anotações sobre andy warhol doc

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Sobre Andy Warhol 1. Ethos – Warhol é o primeiro artista que transfere o eixo axiomático de uma obra para fora dela mesma. Pode se pensar que desde o dadaísmo, pelo menos, a idéia de que a performance é parte constitutiva do ato artísctico resultava em uma obra que, ainda que muitas vezes impalpável <procurar referência o caso do homem do barco, no livro do Hans Richter>, antecipava certas premissas da pop art. Mas trata-se de um movimento exemplarmente antípoda. No dadaísmo, em Duchamp, em Francis Picabia, nos surrealistas, e mesmo na performance poética do grupo que ficou conhecido como Cabaret Voltaire, a arte é o ponto de confluência último e urgente da vida, e o gesto artístico, na medida em que se transforma em obra é a tradução e a realização mesma do ethos do artista em sua própria natureza, uma natureza que se revela em um instantâneo que só pode ser, nem mais nem menos, sagrado. Se muitas vezes se pensou no pop como propaganda, pura e simplesmente, e em Warhol como designer ou agitador cultural – e não como artista – isso se deve ao fato de que seu trabalho (job, no sentido comercial) é o primeiro atentado contra a arte como estética, e, por conseqüência, da estética como campo de produção autônomo. Suas gravuras, seus filmes, suas fotos e especialmente seus livros representam um esforço levado a termo no sentido de uma laicização da obra de arte, que acaba substituindo a estética por uma ética artística. A obra passa a funcionar como mais uma das várias dimensões que caracterizam uma Weltanschauung ou uma perspectiva da realidade, que não é propriamente a vida individual do artista, mas seu telos, aquilo que reúne tudo sob o mesmo céu: conversas telefônicas, filmes, perucas, gravuras em silk-screen, a voz monótona de Andy. Uma certa continuidade, ou antes, um certo convívio igualitário entre as idéias, seja qual for a forma que elas assumam, transfere o sagrado para outro lugar, destrói a obra. O ethos passa a constituir o fundamento do artístico, mas não à maneira da tradição moderna, que reconduziu esse ethos ao sagrado e, para lançar mão de um jargão que diz muito menos do que pretende, fez da vida uma obra de arte. Não é preciso lembrar que esse elemento era desde o começo do século, ou antes, desde Beaudelaire, pelo menos, o núcleo conceitual que determinava a obra moderna. Nesse caso, contudo, o ethos do artista – como acontece no dandismo – ganha seu sentido a partir do domínio relativamente seguro (do ponto de vista do código social e teórico) da arte. Podemos rastrear as origens desse acontecimento que foi a incorporação de uma reflexão sobre a arte – que teve como conseqüência em alguns casos, como o de Baudelaire, a transformação individual a partir dessa reflexão, ou concomitantemente a ela – até a instituição moderna da estética como domínio de investigação filosófica independente. O artista, seguindo os exemplos fundadores de Goethe, e em seguida de Schiller,

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Anotações Sobre Andy Warhol DOC

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Sobre Andy Warhol1. Ethos Warhol o primeiro artista que transfere o eixo axiomtico de uma obra para fora dela mesma. Pode se pensar que desde o dadasmo, pelo menos, a idia de que a performance parte constitutiva do ato artsctico resultava em uma obra que, ainda que muitas vezes impalpvel , antecipava certas premissas da pop art. Mas trata-se de um movimento exemplarmente antpoda. No dadasmo, em Duchamp, em Francis Picabia, nos surrealistas, e mesmo na performance potica do grupo que ficou conhecido como Cabaret Voltaire, a arte o ponto de confluncia ltimo e urgente da vida, e o gesto artstico, na medida em que se transforma em obra a traduo e a realizao mesma do ethos do artista em sua prpria natureza, uma natureza que se revela em um instantneo que s pode ser, nem mais nem menos, sagrado. Se muitas vezes se pensou no pop como propaganda, pura e simplesmente, e em Warhol como designer ou agitador cultural e no como artista isso se deve ao fato de que seu trabalho (job, no sentido comercial) o primeiro atentado contra a arte como esttica, e, por conseqncia, da esttica como campo de produo autnomo. Suas gravuras, seus filmes, suas fotos e especialmente seus livros representam um esforo levado a termo no sentido de uma laicizao da obra de arte, que acaba substituindo a esttica por uma tica artstica. A obra passa a funcionar como mais uma das vrias dimenses que caracterizam uma Weltanschauung ou uma perspectiva da realidade, que no propriamente a vida individual do artista, mas seu telos, aquilo que rene tudo sob o mesmo cu: