aprender antropologia cap 1 e 2 laplantine

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Capítulos 1 e 2 Integral, correção de acentuação e removida citações.

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Pagina 5

Prefcio

A ANTROPOLOGIA: uma chave para a compreenso do homem

Uma das maneiras mais proveitosas de se dar a conhecer uma rea do conhecimento traar-lhe a histria, mostrando como foi variando o seu colorido atravs dos tempos, como deitou ramicaes novas que alteraram seu tema de base ampliando-o. Para tanto requerida uma erudio dificilmente encontrada entre os especialistas, pois erudio e especializao constituem-se em opostos: a erudio abrindo-se na nsia de dominar a maior quantidade possvel de saber, a especializao se fechando no pequeno espao de um conhecimento minucioso.

O livro do antroplogo francs Franois Laplantine, professor da Universidade de Lyon II, autor de vrias obras importantes e que hoje efetua pesquisas no Brasil, rene as duas perspectivas: vai balizando o conhecimento antropolgico atravs da histria e mostrando as diversas perspectivas atuais. Em primeiro lugar, efetua a anlise de seu desenvolvimento, que permite uma compreenso melhor de suas caractersticas especificas; em seguida, apresenta as tendncias contemporneas e, finalmente, um panorama dos problemas colocados pela prtica e por suas possibilidades de aplicao.

Trata-se de uma introduo a Antropologia que parece fabricada de encomenda para estudantes brasileiros. A formao nacional em Cincias Sociais (e a Antropologia no foge a regra. . .) segue a via da especializao, muito mais do que a da formao geral. Os estudantes leem e discutem determinados autores, ou ento os componentes de uma escola bem delimitada; o conhecimento lhes inculcado atravs do conhecimento de um problema ou de um ramo do saber na maioria de seus aspectos, nos debates que suscitou, nas respostas e solues que inspirou. A histria da disciplina, assim como da rea de conhecimentos a que pertence, o exame crtico de todas as proposies temticas que foi suscitando ao longo do tempo, permanecem muitas vezes fora das cogitaes do curso, como se fosse algo de somenos importncia.

No Brasil o presente tem muita fora; nele se vive intensamente, ele que se busca compreender profundamente, na convico de que nele esto as razes do futuro. Pas em construo, seus habitantes em geral, seus estudiosos em particular, tem conscincia ntida de que esto criando algo, de que sua ao de importncia capital como fator por excelncia do provir. E, para chegar

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A ela escolhe-se uma nica via preferencial, a especializao numa direo, como se fora dela no existisse salvao.

No entanto, com esta maneira de ser to mercante, perdem-se de vista componentes fundamentais desse mesmo provir: o passado, por um lado, e por outro lado a multiplicidade de caminhos que tm sido traados para constru-lo. A necessidade real, no preparo dos estudiosos brasileiros em Cincias Sociais, o reforo do conhecimento do passado de sua prpria disciplina e da variedade de ramos que foi originando at a atualidade. Este livro, em muito boa ora traduzido, oferece a eles um primeiro panorama geral da Antropologia e seu lugar no mbito do saber.

Construdo dentro da tradio francesa do pensamento analtico e da clareza de expresso, esta introduo ao conhecimento da Antropologia atinge, na verdade, um pblico mais amplo do que simplesmente o dos estudantes e especialistas de Cincias Sociais. Sua difuso se far sem dvida entre todos aqueles atrados para os problemas do homem enquanto tal, que buscam conhecer ao homem enquanto seu igual e ao mesmo tempo outro.

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Introduo

O Campo e a Abordagem Antropolgicos

O homem nunca parou de interrogar-se sobre si mesmo. Em todas as sociedades existiram homens que observavam homens. Houve at alguns que eram tericos e forjaram, como diz Lvi-Strauss, modelos elaborados em casa. A reflexo do homem sobre o homem e sua sociedade, e a elaborao de um saber so, portanto, to antigos quanto a humanidade, e se deram tanto na

Asia como na frica, na Amrica, na Oceania ou na Europa. Mas o projeto de fundar uma cincia do homem uma antropologia -, ao contrrio, muito recente. De fato, apenas no final do sculo 18 que comea a se constituir um saber cientfico (ou pretensamente cientifico) que toma o homem como objeto de conhecimento, e no mais a natureza; apenas nessa poca que o esprito cientifico pensa, pela primeira vez, em aplicar ao prprio homem os mtodos at ento utilizados na rea fsica ou da biologia.

Isso constitui um evento considervel na histria do pensamento do homem sobre o homem. Um evento do qual talvez ainda hoje no estejamos medindo todas as consequncias. Esse pensamento tinha sido at ento mitolgico, artstico, teolgico, losco, mas nunca cientifico no que dizia respeito ao homem em si. Trata-se, desta vez, de fazer passar este ltimo do estatuto de sujeito do conhecimento ao de objeto da cincia. Finalmente, a antropologia, ou mais precisamente, o projeto antropolgico que se esboa nessa poca muito tardia na Histria -no podia existir o conceito de homem enquanto regies da humanidade permaneciam inexploradas -surge * em uma regio muito pequena do mundo: a Europa. Isso trar, evidentemente, como veremos mais adiante, consequncias importantes.

Para que esse projeto alcance suas primeiras realizaes, para que o novo saber comece a adquirir um incio de legitimidade entre outras disciplinas cientificas, ser preciso esperar a segunda metade do sculo 19, durante o qual a antropologia se atribui objetos empricos autnomos: as sociedades ento ditas primitivas, ou seja, exteriores as reas de civilizao europeias ou norte-americanas. A cincia, ao menos tal como concebida na poca, supe uma dualidade radical entre o observador e seu objeto. Enquanto que a separao (sem a qual no h experimentao possvel) entre o sujeito observante e o objeto observado obtida na fsica (como na biologia, botnica, ou zoologia) pela natureza suficientemente diversa dos dois termos presentes, na histria, pela distncia no tempo que separa o historiador da sociedade

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Estudada, ela consistir na antropologia, nessa poca -e por muito tempo em uma distncia definitivamente geogrca. As sociedades estudadas pelos primeiros antroplogos so sociedades longnquas as quais so atribudas as seguintes caractersticas: sociedades de dimenses restritas; que tiveram poucos contatos com os grupos vizinhos; cuja tecnologia pouco desenvolvida em relao a nossa; e nas quais h uma menor especializao das atividades e funes sociais. So tambm qualicadas de simples; em consequncia, elas iro permitir a compreenso, como numa situao de laboratrio, da organizao complexa de nossas prprias sociedades.

***

A antropologia acaba, portanto, de atribuir-se um objeto que lhe prprio:

O estudo das populaes que no pertencem a civilizao ocidental. Sero necessrias ainda algumas dcadas para elaborar ferramentas de investigao que permitam a coleta direta no campo das observaes e informaes. Mas logo aps ter rmado seus prprios mtodos de pesquisa -no incio do sculo XX -a antropologia percebe que o objeto emprico que tinha escolhido (as sociedades primitivas) est desaparecendo; pois o prprio Universo dos selvagens no de forma alguma poupado pela evoluo social. Ela se v, portanto, confrontada a uma crise de identidade. Muito rapidamente, uma questo se coloca, a qual, como veremos neste livro, permanece desde seu nascimento: o m do selvagem ou, como diz Paul Mercier (1966), ser que a morte do primitivo h de causar a morte daqueles que haviam se dado como tarefa o seu estudo? A essa pergunta vrios tipos de resposta puderam e podem ainda ser dados. Detenhamo-nos em trs deles.

1) O antroplogo aceita, por assim dizer, sua morte, e volta para o mbito das outras cincias humanas. Ele resolve a questo da autonomia problemtica de sua disciplina reencontrando, especialmente a sociologia, e notadamente

O que chamado de sociologia comparada.

2) Ele sai em busca de uma outra rea de investigao: o campons, este selvagem de dentro, objeto ideal de seu estudo, particularmente bem adequado, j que foi deixado de lado pelos outros ramos das cincias do homem.

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3) Finalmente, e aqui temos um terceiro caminho, que inclusive no exclui

o anterior (pelo menos enquanto campo de estudo), ele arma a especicidade de sua prtica, no mais atravs de um objeto emprico constitudo (o selvagem, o campons), mas atravs de uma abordagem epistemolgica constituinte. Essa a terceira via que comearemos a esboar nas pginas que se seguem, e que ser desenvolvida no conjunto deste trabalho. O objeto terico da antropologia no est ligado, na perspectiva na qual comeamos a nos situar a partir de agora, a um espao geogrco, cultural ou histrico particular. Pois a antropologia no seno um certo olhar, um certo enfoque que consiste em: a) o estudo do homem inteiro; b) o estudo do homem em todas as sociedades, sob todas as latitudes em todos os seus estados e em todas as pocas.

O estudo do homem inteiro

S pode ser considerada como antropolgica uma abordagem integrativa que objetive levar em considerao as mltiplas dimenses do ser humano em sociedade. Certamente, o acmulo dos dados colhidos a partir de observaes diretas, bem como o aperfeioamento das tcnicas de investigao, conduzem necessariamente a uma especializao do saber. Porm, uma das vocaes maiores de nossa abordagem consiste em no parcelar o homem mas, ao contrrio, em tentar relacionar campos de investigao frequentemente separados. Ora, existem cinco

reas principais da antropologia, que nenhum pesquisador pode, evidentemente, dominar hoje em dia, mas as quais ele deve estar sensibilizado quando trabalha de forma prossional em algumas delas, dado que essas cinco reas mantm relaes estreitas entre si.

