como é que é? — perguntei.
Atum Pequeno tinha cabelos castanhos encaracolados na altura do
colarinho da camisa xadrez e aparelhos nos dentes. Mesmo assim, era
bonitinho. Ele sorriu e assoviou, um assovio baixo, uma melodia que ecoou
nas escadarias. Sempre quis encontrar um garoto que conseguisse assoviar
bem uma canção bonita.
— Shh — falou alguém.
— Sabe, né? A Mansão Pabst é mal-assombrada. Ah, é! — disse
Atum Grande. — Aqueles bandidos, sabe? Fizeram uma porção de sujeira
para enriquecer. Agora, não podem descansar. Tem gente que acha que a
casa está cheia de fantasmas. Correntes chacoalhando. Senhoras vestidas de
branco. Essa merda, sabe?
A gente adorava trazer garotos para o Anjos do Sagrado Coração.
Porque era o único lugar na cidade inteira que a gente conhecia. Era o
único lugar que a gente sentia que fosse mais nosso que nossas casas. E a
gente adorava levar um rapaz para o lugar que só conhecia garotas.
Era legal fazê-lo andar pelos corredores com a gente. Mostrar a
biblioteca, o ginásio, a capela. E contar a ele:
— É aqui que a gente almoça. E esse aqui é o meu armário. Nessa
sala, a 307, é onde eu sento, naquela cadeira ali, a segunda depois da janela,
às duas e meia da tarde. É aqui que eu fico.
A gente queria que ele conhecesse nosso mundo. E era melhor então,
naqueles dias, quando eram só garotas e garotas. Quando não havia nada
pelo que esperar na metade do dia. Você podia sentar na segunda cadeira
depois da janela, olhar para o corredor e olhar para o lugar onde seu
menino vitaminado, seu estudante estrangeiro de intercâmbio, seu jogador
de defesa do Fenwick descansou a mão contra a parede, bem no meio
daquele ladrilho verde, e como seus dedos eram bronzeados e delgados, e
pensar: "Preciso que a mão dele toque em mim. Vou morrer se as mãos
dele não me tocarem esta noite". E são essas as coisas que a gente precisa
agüentar numa escola cheia de garotas. — Vamos, por aqui — disse Astrid,
fazendo um gesto como cotovelo, a escuridão meio que se iluminando sob
o brilho de sua lanterna, de preto para preto-cinza.
O terceiro andar se estendia à nossa frente, uma longa faixa de
linóleo flanqueada de armários e uma estreita fileiras vitrinas contendo
várias prateleiras empoeiradas com um amontoado de lembranças do Anjos
do Sagrado
Coração. Apertamos nossos narizes contra o vidro sujo e Astrid
passou o facho da lanterna pelas prateleiras. Troféus de animadoras de
torcida, fotos em sépia, garotas com penteados tipo colméia e pudicas
meias brancas. Pompons, livros do ano, diplomas, duas borlas de
graduação, uma de cada escola, púrpura e amarela para o Sagrado Coração,
verde e branca para os Anjos Sagrados — penduradas meio ao fundo e
cobertas de poeira. — O que é isso? — perguntou Atum Pequeno,
apontando para uma porta com um cartaz alaranjado que dizia ENTRADA
PROIBIDA pregado com fita gomada na janela de vidro. — Vai dar na
torre do sino do Sagrado Coração. Está bem fechada — explicou Astrid. —
Mas a Docinho está doida pra subir até lá, não está, neném?
Eu nem sequer precisei dizer nada, e ela adivinhou. Atum Pequeno
tocou o lóbulo de minha orelha com o polegar, sua boca relampejou
prateada:
— Gosta de aventuras? — perguntou, correndo o dedo do meu
ouvido, ao longo da minha mandíbula, até o queixo.
— Claro! — disse, desafiante. — Quero dizer, acho que sim. —
Peguei o olhar desejoso dele e o sustentei.
— Certo, então alguém me diga — perguntou Atum Grande,
impaciente. — O que é mesmo que a gente está fazendo aqui?
— A Juli viu um fantasma — sussurrou Astrid.
Juli assentiu, roendo as unhas até sangrar. Deu um pulo, quando a
porta das escadas bateu atrás de nós.
— Ei, linda! — disse Astrid, passando seu braço por dentro do de
Juli. — Me dá uma palavra de sete letras para indecente.
Juli, com seus olhos sérios de esfinge, mordeu uma unha, cuspiu-a
pelo canto da boca e sussurrou: Obsceno.
Atum Pequeno piscou e deslizou um dedo timidamente pelo meu
dedo mindinho no que descemos o corredor. Seu toque era quente e firme.
Segurei a respiração. Atum Pequeno assoviou novamente a melodia
comprida e solitária.
— Shhh! — silvou Astrid. — As freiras vivem bem ali. — Ela
apontou para a porta do corredor que levava ao convento. Nenhuma de nós
tinha sequer idéia de como era o interior do convento, já que nunca
estivemos ali. Imaginávamos crucifixos, pinturas da Virgem Maria e do seu
filho, uma sacristia com o armário particular das freiras, onde: guardavam
as hóstias consagradas. Quem ia saber o que havia por lá?
— Então — disse Barry, descendo o corredor fuçando tudo em volta
— me conte uma história de fantasmas.
Astrid passou os polegares nos seus cachos repartidos e frisados,
enfiando-os por trás das orelhas.
— Foi aqui que Juli a viu. — Astrid jogou a sacola de camurça azul
sobre a mesa da Irmã St. Joe. Fomos atrás dela.
— Ei, aqui é igualzinho ao nosso laboratório de química — disse
Atum Grande, apontando para a tabela de elementos acima do quadro-
negro e para o esqueleto ossudo de boca aberta num canto.
— E... mas o de vocês é mal-assombrado? — provocou Astrid,
acendendo um Kool e sorrindo à luz do fósforo. — A história é assim...
Havia uma garota no Sagrado Coração. Estava no último ano. O noivo dela
foi para a Alemanha, ou para Saigon, algum lugar assim. Ele voltou num
caixão enrolado numa bandeira americana, Enterraram ele bem ali, lá... —
Astrid deu tapinhas na janela apontando o cemitério dos soldados, com suas
fileiras e mais fileiras de lápides perfeitamente alinhadas sobre uma colina
relvada como se fosse um cartão de loteria com suas perfurações. — Ela
ficou maluca de tanta dor. E se enforcou bem aqui. Mas nunca foi embora
do Anjos Sagrados. Fica olhando para ele, bem desta janela aqui.
— Não foi isso que eu escutei — murmurou Juli. — Escutei dizer
que houve um incêndio.
— Um acidente de carro. Estavam dirigindo bêbados. A caminho do
jantar de gala branco. O lindo vestido branco dela ficou arruinado.
— Ataque do coração, suicídio.
— Ah, foda-se. Quer saber? Qualquer coisa dessas. — Astrid soltou
um suspiro.
Todos sabiam um pedaço dessa história, até mesmo nossas castas
freiras, aquelas que jamais, nunca em suas vidas foram para a cama com
um homem, contavam há anos essa história: a assombração do Anjos
Sagrados. Essa história, nossa história, a mesma história. Os detalhes talvez
mudassem, mas o enredo era o mesmo: uma garota morrera; mas nunca
deixara o Anjos do Sagrado Coração.
— Shhh! — Astrid levou um dedo aos lábios. — Escutem, peraí um
segundo. Escutaram isso?
Todos prendemos a respiração e ficamos de ouvido atento à sala do
colégio mergulhada na escuridão. O vento uivava nas calhas, a cortina
rasgada batia contra os tijolos. Registros com defeito. Havia um barulho,
como se fossem sussurros.
Atum Pequeno apertou meu mindinho, sussurrando:
— Aqui.
Meu rosto ardeu, mas estava acontecendo, estava começando, como
eu poderia parar aquilo? Ele foi abrindo espaço para entrar no armário de
material de aula, em silêncio, ligeiro, me puxando junto, seu peito se
apertando contra o meu, sua mão no meu braço, no meu pescoço. Atum
Pequeno fechou a porta com as costas do meu ombro. Logo sua boca
encontrou a minha. Mordi os lábios dele. Ele enfiou a língua na minha
boca. Fechei os olhos. Não conseguia respirar. Mas nem pensava em
respirar. A escuridão nos cobriu. Eu sentia como se pudesse fazer qualquer
coisa no escuro e ninguém jamais saberia, ninguém iria contar a ninguém.
Ele deslizou as mãos para debaixo da minha camisa, pressionando a
pele da minha barriga, suas mãos subindo ligeiras em busca dos meus seios
pequenos. Olhei para cima e vi uma fileira de aventais de laboratório
brancos balançando em cabides acima de nós, como se fossem fantasmas.
Ele me beijou e me apertou. A pele do meu corpo era como campo
de chamas soprando para o norte ou para o sul dependendo da direção das
mãos dele. Ele pressionou o.....corpo, o volume em seu jeans, contra o meu.
Eu correspondi, pressionei o meu corpo contra o dele. Ficamos brincando
com nossos corpos desse jeito, como peças num quebra-cabeças,
arrumando e desarrumando. Coloquei minhas mãos nos seus cabelos curtos
e encaracolados e senti o cheiro do seu xampu. Às nossas costas, no
laboratório de química, escutei o ruído tilintante de vidro se quebrando e a
risada de Barry: — Que mão-mole! Atum Pequeno enfiou a mão no meu
jeans, e eu recuei, surpresa, engasgada.
— Peraí — disse eu, mas ele engoliu minhas palavras com sua boca,
zangado. Sua mão escorregou depressa por entre minhas pernas, subindo.
Fechei meus olhos para esconder a vergonha.
— Peraí! — sussurrei, mas sua mão era quente e gentil. Comecei a
sentir alguma coisa, algo que chegava de fora, novo, subindo em espiral de
onde ele estava me tocando com leveza, se espalhando como se fosse
brotoeja no verão, um calor meio sobrenatural por toda a minha pele, mas
tudo parou e fechou-se quando Astrid bateu à porta, sussurrando:
— Docinho, por favor. Temos de fugir. Já!
Atum Pequeno afastou seu rosto do meu. Envolveu meus cabelos
com as mãos e sussurrou:
— É melhor a gente ir embora, Docinho.
Abri a porta trêmula. O brilho da lanterna de Astrid queimou meus
olhos.
— Vamos — disse Astrid. — Depressa!
Juli, Barry e Atum Grande já estavam fugindo a toda pelo corredor
quando escapulimos do laboratório de Química. Uma porta bateu e Astrid
voltou seu rosto pálido para mim, brilhando por causa do perigo,
excitadíssima, abrindo a boca e gritando: — Corre!
Uma das freiras estava parada no corredor, vestindo uma longa
camisola branca, movendo para todos os lados sua lanterna como se fosse
um farol, varrendo o assoalho e os armários:
— Vão embora! Vão embora agora ou chamo a polícia.
Corremos até perder o fôlego, descendo o corredor, depois as
escadas, correndo pelo chão de linóleo. Por um segundo, pensei ter visto
alguma coisa. Algo parado na penumbra, debaixo do sinal de SAÍDA
vermelho. Cabelos negros, agitando-se como um lençol ao vento. Pálida,
rosto branco. Uma boca negra, lábios rachados, virados para baixo. Parei
no meio de uma passada, paralisada. Não sei, talvez não tenha visto coisa
alguma, talvez tenha sido só um de nós, um reflexo no vidro da janela.
— Vamos embora, Docinho! Acorda!
E lá fomos nós, descendo sempre, descendo as escadas, descendo até
a cantina, descendo e saindo pela janela, por entre as árvores, escapulindo
pela noite pálida, cortando caminho através do milharal com explosões em
nossas veias e nossos corações dançando aos pulos em nossos peitos.
Paramos, bufando, bem no limite da entrada do cemitério dos
soldados. Os dedos de Atum Pequeno puxaram o cós do meu jeans. Seus
dentes encontraram a carne atrás da minha orelha e se afundaram nela.
— Ei, Docinho, meu doce! — disse ele. — Quero pegar você e levar
para casa comigo. Daí, ponho você em meu armário e guardo um pouco
para mais tarde.
Eu ri, fugindo das mãos de Atum Pequeno, rindo e correndo com
Astrid do meu lado, Juli do outro.
— Você parece diferente — disse Astrid, ofegante.
— É?
A gente ia correndo, se esquivando, atravessando as estreitas fileiras
do milharal e alcançando as fileiras falhadas de dentes das lápides no
cemitério dos soldados, rindo e gritando como o vento na primeira noite de
inverno, como a terra voltando as costas para o sol, finalmente, então,
finalmente prontas para uma estação nova em folha.
QUIZ: VOCÊ É UMA PUTINHA DA COLINA?
COMO SABER SE VOCÊ É UMA FRACASSADA
PERDIDA NO MUNDO OU UM SUCESSO
DE ARRASAR
amos lá, pegue um lápis.
1. Sua hora de chegar em casa é às 23 em ponto. Às 23h02, você está...
(a) se enfiando na cama e se enrolando no seu lençol de Star Wars.
(b) vomitando nos arbustos nos fundos da casa de algum garoto.
(c) fazendo a festa com seu estudante gostoso de intercâmbio, como se não
estivesse nem aí, O nome dele é Sven. Diga a ele que seu nome é
Natasha.
2. Na Metrópolis, você vê o gostoso por quem está apaixonada
conversando com uma dessas garotas com Cabelo-de-Feira-Rural com
uma pochete na cintura e tênis Kangaroo. Você...
(a) entra de sola e diz: "Ei, vocês! O que tá rolando?"
(b) começa a se esfregar com o primeiro cara que aparecer, e rápido.
(c) começa a lamber o rosto da sua amiga. Com certeza isso vai atrair a
atenção dele.
3. Por baixo das calças você está...
(a) tom calcinhas da vovó, com aqueles elásticos frouxos e que machucam.
Um trapo. Não preciso dizer mais nada.
(b) com calcinhas brancas bem lindinhas, também conhecidas como estilo
Elvis Presley
(c) sem calcinha.
4. Depois de meses tentando atrair a atenção dele, você está conversando
com o astro em skate da cidade, que finalmente está entrando na sua,
quando sua melhor amiga cutuca seu braço, reclamando Estou enjoada.
você....
(a) ignora a garota. Ela sempre tenta um truque desses quando você está
V
conseguindo a atenção de um cara gostosinho.
(b) suspira, revira os olhos e diz a ela que tem umas pílulas legais para isso
lá no carro.
(c) rapidinho põe na mão do skatista o número do seu telefone e leva sua
amiga para a farmácia mais próxima. A amiga vem primeiro. Sempre.
Sem dúvidas.
5. O último disco que você comprou foi...
(a) New Kids on the Block, New Kids on the Block.
(b) Cat Stevens, Greatest Hits.
(c) The Dead Kennedys. Puro rock!
6. Sua avó lhe dá um suéter de cashmere da Lacoste no Natal. Você...
(a) usa o suéter todo santo dia. Parece chique com um cachecol no pescoço.
(b) dá ele para sua mãe, dizendo: quer esse lixo?
(c) tinge de preto e veste pelo avesso. É assim que é punk.
7. Vamos lá. Hora da verdade — se você pudesse ser a estrela de uma
sitcom da tevê, seria...
(a) Blair, de Facts of Life.
(b) a lourinha que ganhou o bracelete de identidade de Ricky Schroder, de
Silver Spoons, mas teve de devolver porque um idiota de um garoto
salvou a vida dela no lugar do Ricky.
(c) Lisa Bonet, de The Cosby Show.
8. Você entra numa festa e parece que todo mundo lá conhece sua fama.
Um bando de garotos com bonés de beisebol ri, tapando a boca com a
mão, e disparar Putinha! Você...
(a) gira nos calcanhares e corre para casa chorando ou algo do gênero.
(b) ignora os garotos metidos a engraçadinhos, pega o primeiro metaleiro
mais lambento que aparecer e senta no colo dele.
(c) vai pra cima deles e diz: "Muito interessante esse seu vocabulário.
Escutei por aí que você está cheio de chatos. Pelo menos foi isso que a
sua ex disse."
9. Feche os olhos. Pense num animal. Você vê...
(a) um cavalo com uma crina esvoaçante e dourada.
(b) seu pai, com as calças baixadas até os tornozelos, batendo punheta na
cozinha.
(c) uma loba feroz de olhos amarelos lambendo o focinho.
10. Você está nos bastidores de um show de rock. Tem rotineiro grunge por
toda parte. O cantor, o líder gostoso da banda, a sensação do momento,
está quase caindo em cima de você e diz: Quer conhecer nosso ônibus de
excursão? Você...
(a) começa a dar risadinhas compulsivas e foge dali, tipo franguinha
apavorada, como se as penas do seu rabo estivessem pegando fogo.
(b) vai dar uma checada no ônibus e rapidinho fica pelada. Alô, astro de
rock! Vamos lá!
(c) diz OK e vai com ele, sabendo que OK não quer dizer prometo pagar
um boquete em você. Quer dizer que você vai dar uma checada na porra
do ônibus e só fazer a porra que quiser e quando quiser.
SUA NOTA SIGNIFICA:
FREIRA-EM-TREINAMENTO
(MARCOU A NA MAIORIA DAS RESPOSTAS)
Olá, Noviça Rebelde. O que tem de errado com você? Olhe, não é nada tão
difícil assim. Sério. "Juro, vamos lá. Até eu posso fazer melhor que isso",
diz Thisbe Newton, aluna do segundo ano do colégio Anjos do Sagrado
Coração. "Sei que é assustador. Mas escute aqui, minha amiga Astrid diz
que a gente pode morrer amanhã. Mas acontece que você está viva,
querida. Aproveite ao máximo. O mundo está esperando por você. Está
sussurrando: 'Venha cá. Mais perto. Não, mais perto. Assiiiiim!'"
EXIBIDA
(MARCOU B NA MAIORIA DAS RESPOSTAS)
Menos, irmãzinha. Que merda! Está se achando o máximo? "Você é muito
exibida", diz Juli Sung, aluna do segundo ano do Anjos do Sagrado
Coração. "Manera um pouco, garota. Antes que se meta em problemas."
Vomitando nos arbustos, ora, tenha dó. Onde está sua auto-estima?
Estamos na era da AIDS, meu bebê, e você também tem a ver com isso.
Quer ganhar feridas nojentas e aterrorizantes em toda a sua cara e morrer
antes mesmo de ter um orgasmo? Ah, a gente conhece bem isso. Escute, é
só ter mais cuidado. Da próxima vez, em vez de ir até a fronteira mais ao
sul com ele, que tal dar a ele um bilhete só de ida para o México? Isso,
garota! Você sabe o que quer. Corra atrás. Vai ter uma surpresa.
PUTINHA DA COLINA
(MARCOU C NA MAIORIA DAS RESPOSTAS)
Valeu! Você é tão Lisa Bonet, tão loba, tão "preparada", ligue as turbinas,
sexatômica. Você está explorando a sua sexualidade, é o que diz Astrid
Thornton. "Você é uma adolescente saudável, normal." Sabe que há poder
na promiscuidade, mas também há riscos. Sabe a diferença entre fazer uma
coisa por divertimento e fazer porque se sente pressionada. Aproveite isso!
Ame isso! Viva isso! E diga pro resto do mundo pra sair da porra do seu
caminho, e já!
NOSSOS PAIS
s pais não estavam em lugar nenhum, na maioria dos casos. Era a
vida no subúrbio. Estavam ocupados das nove às cinco. Vestiam
camisas brancas, tinham aquele ar importante e usavam paletós de
corte reto. A maioria deles tinha uma coleção de gravatas. O pai de Juli era
cheio da grana. Quero dizer, herdou o dinheiro. E além disso tinha o seu
consultório de psiquiatra.
— Ele cobra duzentos dólares por hora. Só para as pessoas sentarem
lá com ele. Quando a gente sabe que vale tanto, isso já deve dar o tom de
todas as suas outras relações. Comigo, por exemplo — disse Juli. — E quer
saber? Acho que ele odeia a minha mãe. Ela espalhou o creme batido em
seu café expresso com leite e riu.
Já a Astrid tinha um canalha como padrasto. Padgett. Ele gostava de
puxá-la para o seu colo de manhã, enquanto estava lendo o jornal.
— Venha cá, pãozinho quente. Lourinha bonita.
Ela dava uma cotovelada na cabeça dele ou batia nele com sua
pesada sacola de camurça e gritava:
— Tire as mãos de cima de mim. Seu idiota gordurento. — Ele
gostava de apalpar a bunda dela, rindo. Estava sempre pondo a mão na
bunda dela ou na da mãe de Astrid. — Dedos. — Era como Astrid o
chamava. — Dedos nojentos!
— Ele trabalha indo nas casas das pessoas. Dá para acreditar? —
reclamava Astrid. — Ei, me passa o açúcar.
Estávamos no balcão de mármore rosa e creme do Coffee Trader,
balançando as pernas no alto de cadeiras giratórias.
— Quero dizer, ele limpa caixas de gordura nos restaurantes. Está
sempre com gordura nas unhas, gordura nas sobrancelhas, juro. E como se
fossem pedacinhos de manteiga dançando. Não suporto ele. Não sei como
minha mãe agüenta.
Padgett também era alcoólatra, um bêbado feliz, mas ainda assim um
bêbado. Tinha mania de bater com seu Chevy amassado em carros de
polícia estacionados no caminho do Packer Bar para casa. Astrid e a mãe
estavam sempre pagando fiança para soltá-lo, engordurado e arrependido,
segurando o chapéu nas mãos, escorregando nos degraus da Corte de
Justiça do Condado ao ir pegar seu carro assoviando Oops-a-daisy.
O
— Larga ele — Astrid falava para a mãe.
— Não posso.
A mãe dela era uma mulher tímida, de cabelos louros pálidos, ex-
rainha da beleza, que atendia ao telefone na Miller Brewing e freqüentava
um salão de cabeleireiros chamado Hair Cuttery no shopping, que cobrava
cinco dólares por um péssimo corte de cabelos.
— Por favor — suspirava Astrid, pelo menos uma vez por semana.
— Como a gente ia viver? Como é que eu ia poder pagar sozinha
pelo Anjos do Sagrado Coração?
— Ela morre de medo de ficar sozinha. —Astrid lambeu a espuma
dos lábios. — É sempre esse o medo maior. Sempre. Que ela fique sozinha.
Quando meu pai deu o fora de casa, seu maior medo se tornou verdade.
Meu Deus. Estou cheia dessa merda toda.
— E você, Docinho? — Juli cutucou o lado do meu corpo com o
canudinho. Você nunca fala sobre o Sr. Belo Papai. Já vi ele deixando você
na escola naquele enorme Jaguar preto dele.
— É... bem... — Sorri e girei na minha cadeira, dando uma piscadela
para um bando de skatistas com cabelo cortado a navalha em torno da
maquininha de chiclete. — O que é que eu vou dizer? — É... o que posso
dizer sobre o meu pai?
Um extraordinário publicitário. Frio, controlado, sempre
impecavelmente vestido nos seus ternos Armani que compra em Chicago,
dirigindo seu Jaguar pelas ruas do subúrbio, como se fosse o carro de um
astro de rock.
"Esse aí é o seu pai?", todo mundo pergunta quando o conhece,
porque ele é tão bonito quanto um astro de cinema quando afasta seus
cabelos castanhos já ficando grisalhos do rosto. Quando ele sorri, exibe
enormes dentes brancos. Suas mãos estão sempre limpas, têm linhas retas.
Um luminoso bronzeado dos fins de semana velejando com seus
colegas da publicidade num cruzeiro até Barbados,
Os dois tinham seus casos extraconjugais — meus pais — nenhum
deles jamais falou a respeito. Quando viviam juntos, nossa casa era
silenciosa e tão fria quanto como uma cripta, como uma tumba. Então, meu
pai pegou todas as suas coisas e se mudou para uma casa chique na
Lakeshore Drive, com mármore por todo lado. Minha mão mandou para ele
os papéis do divórcio por um courier e mudamos para nossa casa colonial
nos limites de Wauwatosa.
Até hoje, meu pai me pega toda manhã e me leva de carro para o
colégio. Não conversamos muito. Ele era um mistério para mim, intocável,
e desisti de tentar vê-lo por seu lado positivo. Mas ficou satisfeito quando
escolhi o Sagrado Coração.
— Conheci uma garota de lá, uma vez — disse meu pai. — Ele me
chamava de Bárbara quando estava dormindo — me contou minha mãe. —
E de Susan. O nome da minha mãe é Caroline. Eles viviam ocupados,
tinham sempre coisas para fazer. Assim como eu. Eu tinha Astrid e Juli,
esse ramo adolescente da família. — Lindinhos! — disse Astrid, seguindo
meu olhar em linha reta até os skatistas. — Olha só isso! — Astrid deslizou
da cadeira e pendurou a bolsa de camurça azul no ombro — O que Docinho
quer Docinho consegue! Certo, Juli?
Jogamos uns trocados no balcão, pegamos nossas jaquetas jeans e
fomos à luta carregadas de cafeína, açúcar e vaidade adolescente. Aqueles
skatistas magrelos e louros, totalmente distraídos, nunca souberam o que os
atingiu.
A primeira oração que ensinam a você num colégio católico é o Pai
Nosso. Toda manhã dizemos essa oração depois da primeira sineta. "Pai
nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome..."
— Tudo bem — disse Astrid. — Tanto faz.
PACIÊNCIA NÃO É UMA VIRTUDE
pai de Juli deu a ela um Audi cor-de-limão no aniversário de 16
anos, em novembro. Era de segunda mão. Ela era a única de nós
que tinha licença e rodava conosco pela cidade inteira.
— Cinco minutos. Talvez, quinze — disse Juli. — Espere um pouco.
Astrid fumou um Kool e passou delineador verde nos cílios. Era só o
que faltava. Fiquei sentada na cama de Astrid batendo nervosamente uma
pequena bola de borracha atada a uma raquete. Blondie gorjeava no rádio:
Y'm gonna get ya!
Espere um pouco, escute. Será que você pode escutar essa música?
— pediu Astrid.
Esperamos Juli vir nos pegar. Depois, rodamos pela cidade para ver
se encontrávamos alguém conhecido — Hilly, Barry ou Ty — parado numa
esquina. Daí, Astrid ia se debruçar na janela para bater papo:
— Ei!
Em vez de esperar pelo meu pai toda manhã, eu pegava uma carona
com Juli na pouca claridade do alvorecer. Descíamos voando a Blue
Mound Road, o estéreo tocando a mesma música do New Order por todo o
trajeto até o Sagrado Coração. Quando souberam do Audi verde de Juli,
nossos pais disseram, um depois do outro: "Aleluia!" e "Graças a Deus!".
Esperávamos nas filas dos filmes, no White Hen e no McDonald's.
Na maior parte do tempo, esperávamos chegar nossa vez,
No Sagrado Coração, esperávamos a primeira campainha tocar.
Depois, a segunda e, depois, a terceira. Esperávamos para abrir nossos
livros. Esperávamos para que trabalhos fossem passados adiante e para que
trabalhos fossem recolhidos. Esperávamos pela oração da manhã, o
juramento à bandeira, Quinn Catherine no corredor sussurrando: "Lixo!"
Esperávamos Padre Flynn não estar olhando para mostrar um dedo para ela.
— Contrariando a crença popular, paciência não é uma virtude —
disse Irmã Mary Pat na aula de Teologia enquanto ajeitava seus óculos de
aro à la John Lennon. — Mas caridade e perseverança são. O que mais?
— Será que você não pode esperar só um segundo? — perguntou Juli
no banheiro, remexendo a sacola de camurça azul de Astrid para encontrar
seu estojo de maquiagem,
— O que acha disso? — Ela pintou os lábios, depois passou uma
O
faixa de ruge debaixo dos olhos, como um soldado indo para a batalha. —
E disso?
Esperávamos pelos garotos do Fenwick depois das aulas., pregando
cartazes que anunciavam um baile do colégio. Todas as garotas — não
apenas Astrid, Juli e eu — ficavam elétricas. Nossas mãos reviravam os
cabelos, de repente se tornando espasmódicas.
— Epa! — disse Astrid. — Precisam de uma mão?
Os garotos do Fenwick eram tímidos, e no começo ficavam
gaguejando, cheios daquele cheiro de Old Spice ou, pior, Drakkar Noir.
Mesmo assim, eles nos pareciam bonitos com suas camisas engomadas e
calças caqui sem pregas.
Esperávamos um deles perguntar:
— Ei, o que você vai fazer depois? A gente se segurava por um
segundo, podia até chutar um pedregulho solto no chão, e então dizia: —
Nada especial! Espere um minuto, ele vai abrir a porta do carro para você.
Daí, faça seu rostinho mais bonito e murmure: "Belas rodas!". Daí, ele
afunda o pé por sua causa, juro, dirigindo a toda pela auto-estrada até a
praia, a lanchonete, seja lá onde for. Você vai descobrir que os garotos
também estavam esperando. Eles mentem e dizem "por você!".
Se ele for educado, você pode esperar que ele abra a porta para você.
Se não, você sabe como uma maçaneta funciona. Pode até dizer a si
mesma; É só um gesto. Descer a praia caminhando sob o vento, manter o
rosto bem de cara pra ele, como se fosse a proa de um barco, como se você
fizesse coisas assim todo dia, andar contra o vento que vem do mar. Espere
pelos dedos dele, primeiro nervosos, procurando. Talvez enfiando-se em
sua saia. Ou afagando seus cabelos delicadamente, mesmo que com timidez
no início.
Espere. Segure este momento como se fosse uma concha. Areia em
seus cabelos, areia em sua boca. Cuidado. Saiba esperar. Quando dizer
agora.
Ele vai soltar o ar em seu pescoço, o hálito cheirando a pastilha de
menta, sussurrando: "Meu Deus! Meu coração está disparado. Dá para você
sentir? E isso?".
Seu coração vai saltar quando Blondie cantar Ym gonna get ya. Foi
tudo fácil, verdade. Pelo menos é o que a Astrid disse. O zíper dele ia se
abrir mais do que rápido. Você ia pegar o pênis dele na sua mão, senti-lo
pulsar como se fosse um animal de corpo duro, silencioso, parado. Ponha
ele na boca como uma ostra, uma pedra, uma concha do mar lavada, limpa,
escavada de um leito de coral. Encoste sua língua nele, percorra-o, lamba-
o. Mova a sua cabeça. Mova a sua boca. Mova as suas mãos, os dedos dele
remexendo seus cabelos.
Mais tarde, em casa, em nossos quartos, sozinhas, esperamos o
telefone tocar. Esperamos enquanto pintamos nossas unhas. Esperamos e
tomamos uma chuveirada. Esperamos e vamos à escola. Esperamos a
primeira campainha tocar e a segunda. Esperamos para abrir nossos livros e
para fechá-los. Esperamos com nossos mocassins na sarjeta, chutando
folhas mortas, até Juli chegar com seu Audi cor-de-limão e nos levar daqui.
— Sabe o que Protágoras disse? — Astrid sacou um Kool e esperou
um pouco antes de acendê-lo. — Ele disse que a humanidade é a vitória da
possibilidade. — Ah, é?
— E Nietzsche disse que nada significa nada significa nada.
Juli encostou de qualquer jeito no meio-fio, em meio a muito vapor
de gasolina.
— Vamos logo! Entrem! — disse ela, abaixando a janela. — Agora.
INTERPRETAÇÃO SEXUAL DOS SIGNOS
ntão, você quer saber quando será a sua primeira experiência
sexual? Fácil! Está tudo nas estrelas. Cheque como foi a primeira
vez de seus companheiros de signo.
LEÃO 24 DE JULHO — 23 DE AGOSTO
Eu estava no sétimo ano e estava saindo com meu namorado desde o
começo do ano escolar. Ele era muito doce, me passava bilhetes na sala o
tempo todo e comprava flores para mim. Logo antes do Baile da Primavera,
ele me disse que queria "fazer nosso relacionamento passar para o próximo
nível". Apesar dessa maneira sem jeito dele de dizer, eu estava a fim. Acho
que pensei: por que não? Na noite do grande Baile da Primavera, os pais
dele estavam fora da cidade. Uma palavra para os papais e mamães: se
vocês estiverem passando uns dias fora, seus filhos vão ficar malucos, vão
muito além dos seus sonhos mais desvairados e sinistros, isso eu garanto.
Muitas e muitas vezes.
Ah, sim, especialmente em cima da sua cama. Não é isso que chamam de
Lei de Murphy, ou algo assim? Agora, se você quiser mesmo saber sobre o
primeiro orgasmo que eu tive na vida, isso já é uma história totalmente
diferente, e o nome dele é Barry. Meu Deus, aquele garoto...
Astrid Thornton, 15,
Anjos do Sagrado Coração, Milwaukee, Wisconsin
VIRGEM 24 DE AGOSTO — 23 DE SETEMBRO
Meu pai me comprou um anel em meu aniversário de quatorze anos. Era de
prata com um enfeite de ouro na frente. Tinha EU PROMETO gravado por
dentro. Isso queria dizer que eu estava assumindo um voto de castidade e
prometia a meu pai que não faria sexo até me casar. Fizemos o juramento
juntos no meu aniversário de quatorze anos, logo antes de eu soprar as
velas do meu bolo. Meu pai tinha lágrimas nos olhos. Não, não é nada
esquisito. Uso o meu anel de promessa até hoje.
E
Taliferro Moss, 15,
Anjos do Sagrado Coração, Milwaukee, Wisconsin
LIBRA 24 DE SETEMBRO — 23 DE OUTUBRO
Nunca contei isto para ninguém, certo? Quando eu era pequeno melhor
amigo, John Topp, e eu dizíamos que íamos subir para o nosso quarto
brincar de ThunderCats. Mas, na verdade, a gente tirava a roupa e ficava
um por cima do outro. Acho que se pode chamar isso de minha primeira
experiência sexual. Mas não quer dizer que eu seja gay nem nada do
gênero.
Atum Grande, 17,
Preparatório Fenwick, Milwaukee, Wisconsin
ESCORPIÃO 24 DE OUTUBRO — 22 DE NOVEMBRO
Astrid Thornton. Minha primeira vez foi com ela. Se me perguntarem,
valeu a pena toda a doideira de esperar acontecer. Uma gata selvagem,
aquela menina. Juro, até hoje estou com as marcas dos arranhões.
Van Luna, 17,
Milwaukee West High School, Milwaukee, Wisconsin
SAGITÁRIO 23 DE NOVEMBRO — 21 DE DEZEMBRO
No primeiro ano do colégio, fui para Madison para um campeonato de
palavras cruzadas. Cheguei a ser uma das cinco finalistas da minha
categoria, mas tropecei numa palavra de nove letras para doutrina —
ortodoxia. Estúpida! Mesmo assim, eles nos hospedaram lá no Omni
Madison e tinha uma garotada por todo o hotel. Daí, Allen, um garoto
dentuço de Peoria, me perguntou se eu queria conhecer o quarto dele Eu
disse: Porque não? Perdi minha virgindade com ele naquela noite. A
melhor parte foi quando ele ficou andando todo cheio de pose, pelo quarto,
vestindo o robe felpudo branco do hotel, fazendo sua imitação do Stallone.
Ri tanto que quase mijei na cama. Juro!
Juli Sung, 16,
Anjos do Sagrado Coração, Milwaukee, Wisconsin
CAPRICÓRNIO 22 DE DEZEMBRO — 20 DE JANEIRO
Apesar de esses garotos idiotas de hoje pensarem que isso é uma grande
piada, foi na minha noite de núpcias.
Fritz Judd, Zelador, 53,
Anjos do Sagrado Coração, Milwaukee, Wisconsin
AQUÁRIO 21 DE JANEIRO — 19 DE FEVEREIRO
Segredo absoluto disso, porque uma coisas dessas poderia arruinar minha
reputação no Tomás de Aquino. Acontece que eu nunca fiz o negócio
inteiro. Será que vou ter de soletrar para você entender? Meu médico me
disse que isso se chama ejaculação precoce. É uma doença, sabe? Estou
fazendo exercícios para ficar bom. Quer que eu mostre a você? Tem uma
toalha?
Brett Smitb, 17,
Tomás de Aquino, Pewaukee, Wisconsin
PEIXES 20 DE FEVEREIRO — 20 DE MARÇO
Foi na faculdade, com o professor assistente da minha aula de Romantismo
Inglês. Estávamos fumando um baseado no dormitório e não sei qual dos
dois sugeriu a coisa, talvez eu, talvez ele, mas começamos a ler poemas um
para o outro. Byron, Shelley e Keats. Os românticos. "Beleza é verdade,
verdade beleza." Coisas assim. Mas, às duas da madrugada, não pudemos
evitar. Nos entregamos aos desejos da carne. No dia seguinte, tomei um
banho de água benta e esfreguei tanto a pele que ficou em carne viva. Isso
foi há muito tempo. Não faço mais isso. Hoje, sou um servo de Deus e rezo
para permanecer assim para sempre. Para sempre.
Padre Flynn, 42,
Anjos do Sagrado Coração, Milwaukee, Wisconsin
ÁRIES 21 DE MARÇO — 20 DE ABRIL
Uma única vez, por causa de um desafio, deixei Billy Snedd meter dentro
por talvez cinco segundos. Mas isso não vale de verdade, vale? Ele é um
atacante no Fenwick Fighters. Forte feito um desastre de trem, aquele cara.
Quinn Catherine, 15,
Anjos do Sagrado Coração, Milwaukee, Wisconsin
TOURO 21 DE ABRIL — 21 DE MAIO
Não gosto de falar sobre isso. Mas, eu tinha oito anos, certo? E ela também.
Estávamos num acampamento de verão. Nojento, eu sei! Certo! minha
nossa!
Barry Buford, 16,
Preparatório Fenwick, Milwaukee, Wisconsin
GÊMEOS 22 DE MAIO — 21 DE JUNHO
Mas que merda! Por que diabo você quer saber isso? Ia acreditar em mim
se eu contasse? Mesmo que eu pudesse colocar isso em palavras, o
mistério, como a coisa rola? O que eu posso dizer que você já não saiba?
Ou que você não vá precisar descobrir por conta própria? Que revelação
posso fazer a você quando nada pode ser dito com certeza? Estou dizendo a
você: por que eu ia sequer tentar?
Deb Scott, paradeiro desconhecido
CÂNCER 22 DE JUNHO — 23 DE JULHO
Depois da noite em que a gente invadiu o Anjos do Sagrado Coração, eu vi
que precisava perder minha virgindade logo, Minha primeira vez foi meio
vagabunda, mas eu não estava esperando grande coisa. Foi com o Atum
Pequeno.
Doeu e a camisinha estourou, acho. Atum Pequeno não estava
exatamente tranqüilo no lance. Ele tirou fora e entrou em pânico, xingando.
"Puta que pariu, que azar!".
Astrid diz que sexo é demais, espetacular, como estrelas explodindo
e tudo o mais. Vou ser franca, não tenho idéia do que ela está falando, de
verdade. Fiz mais duas vezes depois, mais uma com Atum Pequeno e
depois com um skatista, que foi melhor, mas nada de luzes faiscantes de
discoteca, ou coisa assim. Não estou dizendo que foi ruim.
Só que não entendo por que acham a coisa tão maravilhosa assim.
Fico escutando eles respirarem ofegantes. Às vezes quando está tudo
escuro, é como se tocasse todas as sombras com a minha boca, explorando
todos os buracos do universo. Fico olhando. Fico tentando entender.