conversas telefnicas, filmes, perucas, gravuras em silk-screen, a voz montona de Andy. Uma certa continuidade, ou antes, um certo convvio igualitrio entre as idias, seja qual for a forma que elas assumam, transfere o sagrado para outro lugar, destri a obra. O ethos passa a constituir o fundamento do artstico, mas no maneira da tradio moderna, que reconduziu esse ethos ao sagrado e, para lanar mo de um jargo que diz muito menos do que pretende, fez da vida uma obra de arte. No preciso lembrar que esse elemento era desde o comeo do sculo, ou antes, desde Beaudelaire, pelo menos, o ncleo conceitual que determinava a obra moderna. Nesse caso, contudo, o ethos do artista como acontece no dandismo ganha seu sentido a partir do domnio relativamente seguro (do ponto de vista do cdigo social e terico) da arte. Podemos rastrear as origens desse acontecimento que foi a incorporao de uma reflexo sobre a arte que teve como conseqncia em alguns casos, como o de Baudelaire, a transformao individual a partir dessa reflexo, ou concomitantemente a ela at a instituio moderna da esttica como domnio de investigao filosfica independente. O artista, seguindo os exemplos fundadores de Goethe, e em seguida de Schiller, aquele que no apenas produz arte, mas tambm aquele que capaz, melhor que nenhum outro terico ou crtico de arte, de questionar seu prprio ofcio. O artista-filsofo que apareceu ao longo do sculo XIX surge a partir do mesmo solo epistemolgico no qual foi possvel a figura do dndi, o maior de todos os moralistas em matria de esttica. O que o trabalho de Warhol parece resgatar uma relao mais antiga, pr-copernicana, entre a atitude e a obra de arte, embora faa isso apenas para radicaliz-la. Nem a vida a obra nem a obra a vida, mas ambas emergem de um posicionamento que as indiferencia, no segundo as regras da arte, mas segundo os princpios dessa concepo de realidade mesma, essa, sim, excntrica e sagrada. Antes da filosofia da arte reclamar seu posto na Alemanha h mais de cento e cinqenta anos, um tradicional cdigo tico j havia sido estabelecido para aqueles que se denominavam perigosamente como artistas. Basta acompanharmos as biografias de Fdias ou de Michelangelo para percebermos que todo um conjunto de anedotas em torno da figura excntrica do artista tem como funo desenhar em profundidade seu papel na sociedade com a qual se relaciona, negativa ou positivamente. O que Vasari nos ensina, assim, que h um paralelo necessrio, ou empiricamente comprovado, entre a obra e a vida do artista. Mas importante assinalar que aqui no h uma duplicao, em nenhum sentido: o esttico no a expresso do ethos do artista (afrescos religiosos foram de fato desenhados por homens de virtude muito pouco eclesistica) e, inversamente, o tico no expresso do esttico (a vida do artista como coleo de suas atitudes e opinies no pode ser explicada por sua obra, muitas vezes estabelecendo com ela uma relao de completa contradio que s a psicanlise, modernamente, pretendeu dar conta, sempre de forma precria). De fato, o que a obra e a vida do artista pr-moderno compartilham essa Weltanschauung que, por no garantir nenhum lugar privilegiado ao esttico, a nica capaz de produzir efetivamente o nivelamento das fronteiras entre vida e arte.Sob um mesmo cdigo tico de indiferenciao, os critrios que determinam o valor de uma obra no podem ser autnomos, eles obedecem ao horizonte de realidade onde a obra vem se colocar: ela vale seu preo de maercado (Warhol como comerciante de arte). O mesmo se aplica vida; seu valor no essencialmente poltico, biolgico ou cultural, mas igualmente mercadolgico da a idia de que um artista s vale aquilo que ele consegue vender, com seu trabalho e sua obra ou com sua imagem e suas atitudes. Tudo se organiza segundo o ndice de publicidade, de exposio social (Warhol como diretor de marketing). A forma de realidade da pop art pblica, ao mesmo tempo obedecendo lgica do superstar e de um comunismo pervertido, j que a essa realidade todos podem e fatalmente vo ascender. A frmula-slogan sobre a fama de quinze minutos que todos devero ter no futuro confirma esse duplo princpio de realidade, individual e comum; o mesmo pode-se dizer da idia que Warhol insistia em repetir e esse o fundamento ideolgico da Factory sobre o fato de que todas as pessoas tm algum talento a ser aproveitado (obra) e do qual podem tirar proveito (vida), possibilitando o acesso a uma forma de realidade ideal (Weltanschauung). No platonismo de Warhol o rei-filsofo deposto pelo poeta beat, pela estrela de cinema, ou, simplesmente, pelo primeiro rosto bonito que lhe aparecer. Afinal, o belo e o bom so um e o mesmo.2. Regimes ideolgicos e regimes de tempo Maliciosamente pode-se dizer que a arte