A antropologia biolgica (designada antigamente sob o nome de antropologia fsica) consiste no estudo das variaes dos caracteres biolgicos do homem no espao e no tempo. Sua problemtica a das relaes entre o patrimnio gentico e o meio (geogrco, ecolgico, social), ela analisa as particularidades morfolgicas e siolgicas ligadas a um meio ambiente, bem como a evoluo destas particularidades. O que deve, especialmente, a cultura a este patrimnio, mas tambm, o que esse patrimnio (que se transforma a cultura?)

Assim, o antroplogo biologista levara em considerao os

fatores culturais que influenciam o crescimento e a maturao do indivduo.

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Ele se perguntar, por exemplo: por que o desenvolvimento psicomotor da criana africana mais adiantado do que o da criana europeia? Essa parte da antropologia, longe de consistir apenas no estudo das formas de crnios, mensuraes do esqueleto, tamanho, peso, cor da pele, anatomia comparada as raas c dos sexos, interessa-se em especial desde os anos 50 pela gentica das populaes, que permite discernir o que diz respeito ao inato e ao adquirido, sendo que um e outro esto interagindo continuamente. Ela tem, a meu ver, um papel particularmente importante a exercer para que no sejam rompidas as relaes entre as pesquisas das cincias da vida e as das cincias humanas.

A antropologia pr-histrica o estudo do homem atravs dos vestgios materiais enterrados no solo (ossadas, mas tambm quaisquer marcas da atividade humana). Seu projeto, que se liga a arqueologia, visa reconstituir as sociedades desaparecidas, tanto em suas tcnicas e organizaes sociais, quanto em suas produes culturais e artsticas. Notamos que esse ramo da antropologia trabalha com uma abordagem idntica as da antropologia histrica e da antropologia social e cultural de que trataremos mais adiante. O historiador antes de tudo um historigrafo, isto , um pesquisador que trabalha a partir do acesso direto aos textos. O especialista em pr-histria recolhe, pessoalmente, objetos no solo. Ele realiza um trabalho de campo, como o realizado na antropologia social na qual se beneficia de depoimentos vivos.

4 antropologia lingustica. A linguagem , com toda evidncia, parte do patrimnio cultural de uma sociedade. E atravs dela que os indivduos que compem uma sociedade se expressam e expressam seus valores, suas preocupaes, seus pensamentos. Apenas o estudo da lngua permite compreender: o como os homens pensam o que vivem e o que sentem, isto , suas categorias psicoafetivas e psicocognitivas (etnolingistica); o como eles expressam o universo e o social (estudo da literatura, no apenas escrita, mas tambm de tradio oral); o como, nalmente, eles interpretam seus prprios saber e saber-fazer (rea das chamadas etnocincias).

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De vrias outras, no diz respeito apenas, e de longe, ao estudo dos dialetos (dialetologia). Ela se interessa tambm pelas imensas reas abertas pelas novas tcnicas modernas de comunicao (mass media e cultura do audiovisual).

A antropologia psicolgica. Aos trs primeiros polos de pesquisa que foram mencionados, e que so habitualmente os nicos considerados como constitutivos (com antropologia social e a cultural, das quais falaremos a seguir) do campo global da antropologia, fazemos questo pessoalmente de acrescentar um quinto polo: o da antropologia psicolgica, que consiste no estudo dos processos e do funcionamento do psiquismo humano. De fato, o antroplogo em primeira instncia confrontado no a conjuntos sociais, e sim a indivduos. Ou seja, somente atravs dos comportamentos -conscientes e inconscientes dos seres humanos particulares podemos apreender essa totalidade sem a qual no antropologia. E a razo pela qual a dimenso psicolgica (e tambm psicopatolgica) absolutamente indissocivel do campo do qual procuramos aqui dar conta. Ela parte integrante dele.

A antropologia social e cultural (ou etnologia) nos deter por muito mais tempo. Apenas nessa rea temos alguma competncia, e este livro tratar essencialmente dela. Assim sendo, toda vez que utilizarmos a partir de agora o termo antropologia mais genericamente, estaremos nos referindo a antropologia social e cultural (ou etnologia), mas procuraremos nunca esquecer que ela apenas um dos aspectos da antropologia. Um dos aspectos cuja abrangncia considervel, j que diz respeito a tudo que constitui uma sociedade: seus modos de produo econmica, suas tcnicas, sua organizao poltica e jurdica, seus sistemas de parentesco, seus sistemas de conhecimento, suas crenas religiosas, sua lngua, sua psicologia, suas criaes artsticas.

Isso posto, esclareamos desde j que a antropologia consiste menos no levantamento sistemtico desses aspectos do que em mostrar a maneira particular com a qual esto relacionados entre si e atravs da qual aparece a especicidade de uma sociedade. E precisamente esse ponto de vista da totalidade, e o fato de que o antroplogo procura compreender, como diz Lvi-Strauss, aquilo que os homens no pensam habitualmente em fixar pedra ou no papel (nossos gestos, nossas trocas simblicas, os menores detalhes dos nossos

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comportamentos, que faz dessa abordagem um tratamento fundamentalmente diferente dos utilizados setorialmente pelos gegrafos, economistas, juristas, socilogos, psiclogos. . .

O estudo do homem em sua totalidade

A antropologia no apenas o estudo de tudo que compe uma sociedade. Ela o estudo de todas as sociedades humanas (a nossa inclusive), ou seja, das culturas da humanidade como um todo em suas diversidades histricas e geogrca. Visando constituir os arquivos da humanidade em suas diferenas significativas, ela, inicialmente privilegiou claramente as reas de civilizao Mas a antropologia no poderia ser definida ao exteriores a nossa. Por um objeto emprico qualquer (e, em especial, pelo tipo de sociedade ao qual ela a princpio se dedicou preferencialmente ou mesmo exclusivamente). Se seu campo de observao consistisse no estudo das sociedades preservadas do contato com o Ocidente, ela se encontraria hoje, como j comentamos, sem objeto.

Ocorre, porm, que se a especicidade da contribuio dos antroplogos em relao aos outros pesquisadores em cincias humanas no pode ser confundida com a natureza das primeiras sociedades estudadas (as sociedades extra-europias), ela a meu ver indissociavelmente ligada ao modo de conhecimento que foi elaborado a partir do estudo dessas sociedades: a observao direta, por impregnao lenta e contnua de grupos humanos minsculos com os quais mantemos uma relao pessoal.

Alm disso, apenas a distncia em relao a nossa sociedade (mas uma distncia que faz com que nos tornemos extremamente prximos daquilo que longnquo) nos permite fazer esta descoberta: aquilo que tomvamos por natural em ns mesmos , de fato, cultural; aquilo que era evidente Infinitamente problemtico. Disso decorre a necessidade, na formao antropolgica, daquilo que no hesitarei em chamar de estranhamento (depaysement), a perplexidade provocada pelo encontro das culturas que so para ns as mais distantes, e cujo encontro vai levar a uma medicao do olhar que se tinha sobre si mesmo. De fato, presos a uma nica cultura, somos no apenas cegos mas mopes quando se trata da nossa.

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A experincia da alteridade (e a elaborao dessa experincia) leva-nos a ver aquilo que nem teramos conseguido imaginar, dada a nossa dificuldade em fixar nossa ateno no que nos habitual, familiar, cotidiano, e que consideramos evidente. Aos poucos, notamos que o menor dos nossos comportamentos (gestos, mmicas, posturas, reaes afetivas) no tem realmente nada de natural. Comeamos, ento, a nos surpreender com aquilo que diz respeito a ns mesmos, a nos espiar. O conhecimento (antropolgico) da nossa cultura passa inevitavelmente pelo conhecimento das outras culturas; e devemos especialmente reconhecer que somos uma cultura possvel entre tantas outras, mas no a nica.

Aquilo que, de fato, caracteriza a unidade do homem, de que a antropologia, como j o dissemos e voltaremos a dizer, faz tanta questo, sua aptido praticamente infinita para inventar modos de vida e formas de organizao social extremamente diversos. E, a meu ver, apenas a nossa disciplina permite notar, com a maior proximidade possvel, que essas formas de comportamento e de vida em sociedade que tomvamos todos espontaneamente por inatas (nossas maneiras de andar, dormir, nos encontrar, nos emocionar, comemorar os eventos de nossa existncia. . .) so, na realidade, o produto de escolhas culturais. Ou seja, aquilo que os seres humanos tm em comum sua capacidade para se diferenciar uns dos outros, para elaborar costumes, lnguas, modos de conhecimento, instituies, jogos profundamente diversos; pois se h algo natural nessa espcie particular que a espcie humana, sua aptido a variao cultural

O projeto antropolgico consiste, portanto, no reconhecimento, conhecimento, juntamente com a compreenso de uma humanidade plural. Isso supe ao mesmo tempo a ruptura com a da monotonia do duplo, do igual, do idntico, e com a excluso num irredutvel alhures. As sociedades mais diferentes da nossa, que consideramos espontaneamente como indiferenciadas, so na realidade to diferentes entre si quanto o so da nossa. E, mais ainda, elas so para cada uma delas muito raramente homogneas (como seria de se esperar) mas, pelo contrrio, extremamente diversificadas, participando ao mesmo tempo de uma comum humanidade.

