aprender e ensinar a escrever e a ler no 1.º ciclo do...
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Em geral, aprender e ensinar a escrever e a ler remetem-nos para a iniciação na escrita
e na leitura, particularmente para a produção etrabalho de textos do quotidiano e de históriascomo meios de desenvolvimento e de apro-fundamento da aprendizagem da Língua Por-tuguesa.
Esquecemos, por vezes, que essa aprendi-zagem inclui também a produção e o trata-mento de outros tipos de texto, nomeada-mente aqueles que os alunos elaboram no âm-bito do Estudo do Meio e da Matemáticaquando realizam projectos de estudo nessasáreas.
Constata-se, frequentemente, que algunsdeles contêm apenas a escrita que os alunosproduzem, sem que a mesma tenha sido ob-jecto de outro tratamento para além daqueleque são capazes de realizar sem ajuda, e cópiasde páginas de livros, de enciclopédias ou da In-ternet, por vezes sem referência da fonte da in-formação.
Descura-se um aspecto significativo e facili-tador da iniciação dos alunos em outros tiposde discurso e infere-se que, neste campo, setorna necessária uma atenção especial dos pro-fessores.
É evidente que se trata de um longo traba-lho que se aborda mas não se esgota durante o1.º ciclo.
Descrever, definir, explicar, justificar e argu-
mentar para resolver problemas muito diversi-ficados, comparar com os de outros colegas osprocessos e os resultados obtidos, confrontá-los com textos de escritores experientes ou decientistas, possibilita e facilita a progressivaaproximação das produções dos alunos e dassuas representações iniciais aos conceitos cien-tíficos, e permite estabelecer relações com ahistória cultural das ciências e com o seu dis-curso.
Recordo, a este propósito que, já desde hámuitos anos, (se a memória me não falha,desde os anos setenta), Sérgio Niza vem pre-conizando esta vinculação do trabalho na aulaà história das artes e das ciências, ideia paraque também apontam Carles Lladó e JaumeJorba (1998) quando recomendam «o recurso afontes externas que representem a cultura exis-tente num determinado momento como estra-tégia para estabelecer a ligação entre a históriada turma e a história cultural da ciência e damatemática». (p. 229)
Para além do trabalho de texto com toda aturma, o tempo destinado aos projectos, du-rante o qual o professor interage com peque-nos grupos, a correspondência e as actas doConselho são excelentes oportunidades parauma abordagem a outros tipos de discurso.
São óptimos momentos para ajudar os alu-nos a adequar as descrições ao tipo de textoque pretendem elaborar, a melhorar as explica-ções das experiências que realizaram, a justifi-car os procedimentos e os seus resultados, para
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Aprender e Ensinar a Escrever e a Ler no 1.º Ciclo do Ensino Básico
Júlia Soares*
* 1.º Ciclo do Ensino Básico.
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introduzir o léxico das ciências, para resumir ainformação, preparar a argumentação pen-sando nas questões que possam surgir após ascomunicações à turma, para que os destinatá-rios façam uma ideia, tão exacta quanto possí-vel, daquilo que lhes é descrito, possam com-preender o que lhes foi explicado e reproduzi-lo se o desejarem.
As finalidades e as marcas da descrição, daexplicação, da justificação e da argumentação,devem ser clarificadas com os alunos atravésda tomada de consciência das transformaçõesoperadas, da comparação do texto trabalhadocom o texto inicialmente produzido, da con-frontação com outros tipos de texto elabora-dos pelos alunos e por bons autores, para quepossam melhorar a qualidade da escrita queproduzem.
Na comparação entre o texto inicial e otexto trabalhado há aspectos a que os alunossão sensíveis, nomeadamente o tamanho, aausência de pontuação e a presença de errosortográficos, mas há outros para os quais oprofessor lhes deve chamar a atenção, inte-grando nos comentários dos alunos os seuspróprios comentários e nestes, a informaçãopertinente.
Quando isso falta ou raramente aparece, asobservações e as críticas das crianças limitam-se a aspectos superficiais do escrito e perdem-se oportunidades de os sensibilizar para aspec-tos de coerência e de coesão do texto.
A interacção do professor com os alunos émuito importante na reescrita do texto, na es-colha da modalidade mais adequada ao con-teúdo e aos destinatários: um esquema, umgráfico, um texto explicativo, um resumo…
O intercâmbio, particularmente com os cor-respondentes, permite provocar nos emissorese nos destinatários a tomada de consciênciados obstáculos que impediram a compreensãoda mensagem que se quis comunicar e se deli-neiem estratégias para os ultrapassar.
