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De Lisboa ao Polo Norte em papel em ficheiros clínicos e processos judiciais centenas de quilómetros de prateleiras. Faltam recursos para tratar os arquivos do Estado e não basta digitalizá-los Texto RAQUEL ALBUQUERQUE Fotografias TIAGO MIRANDA Infografia SOFIA MIGUEL ROSA +*^ s maços de papel r atados com cordel e as caixas de cartão amarelecido ali- nham-se aos milha- res nas prateleiras. O ar é tão frio quanto k y intenso éo cheiro a S papel velho. São 26 quilómetros de prateleiras arrumadas em três mil metros quadrados de uma antiga fábrica de congelados em São João da Talha, arrendada por 190 mil euros anuais. E o maior arquivo judicial no país, criado 20 anos para aliviar a falta de espaço nos tribunais. E con- tinua a receber mais de 100 maços de papel por mês de processos da comarca de Lisboa. As prateleiras de todos os tribunais e arquivos judiciais do país somam 336 quilómetros. E juntam-se aos mais de 2300 quilómetros de arquivos do Es- tado, incluindo ministérios, escolas e universidades, Forças Armadas, au- tarquias e empresas públicas, com um custo de manutenção que ronda os 65 milhões de euros anuais, segundo o in- quérito da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB), publicado em 2014- que é possível que isso seja apenas uma parte. "A DGLAB reconhece este valor como subdimensionado, aten- dendo ao universo respondente [ao in- quérito], à percentagem de serviços e espaços de armazenamento cobertas e ao que conhece da realidade da Admi- nistração Pública", lê-se no relatório. 62% dos organismos da administração central e 23% das autarquias respon- deram ao inquérito. Se fizermos um exercício teórico e extrapolarmos o número de quilómetros, estimando que as entidades que não responderam têm a mesma proporção de documentos, as

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Page 1: ao Polo s Norte - ULisboa · 2019. 1. 7. · ao Polo Norte. Ao papel dos tribunais juntam-se cerca de 200 km de ficheiros clínicos arquivados nos hospitais e centros de saúde, segundo

De Lisboaao PoloNorteem papel

Só em ficheiros clínicos e processos judiciaishá centenas de quilómetros de prateleiras.Faltam recursos para tratar os arquivosdo Estado e não basta digitalizá-los

Texto RAQUEL ALBUQUERQUEFotografias TIAGO MIRANDA

Infografia SOFIA MIGUEL ROSA

+*^ s maços de papelr atados com cordel e

as caixas de cartãoamarelecido ali-nham-se aos milha-res nas prateleiras.O ar é tão frio quanto

k y intenso éo cheiro aS papel velho. São 26quilómetros de prateleiras arrumadasem três mil metros quadrados de umaantiga fábrica de congelados em SãoJoão da Talha, arrendada por 190 mileuros anuais. E o maior arquivo judicialno país, criado há 20 anos para aliviara falta de espaço nos tribunais. E con-tinua a receber mais de 100 maços de

papel por mês — só de processos dacomarca de Lisboa.

As prateleiras de todos os tribunais e

arquivos judiciais do país somam 336quilómetros. E juntam-se aos mais de

2300 quilómetros de arquivos do Es-

tado, incluindo ministérios, escolas e

universidades, Forças Armadas, au-tarquias e empresas públicas, com umcusto de manutenção que ronda os 65milhões de euros anuais, segundo o in-

quérito da Direção-Geral do Livro, dos

Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB),publicado em 2014-

Só que é possível que isso seja apenasuma parte. "A DGLAB reconhece estevalor como subdimensionado, aten-dendo ao universo respondente [ao in-

quérito], à percentagem de serviços e

espaços de armazenamento cobertas e

ao que conhece da realidade da Admi-nistração Pública", lê-se no relatório. Só

62% dos organismos da administraçãocentral e 23% das autarquias respon-deram ao inquérito. Se fizermos umexercício teórico e extrapolarmos o

número de quilómetros, estimando queas entidades que não responderam têma mesma proporção de documentos, as

Page 2: ao Polo s Norte - ULisboa · 2019. 1. 7. · ao Polo Norte. Ao papel dos tribunais juntam-se cerca de 200 km de ficheiros clínicos arquivados nos hospitais e centros de saúde, segundo

prateleiras de papel do Estado poderãoter entre 5 e 6 mil quilómetros. É comofazer uma linha reta em papel de Lisboaao Polo Norte.

Ao papel dos tribunais juntam-secerca de 200 km de ficheiros clínicos

arquivados nos hospitais e centros de

saúde, segundo dados de um relató-rio da Secretaria-Geral do Ministérioda Saúde, publicado em 2018. Há cen-tros hospitalares que chegam a ter trêsmilhões de processos, remontando aoano de 1848. A maioria das instituiçõesguarda a documentação nas suas insta-

lações, mas 67% reconhecem "sinais de

deterioração física" nesses espaços. Só

um quinto tem os arquivos sob custódia

externa, custando-lhes mais de 600 mileuros por ano. Melhorar as condiçõesfísicas e de segurança do armazena-mento é uma das 14 recomendações dasecretaria-geral.

