antonadia borges - a morte que anima a vida
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“A morte que anima a vida: etnografia dos conflitos em torno de terras para viver e para morrer na África do Sul contemporânea” Antonádia Borges (DAN/UnB) - [email protected]
Os eventos de 2007
Estávamos na sala de jantar da Senhora Mbatha (cerca de 70 anos). Há pouco nós
entrevistávamos o advogado do LEGAL AID OFFICE a respeito dos processos de
restituição de terra. Ele esclarecera que parte considerável dos processos são movidos por
ex-moradores de zonas rurais, compulsoriamente banidos para as locations urbanas nos
anos 60. A Sr. Sibongile era uma dessas pessoas. Vivera até pouco tempo em Madadeni.
Mudara-se para o centro de Newcastle depois que sua filha, tornada juíza de direito,
comprara-lhe uma casa confortável em um bairro de classe média – outrora exclusivo para
brancos.
Mangaliso pensou em Sibongile quando eu lhe pedi ajuda: queria me aproximar das
periferias urbanas na África do Sul, em especial na região de Kwazulu-Natal, que aos meus
olhos parecia menos explorada que os arredores de Cape Town e Johannesburg. Ele, líder
do Landless Peoples Movement (LPM) morara em Madadeni, trabalhara como motorista
de van (em inglês se diz taxi). Seu retorno às casas de barro aonde nascera, ao curral (kraal)
em Ingogo, ocorrera aproximadamente quando se intensificou seu envolvimento com a
luta do LPM (como indica a pesquisa de Marcelo Rosa). Apesar do afastamento pessoal da
vida na cidade, Mangaliso pensara na Senhora Sibongile como a pessoa ideal para me
encaminhar para a vida em Madadeni.
Senhora Sibongile Mbatha
NO CITAR SIN LA DEBIDA AUTORIZACIÓN DEL AUTOR. La difusión de este texto está restringida a su lectura y debate en el marco del Seminario
Permanente del Centro de Antropología Social del Instituto de Desarrollo Económico y Social (IDES)
Ela foi extremamente gentil. Convidou-nos para ir à sua casa. Enquanto comíamos
sanduíches, na hora do almoço, Mangaliso e ela lembravam-se de mortes e enterros. O
assunto surgira a partir do envolvimento particular de cada um dos dois com este tema, ao
longo de uma vida intensamente marcada por morte e por culto aos ancestrais (e isso, não
apenas porque a literatura assim o diz).
Sibongile Mbatha liderava um grupo de restitution claimants que aguardava o dia
em que o governo lhes devolveria a fazenda que lhes fora tomada após o GROUP AREA
ACT, no final dos anos 60. Dentre os membros desse grupo havia um senhor que fora
impedido, após o fim do apartheid, de depositar as lápides sobre o túmulo de seus parentes
mortos. O fazendeiro, dono das terras, que aceitara o enterro, já não permitira mais a
entrada dele e de sua família na área para a realização de funerais e sequer para cerimônias
de cultos aos ancestrais. Os expulsara do local armando uma emboscada, torturando-os
com requintes de crueldade.
Fotos do Sr. Mabaso com as lápides, usadas como evidência pela Sra. Mbatha.
Mais de 10 anos de espera para depositá-las sobre os túmulos
O fazendeiro evitava, como muitos outros, que novas evidências do enraizamento
da população negra fossem colocadas em sua terra. Seu temor justificava-se da seguinte
maneira: os burial sites eram documentos ativos, capazes de determinar o curso de um
processo de restituição de terras (Cf. Peirano). Nos fundos do pátio da casa do Sr. Mabaso
– localizada em uma township chamada Osizweni (em Zulu: um lugar para receber ajuda),
para onde foram deslocados há mais de 40 anos – as lápides resistiam, mais do que o velho
homem, à passagem do tempo.
Sr. Mabaso mostra-nos as lápides, nos fundos do quintal de sua casa na cidade
Já Mangaliso recordava de eventos envolvendo morte e enterros porque se via às
voltas com um ritual muito delicado. Em 1995 sua amada esposa falecera em um acidente
de taxi. Desde então ele passou por diversas rupturas com a vida que levava ao lado da
esposa: deixou de trabalhar em empregos urbanos (ele próprio dirigira taxis), deixou de
morar na location (outro nome dados às townships), mudando-se com as filhas para
Ingogo, a área rural onde seu pai vivera. Ele recordava-se do mal-estar que sentira no dia
do falecimento de sua esposa: eles deveriam ter viajado juntos para Johanesburgo, mas ele
se atrasou. A sua angústia foi crescendo, sem que ele soubesse o motivo. Apenas quando
recebeu um telefonema, avisando da fatídica notícia, pôde dar um nome ao sentimento que
o torturava.
Naquela ocasião, como acontece atualmente em todo o país, após a morte o corpo
aguarda normalmente uma semana (nas casas funerárias especializadas), até a sexta-feira
seguinte ao falecimento, quando começa o velório propriamente dito: a noite de vigília
seguida do enterro no sábado.
No final do ano (2006), um vizinho de Mangaliso, veio lhe dizer que tinha recebido
a esposa dele em sonhos. Nos sonhos ela lhe dizia que o procedimento do enterro e o
rituais posteriores não foram suficientes para conduzi-la de seu local de morte ao túmulo.
Embora seu corpo estivesse junto aos dos ancestrais – apesar de todas as retaliações dos
fazendeiros donos da terra aonde ficam suas casas e curral – sua alma ou espírito vagava.
De alguma forma ela estava ainda – passados mais de dez anos – inquieta. Mangaliso
precisava, portanto, reconduzir, por meio de um ritual preciso, sua esposa ao lugar que lhe
era de direito.
Mangaliso e a fotografia de sua falecida esposa
Sibongile lembrava-se com alegria de sua infância na fazenda de seu pai, quando um
toque específico do sino anunciava o falecimento de algum morador da aldeia. Todos eram
dispensados do trabalho na roça e as crianças não precisavam ir à escola. Um marceneiro
do povoado construía um caixão rústico. Os vizinhos preparavam comida para a família em
luto que, em troca, retribuía oferecendo chá às condolências dos amigos e parentes.
O avô e avó maternos da Sra. Sibongile
Segundo os dois, hoje os funerais tornaram-se um negócio capitalista na África do
Sul. Qualquer um pode perceber a forte presença da morte na vida local. Basta abrir um
jornal e contar o número de anúncios nos classificados oferecendo venda ou aluguel de
tendas e todos os demais apetrechos necessários à realização das cerimônias dos finais de
semana ou ainda as inúmeras ofertas de seguros funerários que apelam - por vezes de
forma mórbida, por vezes de forma divertida – para que as pessoas sejam previdentes, que
não sejam “pegas de surpresa”.
Seção de obituários de um jornal local
Tirinha humorística:
- É o enterro de nosso vizinho amanhã.
- Você poder ir só, se quiser.
- Por quê?
- Ele já era. Obviamente nunca virá ao meu funeral!
Anúncio de seguro funeral
“Não espere que seja tarde demais!”
A justificativa comum para se esperar hoje em dia este tempo de uma semana para
velar e enterrar um defunto diz respeito à importância da presença de amigos e parentes ao
funeral. Todos os que morrem, podem se tornar ancestrais. Assim como o ancestral pode
ter um papel benfazejo na vida dos vivos, o contrário também acontece. Igualmente os
vivos que comparecem ao funeral – levando seus presentes, como cobertores e esteiras
para a família ou contribuindo com algum dinheiro para as despesas – podem ajudar no
percurso post-mortem do falecido. Em outros casos, o mal procedimento dos vivos – seja
por negligência ou por decisão deliberada - resultará em um processo degenerativo que
atinge vivos e mortos, os familiares e os ancestrais. Diante de tão delicadas artimanhas do
destino, todos preferem não ousar e esperar o tempo que for necessário para que o maior
número possível de pessoas compareça aos funerais.
A diáspora interna, que se desenrolou ao longo do período do apartheid, desfez o
mundo idílico do qual se recordava Sibongile. Os parentes e vizinhos já não moram na
mesma aldeia. Já não é possível construir os caixões com as próprias mãos. Já não lhes é
mais permitido enterrar seus parentes no solo aonde viviam – hoje, terras de fazendeiros
brancos, alvo das políticas e lutas por restituição. Entretanto, para Sibongile o pior de tudo
isso é que ao longo da espera – pela chegada dos parentes, pelos recursos para pagar as
despesas funerárias, pela autorização do fazendeiro para deixar que o corpo seja depositado
no mesmo sítio onde jazem os outros ancestrais – as lágrimas secam1.
Após o fim do apartheid, os túmulos transformaram-se em documentos, em índices
da ancestralidade das famílias na região das fazendas de onde foram expulsas; o quê, na
maioria das vezes, indicava também a propriedade de uma terra que lhes foi usurpada. O
acordo tácito entre brancos e negros, que permitia a realização das cerimônias funerárias,
começou a ruir. Os fazendeiros brancos – em especial aqueles filhos dos velhos fazendeiros
- já não mais permitem os enterros ou qualquer outra cerimônia.2 Em torno dessa recusa,
uma série de eventos marca a atuação de movimentos sociais como aquele liderado por
Mangaliso Khubeka – o Landless Peoples Movement.