Thisbe Newton, 15,
Anjos do Sagrado Coração, Milwaukee, Wisconsin
MAIS OU MENOS GAY
lgumas garotas na escola eram mais ou menos gay. Significa que
andavam de mãos dadas, passavam os braços na cintura uma da
outra, beijavam de língua e com a boca bem aberta.
— Sapatões! — debochava Astrid. Apesar de a gente também, de
brincadeira, quebrar as regras que existem para as garotas.
— Os garotos ficam tão excitados — disse Astrid. Venha cá, É só
um beijinho. Vou mostrar a você.
Era final de novembro, e a gente estava sentada no alpendre da frente
da Coffee Trader, folhas molhadas na calçada e tudo cheirando a fogo. O
Coffee Trader fechava nas segundas, mas tínhamos esquecido.
— Não. — Dei de ombros e a mão de Astrid caiu Gozadora, ela deu
uma palmadinha no meu joelho.
— Ficou assustada? Jura? — Astrid parecia envergonhada, e ficou
olhando para suas botas Doc Martens com biqueira. — Ei, calma!
Eu estava usando uma blusa nova: voil suíço azul-bebê, com mangas
de princesa e laços vermelhos. Em casa, dei duas voltas com um cinto com
tachas prateadas em torno da cintura e achei que havia ficado demais, bem
punk rock.
Só que agora estava me sentindo meio Pollyana. Mas o que é que eu
tinha na cabeça? Mangas de princesa? Puxei as abas da minha jaqueta de
imitação de couro branca, bem fechadas, para escondê-la.
— Você está uma graça! — disse Astrid olhando a rua.
Dei uma espiada nela pelo canto dos olhos. Ela abriu com os dentes
um maço de cigarros, cuspindo o celofane depois. — Está vermelha de
vergonha — provocou ela.
O vento soprava as folhas pela rua abaixo. Era uma dessas noites.
Fim de alguma coisa, começo de outra. Eu sentia como se a minha vida
estivesse começando, só de estar junto de Astrid. Como é que eu sequer
respirava neste mundo, três meses atrás?
A iluminação natalina antecipada piscava nas vitrinas das lojas. A
Coffee Trader era na Downer, a Bleecker Street de Milwaukee. Calçadas de
pedra arredondada, lojas vendendo cachimbos de haxixe e artigos do
gênero, ambulantes vendendo tornozeleiras com sininhos de prata, um
pipoqueiro na esquina e, é claro, nosso lugar favorito, a Coffee Trader. Só
A
ali, sentadas no meio-fio, a gente já se sentia diferente. Boêmias, bem
urbanas.
— Vamos embora! Vamos pro Ecletic Eleanor. A gente vê quem
encontra a camiseta tingida mais pavorosa. Astrid me puxou pelo braço e
me carregou rua abaixo. Passei meu braço em torno da cintura dela e deixei
meus dedos descansarem sobre seu saliente osso do quadril. Ela cheirava a
baunilha e flores brancas, margaridas, talvez, e alguma coisa mais.
No Anjos do Sagrado Coração, as garotas que tinham jeito gay
faziam coisas umas com as outras. Como Trina Sinclair e Barbara
MacIntyre. Elas ficavam se agarrando no pátio dos fundos do Anjos,
lambendo o rosto uma da outra para chamar a atenção, até que as freiras
chegavam em fileira como patas, grasnando:
— Jesus, Maria e José... O que está acontecendo aqui?
Ou então Beth Hamilton e Mary Greenhorn. Estavam apaixonadas.
Fitavam-se com olhos arregalados como luas cheias durante a aula de
Química. Deixavam bilhetes uma para a outra nos armários. Andavam
sempre juntas, com os dedos mindinhos entrelaçados. Beth, uma garota
grande, germânica, com suas tranças, e Mary, um fiapo de gente, os cabelos
tão louros que eram quase como cetim branco. Quando Mary começou a
sair com um jogador de basquete do Fenwick, Beth ficou uivando como
doida e esmurrou o armário de Mary com os punhos.
Havia brigas. Havia encontros. Havia histórias. Sobre Marybeth
Fischer, a garota do último ano do colégio que seduziu e perseguiu uma
garota do primeiro ano por tanto tempo que ela ficou maluca. Acabou
mandada para o Dorothea Dix por seis semanas, e ainda escrevia cartas
compridas e ardorosas para Marybeth Fischer, assinadas como Sua
Doçurinha. Ela fazia seus pingos nos is com a forma de delicados e
sinuosos coraçõezinhos.
Na maioria dos casos, eram apenas paixonites, amores passageiros
que a gente pega feito resfriado e fica curado uma semana depois. Todas as
garotas se apaixonam um pouco por suas amigas. Até arranjarem
namorados. Depois que Astrid e eu paramos em todas as lojas da Downer,
depois que apalpamos todas as camisetas tingidas, capas de long-plays
empoeiradas e anéis, Astrid disse, bocejando:
— Vamos chamar um táxi. Um Buick cor-de-vinho parou junto ao
meio-fio meia hora depois, com um enorme sujeito negro na direção.
Entramos no assento traseiro, que cheirava a patchouli, e saímos à
toda do centro, descendo em velocidade a auto-estrada, passando por
milharais, cercas de grades e silos azuis, Astrid enfiou a extremidade louro-
trigo de uma trança na boca para umedecê-la. Ficou observando o motorista
negro, oculto na sombra, que, por sua vez, nos observava o tempo todo pelo
retrovisor. Ela passou o dedo na identificação plastificada com o nome
dele, pendurada para trás no assento do motorista. O nome dele era Genghis
Khan.
— Genghis Khan! Dá para acreditar? — sussurrou Astrid.
Genghis Khan nos deu uma espiada com os olhos úmidos e
castanhos, como se fossem os olhos de um animal, pelo retrovisor. Seus
cabelos negros avolumavam-se em torno da cabeça como se fosse uma
coroa de fumaça. Astrid com um sorriso tímido, Olhou para mim, piscou,
passou uma perna por cima de mim e de repente estava sentada no meu
colo.
Aconteceu tão depressa que eu não tinha sequer certeza sobre o que
ela estava fazendo. Muito ligeira, começou a se esfregar em mim, roçou
seus lábios nos meus, frenética como um arbusto em fogo. Um odor de
goma de mascar de menta e dos cigarros de mentol da sua mãe. Ela soltou o
ar e me beijou levemente.
— Respire na minha boca! — sussurrou Astrid. — Assim.
— Astrid!
— Vamos lá! Vai ser divertido. Para o Genghis. Astrid passou os
braços em torno do meu pescoço e me
beijou devagar; primeiro, só o calor de seus lábios roçando, depois,
pressionando meus lábios, a ponta de sua língua, a urgência dela, o calor.
Soltei o ar em sua boca, aspirei de novo. Ela fez a mesma coisa na minha.
Meu corpo incandescente sob seu toque.
As mãos de Astrid logo estavam erguendo a parte da frente da minha
blusa. Então, uma de suas mãos tocou na minha, puxando-a para debaixo
da blusa dela. Seus seios estavam soltos nas minhas mãos, macios e cheios
como pêras.
Vi o motorista nos observando pelo retrovisor. E então vi nós duas
no retrovisor, vendo o que ele estava vendo: a coluna vertebral de Astrid
curvada sobre mim, meus dedos apalpando suas costas, o faiscar rosado de
uma língua, gemidos. Astrid encurvou as costas, deslizou as mãos por
baixo dos meus seios e beijou meu pescoço.
— Vamos lá! — disse o motorista, sua voz aguda como a de uma
garota. — Façam tudo! Vão nessa!
Astrid me beijava e me agarrava com força. Sua língua enchia minha
boca. Suas mãos me puxavam. Tudo ficou escuro, como se fosse a parte de
trás da noite escura. Passamos com um solavanco por sobre um ressalto na
estrada e Astrid começou a rir, ainda sentada no meu colo mas inclinada
para trás, se entortando toda para dar uma boa olhada em Genghis Khan.
Ela disse: — Pode nos deixar aqui.
Empurramos para ele umas cédulas amassadas por sobre o assento e
corremos, o táxi ainda em movimento, Genghis Khan gritando:
— Peraí, garotas! Peraí! Estávamos rindo muito e correndo em
direção ao restaurante George Webb, na esquina.
Atravessando a rua, paramos e nos abraçamos às gargalhadas. Peguei
uma mecha dos cabelos louros de Astrid, afastando-a dos olhos dela, e me
inclinei para junto dela para aspirar o cheiro de mentol de seus cigarros. Por
um minuto, tive vontade de beijá-la de novo. Perguntei:
— E agora?
Mas Astrid só fez rir:
— Ei, não banque a sapatona comigo, certo? — disse, e correu à
frente, suas tranças louras sacudindo nas costas.
— Eu estava só brincando.
Respirei fundo aquele ar de final de outono, magoada e um tanto
surpresa. Foi o espelho, isso estava bastante claro. Foi tudo claro por causa
do espelho: Astrid no espelho. Mesmo assim, eu continuava amando-a. Não
importava se isso significava se eu era meio gay ou não.
— Vamos lá! Como é? — Astrid me puxou pelo braço. — Vamos
nos sentar no balcão e deixar os garotos malucos, certo?
Corremos para o George "Webb, na esquina, com nossas cabeças
jogadas para trás, nossos queixos apontando para o céu azul, enorme,
pontilhado de nuvens. Ríamos, perseguíamos uma a outra descendo a rua,
com a certeza de que podíamos levantar vôo e flutuar no ar; bastava
desejar.
COITADINHA
esmo sendo forte feito um caminhão, ou como um 747, atacante
de futebol, uma assassina, uma garota grande o bastante para
derrubar qualquer um, todos a chamavam de Coitadinha.
Coitadinha, sussurrava Irmã St. Joe depois da aula de química,
observando Coitadinha descer bambeando o corredor, sua saia do uniforme
tão apertada em torno da cintura que mais parecia um tapete tamanho
grande.
Coitadinha escondia o rosto por trás de seus óculos de aro de
tartaruga com formato de olhos de coruja. Vestia grossas camisas de meia
por baixo da roupa, que destacavam sua silhueta suína, em forma de pêra.
Nos dias frios, enfiava os cabelos por baixo do capuz e amarrava bem
apertando os cordões. Na maior parte do tempo, seu rosto parecia um saco
de roupa suja frouxa. — E então, ele disse... Esperem um segundo. Tem
alguém aí? perguntou Quinn Catherine, debruçada na pia no banheiro das
meninas. Taliferro Moss checou os reservados.
— E só a Coitadinha. E a quem ela iria contar?
Só que eu estava lá também, escondida, com minhas pernas para
cima.
— Certo. Onde é que eu estava? Ah, sim... O Barry disse: "Astrid? E
daí aquela idiota? Eu estou convidando você para o cinema."
Coitadinha carregava uma escova cor-de-rosa com cerdas brancas de
plástico na mochila. No almoço, sentava-se sozinha, numa comprida mesa
de fórmica que era só dela, e ficava lutando contra suas mechas castanhas
frisadas e emaranhadas, com aquela escova, para passar o tempo.
— Ela tem um problema glandular — explicou a mãe da Coitadinha
para a sra. Noelle, a encarregada do almoço. — Não deixe ela comer
macarrão e queijo. Absolutamente nada de carboidratos. Capisce?
Coitadinha estava remexendo uma tigela de clorofila e aniz com uma
colher de plástico. Ela apertou as cerdas de plástico branco na testa,
roçando-a por sobre as espinhas deixando um rastro nítido e linear de
fileiras de pontinhos sangrentos.
— Coitadinha — disse Juli, rolando uma maçã verde para um lado e
para o outro na palma da mão. — Por que ninguém arranja para a garota um
pouco de Retin-A?
M
Se ela jogasse hóquei de campo, nós a chamaríamos de Demolidora.
E quem sabe a cumprimentaríamos quando passássemos por ela, batendo a
mão na dela, no alto, em comemoração a um gol marcado. Porque
Coitadinha não produzia nenhum som. Jamais.
Coitadinha entrava na surdina nas aulas — Espanhol II, Economia
Doméstica, Química — com suas sandálias chinesas de solado macio,
como se fosse um pedacinho de seu solitário filme mudo. Ela empurrava
para trás um banco de aço sem nenhum arranhão estridente no chão.
Enfiava sua mochila surrada debaixo do assento com cuidado, sem um
ruído sequer. Então, punha seus livros sobre a mesa do laboratório, sua
caixa de lápis ao lado deles, e sua escova rosa de plástico, que ficava
remexendo nervosa, enquanto a Irmã St. Joe falava sobre a tabela periódica.
— Gravem na memória assim: Hoje Li Bem. Hélio, lítio, berílio. — A Irmã
St. Joe tocava cada símbolo de elemento com a extremidade de uma longa
vara.
— Lírio, eu tomo isso — disse Juli, rindo. — Não, sério. Não estou
brincando.
Durante o rolo amoroso entre Astrid e Barry, ele gostava de levar nós
três para o lago com Astrid no banco do carona e eu e Juli no assento de
trás, dividindo uma cerveja. Havia vezes em que eles se davam as mãos.
Ela afofava os cachos encrespados com fixador de Barry com suas unhas
pintadas de negro e sussurrava:
— Meu lindo! Passamos pela Miller Brewing, o Coffee Trader, o
Oriental. Contornamos as árvores, escutando música e o Barry dizendo:
— Tá vendo meu relógio? Timex. Legal, né?
Teve uma tarde que a gente viu a Coitadinha saindo da White Hen.
— Aquela ali pesa duas toneladas — disse Barry, apontando a
Coitadinha, que amarrava os cordões do agasalho com capuz cinzento.
Vimos ela desembrulhar uma barra de chocolate e enfiar metade de uma
vez na boca.
— Coitadinha — disse Astrid.
— O quê?
— Ela é a Coitadinha. Estuda no nosso colégio.
— É assim que vocês chamam ela? — perguntou Barry, sorrindo.
— É... e daí?
— Ei! — chamou Barry, abaixando a janela. — Coitadinha!
Coitadinha!
Na verdade, nunca a chamamos assim na cara dela. Coitadinha só
escutava uma coisa ou outra que era sussurrada, seguindo-a como uma
sombra de seu enorme tamanho.
Quando Coitadinha escutou o som da voz de Barry ladrando num
sinal de trânsito em frente ao White Hen, levou a mão ao rosto como se
tivesse tomado uma bofetada. Então, fechou os olhos, como se pudesse
apagá-lo, fingindo que não estava escutando.
— Você é um filho-da-puta! — disse Astrid. Barry sorriu, mordeu a
bochecha de Astrid e disse:
— Mas você me ama.
Bem depois, umas semanas depois, quando Barry parou de telefonar
para ela, Astrid não conseguia acreditar. Telefonava para a casa dele uma
dúzia de vezes por dia, e era sempre o irmão mais velho, Stan, que atendia
o telefone e gaguejava: — Certo, tudo bem, eu dou o recado. — Acho que
ele anda mesmo ocupado — dizia Astrid, no início. — Sabe como é, os
formulários para se candidatar à faculdade. Bem, qualquer coisa assim. Juli
e eu dizíamos:
— Meu Deus, garotos são tão babacas. Ele vai telefonar. Eu não
conseguia contar a ela sobre Quinn Catherine e Taliferro Moss no banheiro.
Não conseguia!
Astrid se segurou na sua mentira até uma tarde em que a gente estava
sentada junto da vitrina do Coffee Trader, tomando nossos expressos com
creme, vendo as pessoas caminhando na Downer Street, quando avistamos
Barry e Quinn Catherine, caminhando depressa através da neve em direção
ao cinema Downer. Passaram junto às vitrinas escuras de artigos para
doidões e pelas galerias de arte, pelo pipoqueiro na esquina com sua
carrocinha vermelha e a lamparina de gasolina. Vimos Barry enfiar sua
cabeça de cabelos encaracolados na vitrine, vimos quando ele encostou seu
rosto junto do perfeito corte de pajem dos cabelos louros de Quinn
Catherine e sussurrar algo em seu ouvido. Astrid parou de remexer a
espuma de seu expresso; simplesmente ficou paralisada, imóvel como um
pássaro, e arregalou os olhos. Vimos Barry girar Quinn pelos ombros e
encostá-la na parede de tijolos entre a delicatessen cubana e o quiosque de
flores. Vimos a boca de Quinn Catherine se abrir surpresa. Um toque de
rosa no branco da rua, Ela esticou os braços em torno do pescoço dele,
enfiou os dedos por entre os cabelos curtos, crespos e encaracolados do
pescoço dele. Astrid exclamou:
— Puta-que-pariu! Não acredito.
Ela faltou ao colégio por uma semana.
— Estou legal — dizia, quando telefonávamos para ela. — Vou ficar
legal. Acho que estou resfriada ou algo assim. Fico sentindo uma dor na
barriga. Mas, estou legal. Vou ficar legal. Juro. — Daí, ela tomava um
fôlego. — Você acredita que o filho-da-puta roubou de volta o broche do
Fenwick? Deve ter feito isso na semana passada, ou na se mana anterior.
Tirou da minha escrivaninha do quarto. Não teve sequer a coragem de me
pedir.
A mãe de Astrid atendeu a porta às três da tarde de um sábado.
— Astrid? Ainda está dormindo. Será que poderiam voltar mais
tarde? Ou amanhã? — disse ela, arrastando os pés calçados com Mukluks.
— Astrid sempre foi, como se diz... um pouco sensível demais. Coitadinha.
No colégio, Coitadinha passava silenciosamente pelos corredores.
Ela costumava demorar cinco minutos para abrir o armário, sabíamos disso
e a observávamos, ela não fazia um ruído sequer.
— Que piada! — disse eu. — Que bobeira. O que ela está tentando
fazer? Virar um fantasma?
— Ela não entende — disse Juli. — Nada muda; nunca
Já é tarde demais. Mesmo que ela desapareça. Coitadinha
Houve outras garotas como ela, mas Coitadinha era a mais triste, a
pior de todas.
BELEZA AMERICANA
uinn Catherine. Alguma coisa no amor de Barry a transformou, fez
que virasse a garota na qual todas nós cortaríamos os pulsos para nos
tornar. Ela tinha aquela coisa de modelo, mas era mais nova, ainda
usava um vestido xadrez. Desabrochou como um anjo, uma estrela, uma
nuvem de mágica em torno dela. Vestia o desejo de Barry, seu olhar de
intensa atração, como se fosse um cachecol em torno do pescoço, roçando
em sua pele como se fosse apenas para sentir sua maciez. Ela tirava nosso
fôlego, o frescor dela, a força.
Quinn Catherine — dizia Astrid, quase berrando. — Que merda, dá
pra acreditar?
Quinn Catherine sempre foi bonita, mas agora sua pele branca e
pálida quase reluzia. Ela pintava os olhos com um lápis azul-centáurea,
tanto nas pálpebras quanto por fora, como algumas atrizes famosas. Frisava
as franjas louras eriçadas, como uma crista de galo, e depois a ajeitava
como se fosse uma flor em sua testa. Sorria preguiçosamente, o
alinhamento perfeito de seus dentes como se fossem um cordão de pérolas,
sem falhas, certinho. Quinn Catherine até mesmo cheirava diferente de
antes; um estranho perfume etéreo de fruta de roseira brava e laranjas a
seguia por toda parte, ao longo de corredores cheios de pó de giz e no
banheiro das meninas com revestimento de ladrilhos de mármore.
Todo mundo reparava.
Quinn Catherine ganhou uma bolsa para ir ao campeonato estadual
de debates, ficou com o papel principal, o de Julieta, na peça do colégio; a
assistente da diretora, a sra. Slaby, chegou a pedir a Quinn Catherine para
ler os anúncios da manhã no sistema de alto-falantes.
— Sua voz é tão agradável — disse a sra. Slaby. Meu Deus, até
mesmo na sua fala, aquela beleza, o reconhecimento.
Agora, toda manhã, além de ter de sofrer com Quinn Catherine e
Taliferro Moss atrás da gente, chamando debochadas "Putinhas! Putinhas
da Colina!" antes das aulas, tínhamos de escutar a voz melíflua de Quinn
Catherine exortando todos os estudantes a trazerem produtos enlatados para
a campanha de doação de alimentos e empurrando em nossos ouvidos o
juramento à bandeira.
— A voz dela me dá vontade de enfiar a cabeça no forno — disse
Q
Astrid. Revirou os olhos e baixou a cabeça sobre a escrivaninha, exausta.
— Gostaria de raspar a cabeça daquela magrela.
Quinn Catherine, regia e luxuriosamente, eriçava suas franjas toda
manhã ao mirar-se no espelho que tinha em seu armário. Enfiava um
pequeno pente no cós da saia para retoques durante o dia, e pegava
emprestada uma pequena lata de spray de cabelo que Taliferro Moss levava
na bolsa
Nós sabíamos porque as observávamos, vez por outra lançando nela
uma repentina espiadela pelo canto dos olhos
Taliferro Moss seguia Quinn Catherine pelos corredores como fosse
sua serviçal. Dividia com ela o chiclete, os Tic Tacs, pequenas guloseimas
tiradas de sua bolsa Jordache em forma de lua crescente, que Quinn
Catherine enfiava com cuidado por entre os lábios destacados com lápis
labial marrom. Aposto que Taliferro carregaria os livros de Quinn, se
pudesse, mas ia parecer esquisito.
— Olha lá o casalzinho lindo — resmungava Astrid quando Quinn
Catherine e Taliferro Moss passavam por nós no corredor junto ao ginásio.
— Será que ninguém mais percebe?
Quinn Catherine sempre fora bonita, mas agora está confiante em si
mesma e corrompida. Usava o alfinete troféu do Fenwick que Barry lhe
dera espetado nos suéteres de cashmere todos os dias. Os dentes à mostra,
seu perfeito penteado estilo pajem preso para trás por uma faixa xadrez na
testa. Provocava Astrid dizendo coisas como:
— O que você fez com seu cabelo? Enfiou-o no liquidificador?
E...
— Mas que bonito suéter cor de mijo. Onde o comprou? No bazar da
igreja?
E...
— Ei, Barry mandou lembranças!
Mas o que Quinn Catherine mais gostava de fazer era se encostar no
seu armário, braços cruzados no peito, nos intervalos entre as aulas, como
se não tivesse nada melhor para fazer, apenas esperando que a gente
aparecesse, uma atrás da outra, conversando animadas, Astrid, Juli e eu, só
aguardando pela chance de sussurrar:
— Ele é meu agora! Todo meu. E você não pode fazer nada.
Ela nem precisava dizer isso, nós sabíamos. Assim, Astrid sorria para
ela, gélida, e lhe mostrava um dedo obsceno.
— O que eu posso fazer? — Astrid deu uma profunda tragada num
Kool atrás da Virgem depois da aula. — Nada! Nem tô ligando. Ele é um
babaca de merda mesmo. — Ela cerrou os dentes e observou a paisagem
triste, a colina de vegetação queimada, amarronzada e a depressão do
terreno, com aquela neve escura e lamacenta.
— Foda-se! Vamos caçar uns skatistas e torná-los nossos escravos.
E foi o que a gente fez.
VOCÊ MESMA... SÓ QUE MELHOR
ma semana antes do Dia de Ação de Graças, duas semanas depois
de Barry ter dado a Quinn seu broche, estava cedo ainda, de
madrugada, escuro como noite, e nós estávamos circulando pelas
ruas elegantes da Zona Leste, avançando o carro devagar pelo meio-fio e
checando as latas de lixo reciclável das pessoas à procura de garrafas. —
Nada — disse Astrid com um suspiro, puxando seus cachos louros de volta
através da janela. — E que tal aquela ali? Lá adiante!
Mansões espalhafatosas, colunas gregas, telhados de ardósia
georgianos alinhados com as ruas. Cheias de janelas escuras e rostos
franzidos. Os gramados pareciam tratados por manicuras, de tão perfeitos,
rodeados por cercas vivas podadas. Havia um cheiro característico dessa
parte da cidade, o ar impregnado de cheiro de riqueza, de flores caras em
arranjos dentro de casa, lençóis limpos, estofamentos de couro
dispendiosos em carros alemães importados. E um outro cheiro, por cima
de todos os demais, de alguma coisa tão limpa e anti-séptica que jamais
fora usada. Juli, depois que fora morar lá, já não se dava conta disso, mas,
para Astrid e para mim, a diferença entre Wauwatosa e a Zona Leste era
como atravessar a fronteira entre dois países. A maioria dessas casas
ficavam escuras por oito meses ao ano — seus proprietários em férias em
St. Moritz ou nas Bahamas. Quem sabe? Era dinheiro de família, tão antigo
quanto possível em Milwaukee, ao mesmo tempo atraente e decrépito.
— Me passe aquela lanterna, por favor — pediu Astrid, remexendo a
lata de lixo com a mão. — Quero dar uma checada melhor aqui.
Encostamos na frente de uma mansão com tijolos amarelos, a
fachada despida com os toldos listrados de verão recolhidos para o inverno.
Agora, eram olhos piscando nus diante de holofotes, uma velha senhora
sem os cílios postiços.
— Legal! — disse Astrid, passando o facho da lanterna por sobre as
fileiras e latas de reciclagem diante da casa. — Achamos a mina.
Era óbvio que alguém morava ali. Finalmente. Solta mos um suspiro
de alívio ao ver as latas de lixo verdes repletas de latas de refrigerante,
galões plásticos de leite e garrafinhas de cerveja jeitosas e atarracadas. As
quatro portas do Audi bateram com força.
— Carreguem tudo! — comandou Astrid. Juli escancarou o porta-
U
malas. — Só queremos as garrafas, nada de latas — disse ela, separando as
garrafas de cerveja.
— Nós sabemos — disse Juli, bufando irritada. — Acho que já
conseguimos entender isso.
O céu estava escuro e frio. Não havia estrelas. Fomos revirando as
latas de lixo reciclável, descartando as garrafas de refrigerante e as latas de
metal, procurando por vidro escurecido, branco, azulado, verde-garrafa
escuro.
Pegamos tudo. O porta-malas de Juli já estava cheio até a metade de
garrafas. Garrafas de champanhe Moët & Chandon, garrafas verdes de
Perrier, garrafas de refrigerantes, garrafas de cerveja com rótulos dourados,
garrafas de leite, daquele tipo caríssimo que se pode comprar no Organic
Express por sete dólares cada galão, garrafas de refresco importado sabor
laranja, que pareciam garotas com pequenas saias-balão, mas, na maioria,
garrafas de cerveja e de vinho, Rolling Rock, Sam Adams, Chardonnay e
Pinot Noir. Tínhamos um arsenal de garrafas.
— Acho que chega! Vamos embora rápido! — berrou Juli, fechando
o porta-malas com todas aquelas garrafas dentro. Voltamos para o carro e
disparamos, escutando o vidro rolando pelo porta-malas do carro quando
dobramos a primeira à esquerda, depois à direita, em direção à Lakeshore
Drive.
Astrid acendeu a luz do teto e ficou folheando uma revista Seventeen
irritada, dizendo:
— Que ótimo, olhe só essa: Como ser uma pessoa melhor. — Ela
virou a página para mim e apontou as fotos de cenouras, pinças de
sobrancelhas e calças xadrez. — Cenouras — suspirou. — Uau! Genial!
Foi fácil encontrar a casa de Barry, mesmo sem jamais termos sido
convidadas para a legendária festa-monstro que ele promovia toda
primavera. Astrid sabia o endereço de cor, mesmo sem ter sido
formalmente convidada a ir lá.
Os faróis de Juli iluminaram o BMW azul-bebê de Barry estacionado
na rua.
— É o carro dele — Astrid chutou o porta-luvas com o calcanhar de
suas cintilantes botas Doc Martens. — Ele estaciona aí na frente porque
quer que todo mundo veja.
Paramos na frente do BMW que conhecíamos tão bem e apagamos
os faróis. A Lakeshore Drive estava deserta. Nem um carro, ao menos,
avançava devagar pelas ruas. cobertas de sal e geladas. Saímos do carro e
abrimos o porta-malas. Ficamos lá paradas diante do carrão do Barry em
silêncio, vendo nosso hálito se transformar numa nuvem diante de nós. Um
cão latiu à distância no extremo norte do quarteirão. A seguir, outro
cachorro respondeu ao chamado no extremo sul, apenas um uivo baixo e
penetrando. Astrid procurou um cigarro na bolsa de camurça azul.
— É melhor tomarmos cuidado com esses cães — disse Astrid, o
rosto iluminado pela luz bruxuleante do seu Zippo.
— Tem certeza que quer fazer isso? — perguntou Juli Astrid ficou lá
parada, segurando o cigarro na mão direita. Deu uma olhada na escuridão
da rua, que contornava a margem do lago, dando a ilusão, com suas
entradas abruptas e lombadas, que haveria algo espetacular bem depois da
curva. Ela fumou o cigarro como uma garçonete no turno da alta
madrugada: até o filtro.
— Quero... — disse Astrid, com um breve e rápido aceno de cabeça.
— É, vamos acabar logo com isso e a rolas!
Astrid pegou a primeira garrafa pelo gargalo, uma senhora gorda,
azul e graciosa, destinada a conter água potável artesiana, e arremessou-a
no pára-brisa de Barry. A garrafa rodopiou no ar. Ficamos lá paradas,
abraçadas, morrendo de medo, esperando que o pára-brisa rachasse. Mas
não rachou. A garrafa de água acertou no alto do capô e se quebrou,
espalhando vidro azul por todo o capô do carro.
Os cães começaram a latir, à distância, uma cacofonia de ganidos
altos respondendo uns aos outros. Astrid olhou para trás, primeiro para a
direita, depois para a esquerda.
— Merda! Vamos fazer isso depressa! — disse. — Nada sério. A
gente só descarrega o lixo. Mirem no teto para deixar pedaços de vidro
caírem. Os cães estavam latindo a toda altura agora, como se fosse uma
metralhadora disparando. — Depressa! — falou, Astrid nervosa. Fizemos
chover garrafas e cacos de vidro sobre o carro. foi um trabalho bem-feito.
Atiramos garrafas de Heineken, Miller, High Life, Perrier, garrafas da
França, Holanda e da velha Milwaukee de sempre, Astrid correu para a
traseira do carro e arremessava sobre ele uma garrafa de cerveja atrás da
outra, erguendo-as acima da cabeça como se estivesse sacando bolas de
tênis, uma após a outra.
Fazia um barulho horrível, mas ficamos tão envolvidas que de
repente não havia nada além de nós e o barulho, o latido dos cachorros nos
envolvendo, aquele barulho de vidro se estilhaçando, estourando e
quebrando, o som de nossas respirações batendo em nossos ouvidos e as
nuvens brancas se formando diante de nós quando soltávamos o ar.
Uma luz se acendeu, lançando um brilho embaçado e amarelo pela
lateral da casa de tijolos de Barry. Os latidos aumentaram. Astrid gritou:
— Pro chão!
Mergulhamos no leito de gravetos embaixo do BMW de Barry, bem
no momento em que uma porta lateral bateu. Então, uma voz de homem:
— Calem a boca, seus animais desgraçados. Babacas! Rimos,
agachadas no leito de gravetos, as mãos descobertas e morenas de Juli
tapando a boca. Um carro passou em disparada por nós, os faróis
apanhando uma nesga dos cabelos encaracolados de Astrid e tornando-os
brancos Mas, então, o matraquear dos cachorros silenciou, a porta lateral
bateu fechando-se e estávamos salvas, sozinhas, de volta aos negros braços
da noite.
O carrão azul-bebê de Barry estava coberto de cacos de vidro
pontiagudos e multicoloridos, facetados como pedras preciosas.
— Puxa! — deixou escapar Astrid, recostando-se no pára-lamas de
Juli para recuperar o fôlego. — Foi por pouco!
Entramos no carro, suadas e exaustas, nossos braços esfolados de
tanto erguer e arremessar. Juli ligou o rádio e o Gênesis gemeu em uma
rádio FM qualquer.
— Estou morta de fome — disse Astrid. Juli dirigiu o carro, secudo a
Lakeshore Drive, virando à direita na Hifford e à esquerda na Downer. Sem
nenhuma palavra, entrou no estacionamento do George Webb, o restaurante
24 horas, e entramos correndo, passando pela porta giratória de vidro.
Astrid dirigiu-se em linha reta para nossa mesa de costume, à direita,
junto das janelas: um reservado grande, cor-de-melão. Ela jogou a bolsa de
camurça azul no canto e deslizou no banco, acompanhando-a.
— Está se sentindo um pouco melhor? — perguntou Juli e pegou um
cigarro do maço de mentolados de Astrid.
— Quero ser como as garotas na Seventeen — disse ela. Por minuto,
sua máscara caiu e ela já não parecia
Astrid para mim. Parecia exatamente o que era: uma garota de quinze
anos, apavorada e insegura em relação a tudo e ao mundo inteiro. — Você
mesma... só que melhor — disse Astrid — Não está certo assim?
Quando a garçonete com aparência anoréxica perguntou o que
queríamos, bocejamos. — Café completo. O relógio em cima do balcão
marcava 5h13 da madrugada. Comemos nossos ovos encharcados de
ketchup.
Astrid ficou olhando pela janela para as ruas brancas congeladas,
para a descarga de um carro soltando nuvens de fumaça branca. Tudo,
nosso mundo jovem inteiro, imerso em sombras acinzentadas.
Voltamos para o carro e rodamos mais de 40 quilômetros até o Anjos
do Sagrado Coração. O sol irrompeu do meio das nuvens negras da noite,
No assento de trás, catei cacos de vidro do meu casaco, como pedras
preciosas, azul esverdeado e vermelho pálido. Na hora em que chegamos
no colégio, o céu inteiro já estava perfeita e completamente azul.
EU QUERIA
s vezes, começo a pensar:
Eu queria ter um namorado. Que ele me pegasse depois das aulas em
seu carrinho esporte colorido de dois lugares me levasse por aí, até
os milharais, onde as hastes estivessem altas. Eu queria ter um cara louco
por mim. Perdidamente, inteirinho meu. O tipo do cara que sentasse em seu
carro, sem fazer mais nada, diante da casa da minha mãe no meio da noite,
com os cabelos ainda molhados do chuveiro e vestindo uma camisa de
algodão bonita e limpa. Daí, iríamos ao Oriental nas noites de sexta-feira e
nos sentaríamos lá, no escuro, nenhum dos dois realmente asassistindo ao
filme. Ou estacionaríamos diante da praia, deitaríamos na areia e
contaríamos piadas. Enfiaríamos uma barraca de acampar na picape e
iríamos por aí, para qualquer lugar. Tudo o que os outros veriam seria
nossa poeira e fumaça.
E mais, depois. Um apartamento grande em Chicago, bem na
Michigan Avenue, com assoalho de madeira de lei e um namorado grande e
sexy. Dormiríamos juntos numa cama queen size com colchão e travesseiro
de penas, sem levantar dali o dia inteiro, a não ser, talvez, para preparar um
belo desjejum. Eu ia vestir aquelas roupas respeitáveis para ir trabalhar,
ganhar muito dinheiro e ter caras atrás de mim o tempo inteiro. Ia ter um
grande escritório de esquina, uma assistente particular que viria perguntar:
"Cappucino? Expresso com creme?"
Pensamentos como esses fazem a gente pensar: "Tudo isso pode ser
meu!"
Mas aí vi Astrid atravessando uma festa com um cara qualquer a
reboque, os dedos dele brigando contra o cinto dela, e ela piscaria para mim
sorrindo como o mapa de uma estrada, o sinuoso mapa para o futuro.
Quando eu me vesti para o colégio, minha mãe disse:
— Não consigo reconhecer você. Apenas sorri:
— Ah, mãe!
Botas, meias desfiadas e saia curta. Mal faz quatro meses que
conheci Astrid e já me sinto como se tivesse passado para o outro lado. Às
vezes, quando abro minha boca, sinto como se pudesse soltar fogo.
Agora, eu sabia que a gente pode ser assim, dona de si mesma.
Qualquer coisa pode ser sua, você pode pegá-la e tudo o que tem de fazer é
À
pedir. No Coffee Trader, na Metro, seja onde for. Num minuto você está
pondo açúcar em seu café, noutro está voando na noite com algum cara
gostoso com um piercing no lábio, que assovia por entre os dentes e chama
você de querida, meio que envergonhado.
— Não é loucura? — disse Astrid, depois que pegamos dois
roqueiros punk em Downer, todos nós apertados dentro do carro de Juli,
sentadas nos colos deles, rindo e indo em direção a uma festa na casa de
uma conhecida no Southside.
— Queria ter conhecido você antes — disse a ela. — Pode me passar
uma cerveja? — disse Astrid, com uma piscadela e estendendo o braço para
mim. E lá fomos nós três no carro, jovens e gloriosas, olhar arrebatado,
fumando, inflamando a noite.
A NAMORADA DO AGITADOR
epois que Juli conheceu o Agitador, começou a dizer coisas como:
"O capitalismo é um sistema organizado que estupra e explora as
classes baixas" e "No ideal da Utopia de Triptorn, todas as
mulheres vestiam macacões azuis".
— Tudo bem, Che Guevara — disse Astrid, abrindo um saco de
anéis de cebola fritos. — Quer uma?
O Agitador era um magricela do último ano do Preparatório
Fenwick. Era membro do clube de debates, da equipe de natação, da
Anistia Internacional e do Clube dos Combatentes pela Liberdade. O que
queria dizer que ele usava uma boina sem ironia. O Agitador cheirava a
chulé de garotos esportistas. Juli o conheceu numa festa no feriado de Ação
de Graças, quando ele estava dando uma palestra para uma garotada, todos
sentados num tapete, sobre as mil e uma utilidades do cânhamo.
— O cânhamo pode ser usado em camisetas e em cordas. É a fibra
do futuro, cara. Cânhamo é ótimo. — O Agitador curvou-se para agradecer
e o bando de garotos, todos usando suéteres negros e calças de camuflagem
verdes, aplaudiram.
O Agitador circulou pela festa com três dedos de gim e água numa
taça, que lhe dava aquele ar de sofisticação cosmopolita ao qual Juli não
conseguiu resistir.
— Me fale mais sobre o cânhamo — pediu Juli, chegando peito do
Agitador ao lado da geladeira, toda ruborizada.
O Agitador sorriu, alisou os lábios com os dedos e disse:
— Tudo bem, você é bonitinha. — E repetiu: — Você é bonitinha.
Foi assim que Juli parou de comer carne. Parou de usar couro.
Comprou uma bolsa nova, de lona, para os livros, e um par de horrendos
sapatos de couro artificial pretos, exatamente do tipo que o Agitador usava,
igualzinhos. — Sabe como eles testam maquiagem? — sussurrou Juli, na
aula de Economia Doméstica, os olhos arregalados do tamanho de conchas
de mariscos. — Em coelhinhos. Juro, eles cegam os coitadinhos. Assim,
Juli também parou de usar maquiagem. Mesmo por pouco tempo. Pegou
seus estojos de sombra para os olhos, os rímeis, os delineadores de olhos,
os lápis labiais, brilhos, os pós compactos, o matte bisque, o tubo de rouge
vermelho, meteu tudo numa caixa de papelão e deu para Astrid, dizendo:
D
— Tome! Faça bom proveito, tá?
— Por favor! Me convence que é só uma fase! — implorou Astrid.
— Menina, por favor. Vou ser bem honesta, você está horrorosa.
Juli deu uma risadinha de garota apaixonada, o rosto radiante:
— Pode ficar com tudo. Verdade. Não vou mais usar nem ChapStick.
