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A ORIGEM DA TRADIÇÃO APOLOGÉTICA CRISTÃ E JUSTINO
MÁRTIR
ARZANI, Alessandro1
VENTURINI, Renata Lopes Biazotto2
1. Introdução
Filósofo, cristão, apologista e mártir, Justino ainda hoje desperta o interesse
acadêmico de muitos estudiosos. O interesse dessa pesquisa, por sua vez, é
especificamente investigar sobre as possíveis relações de Justino (c. 100 – c. 162/168 d.C.)
com a origem da tradição cristã.
As várias formas da literatura cristã antiga reclamam um cuidado especial em suas
análises. Devotando certa atenção aos escritos dos apologistas gregos do século II (d.C.),
Bernard Pouderon (2005, pp. 14-15) nota a perspicácia exigida para apontar os traçoscomuns desses escritos em “categorias”. Há discursos, diálogos, cartas ou tratados. São
endereçados a autoridades imperiais, ao público pagão ou comunidades ameaçadas. Os
inimigos são vários: relacionados ao paganismo, ao judaísmo, gnosticismo ou
marcionismo. Sensível a esses desafios Sara Parvis (2007, pp. 115-116) apresentou
recentemente uma significativa proposta sobre a origem da tradição apologética. Ela
propõe uma interpretação dessa tradição como “um fenômeno inventado em sua clássica
forma por Justino Mártir em várias circunstâncias específicas. Teria sido desenvolvido pela
geração seguinte e aperfeiçoado, bem como retido por Tertuliano, ainda que sua influência
sobre a literatura cristã tenha continuado até muito mais tarde de diferentes formas”3.
Arguindo sobre esse assentamento das bases da tradição apologética sobre as Apologias de
Justino, Parvis ousa apresentar um “fundador” para uma “categoria” específica de escritos
cristãos e, assim, inaugura várias possibilidades de discussões como essa pretendida aqui.
1 Mackenzie/UEM.2 Professora do Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá.3
“...a phenomenon invented in its classic form by Justin Martyr in very specific circumstances, develop bythe next generation, and perfected and retired by Tertullian, though its influence on Christian literature
continued long afterward in a variety of different forms”. (PARVIS, 2007, pp. 115-116)
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Em consideração a vários dos argumentos de Sara Parvis e tomando-a como
representante de uma tendência acadêmica, pretende-se compreender alguns aspectosespecíficos do surgimento dos primeiros escritos que viriam compor a tradição apologética
cristã e qual seria a possível relação de Justino Mártir com a mesma.
2. Eusébio de Cesareia, as apologias e os apologistas
O que convencionalmente é chamado de “tradição apologética cristã” é certamente
a denominação atribuída ao conjunto de escritos que foram associados às atitudes de defesados cristãos perseguidos no Império Romano entre os séculos II e IV d.C.
Eusébio de Cesareia foi o primeiro a escrever sobre a produção de apologias. A
primeira referência aparece na sua História Eclesiástica quando o mesmo fala sobre a obra
de Tertuliano, Apologia pelos cristãos (EUSEBIO, 1999, p. 219). Ele também emprega a
palavra “apologia” para se referir aos escritos de outros seis escritores do segundo século:
os de Quadatus e Aristides, os quais ele descreve como endereçados ao imperador Adriano
(117-138 d. C.); os de Justino, endereçados ao imperador Antoninus Pius (138-161 d.C.),
ao Senado, a Marcus Aurelius e Lucius Verus; os de Mileto de Sardis e Apolinário de
Hierápolis, ambos endereçados ao imperador Marcus Aurélius (161-177 d.C.); e o trabalho
do escritor antimontanista Miltiades, que se situa no reinado de Commodus (177-192 d.C.).
Destes sete, o trabalho de apenas três sobre viveram quase que por completo. Outras obras
hoje conhecidas como “apologias” ou não são assim chamadas por Eusébio ou não são
mencionadas.
Sara Parvis (2007) procura identificar algo em comum nas obras desses sete
escritores e sugere uma categoria eusebiana para apologia. Isso significa que, mediante
uma análise desses padrões, a autora admite, de certa forma, que Eusébio já havia
desenvolvido uma noção de “gênero apologético”. No entanto, é preciso examinar
cuidadosamente o sentido deste termo: “apologia”.