1 A observação de Sibongile Mbatha diferencia-se totalmente do julgamento que Scheper-Hughes (1992) faz da morte sem lamento no nordeste brasileiro. Para a antropóloga, a rotinização da morte teria tornado as mães sobretudo insensíveis à perda de suas crianças. A Sra. Mbatha sugere que o tempo transcorrido entre a morte e o enterro da pessoa falecida não permite que o luto seja expresso em situação cerimonial em concomitância com os sentimentos pessoais – de perda, de sofrimento – que emergem em cada individuo quando da notícia da morte. Haveria, em seu olhar, um descompasso entre o ritmo social vivido pessoalmente e o ritmo imposto pelo negócio da morte na AFS contemporânea. Para a Sra. Mbatha os sujeitos foram usurpados, destituídos de suas lágrimas. Ao contrário de Erik Bähre (2007), ela não os encara como frios calculistas, dispostos preponderantemente a fazer dinheiro à custa dos mortos e de sua família. É importante ainda notar que, conforme o relato que segue, nos tempos em que viviam na fazenda, antes da remoção para a location, as pessoas conhecidas de Sra. Mbatha apoiavam-se mutuamente no instante mesmo da morte. Hoje, com a diáspora interna provocada pelo apartheid, inúmeras variáveis concorrem para que os parentes de um morto consigam se reunir para os serviços funerários. Durante esse tempo de espera, é possível conjecturar, os sujeitos sofrem as conseqüências, os abalos da morte em um ambiente menos povoado por pares solidários. Em suma, fica-se bastante sozinho até o momento em que ocorre a reunião de todos os que querem, precisam, podem celebrar o velório. Esse intervalo de tempo, com a possibilidade de introspecção talvez responda em parte pelo fenômeno descrito por Sra. Mbatha como um “secar de lágrimas”. Esta minha última observação deriva de uma inspiração alcançada quando da leitura de Paul Radin sobre os funerais Winnebago. 2 Aqui faço um paralelo com caso sul-africano com aquele da África Ocidental (caso dos Manjaco, estudados por Gable, 2006). Lá, mesmo que sem os corpos (que ficam nos locais para onde aconteceu a migração, como Paris ou Lisboa), os rituais funerários acontecem. Para o autor, a morte, ou melhor, o enterrro, é o momento da repatriação daqueles que partiram (:390). Já no caso sul-africano, cada funeral impedido significa o eterno desterro.
Mangaliso dedicou-se ao movimento com afinco após a morte de sua esposa.
Entretanto, apesar de todo seu envolvimento e feitos heróicos, não se considerava
satisfeito. Havia problemas em sua vida – sobretudo sob a forma de inveja – que o
atormentavam. Naqueles dias, ao localizar a fonte de sua intranqüilidade na falta de
quietude vivida pelo espírito de sua esposa, Mangaliso parecia mais esperançoso: se ela
descansasse em paz, talvez ele também voltasse a ter alívio para os seus males. Por isso
mobilizou todos os recursos possíveis para o ritual: pediu emprestado o carro de um primo
próspero para ir ao local do enterro; abateu uma cabra, em suma, cumpriu suas obrigações.
Uma das ações de maior repercussão midiática do LPM ocorrera há uns poucos
anos. Naquela altura os membros do movimento ajudaram a restituir o corpo de uma
jovem ao local de enterro de seus ancestrais. A exumação do cadáver de Gertrude Zondi
do cemitério na township e a sua recondução às tumbas tradicionais foi uma vitória do
movimento contra a recusa do fazendeiro.
Exumação de Gertrude Zondi
Posterior enterro de Gertrude Zondi
A política dos funerais é de extrema importância no contexto dos land affairs sul-
africanos. Para esses eventos convergem elementos oriundos de espaços sociais distintos
(e.g. bruxaria no sentido lato, HIV/AIDS, dispersão das famílias, o culto de ancestrais etc.),
cuja combinação inaudita pode configurar situações de profundas e diversas emoções,
anseios e performances.
Faço um parêntese para enfatizar que nós fomos a enterros em praticamente todos
os sábados ao longo de nosso trabalho de campo.
Obviamente, nem todos os enterros que acontecem aos sábados, transformam-se
em palcos de manifestações políticas. Por essa razão farei uma breve exposição de três
casos distintos, por nós presenciados: o do Sr. Khubeka, da jovem Doris e da jovem
Nomusa.
O enterro de Khubeka
Khubeka era um primo de Mangaliso que também tinha em torno de cinqüenta
anos. Viviam próximos, na cidade rural de Ingogo. Diferentemente de Mangaliso, seu
primo continuara no negócio do taxi. Ao contrário daqueles que aguardam pelo desenrolar
dos processos de restituição de terras, como Sibongile, o falecido Khubeka conseguira
comprar do fazendeiro branco as terras que um dia pertenceram à sua família. Na fazenda
vivia sua primeira esposa. Era ali que ele criava seu gado, que víamos ser tangido para lá e
para cá durante o seu funeral.
Aquele fora sem dúvida o enterro mais suntuoso que presenciamos. A família
contratara uma empresa especializada chamada Doves. Havia duas tendas montadas. Uma
capaz de abrigar 100 pessoas, onde ocorrera a vigília na noite anterior. Outra para mais de
1000 pessoas, onde aconteceram as homenagens ao corpo presente. Estava por lá gente de
toda procedência. O espectro dos tipos que prestavam condolências dava conta da
amplidão de relações de Khubeka em vida e ofereciam uma espécie de mural do cotidiano
que conhecíamos na região de Kwazulu-Natal: os amigos da cooperativa de taxi, o
fazendeiro branco que lhe vendera a terra e depois viera a lhe pedir um empréstimo para se
livrar da bancarrota, os parentes da roça, os parentes da cidade, a esposa da roça, as esposas
mais jovens da cidade, os carros modernos e luxuosos, as bicicletas enferrujadas e os
calçados gastos sujos da poeira das estradas. Os discursos, como costumam ser, enalteciam
as qualidades daquele homem que se fora de forma tão repentina – após ter sofrido um
ataque cardíaco. Os discursos oficiais das autoridades das igrejas presentes (independentes)
eram do mesmo teor.
Mangaliso trabalhou incessantemente neste dia como Mestre de Cerimônias. Ele,
que costuma ser auxiliado em tarefas logísticas por outros companheiros do movimento,
via-se às voltas com toda sorte de detalhes e problemas prosaicos: desde as cadeiras e os
lugares corretos para acomodar os que chegavam ao que se ia comer após o enterro.
Repetindo e pensando sobre a teoria da Senhora Sibongile, toda aquela pompa não
garantiu que sequer uma lágrima fosse derramada. A não ser as de Mangaliso. Ele repetira
em seu discurso de despedida a mesma cena emocionada que costumava lhe arrebatar nos
enterros promovidos com a intervenção política do LPM. As suas lágrimas, que até então
assumíramos como exclusivamente políticas, tinham adquirido um sentido a mais.
O enterro de Doris
Doris Dlamini era uma jovem de quase trinta anos, solteira, mãe de uma criança.
Ela trabalhara em uma granja de frangos até o momento em que sucumbiu à “doença”
(alguns de nossos amigos, em suas traduções, aventavam a possibilidade de “a doença” ser
decorrente de HIV/AIDS, deixando claro que naquele momento ninguém declarava
publicamente este tipo de apreciação).
O caso de Doris mobilizava os sentimentos coletivos porque o fazendeiro, dono
das terras aonde ela vivia com seus pais, proibira o seu enterro. Embora os pais de Doris
trabalhassem ainda hoje para o fazendeiro, o dono das terras havia se manifestado
contrário ao funeral em seus domínios.
Uma, das diversas matérias jornalísticas, sobre o caso Doris
O conflito se passava em Lions River, uma localidade próxima à cidade na qual o
LPM tem sua principal base de atuação e também seu escritório central. O enterro de Doris
transformou-se rapidamente em uma bandeira do movimento. Os apoiadores – militantes e
funcionário da Associaton for Rural Advancement (AFRA), ONG que oferece suporte
logístico ao movimento - encabeçaram uma discussão pública, com debates na rádio local
contra o Departamento de Land Affairs. Nos jornais, diariamente, publicavam-se notícias
sobre o desenrolar das negociações. A situação era bastante tensa e, após um acordo
firmado em bases não muito sólidas com o governo local, foi garantido o enterro de
Doris3. Desconfiados e temerosos, os membros do LPM decidiram convocar seus
3 Por bases não muito sólidas deve-se entender uma certa desconfiança que andava de mãos dadas com uma série de rumores: sobre a possibilidade de o governo não garantir o enterro, sobre a chance de o fazendeiro se lançar com milícias privadas contra os manifestantes etc.
militantes para comparecerem ao enterro. Dizia-se àquela altura que o enterro aconteceria,
mesmo que à força.