Dar valor de prova ao digital

Na mesma altura em que se fala de al-

goritmos e inteligência artificial, au-tomatismos e digitalização, tambémaplicados a bibliotecas e outros espólios(ver caixa), os arquivos em papel conti-nuam a ser uma realidade a precisar de

resposta. Já em 2014, a DGLAB alerta-va para a falta de recursos humanos efinanceiros para tratar, gerir, eliminar

ou preservar a documentação existentee a que continua a ser produzida. Só as

autarquias e empresas públicas geram13 milhões de documentos por ano.

Perante o papel acumulado nos tri-bunais — que triplicou em 15 anos (vergráfico) — a Direção-Geral da Admi-nistração da Justiça (DGAJ) identificaduas prioridades. Produzir legislaçãopara conferir valor probatório à cópiadigital, permitindo eliminar o originale sem pôr em causa a migração de do-cumentos digitais para novos formatos,é uma delas. A outra passa por elaborar

planos de preservação digital, assegu-rando que os ficheiros acompanhama evolução da tecnologia. Ana Horta,

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São 26 quilómetros de processos judiciais só da comarca de Lisboa, distribuídos por caixas e maços,no maior arquivo do país. Também o Banco de Portugal (à direita em cima) guarda os seus 7,9 quilómetrosde papel em dois pisos subterrâneos. Já a Torre do Tombo (em baixo) tem 100 quilómetros de papele pergaminho, preservando em casas-fortes alguns dos documentos mais antigos e valiosos do país

subdiretora geral da DGAJ, asseguraque estão já a trabalhar nesse sentido e

até criaram um grupo de trabalho mul-tidisciplinar no Ministério da Justiça.

Além disso, está a ser preparado umnovo regime jurídico, extensível a todaa Administração Pública, para agilizara classificação e avaliação da documen-

tação pública e que está previsto até aofinal do 1Q semestre de 2019.

Digitalizar milhões de documentostem um custo avultado, não tanto no

processo em si, que já pode ser feitocom grande celeridade, mas no seuarmazenamento. E há algumas preo-cupações. "Fala-se em 'papel zero' e

soa bem. Mas se não houver preocu-pação de preservação do digital, aoresolvermos um problema criamos ou-

tros", alerta Silvestre Lacerda, diretor

do Arquivo Nacional Torre do Tombo(ANTT)edaDGLAB.

José Borbinha, professor no depar-tamento de Informática do InstitutoSuperior Técnico (IST) e investigadorna área da preservação digital, concor-da e alerta para os riscos da ânsia de

digitalização. "É preciso ser cauteloso,medir as prioridades e não esquecer o

dia seguinte, ou seja, assegurar a sus-tentabilidade desta informação." Comoos suportes digitais são geralmentemagnéticos ou eletrónicos, é precisocopiar continuamente os dados de for-ma a refrescar os sinais magnéticosou garantir que ainda existe hardware

capaz de lidar com esses suportes. Éeste o debate que se faz a nível inter-nacional agora e que levou a Comissão

Europeia a lançar um serviço de apoio

a quem quer gerir informação digital alongo prazo.

"Em 2005, tínhamos 30 mil imagensdigitalizadas, agora temos 30 milhões.São 450 terabytes de informação e isso

é apenas 1% do arquivo da Torre doTombo", explica o diretor, que tem 100quilómetros em papel e pergaminho.Silvestre Lacerda ambiciona ter todosos registos de nascimento, casamentoe óbito, além dos documentos mais an-

tigos do Arquivo Nacional, digitalizadose online até ao fim de 2019. "Temoscondições técnicas para isso. O mais

premente são os recursos humanos

que têm de ser muito especializados.E preciso mais apoio, seja através de

reforço do orçamento ou de mecenas."

Banco de Portugal subterrâneo

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Além da Torre do Tombo, instituiçõeshistóricas como o Banco de Portugal(BdP) ou o Instituto Nacional de Es-tatística (INE) têm espólios de grandevalor. É quase à mesma profundidadeda linha do metropolitano, no meiode Lisboa, que estão arrumados os 7,9quilómetros de documentos do BdP.Nos pisos subterrâneos, de tetos baixose luzes brancas, arrumam-se as prate-leiras metálicas, repletas de caixotesde cartão identificados consoante osdocumentos que as enchem. Osgradea-mentos fechados à chave dividem duasalas: na primeira, o chamado arquivointermédio, tem os papéis que chega-ram há menos tempo e que esperampara conhecer o seu destino. Uns serão

destruídos, outros seguirão para a alaseguinte, a mais resguardada e pro-tegida, onde estão os papéis antigos e

com mais valor. Nesse arquivo históricoestão já 6,3 quilómetros de papel.

"Desde 2010 existe um sistema de

gestão documental e arquivo eletrónico

que determina automaticamente se o

documento é para conservar e durantequanto tempo", explica Filipe Fernan-des, técnico de arquivo do banco. Hoje,o papel que entra é sobretudo de cor-respondência e contratos, o que tornapossível eliminar mais do que é produ-zido. "A digitalização é permanente,mas é difícil dizer quando vai terminar.De imediato, não temos condições parater tudo digital", admite António GilMatos, coordenador da Unidade deArquivo.