Observando o período anterior, nota-se em Apologia de Sócrates, escrita por Platão
pouco depois da morte de seu mestre em 399 a.C, o primeiro emprego do termo para
intitular uma obra. Trata-se de uma versão do discurso de Sócrates em sua própria defesa
diante das acusações de destruir a juventude, de não acreditar nos deus da cidade e de
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inventar outros deuses4 (PLATO, 1903). As acusações são denominadas kathgoria
[acusação, imputação] do verbo kathgorew [denunciar, apresentar acusações] e o acusado pode fazer uma apologia [defesa, autodefesa através de discurso], que deriva do verbo
apologeomai [falar em defesa própria]. Esses são os significados básicos, mas esses termos
podem sofrer variações nos textos antigos5. O outro texto que trata especificamente da
defesa desse filósofo é de Xenofontes, com o mesmo título Apologia de Sócrates. Em
ambos os textos o sentido atribuído à “apologia” é o que se opõe à “categoria”, ou seja,
“apologia” é um discurso de defesa (XENOPHON, 1921).
Seguindo os rastros desse tipo de texto, nota-se que é justamente um discurso de“defesa” que Flavio Josefo dirige a Ápion em favor dos judeus. Josefo defende a religião
judaica salientando a sua antiguidade e contrastando-a com a pretensão da cultura grega. O
caráter “apologético” do texto como um “discurso de defesa” fica por conta da resposta a
algumas alegações antijudaicas atribuídas ao escritor grego Ápion e os mitos acreditados
por Manetho (JOSÈPHE, 1930. pp. 39-243).
Portanto, não é difícil pensar que até o final do século I (d.C.) o conceito de
“apologia” dizia respeito ao discurso de defesa. Com a perseguição aos judeus e cristãos na
segunda metade desse século, multiplicam-se os motivos o desenvolvimento de
“apologias”. Porém, ainda é preciso observar mais proximamente essas condições e
averiguar se essa leva discursiva do II século, principalmente, chegou a constituir um
“gênero” específico ou se permaneceu apenas como nome atribuído a discursos de defesa
dos cristãos em suas diferentes formas.
Uma análise mais ampla sobre a constituição (ou não) dos gêneros apologéticos
cristãos deve ficar para uma outra oportunidade, entretanto, considerando que é Eusébio
quem primeiro apresenta uma ideia, mesmo que hipotética, do reconhecimento das formas
dos textos de defesa dos cristãos ou de suas crenças, é preciso considerar como ele
emprega o termo apologia. Além de empregar o termo apologia para se referir aos sete
4 “Σωκράτη φησν δικεν τούς τε νέους διαφθείροντα κα θεος ος πόλις νομίζει ο νομίζοντα,
τερα δ δαιμόνια καινά”. PLATO. Platonis Opera. ed. John Burnet. Oxford University Press. 1903. p. 24.T.P. “Sócrates, declara [a acusação], comete crime de destruir a juventude e não considerando os deuses quea cidade considera, mas acrescentando outras divindades desconhecidas”.5 A ocorrência do termo é comum nos escritos: Antiphon, On the Choreutes; Thucydides, The PeloponnesianWar; Isaeus, Philoctemon; Lysias, Against Alcibiades 1; Hyperides, Against Athenogenes; Paul’s Letter to
the Philippians. Para mais informações consulte LIDDLE, H. G.; SCOTT, Abridged Greek-English Lexicon. Oxford/New York: Oxford University Press, 1999. e RUSCONI, C. DICIONÁRIO grego do NovoTestamento. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2005.
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textos anteriormente citados, ele também o usa no seu sentido clássico como simples
“discurso de defesa”. Assim, ele faz menção de Pionio6
, padre de Esmirna, e suas“apologias” da fé na presença do povo e das autoridades (EUSEBIUS, 1928, p. 63).