No dia do enterro, um sábado, o clima era de euforia e tensão. Os carros
precisavam passar em frente à sede da fazenda, cruzar uma ponte e atravessar uma estrada
em péssimas condições para chegar ao homestead da familia Dlamini. Em frente às
choupanas de barro, muitos carros da polícia indicavam o espírito belicoso da negociação
que se travara até aquele ponto. Diversos veículos de outros órgãos oficiais do governo
também sugeriam a dimensão político-governamental para a qual a morte de Doris se
encaminhara.
Uma tenda – capaz de abrigar 100 pessoas – estava armada ao lado das casas de
barro. Os homens, longo à entrada, cavavam a sepultura. Escutava-se o canto das mulheres
que, dentro da casa redonda, velavam o corpo de Doris. Somei-me a essas mulheres,
enquanto Marcelo Rosa observava a movimentação dos que ficaram no lado de fora, em
sua maioria, membros do LPM. De dentro da casa redonda, o som vindo do megafone,
com palavras de ordem e cantos políticos dos tempos de “struggle”, isto é, dos tempos das
manifestações contra o apartheid, tornavam a situação ainda mais pungente.
Depois que todos os líderes religiosos adentraram a casa redonda, as últimas
palavras sagradas foram lidas. O caixão foi encaminhado da casa redonda para a casa aonde
Doris vivia: era sua despedida. Logo em seguida, Doris foi depositada no interior da grande
tenda. Atrás do caixão, uma mesa dava lugar às autoridades. O próprio Ministro regional
dos Land Affairs estava presente, indicando a importância capital daquele evento.
Bandeiras do LPM e do MST (do Brasil) foram dispostas atrás das autoridades políticas e
religiosas4. Os depoimentos de louvor à falecida eram intercalados por cantos religiosos
entoados preponderantemente pelas mulheres das irmandades e igrejas presentes. Aos
poucos, os líderes políticos tomavam a palavra. Era notável a diferença de tom entre uma e
outra fala, entre o depoimento familiar dos que conheciam Doris e daqueles que
transformaram a jovem morta em um símbolo da luta política contemporânea na AFS.
4 As bandeiras do Brasil remetiam a um intercâmbio entre os movimentos dos dois países. Em ao menos três ocasiões, militantes do MST foram para a África do Sul, compatilhar sua experiência com os companheiros locais. Igualmente, membros do LPM estiveram no Brasil, sobretudo nas diversas edições do FSM (Fórum Social Mundial) em Porto Alegre.
Mangaliso: lágrimas para Doris
Encerrados os confrontos, o corpo de Doris foi conduzido em cortejo para o lugar
de seu sepultamento. À beira da sepultura, mais uma vez, misturavam-se as vozes de
protesto com as palavras ora amenas ora efusivas dos líderes religiosos que zelavam pela
condução de Doris para junto de seus ancestrais.
Enterro de Doris Dlamini, ocorrido em Lions River
Quando a sepultura já estava coberta, começou a função do almoço. Alguns
comiam os alimentos preparados pelas mulheres para o público comum. Outros, em sua
maioria homens da família, foram agraciados com pedaços de carne de gado assada – carne
vinda do sacrifico necessário à ocasião.
Os frutos políticos do enterro foram colhidos ainda na semana seguinte. Um dos
jornalistas presentes publicou uma matéria dizendo que os manifestantes do LPM
conclamavam a multidão para diversos gritos beligerantes – dentre esses: “Viva Mugabe!
Viva!” e “morte ao fazendeiro”, “fazendeiros são cães”. A ONG que orienta as ações do
movimento e administra uma considerável soma de recursos financeiros ficou apreensiva
com a notícia, publicando na imprensa uma nota de esclarecimento. Os companheiros que
entoaram os cantos de guerra foram devidamente punidos por seus feitos estranhos ao
espírito de conciliação que se tenta construir à força na AFS, desde o fim do apartheid;
alguns chegando a perder os seus empregos.
O enterro de Nomusa
Embora o enterro de Doris tenha reanimado o espírito das lutas políticas dentro do
LPM, a repercussão negativa da beligerância dos ativistas gerou uma espécie de cisão no
grupo.
Nomusa faleceu neste período. Ela era igualmente jovem, solteira, mãe de uma
menina de 10 anos ou menos. Nomusa trabalhava como agente comunitária de saúde e
deixou seu trabalho quando “a doença” tirou-lhe todas as forças. A jovem trabalhava em
uma região de plantation de cana-de-açúcar, notória pelos abusos cometidos pelos
fazendeiros locais contra os trabalhadores negros. Ela vivia com seus pais em uma dessas
fazendas. Todos os membros de sua família trabalhavam nas lavouras de cana, à exceção
dela. Por essa razão, o fazendeiro não permitiu que o corpo de Nomusa fosse enterrado em
seus domínios.
O caso assemelhava-se muito ao de Doris. No entanto, sem o envolvimento ativo
dos empregados da ONG (que movimentaram a imprensa, que geraram debates com os
líderes do governo), os militantes do movimento ficaram abandonados à própria sorte.
Vela, nosso amigo, morador da região e líder jovem do movimento (diga-se de
passagem, a partir do argumento de Marcelo Rosa, um líder jovem com mais de 35 anos),
viu-se boicotado. Todos os seus pedidos de ajuda foram negados. Não havia recursos para
o enterro, lhe diziam na ONG. Sequer camisetas vermelhas, armazenadas na sede da
AFRA, lhe foram doadas para vestir as pessoas que comparecessem ao enterro.
Vela não se deixou esmorecer pelos empecilhos que surgiam de todos os lados.
Conseguiu reunir o dinheiro necessário para alugar uma van que serviria para transportar
alguns companheiros vindos de longe. A família encarregou-se do aluguel da tenda, da
comida para todos – no dia da vigília e no dia do enterro. Vela conseguiu ainda ter com a
oficial do departamento de land affairs e garantir o direito de enterrar Nomusa a despeito
das ameaças feitas pelo fazendeiro.
Ainda assim, com tudo orquestrado, Vela estava apreensivo: de que adiantava
tamanha mobilização se aquele enterro não teria qualquer repercussão? Se aquele enterro
não se transformaria em mais uma das bandeiras de luta do LPM? Para Vela, a
oportunidade de angariar a simpatia e o engajamento de sua vizinhança estava sendo
desperdiçada. Os moradores da região há muito desconfiavam da atuação do movimento,
inquirindo-o sempre: “o que há de tão especial com vocês do LPM, que vão a tantos
encontros, viajam para lá e para cá e nunca trazem qualquer benefício para a nossa região?”.
Nós quando chegamos, não vimos nenhum vestígio de que um enterro aconteceria
por ali. Mesmo Mangaliso ficou desolado com a situação. Vela estava no meio da mata,
cavando junto com os outros homens a cova onde Nomusa seria enterrada. O fazendeiro
circulava com sua 4X4, procurando amedrontá-los. Meia dúzia de mulheres se somava à
mãe em luto, sob a tenda pequenina, ao lado do caixão de Nomusa. Vela havia estendido
uma bandeira do LPM na lona da tenda, próxima ao caixão.
Thandi, a mestre de cerimônias, aguardava-nos quando chegamos. Vestida com seu
uniforme de trabalho na lavoura, em breve ela passaria por uma transformação em suas
vestes e em sua voz: entoando cantos e conclamando os presentes, que se fizeram muitos
ao longo do dia, a se despedirem de Nomusa com palavras amigas.
Mangaliso perguntou-me o que fazer com as bandeiras do movimento que
trouxera. Sentia-se constrangido. Sugeri a ele que as estendesse no varal das roupas: uma
bandeira do MST e outra do movimento camponês do Moçambique se somavam a do
LPM.
Mangaliso: lágrimas para Nomusa
Aos poucos, talvez mais de cem pessoas tenham aparecido. No meio delas, as
bandeiras adquiriram uma força impressionante. Sendo empunhadas pelas jovens, ao longo
da plantação de cana-de-açúcar, em direção à matinha, aonde Nomusa descansaria, junto
dos seus.
Em nosso retorno fomos brindados com almoço. Pela primeira vez fomos servidos
com a carne do sacrifício, com pão tradicional, com a refeição normal (legumes diferentes,
picadinhos; carne picadinha com um tempero que lembra curry, saladinha de maionese e
arroz colorido com curcuma – tudo picadinho, para se comer com as mãos), com
sobremesa e, inclusive, com cerveja.
Vela estava radiante. Mangaliso, surpreso. Para os dois, sobretudo para o último,
que já tinha visto de tudo nesta vida, a luta (struggle) transformara-se em uma seqüência de
eventos grandiosos, intercaladas por momentos ordinários, aos quais já não davam mais
tanta importância.
Quando chegamos ao Brasil, recebemos um e-mail seu, dizendo que a comunidade
tinha se animado com aquele feito – ao contrário do que todos nós supúnhamos, mesmo
sem mídia, mesmo sem camisetas, aquele enterro teve sua repercussão. Quando saímos do
enterro, Thandi nos disse que a polícia estivera ali, com a intenção de reprimi-los, sob
ordem do fazendeiro. Os oficiais, ao ouvirem que o LPM estava por ali, deram marcha à ré.