A abordagem antropolgica provoca, assim, uma verdadeira revoluo epistemolgica, que comea por uma revoluo do olhar. Ela implica um descentramento radical, uma ruptura com a idia de que existe um centro do mundo, e, correlativamente, uma ampliao do saber e uma mutao de si mesmo.

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Como escreve Roger Bastide em sua Anatomia de Andr Gide: Eu sou mil possveis em mim; mas no posso me resignar a querer apenas um deles.

A descoberta da alteridade a de uma relao que nos permite deixar de identificar nossa pequena provncia de humanidade com a humanidade, e correlativamente deixar de rejeitar o presumido selvagem fora de ns mesmos. Confrontados a multiplicidade, a priori enigmtica, das culturas, somos aos poucos levados a romper com a abordagem comum que opera sempre a naturalizao do social (como se nossos comportamentos estivessem inscritos em ns desde o nascimento, e no fossem adquiridos no contato com a cultura na qual nascemos). A romper igualmente com o humanismo clssico que tambm consiste na identificao do sujeito com ele mesmo, e da cultura com a nossa cultura. De fato, a filosoa clssica (antolgica com So Toms, reflexiva com Descartes, criticista com Kant, histrica com Hegel), mesmo sendo filosoa social, bem como as grandes religies, nunca se deram como objetivo o de pensar a diferena (e muito menos, de pens-la cientificamente), e sim o de reduzi-la, frequentemente inclusive de uma forma igualitria e com as melhores intenes do mundo.

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O pensamento antropolgico, por sua vez, considera que, assim como uma civilizao adulta deve aceitar que seus membros se tornem adultos, ela deve igualmente aceitar a diversidade das culturas, tambm adultas. Estamos, evidentemente, no direito de nos perguntar como a humanidade pde permanecer por tanto tempo cega para consigo mesma, amputando parte de si prpria e fazendo, de tudo que no eram suas ideologias dominantes sucessivas, um objeto de excluso. Desconfiemos porm do pensamento -que seria

o cmulo em se tratando de antropologia -de que estamos nalmente mais lcidos, mais conscientes, mais livres, mais adultos, como acabamos de escrever, do que em uma poca da qual seria errneo pensar que est definitivamente encerrada. Pois essa transgresso de uma das tendncias dominantes de nossa sociedade -o expansionismo ocidental sob todas as suas formas econmicas, polticas, intelectuais -deve ser sempre retomada. O que significa de forma alguma que o antroplogo esteja destinado, seja levado por alguma crise de identidade, ao adotar ipso facto a lgica das outras sociedades e a censurar a sua. Procuraremos, pelo contrrio, mostrar nesse livro que a dvida e a crtica de si mesmo s so cientificamente fundamentadas se forem acompanhadas da interpelao crtica dos de outrem.

Dificuldades

Se os antroplogos esto hoje convencidos de que uma das caractersticas maiores de sua prtica reside no confronto pessoal com a alteridade, isto , convencidos do fato de que os fenmenos sociais que estudamos so fenmenos que observamos em seres humanos, com os quais estivemos vivendo; se eles so tambm unnimes em pensar que h unidade da famlia humana, a famlia dos antroplogos , por sua vez, muito dividida, quando se trata de dar conta (aos interessados, aos seus colegas, aos estudantes, a si mesmo, e de forma geral a todos aqueles que tm o direito de saber o que verdadeiramente fazem os antroplogos) dessa unidade mltipla, desses materiais e dessa experincia.

1) A primeira dificuldade se manifesta, como sempre, ao nvel das palavras. Mas ela , tambm aqui, particularmente reveladora da juventude de nossa disciplina, que no sendo, como a fsica, uma cincia constituda, continua no tendo ainda optado definitivamente pela sua prpria designao. Etnologia ou antropologia? No primeiro caso (que corresponde a tradio terminolgica dos franceses), insiste-se sobre a pluralidade irredutvel das etnias, isto , das culturas. No segundo (que mais usado nos pases anglo

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Saxnicos), sobre a unidade do gnero humano. E optando-se por antropologia, deve-se falar (com os autores britnicos) em antropologia social cujo objeto privilegiado o estudo das instituies -ou (com os autores americanos) de antropologia cultural -que consiste mais no estudo dos comportamentos.

2) A segunda dificuldade diz respeito ao grau de cientificidade que convm atribuir a antropologia. O homem est em condies de estudar cientificamente o homem, isto , um objeto que de mesma natureza que o sujeito? E nossa prtica se encontra novamente dividida entre os que pensam, com Radclie-Brown (1968), que as sociedade so sistemas naturais que devem ser estudados segundo os mtodos comprovados pelas cincias da natureza, e os que pensam, com Evans-Pritchard (1969), que preciso tratar as sociedades no como sistemas orgnicos, mas como sistemas simblicos. Para estes ltimos, longe de ser uma cincia natural da sociedade (Radclie-Brown), a Antropologia deve antes ser considerada como uma arte (Evans-Pritchard).

3) Uma terceira dificuldade provm da relao ambgua que a antropologia mantm desde sua gnese com a Histria. Estreitamente vinculadas nos sculos 18 e 19, as duas prticas vo rapidamente se emancipar uma da outra no sculo XX, procurando ao mesmo tempo se reencontrar periodicamente. As rupturas manifestas se devem essencialmente a antroplogos. Evans-Pritchard: O conhecimento da histria das sociedades no de

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nenhuma utilidade quando se procura compreender o funcionamento das instituies. Mais categrico ainda, Leach escreve: A gerao de antroplogos a qual perteno tira seu orgulho de sempre ter-se recusado a tomar a Histria em considerao. Convm tambm lembrar aqui a distino agora famosa de Lvi-Strauss opondo as sociedades frias, isto , prximas do grau zero de temperatura histrica, que so menos sociedades sem histria, do que sociedades que no querem ter estrias (nicos objetos da antropologia clssica) a nossas prprias sociedades qualicadas de sociedades quentes.

Essa preocupao de separao entre as abordagens histrica e antropolgica est longe, como veremos, de ser unnime, e a histria recente da antropologia testemunha tambm um desejo de coabitao entre as duas disciplinas. Aqui, no Nordeste do Brasil, onde comeo a escrever este livro, desde 1933, um autor como Gilberto Freyre, empenhando-se em compreender a formao da sociedade brasileira, mostrou o proveito que a antropologia podia tirar do conhecimento histrico.

4) Uma quarta dificuldade provm do fato de que nossa prtica oscila sem parar, e isso desde seu nascimento, entre a pesquisa que se pode qualificar de fundamental e aquilo que designado sob o termo de antropologia aplicada.

Comearemos examinando o segundo termo da alternativa aqui colocada e que continua dividindo profundamente os pesquisadores. Durkheim considerava que a sociologia no valeria sequer uma hora de dedicao se ela no pudesse ser til, e muitos antroplogos compartilham sua opinio. Margaret Mead, por exemplo, estudando o comportamento dos adolescentes das ilhas Samoa (1969), pensava que seus estudos deveriam permitir a instaurao de uma sociedade melhor, e, mais especificamente a aplicao de uma pedagogia menos frustrante a sociedade americana. Hoje vrios colegas nossos consideram que a antropologia deve colocar-se a servio da revoluo (segundo especialmente) ean Copans, 1975). O pesquisador torna-se, ento, um militante, um antroplogo revolucionrio, contribuindo na construo de uma antropologia da libertao. Numerosos pesquisadores ainda reivindicam a qualidade de especialistas de conselheiros, participando em especial dos programas de desenvolvimento e das decises polticas relacionadas a elaborao desses programas. Queramos simplesmente observai aqui que a antropologia aplicada no uma grande novidade. E por ela que, com a colonizao, a antropologia teve incio.

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Foi com ela, inclusive, que se deu o incio da Antropologia, durante a colonizao. No extremo oposto das atitudes engajadas das quais acabamos de falar, encontramos a posio determinada de um Claude Lvi-Strauss que, aps ter lembrado que o saber cientfico sobre o homem ainda se encontrava num estgio extremamente primitivo em relao ao saber sobre a natureza, escreve:

Supondo que nossas cincias um dia possam ser colocadas a servio da ao prtica, elas no tm, no momento, nada ou quase nada a oferecer. O verdadeiro meio de permitir sua existncia, dar muito a elas, mas sobretudo no lhes pedir nada.

As duas atitudes que acabamos de citar a antropologia pura ou a antropologia diluda como diz ainda Lvi-Strauss encontram na realidade suas primeiras formulaes desde os primrdios da confrontao do europeu com o selvagem. Desde o sculo 16, de fato, comea a se implantar aquilo o que alguns chamariam de arqutipos do discurso etnolgico, que podem ser ilustrados pelas posies respectivas de um Jean de Lery e de um Sahagun. Jean de Lery foi um huguenote* francs que permaneceu algum tempo no Brasil entre os Tupinambs. Longe de procurar convencer seus hspedes da superioridade da cultura europeia e da religio reformada, ele os interroga e, sobretudo, se interroga. Sahagun foi um franciscano espanhol que alguns anos mais tarde realizou uma verdadeira investigao no Mxico.