Nesse trabalho de reescrita, a organizaçãodo discurso surge como um conjunto de pro-
blemas a resolver interactivamente e com sen-tido comunicativo.
Tudo isto exige e justifica a consulta de fon-tes de informação diversificadas (gramáticas,prontuários, dicionários, livros, enciclopédias,ficheiros informativos,...), e possibilita o con-vívio com textos científicos de autor aomesmo tempo que cria e alimenta situações detroca de ideias, de confronto de representaçõese de validação de conhecimentos como passosdos alunos na construção de conceitos cientí-ficos.
Se é certo que se privilegia como ponto departida os conhecimentos que os alunos já pos-suem, não é menos certo que a validação dosmesmos, passa mais pela aceitação do profes-sor do que pelo recurso a fontes externas: tex-tos de carácter científico, de história das gran-des descobertas da humanidade e da sua im-portância quer no tempo em que foramrealizadas quer como património cultural.
É evidente que tudo isto é aprender a escre-ver e a ler, exercitando funcionalmente a lin-guagem oral e escrita nas suas várias funções:comunicativa, cognitiva, metacognitiva, isto é,como instrumento de conhecimento.
Para que isso se torne possível há que criarcondições humanas e materiais que o profes-sor assume como elemento-chave: na organi-zação cooperada do trabalho que institui comos alunos; na criação de um ambiente físico ede um clima psicológico e social que favoreçaas aprendizagens; nas situações de comunica-ção que propicia; na explicitação de conheci-mentos pelos alunos que provoca e estimula;no debate que põe em confronto posições di-ferentes, no consenso ou na ruptura que pro-cura estabelecer entre elas através da informa-ção que possui, da documentação que a validacientificamente e que põe à disposição dos alu-nos para que possam apropriar-se dela; na pro-moção da autonomia e da responsabilidade decada um perante o grupo de que faz parte e pe-rante si mesmo.
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Para ilustrar e reflectir acerca do papel doprofessor, seleccionei da descrição que Esme-ralda Raminhos fez do primeiro trabalho emprojectos na sua turma de 1.º ano, apenas o seuapoio a um grupo. Todavia, parece-me impor-tante esclarecer que, nessa turma, se desenro-lavam em simultâneo, vários projectos e queos cortes introduzidos no texto correspondema momentos em que ela apoiou o trabalho deoutros grupos.
[...] Quando me sentei junto deles, estivemos aconversar sobre o que pensavam acerca deste tema(o coração), o que queriam saber mais e quais os tí-tulos dos livros que já tinham seleccionado na bi-blioteca para esse efeito.
Eu ia escrevendo na folha do Plano o que o grupome ia dizendo. (Ver Figura 1).
Ao pedir aos alunos que dissessem o quepensavam, neste caso, acerca do coração, aprofessora criava uma situação em que cadaum se empenhava em explicar as suas repre-sentações construídas a partir do que tinha ou-vido, visto, pensado e até preocupado (no caso
presente a doença da mãe de um dos elemen-tos do grupo) em confrontá-las com outras, emjustificá-las e até em argumentar para as de-fender.
Ao pedir-lhes que explicitassem o que que-riam saber, estava a provocá-los para levanta-rem problemas e outras questões para as quaisprocuravam resposta, ou a confirmação dosconhecimentos que já possuíam, isto é, paradefinirem melhor o objecto e o âmbito do es-tudo.
Através da explicitação, o professor podetomar conhecimento da diversidade das repre-sentações dos alunos, debatê-las com o grupoe confrontá-las com documentos científicosque contribuam para esclarecer o problema emquestão ou para validar cientificamente os co-nhecimentos que possuem.
Aqueles momentos são muito importantespara produzir e confrontar ideias, para estimu-lar o desejo de aprender, para melhor poderjustificar o que se afirmou, para dar ou acres-centar sentido ao trabalho que se pretende rea-lizar. Este tem como ponto de partida as repre-
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Figura 1
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sentações dos alunos, os seus «conceitos,» paraque, com o contributo dos conhecimentos quevão construindo em interacção com os colegas,com a documentação e com o apoio do profes-sor possam progressivamente apropriar-se dosconceitos científicos.