Teriam dito: “com esses caras, nós não nos metemos”. O LPM era mais que os dois líderes
ali presentes, o LPM estava na cabeça de muita gente – inclusive na dos policiais. Naquele
dia não fomos somente nós – os antropólogos – que (re-)descobríamos a importância dos
mortos em nossas vidas.
Esteiras, Cobertores, Cantos e Bandeiras: lições do enterro de Nomusa
Os eventos de 2008
Quando voltamos para mais uma temporada de trabalho de campo na África do
Sul, no verão de 2008, nos deparamos com um documento que trazia estampada uma de
nossas fotografias, feita no ano anterior, durante o enterro de Doris em Lions River –
quando ações orquestradas pelo LPM e AFRA levaram o Estado a garantir que uma jovem
negra fosse enterrada nas terras de um fazendeiro branco, na qual seus pais trabalham e
vivem.
A publicação – uma espécie de dobradura – trazia ainda uma outra história que nos
era muito cara. Nossa amiga Sibongile Mbatha narrava sua incessante e até agora inócua
luta por reaver as terras que foram usurpadas de sua família nos anos 60.
O funeral e a luta da Sra. Mbatha eram dois dos principais eventos que haviam
marcado nossa pesquisa no ano anterior. Nos dois casos, nossos amigos se opunham a
fazendeiros brancos, tendo o Estado como árbitro da contenda. Dava-nos certo alívio
constatar que estávamos de fato discutindo lugares-eventos que eram de suma importância
também para nossos anfitriões. Ao mesmo tempo, entretanto, sentíamos certa apreensão
ao perceber que não aconteceram, ao longo de 2007, outras mobilizações de igual teor.
Esta primeira impressão não demorou a se desfazer. Thabo Manyathi, nosso amigo
que trabalha para a AFRA, convidou-nos para uma conversa que uma deputada (Barbara
Thomson) teria com a comunidade, em Dannhauser. Ao explicar-nos o objetivo da
discussão, nosso amigo comentou com ironia que ela iria até lá para “descobrir o que já
sabia” a respeito dos embates entre fazendeiros brancos e farm dwellers negros na região.
Este encontro transcorreu de maneira similar a muitos outros que acompanhamos:
uma mesa composta por autoridades se colocou a frente de um pequeno auditório. Os
membros da comunidade dirigiam à deputada (ANC) e à prefeita (IFP) seus comentários e
reivindicações.i Elas e outros políticos locais respondiam às questões de forma evasiva,
tentando contemporizar e afirmando que, como membros do parlamento ou como
governantes, precisavam governar para todos, ou seja, não podiam assumir explicitamente
uma militância contrária aos fazendeiros brancos. Para desespero dos presentes, foi
levantada a hipótese de se fazer um outro encontro, conclamando os fazendeiros brancos e
os policiais. Rapidamente os membros da comunidade conseguiram deixar claro o quanto
temiam as represálias e a violência da polícia – controlada por policiais brancos - e dos
“jagunços” dos fazendeiros (Mapogo).
Os membros da comunidade narravam casos de toda sorte:
[...] fazendeiros que implantavam caçadas em suas fazendas (game farms),
sujeitando os moradores ao ataque de animais selvagens; represálias dos fazendeiros sobre
o pequeno espaço ocupado pelos farm dwellers, como o seqüestro do gado, o
envenenamento do pasto ou dos cães, corte da fonte de água, bloqueio de acesso aos
atalhos que levam para fora das fazendas e, por causa disso, crianças que deixam de ir à
escola; proibição de visitas; proibição de reparos nas casas danificadas com o passar do
tempo etc..
Todos os casos ressoavam em nossas cabeças e traziam à nossa frente diversas
situações de igual teor, vividas por outras pessoas que conhecêramos.
Havia, entretanto, um grupo um pouco maior que se destacou nesse encontro. Eles
traziam à tona o caso de um falecido membro de sua família – Senhor Khubeka. Este
homem falecera quando visitava familiares seus em uma township próxima a Bergville.
Seus parentes, moradores de uma fazenda em Normandien, gostariam que ele fosse
enterrado junto a outros parentes, no mesmo graveyard. O fazendeiro branco não permitira
o enterro, justificando que o homem morto já não mais trabalhava na fazenda. A família do
falecido acreditava que era um direito do morto ser enterrado na fazenda do proprietário
branco porque seu parente havia trabalhado naquela fazenda por mais de 12 anos no
passado. Enquanto a disputa transcorria no Tribunal, o corpo do falecido estava
depositado em um “mortuary”. As pessoas estavam preocupadas com o gasto e também –
um tema recorrente naquele verão – com a degradação do cadáver, devido aos cortes de luz
vividos em todo o país. Nas palavras dos familiares, que reclamavam para a deputada, o
fazendeiro branco os estava impedindo de retirar o corpo do mortuary, temendo que a
família fizesse um enterro à força. A deputada – parecendo ingenuamente bem
intencionada – perguntou-lhes se eles tinham ido até a delegacia de polícia, denunciar tais
abusos. Os homens responderam-lhe prontamente que os policiais em posições de
comando são brancos, proprietários de terras na região. Ela, lamentava, dizendo ter
tomado ciência do caso apenas naquele momento.
Uma das lideranças do LPM da cidade (Dannhauser) tomou a palavra e reagiu às
tentativas de conciliação propostas pelos políticos da mesa. Para ele, o enterro seria feito de
qualquer jeito, mesmo que à força. Sipho Khumalo não se preocupava com as ameaças de
morte. Já se considerava morto, vivendo sob ameaça constante dos brancos, sem ter
mesmo direito à água. O burburinho tomou conta da sala. Todos queriam falar. Depois de
ouvir um pouco mais, a deputada fez um telefonema para o ministro local (Department of
Land Affairs). As mais de 50 pessoas que estavam presentes ficaram em absoluto silêncio
para ouvir a conversa entre a deputada e o ministro, transmitida pelo recurso de viva-voz
do telefone celular. O ministro usou de meios diversos para postergar a discussão. De
acordo com a conversa, os casos de conflito acerca de enterros de trabalhadores negros em
fazendas de brancos iam para a justiça e era preciso esperar as sentenças. Conflitos como
aquele – acerca do enterro do Senhor Khubeka, não diziam respeito a um crime. Não era
possível “tomar as leis em benefício próprio” (take the laws in our/in your own hand).ii
Desamparados diante de leis formuladas em uma língua e linguagem que não dominavam,
os homens e mulheres presentes naquele encontro lastimavam que o governo os deixasse
sem sombra para descansar.
No final daquela manhã, o rumor que se espalhara dizia que, a despeito da decisão
do magistrado (juiz), o enterro aconteceria ainda naquela semana, nem que fosse à força.
Estávamos em um sábado e a previsão geral era de que a sentença deveria sair na segunda-
feira e que portanto o enterro provavelmente aconteceria na terça-feira.
*
Infelizmente, a sentença do juiz não foi favorável à família dos farm dwellers.
Abordados com questões em inglês, alguns dos depoentes se dirigiram aos seus familiares
presentes na corte, pedindo ajuda para responderem (em isiZulu) às perguntas feitas pelo
juiz. Esse comportamento foi considerado na sentença como pouco confiável. O
magistrado afirmava em seu texto que essa atitude dos parentes do morto na corte deixava
margem a dúvidas acerca da veracidade de suas declarações.
O Ato de Extensão da Segurança de Posse (ESTA – extension of security of tenure
act, 62 de 1997) diz explicitamente (5.5) que o “dono da terra pode permitir que os
occupiers enterrem pessoas na sua terra, mas o ESTA não dá aos occupiers o direito de
fazê-lo.” No caso em questão, assim como naquele ocorrido em Lions River, quando da
recusa do fazendeiro em permitir o enterro, um processo jurídico pode ser instaurado para
decidir se as razões do fazendeiro são pertinentes ou não.
*
Sem o direito de enterrar o Senhor Khubeka em Normandien, seus familiares
marcaram o funeral para o sábado daquela semana, em uma fazenda localizada entre
Ladysmith e Glencoe. Fomos instruídos por Sipho Khumalo sobre como chegar até lá. A
fazenda era da própria família Khubeka (de uma parte da família extensa) e havia sido uma
das primeiras (por volta de 1995) a ser restituída aos antigos proprietários negros, após o
fim do apartheid. Naquela terra sem brancos, tudo transcorreria em paz. Apesar da derrota
sofrida, alguns membros do LPM da região (de Dannhauser e New Castle), estavam
presentes, já sentados sob a tenda quando lá chegamos, no sábado que se seguiu à reunião
com a deputada.