pop reconduz a esttica sua natureza real, mas isso ainda muito vago. O fato que, mesmo que sua auto-proclamada superficialidade possa ter sido uma tomada de posio consciente, e, portanto, formulada segundo certas condies que lhe eram anteriores, dificilmente podemos atribuir um substrato intelectual sob a forma de uma esttica em Warhol, a no ser que o faamos como interpretao ou que consideremos esses princpios como fazendo parte de um domnio mais amplo que o da obra de arte tal como referido tradicionalmente, ou seja: ou a obra de Warhol a obra de seu espectador-leitor, uma esttica pstuma, ou esta esttica no nada seno a configurao provisria e local de princpios de carter instintivo, organizadores do que eu denominei at aqui Weltanschauung. claro que no estaremos nunca apenas de um ou outro lado no territrio que essa Weltanschauung parece determinar; o que torna a arte pop intangvel como obra justamente a indecidibilidade imposta pelo paradoxo segundo o qual, por um lado, sabemos que aquilo que nos apresentado arte (ou pelo menos sabemo-lo agora, depois do aval dos museus, dos catlogos e das teorias crticas), contudo, por outro, no sabemos o que no arte no pop. Nenhuma esttica delimita esse espao; antes, suas condies so puramente pragmticas e provisrias fato que Andy Warhol um artista e poroduz arte, mas o que ele produz no depende de seu gnio subjetivo, mas da transformao (objetiva) de um objeto atravs de certos meios. O artista como figura universal para Warhol todos podem s-lo, potencialmente, ao menos um observador que interfere na realidade segundo princpios intuitivos, cegos, instantneos e imediatos, ele est espreita do tempo em que a arte acontece, e age, produz, coloca-se como artista segundo o que seu campo visual, restrito por uma ideologia propria, lhe permite enxergar. Assim, seu treinamento fsico, como o de um atleta, e no intelectual, sua fora de resistncia, e no diretamente ativa e ns j havamos aprendido com os esticos que essa talvez seja uma das foras mais transformadoras dentro de uma cultura. Andy Warhol um operrio, um profundo conhecedor de mquinas, sua obra depende delas: o olho da camera, e no o seu que registra as cenas de seus filmes ou de seus retratos (a polaride sendo o limite extremo: o instante revelado em segundos, cru e desavisado, a mquina quase sem recursos, sem lugar para hermenutica). Do mesmo modo, em suas gravuras o que fala a tela mesma, sua impreciso ou sua preciso em relao ao objeto que elas suportam como meio, e a escolha das cores e a edio dos detalhes sempre orientadas por um instinto de artificialidade (ideolgico) parece apenas duplicar o carter no natural desse filtro que a mquina (cmera, tela, atitude indiferente). Pr-kantiano, o que seu trabalho revela no so as condies subjetivas da percepo do autor ou do espectador, no trabalha nesse campo, chegando mesmo a ignor-lo. Constri, antes, uma objetividade falsificada e falsificante, pervertendo a relao entre a verdade do artista e da obra, a um s tempo e a criatividade substituindo ambas pela artificialidade. O objeto artstico que resulta de seu trabalho tm algo semelhante ao objeto cientfico do ps-estruturalismo, algo prximo de Derrida ou Foucault, mas afirmar tal coisa de um artista que rejeitava completamente a idia de reflexo intelectual seria, no mnimo, inadequado. Ao insistir que toda sua vida, portanto, toda sua ideologia, se reduzia s superfcies de seus quadros, Warhol tornava rasa cada uma de suas telas, negava tudo que se oferecia a torn-las tranversais, enfim, condenava a esttica. Ao contrrio do que se costuma afirmar de modo freqentemente kitsch, sua vida no foi orientada segundo a idia de estetizao da realidade, ou de uma esttica como ideologia. Trata-se exatamente do contrrio, ela comportava em si uma ideologia com tal amplitude, chegando mesmo a coincidir com ela, que no podia gerar nada alm de uma arte absolutamente sem esttica. Muitos dispositivos funcionaram nesse processo de esvaziamento heurstico e arquitetnico, que , a um s tempo, uma hiperbolizao ideolgica, mas talvez o mais importante entre eles, justamente porque foi o mais explorado por Warhol, o que poderamos definir como anlise gentica do tempo. Boa parte de seus trabalhos mantm com a idia que fazemos de tempo cronolgico uma relao obviamente heterodoxa, e muito se falou de seu carter questionador ou contestador dessa idia, mas nem a inquisio nem a revolta parecem estar adequadas ao universo tico em que eles procuravam se inserir, essencialmente voyeurstico em relao objetividade. fato que seus filmes e suas telas estavam implicados na concepo geral de artificialidade a que me referi antes, mas essa artificialidade era o produto de uma degenerao natural do