Sem artifícios didácticos (jogos, simulações,exercícios preparatórios que dificilmente osalunos transferem para situações de traba-lho…) eles explicam, descrevem, justificam,argumentam, isto é, utilizam a linguagem nassuas múltiplas funções.
[...] Perguntaram-me o que iriam fazer quandoficassem sozinhos. Sugeri-lhes que folheassem oslivros e seleccionassem as folhas onde encontrassemimagens ou outras coisas relacionadas com o coração.
Ao fazer esta sugestão, estava não só a res-ponder às solicitações dos alunos, mas tam-bém a planificar com eles o trabalho e a guiá-los para a recolha e selecção da informaçãoatravés de indicações muito claras e precisas,adequadas à sua idade, conhecimentos e auto-nomia face à leitura que ainda não dominavamcom facilidade. Estava ainda a provocar o con-vívio com textos de carácter científico.
[...] Quando regressei a este grupo, foi para mimmuito interessante a maneira como se tinham orga-nizado: Cada um dos alunos tinha pegado num li-vro que ia folheando e sempre que encontrava aimagem de um coração ou a palavra coração reti-rava, copiando para uma folha, toda a informaçãoescrita mais próxima da palavra ou então reprodu-zia os desenhos que relacionava com o coração. (VerFigura 2).
Pediram-me, então que lesse o que eles tinhamescrito (a informação era por vezes extensa e compalavras que eles não entendiam) e em conjunto, fo-mos ver qual a informação ou ideia do texto que ti-nham entendido e sabiam explicar e eu ajudava-osa entender e a registar outra informação pertinente.Pensei que, como passo seguinte, serei eu a subli-nhar à frente deles apenas o que tiverem entendido
e depois começarei a pedir-lhes que sublinhem elescom o meu apoio.
Sugeri-lhes também que escrevessem numa fo-lha todas as palavras de que desconhecessem o sig-nificado, para que, quando eu fosse trabalhar com ogrupo o pudessemos procurar no dicionário.
Em relação às imagens que gostariam de pôr noprojecto e que eram muito difíceis de desenhar, ti-nham de apontar numa folha o número das páginase o título dos livros para serem fotocopiadas. (VerFigura 3).
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Figura 2
Figura 3
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É de salientar a atenção que a professoradispensou desde o primeiro momento paraproporcionar aos alunos condições favoráveisà aquisição de algumas técnicas de estudo: pes-quisa e selecção da informação, tomada de no-tas e a adequação das mesmas às característi-cas das crianças: idade, conhecimentos e auto-nomia face à escrita e à leitura.
Muitas vezes, quando faltam estes requisi-tos, multiplicam-se os apelos ao professor egera-se a confusão no grupo e na turma.
É de assinalar também a atitude da profes-sora que se oferece como modelo ao sublinharna presença dos alunos e que ao fazê-lo, deli-neia uma estratégia para os tornar mais res-ponsáveis e autónomos. São, na verdade, refle-xões de um profissional sobre a sua prática,passos do caminho da autonomia que pre-tende que os alunos conquistem e formas decooperação e de interacção sempre presentesneste trabalho.
[..] Quando voltava a este grupo conversava comeles para analisarmos o que já tinham feito, suge-ria-lhes que melhorassem um ou outro aspecto e es-clarecia dúvidas.
[..] Quando voltei a reunir-me com este grupopara prepararmos a comunicação à turma, estive-mos a reunir todo o material de pesquisa que tinhamelaborado, ordenámo-lo e lemos toda a informação(textos, imagens, desenhos, fotocópias) e conversá-mos sobre quem estava mais à vontade para dizero quê.
Entre eles achavam que cada um podia apresen-tar as recolhas que fizera e os outros colegas dogrupo podiam ajudar caso o colega que estava a co-municar ficasse atrapalhado. Pareceu-me uma boasolução. Os meus meninos assumiam-se como umaequipa de trabalho.
Se deste relato se pode concluir que a res-posta dos alunos à proposta da professora sedeve ao cuidado que ela pôs na organização daactividade e à clareza com que orientou o tra-balho, do modo como eles se organizaram,
pode inferir-se que tinham interiorizado de talmodo a organização cooperada instituída naturma, que eram capazes de a transferir parauma situação de trabalho num grupo restrito.