Éramos, como de praxe, os únicos brancos presentes. Sentamos junto aos
membros do LPM, cumprimentando aqueles que conhecíamos. Havia apenas um homem
em meio às mulheres do movimento: Sipho. Ele foi aos poucos nos apresentando à família
do Senhor Khubeka: aos homens, quando esses haviam acabado de cavar a sepultura. Ao
redor do futuro túmulo, alguns imitavam a si próprios, fingindo estarem cavando, para
aparecerem nas fotografias. As mulheres estavam ao redor de uma fogueira, cozinhando
para os convidados que ali estavam e para os que ainda chegariam. Nos funerais, as
mulheres costumam ter uma postura extremamente recatada e praticamente não trocaram
olhares conosco, enquanto os homens nos fizeram poucas perguntas sobre a situação dos
farm dwellers no Brasil, um tema sempre difícil de abordar. Sipho traduzia as palavras do
Senhor mais velho, irmão do falecido Khubeka: we are under pressure. Ele também se
referia à distância que separaria o Senhor Khubeka do local aonde deveria ter sido
enterrado. Sipho traduzia as nossas palavras aos homens ao redor da cova: eles vão
escrever Iripoti (report) sobre a situação dos sem terra na África do Sul.
Enquanto aguardávamos o início da cerimônia, via-se que as mulheres da família
estavam dentro da casa redonda, velando o morto. As pessoas que chegavam eram
facilmente percebidas, pois o conjunto de casas ficava no alto de uma colina, de onde se
avistava a estrada de acesso. Depois de alguns membros da AFRA, além dos vizinhos,
chegou um outro grupo de militantes do LPM, mais jovens, vestindo as indefectíveis
camisetas vermelhas. Eram as camisetas que nos indicavam quem dentre os presentes era
do movimento. Dois homens vestidos de terno chamaram nossa atenção assim que
chegaram: eram os pastores/padres que conduziriam parte do ritual.
Fazia calor sob a tenda e muitos de nós estávamos do lado de fora, conversando
enquanto aguardávamos o início da cerimônia. Um carro e uma pick-up subiram pela
estrada de terra, chegando muito perto da tenda. Do carro desceram uma Senhora e alguns
jovens. Na pick-up estava o caixão. Naquele momento, percebemos a força de nosso
hábito, contrariando todas as evidências que tínhamos para perceber que o corpo do
Senhor Khubeka viria obviamente do mortuary, depois de mais de um mês de conflitos com
o fazendeiro.
Seu irmão tomou um ramo de ervas (Impepho) e um balde com água e aspergiu o
caminho que o caixão percorreria, da porta traseira da caminhonete, passando pela tenda,
até o interior da casa redonda. Chamava-nos atenção o fato de não haver cantos naquele
dia. Era possível associar o silêncio à ausência dos fiéis das Igrejas Independentes (Zion,
Shebe, Ethiopian e outras) que costumavam entoar hinos de louvor nas cerimônias em que
estivemos anteriormente. Quando o caixão foi retirado do carro, dois jovens encetaram o
cortejo, conduzindo duas cabras que seguiam à frente do Senhor (com quem faláramos à
beira do túmulo e que aspergira o caminho) e da Senhora que acabara de chegar no outro
carro que acompanhava a pick-up. O senhor sussurava uma espécie de ladainha inaudível.
Quando as cabras adentraram a casa redonda, seguidas do cortejo e do caixão, algumas
mulheres de dentro da casa redonda lançaram murmúrios e prantos. Do lado de fora
ouvíamos os louvores pronunciados pela família. Os pastores esperavam no lugar que lhes
fora destacado sob a tenda. Já havíamos percebido certo mal-estar a respeito do tempo que
os dois homens tinham para permanecer na cerimônia, por algum motivo, dava-se a
entender que eles não poderiam se demorar. E, só depois desses rumores, percebemos que
sua advertência se relacionava à tardia chegada do caixão.
Estávamos preparados para nos dirigirmos ao interior da tenda quando notamos
um carro de polícia que se aproximava. A cerimônia foi interrompida. Os homens saíram
da casa redonda para falar com os policiais. Ao seu lado se posicionaram os membros do
LPM. Os policiais disseram que haviam ido até a fazenda em Normandien, pois teriam
ficado sabendo que o enterro iria acontecer a despeito da decisão judicial. Chegando lá
souberam do novo local e teriam vindo até ali para se certificarem de que estava tudo sob
controle. Os policiais pareceram satisfeitos com o que viram e foram embora.
Imediatamente, os homens da família trouxeram para a entrada da tenda as cabras
que há pouco haviam passado por ali. Divididos em dois grupos, sacrificaram as cabras. O
primeiro, de homens um pouco mais velhos, realizou a tarefa com destreza. Neste
momento, se dirigiram para nós, dizendo: Branco! Fotografe!iii Era a primeira vez que
assistíamos a um sacrifício. O segundo grupo, de homens jovens, se debateu com o
complexo procedimento e demorou um pouco mais a retirar a pele, os chifres, separar as
partes do corpo do animal, o sangue e as víscerasiv. Assim que o sacrifício terminou, fomos
chamados a entrar na tenda, para acompanhar as orações de despedida.
A memória viva dos enterros que acompanháramos em 2007 diferia absolutamente
da seqüência de atos que se descortinava à nossa frente. Estivéramos em enterros que
celebravam a vitória dos farm dwellers sobre os fazendeiros brancos. A longa espera da
família Khubeka não tivera o mesmo desfecho. Nos casos anteriores, o apoio do governo à
causa das famílias trabalhadoras, apoiadas pelo LPM, transformou os funerais em cenários
de inversão das condições de vida que observávamos cotidianamente nas fazendas.
Durante os funerais, a família dos mortos, entoavam cantos, palavras de ordem e
expressões laudatórias que remetiam a uma parcial conquista do direito à terra, a terra dos
graveyards.
Comparando aquele dia com os anteriores, podíamos perceber uma presença
distinta do Estado nas diversas situações. Por um lado, o enterro transcorria em uma terra
que lhes havia sido restituída. Por outro, a sentença contrária ao desejo da família (de
enterrar o Senhor Khubeka na fazenda do proprietário branco, em Normandien) e a
presença da polícia, mostravam uma outra faceta do Estado, que protegia a propriedade
dos brancos. Naquela reunião com a deputada Thomson, em Dannhauser, os parentes do
Senhor Khubeka se perguntavam, perplexos, quais seriam as razões para que o fazendeiro
branco não permitisse o enterro. Em sua opinião, “um morto não tira nada da terra”.
Provavelmente, os motivos deste fazendeiro não diferiam muito daqueles dos outros que se
viram obrigados a acatar a pressão das famílias de trabalhadores negros, assentindo com
enterros em suas fazendas. Os burial sites “desvalorizam” a propriedade. O atual ou um
eventual novo comprador da terra são legalmente obrigados a permitir que os túmulos
sejam visitados, estabelecendo as “condições razoáveis” para tais visitas. Para os
fazendeiros, os burial sites representam um território perturbador no interior de suas
propriedades. Um território que traz consigo pessoas das quais os fazendeiros tentam a
todo o custo se livrar. Pessoas vivas e pessoas mortas.
Se anteriormente havíamos percebido – nas negociações em torno do enterro de
Doris, sobretudo - o Estado lidando com vivos e mortos, agora podemos reconhecer que
os ancestrais (Amadlozi) não são objeto de preocupação apenas de trabalhadores negros.
Em outras situações havíamos nos deparado com filhos de fazendeiros ou novos
compradores de fazenda que lidavam de modo violento com o convívio rotineiro com os
farm dwellers. A violência privada tinha por objetivo – em outras situações que
presenciamos – acabar com laços pessoais que existiam durante o período do apartheid,
quando os negros trabalhavam basicamente em troca de um lugar para morar. Agora, em
muitos casos, as relações de trabalho (escravo ou assalariado) já não mais existiam. Os farm
dwellers que ainda residiam nas fazendas eram remanescentes do passado que aguardavam
por uma inscrição em um mundo futuro. Inscrição essa que poderia ser o despejo
(eviction) ou a restituição.
O enterro do Senhor Khubeka seguia em um ritmo acelerado. Os pastores tinham
hora marcada para ir embora. Mangaliso, líder do LPM que costumava discursar de modo
pungente, não comparecera (por conta de conflitos com outros membros do movimento e
também com a ONG) naquele funeral. Os discursos breves e sem maiores comoções
deram lugar a uma curta procissão até o local da cova, praticamente ao pé das casas.
Homens da família, ao redor da cova, preparavam a sepultura: troncos, caixão, esteira,
cobertor, toras de madeira. Observando a cena, pudemos perceber que muitos carros de
polícia (creio que seis, ao todo) se aproximaram do local. As pessoas que ali estavam,
voltadas para a sepultura, demoraram um pouco a perceber a chegada dos policiais. A
atenção dada àquela visita indesejada não perturbou a seqüência da cerimônia. Ninguém
saiu de perto da cova. Os pastores entoaram palavras de despedida e lançaram o primeiro
punhado de terra sobre a cova. Logo em seguida, os homens da família, seguidos das
mulheres, deitaram terra na cova. Os mais jovens aceleravam o trabalho com a ajuda de
pás. Neste momento um coro se fez: a pequena multidão presente começou a entoar
cantos religiosos e, repentinamente, cantos e palavras de ordem comuns em manifestações
políticas se fizeram presentes: Abaixo a Polícia! Abaixo os fazendeiros brancos! Eram
alguns dos gritos que se ouvia ao final de cada música de protesto. Quando a cova
terminou de ser coberta e ornada com pedras e tufos de grama, todos se afastaram
lentamente, parando no caminho e lavando suas mãos e ferramentas (no caso dos homens),
antes de se dirigirem à tenda para a refeição. Apenas o irmão do Senhor Khubeka ficou ao
lado do túmulo. Assim que ele se aproximou dos demais homens, um grupo se destacou e
foi ter com os policiais. A justificativa da polícia para ter entrado sem autorização na
propriedade dessas pessoas lembrava casos de fazendeiros brancos que cercavam e
acorrentavam os espaços dos farm dwellers no interior de suas fazendas: os policiais
estariam ali para proteger as pessoas, para garantir que o enterro transcorresse
tranquilamente.