tempo, e no o resultado da atividade criadora do artista, que, sob essa circunstncia s teria como funo capturar esse acontecimento. Para Warhol um regime no artificial porque ideal (acusao do naturalismo), mas, inversamente, ideal porque artificial (pararealismo), e o tempo ideal da obra de arte, ou do trabalho artstico, se prefirirmos, aquele revelado pelos processos de anlise microlgica do tempo operados polos meios de captura maqunicos, artificiais em relao aos rgos perceptores naturais. Filmar longas cenas onde nenhuma ou quase nenhuma ao se d, filmar cenas cuja ao no apresenta nenhuma excepcionalidade ao que se entende por rotina (tempo cronolgico integrado completamente pelo hbito ao tempo ideolgico), ou, ao contrrio, alterar o nmero de quadros por segundo na projeo dos filmes, multiplicar uma mesma figura exaustivamente: todas essas tcnicas se apropriam de dimenses do tempo como percepo objetiva e as radicalizam at o ponto onde elas se pervertem e se tornam artificiais. Mas nenhum desses procedimentos circunscreve o momento da obra como o de uma epifania no-cronolgica; ao contrrio, eles acentuam em seu artifcio, duas caractersticas gerais do tempo tal como idealizado segundo uma viso de mundo especfica: sua instabilidade ontolgica e seu imediatismo prtico. A primeira fora os limites da idia de obra de arte ao sublinhar sua transitoriedade e sua arbitrariedade, a segunda permite que o artista explore essas duas qualidades naturais de modo artificial. O exemplo do happenning evidencia essas caractersticas. Na arte pop de Warhol o happening e muitas vezes isso parece ter sido compreendido inversamente no a traduo da realidade em sua natureza esttica, prpria ou imprpria; antes, ele o ndice que fora o artista para fora de um domnio que a tradio moderna procurou definir como seu, ndice de desestetizao. O que acontece no acontecimento no nada alm dele mesmo, e de sua forma eventual , e como dispositivo o que ele faz funcionar um procedimento que em certo momento Foucault chamou de prova de venementialization; no importa tanto o contedo inusitado do que se mostra, mas o fato de que esse contedo tenha podido comear e, mais fundamentalmente, terminar, nivelando-o axiomaticamente com o resto da vida. O esforo e valor do happening determinado centrifugamente, e no centripetamente, a afirmao da lgica da dissoluo, e no da convergncia. Essa disposio indica um dos problemas centrais da concepo artstica de Warhol, muito mais ampla que qualquer concepo estritamente esttica. Nesse domnio geral, o evento a lacuna que confirma ao mesmo tempo a fatalidade e a incompletude do tempo. Incontornvel, o tempo cria e destri valores, objetivamente determina o que mainstream e o que no , princpio de fluidez do qual o happenning o signo de apropriao artstica. Mas, ainda assim, sua incompletude o meio pelo qual, nos intervalos, algo pode ser artificialmente inserido, novos objetos e mesmo novos regimes de tempo. A tarefa do artista nesse sentido criar tantos intervalos quanto possveis no fluxo incontornvel, fazer o tempo assumir diferentes sentidos: torn-lo indiferenciado como ao (Empire, filme de oito horas), multiplicado como experincia (as duas telas onde aes simultneas acontecem no filme Chelsea Girls), exaurido como efeito (extenuao narrativa dos dirios, por exemplo, ou pictural das repeties de seus quadros de flores), reversvel como procedimento (reprodutibilidade infinita das telas de serigrafia que se oporiam uma obra nica, inimitvel). Esses regimes artificiais, e, portanto, ideais, do tempo, complemetam sua dimenso epistemolgica, o fato de que ele incontornavelmente instvel, e o fazem segundo uma dimenso que no apenas esttica, mas artstica, e que poderamos chamar de princpio de acmulo ou reteno.

Entre os herdeiros da arte pop talvez o mais legtimo tenha sido Robert Wilson, que tornou claro o sentido do happenning ao sobrepor o tempo da vida tica ao o tempo da vida esttica (KA MOUNTain and GUARDenia Terrace, de 1972, encenada durante sete dias), rasurando, ou quase apagando os limites entre um e outro. A repetio montona das Marylins penduradas na parede, um pouco antes, assinalava essa mesma sobreposio. Warhol , sob esse aspecto, mais clssico que Duchamp. Ao filmar durante trs minutos uma pessoa para o que chamava de screentests ou movong stills, Warhol apenas ligava a cmera e retirava-se, deixando-a agir sozinha, assim como aquele que era retratado estava livre para fazer o que quisesse. Do mesmo modo, filmes como Empire parecem negligenciar completamente a realizao de qualquer percepo que no seja aquela da cmera, uma vez que sua durao impe como desafio a prpria fruio completa do filme como obra, ao no se adequar s suas exigncias fsicas.