Nada foi deixado ao acaso. Tudo foi combi-nado, organizado e realizado em cooperação einteracção dos alunos entre si e com a profes-sora, sempre atenta a todas as fases do pro-jecto.
[..] O objectivo principal é que eles encontremrespostas para as suas questões, mesmo que de umaforma muito elementar, e numa primeira fase à basede desenhos e de pequenos escritos, convivam, seiniciem na linguagem das ciências e comuniquem oseu trabalho à turma.
[..] Depois da apresentação ao grupo seguiu-seum pequeno debate com perguntas e dúvidas apre-sentadas aos comunicadores, que respondiam sesoubessem ou ajudados por mim para uma melhorexplicitação do que tinha sido dito.
No final, foi feita avaliação do trabalho pelosparticipantes, pelos comunicadores e por mim.
Os produtos deste trabalho foram integrados nabiblioteca da aula para servirem de apoio a novosestudos e memória do trabalho realizado.
As comunicações à turma, o debate e a ava-liação são de uma enorme importância para aconstrução de conhecimentos pelos alunos epara criar atitudes de cooperação através dapartilha de conhecimentos.
O diálogo favorece a explicitação das ideias,o seu aprofundamento, o confronto de con-cepções e de pontos de vista.
Quem comunica, explica alguma coisa a al-guém e «explicá-la é tê-la entendido de talmodo que quem o ouve ou lê também é capazde entender» – (Wartofskky citado por MercèIzquierdo).
Quem ouve (ou lê), interroga-se sempre a sipróprio, elabora ou reelabora ideias, levantaquestões, aprofunda ou integra informação.
O professor apercebe-se mais objectiva-mente dos conhecimentos e das fragilidades
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dos alunos e recolhe informação que lhe per-mite adequar as suas estratégias de ensino àsnecessidades de aprendizagem que eles mani-festam ou que o professor descobre.
Há, na prática descrita, sinais muito visíveisda deslocação do ensino centrado no professorpara a aprendizagem centrada no grupo queaprende em interacção.
Os alunos experimentaram muitas situa-ções de escrita e de leitura com fins informati-vos para as quais a professora esteve muitoatenta guiando-os com indicações pertinentes,estimulando situações de comunicação no pró-prio grupo e com toda a turma, fazendo apeloa que explicassem para melhor compreende-rem e informando sempre que necessário.
Assumiu-se como ouvinte e interlocutoraatenta, por vezes como secretária e modelo,sempre como ajuda discreta mas segura à di-nâmica do grupo em todas as fases do projecto.
Estimulou a cooperação e a interacção, ade-quou técnicas de estudo às idades, autonomiae conhecimentos das crianças, guiou e avalioucom elas cada fase do projecto e, com elas, pro-gramou novas etapas.
Ao longo de todo o trabalho, a linguagemdesempenhou um papel mediador de interac-ção social das crianças entre si e com o professor.
Segundo Carles Lladó e Jaume Jorba «a in-teracção social toma visíveis os processos depensamento, isto é, toma-os públicos e parti-lhados, dando-lhes valor social e divide o pesocognitivo de tal modo que é o grupo que sus-tenta o espaço mais amplo que é necessáriopara o desenvolvimento das actividades».
No MEM, as interacções sociais têm sidosempre assumidas como factores importantesnas aprendizagens curriculares e sociais. Sãodisso testemunho o Conselho de CooperaçãoEducativa, os circuitos de comunicação (a cor-respondência, o jornal, as comunicações àturma, a intervenção no meio...) para citar ape-nas as mais visíveis.
A atenção que, presentemente, tem recaídosobre o papel das interacções nas aprendiza-gens e as investigações realizadas e em realiza-ção nesse campo, vieram reforçar o suporteteórico das nossas práticas tornando-as maisconscientes, logo mais intencionais.
Na mesma linha e num percurso da práticapara a teoria e desta para a prática, a interacçãona escrita de textos noutros domínios curricu-lares para além da Língua Materna começa aganhar um novo sentido.
Instituir práticas de escrever para aprenderou para comunicar o que se aprendeu é hojeum desafio para muitos professores do MEM.
Para o ilustrar, escolhi dois textos de alunosde Luís Mestre, crianças de sete e oito anos, noinício do 3° ano de escolaridade.
Para gerir melhor o tempo destinado às re-flexões das crianças sobre os conhecimentosque já possuíam acerca de um tema e para asfazer avançar em conteúdos programáticosainda não trabalhados na turma, o Luís pedia-lhes muitas vezes, que, em pares, elaborassemtextos explicativos e os trocassem com outrospares para que estes os criticassem e dessemsugestões para os melhorar.