Depois de servido o almoço, os convidados começaram a ir embora. Nós
decidimos ficar um pouco mais e, porque esperamos, fomos abordados pela irmã do
Senhor Khubeka. Ela havia chegado no carro que acompanhava a pick-up com o corpo.
Começou a nos falar que não queria que acontecesse com ela o mesmo que se passara com
seu irmão. Gostaria de ser enterrada na outra fazenda. Lá, seus filhos tinham nascido. Lá,
alguns de seus filhos tinham sido já enterrados. Lá, sua velha mãe morava. Ela se
perguntava: e quanto à minha mãe, que ainda mora lá, quando ela morrer, também não
poderá ser enterrada na terra aonde vive? Gracie falava em inglês conosco. Explicou-nos
(sem que precisássemos interpelá-la com quaisquer perguntas) que trabalhava em
Johanesburgo. Seu irmão falecera quando estava em Bergville, visitando a casa dela.
*
O caso de Gracie replicava inúmeras outras histórias que ouvimos, histórias vividas
por pessoas reais, histórias que as tornavam complicadas diante dos estritos sistemas
classificatórios orquestrados pelo Estado sul-africano a fim de lidar com os problemas
sociais herdados do apartheid, que insistiam em se agravar. Ela, como quase todas as pessoas
adultas que conhecemos, vivera por algum tempo de suas vidas em Johanesburgo. Lá
obtiveram empregos e alguma fonte de rendimento. Assim como Gracie, em outras
situações, as pessoas acabavam por ter também uma casa em uma township, além da casa
no interior da fazenda de um proprietário branco. Essas três casas (nas grandes capitais, na
township, na fazenda) remetem a eixos de orientação presentes na vida de quase todos. A
casa na fazenda fala-nos dos períodos de reclusão vividos no apartheid, nos fala do trabalho
escravo e das relações pessoalizadas com os proprietários brancos que lhes usurparam a
terra a partir de uma prerrogativa garantida pelo governo sul-africano ao longo de um
século marcado por uma seqüência de “atos” de expropriação, voltados para o
confinamento da população negra. O emprego em Johanesburgo (ou em outra cidade
central) remetia a uma experiência de pânico e alívio. Conseguir escapar das fazendas ou
das townships e alcançar Johanesburgo foi-nos sempre descrito como um jogo perigoso,
como uma aventura, nem sempre bem-sucedida, afinal, buscavam trabalho em
Johanesburgo sem permissão para fazê-lo. A casa na township assumia diversos matizes
nas narrativas das pessoas que conhecemos. Lembrada como desterro ao qual foram
condenadas depois de serem despejadas de suas próprias terras, a vida na township podia
se travestir em acesso a bens inexistentes nas zonas rurais, como a educação (mesmo
bantu), por exemplo, considerada – a posteriori – como possível razão para o sucesso das
lutas de libertação do país, tendo em vista que os uprisings partiram de estudantes.
Gracie vivia no trânsito entre uma casa e outra, entre um conjunto de relações e
lembranças e outro. Quando morresse, entretanto, gostaria de ser enterrada na terra aonde
jaziam seus ancestrais e seus próprios filhos. A terra que lhes fora restituída remetia a um
passado longínquo, a um território que lhes pertencera, mas ao qual não se reportavam
cotidianamente, porque faltava àquela terra os túmulos dos ancestrais. Gracie nos explicava
que seu irmão fora colhido pela morte no lugar errado. Se ele houvesse falecido na fazenda,
mesmo sem mais trabalhar para o proprietário branco, teria tido alguma chance de ser
enterrado perto dos ancestrais.
*
Gracie terminava sua conversa conosco quando percebemos dois rapazes que
passavam carregando uma bacia, plena de carne assada (das cabras sacrificadas). Durante
alguns segundo cogitei o que fariam com aquela comida que não fora tocada pelos
convidados, aparentemente satisfeitos diante da fartura do que nos foi servido. Já éramos
os últimos – não membros da família – quando decidimos ir embora. Ao descer pela relva,
vimos os membros do LPM da região indo embora, em um ônibus que haviam fretado.
Olhamos na direção das patrulhas que seguiam à espreita e percebemos que os policiais
almoçavam aquela carne de cabra que nós víramos ser carregada pelos jovens. Nossa
estupefação foi absoluta. Magnânimos, os familiares do Senhor Khubeka ofereciam aos
seus potenciais algozes a carne do ritual que conclamara os ancestrais a comparecerem ao
funeral, a despeito da distância entre o novo burial site que se abria e aquele, na fazenda,
aonde jaziam a maioria dos falecidos.
Perplexos, soubemos dias mais tarde, em uma conversa com Mangaliso (a liderança
do LPM que não comparecera ao funeral), que a polícia havia telefonado para ele no dia do
funeral. Sem acreditarem que os ativistas tinham sido demovidos da idéia de fazerem o
enterro à força, os policiais resolveram chamar o homem que é considerado a voz do LPM,
para obter informações. Mangaliso, por conta dos conflitos internos, não tinha notícias
sobre o enterro. Entretanto, para informar os policiais, lançou mão de sua magistral
retórica: afirmou que os membros da família Khubeka estariam em seu direito se
resolvessem levar o enterro adiante contra a decisão do magistrado. E mais, afirmou que o
LPM sempre estaria ao lado dos sem terra em tais situações. A performance de Mangaliso,
mesmo à distância, se mostrou eficaz. Os policiais, por via das dúvidas, não se afastaram do
local do enterro. Quando o ônibus do LPM deixou a fazenda, um carro da polícia lhes foi
seguindo. Casualmente fomos pelo mesmo caminho, como numa espécie de cortejo que se
seguia ao fim daquele enterro.
À guisa de conclusão
A guinada reflexiva em antropologia nos liberou de um pesado fardo. Atualmente
admitimos que nosso trabalho se baseia em experiências subjetivas e que nossos quadros
interpretativos se sustentam sim sobre situações que nós meramente observamos. Ainda
assim, é possível dizer que um outro fantasma, o da generalização, continua a nos
assombrar. Pensamos que conversas cruas – ou, para seguir com o triângulo culinário –
achamos que quanto menos cozidas, assadas ou apodrecidas, mais confiáveis nossas
“informações”. Sabendo que nossos “dados” não são dados, e muito menos objetivos,
garantiríamos com esta aposta naturalista um pouco de “confiabilidade científica” ao nosso
trabalho.
Creio que tenhamos esta predileção por suspeitarmos do quanto jogamos fora
quando pulamos do caso estudado (sobre o qual temos pouca certeza e muita empatia) para
uma generalização que se aplique “à sociedade em geral”. Como no anterior dilema da
subjetividade, este último também não tem solução. Entretanto, ao invés de lamentarmos o
que perdemos a cada salto do chão/do campo para as panorâmicas teóricas, deveríamos
considerar a possibilidade de tomar os conceitos que fabricamos como matéria para análise.
Não temos apenas dois pólos: aquele da “vida real” e o das “teorias abstratas”. Aquele de
nossas conversas com as pessoas com as quais fazemos pesquisa e aquele das afirmações
sobre Os Fulanos de Tal.
Os conceitos antropológicos são experimentos vivos que interagem com o que
supomos como realidade por um lado e teoria por outro. Poderíamos dizer que os
conceitos “borram” as fronteiras. Pensamos, entretanto, que o melhor seria afirmarmos
que os conceitos pavimentam pontes de diálogo entre a vida ordinária e a experiência
teórica. E que esse procedimento não é um privilégio dos antropólogos.
Ao refletirmos sobre a agência dos conceitos, começamos a refinar e
conseqüentemente a redefinir nossa linguagem; e esta parece ser uma profícua maneira de
tornar nossas análises (teóricas) da vida (real/social) simétricas àquelas feitas pelas pessoas
com as quais fazemos pesquisa. Se, como sugere Das (2007), as pessoas com as quais
conversamos em nossos trabalhos de campo, se ressentem diante dos limites da linguagem
para dar conta de suas experiências, por que nós deveríamos permanecer imunes a esse
dilema?
Quando falamos de simetria, não estamos buscando um efeito especular. Nossos
conceitos seriam simétricos aqueles de nossos anfitriões – não por serem espécies de
sínteses translúcidas da realidade. Pelo contrário, seria no vão entre a experiência ordinária
e o que somos capazes de criar que se encontraria a simetria de nossas relações. Segundo
Ndebele, os “fatos são como blocos de construção com os quais erguemos nossas
metáforas”. Temos – todos nós - em comum o limite de nossas linguagens: o que
conseguimos inventar a partir de “fatos”. Ao nos darmos conta disso, nos envolvemos em
um processo que busca compreender (i) a vida dos Outros e, igualmente, (ii) expandir
nossa linguagem e sensibilidade a fim de tornar nossa compreensão tão sutil quanto aquela
das pessoas que abordamos em nossos trabalhos. E esta seria uma definição feliz de
simetria.