Numa pequena divisão do INE, estáuma parte do espólio nacional. Mono-grafias, revistas científicas e publica-ções estatísticas internacionais e as na-cionais, mais antigas, como os balançosdo comércio externo no século XVIII ouo primeiro recenseamento de 1864. Nabiblioteca, agora quase sempre vaziadesde que as publicações estatísticas

passaram a estar todas disponíveis nosite, ainda se arrumam outros volumesem três estantes. "Há 19 anos, decidi-mos digitalizar todas as nossas publica-ções. E as que foram produzidas depoisde 2000 já são em formato eletrónico",explica José Pinto Martins, engenheiroe chefe do serviço de difusão do INE. Nototal, são 1,8 milhões de páginas comdatas entre 1864 e 2000. Ainda assim,as estatísticas mais antigas não podemser descarregadas e trabalhadas comoas mais recentes: obter um dado do

recenseamento de 1930, por exemplo,requer consultar toda a publicação."Seria um esforço muito grande e nãotemos capacidade técnica para o fazer.Era preciso uma tecnologia de reco-nhecimento ótico de carateres (OCR) efazer validações posteriores", descreve."Será que o custo e o esforço compensa-riam o trabalho? A preservação destesdocumentos está garantida."

Digitalizar os documentos mais an-tigos e em pior estado tem sido a prio-ridade. Isso exige recursos — técnicos,humanos e financeiros — até para evitar

que se acumulem milhares de quilóme-tros de papel à espera de um destino.Mas, em paralelo, é preciso garantirque aquilo que é digitalizado ou quejá nasce digital não se perde. "Estardigitalizado não significa estar salva-

guardado", frisa Francisco Sampaio,responsável pela gestão documentalda DGAJ. Também Silvestre Lacerdalembra que o problema não está no su-

porte da documentação mas na gestãoda informação. José Borbinha concordae sublinha a importância de tornar esta

questão prioritária. "Se os processosse acumularem nos servidores, o pro-blema dos quilómetros vai passar a serdos terabytes."[email protected]

Projeto pioneiropara os hospitais

Éjáno primeiro semestre de 2019

que o Repositório Clínico Digital doCentro Hospitalar de São João(CHUSJ) entra em funcionamento,resultando de um projeto de

digitalização em parceria comDireção-Geral do Livro, dos

Arquivos e das Bibliotecas

(DGLAB), através do ArquivoDistrital do Porto (ADP). O

repositório disponibilizará emformato digital os processosclínicos de utentes internados nosúltimos dois anos e dos utentes da

pediatria (até aos 12 anos). Outrodos objetivos é desenvolver

metodologias de preservação de

informação clínica armazenada embases de dados descontinuadas porestarem tecnologicamenteobsoletas. "Em fases futuras,pretende-se que a dinâmica do

projeto sejagradualmentealargada a outras áreas do CHUSJ,tendo presente a necessidade de

uso dos registos clínicos em papelpor parte das diferentes

especialidades clínicas", explica adiretorade serviço de arquivo do

CHUSJ, Fernanda Gonçalves. Maspode ir mais longe: a participaçãoda DGLAB e do ADP "poderápermitir avançar comrecomendações nacionais relativasà evolução do enquadramentolegal de transferência de su porte e

desmaterialização". A iniciativatem servido para analisar aviabilidade do processo, "com vistaà substituição de su porte e à

salvaguarda do valor probatório e

legal do documento em suportedigital, estando em curso a

preparação de um instrumentolegal para regular esta matéria".

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GESTÃO DE ARQUIVOS

"THE NEW YORK TIMES"O jornal americano vai digitalizartodo o seu arquivo fotográfico,com cerca de 7 milhõesde imagens, numa parceriacom a Google Cloud, contandocom as ferramentas mais

avançadas de inteligência artificial.Além de digitalizar as imagens,vão ser usadas as anotaçõesmanuscritas nos versosdas fotografias para ajudara atribuir datas e locais.

HOLLYWOODA grande parte dos arquivoscinematográficos dependedo armazenamento em fitamagnética, desenvolvido na décadade 90 e que viu aumentar a sua

capacidade e resistência ao longodo tempo. O problemaé que, decadavez que uma'nova geração'mais avançada aparece nomercado, a anterior torna-seobsoleta. E os fabricantes

garantem compatibilidade apenasdurante duas gerações. Isso obrigaHollywood a investir milhões de

euros para migrar a informaçãoem permanência para os novosmodelos, sob pena de a perder se

não o fizer.

UNIVERSIDADE DE HARVARDEntre 2013 e 2019, a Bibliotecada Faculdade de Direitoda Universidade de Harvard

digitalizou cerca de 40 milhõesde páginas de decisões judiciaisdos Estados Unidos. Criou assim

o Caselaw Access Project,uma base de dados com 6,5milhões de casos pesquisáveldesde outubro.