Perfeitamente vontade entre os astecas, ele estava l enquanto missionrio a m de converter a populao que estuda.

O fato da diversidade das ideologias sucessivamente defendidas (a converso religiosa, a revoluo, a ajuda ao Terceiro Mundo, as estratgias daquilo que hoje chamado desenvolvimento ou ainda mudana social) no altera nada quanto ao mago do problema, que o seguinte: O antroplogo deve contribuir, enquanto antroplogo, para B transformao das sociedades que ele estuda

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Eu responderia, no que me diz respeito, da seguinte forma: nossa abordagem, que consiste antes em nos surpreender com aquilo que nos mais familiar (aquilo que vivemos cotidianamente na sociedade na qual nascemos) e em tornar mais familiar aquilo que nos estranho (os comportamentos, as crenas, os costumes das sociedades que no so as nossas, mas nas quais poderamos ter nascido), est diretamente confrontada hoje a um movimento de homogeneizao, ao meu ver, sem precedente na Histria: o desenvolvimento de uma forma de cultura industrial-urbana e de uma forma de pensamento que a do racionalismo social. Eu pude, no decorrer de minhas estadias sucessivas entre os Berberes do Mdio Atlas e entre os Bauls da Costa do Marm, perceber realmente o fascnio que exerce este modelo, perturbando completamente os modos de vida (a maneira de se alimentar, de se vestir, de se distrair, de se encontrar, de pensar 12 e levando a novos comportamentos que no decorrem de uma escolha)

A questo que est hoje colocada para qualquer antroplogo a seguinte: h uma possibilidade em minha sociedade (qualquer que seja) permitindo lhe o acesso a um estgio de sociedade industrial (ou ps-industrial) sem conflito dramtico, sem risco de despersonalizao?

Minha convico de que o antroplogo, para ajudar os atores sociais a responder a essa questo, no deve, pelo menos enquanto antroplogo, trabalhar para a transformao das sociedades que estuda. Caso contrrio, seria conveniente, de fato, que se convertesse em economista, agrnomo, mdico, poltico, a no ser que ele seja motivado por alguma concepo messinica da antropologia. Auxiliar uma determinada cultura na explicitao para ela mesma de sua prpria diferena uma coisa; organizar poltica, econmica e socialmente a evoluo dessa diferena uma outra coisa. Ou seja, a participao do antroplogo naquilo que hoje a vanguarda do anticolonialismo e da luta para os direitos humanos e das minorias tnicas , a meu ver, uma consequncia de nossa profisso, mas no a nossa profisso propriamente dita.

Somos, por outro lado, diretamente confrontados a uma dupla urgncia qual temos o dever de responder.

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a) Urgncia de preservao dos patrimnios culturais locais ameaados (e a respeito disso a etnologia est desde o seu nascimento lutando contra o tempo para que a transcrio dos arquivos orais e visuais possa ser realizada a tempo, enquanto os ltimos depositrios das tradies ainda esto vivos) e, sobretudo, de restituio aos habitantes das diversas regies nas quais trabalhamos, de seu prprio saber e saber-fazer. Isso supe uma ruptura com a concepo assimtrica da pesquisa, baseada na captao de informaes. No h, de fato, antropologia sem troca, isto , sem itinerrio no decorrer do qual as partes envolvidas chegam a se convencer reciprocamente da necessidade de no deixar se perder formas de pensamento e atividade nicas.

b) Urgncia de anlise das mutaes culturais impostas pelo desenvolvimento extremamente rpido de todas as sociedades contemporneas, que no so mais sociedades tradicionais, e sim sociedades que esto passando por um desenvolvimento tecnolgico absolutamente indito, por mutaes de suas relaes sociais, por movimentos de migrao Interna, e por um processo de urbanizao acelerado. Atravs da especicidade de sua abordagem, nossa disciplina deve, no fornecer respostas no lugar dos interessados, e sim formular questes com eles, elaborar com eles uma reflexo racional (e no mais mgica) sobre os problemas colocados pela crise mundial que e tambm uma crise de identidade ou ainda sobre o pluralismo cultural, isto , o encontro de lnguas, tcnicas, mentalidades. Em suma, a pesquisa antropolgica, que no de forma alguma, como podemos notar, uma atividade de luxo, sem nunca se substituir aos projetos e as decises dos prprios atores sociais, tem hoje como vocao maior a de propor no solues mas instrumentos de investigao que podero ser utilizados em especial para reagir ao choque da aculturao, isto , ao risco de um desenvolvimento conflituoso levando a violncia negadora das particularidades econmicas, sociais, culturais de um povo.

5) Uma quinta dificuldade diz respeito, nalmente, a natureza desta obra que deve apresentar, em um nmero de pginas reduzido, um campo de pesquisa imenso, cujo desenvolvimento recente extremamente especializado. No final do sculo 19, um nico pesquisador podia, no limite, dominar o campo global da antropologia (Boas fez pesquisas em antropologia social, cultural, lingustica, pr-histrica, e tambm mais recentemente o caso de Ktoeber, provavelmente o ltimo antroplogo que explorou: com sucesso uma rea to extensa). No , evidentemente, o caso hoje em dia. O antroplogo considera agora com razo que competente apenas dentro de uma rea restrita de sua prpria disciplina e para uma rea geogrca delimitada.

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Era-me portanto impossvel, dentro de um texto de dimenses to restritas, dar conta, mesmo de uma forma parcial, do alcance e da riqueza dos campos abertos pela antropologia. Muito mais modestamente, tentei colocar um certo nmero de referncias, definir alguns conceitos a partir dos quais o leitor poder, espero, interessar-se em ir mais adiante.

Ver-se- que este livro caminha em espiral. As preocupaes que esto no centro de qualquer abordagem antropolgica e que acabam de ser mencionadas sero retomadas, mas de diversos pontos de vista. Eu lembrarei em primeiro lugar quais foram as principais etapas da constituio de nossa disciplina e como, atravs dessa histria da antropologia, foram se colocando progressivamente as questes que continuam nos interessando at hoje. Em seguida, esboarei os polos tericos -a meu ver cinco -em volta dos quais oscilam o pensamento e a prtica antropolgica. Teria sido, de fato, surpreendente, se, procurando dar conta da pluralidade, a antropologia permanecesse monoltica. Ela ao contrrio claramente plural. Veremos no decorrer deste livro que existem perspectivas complementares, mas tambm mutuamente exclusivas, entre as quais preciso escolher. E, em vez de fingir ter adotado o ponto de vista de Sirius, em vez de pretender uma neutralidade, que nas cincias humanas um engodo, esforando-me ao mesmo tempo para apresentar com o mximo de objetividade o pensamento dos outros, no dissimularei as minhas prprias opes.

Finalmente, em uma ltima parte, os principais eixos anteriormente examinados sero, em um movimento por assim dizer retroativo, reavaliados com o objetivo de definir aquilo que constitui, a meu ver, a especicidade da antropologia.

Eu queria nalmente acrescentar que este livro dirige-se mais amplo Pblico possvel. No aqueles que tm por profisso a antropologia duvido que encontrem nele um grande interesse mas a todos que, em algum momento de sua vida (prossional, mas tambm pessoal), possam ser levados a utilizar o modo de conhecimento to caracterstico da antropologia. Esta a razo pela qual, entre o inconveniente de utilizar uma linguagem tcnica e o de adotar uma linguagem menos especializada, optei voluntariamente pela segunda. Pois a antropologia, que a cincia do homem por excelncia, pertence a todo o mundo.

Ela diz respeito a todos ns.

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Captulo 1

A Pr-Histria da Antropologia:

A descoberta das diferenas pelos viajantes do sculo e a dupla resposta ideolgica dada daquela poca at nossos dias

A gnese da reflexo antropolgica e contempornea a descoberta do Novo Mundo. O Renascimento explora espaos at ento desconhecidos e comea a elaborar discursos sobre os habitantes que povoam aqueles espaos. A grande questo que ento colocada, e que nasce desse primeiro confronto visual com a alteridade, a seguinte: aqueles que acabaram de serem descobertos pertencem a humanidade? O critrio essencial para saber se convm atribuir-lhes um estatuto humano , nessa poca, religioso: O selvagem tem uma alma? O pecado original tambm lhes diz respeito? questo capital para os missionrios, j que da resposta ir depender o fato de saber se possvel trazer-lhes a revelao. Notamos que se, no sculo 14, a questo

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colocada, no de forma alguma solucionada. Ela ser definitivamente resolvida apenas dois sculos mais tarde.

Nessa poca que comeam a se esboar as duas ideologias concorrentes, mas das quais uma consiste no simtrico invertido da outra: a recusa do estranho apreendido a partir de uma falta, e cujo corolrio a boa conscincia que se tem sobre si e sua sociedade; a fascinao pelo estranho cujo corolrio a m conscincia que se tem sobre si e sua sociedade.

Ora, os prprios termos dessa dupla posio esto colocados desde a metade do sculo 14: no debate, que se torna uma controvrsia pblica, que durar vrios meses (em 1550, na Espanha, em Valladolid), e que ope o dominicano Las Casas e o jurista Sepulvera.