Pretendia, com base nesses escritos, fazerum diagnóstico das aprendizagens realizadaspelos alunos, centrar a discussão para ajudar aturma a integrar a informação dispersa nassuas produções, e fazer dela ponto de ancora-gem de novos conhecimentos.
Foi uma estratégia que os alunos se encarre-garam de alimentar, introduzindo nos seus Pla-nos Individuais de Trabalho, sem que isso lhesfosse sugerido, a actividade «Escrever textosexplicativos» e produzindo muitos textosdesse tipo.
Se pensarmos que um texto explicativo é,segundo a definição proposta por Jaume Jorba,«apresentar raciocínios ou argumentos estabe-lecendo relações (deve haver relações causaisexplícitas) no interior das quais os factos, osacontecimentos ou questões explicadas adqui-
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rem sentido e levam a compreender ou a mo-dificar um estado de conhecimento», pode pa-recer excessivo pedir a crianças de sete e oitoanos esse tipo de produção.
Porém, se o entendermos como aquilo quecada um é capaz de explicar num determinadomomento, com os conhecimentos que possui ecom os recursos linguísticos de que dispõe, fazsentido apresentar aos alunos tal proposta e,consequentemente, aceitar as suas produçõescomo pontos base e de passagem para a com-preensão ou modificação de conhecimentosatravés da interacção dos destinatários directos(colegas e correspondentes) e da mediação doprofessor.
Para mim a divisão é:– 10 copos a dividir por duas pessoas igual a 5
copos.Manuel S.
A divisão para mim é: – Dividir um número poroutro número.
Carlos
Problema11 bolos a dividir por duas pessoas = a 5 mas
sobra 1 porque o número é ímpar.
Este texto recebeu as seguintes observa-ções:
CRÍTICAS POSITIVASAcho que o M e o C explicounós achamos muito bem a divisão.
Questões– Mas ele podia dar 9 bolos a uma e 2 a outra
porque é que não fez isso?
– A divisão não é só dividir números, mas simoutras coisas.
SugestõesO Manuel S podia explicar a divisão e não fa-
zer uma conta da divisão
Neste par parece não haver consenso acercada divisão.
O Carlos situa-se apenas no algoritmo, natécnica: «é dividir um número por outro nú-mero» mas o grupo crítico retomando a ideiado MS assinala que também se podem dividiroutras coisas, o que reforça o confronto entreduas concepções da divisão aliás presente emvárias produções de outros pares, isto é o quese realiza e o modo como se representa.
Mais um problema a discutir e a resolvercom toda a turma, mais um motivo para con-frontar os alunos com a diversidade de repre-sentações matemáticas das quais há tantosexemplos ao longo da história da Humani-dade. Veja-se a diversidade dos sistemas de nu-meração, as suas finalidades, temporalidade ea lógica de cada um deles; as medidas e instru-mentos de medida tantos deles hoje em de-suso...
A expressão» A divisão para mim é» em-bora nos remeta para um texto de opinião,pode considerar-se uma tentativa de definição,aspecto que a aproxima de um texto explica-tivo tal como a relação de causalidade introdu-zida pelo conector porque que o Manuel utilizapara justificar a divisão inexacta.
Curiosamente, o grupo crítico, ao sugerirque «O Manuel S podia explicar a divisão e nãofazer uma conta da divisão», faz supor que in-tuiu que o produto não correspondia ao pedidofeito pelo professor. Uma crítica a aprofundare um motivo para confrontar os alunos combons textos explicativos.
O Manuel S. apenas apresenta um aspectoparticular da divisão: a partilha em partesiguais que, embora não explícita no enunciado,é referenciada numa questão do par crítico.
Realmente, o problema, tal como o Manuelo apresentou, admite várias soluções para alémdaquela que o grupo crítico assinalou. Umbom motivo para trabalhar com os alunos o ri-gor que a linguagem matemática (e não só)exige, os problemas com várias soluções, semsolução...