O Agitador não tinha carro, é claro. Andava por aí com uma bicicleta
roxa que tinha comprado de segunda mão e colou um adesivo de pára-brisa
no espelho refletor, que dizia: MEU OUTRO CARRO É UMA
BICICLETA. Embora, na maior parte do tempo, ele andasse mesmo é de
carona no Audi de Juli, com um sorriso pretensioso nos lábios finos e
sumidos.
— Não posso dar carona a vocês — desculpou-se Juli depois das
aulas. — Sinto muito, mas estamos indo para um tal de simpósio sobre
marxismo.
— Escuta aqui, garota — respondeu Astrid. — A gente não precisa
de você para andar por aí.
Astrid e eu caminhamos para o Walgreens depois das aulas.
Adorávamos farmácias. Passar os dedos nos tubinhos baratos de sombras
roxas para os olhos, afagar uma paleta com brilhos para os lábios nas cores
vinho, vermelho e rosa Não havia nada que a gente não experimentasse:
estojos de manicure para fazer francesinhas nas unhas, curvadores de cílios,
batons com cores especiais por $1.69. Amávamos tudo aquilo, os truques
do nosso ofício, nosso passatempo favorito, essa linguagem de
transformação da aparência em que éramos tão fluentes.
Astrid ficou passeando à toa em frente à seção de tinturas para o
cabelo, a Miss Clairol e Frost & Tip.
— O que você acha, Docinho? — perguntou Astrid, segurando uma
carteia de Frost & Tip. — Um revitalizante para as pontas?
— O que está acontecendo com a Juli? — perguntei eu.
— Você não sabe? — perguntou Astrid, procurando uma nota de
cinco dólares em sua bolsinha de trocados.
— A pior coisa que pode acontecer com uma garota. Ela está se
anulando. Está se tornando o que ele quer que ela se torne. É isso que a
gente faz quando fica maluca e se perde de paixão. Tentei dizer a ela para
dar um tempo. Meu Deus. Ela não escuta ninguém.
— Nunca, jamais vou cair numa dessas! — disse eu, pegando um
pacotinho de chiclete de menta no balcão ao lado do da tintura de Astrid.
— Essa é minha garota! — disse Astrid. O Agitador trabalhava no período
da tarde na Tastee-Freez, Aquela com a casquinha gigante de sorvete
pastoso de baunilha recortada em papelão no gramado da frente. Havia um
detalhe com batatas fritas. Ele costumava debruçar na janela para fumar um
cigarro ou dar um beijo escondido em Juli. Em vez de usar uma rede de
cabelos, o Agitador enfiava seus cabelos castanhos cortados na altura dos
ombros debaixo da boina de lã azul-marinho. Só trabalharia algumas
semanas, antes do "incidente". — Já escutaram falar desses caras, esses
políticos que se candidatam à reeleição? — pregava o Agitador, na janela
suja dos fundos para os garotos com calças de camufladas e suéteres
negros. — Vão checar! — disse o Agitador, distribuindo panfletos que
havia xerocado na secretaria do Fenwick. — Esse cara aqui? Philip
Kendall? A favor da maconha. Para uso pessoal e médico.
— Uau! Se eu tivesse 18 anos, ia votar nele, ia mesmo!' — disse um
garoto rechonchudo e de pele oleosa.
— Passe o panfleto adiante, cara! Para seu irmão, para seu pai.
Nunca se sabe.
Os garotos foram os primeiros a ver a fumaça escapando em ondas
cinzentas por trás do Agitador enquanto ele estava debruçado para fora da
janela dos fundos com ambos os cotovelos apoiados, filando um cigarro de
um de seus amigos. Já havia chamas, um fogaréu alaranjado, lambendo as
paredes, no momento em que o Agitador se virou e percebeu que havia se
esquecido fazia uma hora da fritura das batatas, distraído na pregação para
os amigos
— Merda! — exclamou o Agitador, já procurando um extintor de
incêndios que a Tastee-Freez não tinha.
O fogo trabalhou rápido. A Tastee-Freez era nada mais do que um
barracão, quatro paredes finas de papelão encaixadas uma na outra. Não
demorou muito para se tornar uma bola de fogo gigante. Até mesmo o
anúncio do papelão do gramado, a casquinha de sorvete de baunilha de sete
metros de altura, se tornou uma tocha brilhante chamas vermelhas e
amarelas enroscando-se nas paredes de papelão até que, lentamente, com
um gemido, a casquinha gigante pendeu para o lado e tombou na estrada
queimando, uma pancada e tanto de fagulhas amarelas e labaredas.
Juli disse que os pais do Agitador o mandaram para o Colégio Militar
da Bélgica. Bélgica em Wisconsin, não Bélgica na Europa. Muito embora o
Agitador não tivesse se afastado mais do que 60 e poucos quilômetros, e
não centenas de milhares, isso significou o fim do romance de um mês
entre ele e Juli.
— É... Não fique triste, menina. — disse Astrid, afastando da testa de
Juli sua franja de cabelos castanhos e refazendo o delineador de olhos dela.
— Feche os olhos, só mais um minuto — disse Astrid. — Ideal utópico é o
caralho! E só mais um nome bonito para problemas para as mulheres.
— Eu sei, eu sei — disse Juli, remexendo na caixa de papelão que
continha seus estojos de maquiagem, seus pincéis e seus vidros de brilho
labial. — Puxa, olha só. Sorriso de sorvete de canela. — Ela passou o dedo
num tubinho de batom, enfiou-o no bolso do colete e deu uma piscadela
envergonhada: — Puxa, estava com saudades disso!
EFEITOS COLATERAIS
strid tomava Ortho-Novum, eu tomava Minipill e Juli usava
diafragma, mas disse que escapulia em alguns ângulos específicos.
Assim como de quatro ou de pé.
Cada pacotinho das pílulas de três cores vinha com uma bula
dobrada até ficar do tamanho de uma moedinha de dez centavos. Se alguém
a desdobrasse e a colocasse sobre os ladrilhos do chão do banheiro, dizia
assim: "Efeitos colaterais da pílula podem ou não incluir: aumento de peso,
depressão, náusea, diminuição do ímpeto sexual, coágulos. Se você fuma,
não use Minipill."
— A pílula vai dar um jeito no seu rosto — disse-me Astrid. Assim,
eu a comprei.
A pílula de Astrid vinha numa embalagem de plástico rosa, de
formato oval. A minha saía de um envelope de plástico. Carregávamos as
pílulas nos bolsos da frente de nossas mochilas. Às 11h30 da manhã, todos
os dias Astrid dizia: "Hora da pílula", e a gente engolia o comprimido com
refrigerante diet.
Na primeira vez em que Juli foi ao ginecologista, o médico disse:
— Diga-me, Juli. Você está no colégio... em qual mesmo?
Quando Juli lhe disse que estava no Sagrado Coração, o médico
sorriu. Enfiou o espéculo no vidro de lubrificante e disse:
— Não se preocupe. Isto aqui não é pior do que aquilo que você
provavelmente já está acostumada.
— Ele sabe lidar com os pacientes, hem? — disse Juli, acariciando o
pequeno bolso com zíper onde estava seu diafragma — Dane-se! Consegui
o que eu queria.
Não dávamos a mínima para efeitos colaterais. O que significavam
efeitos colaterais e conseqüências para nós?
Astrid ganhou mais de dois quilos e teve de pedir à sra. Portofino, a
professora de Economia Doméstica, para ajudá-la a alargar a cintura da saia
do uniforme.
— Que merda! — sussurrou Astrid, enquanto a sra. Portofino lambia
o fio de linha. Ela apontou o nariz para baixo, mirando agora a grande
abertura em V entre seus seios e riu — Grande droga. Mas, quer saber?
Agora uso tamanho 40. Bem grandões, hem?
A
Por muito tempo, fiquei me sentindo como se vivesse debaixo
d'água. Sentia meus braços e pernas lerdos como aqueles barcos com
madeira encharcada de água. Choros repentinos, ataques de raiva, minhas
emoções dando guinadas como um vagão de montanha-russa saindo dos
— Quando foi que você começou a ficar tão chata? — reclamou
Astrid.
Mordi minha língua e não respondi. Como poderia? Eu não tinha
idéia de quando havia me tornado uma chata.
Anos mais tarde, dei uma parada na pílula e foi como voltar à tona e
respirar, meio engasgada mas feliz, em plena luz do dia, outra vez.
— Então é isso que eles chamam de efeito colateral — cochichei
para mim mesma, quase rindo, e comprei um copinho de café, fraco e doce,
de um vendedor de rua. Estava com gosto melhor do que qualquer coisa
que eu tivesse provado havia anos!
VINGANÇA É UMA MERDA!
m dezembro, poucas semanas antes do Natal, Astrid e eu entramos
de penetra numa festa num dormitório tristonho, parecendo de uma
penitenciária, na Marquette University. A cozinha e a sala sem
janelas serviam de núcleo para a saleta, com três portas que levavam a três
quartos apertados, como se fosse um caminho que ratinhos seguiam num
daqueles labirintos para testes de laboratório. Os quartos, em tijolo
acinzentado, estavam cheios de fumaça e de luzes vermelhas piscantes
estroboscópicas. Os garotos da universidade eram agitados e já estavam nas
férias de inverno, enquanto Astrid e eu ainda tínhamos mais uma semana
de aulas. Havia uma sensação no quarto, cristalizada e realçada de perigo,
como se alguma coisa, qualquer coisa pudesse acontecer.
— Garotos da faculdade fazem aquilo melhor — disse Astrid com a
fala arrastada.
Todo mundo amontoado naquele quarto parecendo mais uma toca de
coelhos, fumando cigarros com as mãos acima da cabeça, buscando ganhar
espaço. Alguém ficava tocando sempre o mesmo mix estendido do
Depeche Mode, aquele com ritmo letárgico e inalterável.
Um garoto esbelto, alto, com uma camisa Oxford amarrotada de
listras finas, me pegou de repente e me deu um beijo molhado por trás da
orelha. Ele me apertou junto ao peito e meus pés ficaram balançando no ar.
Ergueu a mão acima do amontoado de gente e gritou para um amigo:
— Ei, me passa uma cerveja, seu babaca.
— Garotos da faculdade! — falou Astrid com a voz arrastada, a boca
vermelha como um doce, e rindo. — Viu só como são doidos?
Estávamos bebendo uma bebida vermelha enjoativa de tão doce,
misturada com ponche havaiano que tinha gosto de abacaxi e cardamomo.
A boca de todo mundo estava ficando vermelho-sangue brilhante.
Um garoto chamado Benny Fischer deu a Astrid um outro copo
plástico cheio daquela mistura vermelha de abacaxi.
— Pode beber. Vai fazer bem a você — disse Astrid. Ela o conhecia
porque Benny Fischer e seu amigo, Tom Capshaw, volta e meia estavam
perto da gente, farejando às nossas costas e cochichando:
— Ei, olhe só. São as Putinhas da Colina.
Ficavam o tempo todo tentando tocar nossos cabelos ou passar o
E
braço por cima de nossos ombros, mas Astrid sempre ria deles e os
afastava, dizendo, com aquela voz que quase não dava para entender coisa
nenhuma:
— Nem daqui a um milhão, um zilhão de anos.
Astrid pegou o copo que Benny lhe passou e entornou tudo de um
gole só. Então, para minha surpresa, ela disse:
— Dança comigo, seu bobão.
Benny colocou as mãos na cintura fina de Astrid. Ele tinha cabelos
castanhos encaracolados até a altura do colarinho. Era um cara baixo, judeu
e bonito, embora houvesse alguma coisa meio suspeita na expressão do seu
rosto quando sorria e enfiava a cara no pescoço de Astrid.
Piquei lá parada, em pé, deixando a festa me envolver. Vi Astrid e
Benny dançando. O amigo de Benny, Tom Capshaw, abriu caminho na
multidão. Ficou se remexendo logo atrás dos quadris de Astrid, juntando-se
à dança. Fiquei bebericando meu ponche.
Era como se sempre tivesse sido noite e como se sempre fosse ser
noite. A noite se estenderia sem fim por sobre o tempo. Noite eterna. Noite
após noite.
Eu estava me sentindo mais do que bêbada. Estava exausta,
derrubada e, pior, era como se estivesse sentindo coceira de dentro para
fora.
Arrastei os pés até o sofá estragado, todo manchado de vinho e disse:
— Preciso me deitar. Por favor!
Três garotas da faculdade se apertaram para me dar lugar no sofá.
Elas espremeram as pernas finas e descoberta, e eu me deitei, recolhendo os
joelhos contra o peito. Meus sonhos foram rápidos e elétricos. Fiquei presa
numa espécie de paisagem entre os sonhos e a festa. Tive um sonho no qual
ficava tentando me vestir, ficava tentando me enfiar na saia do meu
uniforme, mas, quando a puxava para cima, estava pisando fora da saia e
ela não cobria meu corpo. No sonho, eu fazia isso vezes e vezes seguidas:
pisava fora, puxava para cima e continuava nua da cintura para baixo.
Acordei sentindo como se estivesse com um chumaço de algodão na
boca, e alguém sacudindo com rispidez meu ombro.
— Ei — disse um garoto com jeans desbotado. — Vá pegar a sua
amiga. — Ele tinha um saliente aparelho prateado nos dentes e elásticos
azuis prendendo suas mandíbulas.
Ergui o corpo, grogue, e disse:
— Tá bem. O que houve?
Escutei uma porta abrir e fechar com um estalido metálico abafado,
Fiquei de pé, cambaleando, e fui na direção de uma das portas de metal
dourado. Lá dentro, um quarto com as paredes forradas com lençóis
tingidos, no estilo hippie. Estava escuro ali. O quarto cheirava a água
estragada de narguilé, alguma coisa úmida e queimada ao mesmo tempo.
— Docinho? — chamou Astrid, sentando-se. Uma nesga de luz
vindo da porta cortou seu rosto. Eu não podia dizer se foi a escuridão,
parecendo que eu estava vendo tudo errado, ou o quê. — Meu Deus! —
disse ela, pondo ligeira as pernas para fora da confusão de lençóis e
deixando-as penduradas para fora da lateral da cama. — Fiquei apavorada,
pensando que fosse outra pessoa.
Naquele fiapo de luz, a blusa oxford branca dela estava toda aberta.
Havia marcas roxas, talvez feitas por chupões, espalhados por sobre sua
clavícula. Ela ficou de pé, ainda meio trôpega, e disse, em voz bem baixa:
— Merda! Merda! Merda!
Ela ainda estava vestindo a saia do uniforme de colégio, mas estava
rasgada ao meio. Suas pernas estavam constrangedoramente nuas e sua
calcinha era amarela. Ela mantinha os dois lados da saia rasgada unidos
com uma das mãos. Seus lábios estavam partidos. Ela os tocou com os
dedos. Seu olho direito estava esfolado nas beiradas, com uma marca
verde-enegrecida ao redor.
Virou-se para mim, os olhos amedrontados, envergonhada, e tentou
sorrir:
— Meu Deus do céu! Nem me fale!
Puxei a mão dela, revirando os miolos em busca de alguma coisa
para dizer. Dizer o quê? O que se diz quando uma coisa dessas acontece
com sua melhor amiga? E, por um minuto, por um breve e instantâneo
segundo, tive ódio dela. Tive ódio dela por estar com a saia rasgada e os
lábios partidos. Eu queria estar em qualquer outro lugar que não fosse
aquele quarto cheirando a água podre de narguilé, fumaça de cigarros e
vômito.
Respirei fundo e mordi minha língua para não dizer nada.
— Astrid? — chamei. O nome dela soou áspero e pequeno como
grãos de areia em minha boca.
Eu a amparei até o banheiro. Havia toalhas sujas cobrindo todo o
chão. Astrid acendeu a lâmpada fluorescente e a luz a fez piscar.
— Meu Deus! — exclamou. Ela parecia pior ainda sob a luz
fluorescente, como se fosse uma outra garota, uma garota que eu não
conhecia, com aquele olho preto, saia rasgada, lábios cortados e feridos. —
Eram amigos do Barry — disse Astrid. — Dá para acreditar? Benny e Tom.
E puseram alguma coisa na nossa bebida. — Ela apertou minha mão. —
Disseram alguma coisa sobre o BMW do Barry. Enfiei bem as unhas num
deles. Tomara que tenha arrancado o olho dele.
Fiquei ali, sob aquelas lâmpadas fluorescentes nuas, piscando e por
fim perguntei:
— Você está bem? Astrid, minha nossa. Quer ir a um hospital?
Ela baixou lentamente, sentando-se sobre a privada, abaixou a saia e
verificou a calcinha. Seu olho ferido estava assumindo cores: preto, azul,
amarelado. E começou a inchar como se fosse uma pequena cebola
espanhola.
— Estou legal! — disse, nervosa, os dedos brigando contra os botões
quebrados da saia. — Comigo ninguém brinca. — Ela lambeu os lábios
machucados. — Eu estou legal.
Fiquei lá parada, de pé, a língua presa.
A vida era assim quando se tinha 15 anos e era colocada de joelhos,
com poucas opções restando. Seu mundo era cruel e pequeno, sórdido e
opressivo.
Juntamos nossas roupas e fomos embora.
IRMÃ ST. JOE
Irmã St. Joe era a freira mais legal no Anjos do Sagrado Coração.
Ela dirigia com as janelas do carro abaixadas, 0 vai preto voando
ao vento, Fleetwood Mac berrando no rádio.
— Rumours é o melhor álbum que já se fez — disse Irmã St. Joe. —
Diga que estou errada. Prove! — A Irmã St. Joe amava sinceramente
Fleetwood Mac.
A Irmã St. Joe foi criada como católica em Eau Claire com seis irmãs
e dois irmãos. Todos as seis irmãs viraram freiras, sabe Deus por quê, e
ensinavam em escolas particulares por todo o estado, enquanto seus dois
irmãos eram respeitáveis padres. Um deles tinha uma congregação em
Sheboygan, e o outro, Padre Phineas, era missionário em El Salvador.
Ela nos pedia para rezar por ele todos os dias. Todos os dias morriam
missionários por lá, atacados por terroristas.
— El Salvador! Um nome tão lindo para um lugar tão perigoso —
dizia a Irmã St. Joe, às vezes para si mesma.
A Irmã St. Joe ajoelhava-se no gramado da frente do Anjos do
Sagrado Coração e plantava gerânios na primavera, crocos no outono.
Quando trabalhava no jardim, a Irmã St. Joe tirava o hábito — o véu preto
de poliéster fazia sua cabeça coçar demais, dizia ela — e o deixava na
grama junto a ela. E ficava parecendo uma garota de novo, apesar de sua
idade.
— Olá, Irmã! Você parece ótima! — berrou Astrid certa vez do
velho Audi de Juli.
A Irmã St. Joe levou a mão ao gracioso corte à la Dorothy Hammill e
brandiu o punho no ar, como uma black power.
— Aposto que ela era uma rebelde antigamente, quando tinha a
nossa idade. — Astrid baixou a cabeça sobre a carteira, na sala de chamada.
A Irmã St. Joe escutou nossos cochichos ao passar entre as fileiras de
carteiras e deu uma piscadela.
A Irmã St. Joe e outras freiras do Anjos do Sagrado Coração — Irmã
Rosemarie, Irmã Bridget, Irmã Eva e Irmã Agnes — preparavam roscas de
canela para levantar dinheiro para o irmão da Irmã St. Joe, em El Salvador.
As roscas das freiras eram enormes, muito amanteigadas, fofas, e toda a
cidade as conhecia.
A
No Dia das Roscas, o Anjos do Sagrado Coração cheirava a canela e
açúcar, tudo coberto de açúcar: o ar, os livros, a massa.
Mais tarde, sabíamos que os garotos não estavam mentindo quando
levavam as mãos aos nossos cabelos e sussurravam:
— Seu cheiro é tão doce!
Irmã St. Joe era o apelido da Irmã St. Josephine. Ela mesma disse:
— Podem me chamar de Irmã St. Joe.
— Por que escolheu esse nome?
— É sonoro, não acha? — Irmã St. Joe sorria e saía mascando seu
chiclete.
Não tínhamos a menor idéia da idade da Irmã St. Joe. Achávamos
que ela podia ter 20, 21 anos. Quem poderia saber? Todas as freiras,
mesmo as mais velhas, pareciam não ter idade para nós. Como se seus anos
de vida não fossem medidos pela experiência, não a do tipo que
conhecíamos.
Na semana antes do Natal, durante as provas, quando Astrid entrou,
ainda caminhando com dificuldade, na sala de aula depois que Benny
Fischer e Tom Capshaw rasgaram sua saia, ela tentou cobrir os lábios
inchados e roxos com a mão, mas mesmo assim Irmã St. Joe perguntou:
— O que aconteceu, Astrid?
— Nada — respondeu Astrid, afundada na carteira de aula. Tocou os
cantos dos lábios com marcas de sangue, brincando de leve com o
machucado em seus lindos lábios.
A Irmã St. Joe fez a chamada e leu os avisos, anunciando a mudança
nos treinos da equipe de natação e pedindo roupas usadas para a próxima
campanha de coleta para o abrigo. E todo o tempo olhava para Astrid pelo
canto do olho. Examinava aquele olho preto, os lábios arroxeados e
inchados, a maneira como Astrid estava se escondendo.
— Você não precisa me contar — disse Irmã St. Joe depois que a
campainha tocou, enquanto Astrid apertava os livros contra o peito, sem se
atrever a olhar a Irmã St. Joe nos olhos.
— Que ótimo! — disse Astrid. — Demais mesmo. Obrigada.
Ela avançou para a porta, querendo sair dali de qualquer jeito, mas a
Irmã St. Joe tocou seu ombro, sussurrando:
— Espere! — E isso fez Astrid murchar, o rosto desfeito, e a Irmã St.
Joe abraçou os ombros trêmulos dela. — Você é amada — disse a Irmã St.
Joe segurando-a com força e acariciando seus cabelos cheios. — Apesar do
que possa estar pensando, você é amada.
— Pare! — gritou Astrid, chorando. — Sério. Não comece. Nem
mesmo tente se meter nessa história. Por favor.
Quando o Padre Phineas voltou de El Salvador, estava com três
dedos faltando.
— Ele voltou! — disse Irmã St. Joe, com uma voz sem fôlego. —
Pelo menos está inteiro!
Se alguém me perguntasse, eu teria de dizer que tudo depende de sua
definição de inteiro.
ENCONTROS DESASTROSOS
Á CHEGA
Nem pergunte sobre essa coisa do Benny/Tom. Foi uma merda
que eu aprontei. Minha cretinice. Meu maior azar. Em casa, ajeitei minha
franja de um jeito sexy para disfarçar o olho preto e minha mãe nem
percebeu por dois dias. Só no Natal, quando estávamos tirando retratos em
volta da árvore — Padgett já meio bêbado, ela e eu — e ela parou uma hora
para afastar meu cabelo dos olhos, e exclamou: "Oh, querida!". Disse que
bati numa porta. E ela acreditou.
Astrid Thornton, 15,
Milwaukee, Wisconsin
CENTRAL DE SARNA
O segundo cara com quem dormi me deixou o que agente pode chamar de
presente de despedida. Mais ou menos uma semana depois do nosso
encontro, comecei a acordar no meio da noite com uma coceira de matar
nos pulsos e na parte de trás dos joelhos. Pensei que era só uma irritação da
pele. Na vez seguinte em que fui ao médico, ele me disse: "Sarna". Eu
perguntei: "Como é que é?". Ele respondeu: "Você está com sarna. Muito
contagioso. Transmissível por contato físico ou por roupas". Claro que a
Astrid me telefonou depois de pegar emprestado meu suéter angorá
predileto, Ela gritou histérica: "Estou com sarna também!". Poucos dias
depois, Juli estava coçando os pulsos, igualzinha a nós duas. Astrid disse:
"Bem-vinda ao clube." Nós três tivemos sarna. Quem vai tentar aprontar
uma melhor do que essa?
Thisbe Newton, 15,
Milwaukee, Wisconsin
J
VIVA MARIA!
Eu tinha quinze anos. Fiquei grávida e me mandaram para o Holy Hill,
onde outras mães-solteiras eram escondidas por um período de seis a nove
meses. O parto durou doze horas. Lembro-me do sangue. Meu bebê tinha
cabelos louros e olhos muito, muito azuis. Era um garoto, Cheirava a
abricó. Nunca o segurei nos braços. Acho que as freiras lhe deram um
nome em homenagem a St. Phillip, um dos doze apóstolos. Não que isso
tenha importância, mas sempre preferi a versão em espanhol do nome,
Felipe.
Irmã St. Joe, 21,
Milwaukee, Wisconsin
UM PASSO À FRENTE
Foi meu terceiro encontro com um skatista que era uma graça. Cara, eu
nem podia acreditar que ele estivesse saindo comigo. Eu estava tão
excitada. Bem, depois de esperar que ele terminasse o treinamento do seu
último truque fajuto, com os amigos, por três horas inteiras, finalmente ele
estava a sós comigo no meu carro, e eu acho que fiquei um pouco excitada
demais. Estava pagando um boquete nele e estava tudo indo bem até que eu
fiquei com uma certa vontade de vomitar. Tirei a boca para respirar um
pouco, mas o skatista empurrou minha cabeça de volta. Vomitei nele todo.
Muito embaraçoso, é verdade. Mas ele bem que mereceu, não foi?
Juli Sung, 16,
Milwaukee, Wisconsin
O ÚLTIMO
Tem gente que diz que eu morri.
Deb Scott, localização desconhecida.
PARA QUE SHORTINHOS CURTOS?
Eu tinha um encontro todo especial com um novo gostosinho. Daí, queria
ficar bem bonita para ele. Ajeitei os cabelos, troquei a roupa umas sete
vezes, e fiz uma depilação completa com produto químico. Foi a primeira
vez que usei um desses produtos e estava ficando tarde, então não tomei
uma chuveirada depois. Só me limpei com um pano úmido. A saída foi
ótima. Jantar, Cinema, Muito legal. Já tarde da noite, estávamos no carro
dele, e ele decidiu me dar um banho de língua lá nos reinos do Sul. Eu
disse: "Manda ver!". Foi ótimo. Até que ele levantou a cabeça, quinze
minutos depois, e disse: "Ei, garota, estou me sentindo mal!". Foi um caso
grave de envenenamento por causa do produto. Ele ficou intoxicado, Tive
de levá-lo para o pronto-socorro e contar tudo ao médico, Toda vez que
vejo aquele garoto fico vermelha de vergonha.
Astrid Thornton, 15,
Milwaukee, Wisconsin
SANTO SARRO!
Todo mundo sabe que a capela é o melhor lugar do colégio para se tirar um
sarro. Então, lá estava eu com esse metaleiro da Tomás de Aquino, tirando
o maior sarro debaixo do banco de igreja. Tudo estava indo bem, muito
nham-nham, quando olho para o lado e dou com uma camisinha usada,
jogada ali no apoio para ajoelhar do banco, como uma coisa molhada e
dourada boiando no oceano. Quero dizer que a coisa se soltou de repente.
Meio que escorregou. Cuidado. É tudo o que tenho a dizer.
Juli Sung, 16,
Milwaukee, Wisconsin
POR QUE NÓS?
Ficamos grávidas, pegamos herpes, tivemos verrugas genitais e câncer do
colo do útero, nós ficamos perdidas e depois voltamos. Estamos bem,
garanto. Estamos muito bem! Não se preocupe. Nós somos você. Isso não é
uma piada, uma besteira, um acesso doido de riso? Máquina de rir? Escute
só. Somos suas filhas, meu senhor. Somos suas namoradas, suas irmãs,
suas preciosas crianças. Que merda, me escute!
Putinhas da Colina
Milwaukee, Wisconsin
VIRANDO SUA CABEÇA
sdtrid disse:
— Quero um garoto tão bêbado que não consiga nem falar.
Foi depois do Natal e antes do Ano Novo, esse período
fantasma, quando a garotada está de férias e não tem nada melhor a fazer
do que beber e ficar rodando de carro por aí. Chegamos tarde na festa.
Tínhamos ficado perdidas num emaranhado de becos sem saída
suburbanos. Estacionamos junto a uma fileira de pinheiros delgados.
Astrid enxugou o nariz na manga. Seu olho preto já havia quase
sumido, restava apenas um anel verde-amarelado, como um halo, na pele.
Ela inclinou a cabeça para trás, para que as lágrimas não caíssem. Como
um sangramento de nariz, uma dessas lesões esportivas idiotas. Era uma
novidade dela, agora. Súbitos rompantes de choro. Vinham de repente,
silenciosamente, e nós três ficávamos apavoradas.
— Tem certeza que quer fazer isso? — perguntei.
— Quantas vezes tenho de dizer a você, Docinho? Estou legal! —
Astrid soltou um suspiro. — Olhe só. É a espantosa Garota Que Pinga. O
que é essa água no meu rosto?
Rindo, ela deu o braço a Juli e a mim. Estávamos com minissaias de
imitação de couro, as três combinando, e suéteres listrados.
— Miauu! — brincou Astrid, no quarto de Juli. — Muito sexy.
Agora, apontamos nossos queixos para o céu, para a Estrela do
Norte, e nos dirigimos, pisando em folhas de pinheiro caídas pelo chão,
para o alarido vindo da varanda da frente de onde a festa transbordava da
casa.
Havia um punhado de garotos de pé na balaustrada da varanda, as
pontas dos tênis balançando perigosamente para fora da borda. Seguravam
cervejas e observavam tudo, seus bonés de beisebol abaixados sobre os
olhos.
— Bem o que eu esperava — lamentou-se Astrid. — Nada de heróis,
nada de amor, nada de glória.
Um garoto usando um boné John Deere retilíneo puxou saliva
misturada com escarro lá do fundo da garganta e cuspiu-a entre as pontas
de seus tênis.
— Putinhas... Putinhas da Colina — circulou entre eles, lentamente,
A
como um bilhete dobrado em quatro.
Astrid esquivou-se e disse:
— É isso aí. Não se esqueçam!
— Meu Deus! — cochichei. — Será que essa coisa não cansa?
Os garotos riram, bêbados.
Subimos até a casa, passamos pelos caras empoleirados na
balaustrada e por um garoto dando uma prensa numa garota na moldura da
porta, metendo seus quadris nela como se fosse uma chave de fenda.
— Já perceberam que, mais cedo ou mais tarde, o amor sempre
começa a se parecer com violência? — provocou Astrid, espremendo os
ombros para que a gente conseguisse passar pelo casal, que continuou
entretido no maior amasso.
— Deus permita que haja alguém interessante neste lugar — disse
Juli, torcendo nervosamente suas franjas negras.
Era uma dessas mansões pré-fabricadas, com uma impressionante
escadaria central que subia em curva para o segundo andar, onde um
candelabro de cristal estava pendurado de modo imponente por sobre o
saguão. Mas, apesar disso tudo, a casa ainda era nova, não mais de três
anos, feita de paredes finas como capim atravessadas pelas vozes. Havia
garotos com casacos de esqui e bonés de beisebol por todos os lados. Todas
as garotas estavam com a barriga de fora e riam escandalosamente com as
bocas escancaradas.
Fomos direto para a cozinha e Astrid conseguiu três copos de
plástico.
— Me passa aquele gim — pediu, pondo um pouco de água tônica
nos copos e três dedos de gim por cima.
— Puta merda! Deus do Céu! Não acredito! — berrou uma voz de
garota, e a seguir agarrou meu ombro, me fazendo virar.
— É que nem ver um fantasma.
— A gente pensou que você tinha morrido. bicaram zumbindo feito
abelhas em torno de mim:
Becka White, Carly Applewhite e Nicole Kramer, as garotas mais
populares na Tomás de Aquino.
— Ninguém soube dizer que merda aconteceu com você, garota.
Você simplesmente desapareceu do Tomás de Aquino.
— Isso aqui é imitação de couro?
— Mas que porra! Jura, você não morreu?
As garotas da Tomás de Aquino me imprensaram contra uma arca
holandesa com seu matraquear. Todas as três estavam exatamente iguais:
cabelo com permanente cor-de-banana, jeans desbotados com laços e
zíperes atrás, as três cambaleantes em suas botas Peter Pan. Em pânico,
minha boca ficou seca como se tivesse um chumaço de algodão. Pude
apenas ver que Astrid me passou meu drinque por cima do apinhado de
gente e se virou para se afastar. Ainda lançou uma piscadela para trás, antes
que Juli e ela fossem engolidas pela multidão, fazendo com a boca a
mímica das palavras: "Divirta-se!"
— Então, deixa ver se eu adivinho. Você foi internada no
manicômio, certo? — Nicole Kramer me deu uma cutucada nas costelas
com o braço que estava com um relógio Swatch, rindo. — Ou foi no
reformatório juvenil? Você sempre foi uma esquisitona!
— Como é que é? — exclamei, cega. — A gente se mudou. Fui
transferida para outro colégio.
— Ah, claro.
— Bem, se é o que você diz.
— Qual é mesmo o seu nome? Tabitha? Tami?
— Tan-tan-Tammi — disse Becka rindo, e fingindo uma dança com
o rosto quase colado ao meu. Deu até para contar os poros oleosos em seu
nariz.
— Não, é... peraí! Como é que é? —Tentei rir, mas a risada torceu-se
no meu peito e saiu como se fosse uni gemidinho prensado.
— Eu me lembro agora. Já me lembrei de você. — Nicole sacudiu
seu drinque rosado no ar, derramando a maior parte nas suas botas de
camurça. — Você ainda está sem falar?
— O quê? — perguntei.
— Peraí, você é...
— Tan-tan-Tammi.
— Todo mundo está com saudades de você. Principalmente o Brett.
— Eles têm de perseguir a Monica King, agora. E não é a mesma
coisa.
— Ela tem um braço mole, caído do lado, você sabe...
— Bunda gorda.
Apoiei minhas costas contra a parede e encarei as três, ali de braços
dados e dando gargalhadas, seus pulsos finos e cílios de um azul-
esverdeado. E eu a mesma que era na Tomás de Aquino, a garota que
pensei que havia deixado para trás quando me mudei de Pewaukee, sem
reação e de olhos arregalados.
— Quem você pensa que é? E o que é isso, Halloween? — Uma
onda de Love's Baby Soft exalou-se de Nicole quando ela cambaleou para
cima de mim para passar a mão na lisa e lustrosa imitação de couro da
minha saia, Pude sentir aquilo, o gosto dela, o cheiro doce e nauseante dela
nos meus dentes. — Peraí! O que você disse?
— Cale a boca, Nicole — disse uma de suas amigas.
— Tenho de procurar minhas amigas. — Escapei dali desesperada
por ar fresco.
— Claro que sim.
— Mas que merda você está fazendo aqui? Esta é a minha casa.
Nicole e suas amigas explodiram numa gargalhada enquanto eu ia
me afastando, atravessando a festa como pude, passando por centenas de
rostos suados, rindo e quase encostados uns nos outros. E mesmo assim a
risada das garotas vinha me perseguindo: Tan-tan-Tammi!
Passei pela sala, atravessei a cozinha, fiz um pit stop no banheiro e
voltei à sala de sinuca para procurá-las. Eu me sentia desesperada;
simplesmente precisava encontrar Astrid para ver se ela conseguia juntar
meus cacos de volta. Poderíamos fazer alguma coisa divertida como dar
uma escapulida até o banheiro e entornar creme de depilação no xampu de
Nicole Krammer, passar cola super forte no assento da privada e depois dar
o fora dali.
Encontrei Astrid e Juli recostadas sobre o feltro aveludado e verde da
mesa de bilhar, esticando suas compridas pernas à frente e rindo.
— Vamos embora — disse eu, sentindo-me desesperada, coçando
toda, como se tivesse formigas passeando na pele. — Temos de ir.
— O quê? — perguntou Astrid, fazendo girar seu drinque de gim
com a ponta do mindinho e depois chupando-o. — Mas a festa está só
começando a ficar boa. Está vendo aquele garoto ali?
A princípio, pensei que fosse uma ilusão de ótica por causa da luz, o
jeito que aquele garoto de cabelo de camurça e pele bronzeada parecia
iluminado, encostado num balcão cortado na parede que servia de bar para
a mistura de drinques. Ele estava recostado para trás sobre os cotovelos, as
franjas macias dos cabelos castanhos sobre os olhos, correndo o polegar por
sobre a linha com barba por fazer de seu queixo. Seus cabelos eram meio
encaracolados. Tinha covinhas oblíquas nas faces, e mãos
supreendentemente grandes. Claro que eram as velas e o incenso
queimando que faziam sua pele brilhar, que faziam os filamentos de seus
cabelos brilharem feito fogo.
— Tudo bem — disse eu. — Tá certo, talvez mais um minuto.
Meus joelhos tremiam e minha boca ficava seca só de olhar para ele.
E eu queria que ele olhasse direto para mim. Queria que ele me notasse.
Minha pele tão viva, tão elétrica esta noite.
— Ei, tem fogo? — perguntou Astrid, dando um tapinha no ombro
de Billy, um cara do penúltimo ano do Fenwick, e apontando: — Quem é o
gostoso?
— O cara novo? — disse Billy, enquanto Astrid se inclinava sobre a
mão em concha, roçando sua perna na dele só de brincadeira. — Devin. Ele
é de... acho que veio da Flórida. Ei, pára com isso. Faz cócegas — disse
Billy, afastando com um tapa a perna de Astrid. — Fala pouco. Mas as
garotas acham ele o máximo.
— Ah, é? — disse Astrid, expelindo fumaça pelo nariz no estilo
mulher-dragão. Ela me pegou olhando fixo para ela e me deu uma
piscadela. — Bem, diga a ele que a mamãe aqui gosta dele.
Fomos circular, bombeando cerveja do barrilete para copos de
plástico, conversando com o pessoal que a gente conhecia. Mantive
distância de Nicole Kramer e suas amigas, apontando-as para Astrid numa
hora em que jogavam para trás seus permanentes cor-de-banana para dar
risadas.
— Aquelas piranhas? — perguntou Astrid. — Ah, por favor, a gente
podia cortar elas ao meio.
Vimos Devin inclinar-se para cochichar com os amigos, fez um sinal
mostrando três dedos e todos eles saíram da casa. Escutamos motores
roncando e borracha de pneus raspando no chão. Um garoto numa camiseta
surrada do Quiet Riot ficou de pé, olhou pelas janelas e gritou:
— Lá vamos nós!
— E aí? — perguntou Juli.
Saímos da festa e paramos no meio-fio, olhando fixo para a fumaça
azul de escapamento de carros e as luzes traseiras descendo a rua. O ar
cheirava a fogo e borracha queimada. E, misturado, mais fraco, o gelo e a
neve lamacenta de dezembro.
Entramos no carro de Juli e seguimos o rastro de luzes traseiras,
viramos à esquerda e à direita, varando a noite.
— Para onde eles estão indo?
— Como é que eu vou saber? — Astrid acendeu um cigarro e soprou
a fumaça pela janela numa pluma.
— Não estou vendo nada. Não tem nada aí fora.
— Graças a Deus pelo menos saímos de lá.
— Uma merda de festa, mas uns caras gostosos, não acha?
Juli inclinou-se mais sobre o volante e apoiou o coto velo na
maçaneta da porta. Ela seguia o rastro das luzes traseiras, passando o
Kmart, o Handy Andy e os pequenos shoppings à beira da avenida.
Pus a cabeça para fora da janela e fiquei olhando o céu coberto de
estrelas. Sua cidade natal nunca parece tão pequena numa noite bonita
como essa, quando você está por aí, rolando na noite. É como se fosse o
centro do mundo porque é onde você está e tem a esperança de estar livre
de quem você foi antes, e de repente o mundo fica enorme e cheio de
surpresas, todas para você.