Las Casas disse:

Aqueles que pretendem que os ndios so brbaros, responderemos que essas pessoas tm aldeias, vilas, cidades, reis, senhores e uma ordem poltica que, em alguns reinos, melhor que a nossa. Esses povos igualavam ou at superavam muitas naes e uma ordem poltica que, em alguns reinos, melhor que a nossa. Esses povos igualavam ou at superavam muitas naes do mundo conhecidas como policiadas e razoveis, e no eram inferiores a nenhuma delas. Assim, igualavam-se aos gregos e os romanos, e at, em alguns de seus costumes, os superavam. Eles superavam tambm a Inglaterra, a Frana, e algumas de nossas regies da Espanha. Pois a maioria dessas naes do mundo, seno todas, foram muito mais pervertidas, irracionais e depravadas, e deram mostra de muito menos prudncia e sagacidade em sua forma de se governarem e exercerem as virtudes morais. Ns mesmos fomos piores, no tempo de nossos ancestrais e sobre toda a extenso de nossa Espanha, pela barbrie de nosso modo de vida e pela depravao de nossos costumes.

Sepulvera disse: Aqueles que superam os outros em prudncia e razo, mesmo que no sejam superiores em fora fsica, aqueles so, por natureza, os senhores; ao contrrio, porm, os preguiosos, os espritos lentos, mesmo que tenham as foras fsicas para cumprir todas as tarefas necessrias, so por natureza servos.

A Figura do Mau Selvagem e do Bom Civilizado

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E justo e til que sejam servos, e vemos isso sancionado pela prpria lei divina. Tais so as naes barbaras e desumanas, estranhas a vida civil e aos costumes pacficos. E ser sempre justo e conforme o direito natural que essas pessoas estejam submetidas ao imprio de prncipes e de naes mais cultas e humanas, de modo que, graas a virtude destas e a prudncia de suas leis, eles abandonem a barbrie e se conformem a uma vida mais humana e ao culto da virtude. E se eles recusarem esse imprio, pode-se imp-lo pelo meio das armas e essa guerra ser justa, bem como o declara o direito natural que os homens honrados, inteligentes, virtuosos e humanos dominem aqueles que no tm essas virtudes.

Ora, as ideologias que esto por trs desse duplo discurso, mesmo que no se expressem mais em termos religiosos, permanecem vivas hoje, quatro sculos aps a polmica que opunha Las Casas a Sepulvera. Como so esteretipos que envenenam essa antropologia espontnea de que temos ainda hoje tanta dificuldade para nos livrarmos, convm nos determos sobre eles.

A extrema diversidade das sociedades humanas raramente apareceu aos homens como um fato, e sim como uma aberrao exigindo uma justificao. A antiguidade grega designava sob o nome de brbaro tudo o que no participava da helenidade (em referncia a inarticulao do canto dos pssaros oposto a significao da linguagem humana), o Renascimento, os sculos 17 e 18 falavam de naturais ou de selvagens (isto , seres da floresta), opondo assim a animalidade a humanidade. O termo primitivos que triunfar no sculo 19, enquanto optamos preferencialmente na poca atual pelo de subdesenvolvidos.

Essa atitude, que consiste em expulsar da cultura, isto , para a natureza todos aqueles que no participam da faixa de humanidade a qual pertencemos e com a qual nos identificamos, , como lembra Lvi-Strauss, a mais comum

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A toda a humanidade, e, em especial, a mais caracterstica dos selvagens.

Entre os critrios utilizados a partir do sculo 14 pelos europeus para julgar se convm conferir aos ndios um estatuto humano, alm do critrio religioso do qual j falamos, e que pede, na configurao na qual nos situamos, uma resposta negativa ( sem religio nenhuma, so mais diabos), citaremos:

a aparncia fsica: eles esto nus ou vestidos de peles de animais;

os comportamentos alimentares: eles comem carne crua, e todo o imaginrio do canibalismo que ir aqui se elaborar; a inteligncia tal como pode ser apreendida a partir da linguagem: eles falam uma lngua ininteligvel.

Assim, no acreditando em Deus, no tendo alma, no tendo acesso a linguagem, sendo assustadoramente feio e alimentando-se como um animal, o selvagem apreendido nos modos de um bestirio. E esse discurso sobre a alteridade, que recorre constantemente a metfora zoolgical, abre o grande leque das ausncias: sem moral, sem religio, sem lei, sem escrita, sem Estado, sem conscincia, sem razo, sem objetivo, sem arte, sem passado, sem futuro. Cornelius de Pauw acrescentar at, no sculo 18: sem barba, sem sobrancelhas, sem pelos, sem esprito sem ardor para com sua fmea.

E a grande glria e a honra de nossos reis e dos espanhis, escreve Gomara em sua Histria Geral dos ndios, ter feito aceitar aos ndios um nico Deus, uma nica f e um nico batismo e ter tirado deles a idolatria, os sacrifcios humanos, o canibalismo, a sodomia; e ainda outras grandes e maus pecados, que nosso bom Deus detesta e que pune. Da mesma forma, tiramos deles a poligamia, velho costume e prazer de todos esses

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homens sensuais; mostramos-lhes o alfabeto sem o qual os homens so como animais e o uso do ferro que to necessrio ao homem. Tambm lhes mostramos vrios bons hbitos, artes, costumes policiados para poder melhor viver. Tudo isso e at cada uma dessas coisas vale mais que as penas, as prolas, o ouro que tomamos deles, ainda mais porque no utilizavam esses metais como moeda.

As pessoas desse pas, por sua natureza, so to ociosas, viciosas, de pouco trabalho, melanclicas, covardes, sujas, de m condio, mentirosas, de mole constncia e firmeza. Nosso Senhor permitiu, para os grandes, abominveis pecados dessas pessoas selvagens, rsticas e bestiais, que fossem atirados e banidos da superfcie da Terra. Escreve na mesma poca (1555) Oviedo em sua Histria das ndias.

Opinies desse tipo so inumerveis, e passaram tranquilamente para nossa poca. No sculo 19, Stanley, em seu livro dedicado a pesquisa de Living Stone, compara os africanos aos macacos de um jardim zoolgico, e convidamos o leitor a ler ou reler Franz Fanon (1968), que nos lembra o que foi o discurso colonial dos franceses na Arglia.

Mais dois textos iro deter mais demoradamente nossa ateno, por nos parecerem muito reveladores desse pensamento que faz do selvagem o inverso do civilizado. So as Pesquisas sobre os Americanos ou Relatos Interessantes para servir a Histria da Espcie Humana, de Cornelius de Pauw, publicado em 1774, e a famosa Introduo a Filosoa da Histria, de Hegel.

1) De Pauw nos prope suas reflexes sobre os ndios da Amrica do Norte. Sua convico a de que sobre estes lllimos a influncia da natureza total, ou mais precisamente negativa. Se essa raa inferior no tem histria e est pura sempre condenada, por seu estado degenerado, a permanecer fora do movimento da Histria, a razo deve ser atribuda ao clima de uma extrema umidade:

Deve existir, na organizao dos americanos, uma causa qualquer que embrutece sua sensibilidade e seu esprito. A qualidade do clima, a grosseria de seus humores, o vcio radical do sangue, a constituio de seu temperamento excessivamente fleumtico podem ter diminudo o tom e o saracoteio dos nervos desses homens embrutecidos.

Eles tm, prossegue Pauw, um temperamento to mido quanto o ar e a terra onde vegetam e que explica que eles no tenham nenhum desejo sexual. Em suma, so infelizes que suportam todo o peso da vida agreste

Na escurido das florestas, parecem mais animais do que vegetais. Aps a degenerescncia ligada a um vcio de constituio fsica, Pauw chega a degradao moral. E a quinta parte do livro, cuja primeira seo intitulada: O gnio embrutecido dos Americanos.

A insensibilidade, escreve nosso autor, neles um vcio de sua constituio alterada; eles so de uma preguia imperdovel, no inventam nada, no empreendem nada, e no estendem a esfera de sua concepo alm do que veem pusilnimes, covardes, irritados, sem nobreza de esprito, o desnimo e a falta absoluta daquilo que constitui o animal racional os tornam inteis para si mesmos e para a sociedade. Enfim, os californianos vegetam mais do que vivem, e somos tentados a recusar-lhes uma alma.

Essa separao entre um estado de natureza concebido por Pauw como irremediavelmente imutvel, e o estado de civilizao, pode ser visualizado num mapa mundi. No sculo 18, a enciclopdia efetua dois traados: um longitudinal, que passa por Londres e Paris, situando de um lado a Europa, a frica e a Asia, de outro a Amrica, e um latitudinal dividindo o que se encontra ao norte e ao sul do equador. Mas, enquanto para Buffon, a proximidade ou o afastamento da linha equatorial so explicativos no apenas da constituio fsica mas do moral dos povos, o autor das Pesquisas Filosficas sobre os Americanos escolhe claramente o critrio latitudinal, fundamento aos seus olhos da distribuio da populao mundial, distribuio essa no cultural e sim natural da civilizao e da barbrie: A natureza tirou tudo de um hemisfrio deste globo para d-lo ao outro. A diferena entre um hemisfrio e o outro (o Antigo e o Novo Mundo) total, to grande quanto poderia ser e quanto podemos imagin-la: de um lado, a humanidade, e de outro, a estupidez na qual vegetam esses seres indiferenciados:

Igualmente brbaros, vivendo igualmente da caa e da pesca, em pases frios, estreis, cobertos de florestas, que desproporo se queria imaginar entre eles? Onde se sente as mesmas necessidades, onde os meios de satisfaz-los so os mesmos, onde as influncias do ar so to semelhantes, possvel haver contradio nos costumes ou variaes nas idias?