Também faz menção à apologia da fé e dos cristãos desenvolvida por Vetio Epágato diante
do tribunal, na Gália nos tempos do Imperador Lucius Verus (161-169 d.C.) (EUSEBIUS,
1928, p. 74)7. Eusébio registrou, ainda, que Meliton, bispo de Sardes, e Apolinário de
Hierápolis dirigiram separadamente πολογας [apologias] ao Imperador Romano Marco
Aurélio (161-180 d.C.) ((EUSEBIUS, 1928, p. 71). No entanto, revelando um pouco de
falta de critérios claros para se remeter a esses “escritos de defesa dos cristãos”, logo naseqüência em seu texto Eusébio se refere ao escrito de Apolinário que havia chamado de
“apologia” como “discurso dirigido ao mencionado Imperador”. E apontando outros
escritos do mesmo Apolinário, indica os cinco συγγρμματα [tratados] Aos Gregos, dois
Sobre a verdade, dois Sobre os Judeus e os que depois desses escreveu Contra as heresias
dos frigios8 ((EUSEBIUS, 1928, p. 71). Semelhantemente, empregando συγγρμματα no
modo dativo plural, escreveu que Taciano “νρ τν πρτον ατο βον
σοφιστεσας ν τος λλνων μαθμασι κα δξαν ο σμικρν ν ατος
πενηνεγμνος πλεστ τε ν συγγρμμασιν ατο καταλιπν μνημεα, ν τ
Πρς λληνας στορε, λγων δε9 (1928, p. 64). Noutro momento, porém, ao
escrever sobre os escritos de Clemente de Alexandria, Eusébio (1928, p. 106) afirma que
este μνημονεει τε το πρς λληνας Τατιανο λγου [menciona o discurso de
Taciano, Aos gregos]. Nota-se que ele chama o texto que hoje é convencionalmente
chamado de “apologia”, Aos gregos, de “discurso”, empregando a forma genitiva de
λγοj. Termo que ele empregou do mesmo modo para se referir ao discurso de Musano
6 Sofreu o martírio em Esmirna no ano 250 d.C.7 Οττιος πγαθος [...] τοιοτος δ τις ν, τν οτως καθ µν λγως γινομνην κρσιν οκβστασεν, λλ περηγανκτησεν κα ξου κα ατς κουσθναι πολογομενος πρ τν
δελφν τι μηδν θεον μηδ σεβς στιν ν µν. [Vetio Epágato ... por ser desse tipo, nãosuportou que se procedesse contra nós com um juízo tão irracional. Profundamente indignado, pediu para sertambém ele ouvido e defendeu, em favor dos irmãos, que entre nós nada há de ateu nem de ímpio].8 [...] λγος πρς τν προειρημνον βασιλα κα Πρς λληνας συγγρμματα πντε κα Περ
ληθεας α β κα Πρς ουδαους α β κα μετ τατα συνγραψε κατ τς τν Φρυγναρσεως (EUSEBIUS, 1928, p. 71). Tradução: [discurso dirigido ao mencionado imperador, cinco livros Aos gregos, dois Sobre a verdade, dois Contra os judeus, e também os que, depois destes, escreveu Contra a
heresia dos frígios 9
Tradução: [varão que em seus primeiros tempos professou as ciências helênicas, nas quais alcançou não pequena fama, e deixou em seus escritos muitos monumentos de seu engenho, narra em seu discurso Aos
gregos como segue].
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aos seus irmãos que se inclinavam para a heresia dos encratitas (1928, p. 71). Essas três
palavras λγοj, συγγρμματα e πολογα aparecem em suas respectivas conjugações emuma perícope ímpar do texto: γ τοι πρς ατο δεδηλωμνος Μιλτιδης κα
λλας µν τς δας περ τ θεα λγια σπουδς μνμας καταλλοιπεν ν τε
ος πρς λληνας συνταξε λγοις κα τος πρς ουδαους, κατρ δως
ποθσει ν δυσν παντσας συγγρμμασιν, τι δ κα πρς τος κοσμικος
ρχοντας πρ ς μετει φιλοσοφας πεποηται πολογαν10 (EUSEBIUS, 1928, p.