— Ei, olhem, acho que estão indo para o Cemitério Hollywood. —
Juli virou à direita, entrando direto no cemitério dos soldados que ficava
atrás do Sagrado Coração.
Havia ali uma fileira de carros: três ou quatro. Saímos batendo as
portas e nos empoleiramos sobre os capôs.
— Olhe só pra mim! Meu rosto está um desastre! — suspirou Astrid,
cutucando uma espinha no rosto. — Acha que eles vão notar?
— Estou congelando — disse Juli, cobrindo-se com o capuz felpudo
de seu casaco.
Ficamos ali, sobre o capô do Audi de Juli, vendo a fumaça saindo
dos escapamentos dos carros, escutando os motores soltarem pipocos e
acelerarem. Astrid espremeu a espinha, vendo um motorista acelerar rápido
e dar uma guinada, fazendo o carro girar, desperdiçando tempo.
Um garoto com um casaco de jeans justo e boné de beisebol parou de
pé entre as duas linhas de carros. Ele deixou cair uma bandeira. Os carros
partiram a toda, só fumaça e óleo, descendo as alamedas de lápides bem
arrumadas do Cemitério Hollywood.
— Olha lá, é o seu caubói da Flórida. — Juli cutucou Astrid com o
cotovelo quando um Chevy Nova contornou a pista, passando por nós
como se fosse um borrão. Meu coração começou a bater num ritmo
estranho, descompassado, como se fosse um homem com apenas uma perna
mancando rua abaixo. Era difícil respirar. Bem no rastro de Devin, o
Camaro rodopiou num cavalo-de-pau, oscilando muito, fora de controle. O
Camaro que rodopiava bateu no Nova de Devin com força bastante para
girá-lo 90 graus e fazê-lo derrapar para cima do gramado. Os freios dele
guincharam, O Nova deteve-se de repente, a um milímetro de uma lápide
gigante com um anjo que a envolvia em suas asas.
— Ora, que coisa! — Astrid ficou de joelhos, observando vidrada a
cena. — Está ficando interessante.
Devin saltou do Nova. Deu uma olhada em volta, checou a lápide,
ainda intacta, exalando uma nuvem de vapor dos pulmões. Estávamos
longe demais para escutá-lo, mas vimos ele se curvar para o chão,
pressionar as mãos sobre os joelhos e começar a rir.
Mais tarde, quando todos já estavam estacionados e bebendo cerveja
nas latinhas, sentados nos capôs dos carros, Devin passou por nós,
esparramadas sobre o Audi cor-de-limão de Juli, batendo papo.
— Mais cuidado, Matador! — gritou Astrid. — Deixou a gente
preocupada!
— N-não foi nada! — Devin gaguejava um pouco, falou sorrindo.
Deu uma boa olhada primeiro em Astrid, depois em Juli, depois em mim.
Loura, morena, ruiva. Eu podia jurar que os olhos dele pararam, só por um
segundo, nos meus.
— Ouvimos dizer que você é da Flórida. Como é Milwaukee,
comparado com aquilo lá?
— L-legal! Bonito. Garotas mais b-bonitas. — Devin sorriu,
envergonhado, e se debruçou na grade. Usava uma fina tira de couro atada
em torno do pescoço, caindo frouxa sobre a clavícula. — Sério. E... tudo
aqui cheira a cerveja.
— Isso é Milwaukee para você — disse Astrid, surpresa, balançando
ligeiramente a cabeça diante da gagueira de Devin.
— Belas curvas vocês fizeram — disse eu e endireitei o queixo, toda
envergonhada. — Nunca tinha assistido uma corrida de rua. Foi você que
começou com isso?
— É o país da NASCAR!—Devin repuxou a tira de couro em torno
do pescoço. — Mau hábito, sabe? V-ocê não vai ficar pensando mal de
mim por causa disso, vai?
Na luz do carro, os olhos dele eram como azeitonas, verdes nas
bordas e castanhos no centro. Nunca vi olhos como aqueles, grandes,
meigos, engolindo a gente.
— Ei, e-escute... Eu me chamo D-Devin — disse ele.
— Já sabemos — disse Astrid, rindo. — Eu me chamo Astrid, aquela
é a Juli, e aquela é a Thisbe. Mas pode chamá-la de Docinho.
— Docinho — disse Devin, clara e nitidamente. Ficamos lá parados,
nós quatro sorrindo como assombrações uns para os outros. A tagarelice da
festa de repente desapareceu e éramos apenas nós quatro num cemitério
deserto junto à extremidade de um milharal, sentados à luz dos faróis,
sorrindo.
Minha boca estava seca de desejo e ele estava parado lá, chutando a
poeira do chão com a ponta da bota.
Descobri, na minha pouca experiência, que a maioria dos garotos não
sabe como olhar para uma garota. Têm tanto medo dela que evitam seus
olhos. Ou então não dão a mínima e o olhar deles as atravessa. Pode ser que
ensinem coisas diferentes aos garotos na Flórida. Pode ser que eles tomem
lições como "esta é a maneira de você olhar para uma garota; para os olhos
dela, a boca, o rosto. Você deve olhar para ela como se ela fosse uma
pessoa". Pelo menos era assim que Devin estava olhando para nós.
Primeiro para Astrid, depois para Juli, depois para mim. E então, surpresa,
ele piscou.
— Nós estudamos no Sagrado Coração — disse Juli, apontando os
fundos do nosso colégio, erguendo-se como um professor de óculos a
distância, depois do milharal e de suas grossas hastes amarronzadas.
— J-jura? E-e-eu nunca ia adivinhar. — Devin sorriu. — Bem que eu
prefiro isso aqui à Flórida. — Ele amassou a latinha de cerveja vazia e
soltou um assovio por entre os dentes. — A gente se vê.
Devin enfiou as mãos por dentro dos bolsos de couro macio de seu
casaco e deixou a área iluminada pelos faróis. Ele seguiu em direção à
fileira de carros atrás de nós, chutando poeira do chão no escuro.
Ficamos em silêncio. Pensando. Sonhando. Bem como fazem as
garotas. Juli abria e fechava a porta do carro. Eu puxava fios soltos do meu
cachecol, um por um. Até que, com voz macia, Astrid sussurrou:
— É... Eu vou virar a cabeça desse cara!
MOTEL BLUE CHATEAU
uli morava na Zona Leste, numa mansão de estuque dos anos 20. Os
Sung tinham quatro banheiros e meio, assoalhos de parque, tapetes
orientais felpudos e piano negro de cauda, um computador Macintosh
XL, dois vasos Ming, três aparelhos de cozinhar arroz, uma casa de
hóspedes sobre a garagem, um jardineiro negro, uma arrumadeira todas as
terças e quintas, um quarto andar com um banheiro pequeno e uma cozinha
também pequena, com um fogão e um frigobar, do qual Juli tomou conta
em seu aniversário de 12 anos, tornando-o seu clube particular.
Havia vezes em que Juli se deitava de costas no tapete branco de
pêlos emaranhados. Um halo de luz ficava piscando da luminária de dormir
da Virgem Maria que Juli tinha, o coração exposto da santa, rosado e com a
forma de um morango.
— No que a faca perfura o seu peito, você sente as pernas pesadas
como se fossem feitas de madeira. — Astrid esfregava as têmporas de Juli
enquanto eu, sentada de lado, esperava minha vez. — O sangue enche sua
boca. Seu coração estremece uma última vez. Depois, pára.
Astrid se apressaria a passar para o lado direito de Juli. Ambas
enfiaríamos dois dedos, o indicador e o médio, por baixo de suas costas.
Astrid soergueria uma sobrancelha e me faria um sinal de cabeça. Nós
sabíamos o que tínhamos de fazer.
Daí, sussurrávamos:
— Leve como uma pena, rija como uma tábua.
O corpo magérrimo de Juli seria erguido facilmente por nossos
dedos. Primeiro, dois ou três centímetros acima do solo, depois outro tanto.
"Magrinha", era como o pai a chamava. "Minha Magrinha". Ela já estaria à
altura dos nossos joelhos, seus cabelos negros como ébano tocando o chão,
como se fosse bala puxa-puxa, até Juli abrir os olhos de repente e exclamar
baixinho:
— Merda!
Então ela batia sobre o tapete branco felpudo com um barulho surdo.
Ria e esfregava a cabeça:
— Desculpe.
Hipnotismo fajuto. Era o que a gente fazia para passar o tempo
quando ficávamos em casa. Mas as noites com saídas eram uma história
J
bem diferente.
— Me passa a chave — disse Astrid. — Enfiei ela na sua bolsa. —
Astrid remexeu a franja com os dedos.
— Mas que merda, Deus do céu. Estou congelando — disse Juli, as
palavras sussurradas por entre as nuvens de vapor do seu hálito, na
escuridão do estacionamento vazio.
O vento agitava nossas saias e congelava nossos joelhos. Era uma
noite cortantemente fria de janeiro, quando o mundo inteiro parecia coberto
de gelo. Os quartos no Motel Blue Chateau davam de frente para um
estacionamento deserto, e adiante havia as pistas gêmeas com uma camada
de sal, a Route 65. Os faróis iluminavam por um instante as flores
selvagens que cresciam na margem da estrada e a seguir tudo voltava à
escuridão da noite.
— Assustada?
— Talvez, um pouco... E você?
— O que você contou para a sua mãe?
— Que ia dormir na casa de uma amiga. Na sua casa. No fundo da
minha bolsa, lá estava escondida: uma
Chave dourada amarrada por um cordão a uma plaquinha de plástico
onde se lia MOTEL BLUE CHATEAU numa escrita cintilante, cursiva.
Astrid colocou a chave na fechadura e girou, tudo ali dentro era
amarelo-acizentado brilhante.
Dejan e seu amigo Sarge estavam lindamente vestidos. Eles sempre
se vestiam muito bem. Calças de lã pretas, camisas brancas engomadas
com punhos franceses, abotoaduras, anéis nos dedos, colarinhos abertos,
triângulos de pele cor de oliva, bronzeada.
— Puta merda — disse Dejan, sentado de pernas cruzadas sobre o
assoalho. — A gente já estava pensando que vocês haviam desistido. Ou
que tinham se perdido. Saiam logo desse frio.
Garotos de faculdade. Sérvios num intercâmbio internacional de um
semestre de duração, matriculados na Marquette University. Nós os
havíamos conhecido nu Coffee Trader uma semana antes.
— Zabole, vá lá — disse Sarge. — É sua vez, agora. Dejan e Sarge
estavam sentados num pequeno tapete alaranjado, lindamente vestidos,
atirando cartas de baralho numa jarra de plástico.
— Quer beber? Aqui. Trago um drinque para você. — Dejan esticou
o braço para trás e puxou uma garrafa de rum Malibu, serviu num copo de
papel e por cima pôs um pouco de suco de laranja. — Merda, não trouxe
copos para todo mundo. A gente divide, certo?
Na semana anterior, Dejan e Sarge nos levaram a um restaurante
sérvio na Zona Sul, onde comemos tomates e queijo feta com azeite em
mesas de piquenique com furinhos. Bebemos café sérvio em pequenas
xícaras de porcelana decoradas com botões de cravo encarnado. Foi uma
piada atrás da outra então, muitas risadas e mãos enfiando-se por debaixo
das mesas. Eles abriram o mundo para nós, desse modo, para uma troca.
— Certo, garotas — disse Dejan, pegando dois dedos de Astrid e
colocando-os na boca. Depois os molhou. — Está pronta para isso?
O Motel Blue Chateau tinha uma decoração temática baseada em
algum tipo de castelo, com paredes de estuque e murais feios retratando
torres de tijolos e heras trepadeiras desenhadas em dourado. Três mariposas
batiam as asas contra a lâmpada suja de luz amarelada. Abaixo, duas camas
de solteiro cobertas com colchas amarelas, posicionadas no centro do
quarto. Tentei fazer cálculos na minha cabeça, mas não tinha lógica: três de
nós e dois deles.
Fiquei pensando em ir embora para casa a pé. Passando pela parada
de caminhões, subindo a estrada, seguindo a margem da rodovia pelos mais
de 30 quilômetros de volta a Milwaukee. A estrada cinzenta faria uma
curva e se transformaria numa pradaria. As flores selvagens margeariam a
estrada como se fossem papel rasgado. Seria um caminho comprido, muito
frio e solitário. Tudo ia parecer uma merda.
— Ei, me dá uma mão aqui — disse Dejan, contraindo as
sobrancelhas. Ele pegou a mesinha entre as camas e a colocou junto da
porta, ao lado de Juli. Aos empurrões, colocaram as duas camas de solteiro
juntas.
— Tudo certo, agora — disse Sarge. — Onde estão as porcarias
daquelas coisas molengas? — Ele remexeu nos copos e nas sacolas de
plástico procurando, acho, pelas camisinhas.
Juli esticou o braço para trás para apagar a luz no interruptor, mas
Dejan, com uma risada, disse:
— Luzes acesas, garotas. Queremos ver.
O que quer que acontecesse aqui, ia acontecer às claras, nós três, eles
dois.
Astrid entendeu meu olhar e sussurrou:
— Tudo bem com você, Docinho?
Já em casa, na casa de Juli, quando chegou a minha vez, eu me deitei
no tapete felpudo e branco de Juli enquanto Astrid e Juli se aproximavam
mais de mim. O jogo sempre começava com uma mortezinha.
Não era sempre que a gente era morta por outra pessoa — às vezes,
morria afogada ou caía e batia a cabeça, até mesmo suicídio uma vez,
embora isso não tenha funcionado muito bem. Gostávamos que nossas
mortes fossem dramáticas, geralmente na floresta ou em algum lugar
exótico, de preferência nas mãos de um garoto grande e cabeludo.
— O estranho está apertando seu pescoço agora. Respirando na sua
cara. Ele aponta uma pistola para o seu coração. Solta a trava com o
polegar. — Astrid fazia círculos em minhas têmporas. — Ele puxa o
gatilho. A bala é rápida. Um furo que vai queimando direto até seu coração.
Você não tem nem tempo para um último suspiro. Apenas cai. Já era. Está
morta.
— Leve como uma pena e rija como uma tábua. Dejan tirou a colcha
de sobre as camas e atirou-as no chão. Juli sentou-se, meio constrangida, na
cama, enquanto Dejan desabotoava sua bela camisa. A pele despida de
Dejan e a de Sarge, de um tom moreno-avermelhado, parecia úmida, como
se tivessem acabado de sair do chuveiro. Sarge desatou a faixa do seu short
listrado e olhou para baixo, envergonhado.
— Leve como uma pena, rijo feito uma tábua. Dejan enfiou a mão
por dentro da blusa de Juli para pegar seu mamilo castanho e nu, dizendo:
— Vamos, garotas.
— Ei — gemeu ela. — Cuidado.
Não havia mais volta. Astrid soergueu uma sobrancelha e me fez um
sinal de assentimento de cabeça. Nós sabíamos o que fazer.
— Leve como uma pena, rija como uma tábua.
Nossos pés deixaram o carpete, e hesitantes nos entrevimos aos
braços abertos de Dejan. Nós duas com a respição paralisada e ele nos
ergueu no ar. Simples assim.
MUITO CUIDADO AÍ FORA
uando Astrid telefonou, eu disse:
— Estou ocupada. — E disse: — Ligo para você mais tarde. — E
acrescentei: — Minha mãe acabou de terminar com o namorado
maconheiro. Uma confusão. Vamos alugar um filme.
Fiquei em casa. Minha mãe havia acabado de brigar com o
namorado. Ficamos pela casa vestidas de pijamas e meias soquete, sentadas
juntas no sofá numa noite de sábado,
— Olhe só a gente — disse minha mãe com um sorriso estranho. —
Garotas bem populares.
— Está com saudade do papai?
— Você está brincado, não está? — perguntou ela. — E você?
Ficamos em casa, assistindo a um seriado policial. Fizemos sundaes
com chantilly e chocolate Hershey's. Fiz umas perguntas a ela sobre sexo.
— Quando eu tinha 15 anos — disse ela — não sabia coisa nenhuma.
Meu namorado me perguntou se eu queria um beijo de língua e eu
respondi: "Ficou doido? Não quero ficar grávida."
Eu ri um bocado, soltando ar prensado pelo nariz, c enfiei os pés
debaixo da bunda dela, no sofá. Fazia anos que eu não me sentava desse
jeito. Minha mãe e eu.
— Muito bom — disse eu.
— Não é? — Minha mãe sorriu. Assistiu até a metade do seriado e
caiu no sono antes que um sargento de fala macia dissesse sua fala de
sempre para a mal-humorada equipe de policiais: "Muito cuidado aí fora,
Agora, ao trabalho!"
Depois das aulas, comecei a ajudar a Irmã St. Joe a assar roscas para
o Dia das Roscas em vez de sair rodando pela cidade no Audi cor-de-limão
de Juli. Ela ainda preparava roscas para os missionários em El Salvador,
embora seu irmão com dedos faltando não estivesse mais por lá. Ele ficou
com uma paróquia em Green Bay e três dedos de plástico como presente de
regresso para casa. Carregamos as pesadas bacias de misturar ingredientes
da senhora que cuidava do almoço até o laboratório de Química e lá
fizemos a massa sobre as mesinhas com tampo de ardósia.
— Seis xícaras de açúcar, oito de farinha — ia dizendo a Irmã St.
Joe. Baixinho, para si mesma, cantarolava um verso de Sisters of the Moon.
Q
— Algumas garotas dizem que esta sala é mal-assombrada — disse
eu, espremendo a massa entre os dedos. — Já teve medo disso, irmã?
— Por que deveria?
— Pode ser o fantasma de Deb Scott,
— Por que vocês, garotas, têm essa fascinação mórbida? — A Irmã
St. Joe riu, a farinha elevando-se como uma nuvem por entre seus dedos de
pontas finas. Quando ela viu que eu havia ficado curiosa, parou de rir e
disse: — Quer saber de um segredo? Ela se sentava ali, na quarta fileira,
penúltimo assento.
Ergui os olhos e meu rosto ficou vermelho.
— O seu assento. — A Irmã St. Joe sorriu brandamente.
— Você a conhecia?
— Claro que sim. — A Irmã St. Joe deteve-se e consertou o véu,
sujando as pontas de massa dourada. — Todos a conheciam.
As tardes eram curtas em Wisconsin naquela época do ano. Víamos o
sol descer às três e meia, uma última rajada de cor, laranja e rosa cruzando
o céu, e a seguir cinza, a penumbra e a noite.
— Mas você não corre perigo aqui, juro! — disse a Irmã St. Joe com
uma piscadela para mim.
Na biblioteca, depois das aulas, fiquei mexendo nos livros do ano,
procurando fotos antigas de Deb Scott. Eu ficava arrepiada por estar
tentando descobrir algo sobre ela, de dar um rosto a seu famoso sobrenome.
Fiquei surpresa ao vê-la no primeiro ano do colégio com um permanente
malfeito, bebendo um milk-shake na cantina do Sagrado Coração. Na foto
granulada em preto e branco, ela exibia os dez dedos cobertos de papier-
machê, o rosto dela mostrava uma garota de colégio feliz, sorrindo para a
câmera. No segundo ano, foi fotografada com o time de hóquei de campo,
atravessando correndo o terreno tomado de ervas daninhas dos fundos do
Sagrado Coração, segurando um bastão de hóquei acima dos ombros e
gritando, aposto, Atacar!
Dobrei os livros do ano ao meio, fazendo estalar a lombada, e os pus
abertos sobre a mesa da biblioteca. Todo o barulho do colégio, os armário
batendo ao se fechar, as campainhas tocando, tudo pareceu sumir. Deb
Scott sorria para a câmera; eu podia ver isso.
Manchas escuras começaram a aparecer em torno de seus olhos no
penúltimo ano. Seus cabelos se tornaram mais embaraçados e mais negros,
como se fosse um ninho sobre a sua cabeça. 1982: página 47. Foto no
corredor, mais para o final, à esquerda. Deb Scott exibia chifres de
demônio para a câmera e punha a língua para fora. Rebelde, cabelos
totalmente emaranhados. Sua saia, mais curta, um corte irregular na altura
dos joelhos. A garota que se tornaria uma lenda.
Quarto ano, o último, e já não havia fotos cândidas de Deb Scott.
Somente a pomposa foto padrão dos sêniores numa borda oval. A franja
muito solta cobrindo os olhos. Pálpebras delineadas como se fosse uma
máscara de quati. Um visual quase familiar. Deb repuxou os lábios para
formarem um círculo, como se estivesse expelindo fumaça, meio
sorridente, aquele seu sorriso esquisito. Enquanto outras garotas listaram os
clubes dos quais participavam, os esportes depois das aulas, os prêmios em
suas prateleiras, Deb simplesmente escrevera em maiúsculas:
SOU JOVEM E ESTOU EM BUSCA DA GLÓRIA
Passei o dedo pela página impressa apenas para sentir a forma.
A bibliotecária tinha um arquivo de fichas, por baixo do balcão da
frente, com registros dos livros que todos os estudantes haviam pego
emprestado ao longo dos anos. Quando ela saiu para ir ao banheiro,
surrupiei o velho cartão já amarelado e gasto de Deb Scott. Em quatro anos,
ela pegara emprestados apenas três livros: O vale das bonecas, Um bom
homem é difícil de se encontrar, de Flannery O'Connor, e Os últimos dias
de Sócrates, de Platão.
Levei para casa esses mesmos livros. Enfiado no envelope de
registros de empréstimos, no final do livro de Sócrates, encontrei um
bilhete escrito a lápis, dobrado em cinco partes até virar um minúsculo
quadrado. Cheirava a carvão. Quando o desdobrei, vi rabiscos começando
de um lado do papel e passando pelos quatro cantos, formando quadrados
cada vez menores, até terminar no centro. E virando o papel, da parte
inferior para a superior, preenchendo tudo de um lado a outro, li:
Do que você tem tanto medo? Fiz tudo por você. Eu me entreguei
inteiramente, não foi? Sabe o que isso significa? Não me interessa o que a
sua mulher acha nem a sua filhinha. Venha, seu idiota. Estou enjoada e
cansada de esperar. Beijos&Abraços — DBS
Então, fiquei obcecada com a torre do sino. Comecei a ficar
passando pela grande porta de metal do terceiro andar, aquela com o cartaz
de ENTRADA PROIBIDA colado com fita adesiva no vidro canelado. Na ponta
dos pés, espiei através do vidro e vi uma escada preta em espiral até o teto,
teias de aranha e mais nada. Tentei grampos de cabelo e pontas de facas na
fechadura, buscando um jeito de abri-la, só que nenhum clique veio lá de
dentro, Mas o que é que havia lá em cima? Alguém disse: Deb Scott.
Duas semanas adentro no mês árido e solitário de janeiro, o
namorado maconheiro da minha mãe telefonou. Pediu desculpas. Minha
mãe arrumou o cabelo. Pôs brincos-cascata nas orelhas, a mesma história
de sempre.
— Não fique esperando por mim, certo? Pode ser que eu chegue
tarde — disse ela. — Por que não sai esta noite? Vá se divertir. Como é
mesmo o nome daquela sua amiga? Ariel? Astrid? E aquela garota
chinezinha tão linda?
Sem ela em casa, fiquei vagando pelos aposentos vazios. A meia-
noite, atravessei o gramado e me deitei no congelado jardim da frente.
Quase fora da minha vista, a casa parecia estar se movendo, ondulando,
prestes a despencar na noite. Como se a casa inteira pudesse desabar se
alguém a cutucasse com o dedo mindinho.
Fui para o quarto da minha mãe e comecei a experimentar suas
roupas. Cheguei mesmo a vestir suas lingeries sensuais. E fiquei me
perguntando se ser uma mulher era assim? Ou assim? Ou esta coisa com as
tiras?
Tirei suas estolas de seda da gaveta de cima e primeiro as enrolei nos
cabelos, depois sobre os olhos, o nariz, o queixo. Uma múmia adolescente.
Eu me senti segura e calma por um instante; tudo estava quieto, tudo que eu
escutava era meu próprio coração descompassado. Dei uma espiada na
minha imagem de múmia no espelho e exclamei:
— Buuu!
Quando Astrid telefonou, disse:
— Sinto muito, Docinho. Nossa! Você não tinha de fazer nada se não
queria. O que mais quer que eu diga?
— Tudo bem — disse eu.—Está tudo bem, deixa pra lá. Juli parou
junto ao meio-fio, o silencioso gorgolejando ritmadamente. Astrid disse:
— Vamos entrar, garota! E já!
Aumentamos o rádio. Juli acelerou o motor. Tudo era barulho,
música e bebida em copos de plástico. Garotas conversando. Voamos pela
noite, cegas como morcegos e ferozes como aves de rapina.
MÁGICA
uli fez uma tábua Ouija com o fundo de uma caixa de papelão.
— Isso, é fácil. Minha tia Liz me mostrou o que a gente tem de
fazer. Ela está toda entusiasmada com essa história de Nova Era —
disse Juli.
Juli rabiscou um SIM, um NÃO e um TALVEZ no fundo de uma
caixa de papelão, com uma caneta de tinta preta. Depois, rabiscou as letras
do alfabeto. Virou sobre a tampa de um copo comprido de vidro e começou
a empurrá-lo.
— Faça uma pergunta.
— Certo — disse Juli com um sussurro. — Meus pais vão se
separar? — seguimos o copo que, lentamente, foi para o SIM.
O rosto de Juli se torceu.
— Ora, é só um jogo idiota — disse eu. — Vamos lá. Vamos
experimentar.
Desligamos as luzes, exceto a da luminária de dormir de Juli, com a
Virgem Maria, seu coração exposto ardendo como um olho ferido,
ensangüentado. Acendemos velas perfumadas, jasmim, cedro, capim-
cheiroso, e as colocamos em círculo. Abrimos uma fresta na janela para
deixar a brisa noturna entrar.
— Certo, concentração agora! — Sentei cruzando as pernas num dos
lados do papelão tatuado, Juli no outro. Fiquei me perguntando se deveria
perguntar a respeito de Devin, com sua pele bronzeada e seus olhos cor de
azeitona, daquela noite da corrida de carros, mas em vez disso decidi
guardar para mim meu desejo, como se fosse uma pedrinha que alguém
guarda no bolso para ter sorte.
— Faça outra pergunta — disse eu.
— Eu tenho uma pergunta. Lá vai. — Juli sorriu maliciosamente,
com a boca arreganhada. — Quinn Catherine. Ela é virgem?
O copo passeou pelas letras do alfabeto, flutuou junto dos números e
depois parou no NÃO. Rimos.
— E a senhorita Taliferro Moss?
O copo disparou sobre o SIM e explodimos em gargalhadas.
Fizemos todas as perguntas sobre o que nos aguardava, o que estaria
J
à espreita, oculto, um espaço tão em branco quanto bebês, em nosso futuro,
os mistérios universais de nossas vidas: Iríamos ao baile de formatura do
colégio? Com quem? E iríamos para a universidade? Onde? Estudar o quê?
Seríamos jornalistas, estrelas de cinema ou (Por favor, isso não!)
donas-de-casa? Continuaríamos morando em Milwaukee? Iríamos nos
mudar para algum lugar especial como Nova York ou Paris? Teríamos uma
casa? Um apartamento? Seríamos ricas e famosas? Iríamos nos apaixonar?
Quantas vezes? E ele nos amaria também? O que ia acontecer conosco?
Para onde estávamos indo? E o que deveríamos fazer, quando chegássemos
lá?
Era como se tivéssemos entrado num mundo de sonhos, todas
aquelas esperanças, sonhos, desejos. Era algo que nos lançava para girar em
torno das estrelas, onde tudo seria possível. Ficamos sem fôlego seguindo o
copo de vidro, que ia conjurando palavras sobre nosso futuro.
Não tínhamos nenhuma idéia do que ia acontecer conosco. Éramos
as garotas do Sagrado Coração, onde nada jamais mudava, a não ser os
sentimentos dos garotos por nós. E até isso era tão previsível quanto
quebra-cabeças de três peças.
Assim, continuamos fazendo perguntas.
A Irmã St. Joe já esteve apaixonada? (SIM)
Astrid estava se divertindo em seu encontro? (TALVEZ)
Os pais de Juli iriam se divorciar? (De novo SIM, e Juli reclamou:
"Você está forçando!")
Por cima do copo, ficamos nos encarando quando não sabíamos mais
o que perguntar, ainda rindo um pouco, ofegantes, quando então o copo
começou a se mover sozinho, as pontas de nossos dedos mal tocando seu
fundo de vidro.
PRONTO, disse, deslizando pelas letras.
E depois, mais um pouco. Girando, percorrendo as letras, parando
junto a uma delas como a aba de uma saia, provocando, dançando e
formando palavras na tábua.
VEJO VOCÊS.
Prendemos a respiração.
— Não estou brincando — disse Juli. — Pare de empurrar.
— Certo. — Soltei o ar. — Tudo bem. Só que eu não estou
empurrando coisa nenhuma.
O coração da Virgem Maria nos observava, sangrando como um
morango cortado.
— Aqui. Pare — sussurrei, meu dedo indicador tocando muito de
leve o vidro liso e duro. — Quem é você? — perguntei.
O copo oscilou para frente e para trás, como se soletrando um oito,
soletrando VOCÊ SABE.
— Hem?
Juli inalou o ar, sugando-o como se fosse através de uma peneira.
— Tudo bem. Vamos parar por aqui. Esse negócio está me
apavorando. Juro!
Mas ela não parou, não tirou os dedos do copo.
Ficamos vendo o copo avançar e desviar-se sobre a tábua,
desenhando graciosas curvas em torno das letras.
Minha mente se fundiu num só pensamento, mesmo contra minha
vontade. O garoto de pele morena e olhos cor de azeitona.
O copo de vidro projetou-se na direção do SIM. Nossos dedos mal o
tocavam. A respiração ficou presa na minha garganta como se fosse água
gelada.
— Vamos parar, Thisbe? Por favor.
Juli piscou os olhos castanhos com contorno dourado para mim.
— Espere um pouco — sussurrei. — Só mais uma. — baixei minha
cabeça e fechei os olhos, como se estivesse rezando. — Qual o seu nome?
Lenta e preguiçosamente, como se estivesse com vergonha ou algo
parecido, meio relaxado, como se arrastas-se os pés, o copo passeou pelos
cantos da tábua, flertando com as letras, provocando, nos fazendo esperar,
brincando conosco. Finalmente, o copo começou a parar junto às letras,
com sua dança elegante, soletrando um nome que era como uma chama se
acendendo.
O copo se movia tão rapidamente que não conseguíamos
acompanhar, mas primeiro foi o D, depois o B, depois o S.
Ambas tiramos nossos dedos do copo, como se estivesse queimando.
E a porta de Juli se escancarou com alguém gritando:
— Ei, que merda é essa?
Astrid tropeçou na escuridão do quarto, espalhando pelo caminho
tudo o que havia em sua sacola de camurça azul: seus broches, seus
prendedores de cabelos, suas latinhas de brilho.
— Que chatice! — gritou ela. Tirou fora o suéter listrado e agitou os
cabelos cacheados. — Esse garoto. Uma droga. Tinha um hálito de defunto.
Juro. Eu disse: "Vá arrumar uns chicletes e só me telefone depois. Ou nem
assim."
Astrid ficou remexendo com os dedos uma de suas tranças cor de
vela amarela e olhou em volta, vendo logo a tampa da caixa de papelão
com as letras rabiscadas, o copo de vidro que alguém quebrou em pedaços
no tapete felpudo branco. Ela olhou para Juli, depois olhou para mim.
— E aí? Perdi o quê? Uma grande sessão de suruba ou algo do
gênero?
— A gente só estava brincando — disse eu. — Sabe como é.
As cortinas agitavam-se ao vento. A Virgem Maria e seu coração
hipnótico recusavam-se a piscar. Juli mordeu as já arruinadas extremidades
de seus dedos sem unhas e ensangüentados, enquanto eu escutava meu
coração bater ainda disparado.
Então, foi Astrid quem teve de falar:
— Adivinhe só quem eu vi. O caubói da Flórida, Devin. No Trader.
Juro. Dei um jeito de entregar a ele meu número de telefone.
— É mesmo? — disse eu. — Uau! Maravilha!
— Mas você acha que ele vai telefonar? — Astrid acendeu um Kool
e soprou uma tira de fumaça estreita e cinzenta na direção da janela. —
Acha mesmo?
— Claro — disse eu. — Quero dizer, acho que vai. Catei os cacos de
vidro do tapete e cortei um dedo por acidente, sorrindo com a dor do corte,
saboreando-a.
Juli olhou para mim e sorriu, como se soubesse exatamente como eu
estava me sentindo. E, por estranho que possa parecer, ela sabia mesmo.
COMO SE TORNAR UMA LENDA
VIVA USANDO RABISCOS DE
PORTA DE BANHEIRO
avia três banheiros de garotas no Anjos do Sagrado Coração.
Quatro, se a gente contasse o banheiro no vestiário do ginásio.
Todos eles cobertos com grafitagens rabiscadas pelas garotas.
Poderíamos dividir as grafitagens de garotas em três categorias
básicas. As grafitagens de garotos eram mais ou menos iguais, deduzo,
embora só tenha visto um banheiro de garotos em toda a minha vida e não
exatamente para estudar as grafitagens. Você entende? Bem, aí vai o que eu
sabia:
Em vez de filo, gênero e espécie, os grafites das garotas dividiam-se
mais ou menos assim: Amor, Sexo e Inspiração. Amor (O mais comum e
chato):
Brandy e Thomas pra sempre juntos
Mostre ao seu namorado que você tem classe. Não escreva o nome
dele enquanto está limpando a bunda.
Eu ♥ Javier.
Sexo:
Sexo faz bem à pele.
Juli Sung chupa bem à beça.
Astrid Thornton é uma Putinha da Colina. Inspiração (ou Filosofia.
Dependendo do quanto você leva a sério esse tipo de coisa):
É difícil retroceder quanto você não chegou a lugar nenhum.
Odeio cálculo.
Se algo tem pneus ou testículos, você vai ter problemas com ele.
Você é boa demais para ele.
Em boca fechada não entra mosca (nem outra coisa). Com um
desenho de um pênis ao lado.
No começo de fevereiro, estávamos entediadas e, por falta de coisa
melhor para fazer, Astrid iniciou sua própria categoria. Ela começou a levar
uma caneta de tinta preta em sua sacola de camurça azul. Ela a carregava
para toda parte e começou a grafitar os banheiros no Anjos do Sagrado
Coração.
Não se meta à besta com as Putinhas da Colina.
H
As Putinhas da Colina vão foder com você.
Seja uma Putinha da Colina. Você sabe que é isso que quer.
Cuidado com as Putinhas da Colina. Elas sabem o que você fez.
— Você tem mesmo de fazer isso? — perguntei.
— Está preocupada com o quê, Docinho? — Astrid soltou um
suspiro, arregaçando as mangas.
— Detesto essa palavra.
— Qual?
— Você sabe.
— Bem, coragem, amigona! — Astrid sorriu. — Podemos mudar
essa coisa toda.
Aos poucos, ela começou a grafitar as paredes dos nossos points
prediletos: o Coffee Trader, o Oriental, o Metrópolis.
As Putinhas da Colina vão chegar numa cidade perto H você.
Invasão das Putinhas da Colina.
As Putinhas da Colina estiveram aqui, Você perdeu.
Putinhas... não chatinhas.
Quer ser feminista? Seja uma Putinha da Colina.
Tem uma dúvida? Pergunte a uma Putinha da Colina. Ela sabe tudo.
Salve Putinhas, que estão no Sagrado Coração, louvado sejam vossos
nomes.
As Putinhas da Colina são Deus.
— Pronto! — disse Astrid, enfiando a tampa de volta em sua caneta
de tinta preta. — Assim ficou muito melhor, não acha?
O mundo inteiro rabiscado com o nosso nome.
ACOSSADO
ilwaukee não tinha muita importância no quesito história.
Somente arquitetura germânica e um tantinho de mercadorias de
índios americanos vendidas barato. Havia até mesmo uma tenda
indígena na Route 12 que vendia tiaras de contas com penas, pontas de
flechas e seixos da sorte. A mãe de Astrid parava lá todo Dia de Ação de
Graças e comprava um par de mocassins para usar como chinelo. Mas
havia o Oriental. Amávamos o Oriental. O único cinema construído nos
anos 40 poupado pela bola de demolições, o Oriental era o lugar mais
antigo que já tínhamos visto em Milwaukee. Desajeitado e úmido, as
paredes eram decoradas com figuras de baixo relevo de dançarinas do
ventre com pedras de vidro verde no lugar dos olhos e elefantes com bordas
de fios de seda vermelha. Recuado nas paredes do teatro principal, três
budas dourados sentados em diferentes posições: hindu, yoga e pernas
cruzadas. Quando as luzes se apagavam e o filme começava a passar, a
gente podia encontrar a placa de SAÍDA seguindo o brilho dos olhos verdes
dos budas.
— Onde está o cara com aquele órgão enorme?
— Escutei dizer que e!e faz coisas incríveis com o órgão daquele
tamanhão todo. Faz tudo saltar pra fora daquela coisa.
Dois garotos sem modos, com cabelos espetados, ambos usando
trancinha com rabo de rato, ficavam chutando as costas de nossos assentos
no balcão do Oriental com os calcanhares de seus tênis. Um deles tinha na
testa uma irrupção de acne que lhe deixava a pele com uma mancha
esbranquiçada. O outro tinha uma grande barriga de cerveja estufando sua
camiseta do Metallica. Estávamos numa sessão da meia-noite do Acossado.
— Amo a Jean Seberg — sussurrou Astrid. — Ela é tão femme
fatale. Simplesmente porque ela pode ser. Porque é uma mulher.
— Você leu isso em algum livro — debochou Juli. — Além do mais,
não suporto ela. Ela mata o herói.
— Anti-herói — corrigiu Astrid. — Sabe, isso acontece. As costas de
nossos assentos receberam outra pancada dos garotos atrás de nós.
— Deus do céu — sussurrei. — Que merda!
As luzes diminuíram e então aguardamos enquanto o brilho do
candelabro de cristal reduzia-se para azul, depois verde, depois rosa. O teto
M
do Oriental era pintado para parecer o céu da noite, com minúsculas
lâmpadas em seus soquetes como estrelas e um sombra girando como
nuvens.
— Ele está pondo o órgão dele para fora. É isso aí.
O grande Wurlitzer surgiu do chão com um floreado melodioso. O
alto-falante, estalando, anunciou:
— O Cinema Oriental da Farwell tem o prazer de apresentar: o sr.
O'Brien e seu poderoso Wurlitzer!
Uma bola de discoteca salpicou as paredes com fachos de luz branca.
O sr. O'Brien correu as mãos sobre o teclado do órgão como se estivesse
removendo a poeira de um tapete, para cima e para baixo. Astrid e Juli
riram e seus dentes faiscaram azuis nos salpicos de luz. A música do órgão
cortou todo o cinema deserto, envolvendo todas nós numa vistosa execução
de The Entertainer. Aquele punhado de adolescentes na platéia fez uma
zorra, assoviando entre os dentes.
Nós amávamos o Oriental.
— Ah, garota, isso, garota, Meu Deus! — Os garotos atrás de nós se
debruçaram no espaço entre nossos assentos, bem junto de nossas cabeças,
que balançavam, e gritaram:
— Acho que ele vai gozar!
Agarrei a sacola azul de camurça de Astrid, me virei no assento e
sussurrei:
— Se você não parar, seu merdinha, vou enfiar minha caneta no seu
olho!