Pauw responde, evidentemente, de forma negativa. Os indgenas americanos vivem em um estado de embrutecimento geral. To degenerados uns quanto os outros, seria em vo procurar entre eles variedades distintivas daquilo que se pareceria com uma cultura e com uma histria.

2) Os julgamentos que acabamos de relatar que esto, notamos, em ruptura com a ideologia dominante do sculo 18, da qual falaremos mais adiante, e em especial com o Discurso sobre a Desigualdade, de Rousseau, publicado vinte anos antes por excessivos que sejam, apenas radicalizam idias compartilhadas por muitas pessoas nessa poca. Idias que sero retomadas e expressas nos mesmos termos em 1830 por Hegel, o qual em sua Introduo a Filosoa da Historia nos expe o horror que ele ressente frente estado de natureza que o desses povos que jamais ascendero a histria e conscincia de si.

Na leitura dessa Introduo, a Amrica do Sul parece mais estpida ainda do que a do Norte. A Asia aparentemente no est muito melhor. Mas a frica, e, em especial, a frica profunda do interior, onde a civilizao nessa poca ainda no penetrou, que representa para o filsofo a forma mais nitidamente inferior entre todas nessa infra humanidade:

E o pas do ouro, fechado sobre si mesmo, o pas da infncia, que, alm do dia e da histria consciente, est envolto na cor negra da noite.

Tudo, na frica, nitidamente visto sob o signo da falta absoluta: os negros no respeitam nada, nem mesmo eles prprios, j que comem carne humana e fazem comrcio da carne de seus prximos. Vivendo em uma ferocidade bestial inconsciente de si mesma, em uma selvageria em estado bruto, eles no tm moral, nem instituies sociais, religio ou Estado. Petrificados em uma desordem inexorvel, nada, nem mesmo as foras da colonizao, poder nunca preencher o fosso que os separa da Histria universal da humanidade.

Na descrio dessa africanidade estagnante da qual no h absolutamente nada a esperar e que ocupa rigorosamente em Hegel o lugar destinado a indianidade em Pauw, o autor da Fenomenologia do Esprito vai, vale a pena notar, mais longe que o autor das Pesquisas Filosficas sobre os Americanos. O negro nem mesmo se v atribuir o estatuto de vegetal. Ele cai, escreve Hegel, para o nvel de uma coisa, de um objeto sem valor.

A Figura Do Bom Selvagem E Do Mau Civilizado.

A figura de uma natureza m na qual vegeta um selvagem embrutecido eminentemente suscetvel de se transformar em seu oposto: a da boa natureza dispensando suas benfeitorias a um selvagem feliz. Os termos da atribuio permanecem, como veremos, rigorosamente idnticos, da mesma forma que o par constitudo pelo sujeito do discurso (o civilizado) e seu objeto (o natural). Mas efetua-se dessa vez a inverso daquilo que era apreendido como um vazio que se torna um cheio (ou plenitude), daquilo que era apreendido como um menos que se torna um mais. O carter privativo dessas sociedades sem escrita, sem tecnologia, sem economia, sem religio organizada, sem clero, sem sacerdotes, sem polcia, sem leis, sem Estado acrescentar-se- no sculo XX sem Complexo de dipo no constitui uma desvantagem.

O selvagem no quem pensamos.

Evidentemente, essa representao concorrente (mas que consiste apenas em inverter a atribuio de significaes e valores dentro de uma estrutura idntica) permanece ainda bastante rgida na poca na qual o Ocidente descobre povos ainda desconhecidos. A figura do bom selvagem s encontrar sua formulao mais sistemtica e mais radical dois sculos aps o Renascimento: no Rousseauismo do sculo 18, e, em seguida, no Romantismo. No deixa porm de estar presente, pelo menos em estado embrionrio, na percepo que tm os primeiros viajantes. Amrico Vespcio descobre a Amrica:

As pessoas esto nuas, so bonitas, de pele escura, de corpo elegante. Nenhum possui qualquer coisa que seja, pois tudo colocado em comum. E os homens tomam por mulheres aquelas que lhes agradam, sejam elas sua me, sua irm, ou sua amiga, entre as quais eles no fazem diferena. Eles vivem cinquenta anos. E no tm governo.

Cristvo Colombo, aportando no Caribe, descobre, ele tambm o paraso;

Eles so muito mansos e ignorantes do que o mal, eles no sabem se matar uns aos outros (...) Eu no penso que haja no mundo homens melhores, como tambm no h terra melhor.

Toda a reflexo de Lry e de Montaigne no sculo 16 sobre os naturais baseia se sobre o tema da noo de crueldade respectiva de uns e outros, e, pela primeira vez, instaura-se uma crtica da civilizao e um elogio da ingenuidade original do estado de natureza. Lry, entre os Tupinambs, interroga-se sobre o que se passa aqum, isto , na Europa. Ele escreve, a respeito de nossos grandes usurrios: Eles so mais cruis do que os selvagens dos quais estou falando. E Montaigne, sobre esses ltimos: Podemos portanto de fato cham-los de brbaros quanto as regras da razo, mas no quanto a ns mesmos que os superamos em toda sorte de barbrie. Para o autor dos Ensaios, esse estado paradisaco que teria sido o nosso outrora, talvez esteja conservado em alguma parte. O huguenote que eu interroguei at o encontrou.

Esse fascnio exercido pelo indgena americano, e em especial por le Huron, protegido da civilizao e que nos convida a reencontrar o universo caloroso da natureza, triunfa nos sculos 17 e 18. Nas primeiras Relaes dos jesutas que se instalam entre os Hurons desde 1626 pode-se ler:

Eles so afveis, liberais, moderados. . . Todos os nossos padres que frequentaram os Selvagens consideram que a vida se passa mais docemente entre eles do que entre ns. Seu ideal: viver em comum sem processo, contentar-se de pouco sem avareza, ser assduo no trabalho.

Do lado dos livres-pensadores, o mesmo grito de entusiasmo; La Hontan:

Ah! Viva os Hurons que sem lei, sem prises e sem torturas passam a vida na doura, na tranquilidade, e gozam de uma felicidade desconhecida dos franceses.

Essa admirao no compartilhada apenas pelos navegadores estupefatos. O selvagem ingressa progressivamente na filosoa os pensadores

das Lumieresu , mas tambm nos sales literrios e nos teatros parisienses. Em 1721, montado um espetculo intitulado O Arlequim Selvagem. O personagem de um Huron trazido para Paris declama no palco:

Vocs so loucos, pois procuram com muito empenho uma infinidade de coisas inteis; vocs so pobres, pois limitam seus bens ao dinheiro, em vez de simplesmente gozar da criao, como ns, que no queremos nada a m de desfrutar mais livremente de tudo.

E a poca em que todos querem ver os Indes Galantes que Rameau acabou de escrever, a poca em que se exibem nas feiras verdadeiros selvagens. Manifestaes essas que constituem uma verdadeira acusao contra a civilizao. Depois, o fascnio pelos ndios ser substitudo progressivamente, a partir do m do sculo 18, pelo charme e prazer idlico que provoca o encanto das paisagens e dos habitantes dos mares do sul, dos arquiplagos polinsios, em especial Samoa, as ilhas Marquises, a ilha de Pscoa, e sobretudo o Taiti. Aqui est, por exemplo, o que escreve Bougainville em sua Viagem ao Redor do Mundo (reed. 1980):

Seja dia ou noite, as casas esto abertas. Cada um colhe as frutas na primeira rvore que encontra, ou na casa onde entra. . . Aqui um doce cio compartilhado pelas mulheres, e o empenho em agradar sua mais preciosa ocupao. . . Quase todas aquelas ninfas estavam nuas. . . As mulheres pareciam no querer aquilo que elas mais desejavam. . . Tudo lembra a cada instante as douras do amor, tudo incita ao abandono.

Todos os discursos que acabamos de citar, e especialmente, os que exaltam a doura das sociedades selvagens, e, correlativamente fustigam tudo que pertence ao Ocidente ainda so atuais. Se no o fossem, no nos seriam diretamente acessveis, no nos tocariam mais nada. Ora, precisamente a esse imaginrio da viagem, a esse desejo de fazer existir em um alhures uma sociedade de prazer e de saudade, em suma, uma humanidade convivial cujas virtudes se estendam magnificncia da fauna e da flora (Chateau-briand, Segalen, Conrad, Melville), que a etnologia deve grande parte de seu sucesso com o pblico.