Se assim procedêssemos, reconheceríamos que nossas teses ou papers não são
fotografias da realidade, mas, como disse anteriormente, notas a propósito de um diálogo.
Um diálogo que reúne nossos anfitriões (no campo), nossos colegas da academia (os vivos
e os mortos) e nós mesmos. Deveríamos entender essa base triangular de nosso
conhecimento como a forma que permite sua própria contestação e consequentemente as
mudanças em nossos trabalhos.
*
O vão entre nossos conceitos e a experiência ordinária mostrou-se ainda mais
amplo quando tentamos levar adiante a pesquisa sobre os funerais em Kwazulu-Natal. Os
funerais, que tanto nos tinham mobilizado anteriormente, pareciam ter desaparecido da
agenda e performance públicas das pessoas que conhecíamos no verão de 2008. Até aquele
momento, o principal traço dos funerais dizia respeito à luta de trabalhadores negros para
garantir que seus parentes mortos pudessem ser enterrados nos locais aonde viviam (os
vivos e os mortos), ou seja, em fazenda de propriedade de brancos.
Esses funerais poderiam ser abordados por duas vias distintas e igualmente
verdadeiras. Por um lado eram palcos de manifestações políticas. Por outro, eram também
ocasiões para se abrir os canais de diálogos com os ancestrais. Entretanto, de acordo com a
perspectiva que procurávamos esboçar, existia um outro caminho analítico possível que
procurava entender os funerais como meios para a construção de novos conceitos sobre a
presença do Estado na vida cotidiana. Tudo isso eram tentativas de “inventar” a partir de
“fatos” – tanto dos fatos da literatura quanto dos fatos do campo.
E o que aprendemos ao tentar compreender o que se passava ao longo dos
funerais? Dentre as inúmeras lições, creio que uma das fundamentais diga respeito aos
conceitos de “práticas e crenças”, quando aplicados aos trabalhadores negros que
conhecemos. Não somos os únicos a nos sentirmos incomodados com essa fórmula
derrogatória de origem colonialista. Mas como nós mesmos já fizemos uso desses termos,
vemos por bem explicar os descaminhos por que passamos.
No Brasil costuma(va)-se pensar o país ou a sociedade nacional a partir de um
modelo de divisão espacial que seria mais uma cisão temporal, um apartamento no espaço
que diz/diria respeito a valores morais e que se explicita(va) na oposição entre tradição e
modernidade. Para ilustrar essa faceta do chamado pensamento social brasileiro basta
lembrarmos da famosa passagem de Euclides da Cunha que dizia não serem 400 léguas,
mas 400 anos que afastavam o interior de Monte Santo – berço da Revolta de Canudos -
do Rio de Janeiro, capital da República que nascia.
Na África do Sul, esse mesmo topos se repete. Porém, lá, um elemento de suma
importância se acrescenta a esse esquema canônico: o legado da segregação racial. Em boa
parte da literatura contemporânea sobre aquele país o lugar-comum que se estabelece julga
haver um continuum entre os espaços que se nomeava como township e as zonas rurais.
Sabemos que muitas evidências perturbam tal afirmação – na antropologia reconhece-se,
mesmo com todas as limitações do que afirmavam os antropólogos da conhecida “Escola
de Manchester” que as periferias habitadas por negros no sul da África não poderiam ser
excluídas do que chamamos de modernidade, devido exatamente ao modo de vida de seus
habitantes, marcado pelo trabalho assalariado e pelo consumo de mercadorias, o que os
incluiria definitivamente na cadeia capitalista.
Ainda assim, a township se aproximaria do campo (do que se chamara de homeland
ou bantustões ou das fazendas de brancos) por conta de um elo moral. Mesmo que o estilo
de vida fosse outro, haveria um território moral comum, habitado pelos moradores de uma
e outra região. Uma formulação muito recorrente nos textos antropológicos – e pouco
criticada por nós antropólogos – diz que os moradores de um e outro lugar “possuem
práticas e crenças” semelhantes. Não é preciso muita reflexividade para percebermos que
“práticas e crenças” é mais uma dessas fórmulas sintéticas por nós adotadas – como
quando falamos em “nativos” – de natureza assimétrica, essencialmente derrogatória.
Nos textos aos quais me refiro há uma cena que se repete com freqüência. Durante
o apartheid os moradores negros das townships iam até os albergues (hostels) para
consultar oráculos ou para encomendar com herbalistas algum alívio para os seus
incômodos (conhecidos como Muthi) ou mesmo para comprar cerveja tradicional
(Chibuku). Nos albergues, viviam homens das homelands que migravam para as cidades a
fim de trabalhar nas indústrias e principalmente nas minas. Ao buscarem contato com esses
homens os moradores das townships atravessariam o espelho: acabavam por se reconectar
com as homelands. Em português diríamos com sua terra natal. Mesmo que não tenham
nascido efetivamente no campo, ao fazer contato com os moradores dos albergues os
habitantes das townships se aproximariam do campo, da terra. A terra – e seus valores –
era absolutamente negada pelo modelo de confinamento espacial imposto nas townhsips,
com sua arquitetura similar a dos conjuntos habitacionais brasileiros, com suas casas
conhecidas como caixas de fósforo. Mais uma vez, não eram somente esses sinais
exteriores que marcavam a diferença que se esperava da township em relação ao campo.
Eram sobretudo os valores morais que se queria banir ao se construir, por exemplo,
cemitérios ao invés do tradicional enterro ao pé das casas. Procurava-se romper uma
associação – recorrente na literatura antropológica – que estabelecia a terra como lugar de
repouso dos ancestrais (que vinham a se tornar ativos em ocasiões especiais).v
A literatura contemporânea pós-apartheid, sugere que apesar de todos os planos de
assepsia moral havia também investimentos ideológicos por parte do governo do apartheid
(em suposto conluio com os chamados chefes tradicionais) para que essas práticas e
crenças fossem mantidas. Segundo Mamdani, por exemplo, esse era um modo eficaz de
manter a população negra não a 400 léguas, mas a 400 anos de distância em relação aos
brancos e aos chefes.
Atualmente muitos antropólogos lançam mão desse modelo de análise e crítica que
associa a relação com “práticas e crenças” tradicionais como um sinal de alienação política.
Dentre outros podemos citar alguns renomados antropólogos como Erik Bähre, Adam
Ashforth e Jean e John Comaroff. O primeiro estuda a economia em torno dos funerais,
observando o que ele chama de persistência das acusações de feitiçaria diante de
“evidências” do HIV-AIDS como causa (científica) das mortes ocorridas na periferia da
Cidade do Cabo, em uma região habitada por negros e coloured. Diante dos conflitos
vividos pelos vizinhos, Bähre se depara com uma solidariedade relutante (reluctant
solidarity), sinal unívoco da desagregação moral por que passam os moradores das antigas
townships, que não respeitariam mais as leis de reciprocidade (como teriam feito no
passado – um passado que nenhum pesquisador branco investigou, diga-se de passagem).
Ashforth faz sua pesquisa em Soweto e diante de casos de acusação de feitiçaria que
acabam em linchamento ou em oclusão social dos supostos bruxos pergunta-se como pode
persistir tamanho “desatino” depois de findo o apartheid, depois de a África do Sul ter
entrado definitivamente no mundo da democracia? Ashforth atribui à falta de investimento
público em educação esse apego às “práticas e crenças” tradicionais, das quais as acusações
de feitiçaria seriam o símbolo por excelência. Os antropólogos Comaroff enfrentam o
mesmo dilema ao analisarem os, em suas palavras, parcos avanços da comissão Ralushai, na
África do Sul dado um limite intransponível que a impede de desmascarar zumbis ou as
supostas acusações de feitiçaria, a saber: a falta de um entendimento nítido acerca da ação
dos zumbis e outras formas de “bruxas” como um reflexo da escassez de oportunidades de
trabalho na África do Sul contemporânea, que acaba jogando “os negros” do país contra os
migrantes de fora, os “negros” da cidade contra os do interior etc.. Esses antropólogos,
dentre outros, envolvidos com pesquisa na África do Sul, perguntam-se em suma como
podem as pessoas “praticarem e crerem” em algo “assim”, em plena democracia? Como
podem ter medo de zumbis e bruxas? Como podem morrer e matar por causa de um
enterro ser feito aqui ou em outro lugar?