— Pode vir. Quer experimentar, garota? — disse o babaquinha. —
Posso até gostar.
— Chega! — gritou uma voz atrás de nós. — Fora! Saiam daqui! Já!
A gente se virou para trás, mas não conseguiu ver nada, de verdade,
apenas sombras se aproximando rápido, corpos de costas, movendo-se
como um raio. Uma camiseta foi rasgada. Pessoas se pegando. Escutamos
socos como se alguém derrubasse um saco de laranjas. O grito agudo de um
sujeito atravessou o cinema.
— Merda — escutamos. — Minha nossa! Que merda! — E então
passos fugindo na escuridão.
Erguemos os olhos e vimos três garotos, meio descabelados, de pé no
final de nossa fileira. Mal podíamos distingui-los na escuridão do cinema.
— E-e-eii! — disse um deles, deslizando para o assento junto ao
meu. — Lembra de m-mim?
Fazia pouco mais de dois meses desde que o conhecera naquela festa
no feriado de Natal. Mas o garoto de pele morena e olhos grandes sorriu
naquela escuridão e meu coração disparou num ritmo mais do que
desencontrado. Eu não conseguia acreditar.
— O corredor, certo? — Sorri estupidamente e cravei os olhos na
tela.
— C-certo — disse ele. — Sou eu.
Astrid enfiou o nariz por cima de mim e estendeu a mão.
— Bom trabalho com aqueles caras, caubói. Astrid, lembra?
O amigo dele passou por cima de mim e eles se sentaram de um lado
e de outro de Astrid e Juli. Devin pegou o assento do corredor, junto do
meu. Desabou nele e riu. Astrid sussurrou para mim:
— Quer trocar de lugar?
Eu só fiz sorrir para ela, revirando os olhos:
— Nem pensar!
Meu corpo estava elétrico de tanto calor. Fiquei espiando Devin pelo
canto dos olhos, e o lado esquerdo inteiro do meu rosto ardia em brasa. Só
por estar perto dele. O nariz aquilino, lábios como fruta partida que ele
tocava vez por outra com a ponta do polegar. Vestia um casaco de camurça
cor de caramelo, uma camiseta branca alargada no colarinho e um macio
suéter puído preto. Eu nem podia acreditar. Ele cheirava a cigarros e
fumaça de madeira, mas também a alguma coisa mais, algo adocicado,
queimado. A franja de cabelos castanhos sobre os olhos, os pêlos das
sobrancelhas apontando para baixo, como flechas.
O filme começou, todo preto e branco, jazz e tensão total. Jean-Paul
Belmondo saltava pela tela em total desespero. Ele tocava levemente as
garotas no cotovelo, no pulso. Ele tragava Paris como se fosse um cigarro.
Aquele rosto deformado de boxeador. Eu mal notava.
Podia sentir Astrid debruçada sobre a periferia da minha felicidade
como se fosse um pássaro grande e negro. Mas eu a ignorei, cerrei os
dentes e sorri tentadoramente para Devin.
— Era você, falando com aqueles metaleiros? — sussurrei no escuro,
e Devin sorriu, baixando a cabeça. — Mas e a sua gagueira?
— E-e-engraçado. Só acontece com você por perto — disse ele,
inclinando-se para mim, os olhos ficando enormes e brancos em volta das
bordas, a respiração quente como vinho.
— Não acredito.
— Juro! — disse ele, esfregando o braço coberto pelo suéter no meu,
sobre o braço da poltrona. Perdi o fôlego de vez.
— Mentiroso.
— Bem...
Era tudo jazz e mágica.
PRIMEIRO BEIJO
RAMBO III
Quando eu tinha doze anos, o garoto que saía comigo me levou para o
Oriental para ver Sylvester Stallone em Rambo III. Comprou um saco de
pipoca jumbo e um pacote de jujubas. Achei o casaco dele uma graça. Pelo
canto dos olhos, podia ver que ele flexionava os dedos como um idiota,
tentando juntar coragem para pôr a mão sobre a minha perna. E não
conseguiu. Mas me levou até a porta de casa, todo à moda antiga, bem
nervoso. Quando me beijou, pude sentir que ele estava de pau duro,
esfregando na minha coxa. Já tinha ouvido falar sobre ereções, mas nunca
tinha sentido uma. Imagine, eu fiquei surpresa. Era um garoto tão
magricela, tão desajeitado e baixinho, com aquela coisa por debaixo da
calça, meu Deus, do tamanho de um salame. Como aquelas salsichas
tamanho gigante.
Juli Sung, 16
Milwaukee, Wisconsin
MELHOR, MAIS RÁPIDO, MAIS COMPRIDO
Carlos Martine costumava parar lá em casa em sua bicicleta. Tinha braços
fortes com a pele cor de chá. Eu o convidava para tomar uma limonada no
verão, um café solúvel no inverno. Ficou tudo assim por um ano, mais ou
menos. E ficávamos só de conversa. E toda vez, toda santa vez, eu ficava
pensando, porra, seu babaca. Beija. Me beija. Agora. Meu padrasto Padgett
sempre acendia fogueiras, a única coisa boa que ele faz em casa. E, uma
noite daquelas, a fogueira estava queimando bem quando Carlos encostou a
bicicleta na minha porta. Minha mãe e Padgett foram para a cama. Pus a
água para ferver para um café solúvel. Sentamos no chão, diante da
fogueira, nos tocando bem de leve, bem juntinhos. O fogo estava quente e
me deixou Cansada. Fechei meus olhos. Pude sentir ele se inclinando sobre
mim, apoiado num cotovelo. Ele sussurrou: "Posso?". continuei de olhos
fechados e sorri, um sorriso bêbado. Aquele beijo, meu Deus, nunca houve
um igual. Não sei como ele fez. Não sei o que ele fez. Tudo que me lembro
é de uma nuvem de fagulhas amarelas atravessando meus Olhos. Ele me
ergueu, me carregou para o sofá e não parou o beijo. Como uma maratona
de sexo, em que a gente nem se desgruda para respirar. Era como se Carlos
Martinez tivesse sido feito para amar uma garota, como se essa fosse sua
profissão. E o talento que aquele garoto tinha, minha nossa!
Astrid Thornton, 15,
Milwaukee, Wisconsin
SABOR DORITOS
Tínhamos o quê? Dez anos? Onze? Uma festa com garotos e garotas no
porão de Becka White. Alguém disse: "Vamos brincar de girar a garrafa."
Usamos a lata gigante de spray de cabelo de Becky como garrafa. Fiquei
trancada por sete minutos no armário de utensílios com Ryan Jappis, um
garoto gordo que todo mundo chamava de O Virgem. Ele devorou Doritos a
noite inteira. A língua dele se remexia como um trapo molhado e frio
dentro da minha boca, com gosto de Doritos. Pelo resto da noite, fiquei
sentindo como se estivesse com a cara toda lambuzada de migalhas de
Doritos. E que todo mundo estava sentindo aquele cheiro em mim, até os
pais de Becka White — a gente escutava os passos deles acima de nossas
cabeças, na cozinha, andando para lá e para cá, clopt, clopt, clopt.
Thisbe Newton, 15,
Milwaukee, Wisconsin
O BEIJO PERFEITO
Meu primeiro beijo com meu namorado Barry foi perfeito. Juro. Foi, sim.
Ele me levou para jantar no Merry Hills Country Club. Estava vestindo um
casaco branco. Eu usava um vestido comprido reto, prateado com uma
papoula púrpura na lateral, comprada na Express. Ele disse: "Você está
muito sexy!". Barry pediu um steak Nova York, eu pedi fetuccine Alfredo.
Barry pagou com o cartão de crédito do pai e me pediu para calcular a
gorjeta. Ele disse: "Eu me atrapalho com percentagens." Uma graça, ele.
Depois do jantar, me perguntou se podíamos dar uma volta lá fora. Eu disse
que sim. Saímos e ficamos na balaustrada, olhando o campo de golfe. Na
verdade, não dava para ver coisa nenhuma, só a escuridão. Barry colocou
seu braço em volta dos meus ombros e disse: "Vou beijar você." E beijou.
Sei que é um clichê, mas meus joelhos bambearam, juro. E adivinhe só?
Estamos juntos até hoje.
Quinn Catherine, 15,
Milwaukee, Wisconsin
DISCOS DO A-HA E JOGADORES DE BEISEBOL
Demorou demais! Já estava indo à casa do Bill Janks fazia uma semana,
pelo menos. Ficávamos sentados no quarto dele, escutando discos do A-Ha.
Sentávamos na cama beliche do quarto dele. Conversávamos sobre o
divórcio dos pais dele, que ele não conseguia acreditar que estava
acontecendo. Ele gostava dos Brewers, então a gente conversava sobre seus
jogadores favoritos, Rollie Fingers e Paul Molitor. Finalmente, não
agüentei mais, simplesmente fui pra cima dele e o beijei. Ele não pareceu
muito surpreso. Então, sentei no colo dele. Billy Janks beijava com os
dentes. Ele só abria um pouquinho a boca e apertava os dentes dele contra
os meus lábios. O que você acha disso? Talvez ele fosse gay. Estou falando
sério!
Astrid Thornton, 15,
Milwaukee, Wisconsin
NUNCA FUI BEIJADA
Tenho quinze anos e nunca fui beijada. Já tive algumas chances, mas nunca
achei que fosse a hora certa. O bom nisso é que fico sonhando que meu
primeiro beijo vai ser maravilhoso. Quero que seja perfeito. Quero que seja
sincero, verdadeiro. Quero que aconteça naturalmente. Quero ser beijada
pela primeira vez por um cara que goste de mim de verdade, que esteja me
beijando porque gosta de mim. Quero que seja um beijo que vou lembrar
quando já tiver cem anos de idade. Quero fogos de artifício. Quero
romantismo. Quero flores e estrelas no céu. Você me entende?
Taliferro Moss, 15,
Milwaukee, Wisconsin
QUERIDA, ESCUTE
Vou me lembrar de todos os meus beijos quando tiver cem anos de idade.
Todos os meus beijos são primeiros beijos. Todos, sem exceção. É assim
comigo.
Astrid Thornton, 15,
Milwaukee, Wisconsin
BOM COM AS MÃOS
Fiquei de olho naquele skatista gostosinho na festa a noite toda. Ele tinha
um tabuleiro quadriculado desenhado no corte de cabelo, atrás da cabeça, e
olhos verdes. Fiquei junto do barrilzinho de cerveja olhando para ele. Ele
ficou olhando para mim do outro lado da sala. E ficou tudo assim por um
tempo. Por alguma razão, terminamos na copa, atrás da cozinha. Ele
exagerava um pouco com o tira-e-põe da língua, mas era bom com as mãos.
Quero dizer, acariciou meu rosto enquanto a gente estava se beijando.
Depois, o meu pescoço. Gostei disso.
Juli Sung, 16,
Milwaukee, Wisconsin
AMANTE SONHADO
Primeiro, a respiração dele em seu pescoço. Seus cabelos, aquele
canto escondido atrás de sua orelha. Espalha-se por toda a sua pele como
uma onda, simplesmente a proximidade dele, a existência dele, soltando a
respiração em seu pescoço. É uma coisa que cresce, sacode por dentro, esse
desejo fluindo em seu rosto. O corpo dele, tão perto, zumbindo, vibrando,
vivo. Ele encontra os seus lábios, roça os seus lábios com os dele. Macios
como neve. Você começa a piscar com força, lutando para fechar os olhos.
A boca dele é firme, a pele dele cheira a limão. Ele engole a sua boca com
a dele, depressa, puxando você para dentro dele, mais e mais, como se
fosse uma dança, como num abraço. A língua dele atiça a sua, descobre os
pontos mais delicados da sua boca. Ele puxa você, sorve você, mais e mais
para dentro da boca do seu desejo. E então, é simplesmente assim: o mundo
inteiro se abrindo, escuro como uma caverna, negro como piche, e
igualmente misterioso. Ache o caminho, encontre uma saída, desafio você a
fazer isso.
Deb Scott, localização desconhecida
NÃO PARE ATÉ CONSEGUIR TUDO DE QUE PRECISA
A gente se encontrou num cinema por acaso, uma sessão da meia-noite de
Acossado. Depois do filme, todo mundo foi para o Ma Fischer para um café
e queijos quentes. Tem uma pista de boliche por baixo do Ma Fischer, dava
para escutar os pinos sendo derrubados. Devin perguntou: "Quer ver meus
impressionantes arremessos no boliche?" Quando descemos, a pista já tinha
fechado. Então, Devin arrumou nove garrafas de cerveja no estacionamento
e a gente começou a jogar nelas uma bola de softbol que ele tinha no carro.
Astrid ficou o tempo todo flertando com ele, agitando os cabelos e
chamando Devin de Caubói. Mas o mais estranho era que, cada vez que eu
jogava a bola, derrubava todas as garrafas. O pessoal estava fazendo a
maior festa, pulando em torno. Na última vez que derrubei todas as
garrafas, eu me virei e ele estava ali, sorrindo, tão perto que eu perdi a
respiração, com aquela pele bronzeada dele e os dentes brancos. Nossos
lábios se tocaram e foi como despencar pelo céu. Fomos, agarrados,
cruzando a escuridão, até encontrar um canto atrás dos carros estacionados.
Não conseguíamos parar de nos beijar. E até agora não conseguimos, de tão
bom que é. Parar como?
Thisbe Newton, 15,
Milwaukee, Wisconsin
CARROS
evin participava de corridas de carros nas noites de sexta-feira. Na
maioria da vezes, era com carros já velhos, um Chevy Nova
envenenado ou o Impala de seu padrasto. Ele tragou um Lucky
Strike raro e perguntou:
— V-você quer vir?
O Valentine's Day fora há uma semana e nós íamos com as janelas
abaixadas apesar do frio, Astrid, Juli e eu, nossos cabelos compridos sendo
soprados pelo vento, passando o campo de beisebol, a marina e os milharais
congelados. Fomos para o Southside Speedway, onde os carros ficavam
rodando em círculos, uns atrás dos outros, numa pista poeirenta, todos
perseguindo os próprios rabos.
— Pilotos de corrida. É sorte quando cinco deles se juntam e pelo
menos um tem todos os dentes no lugar — disse Astrid enquanto subíamos
as arquibancadas indo para a fileira mais alta.
— Quer levar mais na esportiva? Que tal pelo menos tentar?
Abrimos as garrafas de cerveja que havíamos trazido com a beirada
do isqueiro de Astrid, Juli botou os pés em cima da caixa térmica e apontou
o nariz para a placa acima de nossas cabeças. Lá estava escrito TOMMY
FIN e tinha um retrato desenhado do piloto que morrera na Southside
Speedway no ano anterior, num acidente horroroso. No retrato, Tommy Fin
tinha os cabelos ondulados.
— Olha ele lá.
Devin havia pintado seu Chevy Nova de púrpura com uma lista
grossa e prateada, como nos carros de corrida, do capo ao pára-choque. O
número de Devin era 52. No interior do carro, ele era apenas um vulto
usando um capacete. No pará-choque traseiro, estava escrito em estêncil,
em cor prateada: NÃO EMPURRE.
— O-o-olhe, é o Don Ju-Juan de Docinho — debochou Astrid.
— Muito engraçada — disse eu. — Sua ciumenta. Astrid se encolheu
como se eu tivesse lhe dado um tapa.
— Cuidado comigo, estou avisando — disse ela, bufando. O rugido
dos carros acelerando cortou a noite. Uma bandeira desceu e os carros se
enfileiraram na pista poeirenta como um enxame de insetos atacando.
Camaros, Monte Carlos e todos aqueles carros dos quais a gente não
D
conhecia os nomes. Pneus gastando borracha e fagulhas sendo projetadas.
As estrelas se silenciaram no céu que escurecia.
— Meu pai me fez responder uns questionários para saber se estou
deprimida ou hipoglicêmica, afinal de contas — disse Juli, arrancando com
os dentes o esmalte prateado das unhas. Ela balançou a garrafa de cerveja.
— Quer saber a primeira pergunta?: "Você se sente entediada?" Dá para
agüentar? Quem é que não se sente entediado?
— Estou tão entediada! — disse Astrid. O vento agitava suas tranças
longas e louras, jogando-as para trás sobre os ombros.
Na pista, um Mustang amarelo colidiu com um carro negro velho e
todo amassado. O Mustang foi projetado no ar, ficou fora do chão por um
segundo inteiro, depois aterrissou, as quatro rodas e muitas fagulhas se
soltando, batendo em cheio no chão. A platéia começou a atirar coisas:
pipocas, bonés de beisebol e latinhas de cerveja.
Depois da corrida, descemos até o círculo dos vencedores, onde os
pilotos estavam de pé, suados, as famílias amontoando-se em torno deles.
Devin tirou o capacete e seus cabelos crespos cor de camurça se agitaram.
— Como é que você ainda não morreu? — perguntou Astrid.
— S-Sorte, eu acho — gaguejou ele sorrindo.
— Bem, estamos indo — disse Astrid.
A noite esvaziou-se como um balão de gás. Devin me deu uma boa
olhada, eu feito uma boba, meus joelhos esfolados, a cerveja escorrendo
pelas minhas meias.
— P-pode deixar que eu 1-levo ela em casa — disse ele, chutando a
poeira no chão.
E assim, sem mais nem menos, a noite voltou a ser grande e repleta
de possibilidades.
Devin entrelaçou os dedos nos meus e caminhamos com a grama na
altura dos joelhos pelo campo úmido atrás dl pista. Astrid e Juli já tinham
ido embora de carro com as janelas abaixadas, os cabelos longos voando ao
vento.
Eu me senti fina como grama e em júbilo, livre de Astrid e de Juli.
Quem saberia o que a noite poderia me trazer, eu estando sozinha?
O campo se estendia azul-escuro e gelado diante de nós, ainda
perfumado de ervas mais resistentes desabrochando. Devin apertou minha
mão e disse:
— M-merda! Viu o Mustang voando? Pensei que ia acabar comigo.
Nós nos deitamos na grama molhada. Devin beijou minhas pálpebras
e sussurrou:
— Minha querida... Suas amigas, como é que chamam você? — E
ele tocou meus lábios delicadamente com a ponta dos dedos.
Fechei meus olhos com força e disse:
— Por favor, não diga.
Ele cheirava a gasolina e óleo, como se fosse uma fagulha azul numa
noite quente. Ele tirou o macacão como se fosse uma pele de serpente. Seu
peito magro era bronzeado e não tinha pêlos, era quente ao toque. Ele tinha
gosto de estrada, de algo pegando fogo, movendo-se a toda velocidade.
— Não me ponha em encrenca! — sussurrei, acariciando a linha
esfolada e vermelha que marcava onde o capacete apoiava-se na sua testa.
— T-tudo bem, meu doce. C-como você quiser.
DEUS ME GARANTE
s vezes não dá para evitar, a gente fica querendo ser qualquer coisa,
menos as Putinhas da Colina.
— Colégio público. Milwaukee Leste. Milwaukee Oeste. Não
quero saber onde — dizíamos. — Daria qualquer coisa para estudar em
qualquer lugar, menos aqui.
Invejávamos as garotas com jeans puídos, aquelas que usavam as
franjas soltas para trás em onduladas camadas, que carregavam os livros
junto ao peito e andavam por Milawukee Oeste, seis quarteirões abaixo da
colina do Sagrado Coração.
— Olhe só para elas — disse Astrid quando contornávamos o prédio
quadrado do colégio público, com formato de besouro. — Piranhas idiotas!
Era assim que invejávamos outras garotas. Era um hábito que
pegamos de ler revistas para adolescentes, nas quais tudo o que mais se
queria era ser qualquer outra pessoa que não você mesma e do jeito como
você era.
Mesmo sem confessar, Astrid desejava ser uma metade das gêmeas
Friar. Miranda e Melinda Friar não eram apenas gêmeas idênticas de
Cingapura, eram também crianças prodígio reconhecidas e confirmadas,
respectivamente, no violino e no violoncelo. Tocavam na Sinfônica de
Milwaukee, viajavam para Berlim para comparecer à reunião da sociedade
dos instrumentos de cordas e até mesmo faziam apresentações ao vivo na
emissora de rádio local, onde eram chamadas de As Irmãs das Cordas.
Astrid traía sua inveja com provocações:
— Cuidado, garotas, lá vão as Irmãs das Cordas para a aula!
E, na lanchonete:
— Ei, as Irmãs das Cordas estão comendo queijo. No encontro da
manhã:
— Siiim! Olhem só as Irmãs das Cordas tocando suas cordas. O que
a gente ia fazer sem as Irmãs das Cordas?
As Irmãs das Cordas tinham cabelos negros que caíam em camadas
sedosas quando caminhavam. Límpidos braceletes de jade chacoalhavam
em seus pulsos. As Irmãs das Cordas vestiam sempre os mais finos suéteres
de cashmere e carregavam seus livros em bolsas italianas importadas.
Astrid descobriu onde as Irmãs das Cordas haviam comprado suas meias de
À
tricô que iam até a altura das coxas e comprou três pares para ela, em
vermelho, azul e preto.
Nós observávamos todas elas, E registrávamos tudo em nossas
cabeças.
— Gosto dos cabelos dela. Aquelas unhas super-negras. O pingente
de cabeça de corvo que ela usa numa correntinha no pescoço.
Ficávamos assim à toa, apenas observando-as através da fumaça do
cigarro de Astrid: Jessica Carlisle, a cantora e compositora, que trazia sua
guitarra para o Coffee Trader as quartas-feiras; Helen Ross, a garota do
penúltimo ano de Tomás de Aquino, que posava como modelo para a
Seventeen nas suas horas de folga; a garota lésbica pra lá de punk que
trabalhava atendendo na Organic Express e flexionava os músculos quando
a gente pedia alguma coisa; o retrato de Joan Jett que Astrid mantinha
pregado em seu armário,
Claro que queríamos ser Deb Scott, a pior das garotas más, mesmo
depois de alguém ter grafitado em todas as paredes DEB SCOTT ESTÁ
MORTA. DEB SCOTT ESTÁ MORTA.
Até mesmo Becky Tribble, do primeiro ano do colégio, a garota com
tumor no cérebro — Juli queria ser ela. Por um minuto somente.
— Bem — admitiu Juli. — É só por causa daquela atenção toda que
ela recebe, E as flores. Para saber como é ser tão amada assim. Em vida.
— Meu Deus! Que patético!
Mas Juli só fez ficar ali parada, meio encolhida no corredor, olhando
para suas botas e oscilando suavemente.
— Juli? Olá! — Astrid estalou os dedos com unhas negras brilhantes.
Os olhos de Juli se arregalaram, surpresos, aquele olhar esbugalhado
e oval dos famintos:
— Hem? Certo, tudo bem — disse ela. — Não... O que foi?
Isso foi antes que nos tornássemos mulheres, foi assim que nos
tornamos mulheres. Comparando, avaliando, confrontando o que a gente
poderia e não poderia se tornar.
— Deus, me conceda a serenidade de aceitar as coisas que não posso
mudar — dizia a Irmã St. Joe. — Coragem para mudar as coisas que posso.
E sabedoria para distinguir umas das outras.
— Manda ver! — disse Astrid, seu punho colidindo com o da Irmã
St. Joe, num cumprimento que deixou a jovem freira ruborizada.
A Irmã St. Joe tinha um outro ditado. Ela sussurrava: Tenha cuidado
com aquilo que deseja porque pode se tornar realidade.
O que, é claro, não entendíamos. Até, como na maioria dos casos, ser
tarde demais.
JULI FAZ POR MERECER SUA REPUTAÇÃO
casa dos Sung sempre cheirou a arroz cozido e diferentes carnes
estranhas.
— Pé de porco — brincou Astrid, quando entrávamos pela
porta dos fundos da mansão de estuque de Juli, na Zona Leste. —
Testículos de boi — sussurrou ela, cutucando minha bunda.
O pai de Juli, o dr. Sung, fora apontado como um dos dez melhores
psicanalistas pela Milwaukee Magazine. Os Sung estavam realmente
nadando em dinheiro. E infelizes em cima daquela grana; todos eles.
— Não se esqueça de deixar seus sapatos na porta — disse Juli. Ela
esfregou os olhos inchados e vermelhos com as costas da mão esquerda. —
Vamos lá, não estou brincando. Minha mãe está em pé de guerra outra vez.
Os Sung eram notórios bagunceiros, os quatro: Juli, seus pais e o
irmão mais velho obeso que vivia na casa, só se aventurando na rua depois
das cinco da tarde para freqüentar as aulas na University of Wisconsin-
Milwaukee. Eles deixavam a casa de pernas para o ar, mesmo com a
empregada vindo duas vezes por semana. Por isso, passamos por cima de
ossos semi-mastigados por cachorros apenas com nossas meias nos pés,
pisamos em tapetes embolados, folhas de jornal espalhadas sobre o cepo de
açougueiro e levantamos nossas saias para sentar sobre o balcão.
— Meus pais estão se separando — disse Juli, enchendo um copo de
água da torneira. — Eles dizem que sou eu quem vou dizer com qual dos
dois quero viver. Sou eu que vou ter de decidir.
— Mas que maravilha! Juro! — disse Astrid irritada, batendo nos
armários com o peitos dos pés. — Quem foi que inventou essa? Seu pai?
Mas ele não é um médico de cabeça? Devia saber que isso não se faz.
— Não sei o que vou fazer — gemeu Juli. — O que devo fazer?
E o que íamos dizer a ela? Sua mãe era uma coisinha frágil e nervosa
que vestia estolas Fendi de seda e usava perfume Bill Blass, bebia NyQuil
escondido no gargalo e deixava a casa apenas nas segundas-feiras para ir ao
seu grupo de mab-jongg com outras esposas asiáticas entediadas.
— Minha mãe se preocupa mais em marcar chows no mab-jongg do
que comigo — sussurrou Juli.
E o que poderíamos dizer? Era verdade.
Nesse meio tempo, o pai ficava dando a ela esses testes de múltipla
A
escolha para decidir se ela estava anêmica, deprimida ou simplesmente com
TPM. Mesmo quando o resultado de Juli indicava depressão ou Transtorno
de Déficit de Atenção, tudo o que ele fazia era entregar a ela um folheto de
sua clínica, descrevendo a doença: "Você se lente letárgica? Irritada?
Constantemente infeliz? Talvez sofra de depressão." Ele nem ao menos
perguntava se ela estava bem.
Da janela da cozinha dos Sung, fiquei olhando para o jardim inglês
bem tratado, coberto por uma camada de folhas de inverno sujas e
amarronzadas. Fiquei pensando em Devin, no jeito como os lábios dele se
grudaram nos meus, no jeito como ele deu uns tapinhas no assento da frente
do Chevy Nova de seu padrasto, franzindo a testa, e disse:
— Por que você não chega mais perto?
— Alô, cápsula espacial! — exclamou Juli, estalando os dedos. — O
que deu em você, merda?
Como é que eu podia explicar? O jeito como ficava pensando nele o
tempo todo, mesmo quando eu respirava.
— Estou meio assustada. — Juli deitou o rosto no balcão. Ela era tão
pequena, pesava somente 39 quilos e mal passava de um metro e meio de
altura, com aquelas pintinhas castanhas salpicando seu nariz. Ela apoiou o
queixo no cepo de açougueiro coberto de coisas e disse:
— Pode me dar uns desses amendoins temperados chineses? Não
consigo me decidir. Preciso comer alguma coisa.
Juli não conseguiu decidir e, em vez disso, fez mechas brancas em
seus cabelos negros e foi para uma festa.
Juli nunca nos contou, mas escutamos a história. NESsa festa, ela
chupou onze caras no banheiro. Havia uma fila, descendo pela escada. Os
garotos bradavam o nome dela entre um gole e outro de suas cervejas:
— Ju! Li! Ju! Li!
Um garoto do Fenwick estava na fila, na festa. Ele nos contou tudo,
numa noite dessas durante o jantar. Disse que, quando chegou a vez dele,
Juli estava de joelhos no chão de ladrilhos, com as mãos entre os joelhos.
— Perguntei a ela, sabem, "Você está bem?... Você não tem de fazer
isso... Ei! Está me escutando?"
Ele contou que Juli abaixou o zíper dele e o pegou na mão. Ele falou,
meio com nojo:
— Gozei no chão todo.
— E aí? — disse Juli, depois que o garoto de Fenwick o colocou
para dentro da calça e fechou o zíper. Ela passou os dedos nas pontas de
cabelos de seu novo tingimento. — Vai me convidar para o baile de final
de ano ou não?
— Ah; tá! — falei — O garoto do Fenwick soltou uma risada. —
Com certeza, você e eu, claro!
Na última semana de fevereiro, Juli ajudou a mãe a escolher tapetes
orientais caros para o novo apartamento de cobertura na chique Third
Ward. A sra. Sung levou suas caixas de estolas Fendi, seu perfume forte e
enjoativo, seu NyQuil e seu Robitussin, seus estojos de peças de mah-jongg
em marfim, cedro, ônix, e se mudou uma semana depois. Juli preferiu ficar
com o pai.
— Garotas bonitas cavam sepulturas — disse Juli, revirando os olhos
para trás, deitada no felpudo tapete branco do seu quarto.
— Mas que diabo isso quer dizer? — perguntou Astrid,
espreguiçando-se, ajeitando os cabelos louros para trás das orelhas e
acendendo um cigarro.
— Não sei. —Juli sorriu e fechou os olhos. — É de alguma música,
acho.
A casa parecia deserta sem sua mãe. Eu sentia isso. As janelas
ficavam batendo com o vento. O pai dela ficava sentado no escritório, às
escuras, iluminado apenas pelo brilho azulado de um Macintosh XL,
jogando Donkey Kong com o som desligado.
— Até que divórcio não é tão ruim — disse Juli. — Juro! Tô falando
sério!
BEM COMO ELA DISSE QUE IA SER
inda cedo, numa noite de março, quando a mãe de Devin saiu para
trabalhar, ele me deu a chave do apartamento deles. A mãe dele
era comissária de bordo da Delta. Usava vestidos azuis engomados
parecendo de cadetes militares. Todas as malas dela tinham rodinhas.
Devin disse:
— Amanhã de manhã. Antes das a-aulas. Se-se você quiser.
Então, colocou a chave amarrada numa cordinha no centro da palma
da minha mão. Nunca havia conhecido um garoto que morasse num
apartamento.
Resolvi matar a chamada matinal e fui me encontrar com Devin
quando o céu ainda estava azul-cinzento com o amanhecer.
O vão das escadas cheirava a chocolate Hershey's. Havia invólucros
de celofane de queijo e migalhas de pão sobre o balcão da cozinha. Uma
faca saía da jarra de manteiga de amendoim, caixas de papelão de pizza
estavam espalhadas pelo chão.
No rádio, a voz de Paul McCartney cantava "Here comes the sun".
Desci o corredor comprido e estreito até o quarto de Devin na ponta
dos pés, como se estivesse invadindo a casa. Fiquei parada na porta do
quarto dele, alternando o peso de um pé para o outro, como se estivesse me
decidindo se entrava ou não. Tudo ali tinha o cheiro dele: loção de
bronzear, sabonete, chiclete de menta. Atirei minha mochila do colégio
sobre a cama.
Devin rolou, deitando de costas, seus cabelos castanhos no rosto,
abriu um pouquinho de um olho sonolento, sorrindo.
— Oi! — disse, ainda grogue, pigarreando. — Você está aí de
verdade? Estava mesmo pensando em você. Ou s-sonhando. Algo assim.
Fiquei ali parada, tentando adivinhar o que ele estava pensando,
rindo feito uma idiota.
— Você ainda está dormindo?
— Pode ser. Você está tão linda e eu... eu estou nu. — Ele repuxou
um lóbulo de orelha, nervoso, e fechou os olhos de novo. — Bem, você
quer que eu i-implore? — perguntou, erguendo uma ponta do lençol com
uma das mãos e sorrindo. — P-porque posso implorar, se-se-se você quiser.
Manchas de pêlos louro-escuros circundavam as aréolas em seu
A
peito, mas só ali, naquela sua pele lisa e sem pêlos, bronzeada do sol da
Flórida.
Deslizei para baixo das cobertas, me juntando a ele, ainda com a saia
do uniforme e a camisa oxford rasgada.
— Oi — sussurrei, segura sob os lençóis. E de novo:
— Oi!
Nunca foi igual, nunca foi como era com Devin. Eu não tinha a
menor idéia. Aquele garoto sabia coisas, as mãos dele, a boca, seu corpo.
Era como uma linguagem secreta, lançando feitiços, pelo jeito como
conseguia conjurar meu corpo.
— Você gosta disso? — perguntava ele. — E disso? Eu sempre
perdia o fôlego com ele, fechando meus olhos e abrindo-os, me
perguntando:
— Onde estou?
Suas mãos mergulharam entre meus joelhos como um peixe,
aquecendo a pele. Eu tirei a saia e ergui as mãos acima da cabeça. Ele
desabotoou minha camisa e a tirou por cima dos ombros.
— Isso — disse ele. — Agora, sim.
A pele dele transmitiu um choque para a minha. Ele pressionou o
peito contra o meu de leve. Eu me senti como uma boneca e fiquei
assustada. Roçando meus lábios em seu pescoço, sussurrei:
— Você vai se atrasar para o colégio.
Ele soletrou as letras do seu nome por sobre o meu rosto, como se
fosse um beijo, como um rápido movimento da língua, por sobre meus
olhos, meu nariz, minha garganta. D-E-V-I-N, Devin de novo e de novo, D-
E-V-I-N, Devin, mapeando meu corpo.
— Venha para cá. Chegue... mais perto — disse Devin, segurando o
cobertor de lã fina entre o polegar e o indicador como se fosse uma tenda.
Rolei meu corpo para junto do dele. — P-por que não consigo ficar perto o
bastante de você?
Era como se eu estivesse sonhando, suas mãos estavam por toda
parte, no meu pescoço, sobre o meu peito, roçando na minha barriga,
minhas pernas, embaraçando meus cabelos. Sua língua suave, como uma
fruta.
Ele era como um fogo, um surto de calor atravessando meu corpo.
— Espere. — Eu recuei, ofegante. — Pare um pouco. — Meu
coração estava disparado. Devin pegou minha mão c passou meus dedos
por suas aréolas sombreadas de pêlos enquanto eu tentava falar.
— Escute — disse eu, — Espere, Não consigo, entende? Eu nunca...
— Escondi meu rosto em seu peito, pressionando meu nariz contra a
concha do seu peito e comecei a falar ali, protegida. — Orgasmos. — Eu
detestava a palavra, detestava dizê-la. — Eu simplesmente não... Não
consigo. Entende?
Eu queria morrer de tanta vergonha. Como uma garota com defeito,
mal-fabricada. Meu rosto doía. Meu segredinho sujo, todo aquele
fingimento. E o que Astrid diria?
— T-tudo bem... certo... — disse ele, suas mãos descrevendo órbitas
em torno do meu corpo novamente. — Tudo bem. — Ele deslizou para
debaixo dos lençóis e pôs a língua em meu umbigo. — O que você achava
que eu ia f-fazer? Chutar você da cama?
Eu ri, minha barriga estremecendo. O teto rebaixado no quarto de
Devin estava coberto de pôsteres, como se fosse o consultório de um
dentista, só que eram de bandas de rock e de filmes antigos: Jim Morrison,
peito despido, olhos de drogado. Bem acima da minha cabeça havia uma
orquídea. PHALAENOPSIS, estava escrito em letra cursiva abaixo dela.
— E-espere um pouco — disse Devin. Ele olhou para mim, aquele
emaranhado de cabelos castanhos como os de uma garota, aqueles olhos
cor de azeitona com manchas amarelas. Só olhando para mim. Perdi o
fôlego. — Vamos tentar uma coisa diferente — disse ele.
E estávamos nos movendo. A pele dele em minha boca, mordendo
lábios, mordiscando, fui percorrendo seu rosto, seu pescoço, suas orelhas.
Ele me pôs deitada de costas, segurou-me pelos quadris com os polegares.
Era uma coisa nova para mim, me entregar, fechar meus olhos, apenas
deixando as coisas acontecerem, sem ter palavras para isso, sem poder
haver palavras para isso. Ele era firme com as mãos, apalpando-me,
virando-me. E generosamente luxurioso. Ficamos assim por um longo
tempo. Tudo era capturado, carregado e afastado na boca do desejo.
Quando eu já estava exausta, exaurida, ele ficou sobre mim, colocou
os joelhos em ambos os lados dos meus quadris, me ergueu, muito
delicadamente com a ponta dos dedos e entrou em mim, como se
penetrasse seu corpo suavemente na água. Ele me colocou de bruços, de
lado. Me tocou. Soltou um gemido e algo se moveu em sua garganta, um
ruído baixo, algo como um clique. A orquídea se abriu acima de mim, as
pétalas inchadas como o sexo, belas E rosadas. Começou nas minhas
pernas, uma ardência, uma onda devastadora. Achei que ia morrer. Tomou
conta de mim inteira, esse prazer, e explodiu por todo o meu corpo.
O barulho da cidade chegou depois, lá debaixo, carros buzinando,
pessoas chamando umas às outras, depois. Da lojinha que vendia falafel, na
esquina, uma música árabe chegava carregada pelo ar como se fossem
cebolas fritas, um lindo som, vozes gemendo e campainhas tocando. A
gente podia se perder em meio àquilo tudo, e muito fácil.
PUNIÇÃO
NOME: Thisbe Newton
DATA: 5 de março de 1988
INFRAÇÃO: Faltou às aulas em 4 de março de 1988. Apresente-se ao
Padre Flynn para o castigo na biblioteca na segunda-feira às 15h30 em
ponto.
PONTOS PERDIDOS: 4 e uma semana de castigo.
NERDS
Irmã St. Joe explicou que, em alguns grupos sociais, como nos
dos lobos, apenas a fêmea alfa tem permissão para acasalar e
reproduzir-se.
— Se as demais fêmeas, a zeta, a ômega, engravidam... sayonara. E
o fim! São expulsas da matilha — disse a Irmã St. Joe.
— O que acontece com elas? — perguntou Jessica Seymour, uma
garota inteligente com óculos Buddy Holly.
— Bem, ficam lá fora, sujeitas às intempéries — respondeu a Irmã
St. Joe, enfiando os dedos por dentro do véu preto — e na maioria dos
casos, morrem.
— Mas isso é muito injusto — gemeu Jessica.
— Minha nossa! A Jessica é tão nerd! — silvou Astrid, gargalhando.
Nerds usavam suas saias de uniforme compridas, abaixo dos joelhos.
Nerds preferiam molduras claras em seus óculos e apreciavam meias de
cores como verde-espuma-do-mar e azul-celeste. Nerds vestiam tops
frouxos, de algodão cinza e que ficavam mal no corpo. Nerds discutiam
sobre Jornada nas Estrelas como se os personagens fossem pessoas de
verdade. Nerds entravam para o Clube de Alemão, carregavam pacotinhos
de sucrilhos crocantes em suas mochilas e cruzavam os corredores em
hordas irregulares, como cães vira-latas.
— Olhem a matilha de lobos — brincava Astrid, fazendo um V
vulcano com as mãos e chamando, bem debochada, "Nanuuu-nanuuu",
quando as Nerds passavam por nós no corredor, sempre em bandos de dez
ou doze.
Aquela era a espécie inteligente entre as Nerds. Mas havia outras.
Algumas Nerds eram até mesmo lindas animadoras de torcida. Todas
as professoras eram Nerds. Nossas mães, com toda certeza, eram Nerds.