90). Nesse sentido, Miltiades teria desenvolvido discursos (λγοj), que são organizados
em dois livros ou tratados (συγγρμματα) e ainda teria dirigido uma apologia (πολογα)às autoridades. Dessa forma, pode-se notar que, conforme o sentido clássico do termo,
apologia caracteriza um discurso (várias vezes quando se emprega λγοj) com um aspecto
forense, referindo-se à defesa de algo. Qualquer tipo de articulação discursiva pode ser
apresentada em tratado, texto, ou escrito conforme o campo semântico de συγγρμματα.
Há outras evidências no texto de Eusébio sobre essa questão, mas essa discussão ficaria
muito extensa.
Até certo ponto, Sara Parvis também admite que uma apologia pode assumir a
forma de uma carta ou tratado modelado sobre a oratória forense. Entretanto, é uma
precipitação tentar reconhecer nos escritos de Eusébio um padrão apologético que se
restrinja aos sete primeiros textos citados a princípio. Mas como destacou uma vez Jacques
Derrida (1980), não há texto sem gênero. Nesse sentido, Eusébio, seguindo uma tendência
geral, precisava pensar em algo para nomear esse tipo de escrito e assim o faz seguindo o
sentido clássico do termo apologia. Esse procedimento parece ainda embrionário, não
sendo possível identificar regras específicas para tal gênero. Parvis (2007), por outro lado,
recorre a esse padrão imaginário para questionar o enquadramento da Apologia de Aristide
de Atena entre os sete escritos.
Na verdade, as questões em torno da Apologia de Aristides surgem por outra razão.
Em 1878 um fragmento Armeniano do referido texto de Aristide foi publicado pelos
10 Tradução: [No que tange a Milcíades, por ele mesmo mencionado, também deixou-nos outras lembranças
de sua aplicação diligente às divinas Escrituras nos tratados organizou Aos gregos e Aos judeus, temas comos quais se debateu separadamente nos dois livros. E mais, fez também uma Apologia dirigida aos príncipesdo mundo em favor da filosofia por ele professada].
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melchitaristas11 de Veneza (Itália). Aristide sempre havia sido pouco conhecido dos
estudiosos. Por muitos anos só se conheciam alguns fragmentos de sua obra num papiro doséculo IV (POxy. 15: 1778) (GRANT, 1991, p. 382). Poucos anos mais tarde uma
descoberta prodigiosa tocou a J. Rendell Harris (1891), que em 1889 encontra na
Biblioteca do mosteiro de Santa Catarina do Sinai o Cod. Syn. 16 (século VI), contendo a
tradução siríaca da Apologia de Aristide. J. A. Robinson (1891, pp. 65-99) percebeu a
semelhança da apologia com o romance grego de Barlaam e Iosafat . Em 1923, H.J.M.
Milne (1923. pp. 73-77) publicou um artigo sobre novos fragmentos do POxy. 15: 1778
contendo poucos trechos da Apologia de Aristide. Depois dessas descobertas, tornou-seevidente um problema cronológico na literatura cristã antiga: a cópia armena do texto da
Apologia de Aristide confirmava o apontamento de Eusébio de que a mesma teria sido
direcionada ao Imperador Adriano, mas o texto siríaco registra que o apologista se dirigiu a
Antonino Pio. A questão dividiu opiniões. Edgar J. Goodspeed (1944) apresentou a
Apologia de Aristides como que endereçada ao Imperador Antonino Pio. Segundo essa
perspectiva Eusébio teria se enganado. Parvis (2007) também segue essa linha de
abordagem e apresenta uma série de argumentos procurando realocar o apologista Aristide
justamente ao Imperador Antonino Pio.
Por meio dessa estratégia, Parvis (2007) tece vários argumentos. Segundo essa
tendência por ela representada, Eusébio teria conhecido pouco da Apologia de Aristide, e
por isso a relacionou à forma de “apologia”. Procurando fazer valer a ideia de que naquele
tempo já existia uma noção relativamente identificável sobre a forma apologética, a autora
considera que o texto de Aristides não se enquadra nesse padrão. No entanto, tal
posicionamento deixa uma grande lacuna. Não há nenhuma evidência de que naquela
época existisse fronteiras relativamente definidas sobre um tipo de gênero que pudesse se
chamar apologético e que viesse excluir esse tipo de texto. Parvis (2007) também considera
que o vínculo estabelecido entre Aristides e Quadratus com o reinado de Adriano por
Eusébio pode ser uma dedução. A falta de menção à revolta de Bar Kokhba (132-135 d.C.)
na secção judaica e a ausência de quaisquer referências à destruição do templo sob
Vespasiano e Tito parece pouco significativo. Esse tipo de argumento desconsidera o fato
11
A Congregação Melquitarista (Ordo Mechitaristarum, Monachorum Armenorum sub Regula Sancti Benedicti), sob a sigla C.A.M, foi fundada pelo monge beneditino armeno Melchitar no ano de 1700, naArmenia.