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Um outro par produziu o seguinte texto:
texto explicativo – A divisãoÉ um pouco difícil, indica dividir, por exemplo: D U
14/_ 2x____14/_ 2_____ -14 7___00
Havia 2 coelhos e 14 cenouras os dois queriâo as14 cenouras e chegaram a um acordo: dividir as 14cenouras por eles, quanto é?
e recebeu os seguintes comentários:ComentáriosO texto não explica a Divisão» é só um pro-
blema» (Mariana e Rita)Podiam explicar mais a divisão (Rita)Podiam pôr o problema mais difvísil (Mariana)Tem erros (Mariana)Falta a pontuação (Mariana)
Nós surerimos:Podiam pôr que a divisão é dividir uma coisa em
1, 2, 3, partes e por aí fora. O erro é difisil – difícil(Mariana S)
Ao contrário do que se verifica com o paranterior, o André e o João tal como a generali-dade dos pares, apresentam um escrito do qualse pode intuir que traduz o consenso entre am-bos.
É interessante o facto de este par começarpor assinalar uma dificuldade que, dada a im-precisão da linguagem, não permite perceberse se referem à elaboração do texto, se à difi-culdade em lidar com o algoritmo.
Um problema–exemplo para tornar com-preensível a divisão foi o recurso de que se so-correram como tentativa de definição tal comoaconteceu com a generalidade dos pares.
Tal como o par anterior apenas se situam nadivisão como partilha e nota-se a mesma im-precisão de linguagem.
É muito curioso o funcionamento do grupocrítico. Há unanimidade de opinião quando
ambos afirmam, sem hesitação, que não setrata de um texto explicativo: «o texto não ex-plica a divisão, é só um problema» e na suges-tão que apresentam. Os comentários pessoais,dado que não há registo de discordância, su-põem-se aceites pelo par.
À semelhança do que fazem com outro tipode textos, assinalam aspectos do funciona-mento da Língua não respeitados e propõem asua correcção. Vejam-se os sinais de pontuaçãointroduzidos a lápis e algumas correcções orto-gráficas.
Da leitura das produções desta turma, podeinferir-se que, naquele momento, a generali-dade dos alunos apenas tinha como conceitoda divisão a partilha. Uma indicação para oprofessor de que era necessário implicá-los naresolução de problemas susceptíveis de os aju-dar a alargar o conceito de divisão.
Porque seria fastidioso apresentar porme-norizadamente todas as produções da turma,registo apenas algumas por me parecerem sus-ceptíveis de aprofundar ou modificar os co-nhecimentos dos alunos e alargar o conceito dedivisão: como medida, fracções, números deci-mais, propriedades da divisão...
«A divisão é o contrário da multiplicação porquena divisão desce-se e na multiplicação sobe-se.»
«Quando é qualquer coisa com 0 x dá sempre 0»(João e Manuel)
«A divisão é dividir ao meio, o objectivo é dividire ter os mesmos ............. mas também se não tiver omesmo».
«divisão é por exemplo dividir 5 por 10, dividir 5coisas por 10 pessoas»
A divisão é fazer contas de dividir é dividir coi-sas. Há contas a dividir por um ou dois algarismoscomo 24:2 e 24:12 (Tiago e Tomás)
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«A divisão não é só isso. Tem mais coisas. To-más e Tiago.
«A divisão não implica partes iguais. «
O que me parece importante salientar é quese trata de uma actividade matemática levadaa efeito em cooperação interpares, com toda aturma e com o professor, actividade que utili-zou como instrumento mediador a linguagemescrita e oral.
Estes meninos e meninas, de sete e oitoanos, fizeram um ponto de situação dos seusconhecimentos, puseram-nos em questão con-frontando-os com os de outros e apresentaramsugestões para os melhorar. Registaram-nos, epor isso podem consultá- los, modificá-los,aprofundá-los.
É pena que nem sempre se valorize estetipo de registos, verdadeiras histórias de apren-dizagem da turma e de cada um dos alunos e
que proporcionam ao professor elementosconcretos para uma descrição e reflexão sobreas suas práticas para as poder melhorar.
As sequências de trabalho apresentadas sãoapenas tentativas de dois professores para uti-lizarem a escrita como instrumento de apren-dizagem em outros domínios curriculares paraalém da Língua Materna.
Descrevi-as, conscientes eles e eu, de quemuito há ainda a estudar e a fazer neste campo– escrever para aprender – campo agora abertoe já tão aliciante.
BIBLIOGRAFIA
LLADÓ, Charles y JORBA, Jaume (2000). Hablar yescribir para aprender. Barcelona: EditorialSintesis.
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