Não queríamos nem mesmo pensar se as freiras eram ou não Nerds. Nas
nossas cabeças, freiras não contavam. Eram mulheres nascidas sem sexo.
Aquela senhora que cuidava do almoço, a sra. Noelle, tem de ter sido uma
Nerd. Toda garota hiponga, fã do Grateful Dead, com roupas de cânhamo,
era uma Nerd. Suspeitávamos, mas não tínhamos certeza, de que Quinn
Catherine e sua melhor amiga, Taliferro Moss, eram Nerds.
— Detesto Nerds — proclamou Astrid.
A
Astrid foi a primeira a raspar o púbis. Gostava de mantê-lo
totalmente sem pêlos.
— Os garotos adoram! — disse ela.
Então, começamos a fazer isso também. Primeiro, com cremes
desajeitados e fedorentos desses que se compram em farmácia.
Colocávamos aquela coisa melada, esperávamos de cinco a oito minutos,
sentadas peladas na privada, lendo alguma revista de moda. Então,
raspávamos com Uma lâmina de plástico cor-de-rosa, que a empresa
chamava de Daisy. Às vezes, dava irritação na pele. E era tudo no Que se
conseguia pensar o dia inteiro, naquele pedaço ardendo, irritado. Mesmo
assim, a gente se raspava religiosamente, como se fossem as orações da
manhã. E víamos nosso sexo revelar-se, sorrindo e despido, como se fosse
o de um garoto.
No início, os garotos ficaram surpresos.
— Meu Deus! — Bailey, uma gracinha de jogador de futebol do
Fenwick, disparou entre os dentes, uma vez, quando eu tirei meus jeans. —
Chegue aqui, minha irmã. deixa eu dar uma boa olhada nisso.
Às vezes, eu me sentia como uma pérola polida, uma pedra lisa.
Certa ocasião, vi minha imagem refletida no espelho de um banheiro e vi
uma criança, uma mulher velha. A face da morte, meu sexo sem pêlos e
sem poder. Senti um arrepio e me meti no chuveiro.
— Olhe só aquela nerd. Que nojo! — disse Astrid, na Metrópolis,
observando um grupo de jogadores de futebol do Fenwick cercar uma
garota loura, de jeito inocente, do Tomás de Aquino. Ela usava um vestido
azul e sapatos de duas cores, — Totalmente por fora!
Tomava um bocado de tempo — todo o corte, cera, raspagem, pinças
para arrancar pêlos. Pequenos tufos de pêlos ruivos nos cantos da banheira.
Não pense que não era cansativo.
— Por que você faz isso? — perguntou Devin numa tarde
preguiçosa, ambos metidos debaixo dos lençóis, despidos, suas mãos
desenhando linhas para cima e para baixo do meu corpo.
— Porque dizem que melhora o sexo, acho eu. Quero dizer, para a
garota. — Fiquei vermelha, e meus olhos se enviesaram de vergonha. —
Pelo menos foi o que Astrid disse.
Devin lambeu minha clavícula.
— Aposto que você ia ficar mais bonita ao natural. Quero dizer,
talvez, se algum dia você quiser...
Primeiro, um dia. Depois, dois dias, depois uma semana, esqueci
minha lâmina, Tampei o recipiente do creme e o deixei na prateleira
embaixo da pia. Devagar, um pouco ali outro ali, meus pêlos ruivos
começaram a crescer.
— Olhe só! O Dragão Vermelho! — disse Devin. Os finos
filamentos que eram meus pêlos se ergueram, eretos, ansiando por serem
chamados de qualquer outra coisa que não Patinha da Colina.
Mas eu tinha Astrid, eu tinha Juli. Tinha duas saias de uniforme
penduradas em meu armário.
Na aula de ginástica, quando fomos para os chuveiros, Astrid me deu
uma olhada cortante e cuspiu as palavras:
— Olhe só a nossa cenourinha. Você também? Nerd de merda!
Quando cheguei em casa, removi meus pêlos com tesouras de
costura, afiadas e pequenas, e os guardei num envelope azul pálido.
Coloquei o envelope na gaveta da minha penteadeira e toquei os cantos
denteados do papel enquanto fazia minha maquiagem.
Devin levantou o lençol certa tarde e disse:
— Ah, corte de verão de novo, hem?
— Nerd peluda à esquerda, já! — Cutuquei Astrid com o cotovelo
nas costelas, para chamar sua atenção, depois do castigo, no White Hen.
Astrid olhou por cima do meu ombro para a garota atrás do balcão,
depois olhou para mim, cheia de cautela:
— Só uma da tribo para reconhecer outra semelhante, não é?
— O que você acha? — disse eu, sorrateiramente enfiando um
pacote de balas no bolso.
O rosto de Astrid reluziu. Ela surrupiou um pacotinho de drops e
uma barrinha de chocolate.
— E desses que você gosta, certo? — sussurrou ela, e colocou ambos
dentro de sua sacola de camurça azul.
Saímos correndo pelas portas de vidro, rindo muito, e só paramos no
carro de Juli,
— Sou perfeita para uma vida de crimes — disse Astrid sorrindo, já
dentro do carro de Juli e passando entre nós o produto do roubo. — Porra,
odeio Nerds — silvou ela. — Aquela Nerd era tão idiota que nem olhou
para nós. Não foi, Docinho?
Como uma mãe com seus filhotes, assim era Astrid conosco, e os
dias iam ficando cada vez mais frios.
DOROTHEA DIX
ão devíamos ter ficado surpresas quando Juli baixou no
manicômio, o Dorothea Dix, mas ficamos. Só podíamos visitá-la
nas tardes de quarta-feira, das quatro às seis. Ou nos domingos, o
dia inteiro.
— Oi — disse Juli. Estava sentada num sofá verde de vinil. Fazia
apenas uma semana que ela havia descorado as pontas dos cabelos para
ficarem brancas e fez o papel de Rainha do Boquete na festa do Fenwick.
Estava usando uma franja cortada reta na altura dos olhos e nenhuma
maquiagem, arrastando-se numas calças de moletom cinzentas já velhas,
rasgadas na bainha. Por baixo do suéter verde puído, os braços dela
estavam enfaixados em gaze, dos pulsos até os cotovelos.
Garotos em jaquetas jeans, numa postura preguiçosa, estavam junto à
janela fumando cigarros. Um maluquete magrelo dava chutes numa mesa
de totó com a biqueira reforçada de suas botas, resmungando:
— Porra!
Tinha um garoto skatista louro com correntes penduradas no bolso,
que viu Astrid e disse:
— Olá, Betty!
— Este lugar é melhor que a Metrópolis! — falou Astrid, com um
aceno de cabeça.
— Se você não consegue namorado, vá para o Dorothea Dix.
Tentamos nos comportar com indiferença, Astrid e eu, como se a
gente fizesse coisas como estas todos os dias: visitar nossa melhor amiga
num antro de pirados. Mas Astrid se traía, mostrando o quanto estava
nervosa, compulsivamente revirando os dedos e estalando os pulsos. Eu
estava tremendo toda.
— Está vendo aquele drogado ali? —Juli apontou um r.aroto
vestindo bermudas sobre roupas de baixo compridas meio acabadas. — Ele
entrou no meu quarto na noite passada. A coisa dele tem 30 centímetros.
Não, verdade!
— Como você sabe?
— Juli tem uma fita métrica na boca. — Astrid estalou os pulsos.
Todas rimos, todas nós nervosas. Astrid fez saltar os cigarros de sua mãe
do maço com uma pancadinha c ofereceu:
N
— Quer um?
O Dorothea Dix era a melhor clínica psiquiátrica particular de
Milwaukee. A diária custava 850 dólares. Os pacientes tinham capuccinos
no café-da-manha e coquetéis de camarão no almoço.
Ninguém era carregado para o Dorothea Dix dando chutes. Ninguém
ia amarrar você numa cama, por lá. Não havia tratamento de choque, nem
solitária, nem celas acolchoadas. Em vez disso, as enfermeiras distribuíam
Percocet e Valium em pequenos copos de papel e a garotada falava mal de
seus pais reunida em grupos. Todos amavam o Dorothea Dix.
— Me dá um desses aí. — O garoto com as bermudas pulou para
junto de Juli no sofá de vinil. Os pés nus dela tocaram os pêlos finos e
negros da perna dele. Ele agarrou o pacote de celofane de cigarros. A veia
em seu braço era grossa como um dedo, Uma tatuagem logo acima de onde
entrava a agulha dizia: ME ALIMENTE.
Juli passou o dedo nela, na veia estufada e azulada e na tatuagem.
— Gosta disso aí? — perguntou ele. Juli ligou primeiro para Astrid.
— Meu pai vai me matar — disse ela. — Todo esse sangue. No
tapete também.
— Foi estupidez, mesmo — disse Juli quando chegamos na casa
dela. — Eu só quis experimentar uma lâmina afiada. Foi tão fácil. Como
cortar manteiga. — Ela ficou corada.
Juli estava sentada na cama com um rolo de papel higiênico enrolado
em torno dos braços ensangüentados. Senti como se meu cérebro flutuasse,
parada no pesadelo em que havia se tornado o bonito quarto de Juli, com
sangue espalhado por todo o tapete branco felpudo.
Pela primeira vez, Astrid, sempre calma, pareceu abalada. Ficava o
tempo todo passando o seu medalhão da Virgem pela correntinha de prata.
Cambaleante, ela contornou a sangueira e se apoiou na beirada da cama de
Juli.
— Joiazinha, querida... — perguntou ela. —Você está bem?
Juli exibiu um sorriso estranho, retorcido, enquanto catava migalhas
de biscoitos em sua colcha.
— Alguém tem um cigarro? — pediu.
Quando o pai de Juli chegou em casa, naquela noite, viu o tapete
todo sujo de sangue e a maçaroca de papel higiênico nos braços de Juli.
Pegou do bolso um lenço de papel, assoou o nariz e disse:
— Vá para o carro!
Ele a levou direto para o Dorothea Dix,
— Cara, olhem só isso — disse o Drogadão, acendendo um fósforo
riscando-o nos dentes.
— Vocês querem ver? — perguntou Juli, e respondemos claro que
sim.
A gaze desenrolou de seus braços e caiu em dobras, como grandes
fitas ao redor de seus joelhos separados. Talhos profundos, como guelras,
como pequenas bocas, cortavam a pele dos braços de Juli dos pulsos até os
cotovelos, como se querendo respirar.
— O que é isso? — Astrid apontou para a geléia amarela nas
extremidades dos cortes de Juli.
— Ah, é só gordura. E a pele crescendo de novo, sabe?
As enfermeiras no Dorothea Dix calçavam sapatos ortopédicos,
assim como as freiras no Anjos do Sagrado Coração. Quando andavam, não
faziam som algum.
— Você está bem?
— Claro — respondeu ela com seu sorriso estranho e retorcido. —
Acho que eu gosto daqui.
O Drogadão pegou o braço de Juli. Soprou fumaça nos talhos e disse:
— Diz pro papai onde está doendo agora.
MISSISSIPPI THUNDERPUSSY
strid e eu ficávamos zanzando pelas ruas próximas ao Sagrado
Coração, depois das aulas, enquanto esperávamos que Juli
terminasse suas duas semanas no Dorothea Dix, nós duas
entediadas e procurando alguma coisa para fazer. Às vezes, Devin nos
pegava no Impala do pai e nos levava para um café mocha com leite batido
no Coffee Trader, mas Astrid sempre dizia algo como:
— Vocês dois são tão lin-lindinhos! — debochando da gagueira de
Devin, ou então: — Estou tão entediada que podia cortar meus pulsos. Não,
peraí, Juli já fez isso. — Então, dava gargalhadas.
No corredor entre as aulas de Química e Economia Doméstica,
Astrid disse:
— Mississippi Thunderpussy. Vamos lá depois das aulas. For favor.
— Vou me encontrar com Devin às nove — disse eu. — Ele tem
uma corrida.
— Temos tempo — disse Astrid. — É só dizer o nome deles. É
engraçado.
Dissemos:
— Mississippi Thunderpussy — e nos mandamos. Numa garagem
toda manchada de óleo na Zona Sul, o lado mais vagabundo e lixento de
Milwaukee, Ray e Glenn incorporavam o som de suas guitarras como se
fossem roupas que estivessem vestindo, naturalmente. Eles as penduravam
por sobre camisetas brancas encardidas, rasgadas nas golas e nas bainhas.
Jerome amarrado no seu baixo Everlast com detalhes azuis-celeste,
enquanto Tucker se matava numa batida na bateria com a língua de fora.
Durante tudo isso, Grubb corria pelo salão mastigando anfetaminas e
exibindo o branco dos olhos. Quando as guitarras entravam, Grubb
agarrava o microfone e o fio e girava a cabeça, rodopiando-a loucamente
como um laço no ar.
Astrid achava que não havia nenhuma banda melhor do que os
Mississippi Thunderpussy.
— Aqui, Grubb — imitava Astrid, no ônibus, indo para lá. Ela punha
a língua para fora e fingia que ia tirar as calcinhas. A seguir, brandia o
pulso e enfiava: — Quer lamber isto aqui?
Havia garotos de pé em volta, balançando a cabeça, fumando. Uma
A
serpente gigante com diamantes nas costas dormia numa gaiola suja em
cima de um balcão de ferramentas. Os garotos tinham as unhas pintadas de
preto, todos eles com cinturões de tachas prateadas e tênis de cano baixo.
Astrid batia no chão com suas botas Doe Martens acompanhando o
ritmo. Seus olhos seguiam Grubb, sua franja feito uma crista de galo, suas
tranças rabo de rato, o cabeto em corte picado feito cauda de pavão. Jerome
cruzou os olhos comigo, entre dois números, e sorriu, seu lábio superior se
curvando como um ponto de interrogação.
— Não são o máximo? — perguntou Astrid.
— Ah, é — disse eu — Se você acha mesmo... quero dizer... E
como!
Depois do show, Astrid foi em direção a Grubb com a palma da mão
estendida e uma caneta, pedindo:
— Me dá um autógrafo?
— Uma groupie? Legal! — Grubb enxugou o suor das sobrancelhas.
Estava ofegante, o peito largo estremecendo como a batida de um tambor.
— Ei. — Grubb agarrou o braço de Astrid e sentou-se no sofá junto com
ela. — Como você se chama?
Astrid estourou uma bola com seu chiclete e fitou-o com o olhar
arregalado.
— Como você quer que eu me chame?
— Engole isso aqui — disse Grubb, estendendo para ela um punhado
de anfetaminas. Astrid descansou as pernas sobre o colo de Grubb e
mastigou dois tabletes, toda exibida.
Jerome, o baixista, veio para o meu lado e apalpou a bainha da minha
saia. Ele disse:
— Ei, legal!
Grubb pegou a perna de Astrid e lambeu o tornozelo dela até ela
começar a rir. A mãe de alguém enfiou sua cabeça penteada no cabeleireiro
na garagem, dizendo:
— Ray, jantar.
— Vamos, garotas — disse Grubb. — Vamos dar o fora daqui.
Astrid disse:
— Claro. — E eu consultei meu relógio.
Grubb e Jerome abriram espaço para nós na van, empurrando para o
lado os acessórios da bateria, copos de isopor usados e sacos de comida de
lanchonete. Puxei Astrid de lado, dizendo:
— Astrid, são nove horas. Tenho de ir.
— Você não pode me largar agora. Meu coração está disparado por
causa daqueles tabletes. — Astrid soltou uma gargalhada. — Só meia hora.
Por favor.
Astrid entrou atrás da van preta estropiada e eu a segui, puxando a
porta deslizante para fechá-la. Não me pergunte por quê. Porque era assim
que eu era na época. Eu seguia minha melhor amiga. Jerome me estendeu
um pedaço de um comprimido de anfetamina e eu o mastiguei. Grubb saiu
de ré, cantando os pneus de trás, contornando os campos descorados e
despidos, entediado, sem lugar para onde ir. Todo o tempo, eu fiquei me
sentindo irrequieta e com coceiras, como se fosse me coçar até esfolar
minha pele.
— Astrid. — Eu me inclinei sobre o assento do carro. — Agora já
estou muito atrasada. Preciso ir.
Astrid me ignorou e disse:
— Eu tive uma idéia. — Ela se debruçou sobre o banco da frente
para cochichar no ouvido de Grubb.
— Tem certeza? — perguntou ele.
Mas Astrid só fez sorrir:
— Absoluta! Grubb deu uma guinada na van para a esquerda, saindo
da estrada, entrando na valeta e passando para os milharais que margeavam
a estrada.
— Merda — disse Jerome, um segundo antes de a van avançar sobre
as hastes verdes de milho, que iam engolindo as quatro portas, um segundo
antes de as hastes amarronzadas e baixas parecerem desaparecer na nossa
traseira, devorando-nos inteiramente.
— Rápido, Grubb. Mais rápido.
— Minha nossa! É como na lavagem automática de carros — disse
Jerome no assento de trás, tentando passar o braço em volta de mim, e eu
escapava do seu alcance.
— Não acredito — debochou Astrid.
A palha de milho caía sob os pneus como uma batida marcando o
ritmo. Tump, tump nas portas, no pára-brisa, no teto, no que Grubb cortava
uma trilha em meio ao campo perfeito, amarronzado. A força do milho
resistia ao nosso avanço, mas ele dirigia o carro como se fosse uma faca
desembainhada contra o milharal.
— Só mais um pouco — incentivou Astrid. — Estamos perto.
Estamos quase chegando.
Grubb enfiou o carro mais fundo, mais fundo ainda no coração do
milharal, da semente, do centro do universo. As hastes de milho se
tornaram brancas à luz dos faróis, dançando. Astrid agarrou-se no porta-
luvas com ambas as mãos, agitou os cabelos soltos e espalhados e silvou:
— Isso!
Grubb fez a van descrever uma volta fechada a toda velocidade,
cortando o milharal. Depois virou à direita como uma debulhadora,
voltando atrás. Era um barulho alto, de esmagamento, e ele ia rápido, as
hastes, as estrelas, o céu negro, tudo borrado sob os faróis, e a risada de
Astrid.
Grubb desligou o motor de repente. E não restou nada além de um
silêncio perturbador, as estrelas e o céu. Saímos do carro, as espigas
marrons e quebradas sendo afastadas por nossos pés como se fossem um
enorme tapete de lã. Viramos as cabeças para cima e contemplamos as
estrelas. O mundo inteiro estava murmurando. Ficamos ali, parados no
centro do universo, rindo.
— Nunca tinha visto um círculo no milharal até hoje — debochou
Jerome.
As estrelas piscaram, à distância. Era tarde agora, tarde demais para
ir encontrar Devin atrás do Southside Speedway.
— Contato — comemorou Astrid. O dente da frente lascado dela
refletiu o luar, cintilando como uma faca. — Fizemos contato! — Ela
ergueu o pulso, rindo.
Ficamos ali parados no círculo aberto no milharal. Todo aquele
espaço da plantação aberto, destruído. Alguém poderia pensar que tivesse
sido uma praga, ou que fosse uma pista de aterrissagem. Ou nós.
A FESTA DE ANIVERSÁRIO DE DEB SCOTT
uando Juli recebeu alta dois dias antes do previsto no Dorothea Dix,
nós a pegamos no próprio carro dela. Era uma tarde cinzenta. Tudo
parecia parado, vazio. Juli esperava junto ao meio-fio, vestindo seu
suéter verde gasto, ainda com curativos em volta dos pulsos. Astrid lhe
entregou as chaves:
— Sabe que noite é hoje, meu doce?
Com expressão vazia, entediada, Juli ficou mexendo nos curativos
em torno dos pulsos. Ela perguntou:
— Qual?
— Deb Scott... — disse Astrid. Então, Juli ergueu a cabeça, sorrindo:
— O aniversário de Deb Scott.
— Pode crer, irmãzinha.
Juli engatou a marcha e saiu chispando do estacionamento do
Dorothea Dix. Seus cabelos negros esvoaçaram para trás como se fossem
asas.
— Você vai ter de usar uma máscara — disse Juli, olhando para trás.
— Todo mundo vai ter de usar uma.
— A festa de aniversário de Deb Scott. — Astrid riu. — As garotas
do último ano fazem uma festa todos os anos. No aniversário do
desaparecimento de Deb Scott. Bem fantasmagórico, certo?
Astrid, Juli e eu paramos no Walgreens depois das aulas e
compramos três máscaras de plástico de Princesa Leia com pares de
coquezinhos de cabelos. Três retângulos foram cortados no plástico cor de
carne: um retângulo oblongo para a boca e dois cortes tipo PacMan para os
olhos. Quando enfiamos as máscaras em nossas cabeças, ficamos
parecendo sem expressão, como bonecos de teste de colisão, rosto
totalmente vazio, na imagem do espelho retrovisor.
— Ficou divino! — disse Astrid, e a palavra saiu engrolada, d'v'nu,
por causa da máscara de princesa Léia.
Juli dirigia com apenas uma das mãos no volante. Não tínhamos
nenhuma túnica branca em casa, então usamos camisolas brancas. Juli tinha
uma toda estampada com cravos amarelos. Astrid ficou com uma com tiras
de renda em volta da gola e eu peguei emprestada da minha mãe a camisola
de flanela branca com comprimento até os tornozelos, que estava tão puída
Q
que quase dava para ver minhas sardas através da musselina macia.
Botamos as máscaras em nossas cabeças e fizemos uma pose à la Panteras.
Astrid exclamou:
— Maravilha!
— Onde é mesmo que vai ser a festa?
Na casa da Marybeth Físher, na Lakeshore Drive. Os pais dela estão
em Paris, e essa Paris não é no Texas. Lá de trás, enfiei meu nariz no meio
dos assentos:
— Já disse ao Devin para nos encontrar lá.
— Hum! — resmungou Astrid. — Você é uma esposinha tão boa! —
disse, pressionando o acendedor de cigarros e rindo. —Não é mesmo,
Docinho?
— E daí?
Batemos as três portas e nos mandamos para a mansão colonial de
tijolos de Marybeth Fisher, debruçada sobre a margem do lago Michigan
como se fosse uma máscara piscando na noite. Era uma noite de março,
caprichosa e quente, um traço de verão no ar num instante, para no instante
seguinte desaparecer, com um sopro gelado vindo do lago.
Na cozinha, garotas com máscaras misturavam ingredientes num
ponche, as vozes formando um burburinho alto. Atravessamos aquele
círculo de conversas para pescar bebidas para nós no refrigerador de aço
inoxidável.
— Deb Scott está morta, tem de estar — disse uma garota miúda
com trancinhas e uma máscara púrpura. — Depois de tudo que ela fez, que
mais poderia ter acontecido com ela?
— Cala a boca! Deb Scott está viva — disse Astrid, pegando um
saleiro e uma dose de tequila. Ela jogou sal no pescoço de Juli, lambeu-o, e
engoliu a tequila. Depois, ergueu os lábios para exibir para nós suas
gengivas. E baixou sua máscara de Princesa Leia para cobrir o rosto. Aí,
disse: — Deb Scott está viva. Já encontrei com ela.
— Ah, é? — duvidou a garota com trancinhas. — Você já viu a Deb
Scott?
— Claro! — respondeu Astrid, bufando desdenhosa E saiu um cl'ru!
de debaixo de sua máscara.
Juli deu uma olhada em Astrid e também cobriu o rosto com a
máscara de Princesa Léia.
— Ela dança numa boate de strip-tease em Chicago e ganha montes
de dinheiro — disse Astrid, me olhando.
Eu sabia que era para baixar minha máscara também, mas fiquei
girando-a pelos cordões, em meu dedo.
— Todo mundo sabe disso — disse Astrid com voz rouca.
— O que você estava fazendo nessa tal boate de strip tease? —
perguntou alguém.
— Ah, bem que você ia gostar de saber, não é? — Astrid riu. Com a
máscara abaixada, eu só conseguia ver o branco de seus olhos,
— Vamos, princesas — disse Astrid, oferecendo a mim e a Juli um
braço coberto pela camisola. — Finjam que sou Han Solo.
Deu para escutar as garotas mascaradas cochichando às nossas costas
no que íamos atravessando uma série de portas e corredores.
— Eu sabia — sussurrou uma garota. — Sabia que ela não estava
morta.
Avançamos pelo corredor quase correndo, com as risadas de Astrid e
Juli ressoando, abafadas pelas máscaras.
— Mentirosa — disse Juli.
— Ah, o que foi? — Astrid voltou seu rosto de Princesa Léia para
nós e nos fitou sem expressão. — Não vou deixar uma garota boba de
trancinhas falar besteiras sobre Deb Scott. Deb Scott, morta? Ora, por
favor. Isso é só boato. — Astrid soltou um suspiro. Ela escancarou a porta
de trás, que dava para a festa. A música nos pegou em cheio. No jardim dos
fundos, atravessando o gramado bem cuidado em declive, fagulhas
cruzavam o ar. Uma fogueira queimava bem no centro do jardim, já com
quatro metros de altura, e garotas mascaradas dançavam ã sua volta.
— Ela não pode estar morta. Uma rebelde daquelas não morre. Deb
Scott podia mastigar balas disparadas de um revólver. Vocês entendem, não
é? Metaforicamente. — Astrid subiu a máscara de Princesa Léia para a
testa, com o polegar. Suas faces estavam molhadas. — Meu Deus! Como
isto esquenta!
Caminhamos em direção à fogueira. Chamas alaranjadas cintilavam,
retorciam-se vermelhas e azuis. Havia garotas para todo o lado, dançando
feito animais, e garotos do Fenwick. Um cara parecendo familiar, bem alto,
com um nariz gozado, feito um saca-rolhas, estava parado mais para o lado,
bebendo uma cerveja. Ele me viu e me deu uma piscada.
— Que merda! A festa já começou, — Astrid jogou a guimba de
cigarro por sobre a beirada alta que dava para o lago, onde a água batia na
margem. — Vamos — disse Astrid.
Corpos dançavam em torno do fogo, erguendo joelhos, chutando
para o alto, Cabeças jogadas para trás, bocas abertas. Garotas mascaradas
dançavam em torno do fogo, erguendo os calcanhares, todo mundo parecia
bêbado.
Acocorando-se, cuspindo, cantarolando e cantando. Usando
máscaras pretas em torno dos olhos, as garotas cantarolavam e cantavam
enquanto rodopiavam em torno do fogo, totalmente livres graças ao
anonimato e ao desejo.
— Vamos lá, Docinho. Isso vai ser divertido — disse Juli. Ela
cocava os curativos em torno dos pulsos. — Sempre é.
Baixamos as máscaras bulbosas e brancas sobre nossos rostos e nos
demos as mãos, correndo para o fogo.
Dentro da roda com as garotas que dançavam, me juntei ao mar de
rostos mascarados. As chamas lançavam sombras sobre nossos corpos,
iluminando um pedaço de pele, a boca sorridente da máscara de plástico.
Como uma febre, a dança, a rapidez, garotas por todo lado, tudo me
fazendo girar. Eu dancei, dei chutes para o alto e pensei em Deb Scott, seus
cabelos compridos e negros esvoaçando em torno dela como um lençol
coberto de nódoas. Eu me senti como uma leoa, rugindo.
Algumas garotas estavam usando máscaras de carnaval com franjas
de pena, outras, máscaras de Groucho Marx, com óculos e bigodes.
Algumas poucas pegaram emprestadas as máscaras cirúrgicas de papel azul
de seus pais e as usavam presas às orelhas. Uma garota, com uma delicada
máscara preta em torno dos olhos, rodopiava na beirada da subida com sua
saia do uniforme, girando como um sino.
Vez por outra, um garoto com o rosto à mostra atravessava a massa
de garotas mascaradas. Nós apalpávamos suas calças jeans baggy, rindo,
rasgávamos sua camisa de flanela, correndo as mãos sobre seu corpo. Os
garotos ficavam lá parados, sem uma palavra, enquanto os apalpávamos.
Garotas com máscaras do Jason enfiavam os rostos pelos braços dos
garotos, gritando Buu! Outras sussurravam: Precioso!, tão sonoramente
quanto numa canção. Astrid, em sua máscara de Princesa Leia, dançava
com as mãos acima da cabeça.
— Venha para cá, Thisbe — chamou Astrid. Ela deslizou os braços
em torno da minha cintura e começamos a dançar, nos enroscando, pondo
fogo na noite. Os garotos passavam entre nós, todos lindos, jovens,
perfumados. E então, o garoto com aparência familiar de antes, o tal com o
nariz torto, apareceu entre nós duas, dançando. Astrid se encostou toda
nele, passando os braços em torno do seu pescoço. Eu a imitei, enroscando-
me nas costas dele. Ele se virou para mim, eu pude sentir sua ereção por
debaixo do jeans, e aquilo se encaixou bem entre minhas pernas. Minha
memória foi iluminada aos poucos, quando comecei a me lembrar de quem
ele era, talvez por causa do cheiro, uma colônia com aroma de musgo e
borracha, como o interior de um ginásio. Brett Smith, eu percebi. Era Brett
Smith do Tomás de Aquino, e eu inclinei meu pescoço para trás, rindo,
enquanto ele lambia meu pescoço.
— Não disse a você, Docinho? —Astrid riu, dançando junto a mim.
— Somos uma nova raça de novas garotas. Trabalhamos sozinhas e não
fazemos prisioneiros.
Eu era Deb Scott, na traseira de um Blue Norton, voando através da
noite, e quem poderia me deter? Brett Smith dançava colado a mim, nossos
corpos apenas uma batida no ritmo da música, do movimento, pegajosos de
suor. Ele agarrou meus quadris e me puxou ainda mais para junto dele. Era
tudo como se fosse um sonho. Era uma fogueira de garotas, belas e
perfumadas, todas com pernas compridas e lindas. Uivando loucamente,
cantando à solta, na glória de sermos jovens e bonitas numa noite como
aquela.
Brett Smith me puxou para fora da multidão que dançava. Seguimos
por entre a confusão de árvores, correndo na escuridão, apenas com o
barulho das ondas quebrando às nossas costas e os rumores da festa. Ele me
pressionou contra uma árvore e ergueu a camisola da minha mãe acima da
minha cabeça, tudo muito rápido. Eu estava alta, bêbada, esvoaçando por
dentro, aquele retumbar, aquela força. Enrosquei minhas pernas em torno
da cintura dele e ergui meu pescoço em direção à noite.
Quando terminou, ele disse:
— Obrigado! Meu Deus, obrigado!
A coisa foi descendo sobre mim bem depressa. O pânico primeiro
tomou meus pés, depois subiu para os joelhos. Senti como se minha boca
estivesse cheia de pedras frias e secas. Pus minha roupa de volta depressa,
enfiando a camisola pela cabeça e a máscara para fugir dos olhos cinzentos
de Brett e da necessidade de falar. Brett agarrou meu braço, dizendo:
— Porra, mas que pressa.
Eu já estava voando, correndo através das árvores.
Procurei por Devin em toda parte, mas não consegui encontrá-lo. Ele
não estava no belvedere, nem perto dos carros, nem perto do barrilzinho de
cerveja, nem dançando, nem no meio da massa que se movia, respirava e
dançava, espremidos uns aos outros. Por um segundo, senti uma pontada de
alívio. Ele não estava na festa. Seria como se nunca tivesse acontecido,
somente um sonho, parte da lenda de Deb Scott.
Peguei o caminho sinuoso de pedras do alto da colina até o lago. As
ondas quebravam contra a margem como se fossem faixas de renda branca.
Caminhei um pouco, antes de encontrá-lo. Devin estava deitado na areia, lá
na margem do lago, junto às pedras grandes e negras, com a cabeça jogada
para trás. Algo branco se moveu entre as suas pernas vestidas de jeans. Eu
me aproximei. Vi seus olhos cor de azeitona fechados, vi sua boca aberta,
eu o vi ofegar, buscando respirar enquanto a coisa branca se movia entre as
suas pernas.
— Devin?
Eu o vi se encolher e estremecer, seu corpo inteiro sacudir-se. Minha
respiração parou. Apenas parou. Eu conseguia escutar aquele som, aquele
som gorgolejante em sua garganta, como alguma coisa crepitando, o
mesmo som que ele fazia na cama comigo. O som, o crepitar. Ele
exclamou:
— Oh!
— Devin — sussurrei, somente um fiapo de som, tão baixo que mal
dava para escutar.
A coisa branca entre as pernas dele se moveu para trás, a Princesa
Léia caiu da cabeça dela com seu par de coques negros, olhos quadrados,
imóveis. Ela parecia assustadora como um fantasma, ajeitando o rendado
de sua gola. Sem dizer nada, ela ficou de pé, o rosto vazio de expressão.
— Então, que tal o Brett Smith? — perguntou ela.
Devin voltou-se para trás, olhando para mim, eu de pé nas pedras
com a minha máscara de Princesa Léia igual à de Astrid, minha boca
retangular, meus olhos quadrados. Minha camisola de flanela esvoaçava na
brisa, ao redor dos meus tornozelos, enquanto Astrid ficava de pé entre as
pernas de Devin, alisando sua camisola de bainhas de renda entre os
joelhos, suas pernas nuas e branco-azuladas na escuridão.
— Thisbe? — disse Devin, então, espantado, indo de Astrid para
mim com nossas máscaras iguais e nossas camisolas brancas.
— Você é jovem e está em busca de glória — disse Astrid. — Não é
isso, Docinho? — Seus olhos vazios, redondos como pequenas moedas,
abriram buracos na escuridão.
— Pare — disse eu. — Não, sério, nem tente explicar.
— P-p-peraí — Devin se atrapalhou ao tentar fechar o zíper de seu
jeans. Tentou ficar de pé: — Thisbe, peraí! Pare!
Mas eu já havia fugido dali, disparando escada acima, correndo para
a rua escura de pés descalços, mergulhando de volta na escuridão da noite.
Minha máscara de plástico rasgada escorregou do meu rosto para minha
nuca enquanto eu corria como uma bandeira, uma pipa, um tributo a Deb
Scott, até que eu a arranquei do pescoço e a joguei fora, e ela sumiu,
tragada pela noite.
TRANSCRIÇÃO DE UM TELEFONEMA
TARDE DA NOITE
ASTRID: Só me escute por um segundo.
[Silêncio]
ASTRID: É importante.
[Silêncio]
ASTRID: Docinho?
EU: Você me magoou.
ASTRID: Ora, qual é? Você não é tão ingênua assim.
EU: Você planejou? Planejou a coisa toda?
[Risada]
EU: Astrid?
ASTRID: Assumo a responsabilidade pelo Devin. O resto todo foi com
você, Docinho.
[Silêncio]
ASTRID: Está com ódio de mim?
EU: Estou.
ASTRID: Então, por que me atendeu no telefone?
EU: Você não pára de me ligar. Minha mãe disse que eu tinha de atender
senão ela me matava.
ASTRID: Amor e ódio, hem?
EU: Você ficou maluca?
ASTRID: Ora, qual é? Fiz isso por você. Para você entender.
EU: Você fez para se divertir! Para você foi uma piada!
ASTRID: Acha que eu sou tão má assim?
[Silêncio]
ASTRID: Somos soldados na linha de frente, aquelas que vão gerar uma
nova raça.
EU: Pare com isso, por favor.
ASTRID: Eu só queria fazer um favor a você.
[Silêncio]
EU: Pensei que você fosse minha amiga.
ASTRID: Mas eu sou sua amiga, Docinho. E foi por isso que fiz aquilo.
EU: Podia ter me contado.
ASTRID: Mas o que venho tentando lhe dizer há tanto tempo? Você me
escuta?
[Silêncio]
EU: Por que você é assim?
[Risada]
ASTRID: Assim como, Docinho?
EU: Assim.
ASTRID: Mais tarde, você vai me agradecer.
EU: Queria nunca ter conhecido você.
[Silêncio]
ASTRID: Tá bem! Acho que você vai ficar se sentindo assim por um
tempo. Mas isso passa. Você vai ver.
UMA PALAVRA DE DEZ LETRAS PARA PERDA
-vem aqui — disse Devin ao telefone. — Por favor.
Prendi meus cabelos para trás com uma tira elástica e fiz 42
quarteirões a pé até o apartamento da mãe dele. Levou mais de
uma hora. Quando cheguei lá, meu pescoço estava suado. O corredor de
entrada ainda cheirava a chocolate Hershey's.
Devin estava de pé na entrada do seu quarto, muito magro, num
apertado par de jeans rasgados. Ele vestia uma camisa de botões com listras
verdes e azuis, que eu nunca tinha visto.
— Todas as minhas roupas estão lavando — disse, remexendo na
bainha.
Passei por ele direto, entrando no quarto pequeno, quadrado, com o
pôster da Phalaenopsis, sua imagem séria, púrpura.
Ficamos ali de pé, parados, sob a luz do início da tarde, olhando um
para o outro:
— Brett Smith, hein? — disse ele.
Fitei seus olhos cor de azeitona, sua pele bronzeada, morena. Meus
olhos doeram. Para onde poderíamos ir dali?
— Me conte um pouco sobre a Flórida — disse eu. — Me diga que é
mais quente por lá.
Encolhi meus ombros, despindo lentamente minha camisa oxford
superlarga. Minha saia caiu no chão. Senti os lençóis frios contra minha
pele. Devin abriu seu jeans. Ele se inclinou para puxar as pernas e eu contei
os nós morenos de sua espinha. Tentei não pensar em Brett Smith, no seu
rosto grande e torto. Tentei não pensar em Astrid, na sua máscara de
Princesa Léia, de pé na margem do lago com sua camisola esvoaçando
entre as pernas. Mas estava tudo lá, em torno de nós, por toda parte.
— P-pensacola? Muita areia — Devin ergueu a ponta do lençol e
deslizou para junto de mim. — E tudo cheira a loção de bronzear.
Minhas mãos exploraram seu corpo, as depressões de sua clavícula,
os ossos pontudos em forma de asa de suas omoplatas, as linhas marcadas
de seus quadris. Prendi na palma da mão seus pálidos peitos do pé, raspei
com o dedo a sujeira entre os dedos dos seus pés. Ele tentou soletrar o seu
nome, D-E-V-I-N, Devin, por sobre meu rosto, aquele jogo antigo,
demarcando seu território, mas dessa vez sacudi a cabeça, irritada com ele,
— V
bufando, e interrompi:
— Não!
Quando peguei a boca de Devin na minha, imaginei as praias cheias
de areia da Flórida. Acariciei o nome de sua cidade natal em minha boca,
Pensacola, e até mesmo a palavra tinha um sabor doce na minha língua.
— E bem feio, juro. Uma base militar velha — disse Devin.
Ainda assim, eu imaginava areias brancas, céus azuis. Como alguém
poderia ser infeliz por lá? Fiquei me perguntando se eu seria diferente em
Pensacola, se usaria meu cabelo cortado em camadas e um colar de
conchinhas no pescoço. Ou será que eu apenas encontraria outra garota
feito Astrid, que a gente desfilasse pelas praias com nossas botas Doe
Martens pretas e olhos maquiados com delineador, contas de rosário
chacoalhando, correntes retinindo.
Devin puxou meu corpo para o seu peito. Enterrei as mãos em seus
cabelos, para evitar olhar no rosto dele.
— F-feche seus olhos — sussurrou Devin. — Por favor — disse.
Ele lambeu o suor salgado em meu pescoço. Cobriu com as mãos
minhas axilas nuas. Beijou minhas pálpebras, mordeu o lóbulo da minha
orelha, a cartilagem mais resistente perfurada por uma fina argola de prata
de lei.
Ele me tocou com sua mão, me pegou em sua boca.
— Não — disse eu, escondendo meu rosto entre os lençóis. — Por
favor — disse eu.