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de que não existe uma regra que determine a necessidade da menção de eventos
semelhantes (PARVIS, 2007, p. 121). Na tentativa de explicar a associação entre Quadratus e Aristides, Parvis (2007)
considera que Eusébio poderia ter lido o texto anônimo antimontamista endereçado a
Abercius Marcellus que menciona outro Quadratus como parte de uma sucessão de
profetas da província da Ásia (EUSEBIO, 1999, p. 109). Mas não fica claro se Quadratus e
o profeta são as mesmas pessoas. Ele se refere ao profeta Quadratus primeiramente no
reino de Trajano, depois de sua discussão de Inácio de Antioquia e Policarpo, sublinhando
sua antiga data e o fato que ele toma o primeiro na lista de sucessão apostólica (EUSEBIO,1999, p. 72). Observando sua antiguidade e de certo modo sua relação com a Ásia Menor,
Eusébio teria buscado associá-lo à visita do Imperador Adriano àquela região (1999, p. 75).
Tal associação é dependente do rescrito de Adriano, anexado às Apologias de Justino e
transcrito na História Eclesiástica (1999, p. 79). Segundo a análise de Sara Pavis (2007),
juntamente a Apologia de Aristides teria sido apresentada por Eusébio como que
endereçada ao Imperador Adriano devido a essa mesma dependência do rescrito e à
confusão feita entre o nome desse Imperador com o do Imperador Tito Élio “Adriano”
Antonino Pio.
Desviando-se dessa suposta estratégia de Eusébio, a autora propõe, à luz da
indicação do texto siríaco de Aristides, que Apologia de Aristide seja interpretada como
texto dirigido a Antonino Pio. Mas não somente o texto de Aristides. A autora também
considera pertinente relacionar a Apologia de Quadratus a esse Imperado. Desse modo, a
cronologia apologética deveria contemplar Justino como o primeiro apologista cristão.
2. Justino Mártir e a gênese da tradição apologética
Uma leitura comparativa das apologias permite identificar semelhanças e
discrepâncias entre esses escritos. Por um processo semelhante, Parvis (2007) reconhece
algumas semelhanças entre as Apologias Justino e outras subseqüentes na cronologia
apologética.
O Apelo em favor dos cristãos de Atenagoras mostra traços muito parecidos aos dos
escritos de Justino. O apologista que viveu em Atenas dirigiu essa apologia aos
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Imperadores Marco Aurélio e Lucius Aurelius Commodus – que governaram juntos entre
177-180 d.C. – e emprega uma forma mais refinada de petição que a humilde petição privada de Justino. Atenagoras começa clamando por justiça para os cristãos que são
perseguidos simplesmente por serem cristãos, assim como Justino argumenta em sua
apologia. Como Justino, ele discorda das acusações de ateísmo, deslealdade ao império e
imoralidade. Semelhantemente a Justino, esse apologista explica o mal e a desordem no
mundo pela presença do demônio. Combate à idolatria e ao paganismo e assevera que os
demônios se agradam do sangue oferecido aos ídolos. Ele também rebate as acusações de
canibalismo e incesto, as quais Justino também se refere. Há em sua apologia o acordo deque os filósofos foram úteis para conduzir à verdade. Os traços platônicos não lhe são
omissos (ATHENAGORAS, 2001).