O tema desses povos que podem eventualmente nos ensinar a viver e dar ao Ocidente mortfero lies de grandeza, como acabamos de ver, no novidade. Mas grande parte do pblico est infinitamente mais disponvel agora do que antes para se deixar persuadir que as sociedades constrangedoras da abstrao, do clculo e da impessoalidade das relaes humanas, opem-se sociedades de solidariedade comunitria, abrigadas na suntuosidade de uma natureza generosa. A decepo ligada aos benefcios do progresso (nos quais muitos entre ns acreditam cada vez menos) bem como a solido e o anonimato do nosso ambiente de vida, fazem com que parte de nossos sonhos s aspirem a se projetar nesses paraso (perdido) dos trpicos ou dos mares do Sul, que o Ocidente teria substitudo pelo inferno da sociedade tecnolgica.

Mas convm, a meu ver, ir mais longe. O etnlogo, como o militar, recrutado no civil. Ele compartilha com os que pertencem mesma cultura que a sua, as mesmas insatisfaes,-angstias, desejos. Se essa busca do ltimo dos Moicanos, essa etnologia do selvagem do tipo vento dos coqueiros(que na realidade uma etnologia selvagem) contribui para a popularidade de nossa disciplina, ela est presente nas motivaes dos prprios etnlogos. Malinowski ter a franqueza de escrever e ser muito criticado por isso:

Um dos refgios fora dessa priso mecnica da cultura o estudo das formas primitivas da vida humana, tais como existem ainda nas sociedades longnquas do globo. A antropologia, para mim, pelo menos, era uma fuga romntica para longe de nossa cultura uniformizada.

Ora, essa nostalgia do neoltico, de que fala Alfred Mtraux e que esteve na origem de sua prpria vocao de Citinlogo, encontrada em muitos autores, especialmente nas descries de populaes preservadas do contato corruptor com o mundo moderno, vivendo na harmonia e na transparncia. O qualificativo que fez sucesso para designar o estado dessas sociedades, que so caracterizadas pela riqueza das trocas simblicas, foi certamente o de autntico (oposto a alienao das sociedades industriais adiantadas), termo proposto por Sapir em 1925, e que erroneamente atribudo a Lvi-Strauss.

A imagem que o ocidental se fez da alteridade (e correlativamente de si mesmo) no parou, portanto, de oscilar entre os plos de um verdadeiro movimento pendular. Pensou-se alternadamente que o selvagem:

era um monstro, um animal com figura humana (Lry), a meio caminho entre a animalidade e a humanidade mas tambm que os monstros ramos ns, sendo que ele tinha lies de humanidade a nos dar; levava uma existncia infeliz e miservel, ou, pelo contrrio, vivia num estado de beatitude, adquirindo sem esforos os produtos maravilhosos da natureza, enquanto que o Ocidente era, por sua vez, obrigado a assumir as duras tarefas da indstria; era trabalhador e corajoso, ou essencialmente preguioso;

No tinha alma e no acreditava em nenhum deus, ou era profundamente religioso;

Vivia num eterno pavor do sobrenatural, ou, ao inverso, na paz e na harmonia

Era um anarquista sempre pronto a massacrar seus semelhantes, ou um comunista decidido a tudo compartilhar, at e inclusive suas prprias mulheres;

Era admiravelmente bonito, ou feio;

Era movido por uma impulsividade criminalmente congnita quando era legtimo temer, ou devia ser considerado como uma criana precisando de proteo;

Era um embrutecido sexual levando uma vida de orgia e devassido permanente, ou, pelo contrrio, um ser preso, obedecendo estritamente aos tabus e as proibies de seu grupo;

Era atrasado, estpido e de uma simplicidade brutal, ou profundamente virtuoso e eminentemente complexo;

Era um animal, um vegetal (afirma de Pauw), uma coisa, um objeto sem valor (afirma Hegel), ou participava, pelo contrrio, de uma humanidade da qual tinha tudo como aprender.

Tais so as diferentes construes em presena (nas quais a repulso se transforma rapidamente em fascnio) dessa alteridade fantasmtica que no tem muita relao com a realidade. O outro o ndio, o taitiano, mas recentemente o basco ou o breto simplesmente utilizado como suporte de um imaginrio cujo lugar de referncia nunca a Amrica, Taiti, o Pas Basco ou a Bretanha. So objetos-pretextos que podem ser mobilizados tanto com vistas a explorao econmica quanto ao militarismo poltico, a converso religiosa ou a emoo esttica. Mas, em todos os casos, o outro no considerado para si mesmo. Mal se olha para ele. Olha-se a si mesmo nele.

Voltemos ao nosso ponto de partida: o Renascimento. Seria em vo, talvez anacrnico, descobrir nele o que poderia aparentar-se a um pensamento etnolgico, to problemtico, como acabamos de observar, ainda no final do sculo XX. No basta viajar e surpreender-se com o que se v para tornar-se etnlogo (no basta mesmo ter numerosos anos de campo, como se diz hoje). Porm, numerosos viajantes nessa poca colocam problemas (o que no significa uma problemtica) aos quais ser necessariamente confrontado qualquer antroplogo. Eles abrem o caminho daquilo que laboriosamente ir se tornar a etnologia. Jean de Lry, entre os indgenas brasileiros, pergunta se: preciso rejeit-los fora da humanidade?

Consider-los como virtualidades de cristos? Ou questionar a viso que temos da prpria humanidade, isto , reconhecer que a cultura plural? Atravs de muitas contradies (a oscilao permanente entre a converso e o olhar, os objetivos teolgicos e os que poderamos chamar de etnogrficos, o ponto de vista normativo e o ponto de vista narrativo), o autor da Viagem no tem resposta. Mas as questes (e para o que nos interessa aqui, mas especificamente a ltima) esto no entanto implicitamente colocadas. Montaigne (hoje as vezes criticado), mesmo se o que o preocupa menos a humanidade dos ndios do que a inumanidade dos europeus, seguindo nisso Lry que transporta para o Novo Mundo os conflitos do antigo, comea a introduzir a dvida no edifcio do pensamento europeu. Ele testemunha o desmoronamento possvel deste pensamento, menos inclusive ao pronunciar a condenao da civilizao do que ao considerar que a selvageria no nem inferior nem superior, e sim diferente.

Assim, essa poca, muito timidamente, verdade, e por alguns apenas de seus espritos os menos ortodoxos, a partir da observao direta de um objeto distante (Lry) e da reflexo a distncia sobre este objeto (Montaigne), permite a constituio progressiva, no de um saber antropolgico, muito menos de uma cincia antropolgica, mas sim de um saber pr-antropolgico.

Captulo 2

O Sculo 18

A inveno do conceito de homem

Se durante o Renascimento esboou-se, com a explorao geogrca de continentes desconhecidos, a primeira interrogao sobre a existncia mltipla do homem, essa interrogao fechou-se muito rapidamente no sculo seguinte, no qual a evidncia do cogito, fundador da ordem do pensamento clssico, exclui da razo o louco, a criana, o selvagem, enquanto figuras da anormalidade.

Ser preciso esperar o sculo 18 para que se constitua o projeto de fundar uma cincia do homem, isto , de um saber no mais exclusivamente especulativo, e sim positivo sobre o homem. Enquanto encontramos no sculo 16 elementos que permitem compreender a pr-histria da antropologia, enquanto o sculo 17 (cujos discursos no nos so mais diretamente acessveis hoje) interrompe nitidamente essa evoluo, apenas no sculo 18 que entramos verdadeiramente, como mostrou Michel Foucault (1966), na modernidade. Apenas nessa poca, e no antes, que se pode apreender as condies histricas, culturais e epistemolgicas de possibilidade daquilo que vai se tornar a antropologia.

Antes do final do sculo 18, escreve Foucault, o homem no existia. Como tambm o poder dvida, a fecundidade do trabalho ou a densidade histrica da linguagem. E uma criatura muito recente que o demiurgo do saber fabricou com suas prprias mos, h menos de duzentos anos (...) Uma coisa em todo caso certa, o homem no o mais antigo problema, nem o mais constante que tenha sido colocado ao saber humano. O homem uma inveno e a arqueologia de nosso pensamento mostra o quanto recente. E, acrescenta Foucault no final de As Palavras e as Coisas, quo prximo talvez seja o seu m.

O projeto antropolgico (e no a realizao da antropologia como a entendemos hoje) supe:

1) a construo de um certo nmero de conceitos, comeando pelo prprio conceito de homem, no apenas enquanto sujeito, mas enquanto objeto do saber; abordagem totalmente indita, j que consiste em introduzir dualidade caracterstica das cincias exatas (o sujeito observante e o objeto observado) no corao do prprio homem;

2) a constituio de um saber que no seja apenas de reflexo, e sim de observao, isto , de um novo modo de acesso ao homem, que passa a ser considerado em sua existncia concreta, envolvida nas determinaes de seu organismo, de suas relaes de produo, de sua linguagem, de suas instituies, de seus comportamentos. Assim comea a constituio dessa positividade de um saber emprico (e no mais transcendental) sobre o homem enquanto ser vivo (biologia), que trabalha (economia), pensa (psicologia) e fala (lingustica) Montesquieu, em O Esprito das Leis (1748), ao mostrar a relao de interdependncia que a dos fenmenos sociais, abriu o caminho para Saint-Simon que foi o primeiro (no sculo seguinte) a falar em uma cincia da sociedade. Da mesma forma, antes dessa poca, a linguagem, quando tomada em considerao, era objeto de filosoa ou exegese. Tornou-se paulatinamente (com de Brosses, Rousseau) o objeto especfico de um saber cientfico (ou, pelo menos, de vocao cientfica);

3) uma problemtica essencial: a da diferena. Rompendo com a convico de uma transparncia imediata do cogito, coloca-se pela primeira vez no sculo 18 a questo da relao ao impensado, bem como a dos possveis processos de reapropriao dos nossos condicionamentos fisiolgicos, das nossas relaes de produo, dos nossos sistema de organizao social. Assim, inicia-se uma ruptura com o pensamento do mesmo, e a constituio da idia de que a linguagem nos precede, pois somos antes exteriores a ela. Ora, tais reflexes sobre os limites do saber, assim como sobre as relaes de sentido e poder (que anunciam o m da metafsica) eram inimaginveis antes. A sociedade do sculo 18 vive uma crise da identidade do humanismo e da conscincia europeia. Parte de suas elites busca suas referncias em um confronto com o distante.