Ele queria me dar prazer, queria me dar alguma coisa. Colocou as
mãos sobre meu rosto, fechou minhas pálpebras, beijou minha garganta, as
sardas entre meus seios, serviu a todo meu corpo dessa maneira, com suas
mãos, com sua boca.
Eu me entreguei a ele como se fosse a primeira vez pela última vez.
Vi o que era sexo quando é um gesto, quando é um presente, quando é uma
linguagem, quando é perda.
O prazer veio depressa, em ondas suaves, e eu cravei os dentes em
minha língua. Deixou-me sem fôlego, sem conseguir respirar, solitária,
mesmo com Devin beijando os ossos dos meus quadris e sussurrando:
— Assim!
Dormimos um pouco. Eu tive sonhos inquietantes. Astrid de pé na
margem do lago, com sua máscara de Princesa Léia sem expressão no
rosto. Sua camisola esvoaçando para trás. Sua boca num retângulo estreito.
Ela abriu a boca quadrada e disse, sibilando: Somos jovens e estamos em
busca de glória, Quando ela falou, exibiu uma língua bipartida, como uma
serpente.
Devin chutou minha perna. Acordei assustada. Os lábios dele
estavam pressionados contra o travesseiro. Havia fogo no meu peito. Fiquei
olhando para ele, até que abriu um de seus olhos cor de azeitona e disse:
— O que foi?
Voltou tudo como uma onda, atravessando o meu corpo: a raiva, a
vergonha.
— Não posso mais fazer isso.
Por alguma razão, aquelas palavras foram expelidas como fogo em
minha garganta.
— O quê? — A respiração de Devin queimava meu pescoço. Seus
cabelos cheiravam a tangerina, por causa do xampu, e caíram sobre meu
rosto. Meu peito doía, minha garanta doía.
— Não posso mais fazer isso. — Eu me sentia enojada de mim
mesma, e enojada dele. Devin tentou acariciar meu pescoço, mas eu o
afastei.
— Foi a Astrid, você não entende? — disse ele.
— Isso não importa — sussurrei.
— Meu Deus, Thisbe. Você está fazendo exatamente o que ela quer.
Por um instante, pensei em cair na estrada em direção à Flórida,
queimando o asfalto no Nova de Devin, com a grossa faixa de corrida até o
meio do carro e o pára-choque pintado com o aviso NÃO EMPURRE, e só
parar lá na ponte da baía de Pensacola.
— T-Thisbe... por favor — gaguejou Devin. — Me escute.
— Você não entendeu? — perguntei. — E-eu n-não a-amo você —
disse, debochando da gagueira dele.
Devin pulou para trás, afastando-se de mim e deitou de costas, o
olhar fixo no teto, sem conseguir respirar. Ele sussurrou:
— Meu Deus!
Mais tarde, estávamos na rua, constrangidos. Devin de pés descalços
na calçada, com os jeans puídos e a camisa velha verde-e-azul, rasgada no
colarinho.
Devin passou os dedos nos lábios:
— Pode ir — disse ele. — Não é o que você quer?
— Escute — falei eu. — Espere... — Tentei pegar em seu braço, mas
ele o puxou.
— Não, por favor — disse Devin. — Não sei como se faz isso.
Ele cerrou as mãos na parte inferior da camisa e puxou-a.
— Não — disse eu, tirando suas mãos da camisa. — Você vai rasgar
sua camisa.
E foi assim que terminou. É assim que a gente perde o que ama.
Devin me deu um beijo no rosto. Desci a rua e sabia que Devin estava me
acompanhando com os olhos, olhando minhas costas se afastando, olhando
minha saia do uniforme revoar um pouco quando eu andava, como se fosse
uma dança, uma cantanelle. Minha garganta estava arranhando e dolorida.
Quando me virei, na esquina, para vê-lo ali de pé, descalço, como um
menino, como uma criança triste, ele já havia desaparecido, fora embora.
O ESTRANGULADOR DA ZONA SUL
omeço de abril e todos os noticiários das tevês anunciavam:
"O Estrangulador da Zona Sul. Responsável pelo rapto de quatro
garotas. Um toque de recolher para as onze da noite está em vigor
agora para a região de Milwaukee, incluindo os condados de Cudahy e
Wauwatosa."
A polícia achou uma de suas amadas nas margens do rio Fox,
Samantha Fisher, treze anos de idade, pescoço quebrado e nua, os braços
pálidos abertos dos lados do corpo como se chamasse para um abraço. Mas
as demais garotas, as outras três, Candace, Fay e Meghan Bert,
continuavam desaparecidas, sumidas, destino desconhecido.
Não fui ao colégio por uma semana. Não queria dar de cara com
Astrid. Mas, mesmo assim, ela me telefonou quando as aulas foram
suspensas.
— Graças a Deus — gemeu Astrid no telefone. — Eu linha uma
prova de trigonometria. Todo aquele bando de binômios. Cara, esse
segundo ano é uma merda. — No telefone, escutei ela dar uma tragada no
cigarro. — Então, Docinho? Vai ficar enfiada nessa sua casa para sempre
Quando é que eu e a Juli vamos ver você de novo?
— O que você acha? — disparei.
O Estrangulador da Zona Sul gostava de garotas bonitas. Preferia as
louras, mas não dispensava uma bela morena com franjas compridas.
Gostava de cabelos levemente encaracolados e unhas limpas. Pelo menos,
até agora. Só fazia dez dias — quatro garotas haviam desaparecido em dez
dias — então, quem podia ter certeza? Principalmente, gostava de garotas
novas: de 12 a 21 anos.
Passei a jantar em casa, naqueles dias do início da primavera quando
ficava claro até tarde, até depois das cinco ou seis horas ainda, o céu numa
tonalidade rósea. Minha mãe, nervosa, preocupada, de repente querendo me
tocar. Muito sem jeito, acariciando meus cabelos, como se eu tivesse estado
perdida e houvesse acabado de ser encontrada. Eu me movia como um
gato, sob seu toque, envaidecida e deliciada com essa atenção inédita.
Na mesa de jantar, a bela âncora dos noticiários de tevê falava em
voz monótona:
— Os especialistas em perfis da polícia acreditam que o
C
Estrangulador da Zona Sul é branco, entre 25 e 35 anos, e uma tatuagem de
serpente no braço direito. Continua em vigor o toque de recolher para as
onze horas em toda Milwaukee.
Um retrato de Meghan Beth, a última vítima do Estrangulador,
cintilou na tela. Apenas doze anos de idade, e ela usava os cabelos finos
num corte curto mal-feito. O Estrangulador a havia raptado justamente do
playground da Wauwatosa Day School, durante o recreio. E daí, puf, sumiu
sem mais nem menos. Ninguém conseguiu encontrar nenhuma pista dela,
em lugar algum.
Astrid telefonou quando eu já estava deitada, sem meias.
— Ei — sussurrou ela. — Grubb e eu vamos pegar você. O amigo
dele está morrendo de vontade de ver você de novo.
— Nem pensar — sussurrei. — Já estou dormindo.
— Pare de ser ranzinza, Docinho. Seja rápida como um coelho.
Passamos aí em cinco minutos. — As últimas palavras foram cuspidas e a
ligação foi interrompida.
Meu coração batia como um tambor, enquanto eu me atrapalhava
procurando meus jeans e passava uma escova, muito mal e às cegas, nos
cabelos. Pondo os pés para fora da janela, esperei no escuro. Um toque da
buzina e eu passei pela grama molhada de nosso gramado da frente e entrei
no calor e no barulho do carro de Grubb.
— Ei, garota, há quanto tempo! — disse Astrid, virando-se para trás.
Seus olhos estavam com a máscara de quati pintada em delineador preto.
Eu não a via há uma semana, desde a noite da festa de Deb Scott. Era difícil
olhar para ela e respirar ao mesmo tempo.
— Você se lembra do Jerome? — Astrid sorriu.
— Lindinha! — disse Jerome. — Minha doce lindinha. — Usava um
casaco de couro com uma cobra metalizada nas costas. Cheirava a chuva, a
garoto e a couro e a fumaça de madeira molhada.
— Aonde vamos? — perguntei.
— A um lugar especial — respondeu Grubb. Estava sentado ao
volante, grande como um urso dirigindo com suas grandes patas. Estava
com os cabelos negros arrumados num grudento penteado pompadour. Ele
engrenou o carro numa marcha lenta e fomos rodando devagar para fora da
cidade. Astrid riu, e me passou um tablete de ácido. Eu o engoli. Tinha
gosto de açúcar, ou algo bem doce.
— Dê um pouco para nós — disse Jerome, e eu ofereci a ele o meu
polegar com resíduos do pó. Ele o enfiou na boca e o sugou.
Grubb dirigia com apenas uma das mãos no volante, a outra solta no
colo de Astrid. Foi conduzindo o carro para fora do subúrbio, cada vez
mais para dentro na zona rural, passando o White Hen, o Pizza Hut e todos
os olmos franzinos e novos.
— Por aqui, à esquerda — disse Grubb, conduzindo o carro cada vez
mais pelas estradas secundárias. Encostamos mais para o lado da estrada e
paramos junto a uma casa de fazenda em ruínas, a varanda desabando,
despregando-se da fachada como um dente solto. Paramos o carro. — Eu
morava aqui — disse Grubb, saindo sob o vento forte. Os calcanhares de
suas botas com biqueiras reforçadas produziam estalidos no asfalto da
estrada. — Meu quarto era ali, bem ali. — Apontou para um retângulo
espremido e depressivo sobre a garagem.
— Cara, eu não poria nem a minha cobra para morar num quarto
como esse — disse Jerome, soerguendo os ombros contra o vento.
— Ah, é? — Grubb agarrou Jerome numa gravata frouxa, ambos
grunhindo e gritando, e caíram, meio que de lado, num banco de neve suja
e já começando a derreter.
— Bichas! — xingou Astrid. Então, ela se voltou para mim,
sorrindo. — Você sabia que o Jerome está em condicional no Juizado de
Menores? — perguntou Astrid. — Por incendiar carros estacionados. Mas
ele é legal, não é?
Ela estava de pé na estrada com seu casacão aberto, voando ao vento.
Enfiou as mãos descobertas na sacola, procurando cigarros, mas logo
desistiu com um suspiro.
— Docinho! Por favor, ache para mim um cigarro, está bem? As
porras das minhas mãos estão dormentes.
Astrid estava parada de pé no centro da rua escura, seus cabelos
louros e emaranhados, tão zoneados quanto um guardanapo usado. Seus
olhos exaustos eram contas negras, suas mãos avermelhadas, rachadas,
enfiadas nos bolsos do seu surrado casaco de algodão. Ela parecia uma
dessas garotas que a gente vê na beira das estradas, andando, e cinco
minutos depois, esquece.
— Por favor, Docinho. Não fique me olhando desse jeito — pediu
Astrid, agarrando meu braço, que eu puxei dela.
— Que tal parecerem vivas, caras damas? — debochou Grubb,
enquanto Jerome tirava a neve de sua cabeleira espessa e castanha. —
Tenho uma surpresa para vocês!
Com alguma dificuldade, avançamos sobre a neve, as cabeças
abaixadas, tentando nos proteger do vento. Primeiro Grubb, depois Astrid,
depois eu. Fiquei observando as costas de sua saia do uniforme —
quadrados cinza, quadrados azuis, e linha vermelha unindo tudo.
— Olhem só. Que tal?
Nos fundos da casa de fazenda em ruínas, havia um velho cemitério
abandonado, espalhado pelo campo aberto. Lápides soltas, caídas, o portão
de um mausoléu de pedra isolado escancarado como uma boca grande.
— Aqui era o meu parquinho, onde eu brincava quando era pequeno
— disse Grubb, rindo irônico. Só então me dei conta de que Grubb não
tinha dois caninos na boca. Como se tivessem arrancado suas presas.
— Você quer saber? — perguntou Grubb a Astrid. — Quer saber
como ganhei o apelido de Grubb? Tem a ver com buracos na terra. E com
vermes!
— Me larga! — disse Astrid, tentando afastá-lo, mas
Grubb a puxou para o buraco escancarado; Astrid dava chutes,
gritava, a poeira levantava-se por toda volta. Ficaram rolando, braços
agitando-se no ar, uma confusão de cabelos, virando um por cima do outro
até que caíram no túmulo raso.
— Quando eu era menino, não conseguiam me tirar daqui. Eu
adorava pular aqui dentro e ficar remexendo a terra junto com os vermes e
outros bichos — disse Grubb. Ele agarrou um punhado de terra na mão e
esfregou na perna de Astrid. — Você também gosta. Não gosta, garota?
— Faça ele parar — gritei eu, puxando a manga de Jerome.
Mas, então, Astrid começou a dar gargalhadas. Rolou para cima de
Grubb, prendendo-o ao chão com seu peso.
— Você é doido! — gritou ela. Depois, se inclinou sobre ele e beijou
seu rosto magro e sujo de terra, muito de leve, com ternura. Então, disse: —
Tudo bem. Estou bem, Docinho.
— Viu só? — disse Jerome, cutucando minha mão, me empurrando
para trás de uma das lápides, uma com um rosto rechonchudo de querubim
na frente. Ele encostou seu corpo em minhas costas, pressionando os
músculos duros e pequenos de seu peito contra minhas omoplatas, e
apertando aquela coisa dentro de seus jeans contra minha bunda, afundando
o nariz em meu pescoço. Ele disse: — Está tudo bem, viu só? Tudo bem.
Ergui os olhos para o céu estrelado. As mãos de Jerome percorreram
meus braços, depois se enfiaram por dentro da minha camisa.
Pus a mão para trás e a meti por dentro da bocarra aberta no jeans de
Jerome. Seu pênis saltou para minha mão, quente, pulsando,
movimentando-se. Jerome já estava com a mão por dentro da minha
camisa, e eu tocava uma punheta nele. Pensei na serpente metalizada em
seu casaco de couro, as escamas douradas, olhos verdes, língua partida,
enroscada. Segurava o pênis quente e úmido de Jerome na minha mão e
meu olhar se perdia no céu.
Escutei Astrid rindo, dentro da noite. Jerome ejaculou na parte
inferior das minhas costas e fincou os dentes em meu ombro, sussurrando:
— Deus do céu!
Pela manhã, Astrid e eu acordamos de ressaca, exaustas, e demos de
cara com a notícia: ESTRANGULADOR DA ZONA SUL PEGA UMA
GAROTA.
— Olhe só! — sorriu Astrid. — Mais um passe-livre para a prisão.
— Ela abriu o jornal sobre a mesa da cozinha da minha mãe e cortou um
pedaço de torrada com cream cheese rosado. — Fiquei com muitas
saudades de você, Docinho.
Foi assim que o Estrangulador da Zona Sul obteve sua presa. Com
gentileza, com compreensão, com voz macia e baixa. Astrid pegou minha
mão e apertou-a contra seu rosto.
— Não vamos sair com nenhum deles outra vez, eu prometo. — Fez
uma pausa por um segundo, mastigou a torrada, e acrescentou: — Mas foi
demais, não foi?
Como conseguíamos viver em paz com nós mesmas? Como você
vivia em paz com você mesma? Com remorso, cerrando os dentes, com
vergonha e uma alegria inominável e defeituosa.
UM DIA EM QUE TUDO DÁ ERRADO
ode me passar esse rímel, Astrid?
— Você sabe o que a revista Seventeen diz. Os garotos odeiam
rímel em excesso.
— Ah, por favor, aquela droga? Eles não sabem de nada.
Estávamos no banheiro do terceiro andar, debruçadas sobre as pias,
nos maquiando. Janelas envidraçadas flanqueavam a parede sul, dando
vista para o estacionamento, depois o milharal e, passando dele, o cemitério
militar, Hollywood.
Ergui do chão minha Doe Martens preta e lá estava uma única gota
vermelha de sangue no linóleo velho e manchado. Perfeita como uma
pétala. Estive esperando dias para dizer isso, 19 dias, para ser precisa,
desde a festa de Deb Scott, esperando há dias para que parasse e eu não
tivesse de dizer isso:
— Estou sangrando — disse, de olhos arregalados.
— Isso já aconteceu comigo — disse Juli, passando maquiagem
preta brilhosa nos cantos dos olhos. — Não é nada!
Enfiei uma moeda na máquina de absorventes, agarrei um quadrado
macio e me enfiei num reservado. Deixei a porta aberta, continuando a
tagarelar:
— Meu Deus! Odeio essas coisas. Parecem fraldas.
— Olhe só! Não disse? — Astrid agarrou Juli pelo queixo e
examinou seu rosto. — Não ponha rímel demais. Suas feições são muito
delicadas. Ela limpou os olhos de Juli com um punhado de papel higiênico
fino amassado. — Quer saber? Você só devia passar o marrom. Tons
terrosos, se quiser acreditar em mim.
— Bem, eu não quero. — Juli afastou as mãos dela. Estava usando o
suéter verde puído que vestia no Dorothea Dix, e que vinha usando direto
desde então, apesar das manchas de café, dos queimados de cigarro, das
manchas escuras e irregulares em ambos os punhos, manchas que poderiam
ser de qualquer coisa, até do seu próprio sangue.
Astrid escancarou uma das janelas de desenho antigo, puxando o
pegador. Ela se sentou sobre o aquecedor e remexeu dentro de sua sacola
de camurça, procurando cigarros.
Fiquei ali parada, de pé, me sentindo enorme, inchada como um
— P
navio que levara uma bala de canhão ou algo do gênero.
— Aqui, pegue — disse Astrid, me passando um maço de cigarros.
— Tem alguma coisa errada — disse eu, expelindo a fumaça de
cigarro pela janela num jato afunilado, reto. — Meus seios estão doloridos.
E estou duas semanas atrasada.
— Quanto tempo?
— Ah, você sabe. — Bati a cinza para fora da janela. Meu anel de
turquesa retiniu musicalmente ao tocar o vidro. — Atrasada! — Mordi
meus lábios partidos. — Quase três semanas.
Juli debruçou-se na pia, mais para perto de sua imagem refletida no
espelho, mirando uma pinça prateada em suas finas sobrancelhas.
— Isso não é nada — disse Juli, sem tirar os olhos de si mesma. —
Comecei com o Xanax há dois meses e ainda não fiquei menstruada. Meu
pai até já me levou no ginecologista para um teste de gravidez. — Ela
arrancou mais dois pelinhos e estremeceu. — O médico disse que eram
hormônios. Uma alta dessas, coisa de crescimento. — Os olhos dela
ficaram marejados. — Merda, como isso dói!
— Jura?
— Claro! Provavelmente é só estresse. As provas. Devin. Qualquer
coisa dessas. Não se preocupe.
Astrid sentou-se num canto da janela, o sol da tarde derramou-se
sobre seus joelhos como um cobertor de crochê no que ela voltou o rosto
para a janela acinzentada do banheiro, aquele rosto de anjo num corpo de
uma jovem mulher.
— Qual é, Docinho? Não está exagerando? — perguntou ela
sorrindo.
Uma semana mais tarde, estávamos sentadas na sala de espera do
Planejamento Familiar, lendo folhetos que diziam: "Dando banho em seu
bebê" e "Depressão pós-parto e você".
Astrid me convenceu a mentir sobre minha idade.
— Sabe como é — disse ela, brincando com os óculos de sol
enquanto eu preenchia os formulários. — Só para garantir.
Usávamos óculos escuros Jackie O. e orquídeas de papel em nossos
rabos de cavalos, estilo Lady Day — de Billie Holliday —, mas bastante
disfarçadas.
— Olhe só pra gente, incógnita. — Astrid inclinou-se para mim,
rindo, e agarrou meu braço. Eu mordi os lábios, sorrindo, apesar de estar
sentindo cólicas. Uma garota gorducha com calças azuis de enfermeira e
uma camisa pastel com estampas de gato abriu a porta e chamou:
— Thisbe Newton.
Nós três nos levantamos e seguimos a Mulher Gato corredor abaixo.
Uma centena de gatos riam debochada-mente para nós nas costas dela.
Astrid estourou seu chiclete alto e disse:
— Meu Deus! Olha só essa maçaroca! — Ela apontou para uma
réplica médica de um útero na parede.
— Tome este teste de gravidez. — A enfermeira me entregou um
bastão embrulhado em papel e um pequeno copo de plástico. — Vá ao
banheiro, leve isso e deixe sua urina na janela para a enfermeira. Depois,
vista o camisolão. Logo o médico vai ver você.
A Mulher Gato enfiou uma ficha verde numa capa de plástico e
fechou a porta atrás de si.
Astrid e Juli abriram a boca feito macacos, debochando. Eu corri
para o banheiro de aço inoxidável e me encolhi tremendo sobre a privada.
Eu tinha umas fantasias. Se estivesse grávida, ia pegar o bebê e fugir.
Depois, me metia no Nova todo amassado de Devin e disparava para as
praias da Flórida. Devin ia me levantar e me girar para valer no ar.
"Peanut", é como ele ia chamar o bebê, cabelos castanhos e lindo como ele.
Vamos arranjar uma maneira de viver juntos, uma família meio
desconjuntada.
Quando voltei do banheiro, Astrid estava sentada no balcão,
chutando os armários, enquanto Juli cutucava as crostas de feridas
enraizadas em sua pele.
— O que você vai fazer, Docinho?
Virei minhas costas para elas e joguei o suéter sobre a cabeça.
— Não sei. — meus dentes batiam. — Vou decidir quando vierem
falar comigo.
— Já fiz um aborto. No ano passado. Foi fácil assim — disse Astrid,
estalando os dedos.
— Por que não me contou antes? — Juli desabou sobre a cadeira
laranja de vinil, puxando os punhos de seu suéter sujo para cobrir as crostas
amarronzadas que se destacavam na pele.
— Ah, a gente ainda não era amiga de verdade — disse Astrid,
ajeitando nos cabelos a flor de papel que havia escorregado para o lado. —
E você estava andando com... qual era o nome dela? Aquela nerd, Bonnie
Hunt.
— Mesmo assim, a gente era mais ou menos amiga. Eu podia ter lhe
dado uma ajuda.
Sentei na espreguiçadeira dos pacientes, vestida com meu camisolão
de papel e com os pés calçados apenas com meias, segurando as bandas do
camisolão bem apertado, como se estivesse rezando.
— Estou tendo um daqueles dias em que tudo dá errado — disse
Astrid, arrumando a franja com os dedos. Por um minuto, senti vontade de
lhe dar um soco na boca.
A porta se abriu e um médico de meia-idade com costeletas de pêlos
ásperos e brancos entrou, dizendo:
— Parabéns, senhorita Newton. Você está grávida. — Ele ergueu os
olhos da ficha e me olhou. A expressão em seu rosto mudou. — Desculpe-
me. Você é a senhorita Newton, não é?
— Sou — disse. Estava tentando digerir aquilo em partes, entender:
Parabéns, você está grávida. Meus joelhos batiam, minhas mãos, meus
dentes, um chocalhar comprido e doloroso. — Sou eu.
— E você tem 21 anos? — duvidou, folheando a papelada em sua
pasta parda.
Astrid e Juli engasgaram, emudecendo de repente.
— Certo — disse o médico, franzindo a testa. — Vamos fingir que
eu acredito. Vamos dar uma olhada. — Ele indicou os estribos com a mão
descorada, dizendo: — Suba aqui.
Era como estar me movendo num sonho, descendo minha bunda,
pondo os pés nos estribos. O dr. Gilder enfiou a ponta de seus dedos em
mim até o umbigo.
— Dói? — perguntou ele.
— Um pouco. — Fechei os olhos e vi fagulhas amarelas e
avermelhadas, por dentro das pálpebras. Como se fosse um brinquedo de
luzes, fiquei imaginando as velhas formas: borboleta, maçã, o rosto
fascinante e bifurcado de uma serpente.
O dr. Gilder enfiou em mim seus instrumentos, enquanto perguntava:
— Cólicas? Febre? Dores na parte inferior das costas?
Eu assentia e murmurava sim, mas tudo o que escutava era grávida,
como uma campainha, ressoando na minha cabeça.
— Fique parada, agora. — O dr. Gilder fixou o olhar entre meus
joelhos. — Há quanto tempo tem esse sangramento?
— Uma semana, talvez duas.
— Muito?
— Sim.
O dr. Gilder me cutucou e remexeu. Meu rosto ficou ardendo de
vergonha. Eu me sentia como se fosse uma caverna, lá por dentro de mim,
escura e misteriosa, repleta de segredos.
O dr. Gilder baixou o camisolão de papel até meus joelhos e disse:
— Acho que você está abortando. Pelo teste, parece estar com três
semanas de gravidez, Mas tudo aqui indica um aborto espontâneo: as
eólicas, o sangramento pesado. Vou mandar uma enfermeira colher o seu
sangue. O pânico inundou meu corpo como água.
— Peraí! O quê? — agarrei o camisolão de papel com os dedos e me
sentei. — Quer dizer... agora? Já? Como assim?
— Tenho 99% de certeza de que você está abortando
— repetiu o médico, falando devagar como se eu fosse estúpida. Ele
rabiscou algo na ficha e sua caneta tinteiro arranhou o papel. — Isso
acontece. A parede de seu útero está ferida e não está segurando o bebê.
— Isso é porque eu estava tomando pílulas? Ou porque bebo
cafeína? É por isso? — comecei a gaguejar, varrendo os miolos para
lembrar tudo o que fiz de errado nas últimas quatro semanas, todas as
palavras, todas as sílabas, todo estúpido e inútil fôlego.
— Não sei — respondeu o médico, olhando para mim por cima de
seus óculos bifocais. — Às vezes, essas coisas acontecem sem que a gente
saiba por quê. Seu corpo é quem decide, não você. A enfermeira virá colher
o seu sangue. Você pode nos telefonar em 24 horas para saber o resultado e
então teremos certeza.
Com essas palavras, o dr. Gilder me deu uns tapinhas carinhosos na
mão e deixou a sala. Peguei minhas roupas na cadeira de plástico, com as
mãos tremendo.
— Bem, não me leve a mal, mas graças a Deus, não é?
— disse Astrid, levantando-se e passando a alça de sua sacola de
camurça azul pela cabeça.
— Vamos, gente. Vamos para o Coffee Trader. Eu pago pra você um
café mocha com leite batido — disse Juli. Ela parecia bastante envelhecida
com seus óculos Jackie O., seus olhos estufados e sua ressaca de Xanax.
Enfiei meu suéter pela cabeça de novo, não conseguia parar de
tremer.
— Melhor assim — disse Astrid. —Juro. Agora, você não vai ter de
pagar pelo aborto. Além do mais, você nem ia saber de quem era... ia?
Olhei para ela, tentei sorrir, mostrando meus dentes, depois me virei
para dentro da pequena pia do médico e vomitei.
— Que merda. Você está legal?
— Calma, Docinho! É só ter calma, ok?
Abri as pequenas torneiras prateadas, peguei a água fria na mão,
molhei meu rosto, enxagüei minha boca. Depois, cuspi a água fora. Só
queria que minhas amigas desaparecessem dali.
— Acho que eu queria ter — sussurrei.
— Isso são seus hormônios falando — disse Astrid. — É como
funciona o corpo de uma mulher. Está tentando enganar você para
transformá-la numa parideira, uma escrava.
Em casa, no meu quarto, sozinha, fiquei olhando para o meu reflexo
no espelho, antes de me deitar. Fiquei examinando o meu crânio, o osso da
minha testa, meu lábio inferior, com sardas pálidas.
Tive os pensamentos mais estúpidos, ou não pensei coisa nenhuma.
Pensei em Astrid reclamando da revista Seventeen: "Ah, por favor, aqueles
artigos ridículos. Tem um par de jeans rasgado e velho? Enrole-os na
cabeça e ganhe uma faixa para testa feita-por-mim." Devin estava de pé
numa das praias brancas da Flórida com sandálias de dedo, a areia branca
por entre seus dedos bronzeados. Ele acariciou os lábios com os dedos e
sorriu, dizendo: Dragão Vermelho. Juli passava uma camada brilhante de
pintura preta em grandes círculos em torno dos olhos. Ela disse: "Você
sabe, né? Você deveria usar só tons terrosos."
— Mãe da morte — sussurrei para meu reflexo. — Morta.
Mordi meus lábios partidos e cortei a pele. O sangue tinha um gosto
industrial, como papel laminado, em minha boca.
MEU BRAÇO BOM
omecei a atirar coisas. Não me pergunte por quê.
No início, eram coisas pequenas. E quando estava sozinha. Como
jogar um lápis ou um caderno contra a parede do meu quarto
quando eu não conseguia descobrir a resposta para um problema de
geometria. Ou fazer uma bola amassada da minha camiseta favorita, aquela
com dois pássaros azulões estampados nela, e jogá-la pela janela por ter
deixado café cair nela toda.
Astrid, Juli e eu estávamos passeando por aí de carro, meio sem
destino, catando skatistas, quando eu tornei a coisa um pouco mais séria.
Ryley Spinner, um garoto bonitinho, louro, com corte de cabelo à Ia
skatista, estava no assento do carona. Juli sempre teve tesão nele. Escrevia
o nome dele nas capas de seus cadernos e desenhava rodinhas de bicicleta
em torno do nome dele.
— Ei, Betty — disse ele. — Que tal uma trepadinha?
Atirei uma caixa de fitas K-7 na parte de trás da cabeça dele com
tanta força que sangrou.
— Aiii! — gemeu Ryley.
— O que foi? — perguntou Juli.
— O idiota acabou de perguntar se você quer trepar com ele.
— E daí? — estranhou Ryley, tocando a parte de trás da cabeça com
a ponta dos dedos, bem de leve. Do jeito como nunca tocara nas garotas.
— Foi pra você aprender a ser um cavalheiro. Já escutou falar disso?
— Voltei o olhar para fora, pela janela, em direção aos milharais dourados
que iam passando depressa, contando silos para tentar controlar as batidas
do meu coração.
Estávamos esperando pela Astrid, às duas da manhã, na porta da
Metrópolis. Ela havia conhecido um cara vestindo um terno de riscas e
calçando tênis, e disse:
— Me dá um segundo! Meio segundo.
Juli e eu atravessamos correndo a rua para o George Web, que ficava
aberto 24 horas, e pedimos uma xícara de café para cada uma. Estávamos
paradas na calçada, tremendo, levantando a gola de nossas jaquetas jeans
para nos proteger contra o vento meio de inverno meio de primavera.
Soprava do lago, mordendo a gente como se tivesse dentes.
C
— Estou com nojo dessa merda toda — sussurrei, congelada.
— Tá chovendo no molhado comigo, irmãzinha — disse Juli.
Dei um pulo à frente e atirei o café nas portas duplas da Metrópolis.
Fez um barulho como se fosse um saco de papel explodindo, sujando toda a
vidraça da entrada.
— Experimente! — disse eu a Juli. — Vai fazer bem a você.
Ela atirou o café fumegante bem quando o segurança abria a porta, e
ele ficou todo sujo de café. Todos os seus 120 quilos. Do alto do capuz do
seu agasalho de moletom às pontas de seus super-tênis Air Jordan.
— Merda! — E demos uma gargalhada, disparando a correr até
perder o fôlego.
As pessoas começaram a me xingar. Os garotos nas festas, até uns
que eu conhecia, e mesmo Astrid. Diziam coisas como:
— Mas você tem de ser tão filha-da-puta?
— Estou exagerando?
— Devia tomar algum remédio para acabar com isso. Estou falando
sério.
— Chamam isso de estar com os ovários virados. Pode checar!
Criançona. Dando ataques. Infantilóide. Eu sabia que era tudo isso.
Mas não conseguia parar.
Além disso, fiquei boa à beça nisso. Atirava garrafas de cerveja de
janelas de carro, espatifando-as contra placas de trânsito; jogava biscoitos,
cigarros acesos, latas, caixas de papelão de leite, drops, um por um, e ovos
contra as casas.
As coisas que eu preferia quebrar eram as feitas por mim mesma.
Na aula de Cerâmica II, fazia potes, um atrás do outro, cozia-os no
forno, cobria-os com uma camada de esmalte vitrificado, levava de novo ao
forno, então abria a janela do terceiro andar e os largava, quebrando-os um
por um.
Fiz camisetas personalizadas, com Astrid e Juli, numa tarde, e
rabisquei meu apelido — DOCINHO — em prateado brilhante sobre o
algodão rosa. Quando cheguei em casa, retalhei a camiseta com tesouras e
guardei os pedaços em forma de diamante numa velha caixa de sapatos.
Peguei uma tira feia de couro cru e fiz um bracelete para dar a minha
mãe de presente de aniversário, com as palavras MAMÃE QUERIDA, na
frente. Mas, numa noite em que ela ficou até tarde com o namorado
fumador de maconha, assei a porcaria no forno.
Não pensava nem um pouco no Devin. Quero dizer, quase nada.
Uma vez, virei um barril de cerveja numa festa, derramando gelo e
cerveja para todo lado. Mas isso foi um acidente.
Peguei uma perfeita taça Tiffany de champanhe do armário de Juli
quando ninguém estava olhando e arremessei-a para o outro lado da entrada
de carros, o cristal girando no ar até quebrar-se em pedacinhos. Quebrei um
vaso também. Avancei com o carro da minha mãe para cima de um banco
de neve.
— Você vai acabar machucando alguém — disse Juli, pegando-me
pelo braço.
— Quem é você para me dizer uma coisa dessas, Senhorita Mangas
de Corte de Faca?
A gente estava largada sobre o tapete felpudo no quarto de Juli, e eu
tinha posto para tocar um disco da Billie Holliday que havia comprado na
Thrift. Astrid disse:
— Mas que merda é essa? É que nem escutar um gato sendo
esganado!
Peguei um Buda de jade da escrivaninha e o arremessei na cabeça
loura e descabelada dela, gritando:
— Por quê? Por que você tem de estragar tudo? Astrid se abaixou
rápido e o Buda por pouco não atingiu sua cabeça.
— Cuidado com o que faz, gatinha! — disse ela.
PUNIÇÃO
NOME: Thisbe Newton
DATA: 7 de maio de 1988
INFRAÇÃO: Danificar propriedade do colégio.
PONTOS PERDIDOS: 6 e uma semana de suspensão.
O VÉU PRETO DA IRMÃ ST. JOE
eu pai, desfilando para lá e para cá como se fosse um astro de
cinema, um modelo de deus já com alguma idade, ficou
esperando do lado de fora da secretaria do Anjos do Sagrado
Coração para conversar sobre minha suspensão. Sentou-se numa cadeira de
mogno com rachaduras que era pequena demais para ele, amarrotando seu
terno Armani. Usava uma gravata amarela de listas e um Rolex de prata.
Tinha um fecho quebrado no qual ele ficava remexendo quando estava
nervoso. Meu querido e velho pai.
— Onde está minha mãe? — perguntei, escorregando para a cadeira
junto da dele.
Em vez de responder a minha pergunta, apenas me fitou,
zangadíssimo. Toda vez que estava aborrecido, seus olhos saltavam, os
brancos dos olhos praticamente engoliam as íris azuis, e ele se remexia de
um jeito desengonçado, a cabeça girando em torno do eixo da coluna.
— Você compreende — disse ele — que algo assim vai constar para
sempre de seu histórico? Que pode ter influência quando for se candidatar a
alguma universidade?
— Pai — soltei um suspiro. — É só uma suspensão.
Meu pai parou de me pegar para levar ao colégio depois que Juli
ganhou seu Audi. Fazia três meses e dezessete dias desde que o vira pela
última vez. Apesar de sua irritação, parecia ainda mais bonito do que eu me
lembrava, a pele bronzeada e os dentes limpos e brancos curvados como se
fossem de uma draga.
— Conte-me mais uma vez, e com detalhes — ordenou meu pai —
como se meteu nessa. Como conseguiu ser suspensa por uma semana no
Sagrado Coração?
Foi depois do colégio, aquele tempo em suspenso quando os
corredores estão fantasmagóricos, somente um punhado de garotas
zanzando, três ou quatro delas passando de cada vez, descendo o corredor,
conversando sobre o Clube de Líderes Comunitários do colégio, a próxima
venda de brownies. Fiquei olhando a vitrina de troféus na parede oposta do
corredor, as placas empoeiradas, os troféus de animadoras de torcida.
— Eu estava irritada — disse, esfregando a saia com o dedo, sem
coragem de encarar meu pai. — E tinha comigo uma latinha de spray, que
M
um garoto deixou no carro da Juli. Então, pichei as paredes. Já sei que foi
uma idiotice.
— Você agora é uma artista grafiteira, é isso? — Ele sorriu por um
instante rápido. — E o que foi que você escreveu na parede?
— Isso não importa, né?
— Ah, sim, queria escutar tudo de você.
— Foi outra pessoa que começou — disse. — Eu nunca tinha feito
nada parecido na vida. Juro.
Lá dentro da vitrina dos troféus, garotas do Sagrado Coração e do
Anjos Divinos nos fitavam de seus retratos em preto-e-branco. Todas elas
pareciam misturar-se e se tornar uma única garota, um único rosto, uma
única garota usando um vestido chamativo, com um cinto estreito
combinando e um sorriso tão branco quanto uma pérola. O que aconteceu a
elas? Como foi que se tornaram mulheres? Como conseguiram chegar ao
outro lado?
— O que você escreveu? — perguntou meu pai de novo.
— Não foi nada.
— Diga mesmo assim.
— Deb Scott está morta.
A porta da secretaria se escancarou. Pensei que fosse o que eu havia
dito que tinha feito o rosto dele empalidecer, seus dedos procurarem
nervosamente o fecho do relógio. Então, ergui os olhos e vi a Irmã St. Joe
de pé na porta aberta, o véu preto caindo nos ombros, os lindos e sobres-
saltados olhos de corça arregalados.
Meu pai ficou de pé. Seu rosto, de pálido, ficou vermelho como fogo.
Ele sussurrou:
— Deb?
A Irmã St. Joe, parecendo tão surpresa quanto ele, virou o rosto
abruptamente para a esquerda, como se tivesse sido esbofeteada. Cravou os
olhos em seus sapatos e começou a falar depressa:
— Thisbe... eu... você... não pode entrar... aqui.
— Deb — repetiu ele. Meu pai avançou um passo em sua direção e
depois nervoso, recuou. Estendeu a mão para ela, e ficou olhando a própria
mão, os dedos abrindo e fechando no vazio.
— Você sabia que eu agora trabalho aqui? — perguntou a Irmã St.
Joe. Mas não olhava para o meu pai, não olhava para mim, nem parava de
falar. — Eu ensino Ciências exatas. Sexo — disse. — Darwin e morte.
Deb Scott, dos olhos turvos e azuis. Deb Scott, dos cabelos negros e
soltos. Sussurrei:
— É você!
Não foi nem consciente, não de verdade, o jeito como minha mochila
de livros deslizou do meu ombro, passou para o meu cotovelo, a alça vindo
terminar na minha mão. Então, de repente, estava voando, deslizando no ar,
atravessando o corredor, raspando pelo véu negro da Irmã St. Joe e
finalmente encontrando seu alvo na vidraça da vitrina de troféus. Primeiro,
o estrondo, depois, esse momento, esse rasgo de silêncio, uma golfada de ar
entrando, antes que o vidro caísse como chuva. Tudo parou. Sorvi o ar
longamente, e mais uma vez a seguir, como se fossem contas num cordão.
Era como se eu nem ao menos estivesse ali, como se fosse meu fantasma.
Tudo quieto, calmo, perfeito como pétalas.