Além dessas semelhanças muito claras entre os apelos de Justino e de Atenágoras,
Parvis (2007, p. 125) afirma que as apologias de Melito, Apolinario e Miltiades escritas
nos reinados de Marco Aurélio e Commodus (177-180 d.C.) podem ter seguido a Justino
endereçando aos governantes reclamações sobre a anomalia das punições pelo mero fato de
se declarar cristão, e refutando as atribuições de ateísmo, incesto e canibalismo. Ou pelo
menos teriam seguido a Justino na ideia de endereçá-las ao imperador ou às autoridades
terrenas. Esse ponto de vista, porém, permanece aéreo. Considerando que pouco se sabe
sobre as características dos apelos desses respectivos escritos, faltam evidências para
relacioná-los ao estilo apologético de Justino.
Na Apologia de Tertuliano há uma discussão sobre a injustiça da punição dos
cristãos pelo mero nome de cristianismo, semelhante ao padrão temático encontrado tanto
nos escritos de Justino e Atenágoras. As atribuições de ateísmo, canibalismo e incesto
também compõem suas urdiduras, assim como fizeram estes dois apologistas. A
imoralidade no Império não escapa de suas crítica. Há também uma significativa reflexão
teológica sobre o Deus cristão (TERTULLIAN, 2001). Parvis (2007, p. 127) admite que de
certo modo outros escritos como Contra Celso de Origines, pode ser chamado de apologia,
mas no sentido próprio, ela morre com Tertuliano. Tal proposição, entanto merece mais
atenção.
Ao apresentar uma análise das apologias cristãs antigas a partir de uma tradição que
teria se desenvolvido subseqüentemente a Justino Mártir, Parvis tem em mente a mesma
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“norma” que teria orientado o desenvolvimento da tradição sinótica (2007, p. 123).
Segundo essa norma, primeiro vem uma estrutura mais simples (o Evangelho de Marcos) edepois uma mais completa. No caso das apologias, Justino teria fornecido um padrão;
Atenágoras o aprimorou e foi seguido por outros da Ásia; e por fim, Tertuliano teria
encerrado a tradição com chave de ouro. É em função dessa concepção que se negocia com
a cronologia apologética para relacionar a Apologia de Quadratus com Antonino Pio
juntamente com Aristides e não com o Imperador Adriano.
Talvez a principal dificuldade desse argumento esteja em conceber um padrão o
desenvolvimento de uma tradição apologética a partir de um fundador, Justino. Já eraconhecido que algumas apologias apresentavam traços semelhantes e outras discrepantes.
Considerando a tradição apologética a prática desenvolvida por determinados cristãos de
escrever ou proferir discursos de defesa dos cristãos e da fé a um alvo externo à
comunidade, é fundamental perceber que não precisa haver uniformidade nos seus padrões.
Nada impede que uma pessoa pouco conhecida como Quadratus tenha primeiro elaborado
uma apologia e direcionado-a a um Imperador. Tampouco é diminuído Justino por haver
escrito secundariamente apologias que podiam inspirar ou não outros escritores.
3. Considerações finais
Longe de querer apresentar uma formulação dogmática sobre a relação de Justino
Mártir e a tradição apologética, procurou-se até aqui apresentar uma reflexão, que ainda
precisa ser muito considera, sobre essa atividade de defesa da fé cristã. As profundas
proposições de Sara Parvis que apresentam Justino como fundador da tradição apologética
cristã foram tomadas com roteiro e uma série de novos questionamentos e interrogações
vieram a borbulhar nesse vasto mar que são as apologias antigas. A oposição entre as
informações de Eusébio e a fonte siríaca da Apologia de Aristides que relacionam esse
discurso, respectivamente, com o Imperador Adriano e Antonino Pio deverá fazer emergir
outras propostas com o aparecimento de novas fontes de informações. No entanto, a
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alocação da Apologia de Quadratus junto ao Imperador Antonino Pio até agora se mostra
imprópria. Justino Mártir continuará sendo lembrado pela sua grande paixão e firmeza emdefesa da fé, mas considerá-lo o fundador da tradição apologética ainda é algo que não
pode ser bem fundamentado. Por outro lado, é certo que suas Apologias apresentam boas
semelhança com as de Atenágoras e de Tertuliano. Quanto às possíveis semelhanças entre
suas Apologias e as de Melito, Apolinario e Miltiades, talvez novas fontes possam dar um
veredito mais favorável do que o que se obtém com as atuais evidências.
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