Em 1724, ao publicar Os Costumes dos Selvagens Americanos Comparados aos Costumes dos Primeiros Tempos, Lafitau se d por objetivo o de fundar uma cincia dos costumes e hbitos, que, alm da contingncia dos fatos particulares, poder servir de comparao entre vrias formas de humanidade. Em 1801, Jean Itard escreve Da Educao do Jovem Selvagem do Aveyron. Ele se interroga sobre a comum humanidade a qual pertencem o homem da civilizao em que nos transportamos e o homem da natureza, a criana-lobo. Mas foi Rousseau quem traou, em seu Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade, o programa que se tornar o da etnologia clssica, no seu campo temtico tanto quanto na sua abordagem: a induo de que falaremos agora;

4) um mtodo de observao e anlise: o mtodo indutivo. Os grupos sociais (que comeam a ser comparados a organismos vivos, podem ser considerados como sistemas naturais que devem ser estudados empiricamente, a partir da observao de fatos, a m de extrair princpios gerais, que hoje chamaramos de leis.

Esse naturalismo, que consiste numa emancipao definitiva em relao ao pensamento teolgico, impe-se em especial na Inglaterra, com Adam Smith e, antes dele, David Hume, que escreve em 1739 seu Tratado sobre a Natureza Humana, cujo ttulo completo : Tratado sobre a natureza Humana: tentativa de introduo de um mtodo experimental de raciocnio para o estudo de assuntos de moral. Os filsofos ingleses colocam as premissas de todas as pesquisas que procuraro fundar, no sculo 18, uma moral natural, um direito natural, ou ainda uma religio natural.

Esse projeto de um conhecimento positivo do homem isto , de um estudo de sua existncia emprica considerada por sua vez como objeto do saber constitui um evento considervel na histria da humanidade. Um evento que se deu no Ocidente no sculo 18, que, evidentemente, no ocorreu da noite para o dia, mas que terminou impondo-se j que se tornou definitivamente constitutivo da modernidade na qual, a partir dessa poca, entramos. A m de avaliar melhor a natureza dessa verdadeira revoluo do pensamento que instaura uma ruptura tanto com o humanismo do Renascimento como com o racionalismo do sculo clssico , examinemos de mais perto o que mudou radicalmente desde o sculo 16.

1) Trata-se em primeiro lugar da natureza dos objetos observados. Os relatos dos viajantes dos sculos 16 e 17I eram mais uma busca cosmogrfica do que uma pesquisa etnogrca. Afora algumas incurses tmidas para rea das inclinaes e dos costumes, o objeto de observao, nessa poca era mais o cu, a terra, a fauna e a flora, do que o homem em si, e, quando se tratava deste, era essencialmente o homem fsico que era tomado em considerao. Ora, o sculo 18 traa o primeiro esboo daquilo que se tornar uma antropologia social e cultural, constituindo-se inclusive, ao mesmo tempo, tomando como modelo a antropologia fsica, e instaurando uma ruptura do monoplio desta (especialmente na Frana).

2) Simultaneamente, o destaque se desloca pouco a pouco do objeto de estudo para a atividade epistemolgica, que se torna cada vez mais organizada. Os viajantes dos sculos 16 e 17 coletavam curiosidades. Espritos curiosos reuniam colees que iam formar os famosos gabinetes de curiosidades, ancestrais dos nossos museus contemporneos. No sculo 18, a questo : como coletar? E como dominar em seguida o que foi coletado? Com a Histria Geral das Viagens, do padre Prvost (1746), passa-se da coleta dos materiais para a coleo das coletas. No basta mais observar, preciso processar a observao. No basta mais interpretar o que observado, preciso interpretar interpretaes. E desse desdobramento, isto , desse discurso, que vai justamente brotar uma atividade de organizao e elaborao. Em 1789, Chavane, o primeiro, dar a essa atividade um nome. Ele a chamar: a etnologia.

Finalmente, no sculo 18 que se forma o par do viajante e do filsofo: o viajante: Bougainville, Maupertuis, La Condamine, Cook, La Prouse. Realizando o que chamado na poca de viagens filosficas, precursoras das nossas misses cientficas contemporneas; o filsofo Buffon, Voltaire, Rousseau, Diderot (em especial o seu Suplemento a Viagem de Bougainville) esclarecendo com suas reflexes as observaes trazidas pelo viajante.

Mas esse par no tem realmente nada de idlico. Que pena, pensa Rousseau, que os viajantes no sejam filsofos! Bougainville retruca (em 1771 em sua Viagem ao Redor do Mundo): que pena que os filsofos no sejam viajantes! Para o primeiro, bem como para todos os filsofos naturalistas do sculo das luzes, se essencial observar, preciso ainda que a observao seja esclarecida. Uma prioridade portanto conferida ao observador, sujeito que, para apreender corretamente seu objeto, deve possuir um certo nmero de qualidades. E assim que se constitui, na passagem do sculo 18 para o sculo 19, a Sociedade dos Observadores do Homem (1799-1805), formada pelos ento chamados idelogos, que so moralistas, filsofos, naturalistas, mdicos que definem muito claramente o que deve ser o campo da nova rea de saber (o homem nos seus aspectos fsicos, psquicos, sociais, culturais) e quais devem ser suas exigncias epistemolgicas.

As Consideraes sobre os Diversos Mtodos a Seguir na Observao dos Povos Selvagens, de De Gerando (1800) so, quanto a isso, exemplares. Primeira metodologia da viagem, destinada aos pesquisadores de uma misso nas Terras Austrais, esse texto uma crtica da observao selvagem do selvagem, que procura orientar o olhar do observador. O cientista naturalista deve ser ele prprio testemunha ocular do que observa, pois a nova cincia qualificada de cincia do homem ou cincia natural uma cincia de observao, devendo o observador participar da prpria existncia dos grupos sociais observados.

Porm, o projeto de De Gerando no foi aplicado por aqueles a que se destinava diretamente, e no ser, por muito tempo ainda, levado em conta. Se esse programa que consiste em ligar uma reflexo organizada a uma observao sistemtica, no apenas do homem fsico, mas tambm do homem social e cultural, no pde ser realizado, porque a poca ainda no o permitia. O final do sculo 18 teve um papel essencial na elaborao dos fundamentos de uma cincia humana. No podia ir mais longe, e no poderamos credit-lo aquilo que s ser possvel um sculo depois.

Mais especificamente, o obstculo maior ao advento de uma antropologia cientfica, no sentido no qual a entendemos hoje, est ligado, ao meu ver, a dois motivos essenciais.

1) A distino entre o saber cientfico e o saber losco, mesmo sendo abordada, no de forma alguma realizada. Evidentemente, o conceito da unidade e universalidade do homem, que pela primeira vez claramente afirmado, coloca as condies de produo de um novo saber sobre o homem. Mas no leva ipso facto a constituio de um saber positivo. No final do sculo 18, o homem interroga-se: sobre a natureza, mas no h biologia ainda (ser preciso esperar Cuvier); sobre a produo e reparti-tio das riquezas, mas ainda no se trata de economia (Ricardo); sobre seu discurso mas isso no basta para elaborar uma filosoa (Bopp), muito menos uma lingustica.

O conceito de homem tal como utilizado no sculo das luzes permanece ainda muito abstrato, isto , rigorosamente losco. Estamos na impossibilidade de imaginar o que consideramos hoje como as prprias condies epistemolgicas da pesquisa antropolgica. De fato, para esta, o objeto de observao no o homem, e sim indivduos que pertencem a uma poca e a uma cultura, e o sujeito que observa no de forma alguma o sujeito da antropologia filosfica, e sim um outro indivduo que pertence ele prprio a uma poca e a uma cultura.

2) O discurso antropolgico do sculo 18 inseparvel do discurso histrico desse perodo, isto , de sua concepo de uma histria natural, liberada da teologia e animando a marcha das sociedades no caminho de um progresso universal. Restar um passo considervel a ser dado para que a antropologia se emancipe deste pensamento e conquiste nalmente sua autonomia. Paradoxalmente, esse passo ser dado no sculo 19 (em especial com Morgan) a partir de uma abordagem igualmente e at, talvez, mais marcadamente historicista: o evolucionismo. E o que veremos a seguir