Ao dispor o debate nesses termos essa literatura reedita a perspectiva assimétrica de
muitos textos canônicos que lemos em antropologia. São poucos os antropólogos, como
James Ferguson, que ousam desconfiar dos valores universais da democracia. Esse
antropólogo – também com pesquisa de campo na África Austral – reconhece que as
pessoas também mataram e morreram por causa da democracia. E, mais, apresenta
argumentos que deixam claro o quanto eleições diretas contemplam os interesses do capital
“global” que lava suas mãos de qualquer sujeira ditatorial, jogando sobre os ombros da
população local a culpa por terem escolhido mal os seus governantes. Este tipo de olhar
crítico deve se somar ainda a outras reassalvas, como aquela feita por Achille Mbembe,
para quem a história não deve ser contada/escrita apenas nas chaves da capitulação ou da
resistência. O mundo, segundo esse autor, é muito mais complexo do que os
enquadramentos dualistas aos quais estamos acostumados.
Na África do Sul que conhecemos, os funerais têm um papel fundamental que não
diz respeito apenas aos valores da tradição. As lutas pelo direito a enterrar seus mortos (em
burial sites localizados em fazendas de proprietários brancos que negam aos familiares esse
direito) é uma evidência de que as pessoas temem a autoridade do Estado a favor dos
opressores, que as pessoas têm medo da violência policial, da violência dos juízes e de
outras autoridades públicas. Em suma, que além do medo das milícias privadas (escutamos
inúmeros casos de tortura perpetrados por patrões brancos), as pessoas temem o
desmando daqueles que ajudaram a eleger democraticamente. Esse medo – e aqui se
complica a história – mescla-se com uma enorme admiração pelos feitos desses mesmos
representantes políticos.
Ao contrário das críticas de antropólogos que vêem no presente apenas reedição do
passado, dos valores atrasados da tradição, creio que as lutas contemporâneas não indicam
que as pessoas continuam subjugadas pelos seus ancestrais (como teria supostamente
ocorrido desde tempos imemoriáveis). Ao contrário do que afirma a literatura sobre a
persistência do culto do oculto na África do Sul, acreditamos que as pessoas que
conhecemos são politicamente engajadas exatamente porque estão preocupadas com o
enterro de seus parentes e, não, a despeito de acreditarem em “forças oculta”. A luta pelo
direito ao enterro – que congrega jovens e velhos, homens e mulheres, das fazendas e das
townships – revela o quanto ainda há por aprender com aqueles que jazem sob a terra e
que viveram na pele (negra) experiências que apesar da reconciliação não se deixam
facilmente esquecer. vi
Funerais fazem parte da vida cotidiana. Funerais são lugares-eventos em que
inúmeros dilemas sul-africanos contemporâneos são esboçados. Em Kwazulu-Natal,
descobrimos com Gracie e outros, que as pessoas das zonas rurais e das zonas urbanas –
especialmente aquelas vivendo em townships – não estão relacionadas porque
compartilham referências morais exóticas. Ao lutarem por seus direitos, essas pessoas nos
mostram que suas afinidades relacionam-se à forma como o poder do Estado se fez/faz
presente em suas vidas. Depende do Estado – de uma decisão de um juiz – se um funeral
acontecerá dentro ou fora da fazenda em que os farm dwellers vivem. Depende da Polícia,
proteger ou violentar as pessoas ao longo de suas manifestações.
Ao invés de apostarmos na oposição entre razão/razoabilidade e “crenças e
práticas”, deveríamos assumir o compromisso de fazer as relações que se fazem notar/ que
se fazem produzir por um Estado que não divide o mundo nesses termos. Aos diferentes
graus de penetração do Estado em nossas vidas, correspondem diferentes e persistentes
tipos de segregação. E a segregação que opõe “racionais” a “crentes” é para nós uma das
mais perversas, justamente porque encontra na antropologia seu abrigo intelectual.
Se percebêssemos que o Estado não é uma estrutura monolítica que paira sobre a
Sociedade; se percebêssemos que a sociedade não se divide em domínios racionais e
crentes; se nos déssemos conta de que a sociedade tampouco se divide em âmbitos
tradicionais e modernos; se assim procedêssemos perceberíamos a importância de uma
abordagem voltada a conexão que leva pessoas da roça (ou do Brasil) a lugares “tão
distantes quanto Johanesburgo”. A decisão de continuar falando d’O Outro, dos pobres
especialmente, como dotados de “práticas e crenças” depende apenas de nós mesmos. Se
decidirmos continuar narrando o mundo de acordo com nossos conhecidos esquemas
conceituais, nós garantimos uma distância, nós garantimos o que se chama de neutralidade
científica. Mas, para ser honesta, pessoalmente, prefiro ser tendenciosa.
Acreditamos que a ubiqüidade do Estado nos coloca próximos aos sujeitos com os
quais fazemos nossas pesquisas. A existência do Estado e de seu poder não é um tema sob
disputa. Nós não podemos ousar dizer – como alguns o fazem sobre a bruxaria, por
exemplo – que o Estado não existe ou que não passa de uma “representação”. Na África
do Sul que conhecemos, é possível dizer que as margens do Estado penetram na vida de
pessoas em movimento. Movimentos sociais como o LPM e concomitantes movimentos
de diversas ordens: de uma casa à outra, de um trabalho a outro. Temos compreendido que
esse movimento não se restringe aos vivos sobre a terra, mas também aqueles que estão
abaixo (abaPhansi). O Senhor Khubeka não pode ser enterrado junto aos seus ancestrais.
Por isso, esses últimos tiveram que ser chamados a comparecer ao funeral, foram obrigados
a percorrer uma distância que Gracie considerava ultrajante e indesejável. Os ancestrais,
como sombras, preferem o repouso, gostam de ser visitados em suas casas (burial sites). O
Estado sul-africano garante o direito ao movimento – inexistente no período do Apartheid.
Entretanto, como ouvimos de nossos anfitriões, este Estado deveria igualmente lhes
oferecer e garantir uma sombra para descansar.
ADVERTÊNCIA GERAL
Pesquisadores (do mundo acadêmico) e as pessoas que querem entender, tentam
em seus diálogos transmitir seus sentimentos e concepções por meio de termos que nem
sempre se mostram felizes. Mesmo que estejamos deliberadamente envolvidos na busca da
melhor forma de expressar o que queremos dizer, nossas conversas não deixam de ser
situações em que revelamos algo na medida em que deixamos outros aspectos (que seriam
também importantes) de lado. Se essa “mecânica” é comum, o que “descobrimos” oculta
um outro universo igualmente complexo de possibilidades.
Quando falamos a mesma língua de nossos anfitriões em campo, tendemos a
esquecer ou minimizar este aspecto de nossas interações. No caso de nossa pesquisa na
África do Sul, conversamos com nossos anfitriões (alguns deles, amigos muito próximos)
em inglês, ou seja, em uma língua que não é nossa língua materna. Lentamente estamos
procurando aprender isiZulu e curiosamente começando a entender que este problema de
fundo só tende a se agravar.
Com esta advertência gostaríamos apenas de chamar a atenção da audiência/do
leitor, para o fato de que boa parte das reflexões presente neste texto não obedece ou segue
uma ordem referencial da linguagem. A convivência continuada com algumas pessoas em
especial tem sido de fundamental importância para cultivarmos uma série de perguntas
(sempre sujeitas a dúvidas) que nascem de diálogos ancorados em palavras que se
modificam e em atos que se repetem, mas sempre de modo distinto.
Enterro do Sr. Khubeka
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i Neste texto não discutiremos as implicações do sistema eleitoral e de governo na África do Sul.
Fazemos essa breve nota apenas para enfatizar como o diferente pertencimento partidário (a deputada era do ANC e a prefeita do IFP) respondia pelo tom a disputa em torno das instâncias responsáveis pela solução aos diversos conflitos e problemas vividos pelos farm dwellers na região.
ii Este tema já havia sido discutido ao longo daquela manhã. As pessoas se diziam sick and tired de esperar pela justiça que se tornava ainda mais morosa em casos envolvendo direito civil. O próprio DLA não possuía meios de oferecer ajuda legal para os farm dwellers em casos daquele tipo. O Legal Cluster (um projeto de assessoria jurídica oferecido aos farm dwellers e coordenado por ONGs como a AFRA) estava às vésperas de fechar suas portas.
iii Ulungu, shoot us! Shoot us! iv As vísceras (Phakati, um termo de múltiplas valências, que significa também “comunidade”)
são muito apreciadas pelas pessoas que conhecemos. De acordo com a literatura, a vesícula (Inyongo) é o lugar de abrigo dos ancestrais no momento do sacrifício. Os ancestrais são percebidos como sombras que encontram na vesícula (receptáculo escuro, com entrada, mas sem saída), um lugar de acolhimento no momento em que são chamados (por meio do abate de um animal) a comparecerem à cerimônia, na qual serão informados (ukuthetha) sobre o que se passa com os seus parentes vivos. (Mgwaza, 1993). Ouvimos de uma de nossas amigas (Thoko Mlaba) que por ser percebido como escuro e frio, o lugar de morada dos ancestrais, deposita-se com o caixão uma esteira e um cobertor.
v A terra como lugar aonde se deveria ser enterrado já que ali também fora depositado o cordão umbilical daquele que falecia.
vi Como me disse uma grande amiga e mestre – Sibongile Mbatha – seu maior medo é que aqueles que nasçam na África do Sul de hoje – democrática – não acreditem que um dia houve algo como o Apartheid.