Então, o vidro despencou, caindo em centenas de milhares de cacos
cintilantes, uma tempestade de vidro caindo sobre aquelas lembranças do
Anjos do Sagrado Coração, em queda também, os troféus de animadoras de
torcida, as placas, as fotografias em preto-e-branco de garotas que
estudaram ali antes de mim, sorrindo, olhos vazios para a câmera, duas
borlas de formatura — púrpura e amarela para o Sagrado Coração, verde e
branca para o Anjos Divinos.
— Jesus santíssimo!
— Mas, que diab...?
Houve uma agitação, as freiras enchendo os corredores, chegando
sobre nós com suas saias negras farfalhantes, garotas rindo e apontando
para os cacos de vidro espalhados por toda a parte.
Meu pai catou minha mochila em meio aos pedaços de vidro e
desceu uma mão gigante sobre meu ombro. E o tempo todo sem se atrever
a tirar seus olhos do rosto da Irmã St. Joe, seus belos olhos de corça, sua
boca jovem e aflita.
— Eu não posso... — balbuciou meu pai. — Eu não...
— então se calou.
A Irmã St. Joe mordeu o lábio com força e respirou fundo, lutando
para se recompor. Eu tinha vontade de rasgar seu véu e sair em disparada
pelo corredor, batendo em cheio contra as portas duplas de vidro, e fugir
mundo afora sem jamais olhar para trás.
— Vá logo! Vá embora daqui! — disse a Irmã St. Joe.
— Por favor!
Meu pai me levou de carro para casa. Fiquei repuxan-do os arremates
de couro do assento, minhas mãos tremendo daquele jeito meio que de
paralisia.
— Então... — sussurrei eu. — Você era o homem casado dela?
Meu pai soltou o ar dos pulmões e fixou os olhos azuis muito claros
na linha pontilhada na estrada. Ele agarrou o volante com toda força.
— Você acha que sabe tudo? Sobre sexo? Amor? Você e suas
amigas? — disparou ele, com os olhos abaixados para a estrada que se
estendia à frente como uma faixa comprida. — Certo, então. Que tal me
contar o que você sabe?
Abri minha boca com a intenção de começar a falar. Mas o que eu
sabia? Sabia que garotos eram uma loucura que pegava logo na gente, que
alguns tinham gosto salgado, outros gosto de fruta. Eu sabia que sexo era
como uma dança, como um passo daqueles, dois pra lá, dois pra cá. Era
como entrávamos no mundo, Astrid, Juli e eu.
— E então? — insistiu meu pai. — Diga. Diga o que você acha que
sabe.
Fazendas passavam à toda pelas janelas, celeiros vermelhos e silos
azuis, todos ligados por cercas de tábuas cruzadas.
— Você não tem a menor idéia, menina. Pode acreditar, você não
sabe de nada — disse meu pai. — Ninguém sabe.
Meu pai encostou na beira da estrada em frente da casa colonial da
minha mãe. Eu saí e bati a porta. O céu estava cinza-chumbo. Meu pai
seguiu em seu carro reluzente, indo para sua casa no centro.
Pela manhã, acordei e esfreguei os olhos para afugentar o sono.
Depois fui para a cozinha arrumar algo para o café-da-manhã. Queimei a
torrada.
— O que foi? — perguntou minha mãe. — Você está sem falar de
novo? Que ótimo! — Ela deu um tapa no meu ombro. — Dê o fora daqui.
Astrid e Juli me mandaram um pacote-de-emergência-para-
suspensão com barras de chocolate, revistas de moda, ovos de chocolate,
revistas dos Mad Libs e camisinhas.
— Você sabe? — escreveu Astrid no bilhete. — Para quando a sua
mãe deixar você sair de casa outra vez.
Disquei o número do Devin, apenas para escutar seu alô abafado
antes de eu engasgar e desligar.
Eu estava sentada junto da janela da cozinha esperando a água ferver
quando a Irmã St. Joe chegou pela entrada de carros dirigindo a
caminhonete chocalhante das freiras. Ela desligou o carro bem na metade
de Never Golng Back Again, do Fleetwood Mac, e jogou para trás o véu
preto como se fosse uma mecha de cabelos, Tocou a campainha e encostou
a boca na porta, dizendo:
— Thisbe, sou eu!
Abri a porta e fiquei lá parada.
A Irmã St. Joe chutou a parede com seu sapato ortopédíco de freira e
disse:
— Me dê só um segundo.
Saí para a varanda da frente. Era primavera, mas ainda soprava de
vez em quando um vento frio e forte. Era o mês mais feio de todos, no
Meio-Oeste, quando tudo está marrom, nojentamente lamacento.
A Irmã St. Joe sentou-se no degrau da frente. Ela abriu a saia preta
para poder encostar os calcanhares na parede de tijolos.
— Sabe que tem uma planta em Bornéu que cheira a carne
estragada? — perguntou. — É assim que a mãe natureza funciona. O cheiro
ruim atrai moscas, acho eu. Polinização. Qualquer coisa assim. E você
sabia que tem uma rã do fundo do mar que dá à luz pelas costas? Centenas
daqueles girinos minúsculos nadando pelo mar. Claro, tem também os
peixes do mar das Antilhas, com caudas em véu. Eles comem os filhotes. O
meu, as irmãs ficaram com ele.
A Irmã St. Joe me deu uma espiada pelo canto dos olhos. Ela
afundou o queixo no peito. Soltas dos lados do meu corpo, minhas mãos
tremiam como um peixe.
— E então, o que eu fiz? Fiz meus votos sagrados! — disse ela,
tentando rir. — Não é engraçado? Uma piada? Achei que isso ia consertar
tudo. Achei que era o que eu tinha de fazer, você sabe, como uma
penitência.
Ela ergueu a saia preta e abanou-se. A Irmã St. Joe estava com o
olhar perdido ao longe e, de repente, pude ver nela uma sombra de Deb
Scott, seus olhos de corça, o queixo bem desenhado. Fiquei me
perguntando como nunca tinha enxergado isso.
— A vida às vezes apronta surpresas — disse ela. — Sobre o que
você vai se tornar ou não. — Ela tomou fôlego, depois outra vez. Ficou
passando o crucifixo de contas de pérolas por sobre a correntinha de prata.
Eu me sentei ao lado dela e recostei minha cabeça em seu ombro negro.
Alguma coisa em minha garganta se soltou, afinal. Senti um soluço
elevando-se do meu peito. Pensei em Astrid, em Juli e em mim, voando
livres e sem medo, ao longo da pista comprida e ondulada que era o mundo,
e para quê?
— Mas, agora, sabe no que tenho pensado? — me perguntou a Irmã
St. Joe, enxugando os olhos. — No Corpo da Paz. Guatemala, talvez. Eu
poderia construir algumas casas muito boas por lá, não acha? — A Irmã St.
Joe esticou os músculos e me deu uma piscadela.
Estávamos ali, sentadas na varanda com os carros passando na
estrada. Eu a escutava respirando, a garota, a lenda. A Irmã St. Joe me
surpreendeu ao colocar a mão sob meu queixo e levantar minha cabeça,
afastar a franja loura-avermelhada dos meus olhos e perguntar:
— Então, me diga. Deb Scott está morta?
Soltei meu rosto da mão da Irmã St. Joe e fitei-a fixamente, aqueles
olhos ferozes atravessando o contorno do meu rosto, procurando algo. Ela
ainda era rebelde, ainda era desesperada, ainda debruçada sobre a borda do
precipício e buscando respostas em mim. E o que eu poderia dizer a ela?
Abri minha boca para falar, para lhe dar uma resposta, mas não saiu
nada.
Ela disse, quase chorando:
— Me diga! Isso quer dizer que Deb Scott está morta?
JANTAR BRANCO
a noite do Jantar Branco, sexta-feira, 14 de maio, todos os relógios
pararam no Anjos do Sagrado Coração exatamente às 11h53 da
noite.
Estávamos de pé do lado de fora, no pátio, atrás da Virgem, Astrid,
Juli e eu, esperando os garotos com quem íamos ao Jantar Branco.
— Eles vão vir, prometo! — disse Astrid, remexendo com o corpete
manchado de seu vestido. Nós três estávamos catando migalhas de
biscoitos das nossas roupas, que havíamos comprado na Thrift. Juli estava
usando uma saia de couro preta e botas caubói de salto alto, O vestido rosa
dos anos 50 de Astrid tinha um top de bainha frisada e uma saia de bolinhas
rosa. Eu vestia um saco de estopa púrpura-azulada e uma saia-cogumelo.
O Jantar Branco era o nosso baile. Minha suspensão terminou bem a
tempo de eu poder ir. Era exigido que usássemos vestidos longos com
alças, saias abaixo do joelho e meias brancas, sapatos brancos, luvas
brancas. Era exigido que obedecêssemos às regras. Em vez disso, nossas
roupas horrorosas estavam rasgadas nas mangas, nas bainhas, manchadas
de café, batom e rímel.
— É uma gozação! Uma piada! — disse Astrid. — Sabe como é.
Fiquei na ponta dos pés e espiei pelas janelas da cantina, observando
os casais balançando-se ao som de When Doves Cry, do Prince. Papel
crepom e balões de gás coloridos, em amarelo-cádmio, vermelho, púrpura,
pendurados nos caibros do teto. Uma pequena mesa de abrir estava
arrumada diante das arquibancadas com uma poncheira de plástico sobre
ela e alguns brownies partidos. Vi Barry e seu pessoal dançando sob a luz
de discoteca, os polegares para o alto e usando suas calças de smoking de
bainha alta. Quinn Catherine usava margaridas frescas em seu impecável
penteado de pajem. Senti vontade de arrebentar a vidraça com meus punhos
só para sentir alguma coisa, qualquer coisa.
Às minhas costas, Astrid e Juli riam, arrastavam-se sobre a grama
numa dança debochada. Então, eu as escutei sussurrar:
— Aqui, não, mais ali. Aí, isso, mais para cima, isso! Fiquei me
balançando na janela, piscando, espiando os garotos de smoking e as
garotas de vestidos brancos até que vi Devin, muito lindo, num paletó azul-
pálido. O cabelo encaracolado e lustroso, as covinhas morenas. Fiquei
N
observando-o, nervoso, repuxando a gravata borboleta azul-pálida e
tossindo, protegendo a boca com a mão. Perdi a respiração só de vê-lo
parado ali. A beirada da janela escapou dos meus dedos, escorreguei e
esfolei meus joelhos nos tijolos de pedra.
Virei para trás, gemendo, ao som da risada de Astrid.
— Surpresa!
Bem ali, na base da estátua da Virgem Maria, sobre a cobra que
morde a maçã, sobre a pedra rachada da curva do pé da Virgem, Astrid e
Juli haviam pichado com spray, numa letra intrincada, cheia de voltas: AS
PUTINHAS DA COLINA ESTIVERAM AQUI.
— Brilhante. — Astrid riu. — Não concorda, Docinho?
Escutei um som, algo se movendo entre as árvores que contornavam
o pátio, e a seguir risadas. Grubb e Jerome chegaram, quebrando galhos dos
pinheiros. Grubb vestia um paletó comprido, com duplo peitoral, e púrpura,
uma gravata de lã estampada e um chapéu fedora cinza. Jerome vestia uma
camiseta do Mississippi Thunderpussy, Jeans sujos e se equilibrava em
botas de caubói com biqueiras de prata.
— Garotas! — disse Jerome rindo. — Chegamos, finalmente!
— Aqui estamos, seus cavaleiros com armaduras brancas — disse
Grubb, polegares enfiados nas lapelas, exibindo seu paletó púrpura. —
Aqui estamos para afastar vocês de toda essa droga.
— Você convidou esses caras? — perguntei.
— Ei, e eu? — disse Juli.
— Não são grande coisa. — Astrid deu uma tragada no cigarro. —
Mas assim pode ser mais engraçado, acho.
Jerome riu, cínico:
— Estão prontas para a noite, garotas? Porque a noite está mais do
que pronta para vocês.
As luzes vindas do ginásio projetavam-se sobre o pátio como farpas
de vidro quebrado. Grubb parecia suspeito, um sujeito privado de suas
presas. Jerome executou uma dança debochada de dois passos com as mãos
curvadas para fora, nas laterais do corpo.
— Quem está numa de dançar? — perguntou, olhando para mim com
uma piscadela.
— Ei, Docinho! Adivinhe o que eu surrupiei do zelador Fritz na
semana passada? — perguntou Astrid, pegando meu braço no dela.
Balançou um molho de chaves na frente dos meus olhos, sorrindo. — Estou
com as chaves da torre do sino.
Fiquei olhando para as chaves, parecendo ossos compridos,
balançando nos dedos de Astrid.
— Escutei dizerem que a torre do sino é mal-assombrada — disse
um dos garotos.
— Deb Scott — sussurrou Juli.
— Parem com isso já... — disse eu. — Por favor! Agarrei o anel de
chaves e saí correndo. Astrid, Juli,
Grubb e Jerome me seguiram, correndo, todos nós rindo alto, até a
escadaria, passando o segundo andar e o terceiro, passando pela vitrina dos
troféus, descendo o corredor até a porta de madeira com o cartaz alaranjado
que dizia ENTRADA PROIBIDA.
Enfiei uma chave na fechadura, experimentei, soltei um palavrão,
depois tentei outra, até que finalmente a fechadura soltou um estalido.
Baixei a maçaneta e nós entramos correndo, gritando, subindo em
disparada as escadas, em direção à torre.
As escadarias em espiral eram tão estreitas que pareciam terem sido
construídas para uma criança. Jerome apalpou minha saia, dizendo:
— Agora vai esquentar!
Mas eu afastei a mão dele. Quando atravessei as portas, sem me
deter, perdi o fôlego. O vento soprava forte, agitando nossos cabelos e
erguendo nossas saias.
— Meu Deus!
— Puta merda!
— Olha só isso aqui!
A primeira coisa que vi foram os sinos, balançando do teto como se
eu estivesse vendo por baixo saias de garotas, depois vi as janelas
compridas e retangulares, com topo triangular, das quais se podia olhar
para fora e ver o mundo inteiro ao redor. Corremos até as janelas,
debruçando para fora delas, respirando o ar da noite, a essa hora já tão
tarde, com Jerome assoviando por entre os dentes:
— Huu-uiii!
Wisconsin estava aos nossos pés, inteiro. Primeiro as pequeninas
casas de tijolos de Wauwatosa, fechadas como se fossem rostos, depois o
quadriculado das ruas, os faróis dos carros e, adiante, à distância, os
altíssimos arranha-céus de Milwaukee e a fábrica de cerveja, seu anúncio
em néon brilhando na noite. Era noite de sábado, 14 de maio de 1988, e o
verão estava chegando. Já estávamos quase livres. Era quase como se
pudéssemos tocá-lo.
— Astrid — disse eu, esticando-me para pegá-la pelo braço
descoberto e pálido.
— É nossa, Docinho. Toda nossa. — Ela me deu um sorriso e me
cutucou, com uma risada.
— Ei, garotas! — chamou Grubb, puxando um saco de papel de trás
de seu horroroso terno púrpura. — Jerome tem uma surpresa para vocês.
Grubb atirou o saco de papel pra Jerome, que deu uma risada e
começou a remexer dentro dele. Os sinos tocaram, depressa, baixo, e
cobrimos nossos ouvidos, gritando. Meu corpo inteiro estava tocando,
cantando, muito acima do colégio, do baile, de Devin e do Anjos do
Sagrado Coração.
Jerome agora tinha uma coisa pequena e rosada na mão. Ele me deu
uma piscadela e aproximou a tal coisa da brasa do seu cigarro. Um pequeno
rojão ziguezagueante e chiador saiu chispando da parte frontal do
campanário, soltando uma cascata giratória de fagulhas sobre o terceiro
andar do Anjos do Sagrado Coração, uma torrente de cores, faíscas cor de
cereja e verde-garrafa. Astrid gritou de felicidade.
— Faça isso rápido — disse Grubb. — Alguém vai escutar.
Mas Astrid inclinou-se para trás, rindo e dizendo:
— Tudo bem. Aposto que temos no mínimo 15 minutos. Grubb e
Jerome atiraram velas romanas e bombas de fumaça da borda da torre dos
sinos. E puseram fogo num spray de cabelos como se fosse um lança-
chamas, Grubb entregou a Jerome um frasco com alguma coisa. Ele tomou
um gole e depois acendeu o fogo, cuspindo chamas.
— É só isso que vocês têm? — provocou Astrid.
— Olhe isso aqui — disse Jerome, tirando uma lata de cola do bolso.
Puxou o lenço estampado do bolso do casaco de Grubb, enfiou-o para
dentro da lata de cola e o acendeu com o isqueiro.
— Cuidado — pediu Juli.
— Você é um piromaníaco de merda! — disse Grubb, arrancando
com os dentes o filtro de seu cigarro.
— Coquetel Molotov! — anunciou Jerome, atirando a lata flamejante
contra a lateral da torre do sino, na direção da igreja, gritando: — Olha a
reta!
Antes que a gente soubesse o que estava acontecendo, Jerome
acendeu outra lata e arremessou-a. A lata saiu voando, riscando o ar com
seu fogo, até aterrissar no telhado estilo missão espanhola da igreja. As
fagulhas voaram para todo lado.
As latas despejaram seu conteúdo pelo telhado da capela, e o rastro
de chamas acelerou-se na descida inclinada do teto de cedro, o fogo se
espalhando como um cobertor por onde quer que passasse.
Astrid se debruçou com meio corpo para fora do campanário,
exclamando:
— Merda!
— Vai apagar! O vento vai apagar tudo, certo? — perguntou Juli.
Jerome apenas riu. Ficamos observando as chamas dançando,
piscando como se fossem apagar-se, então aumentando, o vento
alimentando-as ainda mais. E descendo pelo telhado, atravessando a
canaleta, as fagulhas se projetaram do telhado e alcançaram o chão.
— Seu babaca! — Astrid empurrou Jerome contra a parede. — Aqui
é nosso colégio, cara. É o Sagrado Coração!
— Putas do Sagrado Coração.
— Seu maluco! — gritou Astrid.
Mas, a essa altura, o fogo já havia se espalhado demais. As chamas
lambiam na noite. O fogo devorava o teto da capela, fazendo-o crepitar,
destruindo a madeira, alimentado pela cola altamente inflamável.
Olhávamos aquilo paralisadas, enquanto o foco principal do incêndio
continuava a se alastrar; vimos fagulhas atravessando o teto e então os
vitrais redondos já mostravam o fogo lá dentro. Os anjos abriram suas
enormes asas, e foi lindo por um momento, como velas votivas piscando.
Mas então escutamos os estouros, e uma explosão maior, o gemido de
vigas se partindo, O vento ergueu e soprou brasas em chamas que se
desprendiam do teto da capela já desabando e varriam o ar em volta.
Fagulhas atravessavam as janelas abertas do Sagrado Coração.
— Porra! — disse Astrid, agarrando nossas mãos. — Porra! Vamos!
Temos de dar o fora daqui.
Descemos correndo para o terceiro andar, com Grubb e Jerome nos
nossos calcanhares. A nossa direita, o laboratório de química estava
pegando fogo. Hélio, lítio, berilo. Houve um estampido, um pipoco e um
jato de fumaça, então um barulhão horrível, uma explosão. Alguma coisa
explodiu; depois, tudo, o corredor inteiro ficou cheio de fumaça e fogo.
Juli berrou. A Irmã St. Joe saiu do convento. Os olhos dela estavam
espantados, a boca retorcida para baixo como se fosse um rasgão. Ela nos
viu, Astrid, Juli e eu, correndo através do terceiro andar com nossas roupas
já arruinadas, fugindo da confusão feroz em que se tornara o laboratório de
química.
— Já pegou em tudo! — gritou Astrid.
— Esperem! — disse Grubb, tropeçando às nossas costas. —
Esperem um pouco.
A Irmã St. Joe esticou o braço e puxou o alarme de incêndio,
gritando:
— Corram!
O alarme fez a noite estremecer. O corredor do terceiro andar se
encheu de chamas, fumaça e calor. Corremos para as escadas no extremo
leste, mas, quando abrimos as portas, as escadas estavam tomadas por uma
névoa escura feito fumaça. Parecia até o fundo de um forno. Podíamos ver
as chamas alaranjadas e trêmulas vencendo o caminho escada acima. O
fogo avançava para cima, queimando e enchendo de fuligem as paredes
com aquele padrão em V da fumaça.
Então escutamos uma série de pipocos em torno de nós, e eram as
vidraças das janelas se quebrando por causa do calor, todo o vidro voando
para fora do Anjos do Sagrado Coração. Ficamos presas na armadilha que
se tornara o terceiro andar do Sagrado Coração. Não havia para onde ir.
— O telhado — disse a Irmã St. Joe.
— O que está acontecendo? — berrou Astrid.
— A Ala Oeste — A Irmã St. Joe abriu a porta para o convento e
acenou, nos chamando: — Por aqui, eu conheço o caminho.
— Estamos saltando fora! — grunhiu Grubb, puxando a camisa para
cobrir o nariz e virando Jerome pela manga em direção à Ala Leste, bem de
volta para onde o incêndio começara, na capela.
— Vocês nunca vão sair por ali — disse Juli.
Mas eles já estavam correndo, Grubb e Jerome, disparando pelo
corredor, preferindo enfrentar o fogo a escapar conosco e serem presos.
— Vamos. Agora — disse a Irmã St. Joe.
Voamos através das portas, atravessamos o convento, descemos um
corredor comprido e escuro. Tudo parecia escuro e poeirento demais,
fechado como uma biblioteca, mas estávamos correndo, estávamos
chorando, estávamos seguindo Deb Scott através da escuridão, dos quartos
que pareciam uma enfermaria de hospital, e da espessa fumaça que nos
sufocava. No final do comprido corredor, descemos correndo um lance de
degraus, depois atravessamos uma sala apertada, o sótão, apinhado de
manequins para experimentar roupas e véus.
Tudo estava no escuro acima de nós, então a Irmã St. Joe puxou para
baixo uma escada de madeira e disse:
— Vão, subam.
Astrid foi a primeira a disparar pela escada, depois Juli e depois eu.
Astrid ergueu as mãos acima da cabeça, puxou o trinco, e então nos vimos
no telhado, tossindo, sufocadas, desesperadas por um pouco de ar puro.
— Vamos para os fundos, em direção ao pátio — disse a Irmã St.
Joe. — Tem uma escada de incêndio lá.
Carros de bombeiros já estavam circulando em torno do colégio.
Bombeiros desenroscavam os anéis de suas mangueiras como se elas
fossem serpentes brancas gigantes e as estendiam, avançando contra o fogo
que devorava o Anjos do Sagrado Coração, tanto a capela quanto o prédio
principal.
Astrid ficou parada bem na beirada do telhado, balançando junto à
borda, vendo o Anjos do Sagrado Coração ser engolido pelas chamas,
hipnotizada, sem conseguir desviar o olhar, apesar de eu ver que seus olhos
estavam lacrimejando por causa da fumaça.
— Vamos! O convento logo vai começar a queimar! — disse a Irmã
St. Joe. — A qualquer momento.
— O Sagrado Coração tem pulsação — disse Astrid, entorpecida, de
costas para nós e o olhar cravado no fogo. — Sei disso agora. A gente tem
de ter estado dentro dele para saber, para entender. Vocês estão escutando?
As chamas devoraram a igreja. Junto a ela, o fogo despejava-se das
janelas já sem vidraças do Sagrado Coração, oscilando contra a noite. Tudo
vibrava e estourava. Abaixo de nós, havia um som contínuo, ritmado. A
música do fogo, firme e furiosa como se tivesse asas.
— A natureza do fogo é ir para cima — disse a Irmã St. Joe. — Vai
chegar aqui a qualquer instante.
Astrid voltou-se para nós. Ela estendeu os braços, os cabelos
brilhando atrás dela, iluminados pelo fogo como uma coroa de chamas.
— Vamos morrer aqui — disse ela.
— Não vamos, não! — a Irmã St. Joe esticou o braço.
— Vamos embora!
Mas Astrid permaneceu na borda do telhado, os olhos ávidos, azuis
profundos, brilhando ferozmente. Um alarme disparou em meu corpo e
tudo, tudo começou a ressoar.
— Pra dizer a verdade, nunca acreditei que iria viver para me formar
no Sagrado Coração — disse Astrid. Seu rosto parecia contraído, enrugado
como um pedaço de carvão fumegante e quente demais para ser tocado. —
A coisa não termina nunca. Esses anos de colégio são assim, certo?
— Você sobrevive — disse a Irmã St. Joe. — Eu sobrevivi!
As sirenes cortaram a noite. O fogo se tornava mais raivoso, uma
coisa viva, respirante. Os bombeiros o cercaram, lutando contra o inferno
com seus jatos de água, compridos e pálidos sem maiores esperanças,
mirando o interior das chamas que cada vez dançavam mais alto.
— É mesmo, Irmã? — Astrid enfiou com o dedo um cacho de seus
cabelos cor de trigo sujo de fuligem para trás da orelha. — Porque, se for
me perguntar, vou responder a você que sempre estive aqui.
— Astrid — disse eu. — Vamos, por favor.
— Não é, Irmã? — perguntou Astrid. Uma nuvem de fogo elevou-se
às suas costas, uma nuvem-cogumelo de chamas engolfando a capela e
irrompendo contra a noite, inacreditável e real. O rosto da Irmã St. Joe
estava molhado de lágrimas, mas ela empinou o queixo, furiosa. O véu dela
voava ao vento. — Já não esteve aqui, também? — perguntou Astrid.
— Parem com isso — berrou Juli.
— Não temos muito tempo — sussurrou a Irmã St. Joe.
O fogo impeliu o ar com violência, derrubando as velhas chaminés
do telhado. Houve gritos, meus, de Astrid ou de Juli, eu não consegui saber
quem foi, as vozes de todas eram uma só. As chamas projetavam-se para o
alto, despejando no ar uma chuva de cinzas ardentes e fagulhas. A Irmã St.
Joe estendeu a mão e agarrou Astrid. Juli e eu estávamos correndo,
atravessando trôpegas o telhado. Astrid e a Irmã St, Joe nos seguiam de
perto. Pude escutar Astrid ofegante, sem conseguir respirar. Tudo estava
escuro à nossa volta, a mais negra das escuridões, Juli estava chorando, não
conseguíamos ver para onde estávamos indo, também sem fôlego, tentando
desesperadamente respirar. O telhado do convento era uma pista de corrida
negra, impossível de se ver, no escuro, esparramada, tão grande quanto um
playground, e estávamos correndo, tentando alcançar a linha de chegada,
quando de repente escutei Astrid gritar — um gemido agudo, alto, como o
de um animal, e depois mais nada.
Nós viramos para trás e elas haviam sumido. Astrid e a Irmã St. Joe.
Simplesmente sumiram. Desapareceram.
A pista do telhado se estendia plana. Juli e eu corremos de volta para
onde elas estavam, mas Juli subitamente esticou a mão e gritou:
— Cuidado!
Por baixo de nossos pés, num quadrado perfeito, o telhado se abria
para uma velha entrada de ar. Juli virou-se para mim, a boca repuxada para
trás de tanto medo, o rosto empalidecido e aterrorizado, e corremos dali,
gritando, descendo em pânico a escada de incêndio. Não paramos de berrar,
atravessamos correndo o pátio, passamos pelos garotos de smoking e as
garotas com vestidos brancos, passamos pelos bombeiros que lutavam para
dominar os pesados anéis de suas mangueiras. Passamos a Virgem com a
frase AS PUTTNHAS DA COLINA ESTIVERAM AQUI pichada com a
caligrafia enlaçada e larga de Astrid, atravessamos correndo as portas
duplas do Sagrado Coração que agora estavam escancaradas, a água
descendo em cascata pelas escadas. Corremos para os bombeiros, todos
eles dispostos em fila, os braços deles esticados para frente, bloqueando
nossa entrada, gritando, não conseguíamos parar de gritar mesmo quando a
ambulância circundou o colégio, a sirene berrando.
PUTINHAS DA COLINA
a segunda vez em que Juli tentou se matar, não me telefonou em
seguida. Não me telefonou porque Astrid tinha partido e nunca
voltaria.
A ambulância invadiu o estacionamento depois que corremos para as
portas do Anjos do Sagrado Coração, chorando, tentando entrar. Mas não
foi antes de duas da manhã, até que tudo o que restava do Anjos do Sagrado
Coração era um monturo de vigas fumegantes e quebradas, pedaços de
assoalho, que a equipe de resgate encontrou Astrid e a Irmã St. Joe, caídas
no fundo de uma entrada de ar no porão do Anjos do Sagrado Coração.
Haviam sofrido uma queda de mais de doze metros por uma entrada de
respiradouro que nenhuma das duas pôde enxergar quando atravessavam
correndo o telhado, no escuro.
A Irmã St. Joe foi encontrada inconsciente, com a pélvis e um pulso
quebrados. Mas Astrid foi declarada morta logo que a acharam. O padre
Flynn administrou os últimos sacramentos, ajoelhando-se sobre os detritos
e a sujeira do Sagrado Coração para riscar o sinal da cruz sobre a testa e os
lábios de Astrid com água benta. A equipe de resgate colocou o corpo dela
num saco preto, oleoso, pegajoso, com duas alças e carregou-a para fora do
Sagrado Coração. Juli e eu ficamos assistindo do estacionamento,
histéricas, trêmulas, em nossos vestidos horrorosos e rasgados. O Sagrado
Coração erguia-se diante de nós, a água correndo de suas portas quebradas
e abertas. Era como se o mundo tivesse parado para nós, tudo fechando-se
depois dos gritos como os relógios no interior do Anjos do Sagrado
Coração.
Juli e eu, olhos sem enxergar, entorpecidas, demos declarações à
polícia. Fomos até o centro da cidade nos carros dos policiais, respondemos
a perguntas, contamos a eles sobre Grubb e Jerome, eles tiraram nossas
impressões digitais e recebemos ordem de não sair do estado.
O pai de Juli pegou-a no distrito policial e levou-a para casa. Ele a
enfiou na cama. Deixou o Valium na sua mesinha-de-cabeceira. Mas
somente na manha depois do incêndio no Sagrado Coração ele a encontrou,
escondida no armário como se fosse dormir, tirar uma soneca, como fazia
quando era pequena. Só que ela havia vomitado sobre si mesma, vestida na
velha camisola puída com enfeites de rendas manchadas. Juli havia
N
vomitado enquanto dormia, inconsciente, o estômago cheio dos remédios
que seu pai lhe dera, o Xanax, o Valium, o Trazodone, todas as pílulas que
ela havia juntado, escondido, guardando para um momento como esse.
— Olhe só, estou virando freguesa daqui — disse Juli quando fui
visitá-la, sozinha, no horário de visita do Dorothea Dix, às quartas-feiras,
das quatro às seis da tarde.
Juli estava sentada no mesmo sofá verde de vinil, as pernas dobradas
e enfiadas sobre o queixo proeminente e estreito. Os cabelos negros caíam
emaranhados até a altura dos ombros. Os olhos estavam vermelhos e
pareciam em carne viva nas extremidades. Não havia cortes nela desta vez,
nada de talhos feito bocas abertas. Desta vez, o que a estava devorando — e
a mim — vinha lá de dentro.
— Acabou — disse eu, lutando para não chorar e controlando a voz,
chutando a perna fina da mesinha de café. — Tudo. Astrid.
O dr. Whitmeyer, legista do condado, determinou que a morte de
Astrid fora acidental, causada pela queda. Os ferimentos incluíam ruptura e
lesões no fígado e no baço, quatro costelas quebradas do lado esquerdo e
uma perna quebrada. Pelo menos, foi o que sua mãe disse, curvada aos
soluços sobre ela no funeral. A sala mortuária cheirava a rosas murchas e
café instantâneo queimado. Não fiquei muito tempo ali. Os cabelos pálidos,
platinados de Astrid estavam bem-arrumados sobre o travesseiro, e alguém
havia enroscado em seu punho um rosário de madrepérola que eu jamais
havia visto. Era como ver ali uma outra garota, de um outro mundo. Como
aquela poderia ser minha Astrid?
O incêndio consumiu o colégio, destruindo 25 salas de aula, a
cantina, a capela e o novo laboratório de idiomas. A água empoçou nos
assoalhos e pôs em curto toda a fiação. Todas as vidraças da Ala Leste
foram espatifadas.
Os bombeiros despejaram no prédio quase três mil litros de água por
minuto para combater o fogo, todo o equipamento deles em ação, e
chamaram até os bombeiros de Pewaukee e Cudahy, mas mesmo assim não
adiantou nada. O prédio do Sagrado Coração era antigo demais, foi o que
disse o chefe de bombeiros, cheio de poeira, lixo e cera de assoalho antiga.
No que o fogo começou, disse ele, não foram mais capazes de detê-lo.
Todas as garotas do Sagrado Coração foram transferidas para o
Fenwick, que logo se tornou uma escola mista. Havia anos que os padres
vinham querendo juntar os dois colégios, e as freiras impediam para manter
a tradição, continuando com o colégio só para garotas.
Todos os jornais da cidade noticiaram que o fogo começou com a
ação de um incendiário. Grubb e Jerome enfrentariam um julgamento como
adultos por causarem um incêndio com conseqüências fatais. Declararam-
se culpados e receberam redução de pena, respectivamente, três e quatro
anos.
Mesmo que o Sagrado Coração reabrisse, eu provavelmente teria
sido expulsa pelo meu papel no incêndio. Juli também. O pai dela a
mandou para o Colégio da Santíssima Trindade, em Laburnum, enquanto
eu fui transferida para a Milwaukee West, a escola pública a três
quarteirões do Sagrado Coração, onde ficava perambulando pelos
corredores vestida com suéteres super largos e calças baggy.
As vezes, me encontrava com Juli para um café no Coffee Trader.
Ela parecia melhor, de um modo geral, exceto por algumas fraquezas. Ela
dizia:
— Astrid? Por favor, não vamos falar sobre isso. — Daí, me estendia
um Percocet por sobre a mesa, dizendo: — Tome. Shhh! Não vou contar a
ninguém.
Então, enfiava dois na boca, engolindo-os a seco, com uma
piscadela.
Quando a Irmã St. Joe recebeu alta do hospital, também não foi para
o Fenwick. Trocou o hábito negro por uma camisa caqui do Corpo da Paz e
uma passagem só de ida para a Guatemala. Certa vez, me mandou um
cartão postal com uma garota de pele parda usando uma coroa de papelão.
No verso, escreveu num quadrado: "Tenho uma casa azul com uma porta
amarela no meio da selva. Já aprendi a assentar fundações e fazer um teto
de palha. Acho que Astrid ia gostar disso. Beijos e abraços — DBS."
Fiquei bem retraída na Milwaukee West. Os garotos mais velhos
apontavam para mim, cochichos me acompanhavam, eu escutava pedaços
do Putinhas da Colina murmurado às minhas costas, mas, afinal, como
tudo o mais, também passou. Sem novas histórias para alimentá-la, a lenda
murchou, o que, de certo modo, era pior ainda.
Havia vezes em que eu contornava os quarteirões tomados de ervas-
daninhas e passava pela fachada condenada do Anjos do Sagrado Coração.
O prédio exalava aquele cheiro azedo de papel queimado, cola derretida e
plástico esturricado. O Sagrado Coração se erguia diante de mim, devorado
pelo fogo, a fachada em ruínas e abatida, uma garota sem alma.
Tenho tanta saudade daqueles dias no Sagrado Coração, daquele
mundo! Onde tudo parecia novo e promissor, o mundo cintilando,
oferecendo-se, misterioso, com todas as suas possibilidades, quase ao meu
alcance.
No último ano de colégio, pensei ter visto Astrid, certa vez, numa
tarde de outono quando a luz do poente batia nas vidraças da Milwaukee
West. Quando a luz transformava os armários de metal em chamas e tudo
ficava com aquele cheiro, aquele cheiro de outono, o cheiro da morte, como
folhas de árvores se queimando, como café torrando, como uma vida nova,
uma vida mais escura e mais perigosa que estivesse prestes a começar.
Lá embaixo, no extremo do corredor, vi uma garota muito magra,
com cabelos cor-de-mel, puxando os cachos de dentro do casaco. Eu a via
de costas. Por um segundo, pensei que fosse Astrid e minha boca ficou
seca, minhas mãos começaram a tremer, caídas do lado do corpo. Quase
chamei seu nome — Astrid! —, aliviada, tão aliviada depois de todo esse
tempo de espera, porque ela afinal estava de volta, como Lázaro, voltando
da morte, de volta para mim, minha amiga Astrid.
Mas, quando a garota se virou, vi o rosto dela, as sobrancelhas finas,
o nariz polaco. Perdi a respiração por completo. Nunca poderia ser Astrid.
Era apenas uma estudante estrangeira que tinha cabelos revoltos, cor de
trigo, cachos despencando pelas costas e um rosto estreito, chupado. Só
isso.
Na cerimônia de graduação, fiquei de pé na rua junto com os outros
garotos e garotas da minha classe. Todos nós usávamos branco. Atiramos
nossos capelos brancos e quadrados para o alto e fizemos girar as borlas
douradas.
Depois de tudo, fugi para o banheiro do colégio, onde duas garotas se
debruçavam sobre a pia, diante do espelho, mirando seus rostos. Tirei
minha bata de formatura e a enfiei na lixeira, observando as garotas
conversarem olhando para suas imagens refletidas, passando rímel nos
cílios.
— Vamos para aquela fogueira depois da cerimônia, dançar.
— Você acha que Peter Torch vai dar um amasso comigo ou não?
— Seu rosto está com uma expressão de quem vai arrasar!
Alguma coisa latejava nos meus ouvidos. Fiquei olhando para o meu
reflexo no espelho. A ossatura da minha testa. A pinta no meu lábio.
Quando a garota loura levou o batom à boca, estiquei o braço e o
peguei dela.
— Ei — exclamou ela. — Que história é essa? Estendendo o braço
trêmulo, comecei a escrever no espelho, de início em letras de fôrma
pequenas, depois maiores, mais soltas, à medida que eu pegava o ritmo. A
distância, a garotada comemorava. As garotas dançavam. Eu escrevia numa
letra cheia de voltas, cursiva, espalhando-se pelo espelho inteiro: AS
PUTINHAS DA COLINA ESTIVERAM AQUI.
AGRADECIMENTOS
Muito obrigada a Eric Simonoff e ao time de astros da Janklow & Nesbit,
incluindo Dorothy Vincent e Rebecca Gradinger; à incrível equipe da
Knopf and Vintage, especialmente Marty Asher, Jordan Pavlin, Emily
Molanphy, Russell Perrault, Scott DiPerna, Anne Messitte, Joy Dalla-
negra-Sanger, Roz Parr, Lisa Weinert e Irena Vulkov-Kendes; a Jeffa
Johnson em Jane; aos meus professores William Tester e Tom DeHaven;
aos meus grandes amigos escritores Gretchen Comba e Sarah Perrier; muito
obrigada também a Thisbe Niessen; agradecimentos especiais a minha mãe,
meu pai e minha irmã Maggie por estarem sempre ao meu lado me
apoiando e me dando amor; e finalmente a Francis W. Decker, por me fazer
rir, por me conduzir e por acreditar em mim desde a primeira palavra.
Fim
Esta obra foi digitalizada pelo grupo Digital Source para proporcionar, de maneira
totalmente gratuita, o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprá-la ou
àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler. Dessa forma, a venda deste e-
book ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável
em qualquer circunstância. A generosidade e a humildade é a marca da distribuição,
portanto distribua este livro livremente.
Após sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original, pois
assim você estará incentivando o autor e a publicação de novas obras.
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http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros